Wescley Rodrigues Dutra

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    TEORIZANDO O CANGAO: O REI LAMPIO E A QUESTO DO

    BANDITISMO SOCIAL

    Wescley Rodrigues Dutra*

    O bandido assim como o heri se fazem cada vez mais presentes no cotidiano

    dos indivduos. Muitos desses passam de uma existncia real para uma ficcional ou

    vice-versa - j que subjetivamente os sujeitos vo atribuindo a esses toda uma gama de

    narrativas e sobre essas suas histrias reais so criadas narrativas exticas, hericas,

    covardes, misteriosas, tentando assim, legitimar o lado bom ou mal do bandido, o

    herico ou o cruel.

    Fato que o heri e o bandido so faces de uma mesma moeda e a maior parte

    deles so admirados no Ocidente. Quem nos seus tempos de criana no se viu

    encantado ou boquiaberto assistindo no cinema ou na televiso aqueles filmes de

    faroeste americano, onde os trajes tpicos dos mal-feitores e do Xerife fascinavam em

    meio aquele ambiente desrtico? A ousadia dos assaltos, o linguajar tpico, os

    constantes roubos de comboios e de mocinhas inocentes nos deixavam atnitos nas

    poltronas, enquanto na tela entre tiros - s vezes certeiros outros no aqueles

    camaradas que roubavam por longo tempo nossa ateno iam embora montados nos

    seus cavalos deixando para trs somente a poeira que levantava quando eles rompiam

    rapidamente os caminhos ngremes.

    Bestificados ficvamos admirando aqueles fora-da-lei e no nosso cotidiano

    amos gradativamente alimentando esta admirao sem sabermos o porqu, muitas

    vezes querendo transportar das telas uma figura fictcia para a vida real, quem sabe para

    que eles pudessem vir a fazer a justia que tanto almejamos. Mas nem s de figuras do

    cinema Hollywoodiano vive o homem!

    A maior parte das vezes a fico parte da vida real, de sujeitos que viveram em

    uma temporalidade especfica, bandidos que no seu tempo foram amados e odiados ao

    extremo. Muitos se tornaram posteriormente mitos, servindo de exemplo de luta para

    aqueles que querem ver uma sociedade melhor e contestam a fora desptica do Estado,

    * Wescley Rodrigues Dutra: Graduado em Histria pela Universidade Federal de Campina Grande, Especialista em Geopoltica e Histria e Mestrando em Histria e Cultura Histrica pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal da Paraba. Bolsista da CAPES.

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    esses se apropriam da histria desses bandidos elevando-os a uma nova categoria,

    ressignificando-os e usando-os como bandeira de luta.

    Outras vezes o bandido temido torna-se o santo milagroso, aquele que ouve o

    clamor dos sofredores e intercede ao Sagrado em favor dos miserveis mortais. Esses

    tornam-se santos extremamente populares sem serem beatificados oficialmente por

    serem identificados pelo povo sofredor como algum que viveu as auguras e

    incertezas que cercam a vida humana; que tiveram uma vida sofrida e mesmo que em

    vida tenham trilhado um caminho errante mereceram o perdo, perdo alcanado muitas

    vezes devido a crueldade da morte que lhes foi imposta, a morte seria assim um meio de

    purgar todos os pecados e erros desses.

    No presente trabalho nos propomos a fazermos uma anlise da obra Bandidos,

    do ingls Eric Hobsbawm, apresentando suas idias centrais e tentando identificar as

    peculiaridades dessa produo relacionando-as com a vida do cangaceiro nordestino

    Virgolino Ferreira da Silva, conhecido como Lampio. Teremos ainda como eixo

    central a tentativa de compreender at que ponto esse cangaceiro pode se enquadrar

    nesse modelo de Bandido Social pensado por Hobsbawm.

    Nas Malhas do Banditismo Social

    O historiador Eric Hobsbawm tendo como referencial os novos estudos da

    Histria Social Inglesa, elaborar o conceito de Banditismo Social, tentando entender

    como que se d a formao do bandido social, o que eles reivindicam, o por qu da

    admirao popular em torno destes e por que a grande massa excluda do poder oficial

    se identifica com esses bandidos e muitos dos seus discursos tentam legitim-lo. claro

    que essa admirao no acontece de maneira generalizada nem unnime, pois h

    inmeros sujeitos que por vrios motivos contestam os atos dos chamados fora-da-lei

    e o combatem com veemncia.

    Para Hobsbawm os Bandidos Sociais so heris de baladas, de histrias e mitos

    caractersticos que se mesclam simultaneamente com homens de carne e osso, que

    vivem em um estreito relacionamento com a imagem que deles fazem o povo. O

    bandido assim uma figura presente em todos os tempos e possivelmente em quase

    todas as regies do mundo. No Nordeste brasileiro, o autor ir identificar Lampio e os

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    seus cabras como um tipo peculiar de bandido social, vendo o movimento por ele

    encabeado como Movimento Social Pr-Poltico, j que na sua concepo esses

    movimentos esto longe de ser marginais, pois eles esto na origem e na prpria raiz

    das grandes reviravoltas revolucionria do sculo XX.

    O cangao foi um movimento que esteve presente em quase todos os perodos da

    formao histrica do Nordeste sertanejo 1 brasileiro, tendo o seu momento de apogeu

    e declnio entre os anos de 1900 a 1940. Inmeros homens e mulheres se destacaram

    nas malhas do cangaceirismo, mas a figura de maior notoriedade foi Virgolino Ferreira

    da Silva, conhecido como Lampio, que tornou-se Governador do serto2 como se

    proclamou no ano de 1926, sendo esse um governador as avessas, j que era um

    fora-da-lei que se contrapor ao sistema poltico e social institudo.

    O interessante na histria de Lampio so as contradies que cercam a sua

    histria. Em 1950 o mesmo bandido que perseguido e eliminado em 1938, ser

    oficialmente considerado Rei do Cangao e smbolo da nacionalidade quando o

    jornalista paraibano Assis Chateaubriand, que era proprietrio dos Dirios Associados,

    instituiu a Ordem do Cangao. Em uma espcie de concurso seriam escolhidos e

    premiados os brasileiros que tivessem dado em vida e atravs dos seus feitos provas

    cabais de amor ptria. Nesse mesmo processo seletivo tambm seriam eleitos os

    estrangeiros que demonstraram seu devotamento e respeito ao Brasil.

    nessa segunda metade do sculo XX que se disseminar nas artes a utilizao

    do tema Cangao como tambm esse ganhar visibilidade no mundo acadmico, onde

    toda a discusso buscar enquadrar os cangaceiros no modelo de Bandido Social

    lapidado, como dissemos anteriormente, por Eric Hobsbawm.

    Ancorando-se nos novos estudos da Histria Social Inglesa, Eric Hobsbawm

    ser um nome de extrema importncia para a construo dos estudos sobre o cangao,

    pois os seus dois livros: Rebeldes Primitivos e Bandidos serviram de pilares de

    1 Trabalho com a concepo de que h vrios tipos de Nordestes, no havendo uma homogeneidade da regio. Para aprofundamento da discusso recomendamos as obras: ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz. A Inveno do Nordeste e Outras Artes. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2006. FREYRE, Gilberto. Nordeste. 7. ed. So Paulo: Global, 2004. MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste. 3. ed. Fortaleza: Universidade Federal do Cear/Programa Editorial, 1995. 2 Em dezembro de 1926, Lampio envia ao ento governador do Pernambuco Jlio de Melo, que estava repassando o cargo a Estcio Coimbra, uma carta propondo a diviso do Estado em duas partes, onde Jlio ficaria dominando a poro do litoral e Lampio o serto. Por isso o uso do termo governador do serto, que os jornais locais j estavam lhe conferindo h algum tempo antes da efetuao da proposta.

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    sustentao para as produes posteriores a eles. Ele construiu um espao acadmico

    para se estudar o cangao enquanto movimento social. Assim, ele trabalhou o cangao a

    partir de novos conceitos como Movimentos Sociais Pr-Polticos e Banditismo

    Social. Esse foi o momento onde a Histria Social estava se redefinindo.

    A obra Bandidos foi publicada em 19693, nela Hobsbawm teve como principal

    objetivo analisar os feitos dos bandidos sociais, partindo da lenda de Robin Hood e

    passando por inmeros outros bandidos de vrias partes do mundo, entre esses outros

    encontramos referncias ao cangaceiro brasileiro Lampio e seu bando.

    O autor deixa claro que h distines e categorias dentro do prprio mundo dos

    bandidos, sendo essas as responsveis por uns terem maior visibilidade que outros, pois

    h aqueles que so conhecidos somente na sua remota regio, tendo seu campo de ao

    bastante restrito a pequenos espaos; e aqueles que ganham visibilidade a nvel

    nacional, cuja fama rompe as barreiras do localismo onde atuou e vai entrando na vida e

    no imaginrio de outros sujeitos a nvel nacional. No entanto, ele salienta uma

    caracterstica comum de ambos os bandidos: eles prejudicaram o sistema social local

    vigente, rompendo aparente paz estabelecida. Um exemplo desse bandido estrela,

    na concepo hobsbawniana teria sido o prprio Lampio.

    Frente a todas as contradies que cercam a vida dos bandidos, Hobsbawm

    nessa obra especificamente, busca responder aos questionamentos: Quem eram eles?

    Que espcie de pessoas aderiram ao banditismo social? Que papel representaram com

    suas armas, munies e moedas de ouro, como defensores da justia social, como

    justiceiros, como batalhadores primitivos em prol da liberdade? Como se situavam

    dentro do contexto econmico e da poltica de fronteira e de regies remotas? Eram eles

    revolucionrios sociais?

    A idia central que nortear o livro ser a de que [...] o banditismo social

    constituiu um fenmeno de notvel uniformidade, em todas as pocas e Continentes

    (HOBSBAWM, 1976: 07-08), assim ele busca mostrar que alguns chefes de bandos

    tinham uma espcie de conscincia sociopoltica embrionria, mas no era ainda uma

    conscincia de classe e de opresso no sentido moderno que usamos.

    Seria oportuno perguntarmo-nos o que seria o bandido na sua etimologia

    cotidiana? Todo aquele que assalta, rouba, comete atrocidades e mata bandido? H

    3 A primeira edio brasileira data do ano de 1975.

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    categorias distintivas desses? Qual seria a diferena cabal entre o bandido literal no

    sentido do termo e o bandido social que at o presente momento discutimos? Em linhas

    gerais, na ptica da lei, o indivduo que arranca do outro de forma violenta o que no

    lhe pertence, comete assaltos, se organiza em grupos rebeldes ou guerrilheiros sendo

    esses oficialmente no reconhecidos, so tarjados todos de fora-da-lei e indivduos que

    so contra a ordem estabelecida, contra os bons costumes da sociedade os quais se

    inserem e no podem continuar vivendo no mesmo ciclo social que os cidados

    honestos.

    Se seguirmos esse vis de anlise esse artigo perderia aqui o seu sentido de ser,

    porque etimologicamente j teramos definido e enquadrado conceitualmente os que so

    colocados margem da sociedade e pegam em armas para reivindicar algo. No entanto,

    no podemos de forma alguma enquanto cientistas sociais nos basearmos nessa

    concepo simplista. Para Hobsbawm h distines categricas sobre a figura dos

    bandidos, e na sua obra ele se volta a uma anlise das rebelies individuais ou

    minoritrias nas sociedades camponesas, pois esses fora-da-lei em sua maioria

    ganharam da opinio pblica outra conceitualizao, no sendo considerados como

    criminosos comuns.

    Vejamos a diferena cabal entre a concepo de bandido: para o Estado e o

    grande senhor de terra local esses bandidos sociais so encarados como criminosos, para

    isso baseiam-se na definio da lei, mas em contrapartida, para a sua gente, a sua

    sociedade camponesa de onde ele no rompe com as razes apesar de ser um fora-da-

    lei, fazendo desse espao seu forte de segurana, eles so considerados como heris,

    vingadores dos pobres, paladinos da justia (justia que se almeja quase que de forma

    utpica, vale salientar) e s vezes so encarados at mesmo como lderes da libertao,

    porta-voz das massas. Segundo o seu povo esses homens devem ser admirados,

    ajudados e sempre que possvel apoiados. Assim, essa ligao entre o campons

    comum e o rebelde, o proscrito e o ladro que torna o banditismo social interessante e

    significativo (HOBSBAWM, 1976: 11). Em sntese, a obra de Hobsbawm estar

    voltada para o bandido rural, deixando ele de lado os citadinos, j na sua concepo s

    h bandido social no campo.

    Precisamos fazer uma distino importante. No se pode confundir o bandido

    social com os outros dois tipos de criminosos rurais: que seriam os grupos originrios

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    do submundo profissional ou simplesmente os pilhadores (ladres comuns); e

    aqueles cujo roubo faz parte da vida normal da comunidade, como por exemplo, os

    bedunos. O primeiro tipo assalta e rouba como se aquilo fosse uma espcie de profisso

    e o objetivo imediato sair no lucro sem nenhum desejo de promover alguma mudana

    na vida cotidiana dos sujeitos; j os segundo tipo tem o roubo como parte de sua cultura

    e como mecanismo de sobrevivncia.

    Dessa maneira, tanto as vtimas e os assaltantes so inimigos e estranhos, no

    havendo uma identificao entre ambos, estaramos aqui de forma alegrica diante de

    uma presa e de um caador, sendo que as vtimas encaram esses bandidos como

    criminosos por no haver essa identificao e admirao mtua como h na relao

    entre os camponeses para com o bandido social, pois esses lutam por interesses comuns,

    no atentando contra a integridade daqueles que habitam o seu territrio e so pobres,

    agem contra o senhor que visto como um dos causadores da opresso que flagela a

    todos.

    Esse bandido social um produto das sociedades que se encontram na fase

    evolucionria da organizao tribal ou de cl e a moderna sociedade capitalista e

    industrial; mas tambm esta incluir as fases das sociedades consangneas que se

    encontram em desintegrao e em transio para o capitalismo agrrio. Nas sociedades

    tribais ou sanguneas eles conhecem a pilhagem, no entanto, faltam-lhes a estratificao

    interna que uma das responsveis por criar o bandido enquanto uma figura de rebelio

    e protesto social. A partir do momento que essas sociedades comeam a desenvolver

    sistemas de diferenciao de classe mesmo que de forma arcaica - ou quando se

    deixam absorver por sistemas econmicos maiores, que do gnese a conflitos de

    classe, pode-se surgir a um grande nmero de bandidos sociais.

    J os modernos sistemas agrrios, sejam eles capitalistas ou ps-capitalista no

    so os mesmos da sociedade camponesa tradicional que produziu outrora os bandidos

    sociais, pois a lgica capitalista, o desejo de acumular capital e lucrar desenfreadamente

    j impregnou-se no meio rural acabando com o sentido e a razo de ser do nosso

    bandido social. Aqueles princpios bsicos que faziam com que se lutasse por um

    retorno as tradies esfacelou-se completamente, a lgica agora ser pensar no no

    sentido coletivo e de melhoria coletiva, mas sim um isolar-se no individualismo, um

    acumular o mximo possvel para si.

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    A modernizao ser a grande responsvel pelo fim do bandido social, pois ela

    privar o meio social das condies bsicas para o seu florescimento. Os bandidos

    sociais surgiram, ento, da insatisfao camponesa frente ao sistema que os oprimia,

    sendo que o banditismo tinha seu momento de pleno florescimento em pocas de

    pauperismo ou de crise econmica.

    No Nordeste brasileiro apesar de se ter registros de cagaceirismo desde o

    perodo colonial, o banditismo alcanar sua fase epidmica aps 1870, perodo que

    ser marcado por constantes calamidades e instabilidade poltica. Mas o apogeu mesmo

    ser de 1900 a 1940, onde extinto completamente esse movimento social com a morte

    de Corisco.

    O banditismo social fruto das sociedades que se baseiam na agricultura, sendo

    os bandidos em sua maioria camponeses e trabalhadores sem-terras que se vem sob o

    julgo da dominao, da opresso e da explorao por seus senhores. Nesse espao,

    segundo Hobsbawm, podemos encontrar trs tipos de bandidos, cada um bem distinto

    entre si: o Ladro Nobre, que seria uma espcie de Robin Hood que tira dos ricos e

    distribui com os menos favorecidos; os combatestes primitivos pela resistncia ou a

    unidade de guerrilha, que ele chamar de haiduks, os quais se unem para tentar barrar o

    desenvolvimento do sistema, esses em sua grande maioria no se preocupam

    diretamente com os pobres como o Ladro Nobre que distribui os produtos dos furtos; e

    por ltimo teremos o vingador que por algum motivo de ordem pessoal semeiam o

    terror tendo sede de sangue.

    O interessante que alm do arcasmo uma outra caracterstica necessria para o

    desenvolvimento do banditismo ser a fraqueza e a falta de pulso das autoridades em

    administrar a regio, sendo que a ao dos bandidos ficava bem mais facilitada quando

    aqueles responsveis por exercer a autoridade so cidados naturais do lugarejo, tendo

    esses o alcance do seu poder extremamente limitado pelo localismo e pelas fronteiras

    que deviam ser respeitadas e no poderiam ser transpostas em uma terra onde o cdigo

    de tica local no permitia se exercer poder em territrio alheio.

    Para Hobsbawm, o grande responsvel pelo fim do banditismo social foi a

    modernizao das regies rurais, pois a transio de uma economia pr-capitalista para

    uma economia capitalista agiu na psicologia social dos indivduos rurais induzindo estes

    a buscarem de forma desenfreada o lucro, assim, essa transformao social veio a

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    destruir completamente o tipo de sociedade agrria que gestava os bandidos.

    Categoricamente o autor afirma: De modo geral, entretanto, o banditismo social um

    fenmeno do passado, embora, s vezes, de um passado bastante recente. O mundo

    moderno o matou, substituindo-o por suas prprias formas de rebelio primitiva e de

    crime (HOBSBAWM, 1976: 18).

    O Papel Social dos Bandidos

    Seria oportuno perguntarmos qual papel esses bandidos exercem dentro das lutas

    de transformao da sociedade. Enquanto sujeitos individuais eles se configuram como

    camponeses que se recusam submisso, por tomarem tal postura eles acabam por se

    destacarem entre os companheiros do seu ciclo social. Outras vezes eles so gestados

    dentro de meios sociais rurais os quais so excludos da profisso habitual de seus pares

    e no encontram espao de trabalho naquele ambiente, sentindo-se obrigados a se

    lanarem na marginalidade e no crime. No entanto, no podemos qualific-los

    enquanto rebeldes polticos ou sociais, ou ainda como revolucionrios, pois eles

    apresentam peculiaridades distintas do rebelde poltico e do revolucionrio, j que os

    bandidos sociais:

    Tomados em conjunto, representam pouco mais do que sintomas de crise e tenso na sociedade em que vivem de fome, peste, guerra ou qualquer outra coisa que abale essa sociedade. Portanto, o banditismo, em sim, no constitui um programa para a sociedade camponesa, e sim uma forma de auto-ajuda, visando a escapar dela, em dadas circunstncias. Exceo feita sua disposio ou capacidade de rejeitar a submisso individual, os bandidos no tm outras idias seno as do campesinato (ou da parte do campesinato) de que fazem parte. So ativistas, e no idelogos ou profetas dos quais se deve esperar novas vises ou novos planos de organizao poltica. So lderes, na medida em que homens vigorosos e dotados de autoconfiana, tendem a desempenhar tal papel; mesmo enquanto lderes, porm, cabe-lhes abrir caminho a faco, e no descobrir a trilha mais conveniente. (HOBSBAWM, 1976: 18-19).

    Assim, no podemos esperar do bandido social um projeto poltico, uma

    conscincia de classe, planos bem arquitetados para promover uma revoluo social. Na realidade o que eles almejam com veemncia um retorno as tradies, restaurar todo aquele

    conjunto simblico de vida que eles idealizam como o melhor seja um passado real ou mtico

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    uma tradio que vai aos poucos sendo esquecida abrindo a sociedade a novos modelos onde

    os pobres se vem cada vez mais explorados e subjugados.

    Especificamente no cangao podemos identificar pelo menos trs tipos de

    cangaceiros: o meio de vida, o refgio e o vingana. O primeiro tipo seria aquele que

    assume a vida de bandoleiro por no conseguir vislumbrar no meio em que se insere

    outra forma de conseguir recursos para sobreviver, vendo no cangao a nica soluo

    possvel. Em segundo lugar temos aqueles indivduos os quais por terem cometido

    algum crime, deflorado moas, entrado em divergncia com a autoridade local, acaba se

    tornando perseguido, assim, por no ter como enfrentar a situao sozinho e nem meios

    para tal se agrega aos cangaceiros, pois tem conscincia que inserindo-se nesse meio ele

    ter a proteo dos seus pares. E por ltimo temos o vingana, aquele que adere a essa

    vida porque uma presso maior se abateu sobre ele como por exemplo, assassinato dos

    pais, irmos, desmoralizao pblica, expulso das suas terras, despotismo exacerbado

    do chefe poltico local, etc.; por no ter a lei ao seu lado j que essa nesse perodo

    sempre defendia os interesses da elite, ele resolve fazer vingana com as prprias mos,

    sendo as suas armas seus advogados e juzes.

    Qualquer dos cangaceiros tinha uma dessas caractersticas, no entanto, Lampio

    congregava as trs: entra na vida do banditismo para se vingar da morte dos pais; aos

    poucos vai se identificando com aquele cotidiano passando gradativamente a encarar o

    cangao como um meio de vida, e quando cogitou a idia de abandonar essa vida j era

    tarde porque a perseguio a ele j tinha tomado propores acima do esperado, assim,

    ele no conseguiria mais alcanar a paz almejada, tornando-se o cangao um refgio.

    Quando a obra Bandidos traduzida para o portugus na segunda metade do

    sculo XX, perodo onde estava comeando a engatinhar os estudos do cangao no

    Brasil, entre os vrios tipos de bandidos apresentado pelo autor, Lampio tentar ser

    enquadrado por boa parte dos receptores brasileiros na categoria do Ladro Nobre.

    O interessante que parte desses indivduos que elevaro o Rei do Cangao a

    essa categoria no estaro institucionalmente vinculado ao mundo acadmico,

    escrevendo seus livros sobre o assunto baseando-se em relatos memorialsticos sem

    necessariamente terem a preocupao com o rigor do mtodo historiogrfico. Entre

    essas vozes que so contra essa concepo, podemos fazer referncia a Maria Isaura

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    Pereira de Queiroz,4 autora que Hobsbawm se baseou quando foi fazer referncia no

    corpus do seu livro ao movimento do cangao.

    Consideraes Finais

    A obra de Hobsbawm apresenta-se como um marco elementar nos estudos do

    banditismo e conseqentemente do cangao, pois ela contribuir para a criao de um

    espao acadmico de estudo pra tal temtica. A recepo do seu trabalho no Brasil se

    dar em um momento onde os estudiosos e a academia comeavam a voltar o seu olhar

    para o cangao e onde a concepo conceitual de Movimento Social estava sendo

    redefinida e colocada em pauta nas discusses.

    Quase todas as obras posteriores sobre o cangao faro referncia a Hobsbawm,

    seja para concordar com as idias que ele apresenta ou para discordar da sua concepo

    de bandido social. A obra permitir discursos calorosos, contestaes veementes, artigos

    inflamados. Assim, toda a historiografia sobre o cangao andar sobre a constante

    corda bamba do banditismo social. H vozes discordantes que no pudemos explorar

    nesse artigo porque assim estaramos fugindo do objetivo inicial do mesmo, que era

    apresentar a concepo do bandido social segundo a viso hobsbawniana, tentando fazer

    relao com a vida do bandoleiro nordestino Virgolino Ferreira da Silva Lampio.

    Ficaria ento o questionamento: seria Lampio um bandido social? Acreditamos

    que responder essa pergunta seria o mesmo que decretar uma verdade absoluta sobre a

    vida desse cangaceiro e que tal concepo no congregaria toda a complexidade da

    discusso, pois assim como sua vida uma contradio o conceito tambm

    contraditrio em seu todo. Realmente muitas das caractersticas apresentadas pelo autor

    se enquadram perfeitamente na vida do nosso objeto, mas h momentos especficos

    onde o Rei do Cangao fugir do que se espera de um bandido social

    No fcil dizer se esse indivduo com surtos de crueldade quase que colrica,

    com aes monstruosas, mas por outro lado gestos humanitrios seria uma espcie de

    variedade especial de bandido social. Enquadrando-o no seu contexto social e no seu

    universo tico ele congrega no seu bojo tanto os valores do ladro nobre, o to

    4 Ver: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Histria do Cangao. 5. ed. So Paulo: Global, 1997. ___________. Os Cangaceiros. So Paulo: Duas Cidades, 1977.

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    sonhado Robin Hood; como tambm est presente de forma vvida a figura do monstro,

    ambos cabem e so justificados no mesmo sistema social e no mesmo espao.

    A histria caberia enquadrar esse bandido naquela categoria que ela acredita

    mais correta e que o explicaria, mas a massa popular ainda permanece com a sua cultura

    histrica dual, admirando-o, criando imagens, forjando histrias. O bandido e o heri

    tornam-se faces da mesma moeda chegando ao ponto de no se conseguir distinguir um

    do outros.

    Amado, odiado, temido, respeitado, sua coragem sendo cantada em trova e em

    verso, e sua figura fazendo-se cada vez mais viva no imaginrio e na constituio

    identitria dos sujeitos que vivem no mesmo territrio onde esses seres contraditrios

    agiram. O bandido torna-se assim um smbolo.

    Referncias Bibliogrficas

    ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz. A Inveno do Nordeste e Outras Artes. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2006. FREYRE, Gilberto. Nordeste. 7. ed. So Paulo: Global, 2004. HOBSBAWM, E. J. Bandidos. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1976.________________. Rebeldes Primitivos. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

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