WHITE, Hayden - A questão da narrativa na teoria contemporânea

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  • HAYDEN WHITE 18. A QUESTAO DA NARRATIVA NA TEORIA

    ' H I S T ~ R I C A CONTEMPORBNEA

    Na teoria histbrica contempornea, o tpico da narrativa tem sido obje- to de grande e intenso debate. Sob certa perspectiva, isso surpreenden- te - ao que parece, deveria haver muito pouco a discutir. A narrao uma maneira de falar to universal quanto a prhpria linguagem, e a narrativa um modo de representao verbal aparentemente to natural h conscincia humana que sugeri-la como um problema poderia muito bem soar pedante.' Mas precisamente porque o modo narrativo de representao to natural h

    r Como observa Barthes, "a narrativa internacional, trans-histrica, transculturd; sim- plesmente est ali, como a pr6pna vida" rlntroduction to the Structural Analisys of Narratives", in Zmage, Murc, Tat, trad. Stephen Heath Nova York Hill and Wang, 1977)- O modo de representaeo narrativo, claro, no mais "natural* que qualquer outro modo de dixurso, ainda que ser ou no um modo primrio, contra o qual outros modos discursivos se opem, criando contraste, 6 uma questo de interesse para a lin- gustica histrica (ver mile Benveniste, Problmes de linguistique gnerale. Paris: Galli- mard, 1966 [ed. bras.: Problemas de lingukticngeraf r. Campinas: Pontes, 20051; e Grard Genette, "Frontikres du rcit", Figures ir. P d s : Seuil, 1969, pp. 49-69). E. H. Gombrich sugere a importncia da relaeo entre o modo narrativo de representao, uma cons- cincia distintivamente histrica (em oposio a uma mtica), e o "realismo" na arte ocidentd (Art nnd Lllusion: A Study in Psycholoey of Pictorial Representation. Nova York: Phaydon, 1960, pp. 116-46 [ed. bras.: Arte e iiuso: um estudo da psicologia da representa- @o pidiiricn, 3! ed., trad. Raul de S Barbosa. So Paulo: Martins Fontes, 1~951)-

  • consciibcia humana, to propriamente um aspecto da comunicao cotidiana e do discurso mais simpies, que seu uso em qualquer campo de d o que aspire ao estatuto de cincia deve ser posto em suspeita. Pois, quaisquer que sejam suas especificidades, essa cigncia precisa ser m'tica acerca do modo com que descreve seus objetos de estudo tanto quanto acerca daquele com que explica seus processos e estruturas. Vendo as cincias modernas desse ponto de vista, podemos traar seu desenvoh.imento nos termos de seu progressivo abandono de um modo narrativo de representao, presente em suas desai- es dos fenmenos que compreendem seus objetos especficos de estudo. E isso em parte explica por q ie esse tema simplrio, a narrativa, ,deveria ser to amplamente debatido pelos tericos da histria de nosso tempo. Aos mui- tos daqueIes que desejam transformar os estudos histricos em uma cincia, o uso contnuo que os historiadores hzem de um modo de representao nar- rativo ndice de um fracasso a um s tempo metodolbgico e terico. Uma disciplina que produz exposies narrativas de seu objeto como um h em si parece fraca em sua teoria; uma disciplina que investiga seus dados com o interesse de contar um caso sobre eles parece metodologicamente deficiente:

    z Desa forma, Maurice Mnndebaum, por exemplo, nega o porque de &amar nmf iws os tipos de relatos produzidos por historiadores, se esse temo deve ser lembrado como si- nbnirno de conto [strny] (fie~nafomy of Historicaf Knmvledge. Ehitimore: Liveright, 1970, pp. z5-26). Na ciencia fisica, as narrativas no tm lugar, exceto nai anedotas que prefaciam a apresentao dos achados; um 6sico ou um bilogo achanam estranho contar uma his- tria sobre seus dados e no muialis6-10s. A biologia tomou-se &na cincia quando deixou de ser praticada como 'histria naturaI; isto , quando os cientistas da natureza orgnica deixaram de tentar wnshuir a nistria verdadeira" da+& q u e acontecian e comearam a buscar leis, puramente causais ou no teleolgicas, que pderiam dar d o k evidCnaas presentes nas amostras fsseis, resultados da prtica proaiatma, e assim por diante. Para ter certeza, fiisa Mandelbaum, um relato sequencial de um conjunto de eventos nio o mesmo que um relato, entio, narrativo. E a difierena entre des C a aus&ncia de interesse na teIeo- iogia como um princpio de qlica@o no primeiro. Qdquer relato narrativo , seja ele o que for, um relato teleolgico, e por essa ra7.o tanto quanto por qualquer outra que a narratividade C suspeita nas tinaas fsicas. Mas as consideraes de Mandelbaum perdem a distino wnvcncional entre uma crnica e uma histria baseada na diferenp enixe um relato mermnmte sequenal. e um relato narrativo. A diferena tem reflexo i medida que a histriaassim concebida se aproxima da coerncia formal de um conto [stmy] (ver ~ a y d e n White, 'lhe Value of Narrativivn the kpresentaiion of Rpalty", in Namatiue in Cantem- pormy IfMcal7hemy. Baltllnow %e Jobns Hopins Univedty Pms, 1~~2).

    No campo dos estudos histbricos, no entanto, a narrativa tem sido vista em gaude parte nem como nm produto de uma teoria, nem como a base para um 'mtodo, mas antes como uma forma de discurso que pode ou no ser usada para a representaeo de eventos histbricos - o que depende de ser seu objetivo inicial descrever uma situao, analisar um processo histrico ou produzi. um relato? De acordo com esse ponto de vista, a quantidade de narrativa em urna dada hiibria ir variar, e sua funo depender de ela ter sido concebida como um fim em si mesma ou apenas como meio para outro fim. Obviamente, a quan- tidade de narrativa ser maior quando o objetivo for contar um acontecimento, emenor quando a inteno for compor uma anlise dos eventos tratados. Onde o objetivo em questo C contar um acontecimento, o problema da narratbidade estar em se os eventos histricos podem ser verdadeiramente representados medida que manifestem as estruturas e processos de eventos enconmdos mais comumente em certos tipos de discurso amaginativo",u seja, fices; como os picos, os contos populares, o mito, o romance, a tragdia, a comdia, a &a, e semelhantes. Isso significa que o que distingue os enredos "histricos* dos

    aficionais" , antes de tudo, o contedo, no a forma. O contedo dos enredos histricos o evento real, o que realmente aconteceu, e no o imaginrio, inven- tado pelo narrador. Donde se infere que a h a com que os eventos histbricos se apresentam a um possvel narrador no construda, e sim encontrada.

    Para o historiador narrativo, o mtodo histdrico consiste em investigar os documentos a h de determinar qual o enredo verdadeiro, ou mais plaus- vel, que pode ser contado a respeito dos eventos, estes entendidos como evi- dncia. Um relato verdadeiramente narrativo, segundo esse ponto de vista, menos o produto dos talentos poticos do historiador - pressupostos, quan- do se trata do relato narrativo de eventos imaginrios - do que o resultado necessrio de uma apIicao apropriada de um mtodon histrico. A forma

    3 Ver G e o k y W. Elton, 'ke Prmtice ofHistory. Londres: Methuen, 1967~ pp. 118-41; e J. H. Hexter, Rfxlpp~cTiSak in Hstory. Nova York: Harper Torchbooks, 1961, pp. 8 ss. Fsses dois trabalhos podem ser tomados como indicativos da perspectiva da profisso nos anos 1960 no que se refere i adequaeo do 'contar histrias" segundo os objetivos e pnn- cipios dos estudos hist6ricos. Para ambos, as representaes narrativas so uma opiio do historiador, que de pode ou no escolher conforme seus intexesses. A mesma pets- pectiva foi expressa por Georges Lefcbvre em Lu Naissancc de I'historographie modeme (palestras proferidas originhente em Paris: Fiammarion, 1971, pp. 3ti-26.

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  • objetos de reflexo apenas em outros modos de discurso, como a enciclo- pdia, o panorama, o eptome, a tabela ou srie estatstica? Isso significava que esses objetos eram no histricos, ou seja, que eles no pertenciam histria; ou a possibilidade de represent-los em um modo de discurso no narrativo indicava uma Limitao do modo narrativo e mesmo um precon- ceito em respeito ao que poderia ser considerado ter uma histria?

    Hegel insistira em que um modo histrico especfico de ser estava ligado a um modo especificamente narrativo de representao por um "princpio inter- no vital" compartilhado? Esse princpio era, para ele, nada mais do que a poltica, que era ao mesmo tempo a precondio do tipo de interesse no passado que informa a conscincia histrica e a base pragmtica para a produo e a pre- servao dos tipos de registros que tomavam a investigao histrica possvel:

    Ns devemos supor que as narraes histricas apareceram contemporanearnen- te aos feitos e eventos histricos. Memoriais de famlia e tradies patriarcais tm um interesse restrito fan3ia e ao cl. O h s o uniforme dos eventos que tal con- dio implica no objeto de recordao sria. [...] o Estado que primeiramen- te apresenta uma matria que no apenas est adaptada prosa da histria, como envolve a produo de tal histria no prprio progresso de seu ser (p. 83).

    Em outras palavras, para Hegel, o contedo (ou referencial) de um discurso especificamente histrico no era a histria real sobre o que aconteceu, mas a relao peculiar entre um pblico presente e um passado que um Estado dotado de Constituio tornou possvel.

    Sentimentos profundos, como o amor, tanto quanto a intuio religiosa e seus de- sgnios, so completos em si mesmos - constantemente presentes e satisfatrios; mas a existncia material de uma Constituio poltica colocada no relicrio de suas leis racionais e costumes um presente imperfeito e no pode ser completa- mente entendido sem um conhecimento do passado (pp. 83-g4).

    6 "Es ist eine innedichegerneinsame Grundlage, welchesiewsammen hervortreibtn (G. W. F. Hegel, Vmlesungen ber die Philosophie der Geschitche. Frankfurt am Man: Suhrkamp) 1970, p. 83 [ed. bras.: Filosofa da histria, trad. Maria Rodrigues Hans Harden. Braslia: Editora da UnB, igg~]; referncias posteriores a esse trabalho sero citadas entre parnteses no texto).

    Da a arnbiguidade do termo histria. Ele "une os lados objetivo e subjeti- vo e denota a historia rerum gestarum tanto quanto as prprias res gestae" e Compreende o que aconteceu no menos do que a narraiio do que aconte- ceu". Essa ambiguidade, diz Hegel, reflete uma "ordem mais alta do que o mero acidente material [miiseen wir@r hhere Art aL&r eine bloss ausserliche Zuflligkeit ansehen]" (p. g3). A narrativa per se no distinguia a historiogdia de outros tipos de discurso, nem a realidade dos eventos que so recontados distinguia a narrativa histrica de outros tipos de narrativa. Foi o interesse em uma forma especificamente pokica de comunidade humana que tomou possvel uma forma especificamente histrica de investigao; e a nature- za poltica dessa forma de comunidade requeria uma forma narrativa para sua representao. Assim considerados, os estudos histricos tinham seu prprio objeto, mais exatamente "aquelas colises decisivas entre os deve- res, as leis e os direitos existentes e reconhecidos e aquelas contingncias que so adversas ao sistema fixado" (pp. 44-45); seus prprios objetivos, ou seja, "descrever esses tipos de conflitos"; e seu prprio modo de representa- o, ou seja, a (prosa) narrativa. Quando a matria, o objetivo ou o modo de representao esto ausentes em um discurso, este, ainda que possa ser uma contribuio ao conhecimento, no ser uma grande contribuio ao conhecimento histrico.

    A perspectiva de Hegel sobre a natureza do discurso histrico teve o mrito de explicitar o que era reconhecido na prtica dominante da histria erudita no sculo XIX, mais especificamente, um interesse no estudo da histria politica, que era, contudo, muitas vezes obliterado sob as declaraes vagas de um interesse na narrativa como um fim em si. A doxa da declarao, em outras palavras, tomou a forma do discurso his- trico - o que ela chamava de verdadeiro relato - como o contedo do discurso, enquanto o contedo real, a politica, era representado, a prin- cpio, apenas como um veculo para uma ocasio de contar algo. Essa a razo por que a maioria dos historiadores profissionais do sculo XIX, ainda que especializados em histria poltica, tendiam a pensar seu trabalho como uma contribuio menos cincia poltica do que ao compndio poltico de comunidades nacionais. A forma narrativa em que seus discursos eram vazados era completamente adequada a esse ltimo objetivo. Mas ela reflete tanto uma relutncia em transformar os estudos histricos em uma cincia como, o que mais importante, uma resistncia

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  • tria ou, se existissem, no fossem adequados ao estudo histrico justamen- te por seu carAter dramtic0.q E difcil saber o que fazer com esse estranho acmulo de opinies. Pode-se narrativizar,sem dramatizar, como o todo da literatura modernista demonstra, e dramatizar sem teatralizar, como o tea- tro moderno de Pirandello e Brecht deixa muito claro. Ento, como algum pode condenar a narrativa nos termos de seus efeitos "novelsticos"? Sus- peita-se que no seja a natureza dramtica dos romances a questo, mas um desagrado por um gnero de literatura que coloca os agentes humanos, mais do que os processos impessoais, no centro de interesse e sugere que esses agentes tm algum controle significativo sobre seus destino^.'^ Porm os romances no so necessariamente mais humansticos do que dram- ticos. Em todo caso, a questo do determinismo e do livre-arbtrio um problema ideolgico tanto quanto o da possibilidade ou impossibilidade de uma cincia politica. Assim, sem presumir o julgamento das realizaes positivas dos Annalistes em seu esforo de reformar os estudos histricos, devemos aduzir que as razes mencionadas para a insatisfao deles com a histria narrativa so jejunas.

    Tambm se pode pensar, contudo, que o que alguns deles tm a dizer sobre esse assunto apenas uma reproduo estenogrfica de uma anlise e desconstruo mais extensiva da narratividade, empreendida pelos estrutu-

    17 Segundo Furet, "a explicao histrica tradicional obedece lgica da narrativa", que ele glosa como "o que vem primeiro explica o que se segue". A seleo dos fatos go- vernada, ele continua, pela "mesma lgica implcita: o penodo tem precedncia sobre o objeto analisado; eventos so escolhidos segundo seu lugar em uma narrativa, definida por um incio e um fim". Furet, ento, segue caracterizando a "histria poltica" como

    "um modelo desse tipo de histria", porque "a politica, em um sentido amplo, constitui o primeiro repertrio de mudana", e isso, por sua vez, permite a apresentao da histria em termos das categorias da "liberdade humana". Uma vez que "a poltica o domnio quintessencial da oportunidade, e assim da liberdade", a histria pode ser representada como se tivesse "a estrutura de um romance" (Furet, Xn the Workshop ofHistory, trad. Jonathan Mandelbaum. Chicago: University of Chicago Press, 1984, pp. 89).

    i8 Assim, Furet observa que "os historiadores tm sido levados a desistir no s da forma maior de sua disciplina - a narrativa -, como tambm de seu objeto predileto - a pol-

    ' tica", pois "a linguagem das cincias sociais est fundada na busca de determinantes e limites de'aes", e no no estudo da oportunidade e da liberdade nos assuntos humanos (ibid., pp. 910).

    ralistas e ps-estruturalistas nos anos 1960 com o intuito de demonstrar que a narrativa no era somente um instrumento da ideologia, mas o prprio paradigma do discurso ideologizante em geral.

    Aqui no h lugar para outra exposio do estruturalismo e do ps-estru- turalismo, sobre os quais j se disse o ~uficiente.'~ Mas o significado desses dois movimentos para a discusso da histria narrativa pode ser rapidamen- te indicado. O significado, como o vejo, triplo: antropolgico, psicolgico e semiolgico. Da perspectiva antropolgica, representada, acima de todos, por Claude Lvi-Strauss, no era a narrativa, mas sim a histria o problemamm Em uma famosa polmica dirigida contra a Critique de la raison dialectique de Sartre, Lvi-Strauss nega a validade da distino entre as sociedades "histri- cas" (ou Civilizadasn) e as "pr-histricas" (ou primitivasn) e com isso a legi-

    19 Algumas das melhores exposies so: Oswdd Ducrot et a l , Qu'est-ce que le structuralisme?. Paris: Seuil, 1968; Kichard Macksey e Eugenio Donato (orgs.), The Languages 4 Criticism and the Sciences ofMan: The Struduralism Controversy. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1970 [ed. bras.: A controvrsia estruturalista: as linguagem da m'tica e as cincias do ho- mem, trad Carlos Alberto Vogt e Clarice Sabia Madureira. So Paulo: Cultrix, i9?i]; Josu Hami (org.), Textual Strategies: Perspectives in Post-Stnrduraism Criticism. Ithaca: Comeu University Presq 1979; e John Sturrock (org.), Structuralism and Since. Oxford: Oxford Uni- versity Press, 1979. Sobre o estruturalismo e a teoria histrica, ver AIh-ed Schmidt, Geschichte und Stnrktur: Fragen einer mamistischen Historik. Munique: Hanser, 1971. Lidei com esses assuntos em dois trabalhos: Metahistoty: f i e Historcal Imagination in Nineteenth-Century Europe. Baltimore: 'Ihe Johns Hopkins University Press, 1973 [ed. bras.: Meta-histria: a imaginao histrica do sculo xur, trad. Jos Lournio de Melo. So Pauio: Edusp, i99s]; e Tropics ofDiscourse. Baltimore: 'Ihe Johns Hopkins University Press, 1978 [ed. bras.: Tr- picos do discurso: ensaios sobre a crtica da cultura, trad. Alpio Correia de Franca Neto. So Paulo: Edusp, zooi]. Paraum fascinante exemplo da aplicao das ideias estmturalistas-ps- estruturalistas aos problemas da investigao e da exposio histrica, ver Tzvetan Todorov, La Conqute de I'Amrique: La Question de I'autre. Paris: Seuil, 1982 [ed. bras.: Aconquista da Amrica: a questo do outro, trad. BeatrizPerrone-Moiss. So Paulo: Martns Fontes, 200~1.

    20 Claude Lvi-Strauss, "History and Dialetic", in The Savage Mind. Londres: Weidenfeld & Nicholson, 1966, cap. 9 [ed. bras.: O pensamento selvagem, trad. Tnia Pellegrini. So Paulo: Papirus, zoo~]. Uvi-Strauss diz: "No sistema de Sartre, a histria faz o papel exato do mito" (PP. 254-55). Em outra passagem: "Basta para a histria se afastar de ns, ou para ns nos afastarmos dela em pensamento, para ela deixar de ser internalizvel e perder sua inteligibilidade, uma inteligibilidade espria, ligada a uma internalidade temporria" (p. zS5). E em outra: "Assim, como se diz de certas carreiras, a histria leva a tudo, mas com a condio de sair dela" (p. 262).

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  • tmidade da noo de um mktodo especico de estudo e modo de represen- tar estruturas e processos primeira. O tipo de conhecimento que o assim chamado mtodo histrico supunha oferecer, ou, por assim dizer, Conhe- cimento histrico: era, na perspectiva de Lvi-Strauss, dificilmente distinto da crnica mtica das comunidades selvagens. De fato, a historiografia - pela qual Lvi-Strauss entendeu a historiografia narrativa: tradicional - nada mais era do que o mito das sociedades ocidentais, especialmente modernas, burguesas, industriais e imperialistas. A substncia desse mito consistia no engano de tomar um mtodo de representao, narrativo, como contedo; mais notadamente, uma humanidade unicamente identificada com aquelas sociedades capazes de acreditar que viveram os tipos de relatos que 'os his- toriadores do Ocidente contaram sobre elas. Lvi-Strauss pressups que a representao histrica, que seria a diacrnica, de acontecimentos era um mtodo de anlise, mas "um metodo com nenhum objeto especfico que lhe correspondesse'; e menos ainda um mtodo peculiarmente adequado ao entendimento da "humanidade ou das "sociedades civilizadas"? A represen- tao de acontecimentos nos temos de sua ordem cronolgica de ocorrncia, que Lvi-Strauss identifica como o mtodo reputado de estudos histricos, para ele nada alm de um procedimento heurstico comum a qualquer cam- po do estudo cientfico, seja da natureza ou da cultura, anterior aplicao de quaisquer tcnicas narrativas necessrias para a identificao das proprieda- des comuns desses eventos como elementos de uma estrutura."'

    A escala cronolgica especfica usada para esse procedimento de ordena- o sempre especfica da cultura e adventcia, um dispositivo puramente heurstico cuja validade depende de objetivos e interesses prprios da dis- ciplina cientfica em que empregado. O ponto importante do problema que, na perspectiva de Lvi-Strauss, no h algo como uma nica escala para a ordenao dos acontecimentosi antes, h tantas cronologias quan- to existem formas culturalmente especificas de representar a passagem do

    21 "N6s precisamos apenas reconhecer que a histria um mtodo com nenhum objeto prprio que ihe corresponda para rejeitar a equivalncia entre a noo de histria e a npo de humandade" (ibid.; ver tambm pp. 248-50 e 254).

    22 "De fato a histbria no est ligada nem ao homem, nem a objeto algum. Ela consiste apenas de seu mtodo, que a experincia prova ser indispensvel para catalogar os ele- mentos de qualquer estrutura, humana ou no humana, em sua inteireza" (ibid., p. 262).

    tempo. Longe de ser uma cincia ou base para uma cincia, a representa- o narrativa de qualquer conjunto de eventos foi, na melhor das hipteses, um exerccio protocientfico e, na pior, a base para um tipo de autoengano cultural. "O progresso do conhecimento e a criao de novas cincias'; ele conclui, "tm lugar atravs da gerao de anti-histrias que mostram que uma certa ordem possvel apenas em um plano [cronolgico] deixa de exis- tir em o~tro."'~

    No que Lvi-Strauss se opusesse narrativa como tal. De fato, seu monu- mental Mitolgicas pretendia demonstrar o papel central da narratividade para a estruturao da vida cultural em todas as suas formas.'4 O que ele objetou foi a expropriao da narratividade como mtodo de uma cincia que pretendesse ter como seu objeto de estudo uma humanidade muito mais amplamente realizada em sua manifestao histrica do que pr-histrica. O ataque de sua crtica era dirigido, portanto, quele humanismo que pro- piciava tanto orgulho ao Ocidente, mas cujos princpios ticos pareciam ser honrados mais em sua quebra do que em seu cumprimento. Era o mesmo tipo de humanismo que Jacques Lacan procurou minar em sua reviso da teoria psicoanltica, que Louis Althusser desejou expurgar do marxismo moderno, que Michel Foucault havia to simplesmente rejeitado como a ideologia da civilizao ocidental em sua fase mais repressiva e decadente25 Para todos eles - como para Jacques Derrida e Juba Kristeva -, a histria em geral e a narratividade especificamente eram meras prticas representacionais pelas quais a sociedade produzia um sujeito humano peculiarmente adaptado s condies de vida do Rechts~taat.'~ Seus argumentos em nome dessa perspec-

    23 Ibid., pp. 261 S. 24 Claude Lvi-Strauss, L'Origine des manires de table. Paris: Plon, 1968, parte 2, cap. 2 [ed bras.:

    A origem dos modos d mesa, trad. Beatriz Perrone-Moiss. So Paulo: Cosac Naify, 2006]. 25 Ver Rosalind Coward e John Ellis, Language andMaterialism: Developmenfs in Serniology

    and 7heory ofsubject. Londres e Boston: Routledge and Paul, 1977, pp. 81-82; e Hayden White, "Foucault's Discoursen, in %e Content ojthe Form. Narrative Discurse and Histo- rica Representation. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1990, pp. 104-41.

    26 Jacques Demda, "'lhe Law of Genre", Critical Inquiy, 7, n. I; 1980, pp. 55-82; id., "La Structure, le signe et le jeu dans les discours des sciences humaines", in LIEcriture et Ia d$'rence. Paris: Seuil, 1967, cap. 10 [ed. bras.: A escritpra e a diferena, trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, So Paulo: Perspectiva, zooS]. Julia Kristeva escreve:

    "Na narrativa, o sujeito da fala constitui a si mesmo como.sujeito de uma famlia, cl ou

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  • Marx, ento considerada pea-chave para os fundamentos ideolgicos dos sistemas polticos totalitrios.

    Contudo, aqui tambm as linhas do debate foram tumadas pela questo do estatuto da histria como cincia e a discusso do tipo de autoridade epistmica que o conhecimento histrico pode arrogar em comparao com o tipo de conhecimento constitudo pelas cincias fsicas. Havia mesmo um vigoroso debate nos crculos marxistas - debate que alcanou seu cume nos anos 1970 - sobre em que medida uma historiografia "cientfica" marxista poderia ser ordenada em modo narrativo, como se se opusesse a um modo de discurso mais propriamente analtico. Questes similares Aquelas que separaram os Annalistes de seus colegas mais convencionais tiveram de ser postas, mas aqui a narratividade era menos um problema do que uma dispu- ta 'materialismo versus idealismoY~34 Em conjunto, tanto entre historiadores e filsofos como entre os representantes marxistas e no marxistas dessas disciplinas, ningum questionou seriamente a legitimidade dos estudos dis- tintivamente "histricos; como Lvi-Strauss havia feito na Frana, ou a per- tinncia, em certo sentido, de a narrativa representar com verdade e objeti- vidade as "verdades" descobertas por quaisquer mtodos que tenham sido utilizados individualmente pelo historiador em sua pesquisa, como Barthes e Foucault fizeram na Frana. Alguns cientistas sociais levantaram algumas questes, mas, dada a fragilidade de suas reivindicaes de rigor metodol- gico, bem como a exigudade de sua Cincia", surgiram poucos frutos teri- cos relativos ao problema da histria narrati~a.3~

    As diferenas entre essas duas correntes de discusso da narrativa hist- ria tambm refletem concepes fundamentalmente distintas da natureza do discurso em geral. Nas teorias lingustica e literria, o discurso conven- cionalmente pensado como qualquer unidade de expresso maior do que a sentena. (complexa). Quais so os princpios da formao discursiva que correspondem quelas regras de gramtica que regem a formao da senten- a? Obviamente, esses princpios no so eles mesmos gramaticais , I ' quese

    34 Cf. Anderson, Arguments within English Marxism. Londres: Verso Editions, 1980, pp. 14, 98,. 162.

    35 Ver as afirmaes de Daniel Beii e Peter Wiles em Durnoulin e Moisi, %e Historian, PP 64-74 89-90.

    podem construir cadeias de sentenas gramaticalmente corretas que no se agregam ou se unem em um discurso reconhecvel.

    Obviamente, um candidato para o papel de rganon da formaqo discur- siva a lgica - os protocolos que regem a formao de quaisquer discursos cientficos. Mas a lgica cede lugar a outros princpios no discurso potico, princpios como a fontica, a rima e a mtrica, que podem autorizar viola- es de protocolos 16gicos com o objetivo de produzir coerncias formais de outro tipo. H thmbkm a retrica, que pode ser considerada um princ- pio de formao discursivo em eventos de fala que visam persuaso ou i impulso ao mais do que descrio, i demonstrao ou i explicao. Na expresso potica e retrica, a comunicao de uma mensagem sobre um referente extrnseco pode ser requerida, mas as funes expressiva e conati- va podem implicar uma ordem mais elevada de importncia. Assim, distin- ges entre "comunicao", "expresso* e "conao" permitem diferenciar, em termos de funo, entre tipos distintos de regras de formao discursiva, das quais a lgica apenas uma e, de modo algum, a mais privilegiada.

    Tudo depende, como afirma Jakobson, do "foco" (~ ins le l lun~) perante a mensagem contida no discurso em questo? Se a transmisso de uma mensa- gem sobre um referente extrnseco o principal objetivo do discurso, podemos dizer que a hno comunicativa predomina; e o discurso em questo h de ser avaliado segundo a clareza de sua formulao e seu valor de verdade (a validade da informao que traz) em relao ao referente. Se, por outro lado, a mensa- gem tratada, antes de tudo, como ocasio para expressar a condio emocional

    36 Roman Jakobson, "Linguistics and Poetics", in Thomas Sebeok (org.), Slyle and Language. Carnbridge: MIT Press, 1960, pp. 352-58 [ed bras.: "Linguistica e potica", in Lingustica e comunica@o, 2z:ed., trad. Izidom Blikstein e Jose Paulo Paes, So Paulo: C u l e 20051. Esse ensaio de Jakobson absolutamente essencial para o entendimento da teoria do discurso tal como ela se desenvolveu dentro de uma orientao semiolgica geral desde os anos 1960. Deve-se sublinhar que, enquanto muitos dos ps-estruturalistas tomaram sua posio sobre a arbitrariedade do signo e a fortiori a arbitrariedade da constituio dos discursos em geral, Jakobson continuou a insistir na possibilidade de um significado intrnseco que residisse nos prprios fonemas. Assim, enquanto a referencialidade discur- siva era considerada uma iluso para os mais radicais ps-estruturalistas, como Derrida, Kristeva, Solers e o ltimo Barthes, o mesmo no se passava com Jakobson. A referencia- lidade era apenas urna das %eis funqes bsicas da comunicao verbal' (id., ibid., p. 357).

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  • do sujeito do discurso (como na lrica) ou para produzir um efeito sobre quem recebe o discurso, conduzindo-o a uma ao de tipo particular (como em dis- cursos exortatrios), ento o discurso em questo deve ser avaliado menos em termos de sua clareza ou verdade em relao ao referente do que nos termos de sua fora performtica - uma considerao puramente pragmtica.

    Esse modelo funcional de discurso relega a lgica, a potica e a retri- ca da mesma forma condio de Cdigos" nos quais diferentes tipos de

    'mensagens" podem ser vazados e transmitidos com diferentes objetivos em vista: comunicativo, expressivo ou conativo, dependendo do caso.37 Tais objetivos no so, de modo algum, mutuamente exclusivos; de fato, todo discurso pode apresentar aspectos dessas trs funes. E isso vale tanto para o "factual" como para o "ficcional". Mas, considerado como base para uma teoria geral do discurso, esse modelo nos permite perguntar como o discurso narrativo em particular se vale dessas trs funes. E, o que mais relevante para nossos objetivos neste ensaio, nos permite ver como as dis- cusses contemporneas sobre a natureza da histria narrativa tendem a ignorar uma ou outra dessas funes, tanto para no creditar a ela o estatuto de "cincia" como para consign-la na categoria de "ideologia':

    A maioria dentre os que defenderiam a narrativa como modo legtimo de representao histrica, e mesmo como modo vlido de explanao (pelo menos para a histria), sublinha a funo comunicativa. Segundo essa pers- pectiva da histria como comunicao, uma histria concebida como "men- sagem sobre um "referente" (o passado, eventos histricos etc.), e seu con- tedo , a um s tempo, "informao" (os "fatos") e "explanao " (o relato

    37 De acordo com Paolo Valesio, "todo discurso em seu aspecto funcional d baseado em um conjunto relativamente limitado de mecanismos [...] que reduzem toda escolha re- ferencial a uma escolha formal" (Novantiqua, ti). Portanto,

    Nunca uma questo [...] de apontar a referentes no "mundo real", de distinguir o verdadeiro do falso, o certo do errado, o belo do feio, e assim por diante. A escolha est entre os mecanismos a ser empregados, e esses mecanismos j condicionam todo discurso, uma vez que so representaes simplificadas da realidade, inevit- vel e intrinsicamente inchados em uma direo partidria. Os mecanismos sempre parecem [...] ser gnoseolgicos, mas na verdade so ersticos: eles do uma conota- o positiva ou negativa imagem da entidade que descrevem no prprio momento em que comeam a descrev-la (pp. 21-22).

    "narrativo"). Os fatos em sua particularidade e o relato narrativo em sua gene- ralidade precisam encontrar uma correspondncia, tanto quanto uma coern- cia, critrio do valor de verdade. O critrio de coerncia invocado, no pre- ciso dizer, mais do que potico ou retrico. Proposies individuais devem ser logicarnente consistentes umas em relao s outras, e os princpios con- cebidos para governar o processo de combinao sintagmtica devem ser consistentemente aplicados. Assim, por exemplo, ainda que um evento possa ser representado como causa de outro posterior, o contrrio no verdadeiro. No entanto, por contraste, um evento subsequente pode servir para iluminar a significao de um anterior, mas o contrrio no ocorre (por exemplo, o nas- cimento de Diderot no ilumina o significado da composio de O sobrinho de Rameau, mas a composio de O sobrinho de Rameau ilumina, como que retrospectivamente, o significado do nascimento de ~iderot):'

    O critrio de correspondncia outra questo. No somente as afirma- es existenciais singulares que compem a "crnica" do relato histrico devem Corresponder" aos eventos dos quais so predicados, como a narrati- va como um todo deve "corresponder" configurao geral da sequncia de "fatos" dos quais ela o relato. Isso quer dizer que a sequncia de "fatos", tal como encadeada com vistas a criar uma "histria" [story] a partir do que, de outro modo, seria apenas uma "crnica", deve corresponder configura- o geral de "eventos" dos quais os "fatos" so indicadores proposicionais.

    Para os tericos que do nfase funo comunicativa do discurso narrativo histrico, a correspondncia da "histria" com os eventos que relata estabele- cida no nvel do contedo conceitual da "mensagem': Esse contedo conceitual pode ser pensado consistindo tanto fatores que ligam eventos em cadeias de cau- sa e efeito ou de "razes" (ou "intenes") motivando os agentes humanos dos eventos em questo. As causas (necessrias, se no suficientes) ou razes (cons- cientes ou no) para o estabelecimento dos eventos como de fato ocorreram so dispostas na narrativa na forma da histria que se conta? Segundo esse ponto de vista, a forma narrativa do discurso somente um meio para a mensagem, e no tem mais valor de verdade ou contedo informacional do que qualquer outra

    38 O exempIo de Arthur C. Danto, Analytical Philosophy of History. Cambridge: Cam- bridge U~versity Press, 1965.

    39 Ver Dray, Philosophy ofHliitoy, op. cit., pp. 43-47.

    WHITE 463

  • estrutura formal. como o silogismo lgico, a figura metafrica, ou a equao matemtica. Considerada como cdigo, a narrativa um veculo como o cdi- go Morse, que serve para a transmisso de mensagens pelo aparato telegfico. O que significa, dentre outras coisas, que, assim encarado, o cdigo narrativo no acrescenta nada informao ou ao conhecimento que no possa ser orga- nizado por outro sistema de codificago discursiva. Isso provado pelo fato de que o contedo de qualquer relato narrativo de eventos reais pode ser extrado do relato, representado em formato de dissertao, e exposto aos mesmos cri- trios de consistncia lgica e preciso factual de uma demonstrao cientfica. Na verdade, a narrativa composta por um historiador qualquer pode ser mais ou menos "densa" em contedo e mais ou menos "artstica" em sua execuo; pode ser mais ou menos elegantemente elaborada - assim como os toques de diferen- tes telgrafos. Mas isso, os patrocinadores desse ponto de vista podem pens-lo, mais uma questo de estilo individual do que de contedo. Na narrativa histrica, somente o contedo tem valor de verdade. Todo o resto ornamento.

    Essa noo de discurso narrativo falha, no entanto, em levar em considera- o o enorme nmero de tipos de narrativa que toda cultura coloca dispo- sio daqueles, entre seus membros, que podem desejar utiliz-los para codi- ficar e transmitir mensagens. Ademais, todo discurso narrativo consiste no apenas um nico cdigo monoliticamente utilizado, mas tambm de um complexo conjunto de cdigos, cujo entrelaamento produzido pelo autor - para a produo de uma histria infinitamente rica em sugesto e variedade de afetos, sem mencionar a atitude diante de sua matria ou a avaliago subli- minar que faz dela - d prova de seus talentos como artista, como senhor, e no servidor de cdigos P disposio de seu uso. Vem da a "densidade" desses discursos relativamente informais, como os de literatura e poesia, em oposi- o aos de cincia. Como o textlogo Juri Lotman apontou, o texto artstico carrega muito mais "informao" que o texto Cientfico",ois o primeiro dis- pe de mais cdigos e mais nveis de codificago do que o ltim0.4~ Ao mes- mo tempo, contudo, o texto artstico, como se fosse contra o cientfico, dirige a ateno tanto virtuosidade que envolve sua produo como i "informao" organizada nos vrios cdigos empregados em sua composio.

    esse complexo de mltiplas camadas que compe o discurso, e sua con- sequente capacidade de suportar uma vasta variedade de interpretaes de seu significado, que o modelo performtico de discurso busca iluminar. Da perspectiva propiciada por esse modelo, um discurso visto como um apa- rato para a produo de sentido, mais do que apenas como umveculo para a transmisso de informao sobre um referente extrnseco. Assim tomado, o contedo do discurso consiste tanto em sua forma como em qualquer infor- mao que possa ser extraida de sua leit~ra.~' Segue-se que mudar a forma do discurso pode no ser mudar a informao sobre seu referente explcito, mas certamente mudar o significado produzido por ele. Por exemplo, um conjunto de eventos simplesmente listados na ordem cronolgica de sua ocorrncia original no , com o devido respeito a Lvi-Strauss, destitu- do de sentido. Seu significado precisamente do tipo que qualquer lista capaz de produzir - como o uso do gnero lista por Joyce e Rabelais atesta. Uma lista de eventos pode ser uma crnica "delgada" (se os itens na lista so apresentados cronologicamente) ou urna enciclopdia "enxuta" (se organi- zada por tpico). Em ambos os casos, a mesma informao pode ser orga- nizada, porm diferentes significados so produzidos.

    Uma crnica, contudo, no uma narrativa, mesmo quando contm o mesmo conjunto de fatos como contedo informacional, pois um discurso narrativo funciona diferentemente de uma crnica. A cronologia, sem dvi- da, um cdigo usado pela crnica e pela narrativa, mas a narrativa se vale de outros cdigos e produz um sentido bem diferente do de qualquer cr- nica. No que o cdigo da narrativa seja mais "literrioJJ que o da cr6nica - como diversos historiadores da escrita historiogrfica tm sugerido. E no que a narrativa 'explique" mais, ou, ainda, explique mais inteiramente do que a crnica. O ponto que a narrativizao produz um sentido diferente do que produzido pela cronicalizao. E o faz impondo uma forma dismr- siva sobre os eventos que sua prpria crnica comporta, por meios que so poticos por natureza; ou seja, o cdigo narrativo se faz dos domnios per- formativos da poiesis mais do que da noesis. Isso foi o que Barthes quis dizer ao afirmar: "A narrativa no mostra, a narrativa no imita [...I sua funo no 'representar', mas constituir um espetculo" (grifas meus).

    40 Juri Lotrnan, %e Structure ofthe Artistic Text, trad. Ronald Vroon. Ann Arbor: University of Michigan, 1977, pp. 9-20,280-84.

    464 A QUESTO DA NARRATIVA NA TEORIA HISTRICA CONTEMPORNEA

    41 Id., ibid., pp. 35-38.

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  • geralmente reconhecido que um modo de distinguir o discurso poti- co do prosaico se d pela proeminncia conferida ao primeiro arranjo - de sons, ritmos, metro - que chama a ateno para a forma do discurso em separado (ou alm dele), e qualquer mensagem que ele contenha no nvel de sua enunciao verbal literal. A forma do texto potico produz um senti- do bem diferente do que pode ser representado em qualquer parfiase em prosa de seu contedo literal. O mesmo pode ser dito dos vrios gneros de finstpmsa (declamao oratria, instruo jurdica, prosa de fico, roman- ce etc.), dos quais a narrativa histrica inegavelmente um tipo; aqui, con- tudo, o arranjo em questo no tanto aquele do som e da mtrica quanto o de ritmos e repeties de estruturas de motivo agregadas em temas e de temas agregados em estruturas de enredo. Isso no quer dizer, claro, que tais gneros no se valem de vrios cdigos de argumentao lgica e demons- trao cientfica, pois de fato o fazem; entretanto, esses cdigos nada tm a ver com a produo do tipo de sentido que efetivado pela narrativizao.

    Certos discursos narrativos podem ter argumentos embutidos, na forma de explicaes do porqu de certas coisas terem acontecido como aconte- ceram, expostos na forma de um endereamento direto ao leitor pela voz do prprio autor e percebidos como tal. Mas tais argumentos so conside- rados, antes de tudo, um comentrio sobre a narrativa, e no parte dela. No discurso histrico, a narrativa serve para transformar em histria uma lista de acontecimentos histricos que seriam, de outro modo, apenas uma cr- nica. Para efetivar essa transformao, os acontecimentos, agentes e foras representados na crnica devem ser codificados como elementos da hist- ria; ou seja, devem ser caracterizados como tipos de eventos, agentes, foias que podem ser apreendidos como tipos especficos de relato. Nesse nvel de codificao, o discurso histrico dirige a ateno do leitor a um referen- te secundrio, diferente em espcie dos eventos que compem o referente primrio, a saber: as estruturas de enredo de vrios tipos de histrias culti- vados em uma- dada cultura.4" Quando o leitor reconhece o que se conta na

    42 Ver Hayden White, "Introduction: The Poetics ofHistory", inMetahistory. Baitimore: The Johns Hopkins University Press, 1973, pp. 1-38 [ed. bras.: Meta-histria: a imaginao his- trica do sculo mIj e id., Tropics ofDiswurse. Bakimore: The Johns Hopkins University Press, 1978, caps. 2-5. [ed. bras.: Trpicos do discurso: ensaios sobre a crtica da cultura].

    narrativa histrica como um tipo especfico de relato - por exemplo, como um pico, romance, tragdia, comdia ou farsa -, pode-se dizer que ele com- preende o sentido produzido pelo discurso. A compreenso nada mais do que o reconhecimento da forma da narrativa.

    A produo de sentido, nesse caso, deve ser entendida como uma realiza- o, pois qualquer conjunto de eventos reais pode ser encadeado de diversas maneiras, pode sustentar o peso de ser contado como qualquer nmero de diferentes tipos de histria. Dito que nenhum tipo de conjunto ou sequn- cia de eventos reais intrinsecamente trgico, cmico ou farsesco - mas pode ser construdo como tal atravs da imposio da estrutura de um tipo determinado de histria sobre os eventos -, a escolha da tipologia e de sua imposio aos eventos que os dota de sentido. O efeito de tal encadeamen- to pode ser tomado como uma explicao, mas deve-se reconhecer que as generalizaes que cabem funo de universais, em qualquer verso de um argumento nomolgico-dedutivo, so os topoi de enredos literrios, mais do que leis causais de cincia.

    Esse o motivo pelo qual uma histria narrativa pode ser legitimamente tomada como algo diferente de um relato cientfico dos eventos de que tra- ta - como os Annalistes, com razo, argumentam. Mas no suficiente para negar histria narrativa valor de verdade. A historiografia narrativa pode muito bem, como indica Furet, "dramatizar" eventos histricos e "roman- cear" processos histricos, mas isso apenas indica que as verdades com as quais a histria narrativa lida so de ordem diferente daquelas de sua con- trapartida sociocientfica. Na narrativa histrica, os sistemas da produo de sentido peculiares a uma cultura ou sociedade so testados contra a capa- cidade de qualquer conjunto de eventos "reais" de ceder a tais sistemas. Se eles tm suas mais puras, mais completamente desenvolvidas e formalmente mais coerentes representaes no dote literrio ou potico de culturas secu- larizadas ou modernas, isso no razo para exclu-10s como construes meramente imaginrias. Fazer isso equivaleria a negar que a literatura e a poesia tenham qualquer coisa vlida a nos ensinar sobre a realidade.

    O relacionamento entre historiografia e literatura to sutil e difcil de definir quanto aquele entre historiografia e cincia. Em parte, sem dvida, isso acontece porque a historiografia no Ocidente surge contra o pano de fun- do de um discurso distintamente literrio (ou antes "ficcional"), que primeiro tomou corpo contra o ainda mais arcaico discurso do mito. Em suas origens,

    WHITE 467

  • o discurso histrico se diferencia do literrio em virtude de sua matria (even- tos "reais",o "imaginrios"), no de sua forma. No entanto a forma aqui ambgua, pois se refere no apenas aparncia manifesta dos discursos hist- ricos (seu aparecimento como relatos), como tambm aos sistemas de produ- o de sentido (os modos de enredo) que a historiografia compartilha com a literatura e o mito. Contudo, essa afiliao da historiografia narrativa com a literatura e o mito no deveria dar razo para embarao, j que os sistemas de produo de sentido compartilhados pelos trs so destilados da experincia histrica de um povo, de um gmpo, de uma cultura. E o conhecimento ofere- cido pela histria narrativa o que resulta do teste de sistemas de produo de sentido originalmente elaborados no mito e refinados no alambique do modo hipottico de articulao ficcional. Na narrativa histrica, as experin- cias esto destiladas na fico como tipificaes sujeitas ao teste de sua capa- cidade de dotar de sentido eventos "reais. E seria necessrio um tremendo Kulturphilistinismus para negar aos resultados desse teste o estatuto de conhe- cimento legtimo.

    Em outras palavras, assim como os contedos do mito so testados pela fic- o, as formas de fico sPo testadas pela historiografia' (narrativa). Se de manei- ra similar o contedo da historiografia narrativa testado para determinar sua adequao para explicar e representar outra ordem de realidade que a pressu- posta pelos historiadores tradicionais, isso deveria ser visto menos como uma oposio entre cincia e ideologia, como muitas vezes os Annalistes aparente- mente viam, do que como a continuao do processo de mapear o lunite entre o imaginrio e o real, que comea com a inveno da prpria fico.

    Anarrativa histrica no deve, como narrativa, banir falsas crenas sobre o passado, a vida humana, a natureza da comunidade etc.; o que ela faz testar a capacidade das fices de uma cultura de dotar eventos "reais" dos tipos de sentido que a literatura mostra conscincia por meio de sua ela- borao de modelos de eventos "imaginrios': Precisamente na medida em que a narrativa histrica dota conjuntos de eventos reais de tipos de sentido encontrados apenas no mito e na literatura, justifica-se que ns a observe- mos como produto de uma allegoresis. Assim, mais do que tomar qualquer narrativa histrica como mtica ou ideolgica por natureza, devemos obser- v-la como alegoria, ou seja, dizendo uma coisa e significando outra.

    Assim entendida, a narrativa compe o corpo de eventos que servem como seu referente primrio, transformando-os em proposies de mode-

    los de sentido que qualquer representao literal deles como fatos jamais produziria. Isso no significa dizer que um discurso histrico no propria- mente estimado em termos do valor de verdade de suas afirmaes factuais (a existncia singular) tomadas individualmente e da conjuno lgica de um agrupamento todo de tais afirmaes tomadas distributivamente. Pois, se um discurso histrico no concorda com uma avaliao nesses termos, perde toda a justificativa de sua pretenso de representar e conferir explica- es a eventos especificamente reais. Mas tal avaliao toca apenas aquele aspecto do discurso histrico convencionalmente chamado de crnica. Ele no nos fornece nenhum modo de avaliao do contedo da prpria narrati- va. Esse ponto foi melhor desenvolvido pelo filsofo Louis O. Mink:

    Pode-se entender qualquer texto em discurso direto como uma conjuno lgica de asseres. O valor de verdade do texto ento simplesmente uma funo lgica da verdade ou da falsidade de asseres individuais tomadas se- paradamente: a conjuno verdadeira se, e somente se, cada uma das propo- sies for verdadeira. A narrativa tem sido analisada, em especial por filsofos que intentam comparar a forma da narrativa com a forma de teorias, como se fosse nada mais do que uma conjuno lgica de afirmaes referentes ao passado; e nessas anlises no h problema de verdade narrativa. A dificuldade com o modelo de conjuno lgica, contudo, que ele no um modelo de narrativa. antes um modelo de crnica. A conjuno lgica serve bem como uma representao da relao somente de ordenao da crnica, que

    "e ento ... e ento.. . e ento': As narrativas, entretanto, contm indefinidamente muitas formas de combinar essas relaes. em tal combinao que pensamos quando falamos da coerncia da narrativa, ou de sua ausncia. uma tarefa insolvel da teoria literria classificar as relaes de ordem da forma narrativa; mas, qualquer que seja a classificao, deve ficar claro que a narrativa hist- rica pede a verdade no apenas para cada uma de suas assertivas individuais tomadas distributivamente, mas para a forma complexa da prpria narrati~a.~'

    43 Louis O. Mink, "Narrative Form as Cognitive Instrument", in Robert H. Canary e Henry Kozicki (orgs:), %e Writing ofHistory: Literary Fom and Historical Understan- ding. Madison, Wiss., 1978, pp. 143-44.

    468 A QUEST0 DA NARRATIVA N A TEORIA HISTRICA CONTEMPORNEA WHITE 469

  • eventos "reais" em vez de "imaginrios", aceita-se que seu valor de verdade resida nas afirmaes literais de fato contidas nelas ou na combinao dessas e uma parfrase literalista de afirmaes feitas em linguagem figurada. Sen- do geralmente dado que as expresses figurativas so falsas, ambguas ou logicamente inconsistentes (consistindo no que alguns filsofos chamam de enganos categricos), segue-se que quaisquer explanaes contidas nas nar- rativas histricas devem ser feitas em linguagem literal. Assim, nos resumos de explanaes contidas nas narrativas histricas, esses analistas da forma tendem a reduzir a narrativa em questo a conjuntos de proposies discre- tas, para as quais a sentena declarativa simples serviu de modelo. Quando um elemento de linguagem figurativa aparecia em tais sentenas, ra trata- do apenas como uma figura de linguagem cujo contedo era seu prprio sentido literal ou uma parfrase literria do que parecia ser sua formulao gramaticalmente correta.

    Mas, nesse processo de literalizao, o que fica de fora so precisamen- te aqueles elementos de figurao - tropos e figuras de pensamento, como os retricos os chamam -, sem os quais a narrativizao dos eventos reais, a transformao de uma crnica em um enredo, jamais se efetuaria. Se h qualquer "engano categrico" envolvido nesse procedimento de literaliza- o, o de confundir um relato narrativo de eventos reais com um relato propriamente literal. Um relato narrativo sempre um relato figurativo, uma alegoria. Deixar esse elemento figurativo de fora da anlise de uma narrativa perder no apenas seu aspecto de alegoria, mas tambm a performance na linguagem pela qual a crnica transformada em narrativa. E apenas um preconceito moderno contra a alegoria ou, o que d no mesmo, um precon- ceito cientificista em favor do literalismo que obscurece esse fato para muitos analistas modernos da narrativa histrica. Em qualquer evento, a convico dual de que a verdade deve ser representada em afirmaes literais do fato, e de que a explanao precisa concordar com o modelo cientfico ou sua con- trapartida de senso comum, tem levado muitos analistas a ignorar o aspecto especificamente literrio da narrativa histrica - e assim de qualquer verda- de que possa ser organizada em termos figurativos.

    No preciso dizer que a noo de verdade literria, mesmo mtica, no estranha aos filsofos que continuam a trabalhar em uma tradio de pen- samento que tem sua origem moderna no idealismo hegeliano, sua continua- o em Dilthey, e seu avatar existencialista e fenomenolgico mais recente

    na hermenutica heideggeriana. Para os pensadores dessa linha, a histria sempre foi menos um objeto de estudo, algo a ser explanado, do que um modo de estar-na-mundo que ambos tornam possvel compreender - e invocam-na como uma condio de seu prprio desvelamento. Isso signifi- ca que o conhecimento histrico pode ser produzido apenas sobre a base de um tipo de investigao fundamentalmente diferente daquele cultivado nas cincias fsicas (nomolgico-dedutivas) e nas cincias sociais (estrutural- funcionais). Segundo Gadamer e Ricoeur, o "mtodo" das cincias histrico- genticas a hermenutica, concebida menos como decifrao do que como

    "inter-pretao'; literalmente "traduo", uma "transferncia" de sentidos de uma comunidade discursiva para outra. Tanto Gadamer como Ricoeur subli- nham o aspecto "tradicionalista" da empreitada hermenutica, ou, o que d no mesmo, o aspecto "traducional" da tradio. essa tradio que une o intrprete ao interpretandum, apreendido em toda a estranheza que marca sua vinda de um passado, em uma atividade produtiva do estabelecimento da individualidade e da comunalidade de ambos. Quando essa individualidade na comunalidade estabelecida atravs de uma distncia temporal, o tipo de conhecimento como entendimento produzido especificamente histrico.45

    Muita coisa familiar a qualquer leitor dessa tradio de discurso fdo- sfico e, desnecessrio dizer, completamente estranha a historiadores tra- dicionais, bem como para aqueles que querem transformar a histria em uma cincia. E por que no? A terminologia figurativa, o tom, pio, a episte- mologia, mstica - coisas que tanto os historiadores tradicionais como suas contrapartidas modernas, sociocientificamente orientadas, desejam expur- gar dos estudos histricos. Ainda assim, essa tradio de pensamento tem especial relevncia para a considerao de nosso tpico, pois foi legado a um desses representantes, Paul Ricoeur, tentar nada mais nada menos do que uma metafsica da narratividade.

    Ricoeur confrontou todas as principais concepes de discurso, textua- lidade e leitura do cenrio terico atual. Ele, ademais, coteja exaustivamente

    45 Hans-Georg Gadamer, "lhe Problern of ~istoriial Consciousness", in Interpretative So- cial Science: A Reader, Paul Rabinow e William SuUivan (orgs.). Berkeley, 1979, pp. 106-07, 134; Paul Rcouer, "Du conflit Ia convergente des mthodes en exgse biblique", in Ejcgise e t hermeneutique, Roland Barthes et al. (orgs.). Paris, 1971, pp. 47-si

    WHITE 473

  • Segundo esse ponto de vista, um acontecimento histrico especifico no pode ser inserido em uma histria sempre que o escritor deseje; , antes, um tipo de contecimento que pode "contribuir" para o desenvolvimento de um "enredo': como se o enredo fosse uma entidade em processo de desenvolvimento anterior ocorrncia de qualquer acontecimento dado, e qualquer acontecimento pudesse ser dotado de historicalidade apenas na medida em que pudesse ser mostrado contribuindo para esse processo. E, de fato, tal parece ser o caso, pois para Ricoeur a historicalidade , ela pr- pria, um modo estrutural ou nvel de temporalidade.

    O tempo, poderia parecer, traz trs "graus de organizao": "o dentro-do- tempo'', a "historicalidade" e a "temporalidade profunda". Esses tm refle- xo, por sua vez, em trs tipos de experincias ou representaes do tempo na conscincia: "a representao ordinria do tempo [...I como aquela 'em que' os acontecimentos tm lugar"; aquelas em que a "nfase colocada no peso do passado e, ainda mais [...I, o poder de recuperar a extenso entre o nascimento e a morte no trabalho de 'repetio'"; e, finalmente, aquelas que procuram obter unidade plural do futuro, do passado e do presente" (p. i71). Na narrativa histrica - a bem da verdade, em qualquer narrativa, mesmo a mais singela -, a narratividade que "nos traz de volta do dentro- do-tempo historicalidade, do certo de contas com o tempo' ao 'lembrar': Resumindo, "a funo narrativa fornece a transio do dentro-do-tempo historicalidade", e o faz revelando o que precisa ser chamado de a natureza

    'nredstica" da prpria temporalidade (p. 1~8). Assim compreendido, o nvel narrativo de qualquer relato histrico tem

    um referente bem distinto daquele do nvel da crnica. Enquanto a crnica representa acontecimentos como se existissem 'no tempo", a narrativa repre- senta os aspectos do tempo em que os fins podem ser ligados aos comeos para formar uma continuidade na diferena. O "sentido de fim'', que liga o trmino de um processo sua origem de ta1 modo que dota o que quer que tenha acontecido entrementes de um significado que s pode ser obtido por "retrospec~o", adquirido pela peculiar capacidade humana do que Heidegger chama de "repetio': Essa repetio a modalidade especfica da existncia de acontecimentos na "historicalidade", como se estivessem contra sua existncia no "tempo". Na historicalidade concebida como repe- tio, apreendemos a possibilidade de "recuperao de nossas mais bsicas potencialidades herdadas de nosso p assado na forma de uma sorte pessoal

    e um destino coletivoyy (pp. 1 8 ~ - 8 ~ ) . E essa a razo - dentre outras, claro - pela qual Ricoeur sente-se justificado em sustentar temporalidade como aquela estrutura da existncia que alcana a linguagem na narratividade e a narratividade como a estrutura da linguagem que tem a temporalidade como seu referente final" (p. 169). essa argumentao que justifica, penso eu, falar da contribuio de Ricoeur teoria histrica como uma tentativa de produzir uma metafsica da narratividade?

    A significncia dessa metafsica da narratividade para a teoria historio- grfica reside na sugesto de Ricoeur de que a narrativa histrica deve, em virtude de sua narratividade, ter como "referente em ltima instncian nada mais do que a prpria "temporalidade". Inserido no contexto amplo da obra de Ricoeur, o que isso significa que ele insere a narrativa histrica na cate- goria de discurso simblico, o que equivale a dizer um discurso cuja princi- pal fora deriva no de seu contedo informacional, nem de seu efeito ret- rico, mas de sua funo imagsti~a.~" Uma narrativa, para ele, no nem um cone dos acontecimentos dos quais fala, uma explanao deles, nem remo- r delaes retricas de "fatos" para um efeito persuasivo especfico. Ela um smbolo de mediao entre diferentes universos de significado, configuran- do a dialtica de seu relacionamento em uma imagem. Essa imagem nada mais do que a prpria narrativa, aquela "configurao" de acontecimentos relatados na crnica pela revelao de sua natureza "enredstica':

    Assim, ao contar uma histria, o historiador necessariamente revela um enredo. Esse enredo "simbolza" acontecimentos pela mediao entre seu estatuto de existentes 'no tempo" e seu estatuto de indicadores da "historica- lidade" da qual esses eventos participam. Visto que a historicalidade s pode ser indicada, nunca representada diretamente, a narrativa histrica, como todas as estruturas simblicas, "diz algo diferente do que ela diz e C...], con- sequentemente, me arrebata porque criou em seu sentido um novo sentido?'

    Ricoeur garante que, caracterizando a linguagem simblica dessa forma, o que fez foi identific-la com a alegoria. Isso no significa dizer que apenas uma fantasia, porque para Rcoeur alegoria um modo de expressar aquele

    50 P. Ricoeur, "Existente and Hermeneutics", in C. E. Reagan e D. Stewart, 'Ihe Philosophy ofPaul Ricoeur, op. cit., p. 98.

    51 Id., "lhe Language of Faith", op. cit, p. 233.

    476 A QUESTO DA NARRATIVA N A TEORIA HISTRICA CONTEMPORNEA WHITE 477

  • veem as representaes narrativas do fenmeno histrico como inerente- mente mticas por natureza. No obstante, em sua tentativa de demons- trar que a historicalidade um contedo do qual a narratividade a forma, Ricoeur sugere que a real matria de qualquer discusso sobre a forma pro- priamente dita do discurso histrico se transforma, por fim, em uma teoria do verdadeiro contedo da prpria histria.

    Do meu ponto de vista, toda discusso terica da historiografia se enre- da na ambiguidade contida na prpria noo de histria. Essa ambigui- dade deriva no do fato de que o termo histria se refere igualmente a um objeto de estudo e a um relato desse objeto, mas do fato de que o objeto de estudo, ele mesmo, pode ser concebido apenas na base de um equivo- co. Refiro-me, claro, ao equivoco contida na noo de um passado humano geral que cindido em duas partes, uma das quais se supe "histrica'; e a outra, "a-histrica': Essa distino no da mesma espcie da que existe entre acontecimentos "humanos" e "naturais", baseada na qual os estudos histricos constituem uma ordem de fatos diferente daquela estudada pelas cincias naturais. As diferenas entre a vida vivida em natureza e a vivida na cultura formam bases suficientes para honrar a distino entre aconte- cimentos naturais e humanos, a partir dos quais os estudos histricos e as cincias humanas em geral podem derivar sua pesquisa em busca de mto- dos adequados investigao dos acontecimentos humanos. E, umavez que uma ordem de acontecimentos genericamente humanos conceitualizada, e ento dividida em acontecimentos humanos do passado e do presente, torna-se legitimo inquirir em que extenso diferentes mtodos de estudo podem ser convocados para a investigao do passado, em oposio que- les que aparecem para a investigao de acontecimentos presentes (qualquer que seja a ideia de presente em questo). Mas isso outro problema, j que esse passado humano postulado para depois ser dividido em uma ordem de acontecimentos que "histrica" e outra que 'no histrica". Isso sugerir que h duas ordens de humanidade, uma mais humana - por ser mais histn- ca - do que a outra.

    A distino entre uma humanidade, ou espcie de cultura, ou sociedade que histrica e outra que a-histrica no da mesma ordem que a distin- b entre dois perodos de tempo no desenvolvimento da espcie humana:

    I o pr-histrico e o histrico. Pois essa distino no depende da crena de que a cultura humana no se desenvolveu antes do comeo da histria, ou

    de que esse desenvolvimento no era histrico por natureza. Pauta-se, antes, na crena de que h um ponto na evoluo da cultura humana depois do qual seu desenvolvimento pde ser representado em um discurso diferente daquele em que essa evoluo pde ser representada em sua fase anterior. Como bem sabido e geralmente aceito, a possibilidade de representar o desenvolvmento de certas culturas em um tipo especificamente histrico de discurso baseada na circunstncia em que essas culturas produziram, preservaram e usaram um tipo determinado de registro: o registro escrito.

    A possibilidade de representar o desenvolvimento de certas culturas em um discurso especificamente histrico no , contudo, suficiente para pensar culturas cujo desenvolvimento no pode ser representado de modo similar devido ausncia de produo de registros desse tipo, como se continuassem a preservar condies pr-histricas, por pelo menos duas razes. Uma que a noo de espcie humana no adentra a histria apenas em parte. Tal noo implica que, se qualquer parte dela existe na histria, o mesmo acontece ao todo. Outra que a noo de adentrar a histria de qualquer parte da espcie humana no pode ser propriamente concebida como uma operao apenas intramuros, uma transformao que certas culturas ou sociedades experi- mentam e que meramente interna a elas mesmas. Pelo contrrio, adentrar a histria de certas culturas implica que seus relacionamentos com as cultu- ras que permaneceram "fora" da histria sofreram transformaes radicais, de maneira que o que primeiro foi um processo de relacionamentos de certa forma autnomos ou autctones se torna um processo de interao e integra- o progressivas entre as ditas culturas histricas e aquelas consideradas no histricas. Tem-se aqui aquele panorama de dominao das chamadas altas civilizaes sobre as culturas "neolticas" e da "expanso" da cultura ocidental sobre o planeta, que o objeto da narrativa tradicional da histria do mundo escrita do ponto de vista das culturas "histricas". Mas essa "histria" das cul- turas "histricas" , por sua prpria natureza, como um panorama de domi- nao e expanso, ao mesmo tempo a documentao da "histria" daqueles povos e culturas supostamente no histricos, que so as vtimas do processo. Assim, podemos concluir, os registros que tornam possvel a escrita de uma histria de culturas histricas so os mesmos registros que tornam possvel a escrita de uma histria das chamadas culturas no histricas. Segue-se que a distino entre fraes histricas e no histricas do passado humano, basea- das na distino entre espcies de registros disponveis para seu estudo,

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  • to dnue quanto a noo de que existem dois tipos de um passado especi- ficamente humano, um que pode ser investigado por mtodos "histricos" e outro investigvel por algum mtodo "no histrico", como a antropologia, a etnologia, a etnometodologia, dentre outros.

    Na medida em que qualquer noo de histria pressupe uma distin- o no cerne do passado humano comum entre um segmento ou ordem de acontecimentos que so especificamente histricos e um no histrico, essa noo contm um equvoco. Porque, tanto quanto a noo de histria ' indique um passado genericamente humano, ela no pode ganhar em espe- cificidade ao dividir o passado em uma "histria histrica* e uma "histria no histrica'' Nessa formulao, a noo de histria apenas replica a ambi- guidade contida na falha de distinguir adequadamente um objeto de estudo (o passado humano) de um discurso sobre esse objeto.

    O reconhecimento do tecido de ambiguidades e equvocos contidos na noo de histria fornece uma base para entender discusses recentes do problema da narrativa na teoria histrica? Apontei anteriormente que a noo de narrativa contm, ela prpria, uma ambiguidade do mesmo tipo que encontramos no uso do termo histria. A narrativa , a um s tempo, um modo de discurso, uma maneira de falar e o produto produzido pela ado- qo desse modo de discurso. Quando este usado para representar eventos

    "reais", como na "narrativa histrica", o resultado um tipo de discurso com marcas lingusticas, gramaticais e retricas especficas - a saber: a narrativa histrica. Tanto a adequao sentida desse modo de discurso para a repre- sentao de eventos especificamente "histricos" quanto sua inadequao, percebida por aqueles que imputam narratividade o estatuto de uma ideo- logia, derivam da dificuldade de conceitualizar a diferena entre uma manei- ra de falar e o modo de representao produzido por sua realizao.

    O fato de a narrativa ser um modo de discurso comum tanto s cultu- ras "histricas" como s "no histricas" e de predominar tanto no discurso mtico como ficcional a torna suspeita como maneira de falar sobre acon- tecimentos "reais". A maneira no narrativa de falar comum s cincias fsi- cas parece mais apropriada para a representao de acontecimentos "reais': Aqui, porm, a noo do que constitui um acontecimento real se transfor- ma no na distino entre o falso e o verdadeiro (que uma distino que pertence ordem dos discursos, no ordem dos acontecimentos), mas antes na distino entre o real e o imaginrio (que pertence tanto ordem

    dos acontecimentos como dos discursos). possvel produzir um discurso imaginkio sobre acontecimentos reais que pode no ser menos "verdadeiro" por ser imaginrio. Tudo depende de como se elabora a h o da faculdade de imaginar na natureza humana.

    O mesmo vale com respeito representao narrativa da realidade, espe- cialmente quando, como em discursos histricos, essas representaes so do "passado humano': De que modo pode qualquer passado,.que por defini- o compreende acontecimentos, processos, estruturas, e assim por diante, considerados no mais compreensveis, ser representado tanto pela cons- cincia como pelo discurso seno em uma forma "imaginrian? No pos- svel que a questo da narrativa, em qualquer discusso da teoria histrica, seja sempre, por fim, sobre a hino da imaginao na produo de uma verdade especificamente humana?

    Publicado originalmente como "The Question of Narrative in Contemporary Histori- calTheory", in Hayden White, The Content of the Form: Narrative Discourse and His- torical Representation [I 987l.Baltimore:The Johns Hopkins University Press, 1990. Traduo de Bruno Gambarotto.

    482 A QUESTO DA NARRATIVA NA TEORIA HISTRICA CONTEMPORNEA

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