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10/01/14 Folha.com - Ilustríssima - Os belos fracassos de William Kennedy, 84 - 12/03/2012
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O escritor e jornalista americano William Kennedy, em foto de 2010
Mike Groll/Associated Press
12/03/2012 - 19h50
Os belos fracassos de William Kennedy, 84EMMA BROCKES
DO "GUARDIAN"
Na parede da casa de William Kennedy há uma página
arrancada do caderno de anotações de Gabriel García Márquez
em que o romancista colombiano escreveu, num misto de
inglês e espanhol, uma lista de palavras que descrevem os
ingredientes da ficção: amor, humor, política, nostalgia,
tristeza, vida, morte, e, o ingrediente final, três pontos de
interrogação.
Kennedy, que completou 84 anos em
janeiro e está lançando seu nono
romance, passou anos tentando
decifrar os pontos de interrogação de
seu amigo --a alquimia de um romance
bem-sucedido-- e completar a
passagem de jornalista a escritor de
ficção.
"A ficção precisa vir de baixo para cima",
ele diz, franzindo o cenho à luz do final
da tarde. "Precisa ser gerada de algo
que não é necessariamente a
consequência de fatos superficiais.
Conversei sobre isso comigo mesmo
quando estava tentando escrever meus
primeiros contos, até meu primeiro romance." Ele sorri. "Foi uma conversa longa."
Estamos em Albany, Nova York, a cidade onde são ambientados tantos dos romances de
William Kennedy. O mais famoso destes, "Ironweed", recebeu um Pulitzer em 1984 e foi
transposto para o cinema num filme estrelado por Meryl Streep e Jack Nicholson.
O livro faz parte do chamado "ciclo de Albany", composto por oito romances. O interesse
do autor se volta com firmeza para a comunidade americana de origem irlandesa, e
Kennedy, que é alto, robusto, ruivo e de pele avermelhada, comenta que vem ficando
mais irlandês com a idade: "Ser irlandês foi a única coisa à qual não pude renunciar.
Deixei de ser católico e deixei de ser democrata."
Seu segundo maior interesse, a América Latina, vem dos anos que ele passou como
jornalista trabalhando em jornais de Porto Rico e Miami, onde cobriu a diáspora cubana e
na qual se inspirou para seu romance mais recente. "Chango's Beads and Two-Tone
Shoes" é um livro de ficção sobre a Cuba da era de Hemingway, introduzindo Hemingway
e Fidel Castro como personagens da história, e, se Kennedy pertence a alguma escola
estilística, ela deve algo àquela tradição de viver com intensidade. Não deve haver muitas
pessoas sobre as quais Jack Nicholson diria, como disse a respeito de Kennedy, "aquele
homem consegue beber!".
TREINAMENTO JORNALÍSTICO
Os fundamentos do estilo de escrita de
Kennedy --enérgico, pontilhado de imagens
que prendem a atenção e diálogos ágeis-- se
devem a seu aprendizado como repórter.
Kennedy sempre quis ser jornalista; ele
chegou à maioridade na época mais
glamourosa e também suja da imprensa.
Folha de S.Paulo no
1. Abertura da peça "Um Réquiem paraAntonio"
2. Elizabeth Bishop entre índios
3. Dois poemas de Matilde Campilho
4. Leia trecho de ensaio em queThomas Mann analisa "Totem eTabu"
5. O centenário de "Totem e Tabu"
ÍNDICE
1. O centenário de "Totem e Tabu"
2. Dois poemas de Matilde Campilho
3. Transgressões no Itamaraty
4. Woody Allen não se importa comcríticas, mas ainda se preocupa coma morte
5. Na transição democrática, a censuraatuava pela moral e os bonscostumes
1. Folha localiza em Los Angelesfotógrafo da morte de Herzog
2. Maria Rita Kehl: Alckmin usa a mesmaretórica dos matadores da ditadura
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O escritor William Kennedy, em foto de 2010
Começou a escrever para o jornal do colégio
em Albany e continuou durante a faculdade e
seu primeiro emprego, depois de servir ao
Exército, no "Albany Times Union". Isso foi
no início dos anos 1950, quando Albany, a
capital do Estado de Nova York, era
dilacerada por escândalos de corrupção,
disputas políticas internas e insatisfação
social --tudo isso um campo fértil de material
para um jovem repórter.
"Foi ótimo treinamento, o fato de você ter
que usar a linguagem das pessoas, aprender
a organizar-se e a pensar. Você tem um
conjunto de princípios éticos já embutidos.
Precisa lidar objetivamente com a realidade, seja ela qual for, isso se estiver tentando
transmitir algo com honestidade e franqueza --a não ser que trabalhe para a Fox News."
Kennedy enfrentou dificuldades quando tentou concretizar uma ambição paralela,
escrevendo contos inspirados em alguns dos fatos mais chocantes ou esdrúxulos sobre
os quais tinha escrito como repórter.
"Eu podia ter um material ótimo --uma entrevista com uma pessoa no corredor da morte
ou com uma mulher que acabara de perder seus filhos em um incêndio. Coisas de todo
tipo que pareciam possuir alta carga dramática. Mas então você volta e começa a colocar
essas coisas em prática na ficção. E descobre que ainda está escrevendo uma reportagem
para o jornal. Levei algum tempo para conseguir separar as duas carreiras. Uma delas é
muito envolvida com o momento e a topografia do momento, os sons, as visões e os
cheiros do momento. Mas ficção não é isso. Ficção é algo que precisa começar de dentro."
Aqueles primeiros contos geraram algumas "rejeições amistosas", mas nada mais, e,
depois de alguns anos, Kennedy começou a ficar agitado. "Me afastei de Albany porque
estava entediado com a cidade. Eu achava os editores, em sua maioria, sem inteligência.
Precisava sair de lá e fazer algo diferente." Quando surgiu uma oferta de trabalho em
Porto Rico, Kennedy a aceitou prontamente e transferiu-se para um jornal recém-
fundado, o "San Juan Star".
Foi então que ele começou a mergulhar a sério na ficção. Saul Bellow estava lecionando
em Porto Rico, por mero acaso, e Kennedy lhe enviou um manuscrito, que Bellow
apreciou e enviou a seu próprio editor e agente ("nada disso funcionou"). Foi um
processo demorado e doloroso, algo que Kennedy teve dificuldade em aceitar, em vista
da rapidez com que se lançara no jornalismo. "Eu não entendia porque não conseguia dar
um passo à frente na ficção. E estava trabalhando isolado, sem acesso a conselhos
especializados."
"Mas comecei a ler tudo, buscando me reeducar. Eu pegava 35 livros da biblioteca ao
mesmo tempo. Simplesmente um esforço para compreender o que diabo era a ficção e o
que eu precisaria saber para criá-la. Você dá de cara com a pergunta 'o que é que eu não
entendo?'. Minha sensação era 'me dê tempo suficiente e eu vou descobrir'. E foi o que
aconteceu."
Kennedy nunca conheceu Hemingway pessoalmente, mas deu ouvidos ao conselho deste
sobre o risco que uma carreira longa no jornalismo encerra para um candidato a
romancista.
"Ele achava que o fato de ser jornalista deixaria você entorpecido e o tornaria vítima de
um padrão de pensamento, em termos de todos os dias limpar a mente para recomeçar
do zero com as notícias do dia seguinte. Enquanto o escritor de ficção precisa se treinar
para recordar tudo. Acho que existe, sim, para quem trabalha com jornalismo há muito
tempo, um efeito de entorpecimento que é sentido quando você procura escrever
criativamente. Esse padrão se torna inquebrável."
"É um aprendizado muito difícil", ele prossegue. "São apenas algumas pessoas raras
como Hemingway, que começaram jovens, sendo tanto jornalistas quanto escritores de
ficção desde cedo, que conseguem fazer as duas coisas com êxito."
Enquanto trabalhava duro em seu romance, Kennedy se divertia no jornal. Este era um
produto do qual ele se orgulhava, afirma, apesar de ser mal organizado e distribuído. Era
o tipo de lugar onde, às 21h, o editor de Cidades saía da Redação para fazer seu
programa numa estação de rádio local, enquanto o secretário de Redação rasgava os
cabelos em função de textos que estavam faltando.
Kennedy --que, afirma, era "o único que sabia realmente editar textos e mantê-los
circulando"-- acabou por comandar o lugar por algum tempo, até o jornal ser fechado e
ele se mudar para Miami com sua mulher, Dana.
MOMENTO DA VIRADA
Seu novo romance inclui uma homenagem breve à experiência fortalecedora do fracasso.
Sobre um jornalista jovem que procura conseguir um emprego de correspondente
ocasional em Havana, Kennedy escreve: "O fracasso pode ser um ato criativo. Quão
verdadeiramente instigante pode ser essa busca do fracasso."
E assim, apesar de nenhuma editora tê-lo aceito até então --depois de enviar o
manuscrito de um romance para várias, tinha recebido cartinhas de incentivo além de uma
carta de um editor bem impressionado, mas que se desculpou dizendo "não posso
acrescentar à minha lista mais um livro que não vai dar dinheiro"--, ele decidiu abandonar
seu emprego bem pago de colunista do "Miami Herald".
"Eu estava tentando escrever das 7h às 9h e então ir para o trabalho às 9h30. Depois do
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trabalho, às 22h, eu escrevia por mais duas horas e então adormecia. Percebi que eu não
poderia continuar fazendo as duas coisas. Em setembro de 1957 li uma resenha de 'On
the Road' na revista 'Time' e pensei 'caramba, eu mesmo preciso pôr o pé na estrada e
fazer alguma coisa. Senão, jamais vou conseguir. A hora é agora.' Eu queria escrever um
romance. Tinha fracassado como contista, então decidi que queria fracassar em algo
maior."
E fracassou novamente, fracassou melhor, foi publicado e em 1983, depois de três
romances modicamente bem recebidos, chegou a um momento de virada.
A premissa de "Ironweed" era tão pouco promissora que, em termos de marketing,
Kennedy ainda hoje acha graça: a história de um grupinho de alcoólatras itinerantes que
se deslocam por sua cidade natal, brigando, tendo visões, tentando passar-se por
sóbrios para conseguirem um leito por uma noite no abrigo de sem-tetos. Ou, como diz
Kennedy, sorrindo: "Quem se importa com mendigos? Especialmente mendigos de
Albany."
"Ironweed" foi seu quarto romance, depois de "The Ink Truck" e dos dois primeiros livros
do ciclo de Albany, "Legs" e "O Grande Jogo de Billy Phelan". Era para Albany que
Kennedy se descobria retornando em sua mente quando tentou colocar mãos à obra e
escrever ficção em tempo integral. Quando vivera lá, tinha se sentido frustrado e
entediado. Apenas agora, de longe, começara a olhar para sua própria família com um
olhar crítico: para a história da emigração de seus ancestrais da Irlanda, seus bisavôs que
tinham trabalhado nas ferrovias, para o legado de sua grande família.
Kennedy começou a conversar a sério com membros de sua família, absorvendo seus
detalhes, como romancista. Retornou para os anos 1930, para a virada do século e para
a família de sua mãe.
"A casa, como eles viviam, qual era a aparência deles. Suas discussões. Suas mortes. Os
grandes jantares que promoviam. Os presentes de Natal. Meu tio-avô Pat foi uma espécie
de político. Ele andava de bicicleta e usava roupas de ciclista. Conhecia muitas pessoas
que estavam no poder, governadores e assim por diante. Era um dândi, de certo modo.
Eu me lembro dele como sendo baixinho, mal-humorado e engraçado. Sua barba era
como a de um personagem de quadrinhos. Ele tinha bigode branco e alguns poucos
cabelos brancos. Minha mãe o amava. Ele achava que o próprio Sol girava em volta dela.
Acho que não o representei como ele foi, mas é essa espécie de recordação que contribui
para definir uma personalidade. No inconsciente. E disso sai este novo personagem."
"Ironweed" foi rejeitado por 13 editoras antes de ser aceito. William Kennedy estava
vivendo mais ou menos na linha de pobreza, aceitando empregos de professor, fazendo
trabalhos como fere-lancer, sustentando sua mulher e família e mal conseguindo se
manter à tona. Então algo começou a acontecer.
"Ironweed" saiu na capa da seção de resenhas de livros do "New York Times". Em
seguida, em uma resenha de livros do "LA Times". Depois, nos jornais de Chicago.
Kennedy recebeu a bolsa MacArthur, que na época valia US$ 255 mil, livre de impostos.
"O 'Times' publicou um artigo sobre a fama repentina de William Kennedy. Foi fenomenal.
Recebi mil cartas de fãs."
E então aconteceram várias coisas muito improváveis, aos olhos do autor. "Ironweed", o
filme, foi feito e recebeu duas indicações ao Oscar. Alguns anos antes disso, Kennedy,
que escreveu o roteiro do filme, tinha chamado a atenção de Francis Ford Coppola, que
lhe tinha pedido para colaborar no roteiro de "Cotton Club" (Kennedy se ensinou a redigir
roteiros depois de adaptar seu romance "Legs" para a tela grande, demitir seus agentes e
contratar o tipo de agente de cinema, da firma William Morris, que "me, em um almoço de
15 minutos, me conseguia mais dinheiro para escrever um roteiro do que eu tinha ganho
o ano inteiro como professor").
Como parte da bolsa, ele recebeu US$15 mil adicionais para criar uma organização sem
fins lucrativos. Kennedy deu o dinheiro ao departamento de língua inglesa da
universidade em Albany, para financiar algo chamado Instituto dos Escritores, que todos
os anos organizava uma programação de palestras gratuitas por escritores.
"Conseguimos Saul Bellow como nosso primeiro escritor convidado, e foi um sucesso
total: mil pessoas vieram. Toni Morrison foi a segunda e atraiu outras mil pessoas." Isso
foi há 27 anos. Kennedy, que ainda participa ativamente no programa, o vê como sendo
uma de suas maiores realizações.
INFLUÊNCIAS DO CINEMA
Seus melhores escritos ainda são ambientados em Albany, embora o novo romance
comece em tom dramático em Cuba, logo antes da revolução. Kennedy teve vários
encontros com Fidel Castro em 1987, na casa de García Márquez ("Gabo"), onde em uma
ocasião foi apresentado com as seguintes palavras: "Bill, você se importa em mudar de
lugar? O comandante está chegando e ele gosta dessa cadeira de balanço."
Kennedy recorda que Fidel Castro nunca tirava o boné. Que se interessava
profundamente pelo cinema latino-americano. Que não entendia por que filmes
americanos têm custos tão altos. "Falávamos sobre livros, sobre como ele adorava ler.
Fidel é um grande contador de histórias. As explicações dele eram muito lúcidas. Foi
quando eu o entrevistei sobre como ele sobrevive e como ele se vê como sobrevivente.
Está tudo no romance."
A ação em "Chango's Beads and Two-Tone Shoes" se desloca entre Cuba e Albany (para
onde fogem alguns dos personagens após a revolução), e a história é retomada anos
mais tarde, durante a era dos direitos civis. Com grande precisão e controle, Kennedy
escreve sobre pessoas que perderam o controle; no caso em pauta, um homem
dominado pela demência, uma cidade em tumulto e pessoas envolvidas em uma série de
brigas de bar.
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Seus personagens falam em tom estilizado, cinematográfico: "Se eu voltar a vê-lo algum
dia, lhe darei um rápido chute no derrière". É esse estilo que torna a leitura de Kennedy
divertida e faz a narrativa ser ágil. Alguém explica para George que ele teve um bom dia:
"Você se perdeu na cidade, foi cortado e foi parar no hospital, teve um romance,
envolveu-se numa briga, num tumulto racial e num tiroteio, foi a um bordel e a um
concerto, dançou uma valsa e fez uma serenata para uma mulher muito bela que parece
estar apaixonada por você."
Kennedy diz que esse tipo de cena de alta intensidade foi influenciado tanto pelo cinema
quanto por suas leituras. "A percepção da ação: vou ao cinema desde sempre, desde o
início dos anos 1930. Isso não pode deixar de ter um efeito. Entrou em meu sangue."
Isso e mais a influência dos jornais: "A ideia da narrativa: o que, onde, quando, por que,
como --tudo isso. E de não incluir nada que não seja essencial. É o movimento que cria a
ação, e é a ação que cria a história, e com isso você mergulha em mais movimento."
"Você fica perpetuando o fluxo. Se isso não faz parte do que é relevante para o
momento, quando você procura descrever a ação, então não deveria estar presente."
Naquela noite assisto a Kennedy fazendo uma leitura de trechos de "Chango's Beads" em
uma livraria numa cidade próxima a Albany. Ele é ótimo leitor, enérgico; sua esposa,
Dana, ex-bailarina do Balé Joffrey, assiste a tudo com orgulho.
Como William Kennedy descobriu muitos anos atrás, o xis da questão dos pontos de
interrogação na lista de García Márquez é que eles não podem ser expressos. Mas as
pessoas que lotam a sala, acompanhando sua leitura, sabem que ele encontrou a
resposta.
Tradução de CLARA ALLAIN.
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