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 edward o. wilson A conquista social da Terra Tradução Ivo Korytovski

WILSON - A Conquista Social Da Terra

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A Conquista Social da Terra

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  • edward o. wilson

    A conquista social da Terra

    Traduo

    Ivo Korytovski

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  • Copyright 2012 by Edward O. Wilson

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalThe Social Conquest of Earth

    CapaMariana Newlands

    Foto de capaPaul Gauguin, Do venons nous/ Que sommes nous/ O allons nous, 1897-8, leo sobre tela, 139,1 cm x 374,6 cm, Museum of Fine Arts, Boston, Tompkins Collection Arthur Gordon Tompkins Fund. Foto 2012 Museum of Fine Arts, Boston/ Bridgeman Art Library. Todos os direitos reservados.

    Reviso tcnicaMaria Guimares

    PreparaoSilvia Rebello

    ndice remissivoLuciano Marchiori

    RevisoThas Totino RichterRenata Lopes Del Nero

    [2013]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Wilson, Edward O.A conquista social da Terra / Edward O. Wilson ; traduo Ivo

    Korytovski 1a ed. So Paulo : Companhia das Letras, 2013.

    Ttulo original: The Social Conquest of Earth.isbn 978-85-359-2220-2

    1. Evoluo (Biologia) Filosofia 2. Evoluo humana Fi-losofia 3. Evoluo social Filosofia I. Ttulo.

    12-15661 cdd-599.938

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Condio humana : Evoluo social : Cincias da vida 599.938

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  • Sumrio

    Prlogo ...................................................................................... 7

    i. por que existe vida social avanada?1. A condio humana .............................................................. 15

    ii. de onde viemos?2. Os dois caminhos para conquistar ....................................... 233. A abordagem ......................................................................... 334. A chegada ............................................................................... 475. Abrindo caminho pelo labirinto evolutivo .......................... 616. As foras criativas .................................................................. 667. O tribalismo um trao humano fundamental .................. 768. A guerra como a maldio hereditria da humanidade ...... 829. A sada .................................................................................... 10010. A exploso criativa .............................................................. 11011. O salto para a civilizao .................................................... 125

    iii. como os insetos sociais conquistaram o mundo invertebrado

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  • 12. A inveno da eussocialidade ............................................. 13713. Invenes que favoreceram os insetos sociais ................... 149

    iv. as foras da evoluo social14. O dilema cientfico da raridade ......................................... 16515. Explicao do altrusmo dos insetos e da eussocialidade ..17216. Os insetos do o grande salto ..............................................18217. Como a seleo natural cria instintos sociais .....................19418. As foras da evoluo social ................................................20319. A emergncia de uma teoria nova da eussocialidade .........223

    v. o que somos?20. O que a natureza humana? .............................................. 23121. Como a cultura evoluiu ...................................................... 25622. As origens da linguagem .................................................... 27123. A evoluo da variao cultural ......................................... 28524. As origens da moralidade e da honra ................................ 29125. As origens da religio ......................................................... 30826. As origens das artes criativas .............................................. 323

    vi. para onde vamos?27. Um novo Iluminismo ......................................................... 345

    Agradecimentos .......................................................................... 361Referncias ................................................................................. 363ndice remissivo .......................................................................... 387

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  • i. por que existe vida social avanada?

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  • 15

    1. A condio humana

    De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? Concebi-

    dos em suprema simplicidade por Paul Gauguin na tela de sua

    obra-prima taitiana, esses so de fato os problemas centrais da

    religio e da filosofia. Seremos capazes de resolv-los um dia? s

    vezes parece que no. Mas talvez sejamos.

    A humanidade hoje como um sonmbulo, imprensada en-

    tre as fantasias do sono e o caos do mundo real. A mente procura

    mas no consegue achar o lugar e a hora precisos. Criamos uma

    civilizao de Guerra nas estrelas, com emoes da Idade da Pe-

    dra, instituies medievais e tecnologia divina. Ns nos debate-

    mos. Ficamos perplexos com o mero fato de nossa existncia, e

    nos tornamos um perigo para ns e para o resto dos seres vivos.

    A religio jamais resolver esse grande enigma. Desde o Pa-

    leoltico, cada tribo as quais tm se multiplicado aos milhares

    e milhares inventou seu prprio mito da criao. Durante esse

    longo tempo do sonho de nossos ancestrais, seres sobrenaturais

    falaram com xams e profetas. Identificaram-se aos mortais alter-

    nadamente como Deus, uma tribo de deuses, uma famlia divina,

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  • 16

    o Grande Esprito, o Sol, espritos dos ancestrais, serpentes supre-mas, hbridos de diversos animais, quimeras em parte humanas, em parte animais, aranhas celestes onipotentes qualquer coisa que pudesse ser evocada pelos sonhos, por alucingenos e pela imaginao frtil dos lderes espirituais. Foram moldados em parte pelos ambientes de seus inventores. Na Polinsia, os deuses separaram o cu do solo e do mar, e a criao da vida e da huma-nidade se sucedeu. Nos patriarcados do judasmo, do cristianis-mo e do islamismo que habitavam o deserto, no surpreende que os profetas concebessem um patriarca divino, todo-poderoso, que fala com seu povo atravs da escritura sagrada.

    As histrias da criao davam aos membros de cada tribo uma explicao de sua existncia. Faziam com que se sentissem amados e protegidos acima de todas as outras tribos. Em troca, os deuses exigiam crena e obedincia absolutas. E com razo. O mi-to da criao era o elo essencial que mantinha a tribo unida. Ele fornecia aos seus crentes uma identidade singular, exigia sua fide-lidade, fortalecia a ordem, garantia o cumprimento da lei, enco-rajava a bravura e o sacrifcio e dava sentido aos ciclos de vida e morte. Nenhuma tribo conseguia sobreviver por muito tempo sem que o sentido de sua existncia fosse definido por uma hist-ria da criao. A opo era enfraquecer, dissolver-se e morrer. Na histria inicial de cada tribo o mito, portanto, se tornou uma ver-dade absoluta.

    O mito da criao um dispositivo darwiniano para a sobre-vivncia. O conflito tribal, contrapondo os crentes de dentro aos infiis de fora, foi uma importante fora propulsora que moldou a natureza humana biolgica. A verdade de cada mito vivia no corao, no na mente racional. A criao de mitos, sozinha, ja-mais conseguiu descobrir a origem e o sentido da humanidade. Mas a ordem inversa possvel. A descoberta da origem e do sen-tido da humanidade poderia explicar a origem e o sentido dos mitos, e, portanto, o ncleo da religio organizada.

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  • 17

    Essas duas vises de mundo podero se reconciliar? A res-posta, em termos sinceros e simples, no. Elas so irreconcili-veis. Sua oposio define a diferena entre cincia e religio, entre confiana no empirismo e crena no sobrenatural.

    Se o grande enigma da condio humana no pode ser resol-vido pelo recurso base mtica da religio, tampouco ser resol-vido pela introspeco. A investigao racional pura no conse-gue conceber seu prprio processo. A maioria das atividades do crebro sequer percebida pela mente consciente. O crebro a cidadela, como disse certa vez Darwin, que no pode ser conquis-tada pelo ataque direto.

    Pensar sobre o pensamento o processo central das artes criativas, mas algo que nos diz muito pouco sobre como pensa-mos assim, e nada nos informa sobre por que as artes criativas se originaram. A conscincia, tendo evoludo por milhes de anos de luta de vida ou morte, e sobretudo devido a essa luta, no foi projetada para o autoexame. Ela foi projetada para sobrevivncia e reproduo. O pensamento consciente movido pela emoo, estando totalmente comprometido com o propsito de sobrevi-vncia e reproduo. As distores intricadas da mente podem ser transmitidas pelas artes criativas em detalhes refinados, mas so construdas como se a natureza humana jamais tivesse uma histria evolutiva. Suas metforas contundentes no nos aproxi-maram da soluo do enigma mais do que o teatro e a literatura da Grcia antiga.

    Os cientistas, examinando os contornos da cidadela, buscam brechas potenciais em suas muralhas. Com tecnologia projetada para esse propsito, penetraram-na e agora leem os cdigos e ras-treiam as vias de bilhes de clulas nervosas. Dentro de uma ge-rao, provavelmente teremos progredido o suficiente para expli-car a base fsica da conscincia.

    Mas quando a natureza da conscincia for solucionada, sa-beremos ento o que somos e de onde viemos? No, no sabere-

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  • 18

    mos. Entender as operaes fsicas do crebro at seus fundamen-

    tos nos aproxima do Graal. Para ach-lo, porm, precisamos de

    muito mais conhecimentos coletados da cincia e das humanida-

    des. Precisamos entender como o crebro evoluiu da maneira que

    evoluiu, e por qu.

    Alm disso, buscamos em vo na filosofia a resposta ao gran-

    de enigma. Apesar de seus nobres propsito e histria, a filosofia

    pura h muito abandonou as perguntas bsicas sobre a existncia

    humana. Essa prpria investigao uma assassina de reputaes.

    Tornou-se uma Grgona para os filsofos, cujo semblante at os

    melhores pensadores temem olhar. Eles tm boas razes para sua

    averso. A maior parte da histria da filosofia consiste em mode-

    los fracassados da mente. O campo do discurso est coalhado dos

    destroos de teorias da conscincia. Aps o declnio do positivis-

    mo lgico, em meados do sculo xx, e das tentativas desse movi-

    mento de fundir cincia e lgica num sistema fechado, os filso-

    fos profissionais se dispersaram em uma dispora intelectual.

    Eles emigraram para as disciplinas menos espinhosas ainda no

    colonizadas pela cincia histria intelectual, semntica, lgica,

    fundamentos da matemtica, tica, teologia e, mais lucrativa-

    mente, problemas de ajuste na vida pessoal.

    Os filsofos florescem nesses vrios empreendimentos, mas,

    ao menos por enquanto, e por um processo de eliminao, a solu-

    o do enigma ficou a cargo da cincia. O que a cincia promete,

    e j ofereceu em parte, o seguinte: existe uma histria da criao

    real da humanidade, e somente uma, e no um mito. Ela vem

    sendo elaborada, testada, enriquecida e fortalecida, passo a passo.

    Sustentarei que os avanos cientficos, especialmente aqueles

    das duas ltimas dcadas, so agora suficientes para abordarmos,

    de forma coerente, as questes sobre de onde viemos e o que so-

    mos. Para isso, porm, precisamos de respostas a duas questes

    ainda mais fundamentais levantadas pela investigao. A primei-

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  • 19

    ra por que a vida social avanada chegou a existir e tem ocorri-

    do to raramente na histria da vida. A segunda se refere iden-

    tidade das foras propulsoras que a fizeram surgir.

    Esses problemas podem ser resolvidos reunindo-se informa-

    es de vrias disciplinas, variando entre gentica molecular,

    neurocincia e biologia evolutiva e arqueologia, ecologia, psicolo-

    gia social e histria.

    Para testar qualquer dessas teorias de processo complexo

    convm apresentar outros conquistadores da Terra, com estrutu-

    ra social altamente desenvolvida, formigas, abelhas, vespas e

    cupins, o que farei. Eles so necessrios para fornecer uma pers-

    pectiva ao desenvolvimento da teoria da evoluo social. Creio

    que posso ser facilmente mal interpretado ao colocar insetos jun-

    to das pessoas. J bastam os macacos, voc poderia alegar, mas

    insetos? Na biologia humana, sempre bom fazer essas justaposi-

    es. Existem precedentes em comparar os menores com os

    maiores. Os bilogos voltaram-se com grande sucesso s bact-

    rias e leveduras para aprender os princpios da gentica molecu-

    lar humana. Eles dependeram de nematdeos e moluscos para

    aprender a base da nossa organizao neural e da nossa memria.

    E as drosfilas nos ensinaram muito sobre o desenvolvimento

    dos embries humanos. Tambm com os insetos sociais temos

    bastante a aprender, nesse caso para esclarecer com mais preciso

    a origem e o sentido da humanidade.

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  • ii. de onde viemos?

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  • 23

    2. Os dois caminhos para conquistar

    Os seres humanos criam culturas por meio de linguagens

    maleveis. Inventamos smbolos para nos entender mutuamente

    e, assim, geramos redes de comunicao infinitamente maiores

    do que a de qualquer animal. Conquistamos a biosfera e a devas-

    tamos como nenhuma outra espcie na histria da vida. Somos

    nicos naquilo que forjamos.

    Mas no somos nicos em nossas emoes. Encontra-se, por

    exemplo, em nossa anatomia e em nossas expresses faciais o que

    Darwin chamou de marca indelvel de nossa ancestralidade ani-

    mal. Somos uma quimera evolutiva, vivendo com base na inteli-

    gncia dirigida pelas exigncias do instinto animal. Por esse mo-

    tivo, estamos descuidadamente destruindo a biosfera e, com isso,

    nossas prprias perspectivas de existncia permanente.

    A humanidade uma realizao magnfica mas frgil. A nos-

    sa espcie ainda mais impressionante porque somos a culmina-

    o de uma epopeia evolutiva representada continuamente com

    muito perigo. Em grande parte, nossas populaes ancestrais fo-

    ram bem pequenas, de um tamanho que, no decorrer da histria

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  • 24

    dos mamferos, costumava ter grandes chances de extino preco-ce. Todos os grupos pr-humanos tomados em conjunto consti-tuem uma populao de no mximo algumas dezenas de mi lhares de indivduos. Bem cedo, os ancestrais pr-humanos di vidiram- -se em dois ou mais de uma vez. Durante esse perodo, a vida m-dia de uma espcie mamfera era de apenas meio milho de anos. Em conformidade com esse princpio, a maioria das linhagens colaterais pr-humanas desapareceu. Aquela destinada a dar ori-gem humanidade moderna esteve perto da extino ao menos uma vez, e possivelmente vrias vezes, no ltimo meio milho de anos. A epopeia poderia facilmente ter acabado em qualquer des-sas constries, desaparecido para sempre num piscar de olhos geolgico. Isso poderia ter ocorrido durante uma seca rigorosa na hora e no lugar errado, devido a uma doena estranha migrando dos animais circundantes para a populao, ou por presso de outros primatas mais competitivos. Teria ento sucedido... nada. A evoluo da biosfera teria recuado, para nunca mais produzir o que nos tornamos.

    Os insetos sociais, que atualmente governam o ambiente ter-restre dos invertebrados, evoluram para a existncia, em sua maioria, bem mais de 100 milhes de anos atrs. As estimativas dos especialistas so meados do Trissico, ou 220 milhes de anos atrs, para os cupins; do Jurssico Superior ao Cretceo Inferior, cerca de 150 milhes de anos atrs, para as formigas; e para as abelhas, Cretceo Superior, cerca de 70-80 milhes de anos atrs. Dali para a frente, e pelo resto da era mesozoica, a diversidade das espcies nessas vrias linhagens em evoluo aumentou junto com a ascenso e a disseminao das plantas florferas. Mesmo assim, as formigas e os cupins conquistaram seu atual predom-nio espetacular entre os invertebrados terrestres somente depois de existirem por um longo perodo. Seu pleno poder foi adquiri-do gradualmente, inovao aps inovao, alcanando seus nveis atuais entre 65 e 50 milhes de anos atrs.

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  • 25

    medida que os enxames de formigas e cupins se espalha-

    ram pelo mundo, muitos outros invertebrados terrestres evolu-

    ram paralelamente a eles e, como resultado, no apenas sobrevi-

    veram mas prosperaram. As plantas e os animais desenvolveram

    defesas contra suas depredaes. Muitos se especializaram em

    depender de formigas, cupins e abelhas como alimento. Esses

    predadores incluram tambm as plantas carnvoras, capazes de

    aprisionar e digerir grandes quantidades, suplementando os nu-

    trientes obtidos do solo. Uma grande variedade de espcies de

    plantas e animais formou simbioses ntimas com os insetos so-

    ciais, aceitando-os como parceiros. Uma grande porcentagem

    passou a depender deles inteiramente para sua sobrevivncia, al-

    ternadamente como presas, simbiontes, detritvoros, polinizado-

    res ou revolvedores do solo.

    No todo, o ritmo da evoluo das formigas e dos cupins foi

    bastante lento para ser contrabalanado pela contrarrevoluo ao

    longo da vida. Como resultado, esses insetos no conseguiram

    destruir o resto da biosfera terrestre pela fora dos nmeros, mas

    se tornaram elementos vitais dela. Os ecossistemas que dominam

    hoje, alm de sustentveis, dependem deles.

    Num forte contraste, os seres humanos da espcie Homo sa-

    piens emergiram nas ltimas centenas de milhares de anos e se

    espalharam ao redor do mundo somente nos ltimos 60 mil anos.

    No tivemos tempo de evoluir paralelamente ao resto da biosfera.

    As outras espcies no estavam preparadas para o ataque. Essa

    deficincia logo teve consequncias trgicas para o restante dos

    seres vivos.

    De incio, houve um processo ambientalmente benigno de

    formao de espcies nas populaes de nossos ancestrais ime-

    diatos espalhadas pelo Velho Mundo. A maioria levou extino

    e, portanto, a becos sem sada filogenticos ramos na rvore de

    vida que deixaram de crescer. Um zologo dir que nada houve

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  • 26

    de anormal nesse padro geogrfico. No arquiplago de Sunda

    Menor, a leste de Java, viviam os estranhos hobbits minsculos,

    o Homo floresiensis. Embora seus crebros no fossem muito

    maiores que os dos chimpanzs, desenvolveram ferramentas de

    pedra. Afora isso pouco sabemos da vida deles. Na Europa e no

    Levante encontravam-se os homens de Neanderthal, Homo nean-

    derthalensis, uma espcie irm do nosso prprio Homo sapiens.

    Onvoros como nossos prprios ancestrais, os homens de Nean-

    derthal tinham estruturas sseas enormes e crebros at maiores

    que os do moderno Homo sapiens. Usavam ferramentas de pedra

    rudes, mas especializadas. A maioria de suas populaes se adap-

    tou aos climas rigorosos da estepe dos mamutes, os campos gra-

    mados frios na orla da geleira continental. Poderiam com o tem-

    po ter evoludo em uma forma humana avanada prpria, mas

    declinaram at a extino sem maiores progressos. Por fim, com-

    pletando o bestirio humano no norte da sia, havia outra esp-

    cie conhecida com base em uns poucos fragmentos de ossos

    at o momento em que escrevo este livro , os denisovanos,

    claramente vicariantes dos homens de Neanderthal, ocupando

    terras a leste.

    Nenhuma dessas espcies de Homo sejamos generosos

    chamando-as de as outras espcies humanas sobreviveu at os

    dias de hoje. Caso tivessem sobrevivido, intrigante imaginar as

    questes morais e religiosas que teriam criado nos tempos mo-

    dernos. (Direitos civis para os homens de Neanderthal? Educao

    especial para os hobbits? Salvao e paraso para todos?) Se bem

    que faltem indcios diretos, quase no h dvida sobre a causa da

    extino dos homens de Neanderthal ocorrida, a julgar pelos ves-

    tgios em Gibraltar, no mximo 30 mil anos atrs. De uma manei-

    ra ou de outra, pela competio por comida e espao, pelo exter-

    mnio puro e simples ou por ambas as causas, nossos ancestrais

    foram os exterminadores do futuro dessa e de qualquer outra es-

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  • 27

    pcie surgida durante a irradiao adaptativa do Homo. Linha-

    gens arcaicas do Homo sapiens viviam isoladas na frica no tem-

    po dos homens de Neanderthal, e seus descendentes estavam

    destinados a se expandir explosivamente para fora do continente.

    Eles povoaram o Velho Mundo at chegarem Austrlia e final-

    mente descobriram o caminho at o Novo Mundo e os arquipla-

    gos distantes da Oceania. No processo, todas as outras espcies

    humanas encontradas foram esmagadas e obliteradas.

    Somente 10 mil anos atrs surgiu a agricultura, tendo sua

    inveno ocorrido ao menos oito vezes independentemente no

    Velho e no Novo Mundo combinados. Sua adoo aumentou tre-

    mendamente o suprimento de comida e, com isso, a densidade

    populacional em terra firme. Esse avano decisivo propiciou um

    aumento exponencial da populao e a converso de grande par-

    te do ambiente terrestre natural em ecossistemas drasticamente

    simplificados. Onde quer que os humanos saturassem as reas

    naturais, a biodiversidade retrocedia escassez de seu perodo

    mais antigo, meio bilho de anos antes. O resto do mundo vivo

    no conseguiu evoluir paralelamente com rapidez suficiente para

    conviver com o ataque de um conquistador espetacular que pare-

    cia vindo do nada, e comeou a desmoronar devido presso.

    Mesmo pela definio tcnica estrita aplicada aos animais, o

    Homo sapiens o que os bilogos denominam eussocial, o que

    significa que os membros do grupo abrangem vrias geraes e

    tendem a realizar atos altrustas como parte de sua diviso de tra-

    balho. Nesse aspecto, so tecnicamente comparveis a formigas,

    cupins e outros insetos eussociais. Mas cabe aqui uma ressalva:

    existem grandes diferenas entre os humanos e os insetos, alm

    da nossa posse singular da cultura, da linguagem e da alta inteli-

    gncia. A mais fundamental dessas diferenas o fato de que to-

    dos os membros normais das sociedades humanas so capazes de

    se reproduzir e a maioria compete entre si para tal. Alm disso, os

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  • 28

    grupos humanos so formados de alianas altamente flexveis,

    no apenas entre os membros da famlia, mas entre as famlias,

    sexos, classes e tribos. Esse vnculo se baseia na cooperao entre

    os indivduos ou grupos que se conhecem mutuamente e so ca-

    pazes de distribuir propriedade e status na esfera pessoal.

    A necessidade de uma avaliao acurada por membros da

    aliana fez com que os ancestrais pr-humanos tivessem de alcan-

    ar a eussocialidade de forma radicalmente diferente da utilizada

    pelos insetos (movidos por instintos). O caminho para a eussocia-

    lidade foi marcado por uma disputa entre a seleo baseada no

    sucesso relativo dos indivduos dentro dos grupos versus o sucesso

    relativo entre grupos. As estratgias desse jogo foram inscritas co-

    mo um mix complexo e rigorosamente calibrado de altrusmo, coo-

    perao, competio, domnio, reciprocidade, desero e fraude.

    Para jogar o jogo maneira humana, as populaes em evo-

    luo tiveram de adquirir um grau crescente de inteligncia. Tive-

    ram de sentir empatia pelos outros, avaliar as emoes, tanto de

    amigos como de inimigos, julgar as intenes de todos eles e pla-

    nejar uma estratgia para as interaes sociais. Consequentemen-

    te, o crebro humano tornou-se ao mesmo tempo altamente in-

    teligente e intensamente social. Teve de desenvolver cenrios

    mentais de relacionamentos pessoais rapidamente, de curto e lon-

    go prazos. Suas lembranas tiveram de retroceder ao passado dis-

    tante para evocar cenrios antigos e avanar futuro adentro para

    imaginar as consequncias de cada relacionamento. A amgdala e

    outros centros controladores das emoes do crebro e do sistema

    nervoso autnomo governavam os planos de ao alternativos.

    Assim nasceu a condio humana, egosta em certos mo-

    mentos, abnegada em outros, os dois impulsos muitas vezes em

    conflito. Como o Homo sapiens alcanou essa posio singular

    em sua jornada pelo grande labirinto da evoluo? A resposta

    que nosso destino foi predeterminado por duas propriedades

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  • 29

    biolgicas de nossos ancestrais distantes: tamanho grande e mobi-

    lidade limitada.

    Na remota era mesozoica, os primeiros mamferos eram mi-

    nsculos comparados com os maiores dinossauros sua volta.

    Mas eram ento, e permanecem at hoje, enormes em compara-

    o com os insetos e outros animais, na maioria invertebrados.

    Aps o desaparecimento dos dinossauros, e quando a era dos rp-

    teis deu lugar era dos mamferos, estes proliferaram em milha-

    res de espcies e preencheram uma grande variedade de nichos

    de morcegos na busca aerotransportada por insetos voadores

    a gigantescas baleias que, percorrendo as guas azuis de polo a

    polo, se alimentam de plnctons. O menor morcego tem o tama-

    nho de uma mamangava, e a baleia-azul, chegando a 24 metros

    de comprimento e pesando at 120 toneladas, o maior animal de

    qualquer espcie em todos os tempos.

    Durante a irradiao adaptativa das espcies mamferas em

    terra firme, umas poucas passaram a exceder dez quilogramas de

    peso, incluindo o veado e outros animais comedores de plantas,

    alm dos grandes felinos e outros carnvoros seus predadores.

    provvel que o nmero de espcies em um dado momento qual-

    quer fosse entre 5 e 10 mil. Entre eles apareceram os primatas do

    Velho Mundo e, depois, no Eoceno Superior, cerca de 35 milhes de

    anos atrs, os primeiros Catarrhini, inclusive espcies que dariam

    origem aos atuais macacos, grandes macacos antropoides e seres

    humanos do Velho Mundo. Aproximadamente 30 milhes de

    anos atrs, os ancestrais dos macacos do Velho Mundo divergi-

    ram na evoluo dos ancestrais dos macacos antropoides e dos

    seres humanos modernos. Algumas das espcies em proliferao

    deste ltimo grupo se especializaram no consumo de plantas, ou-

    tras em carne obtida pela caa ou pela saprofagia. Alguns se ali-

    mentam por uma mistura das duas. De um dos ramos da radia-

    o dos mamferos surgiu a linhagem pr-humana antiga.

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    Por mais razes do que apenas o tamanho, os pr-humanos

    foram um tipo radicalmente novo de candidatos eussocialida-

    de. Os insetos, desde sua origem na primeira vegetao terrestre,

    durante o Devoniano Inferior, 400 milhes de anos atrs at os

    dias atuais, esto encerrados numa armadura medieval de exoes-

    queleto quitinoso. Ao final de cada intervalo de crescimento, pre-

    cisam criar uma armadura nova mais expansvel e livrar-se da

    antiga acima dela. Enquanto os msculos dos mamferos e outros

    vertebrados esto fora dos ossos, e agem sobre sua superfcie ex-

    terna, os msculos dos insetos esto encerrados em seu esqueleto

    quitinoso e precisam agir de dentro. Por esses motivos, os insetos

    no conseguem atingir o tamanho dos mamferos. Os maiores

    insetos do mundo so os besouros-golias africanos, do tamanho

    de um punho humano, e os wetas, insetos semelhantes aos grilos,

    quase do mesmo tamanho, que, ao evoluir, assumiram na Nova

    Zelndia o papel ecolgico dos camundongos, na ausncia de es-

    pcies nativas nesse remoto arquiplago.

    Acontece que, embora as espcies eussociais possam domi-

    nar o mundo dos insetos quanto ao nmero de indivduos, as

    armas de que dispunham para sua conquista eram pequenos c-

    rebros e puro instinto. Alm disso, e fundamentalmente, eram

    pequenos demais para acender e controlar o fogo. Jamais, por

    mais que decorressem as eras, conseguiriam atingir a eussociali-

    dade maneira humana.

    Avanando pela estrada tortuosa da eussocialidade, os inse-

    tos ainda assim tinham uma vantagem: dotados de asas, podiam

    percorrer distncias maiores, e com muito mais agilidade, que os

    mamferos. A diferena torna-se bvia quando ajustada escala.

    Um grupo de humanos que parte para fundar uma colnia nova

    consegue confortavelmente percorrer dez quilmetros num dia

    para emigrar de um local de acampamento para outro. Uma rai-

    nha de formiga-lava-ps recm-inseminada, para tomar um

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    exemplo tpico entre milhares de espcies de formigas, consegue

    voar mais ou menos a mesma distncia em poucas horas para

    iniciar uma colnia nova. Ao aterrissar, ela se livra de suas asas,

    compostas de tecido morto (como os cabelos e unhas dos huma-

    nos). Depois cava um pequeno ninho no solo e, dentro dele, cria

    uma prole de operrias filhas a partir de reservas de gordura e

    msculo em seu prprio corpo. Um ser humano cerca de du-

    zentas vezes mais comprido do que uma rainha de lava-ps. As-

    sim um voo de dez quilmetros de uma formiga equivale a uma

    caminhada de Boston a Washington, para um ser humano. Mes-

    mo um voo de meio minuto de cem metros de uma formiga ala-

    da, do ninho onde nasceu para um local de nidificao prprio,

    equivale a meia maratona para um humano.

    A magnitude do voo de um inseto resulta em uma disperso

    bem maior de cada formiga rainha a cada gerao, relativamente

    ao tamanho. O mesmo teria acontecido com as vespas, solitrias

    ancestrais das formigas, bem como com os protoblatdeos solit-

    rios, ancestrais dos cupins.

    A diferena entre os ancestrais voadores das formigas, com

    cada progenitor da gerao seguinte partindo por conta prpria,

    e os lerdos ancestrais mamferos dos humanos, forados a perma-

    necer perto uns dos outros, aparentemente tornaria menos pro-

    vvel a evoluo da origem do comportamento social avanado

    em insetos. Mas ocorre o contrrio. Num ambiente em constante

    mudana, a formiga voadora tem mais chances que o mamfero

    errante de encontrar espao desocupado onde ela aterrissa. Alm

    disso, o territrio de que precisa para sobreviver bem menor

    que o de um mamfero, e mais difcil de coincidir com territ-

    rios j ocupados por indivduos da mesma espcie.

    O inseto social potencial tem outra vantagem: a colonizado-

    ra fmea no precisa de macho em sua viagem. Uma vez insemi-

    nada durante seu voo de acasalamento, ela transporta os esper-

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    matozoides recebidos numa pequena bolsa de armazenagem (a

    espermateca) dentro do abdmen. Ela pode liberar um esperma-

    tozoide de cada vez para fertilizar seus vulos, criando centenas

    ou milhares de operrias por um perodo de anos. As formigas-

    -cortadeiras detm o recorde: uma rainha pode dar luz 150 mi-

    lhes de operrias filhas durante seu perodo de vida de cerca de

    doze anos. Entre 3 e 5 milhes dessas formigas servis esto vivas

    em qualquer dado momento uma quantidade que se equipara

    das populaes humanas da Letnia e da Noruega.

    Os mamferos, especialmente os carnvoros, possuem terri-

    trios bem maiores para defender quando se fixam para cons-

    truir um ninho. Sempre que se deslocam, tendem a encontrar ri-

    vais. As fmeas no podem armazenar espermatozoides em seus

    corpos. Precisam encontrar um macho e acasalar para cada parto.

    Se as oportunidades e presses do ambiente tornam proveitoso o

    agrupamento social, isso precisa ser feito com laos e alianas

    pessoais baseados na inteligncia e na memria.

    Sintetizando o que dissemos at aqui sobre os dois conquis-

    tadores sociais da Terra, a fisiologia e o ciclo de vida nos ances-

    trais dos insetos sociais e dos seres humanos diferiram funda-

    mentalmente nos caminhos evolutivos seguidos para a formao

    de sociedades avanadas. A rainha inseto podia produzir uma

    prole robtica guiada pelo instinto. Os humanos tinham de con-

    tar com os vnculos e a cooperao entre os indivduos. Os inse-

    tos puderam evoluir at a eussocialidade pela seleo individual

    na linhagem da rainha, gerao a gerao. Os pr-humanos evo-

    luram para a eussocialidade pela ao da seleo no nvel da se-

    leo individual e no nvel do grupo.

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