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10/02/2015 Žižek: A utopia de Piketty | Blog da Boitempo http://blogdaboitempo.com.br/2014/05/30/zizekautopiadepiketty/ 1/4 Žižek: A utopia de Piketty Publicado em 30/05/2014 | 7 Comentários Por Slavoj Žižek .* Le Capital au XXI siècle é um livro essencialmente utópico. Por que? Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe a tendência inerente do capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia parte do interior da própria dinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre as décadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com um Estado mais forte, Welfare State etc. Mas reconhece ainda que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro – Holocausto, Segunda Guerra Mundial e crise. É como se estivesse implicitamente sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algo assim! Mas por que digo que ele é utópico? De certa forma ele não está errado. A tentativa de superação do capitalismo no século XX de fato não funcionou. O problema é que ele então acaba implicitamente generalizando isso. Piketty aceita, como um bom keynesiano, que o capitalismo é, ao fim e ao cabo, o único jogo na praça; que todas as alternativas a ele acabaram em fiasco, e que portanto temos de preserválo. Ele é quase que uma versão socialdemocrata do Peter Mandelson, o príncipe escuro de Tony Blair que disse que na economia somos todos thatcheritas, e que tudo que podemos fazer é intervir no nível da distribuição, um pouco mais para a saúde, para a educação e assim por diante. Thomas Piketty é utópico porque ele simplesmente propõe que o modo de produção permaneça o mesmo: vamos só mudar a distribuição implementando – e não há nada de muito original nessa ideia – impostos radicalmente mais altos. Aqui começam os problemas. Veja, não digo que não devemos fazer isso, só insisto que fazer apenas isso não é possível. Essa é a utopia dele: que basicamente podemos ter o capitalismo de hoje, que como maquinaria permaneceria basicamente inalterado: “opa opa, quando você lucra bilhões, aqui estou eu, imposto, me dê 80% de sua fatura”. Não acho que isso seja e

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Žižek: A utopia de PikettyPublicado em 30/05/2014 | 7 Comentários

Por Slavoj Žižek.*

Le Capital au XXI siècle é um livro essencialmente utópico. Por que? Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe atendência inerente do capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia parte do interior da própriadinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre asdécadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com um Estado mais forte, Welfare State etc.Mas reconhece ainda que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro – Holocausto, Segunda Guerra Mundial ecrise. É como se estivesse implicitamente sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algoassim!

Mas por que digo que ele é utópico? De certa forma ele não está errado. A tentativa de superação do capitalismo no século XXde fato não funcionou. O problema é que ele então acaba implicitamente generalizando isso. Piketty aceita, como um bomkeynesiano, que o capitalismo é, ao fim e ao cabo, o único jogo na praça; que todas as alternativas a ele acabaram em fiasco, eque portanto temos de preserválo. Ele é quase que uma versão socialdemocrata do Peter Mandelson, o príncipe escuro deTony Blair que disse que na economia somos todos thatcheritas, e que tudo que podemos fazer é intervir no nível dadistribuição, um pouco mais para a saúde, para a educação e assim por diante.

Thomas Piketty é utópico porque ele simplesmente propõe que o modo de produção permaneça o mesmo: vamos só mudar adistribuição implementando – e não há nada de muito original nessa ideia – impostos radicalmente mais altos.

Aqui começam os problemas. Veja, não digo que não devemos fazer isso, só insisto que fazer apenas isso não é possível. Essa éa utopia dele: que basicamente podemos ter o capitalismo de hoje, que como maquinaria permaneceria basicamenteinalterado: “opa opa, quando você lucra bilhões, aqui estou eu, imposto, me dê 80% de sua fatura”. Não acho que isso seja

e

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factível. Imagine um governo fazendo isso em nível mundial. E Piketty está ciente que isso deve ser feito globalmente, porquese fizer em um só país, o capital se desloca para outro lugar e assim por diante. Meu ponto é que se você conseguir imaginaruma organização mundial em que a medida proposta por Piketty pode efetivamente ser realizada, então os problemas já estãoresolvidos. Então você já tem uma reorganização política total, você já tem um poder global que pode efetivamente controlar ocapital. Ou seja: nós já vencemos!

Então acho que nesse sentido Piketty trapaça nas cartas: o verdadeiro problema é o de criar as condições para que sua medidaaparentemente modesta seja atualizada. E é por isso que, volto a dizer, não sou contra ele, ótimo, vamos cobrar 80% deimposto dos capitalistas. O que estou dizendo é que se você fosse fazer isso, logo se daria conta de que isso levaria a mudançassubsequentes. Digo que é uma verdadeira utopia – e isso é o que Hegel queria dizer com pensamento abstrato: imaginar quevocê pode tomar uma medida apenas e nada mais muda. É claro que seria ótimo ter o capitalismo de hoje, com todas suasdinâmicas, e só mudar ele no nível da redistribuição – mas isso é que é utópico. Não se pode fazer isso pois uma mudança naredistribuição afetaria o modo de produção, e consequentemente a própria economia capitalista. Às vezes a utopia não é antipragmática. Às vezes ser falsamente modesto, ser um realista, é a maior utopia.

É como – e perdoemme o paralelo esdrúxulo – um certo simpatizante nazista que disse basicamente: “Ok, Hitler está certo, acomunidade orgânica e tal, mas porque ele não se livra logo desse asqueroso antissemitismo”. E houve uma forte tendência,inclusive dentre os judeus – e isso é realmente uma história curiosa –, houve uma minoria de judeus conservadores queinclusive se dirigiam a Hitler dessa maneira: “Pôxa, concordamos com você, unidade nacional e tal, mas por que você nosodeia tanto, queremos estar com você!” Isso é pensamento utópico. E é aqui que entra o velho conceito marxista de totalidade.Tudo muda se você abordar os fenômenos com a perspectiva da totalidade.

* Extraído da conferência “Towards a Materialist Theory of Subjectivity“, no Birbeck Institute for the Humanities. Atradução é de Artur Renzo, para oBlog da Boitempo.

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Leia também “Reflexões sobre O capital de Thomas Piketty“, de David Harvey, no Blog da Boitempo.

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A Boitempo acaba de lançar Violência: seis reflexões laterais, o novo livro deSlavoj Žižek sobre o fenômeno moderno da violência, entre as explosões contraditórias das ruase a opressão silenciosa de nosso sistema político e econômico. A edição conta ainda com umprefácio inédito, de Žižek, e um posfácio, de Mauro Iasi, situando a discussão no contexto dasmanifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013!

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Todos os títulos de Slavoj Žižek publicados no Brasil pela Boitempo já estão disponíveis em

ebooks, com preços até metade do preço do livro impresso. Confira:

Alguém disse totalitarismo? Cincon intervenções no (mau) uso de uma noção * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917 * ePub (Amazon |Gato Sabido)

A visão em paralaxe * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Bemvindo ao deserto do Real! (edição ilustrada) * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Em defesa das causas perdidas * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético * ePub (Amazon | Gato Sabido)

O ano em que sonhamos perigosamente * ePub (Amazon | Gato Sabido)

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Primeiro como tragédia, depois como farsa * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Vivendo no fim dos tempos * ePub (Amazon | Gato Sabido)

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricoscontemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e JacquesLacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pósmodernidade. Professor da European Graduate School e doInstituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e éum dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bemvindo ao deserto doReal! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum(2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dostempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013) e o mais recente Violência (2014).Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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Em "Colaborações especiais"Em "Lançamentos e reimpressões"

Em "Colunas"

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Marcos Antônio Caliman Nalin | 28/11/2014 às 11:04 | Resposta

Um dos conceitos fundamentais da ciência é sempre considerar as variáveis, em se tratando de sociedades elas sãomuitas, se relacionam entre si e não cabem num tubo de ensaio.

Olavo de Carvalho | 01/12/2014 às 2:42 | Resposta

Argumentum ad Hitlerum.

Artur | 01/12/2014 às 18:10 | Resposta

Que besteira, claro que não. É um erro de leitura tentar forçar – a partir da breve analogia (cômica eassumidamente exdrúxula!) feita a título de ilustração no final do texto – que o argumento todo se resume areduzir a tese de Piketty a uma crítica pessoal, como se ele aderisse ao nazismo(!). Mesmo se levada ao pé daletra (o que claramente o texto não autoriza, nem disso depende o argumento), a analogia equipararia Pikettyao grupo de judeus que se opunham exclusivamente ao antisemitismo de Hitler, sem se dar conta de que seureparo implicava o desmonte de todo o resto de sua política. Além do mais, esse tipo de crítica ficacompletamente inviável se olharmos, para além deste texto, à obra do Žižek como um todo – que é passível decríticas, sem dúvida, mas não dessa. Ele não é nenhum nietzscheano de carteirinha, mas escreveu um livrointeiro sobre a reedição contemporânea desse tipo de desqualificação argumentativa: “Alguém dissetotalitarismo? Cinco intervenções no (mau)uso de uma noção”http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/alguemdissetotalitarismo%3F

Diego | 15/12/2014 às 3:45 | Resposta

O comentário mais lúcido que li até aqui a respeito do livro de Pikety, foi este feito por Zizek.

GREGORIO FRANKLIN BAREMBLITT | 27/12/2014 às 19:26 | Resposta

À CRÍTICA DE ZIZIEK AO LIVRO “O CAPITAL” DO SECULO XXI, DE PIKETTY È, AO MESMO TEMPO, OBVIA EESCANCARADA. É OBVIO QUE PETTY É UM REFORMISTA QUE PROPÕE UMA GRADUAL INSTALAÇÃO DEUMA POLÍTICA TRIBUTARIA MUNDIAL QUE TORNE “JUSTA” A DISTRIBUIÇÃO DA RENDA. NÃO È TAMOBVIO QUE O IMPOSTO DEVERÁ SER DO 80 %. TAMBEM NÃO É OBVIO QUE IMPORLO SERÍAIMPOSSIVEL ( EM HOLANDA, POR EXEMPLO), TEM EMPRENDIMENTOS QUE PAGAM ATE 80 % SOBRE OSLUCROS, MAS O PAGAM A UM ESTADO RELATIVAMENTE HONESTO, EFICIENTE, ENJUTO ETC), QUELHES DEVOLVERÁ O TRIBUTADO EN SERVIÇÕS DE INFRAESTRUCTURA CORRETOS E EM EMPRÉSTIMOSDE CAPITAL A JUROS TOLERAVEIS.CLARO QUE NÃO TEM MUITAS HOLANDAS POR AÍ, E O QUEHOLANDA FAZ EM CASA NÃO FAZ NAS COLONIAS..O PROBLEMA ESCANCARADO DE ZIZIEK È QUE ELE CRITICA A UTOPÍA PARCIAL EM NOME DATOTALIDADE HEGELIANA E DA SUBJETIVIDADE LACANIANA. EN LUGAR DE PROPORLHE A HITLER UNNACIONALISMO SEM ANTISEMITISMO, DEVEMOS PROPORLHE AO KAISER GUILHERMO E A BISMARCKUMA DEMOCRACIA IMPERIAL E À LEI E ÀO NOMEDOPAI OUTROS MODOS DE PRODUÇÃO DESUBJETIVAÇÃO. PARA MIM ZIZIEK JÀ É YORIK. G. BAREMBLITT

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