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Do Romance EMILE ZOLA Plínio Augusto Coelho tradução 1

Zola, Emile - Do Romance

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Zola, Emile - Do Romance

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Do Romance

Do RomanceEMILE ZOLA

Plnio Augusto Coelho traduo

http://br.groups.yahoo.com/group/digital_sourceDo Romance rene quatro estudos nos quais mile Zola, um dos principais escritores do movimento realista francs, apresenta toda a sua crena em uma concepo artstica desprovida de qualquer indulgncia em relao raa humana e influenciada pelo positivismo e pelas descobertas cientficas do sculo XIX.Essas caractersticas do realismo so bastante conhecidas e acabaram-se tornando verdadeiros esteretipos. Mas Zola mostra-se aqui muito mais erudito e perspicaz - s vezes beirando a contradio -, ao defender outros requisitos para o seu escritor ideal. Victor Hugo, o papa do maneirismo romntico, chega a ser citado como exemplo de um estilo refinado, porm perigoso. Por outro lado, a "mo pesada" de alguns escritores realistas repreendida, assim como a crtica social sem a expresso prpria de cada artista.O melhor deste livro, no entanto, encontra-se nas trs deliciosas peas crticas dedicadas a Stendhal, Flaubert e os irmos Goncourt. Apesar do elogio a esses autores, Zola no fecha os olhos para as imperfeies dos seus colegas realistas e denuncia, por exemplo, uma composio literria fraca na obra de Stendhal, ou satiriza os excessos detalhistas de Flaubert.Aos crticos cidos do movimento realista, pode-se revelar que talvez exista muito mais bom-humor do que apatia na famosa frase de Stendhal; "Todas as manhs leio uma pgina do Cdigo Civil para pegar o tom".SUMARIO

A Utopia NaturalistaO Senso do Real

Stendhal

Gustave Flaubert

Edmond e Jules de Goncourt

A UTOPIA NATURALISTA

talo Caroni

Todo artista , a seu modo, um mstico. Uma f permanente sustenta e consolida o arcabouo geral da grande obra arquitetada ao longo de toda uma vida. Qual Prometeu, ele rouba o fogo sagrado, luz criadora de mundos, chama que anima sua criao e suas criaturas.

Assim Zola, cuja crena naturalista alcana os contornos de uma verdadeira utopia. Afirmativa capaz at de surpreender o pblico j habituado leitura picante ou viso pessimista de um escritor responsvel, entre outras coisas, por textos como Nan e A Besta Humana. Felizmente, porm, Zola no se reduz a vulgares esteretipos de amplo consumo e descartveis. Para fazer-lhe justia, impe-se muito alm de qualquer verniz pornoertico ou sadodeterminista.

Qual o seu credo, afinal? Na base, sem dvida, um enfoque negativo da condio humana centrada na sua dimenso natural e sem o reconforto de nenhum suporte espiritual: coisa no universo das coisas o homem est condicionado pelo meio ambiente e pelo estigma hereditrio que se renovam sem parar no ciclo vida-morte. Como a pedra e a planta, o ser humano tem o seu destino inscrito no cosmos universal, e no escrito numa bblia qualquer. A metafsica cede seu lugar fsica, mesmo se o mistrio persiste... E se, no imaginrio zoliano, Eros e Tnatos presidem o movimento do eterno retorno como propriedades da matria ou como divindades annimas, pouco importa! Queira-se ou no, toda uma mitologia cosmonatural e bioorgnica acaba povoando a sua vasta criao, que descreve foras geradoras e destruidoras. E, de permeio a tanta misria, luzem os vislumbres otimistas da constatao pura e simples de que a vida sadia teima em renovar-se sempre e sempre, como o ilustra de modo quase potico o Doutor Pascal, elo derradeiro da saga dos Rougon-Macquart.

Alm do que, como um esprito autntico de seu tempo, Emile Zola vai introduzir, nessa viso naturalista, a esperana moderna por excelncia do milagre cientfico. Pois na verdade a cincia torna-se, para ele como para sua poca, um libi espiritual. Com ingenuidade, acredita-se ento no poder sobre-humano de um progresso cientfico apto a regenerar e apurar a espcie humana. E isto mesmo que seus livros dizem. Cada romance descreve a mecnica humana em funcionamento donde, s vezes, o aspecto francamente demonstrativo ou obsceno , mas para detectar o rgo doentio a fim de san-lo ou extirp-lo. Novo sopro otimista estremece dessa forma o conjunto de uma obra, toda ela voltada para o futuro mirfico onde se implantar sobre a Terra uma sociedade perfeita para a raa regenerada. Mdico e socilogo implcito, Zola aparece como um mstico materialista trabalhando por uma cincia e um socialismo forjadores da miragem paradisaca. Que esta crena impregne seus escritos j no h dvida alguma para os seus leitores no-ocasionais, bem como para a crtica especializada, que tem enfatizado o arranjo por assim dizer messinico da arquitetura global de uma produo artstica em que o ciclo dos Rougon-Macquart figura uma espcie de Antigo Testamento precedendo o conjunto final dos Evangelhos. Essa postura profunda vai, como lgico, sedimentar todas as suas convices de artista. Emile Zola remete alis, por analogia, a certos outros escritores-pensadores franceses; e, sem possuir a ironia irreverente de um Voltaire nem o pensamento sistematizado de um Sartre, acaba por confundir-se ele tambm com a imagem do filsofo que se exprime atravs da fico. Existe portanto nele uma concepo de arte como coisa sria, que se ope desde logo ao ldico ou ao ornamental. O que no difcil constatar ao longo dos textos tericos e crticos reunidos neste volume.

Que no se espere, entretanto, nenhuma teoria do romance de algum que nunca foi terico do gnero. No fundo, trata-se de reflexes mais ou menos tericas a servio da prtica. E de uma prtica que, por sua vez, vem impregnada daquela vocao humanitria evocada linhas atrs. Com a certeza ferrenha ou feroz que o excita, Zola ataca o inimigo e defende seus princpios, ao mesmo tempo humanitrios e artsticos. A arte confunde-se com o pensamento, ambos a servio da crena pessoal. Donde a veemncia de muitas de suas diatribes, a comear pelo contundente Meus dios, com que abriu os combates no incio da carreira.

Nas pginas que seguem, o tom moderado de quem fala de colegas e amigos segue mpetos mais arrebatadores. O primeiro texto discute aspectos um tanto tcnicos e portanto no necessariamente polmicos, da arte romanesca; os trs finais discorrem sobre escritores que esto ou, pelo menos, deveriam estar ao lado de Zola no campo de batalha.

O captulo sobre "o senso do real" ataca os contistas imaginativos, para melhor defender os romancistas srios que sacrificam o imaginrio ao real. No a primeira vez, nem a ltima, que Zola questiona a imaginao em literatura, e de modo particular no romance. Como tambm o nome de Victor Hugo no surge por acaso no alvo de suas flechadas, pois esse virtuose da linguagem encabea a coorte dos romnticos "podres de lirismo", que escrevem obras de pura imaginao, baseiam-se no sobrenatural e no irracional, admitem foras misteriosas e permanecem no nvel dos sentimentos, sem jamais respeitar a realidade e o determinismo dos fatos nem controlar as reaes e comportamentos pela experincia etc. etc. Enfim, quem, em tudo e por tudo, no respeita o receiturio naturalista da arte literria que ele prprio est codificando.

No deixa todavia de ser curioso o modo pelo qual Emile Zola acaba por escamotear a mesma imaginao na sua esttica pessoal. Pois o que vem a ser afinal aquela famosa "experincia", que ele tanto apregoa, seno uma operao puramente imaginria, associada por metfora aos procedimentos dos cientistas? O romancista naturalista no faz experincia alguma; ele rene, apenas, a mais vasta documentao sobre o tema romanesco escolhido e, diante da pgina em branco, deixa trabalhar as suas faculdades imaginativas, que vo urdindo tramas e redigindo textos, como qualquer outro escritor de fico.Onde intervm, ento, o tal de sentido da realidade ou dom de "sentir a natureza e exprimi-la tal qual"? Como se a natureza fosse algo perceptvel com objetividade absoluta! Quando muito, tal qual a capta Zola; e, a sim, tem-se algo que lhe peculiar. Para prov-lo, basta percorrer muitas das belas pginas espalhadas por diversos de seus textos mais tocantes, como O Pecado do Padre Mouret, Uma Pgina de Amor, A Besta Humana, O Doutor Pascal, nos quais se revela um romancista-poeta dotado de rara sensibilidade. A este aplica-se com toda propriedade o "sinto, logo existo", aforismo cartesiano adaptado atravs da leitura do fisiologista Letourneau, que faz parte do abundante material coletado e comentado nas anotaes prvias elaborao do ciclo dos Rougon-Macquart.

No tpico sobre "a expresso pessoal", flagra-se nova proposta contraditria. Sua postulao terica nunca se cansa de proclamar em alto e bom som que o autor deve desaparecer por trs da obra. Ideal de impassibilidade que s um Flaubert quase logrou alcanar, mas com grandes riscos de escrever para ningum!... Em todo caso, e pelo menos no plano terico, Zola institui o princpio sagrado do artista imparcial, objetivo tanto quanto o cientista que, por exemplo, no se irrita com as reaes imprevistas do azoto utilizado em sua experincia.

Ora, nestas rpidas elucubraes, o leitor depara-se com o oposto simtrico desse postulado, visto que o escritor autntico passa a ser aquele que, como seu amigo Daudet, tem a virtude de fundir vida e arte. Apenas a vivncia humana decantada e trabalhada pode subsidiar o ato criativo. Sem ela, a arte degenera em artifcio que os mais hbeis conseguem ate dominai ou copiar, mas que permanecera morto enquanto molde no preenchido por matria viva, que cada um s pode tirar de si mesmo. Logo, a expresso pessoal, ou para usar um termo mais desgastado a originalidade, no implica nem aspectos formais nem existenciais. Pouco importam a gramtica e o estilo se, atravs da prosa correta e envernizada, no se sente vibrarem seres palpitantes de vida.

Reaparece, dessa forma, a obsessiva fidelidade natureza. Feitas as contas, no causa tanta perplexidade v-lo, apesar de tudo, elogiar os escritores que riem e choram com os seus protagonistas ou exigir deles que insuflem sua vida pessoal na reconstituio do real. E o arauto da literatura cientfica conforma-se ao fato comumente admitido de que as criaes artsticas constituem sempre uma percepo personalizada do universo ou um universo recriado por uma sensibilidade nica e inconfundvel. Na falta desse princpio integrador, fica apenas a retrica, desembocando seja no ornamento, seja nos exerccios de abstrao laboratorial. Em ambos os casos, revela-se incompatibilidade com o mandamento zoliano que investe o ato criador de uma misso muito mais austera. Como acontece em nossa era ps-estruturalista, tambm imps-se ao sonho cientfico do sculo passado uma sub-reptcia reinsero do "sujeito" na arte.

Com pequena variante, Emile Zola remexe outra temtica que andou extasiando bastante a crtica literria pr-ps-moderna, a saber, o sempre servido e s vezes requentado prato da "crtica-criao". Inverta-se to somente a ordem dos fatores: hoje a crtica se diz arte, ao passo que ento o romance procurava afirmar-se como crtica. Reiteradas vezes, chefe e sectrios da escola naturalista reivindicaram o enobrecimento do romance que no dizer dos irmos Cronpourt por exemplo, evolura da simples categoria de leitura andina e ftil de leitura andina e ftil para o honroso status de estudo crtico e aprofundado. Tal valorizao do gnero passa, portanto, por essa pleiteada afinidade com o trabalho de crtica, que abrange por seu turno arte e sociedade.

Estes pressupostos sustentam a argumentao de "a frmula crtica aplicada ao romance". A equao clara e eloqente: o romancista procede, com relao personagem, exatamente como o crtico face ao autor. No obstante, mais que a similitude metodolgica, interessa a de contedo, que faz com que, na ptica naturalista, o romance se transforme em anlise crtica das paixes e comportamentos contextualizados. Alis, a prpria palavra "romance" incomodava Zola, que a aceitou por excluso, depois de ter tentado substitu-la por outras, como "estudo" ou "relatrio", mais adequados ao almejado enfoque cientfico, com a vantagem suplementar de facilitar a troca da imaginao gratuita por uma espcie de imaginao dedutiva.

Imprpria lhe parecia, da mesma forma, a palavra "descrio", agora tambm enobrecida com a misso de "completar e determinar". No mais, portanto, os encantos do belo estilo, mas sim o detalhamento minucioso da ecologia humana. Por isso mesmo, as melhores performances descritivas devem ser creditadas, no aos exerccios arte-pela-arte maneira de Thophile Gautier, mas antes pintura necessria de Flaubert ou escrita humana dos Goncourt.

De sbito, irrompe inesperado mea culpa, com Zola arrependido em parte pelos excessos descritivos com os quais procurou ampliar o quadro humano e natural desenhado em certos romances. O caso e a justificativa das ultra-simtricas cinco descries de Uma Pgina de Amor tem muito de sintomtico. De novo, a arte suplanta a teoria. Dizer que a descrio apenas completa o grfico do homem em seus condicionamentos naturais reduzi-la por demais a uma simples tcnica de pesquisa cientfica... Por trs do iderio de proslito ocultam-se "intenes sinfnicas" que se apossam do artista, apesar dele. Zola se documenta, planeja, classifica, esboa mas, no instante nico em que a chama criativa se acende, quem pega da pena mesmo e conduz o processo o demnio da arte. E os mpetos artsticos, que assim triunfam, nascem da experincia vivida, confirmando de certa forma a justeza do binmio vida-arte que, neste ponto pelo menos, d razo ao terico.

Nos trs estudos que formam o ncleo destes textos crticos escolhidos, Emile Zola prossegue em sua tarefa de codificao artstica, mas agora mais propenso, como em outras ocasies, ao mapeamento dos domnios do Naturalismo. Duas preocupaes de base orientam, aqui e alhures, sua dmarche argumentativa: congregar os componentes da escola, opondo-os, via de regra, aos adversrios; definir, o mais das vezes de modo inconsciente, a especificidade de sua esttica pessoal.

O "Stendhal", que encabea a trade examinada, vai caracterizar-se por contraste com o todo-poderoso e ainda idolatrado Victor Hugo. Por sinal, quem quiser ter uma idia mais enftica da guerra sem trgua que Zola moveu contra o autor de Os Miserveis ganhar em ler a veemente "Carta Juventude", que ataca com igual vigor Ernest Renan, outro monstro, mais ou menos sagrado porm. Para Zola, Stendhal faz parte do grupo dos reconhecidos como afins, apesar de certos matizes particulares de sua arte. Valorizando desde o incio a documentao disponvel, Zola procede a uma interessante resenha dos trabalhos assinados por Balzac, Sainte-Beuve e Taine, cujos perfis ganham em nitidez, tanto quanto o do prprio Stendhal. A grande virtude deste, aos olhos do terico naturalista, chegar, sem arroubos retricos, pintura da natureza humana tal como ela ; seu grande defeito, tratar a alma humana com abstrao e sem encarn-la num corpo mergulhado na natureza, alm da ausncia de lgica na composio e no estilo. Em outras palavras, Stendhal, que tem o grande mrito de repudiar o falso brilho verbal dos romnticos e trazer em si um fundo de verdade humana indiscutvel, no chega a ser um naturalista legtimo e, menos ainda, um escritor zoliano capaz de compor com toda lgica e clareza possveis textos-documentos extrados da natureza. Tambm no se lhe deve atribuir nenhuma superioridade sobre os naturalistas, visto que a concepo psicolgica do homem no superior fisiolgica. De qualquer forma, subsiste uma admirao contida e, at certo ponto, estratgica que sempre contrabalana um pouco a onipresena hugoana.

Dentre os parceiros literrios, quem ocupa o lugar de destaque sem dvida alguma Gustave Flaubert, amigo estimado e mestre cooptado. A quantidade certamente, mas sobretudo a qualidade das pginas que lhe so dedicadas testemunham essa marcante influncia artstica e humana. Zola compartilhou, com um pequeno grupo de colegas, da intimidade do homem e do artista Flaubert, que os recebia no isolamento normando de Croisset e os freqentava nas suas espaadas estadias parisienses. Seu testemunho pessoal, comovida homenagem pstuma, retraa circunstncias e lutas vividas por Flaubert, revelando assim um pouco da pessoa que o grande escritor francs sempre procurou ocultar por trs de suas produes artsticas. O discpulo naturalista ajuda portanto a resgatar em parte o homem Flaubert, que, segundo este, devia deixar para a posteridade a impresso de no ter existido.

Mas h tambm na homenagem zoliana o resgate do artista. Alm de reiterarem a prova de amizade, as consideraes sobre o artista denotam o incansvel nimo proselitista do Emile Zola chefe de escola literria brindando, mais uma vez, o leitor com um flagrante de rotulagem naturalista. Esse texto, como boa parte de seus escritos crticos, situa-se por volta de 1880, clmax do movimento naturalista, centrado todo ele na figura do chefe inconteste da nova gerao literria. E, como digno chefe, este demarca seu territrio e elenca os seus, entre vivos e mortos. Com que segurana no encampa ele o ilustre e recm-desaparecido criador de Emma Bovary!

Pouco importa se a questo tinha ou no sentido para Flaubert, mas Zola o inclui sem o menor escrpulo no patrimnio do Naturalismo. Madame Bovary? Ora, nada mais do que o prottipo do romance naturalista, smula das caractersticas da escola! Seu autor? O modelo do observador-experimentador segundo o estrito figurino naturalista! E, mesmo se um certo entusiasmo pela fora potica da prosa flaubertiana desponta de vez em quando na anlise de seus demais romances, a leitura que Zola faz de Flaubert baliza, no seu todo, um itinerrio eminentemente naturalista. Malgrado a admirao sincera, transparece aquele esprito partidrio sempre em busca do posies consolidadas. Com efeito, qual melhor represa contra eventuais transbordamentos romnticos do que o recm-falecido autor de A Educao Sentimental?

O leitor avesso a polmicas ser, por sua vez, sensvel penetrante avaliao zoliana que v em Flaubert a sntese das duas tendncias maiores das geraes ps-1830: a anlise exata de Balzac e o brilho do estilo Victor Hugo, admirado apesar de combatido. Nesta ordem de idias surgem os melhores lances do estudo crtico de Zola, com frmulas lapidares sobre o estilo "sbrio e brilhante" ou as imagens "precisas e soberbas" de um prosador que "poeta com um sangue-frio que faz ver com preciso". Esse mesmo leitor notar ainda a perplexidade implcita de Zola diante das aparentes contradies de Flaubert, eremita e mrtir do fazer artstico, gnio que levou as letras francesas a um prodigioso salto frente, mas que execra e abomina tudo o que traz marcas de modernidade. Como se em Flaubert tambm houvesse um conflito entre a teoria e a prtica... Equvoco que, logicamente, diz respeito ao prprio Zola teimando em fazer de Flaubert um esprito bem do seu tempo, moderno-progressista-positivista-naturalista, quando ele mesmo se diz, coerente consigo, um escritor acima de qualquer suspeita temporal, um asceta da arte eterna e cujo grande combate consiste em vencer os obstculos que se opem a uma perfeio sempre perfectvel: "Tudo foi dito antes de ns, resta-nos apenas redizer as mesmas coisas, numa forma mais bela, se for possvel".

Por no ser este o seu sonho, Zola vai mostrar-se pouco traumatizado pelo calvrio artstico do amigo e muito perplexo com suas intolerncias estilsticas, preferindo celebrar nele o filsofo experimentador que se ignora. que se ignora. Nas entrelinhas esboa-se o perfil de um ctico e satrico que pode contar como aliado precioso na cruzada zoliana pela verdade e pela justia.

No fecho desse percurso crtico cumprido por Emile Zola, os irmos Edmond e Jules de Goncourt completam, no por acaso, a simetria da coletnea, que comea e termina pela apologia das sensaes. Realmente, salta aos olhos que o grande fascnio exercido pela dupla de requintados estetas franceses resulta daquele to apregoado sentido, ou senso, do real, maneira muito particular de sentir e que comunicada por um estilo inventado de propsito. Graas a uma sensibilidade diferente, delicada e como que nervosa ou doentia, os Goncourt, ainda por cima hbeis manipuladores da linguagem, realizaram, segundo Zola, a proeza de abrir um novo caminho ao romance francs, que se encontrava num beco sem sada aps o fenmeno Balzac. Caminho este que, como reivindica novamente o chefe de escola, assegura-lhes um espao muito particular na marcha naturalista. Pois, mais uma vez, presencia-se um caso de encampamento literrio, mesmo se a produo de seus dois contemporneos desliza s vezes para uma elegncia e um maneirismo incompatveis com os caminhos estticos do austero Naturalismo.

Como era de se esperar, para Germinie Lacerteux que vo as preferncias de Zola quanto ao conjunto de oito romances compostos a quatro mos pelos irmos siameses das letras francesas. Todos os clichs naturalistas parecem ter sido empregados no verdadeiro exame clnico do triste destino da domstica Germinie: fisiologia patolgica, dissecao cirrgica, estudo de temperamentos, determinismo orgnico-ertico, degradao moral e fsica, impulsos coercitivos do meio scio-natural e evento capital- a entrada do povo mido na literatura sria. O romance um um marco na histria da literatura francesa (e ocidental, como dir Auerbach na sua magistral Mimesis). Talvez mais pelas intenes do que pela realizao.

Um significado simblico agrega-se a esse receiturio de escola, para justificar ainda mais o empenho proselitista de Emile Zola. Aqui, como no caso de Flaubert, aceita-se corajosamente o desafio da indiferena pblica e a hostilidade crtica para projetar de modo mais provocante o Naturalismo como movimento alvissareiro procura de pelejas consagradoras. E Zola, espcie de mata-mouros das letras, sai lia de peito aberto e conclamando briga... No registro implcito, caberia comentar tambm os acertos de contas com os prprios parceiros, como esses mesmos Goncourt ou o sempre admirado Balzac.

Contudo, se os meios revelam egosmo partidrio ou pessoal, os fins jamais deixam de ser generosos: a Germinie, dos Goncourt, como muitos dos tristes e sofridos protagonistas zolianos, ser salva quando se puder subtra-la do ambiente viciado e degenerador em que a sociedade a condenou a viver. De novo, sobe no horizonte o clarear da utopia naturalista anunciando a sociedade perfeita e o paraso terrestre. Ingenuidade humanitria, to ilusria quanto o prprio sonho positivista por excelncia de uma cincia e de uma arte absolutamente precisas e transparentes.

O SENSO DO REAL

O mais belo elogio que se podia fazer a um romancista, outrora, era dizer: "Ele tem imaginao". Hoje, esse elogio seria visto quase como uma crtica. que todas as condies do romance mudaram. A imaginao j no a qualidade mestra do romancista.

Alexandre Dumas, Eugne Sue tinham imaginao. Em Notre-Dame de Paris, Victor Hugo imaginou personagens e uma fbula do mais vivo interesse; em Pauprat, George Sand soube apaixonar toda uma gerao pelos amores imaginrios de seus heris. Mas ningum ousou associar a imaginao a Balzac e a Stendhal. Falou-se de suas faculdades poderosas de observao e anlise; eles so grandes porque retrataram sua poca, e no porque inventaram contos. Foram eles que conduziram essa evoluo, foi a partir de suas obras que a imaginao deixou de contar no romance. Vejam nossos grandes romancistas contemporneos, Gustave Flaubert, Edmond e Jules de Goncourt, Alphonse Daudet: seu talento no vem do que eles imaginam, mas do fato de reproduzirem a natureza com intensidade

Insisto nesse declnio da imaginao porque vejo nisso a prpria caracterstica do romance moderno. Enquanto o romance foi uma recreao do esprito, um divertimento ao qual no se pedia seno graa e verve, compreende-se que a grande qualidade era antes de tudo mostrar nele uma inveno abundante. Mesmo quando o romance histrico e o romance ilustrando uma tese apareceram, ainda era a imaginao que reinava onipotente, para evocar os tempos idos ou para chocar como os argumentos das personagens construdas segundo as necessidades da justificao. Com o romance naturalista, o romance de observao e de anlise, as condies mudam imediatamente. O romancista inventa ainda mais; inventa um plano, um drama; apenas, uma ponta de drama, a primeira histria surgida, e que a vida cotidiana sempre lhe fornece. Em seguida, na estruturao da obra, isso tem bem pouca importncia. Os fatos s esto l como desenvolvimentos lgicos das personagens. O grande negcio colocar em p criaturas vivas, representando diante dos leitores a comdia humana com a maior naturalidade possvel. Todos os esforos do escritor tendem a ocultar o imaginrio sob o real.

Seria um estudo curioso dizer como trabalham nossos grandes romancistas contemporneos. Quase todos estabelecem suas obras a partir de notas, tomadas longamente. Quando estudaram com um cuidado escrupuloso o terreno onde devem caminhar, quando se informaram em todas as fontes e tm em mos os mltiplos documentos dos quais necessitam, somente nesse momento decidem-se a escrever. O plano da obra lhes trazido por esses prprios documentos, pois acontece de os fatos se originarem logicamente, este antes daquele; estabelece-se uma simetria, a historia se compe de todas as observaes recolhidas, de todas as notas tomadas, uma puxando a outra, pelo prprio encadeamento da vida das personagens, e a concluso nada mais que uma conseqncia natural e inevitvel. V-se, nesse trabalho, o quanto o imaginrio tem pouca importncia. Estamos longe de George Sand, por exemplo, que, segundo dizem, ficava diante de um caderno em branco e que, tendo partido de uma primeira idia, avanava sem parar, compondo medida que, confiando com toda certeza em sua imaginao, acrescentava tantas pginas quantas eram necessrias para fazer um volume. Um de nossos romancistas naturalistas quer escrever um romance acerca do mundo dos teatros. Ele parte dessa idia geral sem ter ainda um fato nem uma personagem. Seu primeiro cuidado ser reunir em notas tudo o que puder saber a respeito desse mundo que pretende retratar. Conheceu tal ator, assistiu a tal cena. Eis a documentos, os melhores, aqueles que amadureceram nele. Em seguida, sair a campo, ouvir os homens mais bem informados sobre a matria, colecionar as expresses, as histrias, as descries. No tudo: ir, depois, aos documentos escritos, lendo tudo o que lhe pode ser til. Enfim, visitar os locais, viver alguns dias num teatro para conhecer seus mnimos recantos, passar suas noites num camarim de atriz, impregnar-se- o mximo possvel do ar ambiente. E, uma vez completados os documentos, seu romance, como j o disse, se estabelecer por si mesmo. O romancista ter apenas que distribuir logicamente os fatos. De tudo o que tiver apreendido resultar a ponta do drama, a histria que ele necessita para montar o arcabouo de seus captulos. O interesse j no se encontra na estranheza dessa histria; ao contrrio, quanto mais banal e geral ela for , mais tpica se tornar. Fazer mover personagens reais num meio real, dar ao leitor um fragmento da vida humana, a se encontra todo o romance naturalista.

Visto que a imaginao j no a qualidade mestra do romancista, o que, ento, a substituiu? preciso sempre uma qualidade mestra. Hoje, a qualidade mestra do romancista o senso do real. E a isso que eu gostaria de chegar.

O senso do real sentir a natureza e represent-la tal como ela . Parece, inicialmente, que todo mundo possui dois olhos para ver e que nada deve ser mais comum do que o senso do real. Entretanto, nada mais raro. Os pintores sabem muito bem disso. Coloquem alguns pintores diante da natureza, eles a vero do modo mais barroco do mundo. Cada um a perceber sob uma cor dominante; um a far tender ao amarelo, um outro ao violeta, um terceiro ao verde. Para as formas, os mesmos fenmenos se produziro; um arredonda os objetos, outro multiplica os ngulos. Cada olho tem, assim, uma viso particular. Enfim, h olhos que no vem absolutamente nada. Possuem sem dvida alguma leso, o nervo que os liga ao crebro sofre de uma paralisia que a cincia ainda no pde determinar. O certo que de nada adiantar observarem a vida se mover ao seu redor, jamais sabero reproduzir exatamente uma cena.

No quero citar aqui nenhum romancista vivo, o que torna rainha demonstrao bastante difcil. Os exemplos esclareceriam a questo. Mas todos podem observar que alguns romancistas permanecem provincianos, mesmo depois de terem vivido vinte anos em Paris. So timos nas descries de sua regio, e, assim que abordam uma cena parisiense, perdem-se, no conseguem dar uma impresso justa de um meio, no qual, entretanto encontram se h anos. Eis a um primeiro caso, uma ausncia parcial do senso do real. Sem dvida, as impresses de infncia foram mais vivas, o olho fixou os quadros que o arrebataram inicialmente; depois, a paralisia se declarou, e intil o olho observar Paris, ele no a v, jamais a ver.

O caso mais freqente , por sinal, o da paralisia completa. Quantos romancistas crem ver a natureza e s a percebem atravs de todos os tipos de deformaes! Eles so de uma boa-f absoluta, na maioria das vezes. Persuadem-se de que puseram tudo num quadro, que a obra definitiva e completa. Sente-se isso pela convico com a qual acumularam os erros de cores e formas. Sua natureza uma monstruosidade que eles reduziram ou ampliaram, desejando cuidar do quadro. Apesar de seus esforos, tudo se dilui em tintas falsas, tudo clama e se aniquila. Podero, talvez, escrever poemas picos, mas nunca construiro uma obra real, porque a leso de seus olhos se ope a isso, porque, quando no se tem o senso do real, no possvel adquiri-lo.

Conheo contistas encantadores, fantasistas adorveis, poetas em prosa de cujos livros gosto muito. Esses no se ocupam em escrever romances e permanecem excelentes, fora do real. O senso do real s se torna absolutamente necessrio quando nos prendemos s pinturas da vida. Ento, nas perspectivas em que nos encontramos hoje, nada poderia substitu-lo, nem um estilo apaixonadamente elaborado, nem o vigor da pintura, nem as tentativas mais meritrias. Vocs pintam a vida, vejam-na antes de tudo tal como ela e dem a exata impresso dela. Se a impresso barroca, se os quadros so mal-estruturados, se a obra descamba para a caricatura, quer seja pica ou simplesmente vulgar, uma obra natimorta, que est condenada a um rpido esquecimento. No est amplamente assentada sobre a verdade, no tem nenhuma razo de ser.

Esse senso do real me parece muito fcil de constatar num escritor. Para mim, uma pedra de toque que decide sobre todos os meus julgamentos. Quando leio um romance, condeno-o se me parece faltar senso do real ao autor. Quer ele esteja num fosso ou nas estrelas, embaixo ou em cima, -me igualmente indiferente. A verdade tem um som sobre o qual estimo que no nos poderamos enganar. s frases, os pargrafos, as pginas, o livro inteiro devem soar a verdade. Dir-se- que so necessrios ouvidos delicados. So necessrios ouvidos justos, nada mais. E o prprio pblico, que no poderia pretender uma grande delicadeza de sentidos, compreende, todavia, muito bem as obras que soam a verdade. Ele vai pouco a pouco a estas, enquanto faz rapidamente silncio sobre as outras, sobre as obras falsas que soam o erro.

Assim como se dizia outrora de um romancista: "Ele tem imaginao", peo, portanto, que se diga hoje: "Ele tem o senso do real". O elogio ser maior e mais justo. O dom de ver ainda menos comum do que o dom de criar. Para melhor me fazer entender, volto a Balzac e a Stendhal. Ambos so nossos mestres. Mas confesso no aceitar todas as suas obras com a devoo de um fiel que se inclina sem exame. S os acho verdadeiramente grandes e superiores nas passagens em que tiveram o senso do real.

No conheo nada de mais surpreendente em O Vermelho e o Negro do que a anlise dos amores de Julien e de madame de Renal. preciso levar em considerao a poca em que o romance foi escrito, em pleno romantismo, quando os heris se amavam no lirismo mais desenfreado. E eis um rapaz e uma mulher que se amam, enfim, como todo mundo, loucamente, profundamente, com as e quedas e os sobressaltos da realidade. uma pintura superior. Darei por essas pginas todas aquelas em que Stendhal complica o carter de Julien, mergulha nos duplos temas diplomticos que adorava. Hoje, ele s verdadeiramente grande porque, em sete ou oito cenas, ousou mostrar o elemento real, a vida no que ela tem de verdadeiro.

O mesmo com Balzac. H nele um sonolento desperto, que sonha e cria, s vezes, figuras curiosas, mas que no engrandece, com certeza, o romancista. Confesso no ter admirao pelo autor de A Mulher de Trinta Anos, pelo inventor do tipo de Vautrin na terceira parte das Iluses Perdidas e em Esplendor e Misria das Cortess. a isso que chamo a fantasmagoria de Balzac. Tambm no gosto de seu grand monde, que ele inventou inteiramente e que faz rir, com exceo de alguns tipos magnficos imaginados por seu gnio. Em resumo, a imaginao de Balzac, essa imaginao desregrada que se lanava em todos os exageros e que queria criar o mundo de novo, sobre planos extraordinrios, essa imaginao me irrita mais do que me atrai. Se o romancista tivesse tido somente essa imaginao, seria apenas, hoje, um caso patolgico e uma curiosidade em nossa literatura.

Felizmente, entretanto, Balzac possua alm disso o senso do real, e o senso do real mais desenvolvido j visto at aquele momento. Suas obras-primas o atestam, essa maravilhosa A Prima Bette, na qual o baro Hulot to colossal de verdade, essa Eugnia Grandet que contm toda a provncia em uma determinada poca de nossa histria. Seria ainda preciso citar O Pai Gonot, La Rabouilleuse, O Primo Pons, e tantas outras obras sadas todas vivas das entranhas de nossa sociedade A est a imortal glria de Balzac. Ele fundou o romance contemporneo, porque foi um dos primeiros a mostrar e empregar esse senso do real que lhe permitiu evocar todo o mundo.

Todavia, ver no tudo, preciso reproduzir. E por isso que, depois do senso do real, h a personalidade do escritor. Um grande romancista deve ter o senso do real e a expresso pessoal.

A EXPRESSO PESSOAL

Conheo romancistas que escrevem corretamente e que conquistaram, com o tempo, renome literrio. So muito laboriosos, abordam todos os gneros com a mesma facilidade. s frases fluem sozinhas de suas penas, e eles tm por tarefa produzir quinhentas ou seiscentas linhas todas as manhs antes do almoo. E, repito, um trabalho correto, a gramtica no absolutamente estropiada, o movimento bom, a cor aparece, s vezes, em pginas que fazem o pblico dizer, tomado de respeito: " muito bem escrito". Em resumo, esses romancistas tm toda a aparncia de verdadeiros talentos.

A infelicidade que eles no tm a expresso pessoal, e o bastante para torn-los para sempre medocres. Ser intil amontoar volumes sobre volumes, usar e abusar de sua incrvel fecundidade; nunca emanar de seus livros seno um odor repugnante de obras natimortas. Quanto mais produzirem, mais a pilha mofar. Sua correo gramatical, o esmero de sua prosa, o verniz de seu estilo podero iludir durante um certo tempo o grande pblico; mas tudo isso no bastar para dar vida a suas obras e no ter finalmente nenhum peso no julgamento que os leitores faro deles No tm a expresso pessoal, esto condenados, ainda mais porque, quase sempre, tambm no tem o senso do real, o que agrava sobremaneira seu caso.

Esses romancistas assumem o estilo que est no ar. Agarram as frases que voam em torno deles. Nunca as frases emanam de sua personalidade, eles as escrevem como se algum, por trs deles, as ditassem; e talvez seja por isso que lhes basta abrir a torneira de sua produo. No digo absolutamente que plagiam estes ou aqueles, que roubam de seus colegas pginas inteiras; ao contrrio, so to fluidos e superficiais que no se encontra neles nenhuma forte marca, nem mesmo a de algum ilustre mestre. Apenas, sem copiar, eles tm, em vez de um crebro criador, um imenso depsito repleto de frases conhecidas, locues-correntes, um tipo de mdia do estilo usual. Esse depsito inesgotvel, l eles se podem servir com ps para cobrir o papel. Eis um monte, e ainda mais! Sempre, sempre ps cheias de matrias frias e terrosas, que enchem as colunas dos jornais e as pginas dos livros.

Ao contrrio, vejam um romancista que possui a expresso pessoal, vejam Alphonse Daudet, por exemplo. Refiro-me a esse escritor porque um daqueles que mais vivem suas obras. Alphonse Daudet assistiu a um espetculo, a uma cena qualquer. Como possui o senso do real, mantm-se impressionado com essa cena, conserva dela uma imagem muito intensa. Podem passar os anos, o crebro conserva a imagem, o tempo, amide, s faz aprofund-la ainda mais. Ela acaba por se tornar uma obsesso, preciso que o escritor a comunique, descreva o que viu e fixou. Ocorre, ento, um fenmeno, a criao de uma obra original.

E inicialmente uma evocao. Alphonse Daudet se lembra do que viu, e rev as personagens com seus gestos, os horizontes com suas linhas. -lhe preciso descrever isso. Desde esse momento, ele representa as personagens, habita os locais, entusiasma-se ao confundir sua prpria personalidade com a personalidade dos seres e mesmo das coisas que quer retratar. Acaba por se tornar apenas um com a obra, pois absorve-se nela e ao mesmo tempo a revive por sua conta. Nessa ntima unio, a realidade da cena e a personalidade do romancista j no so distintas. Quais so os detalhes absolutamente verdadeiros, quais so os inventados? o que seria muito difcil dizer. O que h de certo que a realidade foi o ponto de partida, a fora de impulso que lanou possantemente o romancista; ele continuou, em seguida, a realidade, ampliou a cena no mesmo sentido, dando-lhe uma vida especial e que lhe prpria, unicamente a ele, Alphonse Daudet.

Todo o mecanismo da originalidade encontra-se ai, nessa expresso pessoal do mundo real que nos cerca. O encanto de Alphonse Daudet, esse encanto profundo que lhe valeu uma posio to elevada em nossa literatura contempornea, vem do sabor original que ele d frase mais simples. Ele no pode narrar um fato, apresentar uma personagem sem se colocar por inteiro nesse fato ou nessa personagem, com a vivacidade de sua ironia e a suavidade de sua ternura. Reconhecer-se-ia uma de suas pginas entre cem outras, porque suas pginas possuem vida prpria. E um encantador, um desses contistas meridionais que representam o que contam, com gestos que criam e uma voz que evoca. Tudo se anima sob suas mos abertas, tudo assume uma cor, um odor, um som. Eles choram e riem com seus heris, tratam-nos com intimidade, tornam-nos to reais que a gente os v em p, enquanto falam.

Como querem vocs que semelhantes livros no emocionem o pblico? Eles so vivos. Abram-nos e os sentiro palpitar em suas mos. E o mundo real: e ainda mais, o mundo real vivido por um escritor de uma originalidade extraordinria e intensa ao mesmo tempo. Ele pode escolher um tema mais ou menos feliz, trat-lo de um modo mais ou menos completo; a obra no ser menos preciosa por isso, posto que ela ser nica, visto que s ele pode dar-lhe essa aparncia, esse tom, essa existncia. O livro dele, isso basta. Classific-lo-o um dia, mas no deixa, por isso, de ser um livro parte, uma verdadeira criatura. Apaixonam-se por ele, amam-no ou no, ningum permanece indiferente. J no se trata de gramtica, de retrica, e no se tem mais sob os olhos somente uma pilha de papel impresso; um homem se encontra l, um homem do qual se ouve pulsar o crebro e o corao a cada palavra. Entregam-se a ele, porque ele se torna o senhor das emoes do leitor, porque tem a fora da realidade e a onipotncia da expresso pessoal.

Compreendam agora a impotncia radical dos romancistas dos quais falei mais acima. Nunca eles arrebataro e fixaro a ateno dos leitores, pois no sentem e no reproduzem um modo original. Buscar-se-ia em vo em suas obras uma impresso nova, expressa em um tour dephrase1 inventado. Quando fazem estilo, quando colhem aqui e acol frases felizes, essas frases, to vivas num outro, neles soam o nada no ha por trs dela um homem que verdadei-ramente sentiu e traduz por um esforo de sua criao; h somente um bcleur2 de prosa, abrindo as torneiras de sua produo. E ser intil aplicar-se, desejar escrever bem, acreditar que se pode fazer um belo livro como se faz um belo par de botas, com mais ou menos cuidado, jamais criaro uma obra viva. Nada substitui o senso do real e a expresso pessoal. Quando no se tem esses dons, melhor seria vender candeia do que se ocupar em escrever romances.

Citei, h pouco, Alphonse Daudet, porque ele me oferecia um exemplo surpreendente. Contudo, eu teria podido citar outros romancistas que esto longe de possuir seu talento. A expresso pessoal no se d necessariamente numa frmula perfeita. Pode-se escrever mal, incorretamente, de maneira descuidada, ainda que possuindo uma verdadeira originalidade na expresso. O pior, na minha opinio, , ao contrrio, esse estilo correto, fluindo de uma maneira fcil e prtica, esse dilvio de lugares-comuns, de imagens conhecidas, que faz o grande pblico apresentar este juzo irritante: "Est bem escrito". Pois bem, no, est mal escrito, uma vez que isso no tem uma vida particular, um sabor original, mesmo em detrimento da correo e das conformidades da lngua!

O maior exemplo da expresso pessoal em nossa literatura o de Saint-Simon. Eis um escritor que escreveu com seu sangue e sua blis, e que deixou pginas inesquecveis de intensidade e vida. Estou mesmo errado em cham-lo de escritor; ele era melhor do que isso, pois no parece ter-se preocupado em escrever, e alcanou de uma s vez o mais elevado estilo a criao de uma lngua, a expresso viva. Em nossos mais ilustres autores sente-se a retrica a afetao da frase; um cheiro de tinta escapa das pginas. Nele, nada dessas coisas; a frase nada mais do que palpitao da vida, a paixo secou a tinta, a obra um grito humano, o longo monlogo de um homem que vive com altivez. Isso est bem longe de nossa maneira romntica de entender uma obra, em que nos consumimos em todos os tipos de esforos artsticos.

1. Maneira de apresentar o pensamento segundo a disposio das palavras num enunciado (N do T )

2. Neologismo criado a partir do verbo bacler, que significa fazer algo rapidamente e Bem cuidado (N do T)

O mesmo vale para Stendhal. Este procurava dizer que, para obter o tom, lia todas as manhs algumas pginas do Cdigo Civil, antes de se pr ao trabalho. Deve-se ver nessa declarao uma simples bravata lanada escola romntica. Stendhal queria dizer que o estilo, para ele, era apenas a traduo mais clara e mais exata possvel da idia. Ele tambm possua a expresso pessoal em um grau muito elevado. Sua aridez, sua frase curta, to incisiva e to penetrante, torna-se em suas mos um maravilhoso instrumento de anlise. No se poderia imagin-lo escrevendo amenidades. Ele tinha o estilo de seu talento, um estilo de tal forma original, em sua incorreo e aparente indiferena, que permaneceu tpico. J no a intensa torrente de Saint-Simon, arrastando maravilhas e escombros, esplndida de violncia; como um lago congelado na superfcie, talvez fervendo em suas profundezas, e que reflete com uma verdade inexorvel tudo o que se encontra em suas margens.

Balzac foi, como Stendhal, acusado de escrever mal. Escreveu, entretanto, nos Contos Engraados, pginas que so jias primorosas; no conheo nada de mais esplendidamente inventado como forma, nem de mais finamente executado. Mas censuraram-no pelos pesados comeos de seus romances, pelas descries muito densas, sobretudo pelo mau gosto de certos exageros na pintura de suas personagens. E evidente que ele tem a mo enorme e que esmaga, em alguns momentos. Contudo, deve ser julgado no conjunto colossal de sua obra. V-se, ento, um lutador herico, que lutou contra tudo, mesmo contra o estilo, e que saiu cem vezes vitorioso do combate. Por sinal, intil ele aventurar-se em frases difceis, seu estilo lhe sempre prprio. Ele o modela, o refunde, o refaz inteiramente em cada um de seus romances. Procura incessantemente uma forma. Encontramo-lo, com sua vida de produtor gigante, nas mnimas alneas. Encontra-se l a forja rimbosa, e ele malha com toda a fora sua frase, at que ela tenha a sua marca. Essa marca, ela a conservar eternamente. Quaisquer que sejam os exageros, trata-se a de um grande estilo.

Tive simplesmente a inteno, ao dar alguns exemplos, de melhor explicar o que entendo por expresso pessoal. Um grande romancista , hoje em dia, aquele que possui o senso do real e que exprime com originalidade a natureza, fazendo-a viva por sua prpria vida.

A FRMULA CRTICA APLICADA AO ROMANCE

Recentemente lia eu um comentrio em que um romancista era tratado bastante desdenhosa-mente como crtico. Negavam-se seus romances, admitiam-se seus estudos literrios, sem perceber que as faculdades do crtico tendem hoje a se confundir com as faculdades do romancista. H nisso uma questo que me parece interessante discutir.

Sabe-se o que a crtica se tornou hoje em dia. Sem fazer a histria completa das transformaes por que ela passou desde o sculo passado histria que seria das mais instrutivas e que resumiria o movimento geral dos espritos , basta citar os nomes de Sainte-Beuve e do Sr. Taine para estabelecer a que distncia estamos dos julgamentos de La Harpe e at mesmo dos comentrios de Voltaire.

Sainte-Beuve foi um dos primeiros a compreender a necessidade de explicar a obra pelo homem. Recolocou o escritor em seu meio, estudou sua famlia, sua vida, seus gostos, viu, em resumo, uma pgina escrita como o produto de todos os tipos de elementos que se deveria conhecer se se quisesse elaborar um julgamento justo, completo e definitivo. Da os estudos profundos que escreveu, com uma leveza de investigao maravilhosa, com um senso refinado das mil nuanas, das contradies complexas do homem. Estava-se longe dos crticos julgando como pedagogos segundo as regras da Escola, fazendo abstrao completa do homem nos escritos, aplicando a todas as obras a mesma medida comum e considerando-as desdenhosamente como gramticos e como retricos.

Taine veio, por sua vez, e fez da crtica uma cincia. Reduziu a leis o mtodo que Sainte-Beuve empregava um pouco como virtuose. Isso deu uma certa rigidez ao novo instrumento de crtica; mas esse instrumento adquiriu uma fora indiscutvel. No preciso lembrar os admirveis trabalhos de Taine. Conhece-se sua teoria dos meios e das circunstncias histricas aplicados ao movimento literrio das naes. Taine atualmente o chefe de nossa crtica, e de se lamentar que se feche na histria e na filosofia, em vez de se imiscuir em nossa vida militante, em vez de dirigir a opinio como Sainte-Beuve, julgando os pequenos e os grandes de nossa literatura.

Eu gostaria simplesmente de constatar como procede a crtica moderna. Por exemplo, Taine quer escrever o belo estudo que fez sobre Balzac. Comea por reunir os documentos imaginveis, os livros e os artigos publicados sobre o romancista; interroga as pessoas que o conheceram, aqueles que podem prestar informaes verdadeiras sobre ele; e isso no basta, preocupa-se ainda com os locais onde Balzac viveu, visita a cidade onde nasceu, as casas que ocupou, os horizontes que atravessou. Tudo se encontra, assim, investigado pelo crtico, os ascendentes, os amigos, at que ele conhea absolutamente Balzac, em seus mais ntimos recnditos, como o anatomista conhece o corpo que acaba de dissecar. Assim, ele pode ler a obra. O produtor lhe d e lhe explica o produto.

Leiam o estudo de Taine. Vero o funcionamento de seu mtodo. A obra est no homem; Balzac, perseguido por seus credores, acumulando projetos extraordinrios, atravessando noites para pagar seus billets3, a cabea sempre fumegante, desemboca em A Comdia Humana. No julgo aqui o sistema, exponho-o, e digo que a crtica atual essa, com mais ou menos parti pris. Doravante, j no se separar o homem de sua obra, estudar-se- aquele para compreender esta.

Pois bem! Nossos romancistas naturalistas no tm, eles prprios, outro mtodo. Quando Taine estuda Balzac, faz exatamente o que o prprio Balzac faz quando estuda, por exemplo, o pai Grandet. O crtico age sobre um escritor para conhecer suas obras como o romancista age sobre uma personagem para conhecer seus atos. Dos dois lados, a mesma preocupao com o meio e com as circunstncias. Lembrem-se de Balzac determinando exatamente a rua e a casa onde vive Grandet, analisando as criaturas que o cercam, estabelecendo os mil pequenos fatos que decidiram acerca do carter e dos hbitos de seu avaro. No se trata a de uma aplicao absoluta da teoria do meio e das circunstncias? Repito-o, o trabalho idntico.

3. Soma de mil francos antigos (N do T.)

Dir-se- que Taine caminha sobre o terreno do real, que s aceita os fatos provados, os fatos que realmente acontecem, enquanto Balzac livre para inventar e usa com certeza dessa liberdade. Mas sempre se reconhecer que Balzac fundamenta seu romance sobre uma verdade inicial. Os meios com que descreve so exatos, e as personagens que constri tm os ps no cho. Dessa maneira, pouco importa o trabalho que se vai seguir, desde que o mtodo de construo empregado pelo romancista seja idntico ao do crtico. O romancista parte da realidade do meio e da verdade do documento humano; se em seguida ele a desenvolve num certo sentido, j no imaginao, a exemplo dos contistas, deduo, como entre os cientistas. Por sinal, no tive a pretenso de que os resultados fossem completamente semelhantes no estudo de um escritor e no estudo de uma personagem; aquele, com certeza, aproxima-se do real mais de perto, ainda que deixando um amplo espao para a intuio. Todavia, digo-o ainda, o mtodo o mesmo.

Ainda mais, trata-se de um duplo efeito da evoluo naturalista do sculo. No fundo, se se investigasse, chegar-se-ia ao mesmo solo filosfico, investigao positivista. Com efeito, hoje o crtico e o romancista no concluem. Contentam-se em expor. Eis o que eles viram; eis como tal autor deve ter produzido tal obra, e eis como tal personagem deve ter chegado a tal ato. Dos dois lados, mostra-se a mquina humana no trabalho, nada mais. Da comparao dos fatos, acaba-se, verdade, por formular leis. Entretanto, quanto menos nos apressamos em formular as leis, mais sbios somos; pois o prprio Taine, por ter-se apressado um pouco, pde ser acusado de ceder ao sistema. Estamos, por um momento, a colecionar e a ordenar os documentos, principalmente no romance. J uma tarefa bem grande procurar e dizer o que . preciso deixar a cincia pura formular leis, pois, por enquanto, no fazemos seno verbalizar, ns romancistas e crticos.

Portanto, para me resumir, o romancista e o crtico partem hoje do mesmo ponto, o meio exato e o documento humano apreendido na natureza, e empregam, em seguida, o mesmo mtodo para chegar ao conhecimento e explicao, de um lado, da obra escrita de um homem e, do outro, dos atos de uma personagem, a obra escrita e os atos considerados como os produtos da mquina humana submetida a determinadas influncias. Da, evidente que um romancista naturalista um excelente crtico. Basta-lhe introduzir no estudo de um escritor qualquer o instrumento de observao e anlise do qual se serviu para estudar as personagens que ele apreendeu na natureza. um erro crer que o diminuem como romancista quando dizem frivolamente dele: " apenas um crtico".

Todos esses erros vm da falsa idia que se continua a fazer do romance. , inicialmente, desagradvel que no tenhamos podido mudar essa palavra "romance", que nada mais significa, aplicada a nossas obras naturalistas. Esta palavra traz uma idia de conto de fabulaco, de fantasia, que destoa de modo singular das nossas verbalizaes. H quinze ou vinte anos j se sentira a impropriedade crescente do termo, e houve um momento em que se tentou colocar nas capas a palavra "estudo". Mas isso ficava muito vago, e apesar de tudo a palavra "romance" se manteve. Seria necessria, hoje, uma feliz descoberta para substitu-la. Por sinal, esses tipos de mudanas devem se produzir e se impor por si prprios.

No que me diz respeito, a palavra no me feriria, se se quisesse admitir, ainda que a conservando, que a coisa se modificou por completo. Encontraramos cem exemplos, na lngua, de termos que exprimiam outrora idias radicalmente contrrias quelas que eles exprimem hoje. Nosso romance de cavalaria, nosso romance de aventuras, nosso romance romntico e idealista tornaram-se, portanto, uma verdadeira crtica dos costumes, das paixes, dos atos do heri representado, estudado em seu ser prprio e nas influncias que o meio e as circunstncias tiveram sobre ele. Conforme escrevi, para grande escndalo de meus colegas, a imaginao j no representa a um papel dominante; torna-se deduo, intuio, age sobre os fatos provveis que se pde observar diretamente e sobre as conseqncias possveis dos fatos que se trata de estabelecer logicamente segundo o mtodo. esse romance que uma verdadeira pgina de crtica, que coloca o romancista diante de uma personagem da qual ele vai estudar uma paixo, nas condies exatas em que se encontra um crtico diante de um escritor do qual quer demonstrar o talento.Preciso concluir? O parentesco do crtico e do romancista deve-se unicamente ao fato de que ambos, como j o disse, empregam o mtodo naturalista do sculo. Se passssemos ao historiador, ns o veramos, ele tambm, fazer na histria um trabalho idntico, e com o mesmo instrumento. O mesmo sucede com o economista, com o homem poltico. Esses so fatos fceis de provar e que mostram o cientista frente do movimento, conduzindo hoje a inteligncia humana. Valemos mais ou menos conforme a cincia nos tenha tocado mais ou menos profundamente. Deixo parte a personalidade do artista, indico aqui apenas a grande corrente dos espritos, o sopro que nos arrasta a todos ao sculo XX qualquer que seja a nossa retrica individual.

DA DESCRIO

Seria bem interessante estudar a descrio em nossos romances, desde Mlle de Scudry at Flaubert. Seria fazer a histria da filosofia e da cincia durante os dois ltimos sculos; pois, sob essa questo literria da descrio, no h outra coisa alm do retorno natureza, essa grande corrente naturalista que produziu nossas crenas e nossos conhecimentos atuais. Veramos o romance do sculo XVII, bem como a tragdia, fazer mover-se criaes puramente intelectuais sobre um fundo neutro, indeterminado, convencional; as personagens so simples mecnicas de sentimentos e paixes, que funcionam fora do tempo e do espao; e assim, o meio no importa, a natureza no tem nenhum papel a representar na obra. Depois, com os romances do sculo XVIII, veramos despontar a natureza, mas em dissertaes filosficas ou em parti pris de emoo idlica. Enfim, nosso sculo chega com as orgias descritivas do romantismo, essa reao violenta da cor, e o emprego cientfico da descrio, seu papel exato no romance moderno, s comea a se estabelecer graas a Balzac, Flaubert, os Goncourt e outros mais. Tais so os marcos de um estudo que no tenho tempo para fazer. Basta-me, por sinal, indic-lo, para dar aqui algumas notas gerais acerca da descrio.

Inicialmente, essa palavra "descrio" tornou-se imprpria. Ela hoje to ruim quanto a palavra "romance", que no significa mais nada quando aplicada a nossos estudos naturalistas. Descrever no mais o nosso objetivo; queremos simplesmente completar e determinar. Por exemplo, o zologo que, ao falar de determinado inseto, se achasse forado a estudar longamente a planta sobre a qual vive esse inseto, do qual extrai sua existncia, at sua forma e sua cor, faria uma descrio; mas essa descrio entraria na prpria anlise do inseto, haveria a uma necessidade de cientista, e no um exerccio de pintor. Isso significa dizer que j no descrevemos por descrever, por um capricho e um prazer de retricos. Achamos que o homem no pode ser separado de seu meio, que ele completado por sua roupa, por sua casa, por sua cidade, por sua provncia; e, dessa forma, no notaremos um nico fenmeno de seu crebro ou de seu corao sem procurar as causas ou a conseqncia no meio. Da o que se chama nossas eternas descries.

Atribumos natureza, ao vasto mundo, um espao to amplo quanto ao homem. No admitimos que s o homem exista e que s ele importe, persuadidos, ao contrrio, de que ele um simples resultado e de que, para ter o drama humano real e completo, preciso busc-lo em tudo o que existe. Sei muito bem que isso agita as filosofias. por essa razo que nos situamos no ponto de vista cientfico, nesse ponto de vista da observao e da experimentao que nos d, atualmente, as maiores certezas possveis.

No podemos habituar-nos a essas idias, porque elas quebram nossa retrica secular. Querer introduzir o mtodo cientfico na literatura parece algo de um ignorante, de um vaidoso e de um brbaro. Por Deus! No somos ns que introduzimos esse mtodo; ele se introduziu sozinho, e o movimento continuaria, mesmo que se quisesse elimin-lo. Apenas constatamos o que acontece em nossas letras modernas. A personagem j no uma abstrao psicolgica, eis o que todo mundo pode ver. A personagem se tornou um produto do ar e do solo, como a planta; a concepo cientfica. A partir desse momento, o psiclogo deve se duplicar num observador e num experimentador, se quiser explicar claramente os movimentos da alma. Deixamos de estar nas amenidades literrias de uma descrio em belo estilo; estamos no estudo exato do meio, na constatao dos estados do mundo exterior que correspondem aos estados interiores das personagens.

Definirei, portanto, a descrio: um estado do meio que determina e completa o homem.

Agora, certo que no nos manteremos absolutamente nesse rigor cientfico. Toda reao violenta, e reagimos ainda contra a frmula abstrata dos ltimos sculos. A natureza entrou em nossas obras com um lan to impetuoso que as invadiu, afogando, s vezes, a humanidade, submergindo e arrastando as personagens, no meio de uma destruio de rochas e grandes rvores. Era fatal. preciso dar tempo nova frmula para se balancear e atingir a sua expresso exata. Por sinal, mesmo nesses excessos da aprender, muito a dizer. Encontram-se a documentos excelentes que seriam preciosos numa histria da excelentes, que seriam preciosos numa evoluo naturalista.

Disse eu, algumas vezes, que gostava pouco do prodigioso talento descritivo de Thophile Gautier. que, justamente, encontro nele a descrio pela descrio, sem nenhuma preocupao com a humanidade. Quanto ao estilo, ele era descendente direto do padre Delille. Nunca, em suas obras, o meio determina um ser; ele permanece pintor, tem apenas palavras como um pintor tem somente cores. Isso introduz em suas obras um silncio sepulcral; s h nelas coisas, nenhuma voz, nenhum estremecimento humano emana dessa terra morta. No posso ler cem pginas seguidas de Gautier, pois ele no me emociona, no me arrebata. Aps admirar nele o feliz dom da lngua, os procedimentos e as facilidades da descrio, s me resta fechar o livro.

Vejam, ao contrrio, os irmos Goncourt. Esses tambm nem sempre permanecem no rigor cientfico do estudo dos meios, unicamente subordinado ao completo conhecimento das personagens. Deixam-se levar pelo prazer de descrever, como artistas que brincam com a lngua e que so felizes de dobr-la s mil dificuldades do representado. S que eles pem sempre sua retrica a servio de sua humanidade. J no so frases perfeitas sobre um dado assunto; so sensaes experimentadas diante de um espetculo. O homem aparece, junta-se s coisas, anima-as pela vibrao nervosa de sua emoo. Todo o gnio dos Goncourt encontra-se nessa traduo to viva da natureza, nesses estremecimentos observados, nesses cochichos balbuciados, nesses suspiros tornados sensveis. Neles, a descrio respira. Sem dvida, ela transborda, e as personagens danam um pouco em horizontes muito dilatados, entretanto, mesmo que se apresente so, que no permanea em sua condio de meio determinante, ela sempre observada em suas relaes com o homem e assume um interesse humano.

Gustave Flaubert o romancista que at aqui empregou a descrio com maior medida. Nele, o meio intervm num sbio equilbrio: ele no submerge a personagem e quase sempre se contenta em determin-la. , inclusive, o que faz a grande fora de Madame Bovary e de A Educao Sentimental. Pode-se dizer que Gustave Flaubert reduziu estrita necessidade as longas enumeraes de leiloeiro oficial com as quais Balzac obstrua o comeo de seus romances. Ele sbrio, qualidade rara; emprega o trao proeminente, a grande linha, a particularidade que se mostra, e isso basta para que o quadro seja inesquecvel. em Gustave Flaubert que aconselho estudar a descrio, a pintura necessria do meio, cada vez que ele completa ou explica a personagem.

Ns outros, na maioria das vezes, fomos menos sbios, menos equilibrados. A paixo pela natureza amide nos arrebatou, e demos maus exemplos, por nossa exuberncia, por nossa embriaguez de ar livre. Nada perturba mais, seguramente, um crebro de poeta do que uma insolao. Sonha-se, ento, com todos os tipos de loucuras, escrevem-se obras em que os crregos pem-se a cantar, carvalhos conversam entre si, rochas brancas suspiram como peitos de mulher ao calor do meio-dia. E so sinfonias de folhagens, funes dadas grama, poemas de luzes e perfumes. Se h uma desculpa possvel para tais desvios, que sonhamos em dilatar a humanidade e a aplicamos at nas pedras dos caminhos

Ser-me- permitido falar de mim? O que me censuram, sobretudo, mesmo espritos simpticos, so as cinco descries de Paris que retornam e terminam as cinco partes de Uma Pgina de Amor. Vem nisso apenas um capricho de artista de uma repetio fatigante, uma dificuldade vencida para mostrar a destreza da mo. Posso ter-me enganado, e me enganei, com certeza, visto que ningum compreendeu; mas a verdade que tive todos os tipos de boas intenes quando persisti nesses cinco quadros da mesma paisagem, vista em horas e estaes diferentes. Eis a histria. Na misria de minha juventude, eu morava em guas-furtadas de subrbio, de onde se descobria Paris inteira. Essa grande Paris imvel e indiferente, que estava sempre enquadrada em minha janela, aparecia-me como o testemunho mudo, o confidente trgico de minhas alegrias e de minhas tristezas Tive fome e chorei diante dela; e diante dela amei, tive minhas maiores felicidades. Pois bem, desde meus vinte anos desejei escrever um romance do qual Paris, com o oceano de seus telhados, seria uma personagem. Alguma coisa como o coro antigo. Eu precisava de um drama ntimo, trs ou quatro criaturas num pequeno cmodo, em seguida a imensa cidade no horizonte, sempre presente, olhando com seus olhos de pedra o tormento pavoroso dessas criaturas. Foi essa velha idia que tentei realizar em Uma Pgina de Amor. Eis tudo.

verdade, no defendo minhas cinco descries. A idia era ruim, visto que ningum a compreendeu e defendeu. Talvez tambm a tenha construdo por procedimentos muito rgidos e muito simtricos. Cito o fato unicamente para mostrar que, no que denominamos nosso furor de descrio, no cedemos quase nunca exclusiva necessidade de descrever; isso sempre se complica em ns pelas intenes sinfnicas e humanas. A criao inteira nos pertence, fazemo-la entrar em nossas obras, sonhamos com o imenso arco. diminuir injustamente nossa ambio desejar nos encerrar numa mania descritiva, no indo alm da imagem mais ou menos cuidadosamente borrada.

E terminarei por uma declarao: num romance, num estudo humano, censuro absolutamente toda descrio que no , segundo a definio dada mais acima, um estado do meio que determina e completa o homem. Pequei o suficiente para ter o direito de reconhecer a verdade.

STENDHAL

IStendhal com certeza o romancista menos lido, mais admirado e mais negado pelas informaes. Nada se escreveu sobre ele de definitivo, e ele permaneceu um pouco em estado de legenda. Muito preocupado com seu talento, muito desejoso de estud-lo, hesitei, todavia, longamente antes de me lanar nesse trabalho, por temor de no estabelecer a figura do escritor sob uma luz franca e lmpida. Entretanto, o papel de Stendhal em nossa literatura contempornea de tal forma considervel que devo aventurar-me, com o risco de no lanar tanta luz quanto gostaria sobre obras complexas, que determinaram, com as de Balzac, a evoluo naturalista atual.

E preciso dizer que ao prprio Stendhal aprouve, em vida, envolver-se de mistrio. No era um esprito de bonomia, uma natureza ampla e reta, de velho sangue gauls, produzindo tranqilamente diante de todos. Ele complicava sua tarefa com todos os tipos de raciocnios e finuras, com ares de diplomata que viaja incgnito e que se deleita com prazeres solitrios a escarnecer do pblico. Inventava pseudnimos imaginava farsas das quais era o nico a compreender o chiste. Isso, naturalmente, no se dava sem um desdm simulado pela literatura. Nascido em 1783, homem do sculo passado por laos mundanos e filosficos, sentia-se vexado pela nossa grande produo literria, no imaginando que se pudesse viver da pena, nada fazendo para isso, por sinal, e encarando desde o princpio as letras como um entretenimento, uma recreao do esprito, e no como uma carreira. Tentou sucessivamente a pintura, o comrcio, a administrao; em seguida, depois de ter feito a campanha de 1812, seguindo os passos de nossos exrcitos, acabou entrando na diplomacia, para onde o chamava certamente a estrutura de seu intelecto; mas l conservou uma situao modesta, foi durante muito tempo e morreu simples cnsul em Civitavecchia. Seus contemporneos representam-no como mais orgulhoso de seu posto de funcionrio do que de seu ttulo de escritor; conta-se que, quando o Governo de Julho o condecorou, quis absolutamente que essa cruz recompensasse o cnsul, e no o romancista. A posio de Stendhal foi a de um escritor amador. Distinguia-se assim dessa pululao de homens de letras, de dedos manchados de tinta, dos quais tinha horror. Escapava da arregimentao, mostrava pela retrica o desdm de Saint-Simon, permanecia a seus prprios olhos o homem de ao que sempre sonhara ser. A se crer nisso, sua obra permanecia como o acidente em sua existncia.

O que chamarei de legenda de Stendhal partiu da. Apesar do que ele escreveu de si mesmo, apesar do que os contemporneos puderam deixar, nele o homem muito pouco reconhecido. Desconfia-se, teme-se incessantemente uma mistificao com esse esprito complicado que sempre parece desejar "enrolar" a massa, como um diplomata "enrolaria" um rei, junto ao qual ocuparia uma embaixada. Li tudo o que apareceu sobre Stendhal, e declaro no ter avanado mais por isso. Os contemporneos, como Sainte-Beuve, do qual falarei mais tarde, parecem t-lo julgado flor da epiderme. Ele no se entregava absolutamente, e no se fazia nenhum esforo para conhec-lo. Hoje, a tarefa se torna ainda mais difcil. Sei muito bem que o melhor tomar as coisas de forma ingnua, no se deixar aturdir por todos esses subterfgios, dizer que, em suma, as mquinas mais carregadas de engrenagens so com mais freqncia aquelas que ocultam o motor mais simples; o que vou fazer, por sinal. Entretanto eu quis antes de mais nada constatar o estado da questo, mostrando quo pouco, neste momento, conhecemos Stendhal, em conseqncia dos disfarces e das complicaes em que ele se comprouve, de um modo bem natural, sem dvida. Sua natureza estava a.

S nos resta procur-lo em suas obras. o meio mais seguro de chegar a uma verdade, pois as obras so testemunhos que ningum pode recusar. No obstante, deve-se dizer que as obras de Stendhal, at aqui, redobraram a obscuridade em torno dele. Julgadas com paixo, e em sentidos contrrios, so negadas ou aclamadas, sem que ainda exista sobre elas um juzo exato, que coloque em definitivo o autor em seu lugar. Reencontramos mesmo aqui a legenda. No campo dos artistas, citam-se sempre estas palavras de Stendhal: "Todas as manhs leio uma pgina do Cdigo para pegar o tom"; e isso basta para faz-lo execrado pelo bando romntico, enquanto as palavras so aplaudidas pelos raros adversrios da retrica triunfante. A frase pode ter sido dita e reescrita, mas no basta realmente para etiquetar um escritor. Penso que o estudo do papel de Stendhal no movimento de 1830 muito esclareceria a histria desse movimento, pois Stendhal comeou apoiando o romantismo; s se separou dele mais tarde, quando o ato de loucura lrica dos grandes poetas da poca triunfou definitivamente. Hoje, erra-se em acreditar que Victor Hugo criou o romantismo inteiro, apresentando-o com sua originalidade prpria. A verdade que, ao contrrio, ele o encontrou todo formado e apenas o conquistou, por suas poderosas faculdades de retrico; fez dele coisa sua, dobrou-o ao seu despotismo. Dessa forma, viu-se afastarem-se os espritos originais, que no aceitavam ser absorvidos. Stendhal, que era vinte anos mais velho que Victor Hugo, permaneceu nas tradies de estilo do sculo XVIII, muito chocado com a nova linguagem, repleta de zombarias contra esse fluxo de eptetos que ele julgava intil, esses festes e esses astrgalos sob os quais o velho estilo francs perdia sua clareza e sua vivacidade. Acrescentemos que a nfase dos sentimentos e dos caracteres, a demncia e o humanitarismo das obras o vexavam ainda mais. Ele desejava a evoluo filosfica, a revoluo nas idias, mas recusava com toda a sua natureza essa insurreio de carnaval, fantasiando os eternos gregos e os eternos romanos em cavaleiros da Idade Mdia. Da sua expresso sobre o Cdigo, que ainda amotina os artistas e que permaneceu, para muitas pessoas, a caracterstica de seu talento. Na verdade, o documento insignificante. Repito-o, continuamos na legenda.

Escreveu-se muito pouco sobre Stendhal, sobretudo se pensa na massa enorme de artigos e at mesmo de livros que temos sobre Balzac. S conheo trs estudos consagrados sobre Stendhal que realmente contam: os de Balzac, Sainte-Beuve e Taine. Ora, a concordncia est longe de se dar. Balzac e Taine so a favor, Sainte-Beuve contra; acrescento que os trs no me parecem ir ao fundo do tema, que cada um v o romancista por um lado, sem mostr-lo em seu verdadeiro lugar e no papel que representou. Aps ter lido os trs estudos, permanecemos inquietos, no ficamos plenamente satisfeitos, sentimos muito bem que Stendhal ainda nos escapa.

O estudo de Balzac um lan de entusiasmo. Admira tudo, elogia seu rival em frases extraordinrias. E essa admirao era sincera, pois a reencontramos em sua correspondncia. Em 29 de maro de 1839, ele escrevia a Stendhal, aps ter lido o episdio da Batalha de Waterloo em Le Constitutionnel: " feito como Borgognone e Wouwerman, Salvatore Rosa e Walter Scott". Em seguida, depois de ter lido o livro, em 6 de abril, escrevia de novo: "A Cartuxa um grande e belo livro: digo-vos sem lisonja, sem inveja, pois eu seria incapaz de faz-lo, e podemos elogiar francamente o que no de nosso ofcio. Fao um afresco e vs fizestes esttuas italianas [...]. Aqui, tudo original e novo [...]. Explicastes a alma da Itlia". Tudo isso est repleto de boa-f e lan, mas confesso no compreender muito bem as esttuas italianas opostas ao afresco; e, por outro lado, o Borgognone e o Wouwerman, o Salvatore Rosa e o Walter Scott, essa estranha salada de nomes, me surpreendem e me incomodam. Em crtica, creio que no so necessrias idias claras. Balzac sentia fortemente o gnio de Stendhal. Procurou comunicar-nos sua admirao, sem demonstrar a personalidade do romancista, sem nos fazer encostar o dedo no mecanismo desse raro esprito, funcionando, no incio do sculo, nas letras francesas. Se passamos a Sainte-Beuve, encontramos um estudo repleto de bosquejos engenhosos, girando em torno do assunto sem nunca concluir. Isso fino e vazio. Entretanto, Sainte-Beuve deixou-se levar um dia, a propsito de Stendhal, at o ponto de exprimir um julgamento decisivo, o que lhe acontecia bem raramente. Escreveu, num artigo consagrado a Taine:

Uma vez, Taine menciona Stendhal; ele o citar sobretudo em seu livro Filsofos, e o qualificar nos termos do mais magnfico elogio: "grande romancista, o maior psiclogo do sculo". Mesmo que eu tivesse de me perder a invocar da parte de Taine mais severidade nos julgamentos contemporneos, direi que, tendo conhecido Stendhal, tendo-o analisado, tendo relido ainda bem recentemente ou tentado reler seus romances to preconizados (romances sempre mal sucedidos, apesar de belos trechos e, em resumo, detestveis), -me impossvel partilhar da admirao que professam hoje por esse homem de esprito, sagaz, fino, penetrante e excitante, mas desconexo, afetado, privado de inveno

A palavra foi pronunciada, os romances de Stendhal so detestveis.

Em outra parte Sainte-Beuve declara preferir Viagem ao redor de Meu Quarto, de Xavier de Maistre. H aqui, evidentemente, um choque de dois temperamentos diferentes. Deve-se recusar Sainte-Beuve, que, apesar de sua finura de anlise habitual, se atm a uma apreciao superficial. Sem dvida Stendhal desconexo, sem dvida s vezes afetado; entretanto, concluir que seus romances so detestveis, sem fornecer outras razes, sem fazer um esforo para ir mais fundo, arriscar uma condenao sem fundamento, pelo menos apresentar um julgamento brutal, negligenciando fazer-nos conhecer os motivos. O estudo de Sainte-Beuve o discurso de um letrado a quem revolta uma natureza oposta sua, nada explica e no pode concluir.

Com Taine, entramos numa admirao absoluta. Sei que seu estudo sobre Stendhal, publicado em 1866 em seus Ensaios de Crtica e de Histria, no para ele completo e definitivo; ele teria desejado retom-lo, ampli-lo, pois o considera como indigno de Stendhal. Todavia, tambm no encontramos nele as razes muito claras de sua admirao. Inicia com estas linhas: "Procuro uma palavra para exprimir o gnero de esprito de Stendhal; e essa palavra, parece-me, esprito superior". Dessa forma, parte da, e empregando seu procedimento sistemtico atribui a essa palavra, ou melhor, faz derivar dela tudo o que encontra na personalidade de Stendhal. Contentar-me-ei com a citao seguinte. Aps ter dito que Victor Hugo um pintor e Balzac um fisiologista do mundo moral, acrescenta: "No mundo infinito, o artista escolhe seu mundo. O de Stendhal s compreende os sentimentos, os traos de carter, as vicissitudes de paixo, em resumo, a vida da alma". Est tudo dito, a admirao de Taine est explicada. O filsofo que h nele encontrou seu romancista no idelogo Stendhal, como ele prprio o designa, no psiclogo e no lgico ao qual devemos O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma. igualmente desse ponto que partirei; em todo caso, no concluirei como Taine, dizendo, em relao a Julien Sorel, que "semelhantes caracteres so os nicos que merecem que por eles nos interessemos hoje". A frmula literria atual mais ampla e, ainda que colocando Stendhal frente mesmo do movimento, preciso determinar estritamente sua ao e no fechar a via atravs dele, em conseqncia de uma pura admirao de filsofo. Aps os elogios exuberantes de Balzac, o discurso revoltado de Saint-Beuve e a satisfao filosfica de Taine, tempo, creio, de se procurar dizer sobre Stendhal a verdade exata, analisando-o sem parti pris de nenhum tipo e dando-lhe sua verdadeira contribuio ao sculo.

Quando apareceram, os dois principais romances de Stendhal, O Vermelho e o Negro (1830) e A Cartuxa de Parma (1839), no tiveram nenhum sucesso. O estudo to elogioso de Balzac no motivou o grande pblico a l-los; permaneceram nas mos dos letrados, e ainda por cima foram pouco apreciados. foi somente por volta de 1850 que um tipo de ressurreio se produziu. Ela surpreendeu muito Sainte-Beuve, que acabou por se mostrar escandalizado. Em seguida, Taine, exprimindo sem dvida a opinio do grupo de amigos que conhecera na Escola Normal, lanou as palavras de "grande romancista" e "o maior psiclogo do sculo". Assim, declararam abertamente admirar muito Stendhal, sem que fosse mais lido e sem julg-lo melhor. Essa a questo entre os artistas que o negam e os lgicos que o exaltam.

Estudarei nele apenas o romancista, e mesmo assim ater-me-ei a dois de seus romances, O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, negligenciando suas numerosas novelas e no me detendo em sua primeira obra, Armance, Algumas Cenas de um Salo de Paris, publicada em 1827.

II

Para facilitar minha anlise, definirei de incio o talento de Stendhal, em seguida passarei ao exame de seus livros e apoiarei meu julgamento sobre exemplos. Antes de tudo, darei aqui, invertendo a tarefa, uma concluso das notas que tomei ao reler, de caneta em punho, O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma. Entretanto, penso que a nica maneira de ser claro.

Stendhal antes de tudo um psiclogo. Taine definiu muito bem seu domnio, dizendo que ele se interessava unicamente pela vida da alma. Para Stendhal, o homem composto apenas de crebro, os outros rgos no contam. Situa, evidentemente, os sentimentos, as paixes, os caracteres, no crebro, na matria pensante e agente. Ele no admite que as outras partes do corpo tenham uma influncia sobre esse rgo nobre, ou pelo menos essa influncia no lhe parece de modo algum bastante forte nem bastante digna para que nos inquietemos com ela. Alm disso, raramente leva em conta o meio, quero dizer, a atmosfera da qual impregna sua personagem. O mundo exterior mal existe; no se preocupa nem com a casa onde seu heri cresceu, nem com o horizonte onde viveu. Eis, portanto, em resumo, toda a sua frmula: o estudo do mecanismo da alma pela curiosidade desse mecanismo, um estudo puramente filosfico e moral do homem, considerado apenas em suas faculdades intelectuais e passionais e tomado parte na natureza.

E, em suma, a concepo dos dois ltimos sculos clssicos. Sem dvida, as primeiras idias sobre o homem, os dogmas puderam mudar; mas nos encontramos ainda diante de uma metafsica que estuda a alma como uma abstrao, sem desejar averiguar a ao que as engrenagens da mquina humana e que a natureza inteira exercem evidentemente sobre ela. Assim, Taine foi levado a comparar Stendhal a Racine. Diz ele:

Foi o aluno dos idelogos, o amigo de Tracy, e esses mestres da anlise ensinaram-lhe a cincia da alma. Elogia-se muito em Racine o conhecimento dos movimentos do corao, de suas contradies, de sua loucura, e no se observa que a eloqncia e a elegncia pronunciadas, a arte de desenvolver, a explicao sbia e detalhada que cada personagem d de suas emoes lhes retira uma parte de sua verdade [ ] Stendhal no possui em absoluto esse defeito, e o gnero que escolheu ajuda a preserv-lo disso

O paralelo pode no princpio surpreender, mas estritamente justo No poeta trgico e no romancista, o procedimento o mesmo; porm ele empregado com retricas diferentes. sempre, repito, uma psicologia pura, libertada de toda fisiologia e de toda cincia natural.

Num psiclogo, h um idelogo e um lgico. a que Stendhal triunfa. preciso v-lo partir de uma idia para mostrar, em seguida, o desabrochar de todo um grupo de idias que nascem umas das outras, que se complicam e se resolvem. Nada de mais fino, de mais penetrante, de mais imprevisto do que essa anlise contnua. Ele se compraz nisso, desenrola a cada minuto o crebro de sua personagem, para faz-la sentir suas mnimas tortuosidades. Ningum conheceu em semelhante grau a mecnica da alma. Uma idia se apresenta, a engrenagem que vai dar o impulso a todas as outras; em seguida outra idia nasce direita, outra esquerda, outras frente, outras atrs; e h avanos, retornos, um trabalho que se organiza pouco a pouco, que se completa, que acaba por mostrar a alma inteira no trabalho, com suas faculdades, seus sentimentos, suas paixes. Isso enche pginas; pode-se inclusive dizer que a obra feita dessa anlise. O lgico conduz suas personagens com um rigor extremo, no meio dos desvios mais contraditrios na aparncia Sentimo-lo sempre l, friamente atento ao funcionamento de sua mquina. Cada um dos caracteres que cria uma experincia de psiclogo que se aventura sobre o homem. Inventa uma alma com certos sentimentos e certas paixes, lana-a numa seqncia de fatos e se contenta em constatar o funcionamento dessa alma no meio de circunstncias dadas. Stendhal, para mim, no um observador que parte da observao para chegar verdade graas lgica; um lgico que parte da lgica e que amide chega verdade passando por cima da observao.

Mencionam com muita freqncia Stendhal ao lado de Balzac e no parecem ver o abismo que h entre eles. Taine, que os compara, permanece vago. D a Stendhal a psicologia, a vida da alma, e acrescenta para Balzac:

O que que Balzac constatava em sua Comdia Humana? Todas as coisas, diro vocs, sim, mas como cientista, como fisiologista do mundo moral, como doutor em "cincias sociais", conforme ele prprio se denominava, de onde resulta que suas narrativas so teorias, que o leitor, entre duas pginas de romance, encontra uma lio da Sorbonne, que a dissertao e o comentrio so a peste de seu estilo.No compreendo absolutamente a conseqncia que o crtico estabelece aqui. Um doutor em cincias sociais no precisa dissertar nem comentar: basta-lhe expor. Taine observa a natureza do temperamento literrio de Balzac e a apresenta sem razo como o defeito fatal de sua frmula. O que verdade que Balzac partia como cientista do estudo do tema; todo o seu trabalho tinha por base a observao da criatura humana, e achava-se assim levado, como o zologo, a atribuir uma importncia imensa a todos os rgos e ao meio. Deve-se v-lo numa sala de dissecao, escalpelo na mo, constatando que no h apenas um crebro no homem, descobrindo que o homem uma planta provinda do solo, e decidido desde logo, por amor ao real, a nada subtrair do homem, a mostra-lo em sua inteireza, com sua verdadeira funo, sob a influncia do vasto mundo. Enquanto isso, Stendhal permanece em seu gabinete de filsofo, remoendo idias, utilizando do homem s a cabea e contando cada pulsao do crebro. No escreve um romance para analisar um canto de realidade, seres e coisas; escreve um romance para aplicar suas teorias sobre o amor, para aplicar o sistema de Condillac sobre a formao das idias. Tal a grande diferena que h entre Stendhal e Balzac. Ela capital, no provm somente de dois temperamentos opostos mas, ainda mais, de duas filosofias diferentes.

Em suma, Stendhal o verdadeiro elo que liga nosso romance atual ao romance do sculo XVIII. Ele era dezesseis anos mais velho que Balzac, pertencia a uma outra poca. graas a ele que podemos saltar por sobre o romantismo e nos ligar ao velho gnio francs. Entretanto, o que posso sobretudo fixar seu desdm pelo corpo, seu silncio sobre os elementos fisiolgicos do homem e sobre o papel do meio ambiente. Ns o veremos levar em conta a raa em A Cartuxa de Parma; dar esse primeiro passo de nos mostrar italianos reais, e no franceses disfarados; contudo, nunca a paisagem, o clima, a hora do dia, o tempo que faz, a natureza, numa palavra, intervir ou agir sobre as personagens. A cincia moderna ainda no passou, evidentemente, por a. Ele permanece numa abstrao desejada, pe o ser humano parte na natureza e declara, em seguida, que s a alma, sendo nobre, s ela tem prerrogativas na literatura. E por essa razo que Taine, como lgico, declara-o superior. Segundo ele, Stendhal est acima dos outros porque permanece na mquina cerebral, no esprito puro. Isto quer dizer que ele tanto mais elevado quanto desdenha a natureza, castra o homem e se encerra numa abstrao filosfica. Para mim, ele menos completo, eis tudo.

preciso insistir, pois o ponto interessante encontra-se a. Tomem uma personagem de Stendhal: uma mquina intelectual e passional perfeitamente montada. Tomem uma personagem de Balzac: um homem em carne e osso, com a vestimenta e a atmosfera que o envolve. Onde est a criao mais completa, onde est a vida? Em Balzac, evidentemente. verdade, tenho a maior admirao pelo esprito to sagaz e to pessoal de Stendhal. Todavia, ele me diverte como um mecnico genial que faz funcionar diante de mim a mais delicada das mquinas, enquanto Balzac me arrebata por inteiro, pela fora da vida que evoca.

No compreendo o alto e o baixo no homem. Dizem-me que a alma est em cima e que o corpo est embaixo. Por que isso? No me posso imaginar alma sem corpo, e coloco-os juntos. Em que Julien Sorel, por exemplo, que uma pura criao especulativa, superior ao baro Hulot, que uma criatura viva? Um raciocina, o outro vive. Prefiro este ltimo. Se separarem o corpo, se no levarem em conta a fisiologia, j no estaro mesmo na verdade, pois sem descer aos problemas filosficos certo que todos os rgos tm um eco profundo no crebro e que seu funcionamento, mais ou menos bem regulado, ajusta ou desajusta o pensamento. O mesmo acontece com os meios; eles existem, tm uma influncia evidente, considervel, e no existe nenhuma superioridade em suprimi-los, em no faz-los entrar no funcionamento da mquina humana.

Eis, portanto, a resposta que se deve dar aos adversrios da frmula naturalista quando censuram os romancistas atuais por se deterem no animal, no homem e por multiplicarem as descries. Nosso heri j no o puro esprito, o homem abstrato do sculo XVIII; ele o sujeito fisiolgico de nossa cincia atual, um ser que um composto de rgos e que est mergulhado num meio pelo qual penetrado a cada momento. Dessa forma, devemos levar em conta toda a mquina e o mundo exterior. A descrio apenas um complemento necessrio da anlise. Todos os sentidos vo agir sobre a alma. Em cada um de seus movimentos, a alma ser acelerada ou retardada pela viso, pelo cheiro, pela audio, pelo paladar e pelo tato. A concepo de uma alma isolada, funcionando sozinha no vazio, torna-se falsa. mecnica psicolgica, j no vida. Sem dvida, pode haver abuso a, sobretudo na descrio; o virtuosismo arrebata amide os retricos; luta-se com os pintores para mostrar a leveza e o brilho de sua frase. Mas esse exagero no impede que a indicao clara e precisa dos meios e o estudo de sua infncia sobre as personagens sejam necessidades cientficas do romance contemporneo.

Tomarei um exemplo para melhor me fazer compreender. H um episdio clebre em O Vermelho e o Negro, a cena em que Julien, numa noite, sentado ao lado de Renal, sob os ramos escuros de uma rvore, obriga-se a tomar-lhe a mo, enquanto ela conversa com Derville. um pequeno drama silencioso de grande fora, e nele Stendhal analisou maravilhosamente os estados de alma de suas duas personagens. Ora, o meio no aparece uma s vez. Poderamos estar em qualquer lugar, em quaisquer condies, a cena permaneceria a mesma, desde que estivesse escuro. Compreendo perfeitamente que Julien, na tenso de vontade em que se encontra no seja afetado pelo meio Nada v nada ouve nada sente quer simplesmente segurar a mo de Renal e conserv-la na sua. Entretanto, de Renal, ao contrrio, deveria sofrer todas as influncias exteriores. Dem o episdio a um escritor para quem os meios existem, e no infortnio dessa mulher ele introduzir a noite, com seus odores, suas vozes, suas volpias indolentes. E esse escritor estar dentro da realidade, seu quadro ser mais completo.

No se trata, repito-o, de escrever frases, mas de constatar cada uma das circunstncias que determinam ou modificam o funcionamento da mquina humana. Pois bem: essa observao, eu a farei em todos os lugares, nas obras de Stendhal. Prova de superioridade, repetiro. Por que isso? Ele no retrico, e tanto melhor para ele. Todavia, permanece na abstrao, e no vejo em que isso pode coloc-lo acima daqueles que vo s realidades. No h nenhuma razo para que um psiclogo seja um grau mais elevado do que um fisiologista.

Qual , ento, o golpe de gnio de Stendhal? Para mim, est na intensidade da verdade que freqentemente obtm com seu instrumental de psiclogo, por mais incompleto e por mais sistemtico que possa ser. Digo que no via nele um observador. Ele no observa e no descreve, em seguida, a natureza com bonomia. Seus romances so obras de cabea, humanidade quintessenciada por um procedimento filosfico. Ele bem viu o mundo, e muito; contudo, no o evoca em sua rotina real, submete-o a suas teorias e o pinta por meio de suas prprias concepes sociais. Ora, acontece que esse psiclogo, desdenhoso das realidades e por inteiro imerso em sua lgica, desgua, pela pura especulao intelectual, em verdades audaciosas e extraordinrias que nunca ningum havia ousado antes dele no romance. E isso o que me entusiasma. Confesso ser pouco sensibilizado por suas sutilezas de anlise, pelo tique-taque contnuo do relgio que ele faz ouvir sob o crnio de suas personagens; seu movimento me parece, s vezes, discutvel, e por sinal no se trata da vida plena e franca. Filsofos podem se extasiar; um esprito amoroso do que , do que se passa diariamente sob seus olhos, sempre experimentar um mal-estar ao se sentir engajado em teorias mais ou menos paradoxais. Todavia, bruscamente, cenas se abrem e a vida fala. Desse ponto de vista, prefiro O Vermelho e o Negro a A Cartuxa de Parma. No conheo nada de mais surpreendente do que a primeira noite de amor de Julien e Mlle de La Mole. Existe a um embarao, um mal-estar, uma falta ao mesmo tempo estpida e cruel, de rara fora, de tanto que os fatos parecem soar a verdade. Sem dvida isso no observado, deduzido; contudo, o psiclogo se livrou de suas complicaes laboriosas para ascender de um salto simplicidade, direi tolice do real. Eu poderia citar assim vinte trechos em que ele chega a observaes extraordinrias por pouco, apenas pela lgica. Ningum antes dele pintara o amor com mais realidade. Quando no se embaralha em seu sistema, apresenta documentos que desordenam todas as idias recebidas e que denotam clarezas sutis. Pensem nas dissertaes sobre o amor, nas banalidades dos romanos, e observem a anlise to clara e cruel de Stendhal. A est sua verdadeira fora. Se um de nossos mestres, se est frente da evoluo naturalista, no porque foi apenas um psiclogo, porque o psiclogo que existe nele teve bastante fora para chegar realidade, por sobre suas teorias e sem o socorro da fisiologia nem de nossas cincias naturais.

Portanto, para concluir, Stendhal e a transio, no romance, entre a concepo metafsica do sculo XVIII e a concepo cientfica do nosso. Como os escritores dos dois sculos que tem atrs de si, ele no sa