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ZUMBI: DO INÍCIO AO FIM A trajetória dos sem-teto na periferia de Sumaré MIRELA VON ZUBEN

Zumbi: do início ao fim - A trajetória dos sem-teto na periferia de Sumaré

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O livro Zumbi: do início ao fim relata a vida dos moradores da comunidade Zumbi dos Palmares, localizada no Jardim Denadai, na região da Área Cura de Sumaré, durante os cinco anos em que o local existiu. Por meio de relatos de quem passou por ali, as páginas deste livro remetem à realidade de muitos brasileiros que têm de conviver com o problema da falta de moradia. Zumbi, formada a partir do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), escondia, entre as “quase-vielas” de terra e os barracos feitos em madeirite, diversas histórias de vida que servem de exemplo para os guerreiros na luta por um de seus maiores sonhos: o da felicidade de ter um local para viver, adequado para educar seus filhos, sem que corram risco de vida e, acima de tudo, sem perderem a fé num futuro mais próspero.

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A trajetória dos sem-tetona periferia de Sumaré

MIrela Von ZUBen

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A trajetória dos sem-tetona periferia de Sumaré

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A trajetória dos sem-tetona periferia de Sumaré

MIrela Von ZUBen

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m070 Dias, Mirela Maria Von Zuben.D541z Zumbi: do início ao fim: a trajetória dos sem-teto na periferia de Sumaré / Mirela Maria Von Zuben Dias. - Campinas: PUC- Campinas, 2013. 111p.

Orientadora: Márcia Eliane Rosa. Monografia (livro-reportagem) - Pontifícia Universidade Católi- ca de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação, Facul- dade de Jornalismo. Inclui bibliografia.

1. Jornalismo. 2. Jornalismo - Aspectos sociais. 3. Comuni- dade urbana - desenvolvimento. 4. Sumaré (SP) - Movimentos sociais. I. Rosa, Márcia Eliane. II. Pontifícia Universidade Ca- tólica de Campinas, Centro de Linguagem e Comunicação. III. Faculdade de Jornalismo. IV. Título. 22.ed. CDD – m070

Ficha CatalográficaElaborada pelo Sistema de Bibliotecas e

Informação - SBI - PUC-Campinas

RevisãoDaniel Piovezan

CapaThomas Irie

Fotos e diagramaçãoMirela Von Zuben

Contato com a [email protected]

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Dedico a todos os trabalhadores brasileiros,

que fazem do suor um combustível para a vida.

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Agradeço,

meu pai Celso e minha mãe Zezé, por toda a confiança e amor deposita-dos ao longo da vida e por serem os melhores, em tudo;

meus irmãos Lucas e Nicole, pelo crescimento ao meu lado e por me per-mitirem ser o espelho da irmã mais velha;

minha orientadora, professora Marcia Rosa, por ser uma guia nesta cami-nhada e por emprestar toda sua experiência;

os amigos de faculdade Renan, Giulia, Carol, Virgginia e Larissa, por des-cobrirem, ao meu lado, um universo maravilhoso chamado jornalismo;

André, Cecília, Erica, Henrique, Juliana, Karime e Natalia, por serem tão essenciais em minha vida e compartilharem tanto amor junto a mim;

Horacio Marana, por ser um grande companheiro, mestre e exemplo maior de jornalista que poderia encontrar na carreira;

Denise Sciammarella, Ivan Lopes, Fabiana Buzzo e Thais Nucci, chefes mais especiais que já tive na vida, por todo o ensinamento repassado e pelos puxões de orelha;

o professor Fabiano Ormaneze, por me apresentar a essência do Jornalis-mo Literário e por toda a ajuda com o livro;

os que, de alguma forma direta ou indireta, contribuíram para a realização e concretização deste trabalho final;

todas as pessoas que conheci em Zumbi, a Dani e a Guilherme Simões, por abrirem as portas da comunidade e do MTST e me receberem com sorrisos tão largos.

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Sumário

Introdução 11

Um: Moradia 15

Dois: Resistência 29

Três: Cultura 39

Quatro: Voluntários 49

Cinco: Mãe 59

Seis: Fé 67

Sete: Migrantes 77

oito: Voz 87

nove: Destino 97

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Introdução

Este projeto experimental, feito em formato de livro-reportagem, pre-tende mostrar a história de uma comunidade que não existe mais. Zumbi dos Palmares, localizada no Jardim Denadai, na região da Área Cura de Su-maré, foi formada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que ali ficaram por cinco anos – a saída final se deu em setembro de 2013 –, chegando a atingir o contingente de cerca de quatrocentas e cinquenta famílias vivendo no local. Hoje, tais moradores, que tiveram de desocupar o terreno por ordem judicial – o local pertence à empresa Empreendimen-tos Imobiliários Cidade de Paulínia Ltda. –, aguardam a liberação de apar-tamentos pelo Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), do Governo Federal – com previsão de entrega das chaves para o primeiro semestre de 2014, na região do Matão, também em Sumaré – e recebem, enquanto isso, auxílio-moradia da Prefeitura de Sumaré. A conquista da moradia enfim chegou para essas famílias.

Este livro, dividido em nove capítulos, pretende abordar o problema da moradia através dessa comunidade, reportando um problema comum em todo o Brasil. Em Zumbi, os moradores ocuparam o local em 14 de novembro de 2008 e passaram por constantes lutas, acordos e clamores por justiça enquanto estiveram ali, chegando inclusive a negociar com os governos Municipal, Estadual e Federal, além do Ministério Público e do dono do terreno ocupado.

Dessa forma, além de retratar uma realidade brasileira e de documentar a história da comunidade, o livro ainda acompanha os diferentes rumos que algumas famílias tomaram depois da saída da ocupação, relatando as-sim, em formato de perfil, como cada uma delas vive depois desse período de lutas e companheirismo dentro do espaço.

A ideia do projeto surgiu no início de março de 2013, após uma visita feita à comunidade. As condições do local, que carecia de infraestrutu-ra, bem como a personalidade de algumas pessoas, chamaram a atenção. Além disso, também ficou evidente a necessidade da criação de um livro através da possibilidade de retratar a trajetória de uma ocupação desde os seus primórdios, até o seu fim, passando pelo registro da vivência de

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alguns habitantes locais. A partir da primeira visita, e através do contato com uma das coorde-

nadoras do local, foi-se traçando a pauta deste livro, que se aprofundou por meio de conversas com moradores, além de entrevista com um dos coordenadores do movimento dentro do Estado de São Paulo e também do Brasil, Guilherme Simões. A priori, a intenção era a de desenvolver a reportagem acompanhando a rotina dessa população e vivenciar essa ex-periência junto aos moradores. Após duas visitas, foi comunicado então que tais pessoas deveriam sair de lá para que o dono do terreno pudesse dar andamento à construção de um prédio habitacional, que ainda não foi finalizada. A partir disso, ficou decidido que o livro teria um caráter de registro histórico, evidenciando perfis de personagens que representam a essência de uma comunidade de baixa renda que vive na periferia.

O trabalho ganhou dimensões concretas e foi possível traçar o viés do livro no momento em que tais famílias receberam a ordem de despejo final. Buscando em jornais da região, foi encontrado material escasso e com pouca profundidade sobre o tema da comunidade, e encontra-se aí a importância de documentar a situação precária vivida pelos referidos mo-radores, problema que serve de exemplo para retratar situações semelhan-tes presentes no cotidiano de outras comunidades espalhadas pelo Brasil.

Através de um livro, feito em formato de reportagem, pode-se apre-sentar a personalidade e a representatividade – dentro da sociedade – de alguns dos moradores, através da construção de perfis. Também assim é possível documentar elementos característicos da realidade brasileira, tais como a escassez ou mesmo falta de cultura, educação, lazer; acessibilidade a energia elétrica, telefone, saneamento básico, comida e água; religião e demais circunstâncias em suas mais diversas formas.

A linguagem usada para desenvolver o texto define o estilo do livro, com a autora colocando-se, inclusive, como personagem da história, já que chegou a conviver com os moradores da ocupação durante o trabalho desenvolvido em campo. Assim como o registro fotográfico, usado para compor a capa do livro, a diagramação foi feita pela jornalista, a fim de que o trabalho saia por completo de suas próprias mãos.

O livro está dividido, então, em nove capítulos: o primeiro abordará a problemática da moradia no Brasil como um todo, além de apresentar a

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chegada das famílias ao local, a forma com que a comunidade foi cons-truída, bem como a sua localização por parte do Movimento, e quais os direitos previstos para o cidadão com relação à moradia. Já os capítulos seguintes trarão cada um uma questão recorrente dentro de comunidades de baixa renda, através do perfil dos personagens: a resistência das famílias para manterem-se no local; a cultura própria da comunidade, com o uso de elementos e estilos musicais como o rap; a presença efetiva de grupos de voluntários, vindos de universidades da região, para proporcionar um enriquecimento cultural através de aulas de teatro, circo e educação bá-sica; a existência de mulheres que criam seus filhos sozinhas, sem ajuda de cônjuge; a caminhada dos migrantes brasileiros que vieram de outros estados e cidades em busca de moradia; a importância e a necessidade de uma religião, uma fé, algo que sirva como apoio nos inúmeros momentos em que as pessoas se veem em situações difíceis; a presença de um ou mais porta-vozes para manter a organização das comunidades e, por fim, o destino final das famílias retratadas nos outros capítulos.

É comum que o mundo de Zumbi seja visto pelo imaginário popular como um lugar em que existe apenas violência, tráfico e uso de drogas, degradação física e mental e uma gama de problemas relacionados à saúde, educação e saneamento básico. Assim como em qualquer lugar no país, tudo isso também acontece lá, mas não é a parte negativa que faz de tal ocupação um lugar mágico. Pelo contrário, a positividade, a esperança e principalmente a união entre os moradores elevam Zumbi ao extremo do que serve de exemplo para qualquer ser humano: o da força de vontade e da persistência no sonho de procurar o que cada um tem como objetivo na eterna busca pela felicidade.

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Em vez de casas, eles viviam em barracos, feitos de madeira e panos improvisados. O sistema de água e esgoto era escasso e o risco de vida, constante. Em Sumaré, cidade do interior de São Paulo, a situação parecia demonstrar uma necessidade de atenção especial. A Comunidade Zumbi dos Palmares, localizada em uma região considerada de baixa renda – em comparação com outros bairros de Sumaré –, foi criada a partir do Movi-mento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e retrata uma realidade vivida por milhares de brasileiros. É a frustração pelo sonho ainda inalcançado da moradia ideal.

Não há como escapar do perigo quando se vive à beira da pobreza. Es-tive no local no início de 2013 e o que vi lá foi impressionante. Ninguém pode viver temendo uma simples rajada de vento (porque se ela chegar, pode colocar sua casa literalmente para baixo), ainda na incerteza de seu próximo destino.

Essas pessoas que conheci em Zumbi têm muita história para contar. Vieram de lugares diferentes deste país tão enorme e lá viveram por cinco anos, até serem despejadas no final de julho.

Antes de começar com o passeio pelas ruas estreitas da comunidade, é importante resgatar um pouco do que é o MTST. Em conversa com Guilherme Simões, um dos coordenadores estaduais e nacionais do Movi-mento, foi possível encontrar a resposta para muitas questões.

Criado em 1997, coincidentemente na região de Campinas, o MTST hoje realiza lutas em seis estados brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Ceará, Roraima e Tocantins), com atuação nas regiões metropolitanas.

Qualquer pessoa que more na região de Campinas já ouviu falar do Parque Oziel, uma ocupação enorme que fica às margens da Rodovia San-tos Dumont – que liga o Centro de Campinas ao Aeroporto de Viracopos e a Indaiatuba, cidade vizinha. Pois bem. Podemos dizer que o Parque Oziel é o primeiro filho do MTST. Sua primeira ocupação se deu ali, en-raizado ainda na “mãe”: o Movimento dos Sem-Terra (MST). Um deu origem ao outro, mas foi depois do Oziel que os Sem-Teto começaram a dar seus primeiros passos no território verde-amarelo.

Simões explicaria melhor a bandeira do Movimento. Fui então me encontrar com ele na capital paulista. Em cerca de uma hora de conversa,

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Simões, que é formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp), abriu o mapa do Movimento para mim. Perguntei a ele como é feita a seleção de terrenos que futuramente serão ocupados e ele me contou que vários fatores são tidos como determi-nantes. “Você tem um critério muito importante que é o de o terreno estar em uma região estratégica, com concentração de pobreza, no caso, lugares mais precarizados, que podem ser definidos como as regiões em que existam favelas, ocupações... e o outro elemento é a importância eco-nômica e política da região.” Segundo ele, a RMC (Região Metropolitana de Campinas), o ABC Paulista (compreende as cidades de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra) e a região sudoeste de São Paulo são as mais visadas pelo MTST, até mesmo pela ligação com importantes rodovias dentro do Estado.

“A gente faz a ocupação preponderantemente nas periferias urbanas, então é uma escolha de terrenos de preferência grandes e improdutivos, inutilizados. Vários terrenos nas regiões metropolitanas são utilizados para enriquecer o proprietário para movimentar a especulação imobiliária, uma das atividades mais lucrativas hoje no país junto com a indústria da cons-trução civil.” Além desses fatores, o Movimento também pesquisa, de for-ma “amadora”, segundo Simões, se o terreno é público ou privado, se o proprietário tem dívidas, entre outras complicações.

Durante a conversa, Simões também apresentou dados e relatos sobre a comunidade sumareense. O terreno que eles encontraram no Jardim De-nadai, segundo Simões, veio em 2008 posterior a outra ocupação, feita em Campinas. O terreno, de propriedade de uma empresa do interior de São Paulo chamada Empreendimentos Imobiliários Cidade de Paulínia Ltda., es-tava abandonado há alguns anos, sem que houvesse nenhuma aparente uti-lização do espaço, que era tido como um “vazio urbano”, segundo Simões.

Zumbi veio a nascer só em novembro, mas em fevereiro do mesmo ano, próximo à Avenida das Amoreiras, na região Sudoeste de Campinas, o MTST ocupou um terreno, paralelo a outras duas ocupações também no estado de São Paulo. O local recebeu o nome de Frei Tito e durou entre duas e três semanas, até que chegasse a ordem de despejo, após negociação frágil

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com os governos Estadual e Municipal. “Dentro do objetivo de territoria-lizar o Movimento estadualmente, permanecemos na região e optamos por fazer uma ocupação no entorno, na região metropolitana, que se resumia naquele momento a Hortolândia e Sumaré”, como explica Simões.

Com aliados ali perto, os integrantes do Movimento encontraram o terreno, que veio bem a calhar pelo tamanho e também pela proximidade com a Rodovia Anhanguera (importante via de acesso ao interior do Es-tado e à Capital). “Esta é uma região que politicamente é importante pro Estado e que, exatamente por isso, produz uma pobreza absurda. O lugar para onde vão os ainda mais pobres de Campinas é o entorno, as perife-rias. É o que acontece em São Paulo (Estado) com Taboão da Serra, por exemplo”, explica o coordenador.

Foi no boca a boca que o pessoal do bairro e da região como um todo ficou sabendo que a ocupação ia acontecer. Simões conta que o processo é simples: alguém que mora no bairro conhece os integrantes do Movimen-to e ele mesmo conversa com as famílias para chama-las a uma reunião de apresentação da ação.

Em Sumaré, por exemplo, o contato de Simões levou apenas uma pes-soa no primeiro encontro. Mesmo um pouco desanimados, eles conversa-ram com o homem presente e, na reunião seguinte, o mesmo chegou com mais cinquenta pessoas. Esperançosos, fizeram uma terceira reunião – isso tudo cerca de três meses antes de ocuparem o terreno – que já chegava às duzentas pessoas. Conclusão? No dia da ocupação, seiscentas pessoas – que vinham de diferentes cidades da região, principalmente de Sumaré, Hortolândia e Campinas – marcaram presença, coisa rara de se acontecer em uma ação em área urbana, segundo Simões. “Foi muito rápido. Ocu-pamos com mais de seiscentas pessoas ainda de madrugada e aí, quando amanheceu o dia, você já tinha mais de mil pessoas na área, uma ocupação gigantesca, revelando o déficit habitacional gritante.”

O déficit (nome dado para a quantidade de casas que ainda faltam para as famílias do país) ao qual ele se refere, aliás, mostra a realidade de pobre-za brasileira. Segundo dados de 2008 – e mais recentes – da FJP (Funda-ção João Pinheiro), instituição localizada em Minas Gerais e especializada neste tipo de levantamento, o déficit chegou aos 9,6% da população total,

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cerca de 5,54 milhões de domicílios. Em São Paulo, a porcentagem é de 9,4%. O que mais agrava é a quantidade de famílias sem lugar para morar na região Sudeste. Desde que o dado foi publicado, o déficit era de 36,9%, correspondente a 2,046 milhões de unidades habitacionais.

“Tem gente lá (no Jardim Denadai) morando de favor, em área de ris-co, e é uma situação bastante calamitosa. Você olha uma casa que tem duas, três, quatro famílias e quando você faz uma ocupação, é dali que as pessoas saem.” Ele explica ainda que as pessoas daqui do Brasil não são iguais às dos Estados Unidos, por exemplo. Lá, ele conta que os “home-less”, ou seja, os sem-teto, são na verdade os mendigos, moradores de rua. “Não é o caso daqui. Embora existam alguns, essencialmente 99,9% das pessoas vêm de aluguel, de favor, ou área de risco. Essa é a condição do sem-teto brasileiro”, conta Simões, que inclusive morou um tempo com o pessoal do Zumbi.

Lá, ele conta que a instrução era de construir barracas de lona, exata-mente pela incerteza de quanto tempo a família ia ficar no local. “A gente pede para a pessoa trazer a madeira mais barata que tiver e lona mais ba-rata também, porque a gente não ilude ninguém. Não vendemos ilusão.” Segundo ele, dependendo do andamento de cada processo na conquista da moradia, eles liberam a construção dos barracos, o que foi o caso do Zumbi.

Os moradores da ocupação tiveram uma ordem de despejo com a rein-tegração de posse após um mês de ocupação, mas conseguiram voltar para lá com uma liminar, que estendeu o processo por mais seis meses.

As negociações com o Ministério Público, a Prefeitura de Sumaré e o proprietário do terreno estavam bem complicadas e, em meados de 2009, o MTST resolveu montar acampamento em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, em frente ao prédio em que vivia o então presidente do Brasil na época, Luiz Inácio Lula da Silva.

Com a visibilidade que eles conseguiram em quatro dias de acampa-mento, o Governo Federal passou a dar mais atenção ao caso de Sumaré, um dos maiores motivos, segundo Simões, para esta ocupação em São Bernardo. Após isso, as negociações foram entre os governos Federal, Estadual e Municipal, o Ministério Público, o proprietário do terreno ocu-

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pado e, claro, o Movimento. Foi dessa forma que eles conquistaram as moradias para as famílias do Zumbi e a Prefeitura, aproveitando-se da situação, ainda conseguiu verba para a construção de mais quatro mil ha-bitações que estavam em débito com a população sumareense.

“Você vai morar em um lugar e nenhum agente do Estado te garante nada, com o argumento de que você é um invasor, portanto não é cidadão, então sendo assim não tem direito de absolutamente nada, nem de recla-mar. É assim que você é tratado. As pessoas, morando lá, sem ter direito a moradia, tem que recorrer a uma ocupação... Imagine viver sem água e luz, num barraco de lona, com três, quatro, cinco, seis filhos. Não é sim-ples. E agora, como é que faz? Porque o que é regular não nos é permitido também. Fizemos do nosso jeito, porque é assim que o Brasil foi feito, na verdade”, afirma o coordenador do Movimento.

Depois de cinco anos de constante luta, que incluiu até manifestações em rodovias e prédios públicos, hoje a ocupação não existe mais, a não ser nas lembranças de quem viveu por lá. Fiz algumas visitas durante os dias finais do Zumbi e vi muita coisa por lá. Mesmo assim, a conquista maior da moradia própria chegou para esse pessoal que aguarda ansioso pelos apartamentos que vão ganhar da Prefeitura, hoje em construção na região do Matão.

O problema com a comunidade parece pequeno diante do tamanho do país, mas fora de Sumaré, a situação não é diferente – a moradia hoje no Brasil ainda tem trazido dores de cabeça para muitas pessoas.

Nos estudos de 2008 da FJP, ficou constatado que 88% das famílias com renda mensal de até três salários mínimos – naquele ano, o total seria de R$ 1.245,00 – não possuem uma moradia considerada adequada, ou seja, com energia elétrica, rede de água e esgoto à disposição, sem exces-so de moradores (o excesso é considerado a partir do momento em que existe menos de um quarto por pessoa dentro da casa), ou com ônus em demasia com aluguel.

O problema maior se vê na carência de infraestrutura (segundo a pró-pria FJP, em seu relatório divulgado em 2008, a carência depende dos seguintes fatores: iluminação elétrica, abastecimento de água com canali-zação interna, rede geral de esgotamento sanitário ou fossa séptica e coleta

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de lixo regular pelo menos duas vezes por semana)¹. No Brasil todo, cerca de 10,9 milhões de famílias estão a ver navios neste quesito. Na Região Sudeste, o número chega a 2,1 milhões e, em São Paulo, a quase 574 mil famílias. Ainda que existam tentativas de solução do problema como o Estatuto das Cidades e o Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal (que dá assistência às famílias consideradas de classe baixa para que possam financiar sua moradia a preços baixos e períodos largos), o Brasil ainda sofre, parte por conta da cada vez mais forte especulação imobiliária, parte pela falta de leis mais rigorosas pela defesa do cidadão (que serão apresentadas em capítulos mais adiante).

No capítulo 2 da Constituição, artigo 6º (em emenda de 2010), está determinado que a moradia – bem como a educação, saúde, alimentação, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados – é direito social de qualquer cidadão brasileiro.

Ainda dentro da própria Constituição, que é a base de parâmetro dos direitos e deveres da população brasileira dentro do território nacional, existem outras citações quanto à questão da moradia. É dever do Estado promover programas de construção de moradia, bem como trazer melho-rias para as condições habitacionais e de saneamento básico.

Já para os proprietários de grandes terrenos que não os utilizam de for-ma adequada, ou que o deixam por muito tempo ociosos visando algum benefício para longos anos depois, a Constituição também determina que o Poder Público municipal exija, de tais donos, que se adequem ao bom aproveitamento do local. Caso contrário, a pessoa física ou jurídica fica passível de penas, tais como aplicação de impostos progressivos e desa-propriação do terreno.

Antes mesmo da Constituição, em âmbito federal, a Declaração Uni-

1. Disponível em: MINISTÉRIO DAS CIDADES; SECRETARIA NACIONAL DE HABITAÇÃO. Déficit habitacional no Brasil 2008. Brasília: Ministério das Cidades, 2011.

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versal dos Direitos Humanos, proclamada em dez de dezembro de 1948, tem também um espaço específico para a moradia: “Toda pessoa tem di-reito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de de-semprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.”

Quem pode definir com contundência o direito à moradia é a Organi-zação das Nações Unidas (ONU) que, desde o ano 2000, mantém a Rela-toria Especial, que cuida deste segmento de necessidade do ser humano. O site, direitoamoradia.org é um canal adequado para todo e qualquer cida-dão receber instruções de como fazer denúncias, além de o local servir de canal para informações sobre a questão. Em um dos tópicos importantes ali dentro, que se encaixa – qualquer semelhança não é mera coincidência – com a situação dos moradores de Zumbi, estão elencados os tópicos para uma moradia adequada:

“• Segurança da posse: Todas as pessoas têm o direito de morar sem o medo de sofrer remoção, ameaças indevidas ou inesperadas. As formas de se garantir essa segurança da posse são diversas e variam de acordo com o sistema jurídico e a cultura de cada país, região, cidade ou povo;• Disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos: A moradia deve ser conectada às redes de água, saneamento básico, gás e energia elétrica; em suas proximidades deve haver escolas, creches, pos-tos de saúde, áreas de esporte e lazer e devem estar disponíveis serviços de transporte público, limpeza, coleta de lixo, entre outros.• Custo acessível: O custo para a aquisição ou aluguel da moradia deve ser acessível, de modo que não comprometa o orçamento familiar e per-mita também o atendimento de outros direitos humanos, como o direito à alimentação, ao lazer etc. Da mesma forma, gastos com a manutenção da casa, como as despesas com luz, água e gás, também não podem ser muito onerosos.• Habitabilidade: A moradia adequada tem que apresentar boas con-dições de proteção contra frio, calor, chuva, vento, umidade e, também, contra ameaças de incêndio, desmoronamento, inundação e qualquer

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outro fator que ponha em risco a saúde e a vida das pessoas. Além disso, o tamanho da moradia e a quantidade de cômodos (quartos e banhei-ros, principalmente) devem ser condizentes com o número de moradores. Espaços adequados para lavar roupas, armazenar e cozinhar alimentos também são importantes.• Não discriminação e priorização de grupos vulneráveis: A moradia adequada deve ser acessível a grupos vulneráveis da sociedade, como idosos, mulheres, crianças, pessoas com deficiência, pessoas com HIV, vítimas de desastres naturais etc. As leis e políticas habitacionais devem priorizar o atendimento a esses grupos e levar em consideração suas necessidades especiais. Além disso, para realizar o direito à moradia adequada é fundamental que o direito a não discriminação seja garan-tido e respeitado.• Localização adequada: Para ser adequada, a moradia deve estar em local que ofereça oportunidades de desenvolvimento econômico, cultural e social. Ou seja, nas proximidades do local da moradia deve haver oferta de empregos e fontes de renda, meios de sobrevivência, rede de transporte público, supermercados, farmácias, correios, e outras fontes de abastecimento básicas. A localização da moradia também deve permitir o acesso a bens ambientais, como terra e água, e a um meio ambiente equilibrado.• Adequação cultural: A forma de construir a moradia e os materiais utilizados na construção devem expressar tanto a identidade quanto a diversidade cultural dos moradores e moradoras. Reformas e moderni-zações devem também respeitar as dimensões culturais da habitação.” ²

O dia-a-dia em Zumbi

Enquanto as negociações se desenrolavam entre as partes, na ocupação o clima era de organização. Para que as famílias se sentissem

2. Disponível em: http://direitoamoradia.org/?page_id=46&lang=pt. Acesso em 30 out. 2013, 21:47.

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bem assistidas pelos integrantes do Movimento que, afinal, as haviam le-vado até lá, Simões relata que a comunidade foi dividida em grupos, que depois seriam chamados de brigadas, e de dentro de cada um deles saiu um coordenador interno, que traria um cuidado melhor com as famílias. Tive o prazer de conhecer quase todos eles ali. Aliás, elas.

As coordenadoras do Zumbi davam assistência sempre que podiam e agiam como “mães” do pessoal que morava ali. Eram elas Daniela, Márcia, Rafaela e Dione. Quatro mulheres comuns, mas que ali representavam tudo. Resolviam desde nascimento, até velório. Desde a chegada, até a partida de habitantes.

As ruas da comunidade eram características de um local em situação precária de sobrevivência. Vielas estreitas, com chão de terra batida, em que poucos carros conseguiam passar, situação que se agravava com a lama, quando chegavam as temporadas de chuva. Em vez de muros, as casas chamavam a atenção por sua estrutura não tão firme como a de uma moradia em alvenaria. Lá, tudo era feito de madeira e telhas, com uma pi-tada do famoso “jeitinho brasileiro”: tampa um buraco aqui com plástico, ali com outros remendos de madeira, e por aí vai.

Mas a aparência não era a única coisa que chamava a atenção; o nome das ruas também fazia jus a uma terra de guerreiros. Só para citar algumas: Chi-co Mendes, Che Guevara, Helenira Rezende, Elis Regina, Revolução Russa, Rua dos Companheiros, Rua da União, Cora Coralina, Dandara, Alexandra Kolontai e Charles Chaplin, além, é claro, da via principal, a Avenida Zumbi.

Por fora da comunidade, o principal acesso se dava pela Rua Luciano Ramos Ayala. Ali, o asfalto não era de melhor qualidade e o problema se evidenciava principalmente pela grande quantidade de buracos presentes em sua extensão. Mesmo assim, alguns serviços estavam ao alcance da população: na mesma rua, havia a Escola Estadual Professora Maria Ivone Martins Rosa, o Posto de Saúde do Jardim Denadai e o 5º Distrito Policial de Sumaré. Não na mesma rua, mas nas imediações, havia também super-mercado, farmácia e outras instituições públicas de ensino. Tudo estava logo ali, a um passo dos moradores.

Em Zumbi, a vida começava cedo. Já de manhã, a criançada dava seus primeiros bocejos para seguirem em direção à escola que, por sorte,

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ficava a cinco passos da comunidade, com os portões ainda virados para a entrada da ocupação. Os adultos, por sua vez, se empenhavam nas tarefas domésticas.

“Bom dia Tia Laura, tem café aí pra gente?”, perguntava Daniela, uma das coordenadoras do local, para sua vizinha Laura. “Claro que tem, filha, entra aqui.” Era nesse clima de companheirismo que o sol nascia no Zumbi. Ali, todo mundo se conhecia muito bem, tamanha a cumplicidade dos amigos.

Do outro lado da rua, local em que ficava a escola, também existia um posto de saúde e uma delegacia da Polícia Civil, o chamado 5º DP de Sumaré. No postinho, a luta foi constante até que o pessoal de Zumbi conseguisse atendimento.

Eles tiveram que fazer uma lista com os nomes de todos os moradores e entregar em mãos dos responsáveis pelo posto. Assim, toda vez que alguém precisasse de atendimento médico, “respondia a chamada” na lista e já era tratado.

Na Avenida Zumbi, o espaço era da juventude. Os meninos, com idade variada, se aglomeravam em grupos de cinco ou seis e ficavam batendo papo o dia todo (a não ser no horário em que tinham aula). Alguns davam as caras andando de bicicleta e se vestiam como o típico moleque brasilei-ro: boné, óculos com lentes coloridas espelhadas, camiseta mais larga que o corpo, shorts no estilo surfista e um par de chinelos de cores discretas.

As meninas, ao contrário, chamavam a atenção. Passavam cumprimen-tando todo mundo e desfilavam pela Avenida Zumbi. Sentiam o chão da-quele lugar como se fosse uma passarela cheia de holofotes. E muitas delas eram bonitas, aliás. Mesmo assim, elas eram minoria em comparação com a rapaziada da comunidade.

No meio de Zumbi, existia uma árvore bem grande, que servia de ponto de encontro de todo mundo. “A gente ia marcar de se encontrar em algum lugar, era sempre ali”, contava Daniela. O lugar poderia ser facil-mente comparado com uma praça daquelas que existem em cidadezinhas de interior, local onde toda a cidade se encontra nos finais de tarde domi-nicais para colocar o assunto em dia. Na comunidade, também funcionava assim. A diferença é que ali, a “praça” era formada somente pela árvore. Ao redor, muitos barracos e um pequeno espaço livre para que todo mun-

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do pudesse se reunir à vontade.A entrada pela avenida principal era grande, talvez desse até para passar

um caminhão, não fosse o número de buracos presentes na estrada. Da rua, de asfalto, era só pegar uma subidinha, que tinha algumas árvores bem pequenas, além de alguns pneus colocados na lateral, usados para proteção do local mesmo. Olhando de longe, o espaço parecia menor, mas na medida em que as pessoas davam os passos, o local ia abrindo espaço para ruas que pareciam não ter fim. Olhando para cima, era possível ver um emaranhado de fios pelos postes feitos em madeira, provenientes do famoso “gato” (prática comum com mais frequência nas periferias brasi-leiras, em que a pessoa faz uma ligação entre os fios de energia elétrica da rua para poder ter luz dentro de sua casa). Neste quesito, aliás, a Prefeitura de Sumaré “ficou devendo.” Segundo Simões, dentro do acordo com a ocupação, a administração pública havia se comprometido a colocar ener-gia elétrica para todo mundo lá dentro. Em vez de ligar casa a casa, ela apenas colocou os postes (de má qualidade, por sinal) e fez a iluminação das ruas. Mas dentro de casa? Nada.

Fora isso, o local tomava forma mesmo é com a presença das famílias. Sem elas, tudo não passaria de um amontoado de madeira sem vida alguma. Mas foram elas que lutaram pelo espaço durante todos os cinco anos de existência até que, finalmente, conseguiram o que queriam: realizar o sonho de ter a casa própria. Hoje, ninguém mais mora ali. No lugar dos barracos, o dono do terreno constrói um conjunto de prédios, que abrigará outras fa-mílias sumareenses também através do Programa Minha Casa Minha Vida. Mas as famílias de Zumbi? Elas têm muita história para contar.

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A história de Andreia Mariano de Souza, 30 anos, até então desem-pregada, mistura lágrima e suor ao mesmo tempo. No dia três de julho de 2013, ela foi acordada de sopetão no início da manhã com um susto que lhe tirou as palavras e a voz. Uma das máquinas amarelas da construção dos apartamentos, que àquela altura já estavam a todo vapor, acabou pas-sando por cima de um barraco vizinho e as crianças que estavam lá saíram gritando em tom de desespero pela ocupação. Mas tudo não passava de um ledo engano, já que o maquinário atravessou os limites da construção sem querer. A partir dali, com o susto, Andreia sentiu que deveria aban-donar o local o quanto antes, sem o auxílio-moradia que esperava ansio-samente desde que chegara ali, cinco anos atrás, com o marido – tempo suficiente para a resistência daquela mulher ser testada mais de uma vez.

A moradia de Andreia ficava ao lado esquerdo da entrada de Zumbi, uma das localizações mais perigosas ali no meio, visto que fazia uma espé-cie de fronteira com a outra parte do terreno, já tomada pelo novo empre-endimento. Dessa forma, seria fácil alguma das máquinas ou dos tratores atingir tanto o barraco dela, quanto os dos colegas mais próximos – e foi o que aconteceu.

No dia em que me encontrei com ela, seu barraco se assemelhava muito às casas de boneca antigas, feitas em madeira, que tinham só três paredes – uma atrás e outras duas em cada lado, com a frente aberta para que as meninas pudessem manusear suas bonecas ali dentro, pelos cômodos. O local estava desse jeito justamente pelo incidente com a máquina, já que no momento a quarta parede acabou vindo abaixo junto com a casa do vizinho.

Sentada à frente do barraco – rodeado de ar permeado por terra e de algumas bananeiras distribuídas sem uniformidade – numa cadeira de aço e madeira pintada em tons pasteis, com a cabeça apoiada nos braços, que se acomodavam como uma tonelada nas pernas, Andreia recepcionava a vida com o rosto tomado pela frustração. Os olhos profundos, escuros e embebidos pelas lágrimas traziam um semblante de certa forma ator-doante. Ao seu lado estava um carrinho de bebê, que ela balançava com movimentos repetitivos usando o braço direito, denunciando que a criança ali dentro – o filho Jedimael – precisava de descanso físico e mental tanto quanto ela.

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Antes de colocar os pés no solo de Zumbi pela primeira vez, a mu-lher, que tinha cara de moça, uma voz convincente e trejeitos de vaidade na forma de andar e agir – não fosse pela ocasião em que o susto lhe colocou à beira do desespero – havia passado com a família pela Flaskô – indústria localizada em Sumaré, no Jardim São Judas Tadeu, ocupada por trabalhado-res há dez anos¹. Lá, ela contava, ficou sabendo que a ocupação no Jardim Denadai estava prestes a ser consolidada e não hesitou em participar. “A gente se reuniu dentro de um caminhão, que trouxe todos para o relento.”

Grávida do filho Adryan naquela época, tinha ido acompanhar o mari-do Gedimael Moraes, na época com 25 anos, no árduo trabalho da cons-trução de sua barraca. Ela relembrava que, naquele dia, o homem tinha sido um dos que ajudaram a carpir o terreno enorme com enxada durante toda a madrugada. “Chegamos lá com um colchão de solteiro. A gente também comprou uma lona azul e um pedaço de caibro e montamos as-sim mesmo o nosso barraco de lona”.

A memória dos dias que lhe seguiram na ocupação estava um pouco fa-lha e não conseguiu se recordar com exatidão da primeira reintegração de posse pela qual passou. “Parece que foi depois de dois ou três meses.” Na verdade, o despejo aconteceu um mês depois da formação da ocupação, segundo relato de Guilherme Simões, coordenador estadual e nacional do Movimento, que chegou a morar com o pessoal por algum tempo tam-bém. “Conseguimos reverter a liminar, quebrar, suspender a reintegração de posse com recurso jurídico e voltamos para a área. Coisa de quatro dias depois do despejo, quatro ou cinco dias depois do despejo.”

Numa dessas, todas as famílias que estavam lá tiveram de sair do local e, como conta Andreia, foram todos levados de ônibus para um espaço em Nova Veneza, outra região da cidade. “Lá, umas mulheres deram comida de doação para nós”, retomava na memória.

A destruição dos barracos nessa reintegração de posse tinha sido com-pleta. Simões afirmou que tudo ficara desmanchado. “Os tratores derru-

1. Disponível em: http://www.fabricasocupadas.org.br/. Acesso em: 13 out. 2013, 17:35.

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baram tudo e a gente retornou depois com a quebra da liminar”. Nessa volta, o número de famílias aumentou, todo o terreno foi tomado por um mar de barracos sem fim e, dali em diante, até o final de todo o processo de negociação com as outras partes, os moradores permaneceram até o efetivo término da ocupação.

Daniela Cristina de Moraes, uma das coordenadoras locais da ocupa-ção, afirmou que, tanto na reintegração de posse, quanto nos instantes finais de existência de Zumbi, eles não foram vítimas de violência física durante o despejo, mesmo com a presença da Polícia Militar, responsável pela retirada das famílias.

A Prefeitura Municipal de Sumaré, no entanto, informou que ten-tou dar todo o apoio possível às famílias pertencentes à ocupação. Ela afirmou, por meio de nota através da assessoria de imprensa, que o benefí-cio do auxílio-moradia, aquele que Andreia acabou perdendo, foi firmado após a segunda tentativa de reintegração de posse, que deveria acontecer em março de 2009. Trecho da nota está transcrito a seguir:

“Mais de 450 famílias viviam na ocupação. Havia uma ação de rein-tegração de posse que obrigava a desocupação da área que deveria ser cumprida em março. Antes disso, no entanto, a Prefeitura de Sumaré iniciou uma série de reuniões com integrantes do movimento e chegou a um acordo: cerca de 285 famílias (as que estavam inicialmente na ocupação, em 2009) seriam beneficiadas pelo auxílio-moradia custeado pelo Poder Público (benefício de até 80% do salário mínimo nacional vigente que é utilizado para pagamento de aluguel).O Município não conseguiria custear o benefício para todas as 450 famílias, sendo que muitas eram de outras cidades (como Campinas e Hortolândia) e outras não estavam dentro daquele primeiro acordo firmado no início da ocupação. No entanto, estas famílias receberam apoio social da Prefeitura. O Município se comprometeu a ajudá-las na busca de outras formas de inclusão social, junto a outros órgãos e também junto aos seus municípios de origem. Elas também poderão ser beneficiadas com unidades habitacionais (assim como aquelas que, hoje, estão incluídas no auxílio-moradia), caso se enquadrem nos critérios

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exigidos pelo Programa Minha Casa, Minha Vida.”

Considerando que o valor atual do salário mínimo no Brasil é de R$ 678, uma família inteira, independentemente do número de filhos e/ou moradores sob o mesmo teto, poderia receber, da ajuda vinda da Prefeitu-ra, até R$ 542,40. O valor, mesmo que usado para o auxílio no pagamento de uma casa, não cobriria por completo esta despesa.

A maior violência sofrida tanto por Andreia, como pelos outros moradores, foi psicológica, pelo que foi possível concluir na convivên-cia. Ela relatou que por diversas vezes sentiu-se triste dentro de seu lar na ocupação. Enquanto relembrava tais momentos, chegou a derramar lágrimas, que denunciavam sua fragilidade diante da condição em que se encontrava.

Depois de erguido seu barraco e com o filho já recém nascido, passou por uma situação nada agradável: os caibros que haviam sido colocados para dar sustentação à moradia, de um dia para o outro, foram furtados, e a mulher entrou em estado de choque. “Chorei tanto que parecia que os meus pontos (do parto de seu filho) iam estourar. As pessoas acham que o que eu falo é exagero, mas passamos por muitas dificuldades aqui e acontecer uma coisa dessas acaba com a gente”.

Outro perrengue dos grandes vivido por Andreia aconteceu enquan-to ela tentava fazer o cadastro para entrar no rol de beneficiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida e conquistar assim, pelo menos, o au-xílio-moradia. No dia em que a assistente social foi até a ocupação para recolher os nomes e dar entrada para o cadastro, Andreia contava que estava na casa da sogra, que ficava no Bom Retiro, também em Sumaré, e quando chegou já haviam entregado a última senha para chamada. “Naquele dia a gente decidiu ir embora da ocupação e fomos morar com a minha sogra”, relembrava.

Ainda que temporariamente, a mulher se cansou de ficar rodeada de barracos lotados de gente com muita esperança ainda. Mas ela não havia desistido. Uma de suas sobrinhas, que também residia em Zumbi, deci-diu ir embora para a capital paulista e deixou o barraco de presente para Andreia que, cansada de depender de terceiros para sustentar e cuidar

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da família, topou voltar para lá. “Acho melhor morar aqui do que ter que ficar na casa dos outros”, afirmava, referindo-se ao relacionamento conturbado que tem com a mãe do marido. O casal, decidido pelo re-torno, comprou algumas telhas e uma caixa d’água e bateram à porta da ocupação mais uma vez.

Depois de consolidar sua presença em Zumbi, mas ainda vivendo na incerteza da conquista final da tão sonhada moradia própria, Andreia ficou intercalando sua vida entre a ocupação e a casa da sogra, que havia se mu-dado para o Jardim Boa Esperança 2, bairro vizinho do Denadai. Na casa da avó paterna de seus filhos, ela enumerava o grande esforço que fazia para colaborar com todos os serviços domésticos. “Toda vez que vou lá, deixo o café pronto, a casa limpa e o almoço feito”, contou com orgulho. “Minha sogra me ajuda em algumas coisas também, só não dá força para cuidar dos meus filhos”.

Depois do incidente e o susto do dia três de julho, Andreia decidiu abandonar a ocupação de vez. Disse que ia sair dali e terminar de construir um puxadinho na casa da mãe de Gedimael, que já estava com três paredes erguidas que dariam condição de vida e conforto um pouco mais dignos à família. Além do filho Adryan, então com cinco anos, a então desempregada também tinha duas outras crianças: a mais velha chamava-se Agatha, oito anos, e o mais novo, Jedimael, com um ano de idade. Cada um deles com uma peculiaridade: mesmo sendo a mais velha, Agatha “faz muita birra”, contava a mãe. O pequeno Jedimael, por sua vez, decidiu não puxar em nada os traços da mãe, que é morena de pele e cabelos. O mais novo tinha pele clara e cabelos loiros, um colírio entre a escuridão da vida de Andreia.

O filho do meio, Adryan, era hiperativo e mostrou isso muito bem, já que durante a conversa, ele tomou coragem para desbravar os limites de Zumbi e saiu correndo, quase atingindo a divisão de terra e asfalto, o que deixou a mãe em desespero. Na mesma hora em que perdeu o moleque de vista, Andreia interrompeu o assunto e saiu à procura do filho, que foi encontrado dando risada e brincando com outros dos muitos colegas de ocupação.

A mãe de Adryan, Agatha e Jedimael tinha nos olhos um quê de frus-tração por tudo o que havia passado em Zumbi. Ela afirmava que, no

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local, “você cai em uma ilusão, mas depois vê que não é nada disso”. Mesmo com a afirmação contrariada pela realidade de quem conseguiu, após muito esforço, a desejada moradia, a mulher relatava que ainda assim não desistira da luta. “O pessoal, quando viu que eu não ia conseguir nada aqui, tentou ainda me ajudar. A Dione, que é uma das coordenadoras, sempre que pode dá uma força”, contou, fazendo referência à mulher que parecia ter uma representatividade bastante considerável em sua vida, vista a forma carinhosa com que falou a respeito dela.

Andreia afirmou que chegara a participar de muitas das passeatas feitas pelo MTST para reivindicar melhorias e atenção às famílias. “Lá, eu gritava Zumbi, mas ele não me deu nada”, contava com lástima. Além de tudo, ela dizia que sua própria mãe não vinha colaborando muito com ela, nem com a criação dos netos. Andreia se sentiu abandonada desde então.

A força dos moradores de Zumbi deu um gás para a fila de es-pera enorme do Programa Minha Casa Minha Vida em Sumaré. Andreia, além de lutar por si e gritar pelos seus direitos, acabou involuntariamente ajudando outras pessoas na mesma situação em que ela se encontrava.

A Prefeitura de Sumaré, inclusive, apresenta os índices: até o final de 2013, a promessa é de serem entregues 560 apartamentos na região do Ma-tão, em um local que recebeu o nome de Residencial Emílio Bosco. “Em 2014, há duas entregas previstas também no Matão: 1.198 unidades no pri-meiro semestre e outras 1.198 moradias na segunda metade do ano. Já em 2015, são 1,5 mil unidades habitacionais em Nova Veneza, que serão entre-gues no primeiro semestre, e 1.180 moradias construídas no Jardim Denadai e que serão entregues no segundo semestre.” Todas essas moradias, segundo a assessoria de imprensa, estão sendo erguidas pelo Minha Casa Minha Vida.

Já a remoção das famílias em Zumbi, feita em três partes, como já men-cionado no capítulo anterior, foi proposta dada também pela Prefeitura [durante a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC)], e aceita tanto pelos moradores, quanto pela empresa dona do terreno, que fica desde então responsável pelo destino final do local, bem como por toda a limpeza dos escombros da ocupação.

A Empreendimentos Imobiliários Cidade de Paulínia Ltda. –

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nome empresarial registrado na Receita Federal –, dona do espaço ocupa-do, não quis soltar a voz. A autora procurou os responsáveis por inúmeras vezes, chegando inclusive a bater à porta do estabelecimento comercial, que existe e fica no Jardim Chapadão, em Campinas, mas ninguém se po-sicionou para um pronunciamento sobre o caso.

Para Andreia, a felicidade estava próxima, mas ainda não tinha sido alcançada. Guerreira e detentora de uma força de vontade enorme, ela contou que ia continuar lutando para conquistar um espaço para cha-má-lo de “meu”. “Eu quero viver em paz, seja em um barraco de lona, ou em uma casa. O importante é ter o meu canto, um lugar onde os meus filhos possam correr, brincar e gritar numa boa”, afirmava, enquanto le-vantava da cadeira colocada em um quintal improvisado em frente ao seu barraco de três paredes, aquele mesmo em que foi encontrada durante seus momentos de lástima.

Impaciente, ela ainda buscava as respostas para o seu maior problema e confundia algumas palavras enquanto se desconcertava com o choro. Andava em círculos dentro do que um dia tinha sido a sua casa, mas que agora não passava de um espaço vazio de alma e bens materiais, literalmente, já que o espaço estava sem absolutamente nada, apenas as paredes de madeirite, o chão de terra batida e o vento abafado daquele dia de muito calor, que entrava por todos os cantos do local. “Minha fa-mília não tem dinheiro todos os dias. Tudo o que temos foi conquistado depois de muita luta e muito trabalho”.

Ainda certa de que, naquele momento e com a cabeça quente, sair dali era o melhor a se fazer, ela ainda enumerava os móveis que tinha, mas que já haviam sido mandados direto para o despacho. “Dei a gela-deira para a minha irmã. Aqui também tinha uma televisão e uma cama de solteiro e de casal, além de um fogão. Já dei tudo embora”. A partir dali, amargou-se mais uma vez no choro, rodeou o olhar à sua volta e virou-se para a ocupação. Recebeu a imagem com sobriedade e deu um sorriso de canto. Zumbi entendeu a despedida.

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“Não é só ver e julgar,Tem que ser pra se misturarAí vai ver que é noisQue o rap é voz, que o reggae é voz e o samba.Vai entender de nois, não só falar de nois, porque você com nois nem anda.”(Emicida e Rael da Rima)¹

Rap e difusão cultural, dois elementos presentes em Zumbi, e em gran-de parte das comunidades de baixa renda do Brasil. Cada lugar tem sua es-pecificidade e, em Sumaré, não era diferente. Maior representante da “voz da periferia” na comunidade, José Marcondes Filho, 60 anos, chamado pelo pessoal de Vô, arriscava umas rimas enquanto conversava e tinha o gingado no trocadilho das palavras, assim como grandes MC’s brasileiros, tais como Mano Brown e Pepeu.

O jeitão do homem, ao contrário do que se espera dos rappers – com camisas e calças bem largas, tênis próprio para skatistas, boné na cabeça e, por vezes, alguns colares dourados de dimensões exageradas –, tinha um estilo próprio e que ganhava admiradores pela simplicidade. Vô es-tava sempre de calça jeans, camisa de manga curta em cores leves, como branco ou bege, que levavam no bolso solitário na altura do peito um maço de cigarros e algum papel qualquer, chapéu simplório de palha na cabeça, chinelo tipo Havaianas nos pés e bigode ralo. O jeito de falar, com a voz mansa, embalava qualquer um nas muitas histórias de vida que Vô adorava contar.

A música, uma das paixões dele, assim como outros diversos tipos de expressões artísticas, estava presente nas ruas de terra da ocupação. Além do rap disseminado por ele entre os vizinhos e amigos, era possível ouvir em cada barraco diferente um estilo musical que acompanhava a persona-

1. O trecho citado pertence à música “Num é só ver”, faixa número cinco da mi-xtape “Doozicabra e a Revolução Silenciosa”, do rapper brasileiro Emicida, com participação do também rapper Rael da Rima, mixagem de Beatnick & K-Salaam e produzido em 2011.

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lidade de cada morador. As ondas sonoras, ali, oscilavam principalmente entre as rimas do rap, além do funk, samba, pagode e sertanejo: música que faz o entretenimento de um povo cheio de energia para dar.

Vô, antes de chegar na ocupação, passou por uma rádio na época em que viveu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Antes disso, é impor-tante relembrar o motivo pelo qual ele foi parar ali.

Casado com Júlia, 61 anos, Vô era um paizão dentro de Zumbi. Ele contava que tinha 42 netos espalhados pelo Brasil, entre os filhos de seus filhos e também pelos de consideração, mas mesmo que a ninhada fosse grande, não sabia definir porque era chamado assim pelos compa-nheiros de ocupação. “As pessoas aqui têm muito respeito por mim, deve ser por isso que me chamam assim”. Em Sumaré, viveu junto à nora, à esposa, ao filho Carlos, 33 anos, e mais cinco netos. Tudo junto no mesmo esquema do resto da ocupação: apertadinho em um barraco feito com muito amor, mas em situação precária.

Vô sempre desempenhou os serviços de motorista. “Tenho carteira tipo D”, referindo-se à categoria de sua CNH (Carteira Nacional de Ha-bilitação), que lhe dava a permissão de dirigir caminhões. Enquanto co-meçava a divagar sobre sua real ocupação durante quase toda a vida, Vô apagou com os próprios dedos o cigarro que estava fumando, fazendo um movimento nada convencional. “Assim dá para guardar para mais tarde, eu nunca fumo um cigarro inteiro de uma só vez”, afirmava, enquanto me apresentava a prática: ele dava um “tapa” na cinza com a unha e, com o polegar e o indicador, apertava a ponta do cigarro para fechá-lo – assim nem o fumo escapava. Um improviso na vida do homem que sempre sou-be se virar como pôde.

Natural de Poços de Caldas, Minas Gerais, veio para o estado de São Paulo ainda moço e conheceu Julinha, sua amada, durante uma festa em que fazia compras com a mãe. Era uma quermesse e, ao contrário do método convencional da paquera em que o homem chega na mulher, en-tre eles foi o contrário. “Ela me achou parecido com o cantor Waldick Soriano. Eu usava um chapéu preto no dia”, contou Vô, que desde cedo já carregava a música na veia, nem que fosse só na aparência similar ao do famoso cantor da cena brega brasileira.

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Em outra visita ao estado paulista, durante uma festa de Folia de Reis em Campinas, encontrou sem querer a amada novamente. Golpe do desti-no. No dia, ele contou, a moça andava acompanhada dos irmãos e, a partir daí, nunca mais se separaram. Nessa estrada percorrida a quatro pernas, já estavam juntos há cerca de trinta anos.

Com a família, mudou-se para Ribeirão Preto para acompanhar o filho mais velho em sua empreitada na vida. Vô sempre havia gostado de músi-ca como um todo e, naquela cidade, viu a oportunidade bater à sua porta. “Sou autodidata. Em 1999, morando lá, arrumei um emprego na Rádio Periferia Norte e aprendi sozinho a usar o computador”, relembra em tons de saudosismo. Maior porta-voz da comunidade na cidade, a rádio comunitária deu uma luz para o aprendiz do ritmo musical. “Apresentei um programa, que eu mesmo montei no PC, e nele mandava muitas men-sagens para o pessoal. Pedia para eles terem cuidado com o que faziam, com drogas e violência, e acredito que a maioria me ouvia. Passava andan-do pela rua e parte deles me reconhecia”.

Em uma rápida demonstração de como Vô, ou Tio Zé, como era co-nhecido pela garotada de Ribeirão, fez uma chamada na rádio, e foi pos-sível sentir a energia positiva que ele passava para um público que carecia de uma voz que falasse mais alto, em tom suficiente para mostrar um bom caminho a elas. Vô parou de falar, respirou firme e fundo e imitou a molecada que o idolatrava por aquelas terras: “Tio Zé, manda um salve pa nois”, repetia, imitando os meninos que gritavam na rua para o então apresentador. E ele, durante sua performance com voz grave e suave ao mesmo tempo, retribuía com mensagens de positividade. “Até o pessoal da Fundação Casa, que é a antiga Febem, dava ouvidos a mim lá em Ribei-rão. Eu nunca pensava só em mim, queria o bem da molecada.”

Em Ribeirão Preto, sob os holofotes de seu programa na rádio co-munitária, Vô fez sua fama em uma região de cerca de 674 mil habitantes – que incluía tal cidade, além dos municípios vizinhos de Cravinhos e Jardinópolis. O estrelato era reforçado todos os dias, das oito às dez horas da noite, na chamada première radiofônica da cidade. O ilustre apresentador tocava “só música de qualidade, desde black, até samba e rap.” Além da conotação musical, também havia espaço para a divulgação de eventos das três cidades que a frequência da rádio alcançava.

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Enquanto conversava comigo, Vô fazia algumas pausas para soltar al-guma rima da qual se lembrava, ou que inventava ali mesmo esbanjando sempre bom humor para tudo. Pedi então para que ele soltasse a criativi-dade em meu bloco de anotações e escrevesse ali algumas rimas, já que a inspiração parecia iminente naquele momento. Ele pegou a caneta e nem deu o tempo necessário para que a primeira respiração pudesse fechar seu ciclo. Já tascou as primeiras letras no papel e, em letras miúdas e até tímidas – quase irreconhecíveis, não fosse o esforço para entender o que estava escrito –, formou este trecho:

“Estou cansado de irmão matar irmão.O que queremos é paz, aliados.Meus, seus, chegados. Chega mais.Esqueçam a antiga califórnia brasileira.Ribeirão Preto e os bairros de Sumaré, Vila Carvalho, CampinasTerra das Andorinhas e das minas, todos na união.O que queremos é paz e amor no coração.”

O rap, meio pelo qual Vô encontrou uma saída para expressar seu pen-samento sobre a realidade que ele via e vivia, foi suficiente para conquis-tar o coração da vizinhança em Zumbi. Aliás, ele só foi parar ali porque seguiu os mesmos passos da colega Tia Laura – amiga e companheira de ocupações, que terá sua história contada em capítulos posteriores. Ambos tinham passado pela ocupação Dandara, em Hortolândia, e pela Flaskô, em Sumaré. Em 18 de abril de 2013, Vô havia feito “aniversário” de um ano como morador de Zumbi. “A gente foi para o Dandara porque o meu filho Carlos estava lá. Depois disso, seguimos os passos da maioria do pessoal que estava ali”.

A preferência do já senhor José Marcondes não se restringia só à mú-sica. Além do rap, e de outros estilos musicais que lhe conferiam o gosto apurado para melodias, o homem também adorava poesia. Entre sua lista dos mais cotados, estavam Carlos Drummond de Andrade e Cecília Mei-relles, mas também adorava, enquanto criança, pegar qualquer coisa para ler. “Eu lia o ABC e já sabia de tudo desde os sete anos.”

Mas a estrada de Vô pelos tortuosos caminhos da vida não tinha sido

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fácil. Em 2003, quando morava em Ribeirão Preto, em um certo dia – que ele não soube precisar – sua mulher Julinha começou a sentir fortes dores de cabeça. “O médico diagnosticou, depois de fazer diversos exames, que ela estava com problemas de saúde”, contava. Na hora, ele diz, os dois associaram a hereditariedade com o fato de Julinha se esquecer, com uma frequência bem alta, das coisas que lhe aconteciam na vida.

Aos poucos, a mulher começou a piorar. Foi perdendo os movimentos dos braços e pernas. “Os médicos pediram mais exames e, no resultado, deu que a mulher estava com hidrocefalia.” Vô relatou que a demora do Sistema Único de Saúde (SUS) em drenar o líquido presente no cérebro da amada complicou ainda mais a situação. Foi então que, na passagem de ano de 2004 para 2005, às duas horas da madrugada, Julinha teve uma convulsão que virou o mundo de José Marcondes de ponta cabeça. Ela foi internada às pressas e saiu do hospital com diagnóstico de meningo-encefalite herpética, uma doença que lhe deixou totalmente paralisada, da cabeça aos pés. Mas esse problema pareceu minúsculo diante do coração enorme daquele homem.

O amor de Vô por Julinha transcendia a realidade da condição rígida e tradicional de marido e mulher dentro da sociedade – aquela em que a mulher lava, passa, cozinha e ainda toma conta dos filhos. Já ensina-do a cuidar de pessoas com uma idade mais avançada, graças a uma força que dava como voluntário no Asilo São Vicente de Paulo, em Ribeirão, o ex-motorista conseguiu encontrar na experiência, um meio de cuidar da amada. O zelo que o homem tem por ela era notável e a vizinhança reco-nhecia o esforço, usando Vô como exemplo de vida e uma referência das grandes para os filhos e parentes quando o assunto é amor e dedicação.

O ex-motorista demonstrava tanto carinho, uma das marcas mais relevantes na personalidade daquele agradável homem, que chegava até mesmo a se prontificar com os tratamentos de beleza da amada, crendo que ela tinha consciência de tudo o que estava acontecendo. “Eu pinto o cabelo da Julinha, corto suas unhas, troco a fralda (geriátrica), dou banho todos os dias, faço sua depilação e a levo no médico”, afirmou, enquanto mostrava as unhas recém-pintadas – e bem feitas, por sinal – das mãos de sua mulher.

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No barraco em que viviam, o espaço maior era ocupado mesmo por Júlia. Já na entrada havia uma cozinha, que perdia noventa por cento do espaço para a mesa que eles usavam para fazer suas refeições. Dali em diante, havia o quarto do casal, mais um cômodo, usado para abrigar os outros integrantes da família, e o banheiro. Em meio ao pouco espaço que lhes restava, ainda era possível encontrar roupas e utensílios encai-xados onde fosse possível. A priori, diriam que aquilo era uma grande bagunça, mas o senso de organização de Vô não deixaria que nada ali ficasse fora do lugar. Desta forma, e do seu jeito, tudo ali era muito bem arrumado.

Já Julinha ficava acomodada em uma cama que só tinha acesso por um lado, visto que o tamanho do barraco não permitia grandes movimentos. Enquanto conversava com Vô, tive a impressão de que sua mulher parecia não entender as palavras de quem falava com ela – ou ao alcance de seus ouvidos –, mas o homem garante que ela absorvia tudo mentalmente. E demonstrava. “Ô, Julinha, olha só, a gente tem visita hoje aqui”, e ajeita-va seus cabelos, enquanto apontava para mim. Não via a mulher esboçar qualquer reação, nem mesmo no movimento dos olhos, mas acreditei na veracidade da fé que Vô tinha – e na sua expectativa diante de seu amor – de que ela realmente compreendia tudo. Depois da tentativa frustrada de ouvir mais uma vez o timbre da voz dela ecoando dentro de seus ouvidos, Vô pausou a fala, olhou para ela, ajeitou-a novamente na cama e me levou para fora, para terminarmos a conversa sob os raios de sol que perdiam sua intensidade.

O ex-motorista, que no início da sua fase da maturidade ainda tem for-ça nos braços, pernas, mente e coração para erguer sua mulher do buraco, conta que a vê como “uma criança, uma das minhas netas”, e não mais como esposa. “Mas você ainda a vê como mulher?”, perguntei a ele, que respondeu sucinto. “Não quero me relacionar com outra pessoa na vida. Tenho medo da Julinha morrer e ficar com remorso se fizer alguma coisa errada. Não vejo sentido na vida sem ela, mas tenho que ser forte, né?”

Em Zumbi, Vô era referência. Além de um grande exemplo de ho-mem a ser seguido por todos ali dentro – e fora da ocupação também – tamanha sua dedicação em prol da saúde da amada, ele também era o

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CULTURA

“motorista oficial” do pessoal. Dono de um Palio Weekend verde musgo com lataria surrada pela exposição excessiva ao sol, chuva e terra, mas ainda assim em um estado considerável de conservação, ia de cima para baixo levando filho do vizinho no hospital, amigo em um lugar, parente no outro. “Não sei falar não para os outros. Quando teve o problema no Pinheirinho, levei todo mundo para São Paulo para ajudar as outras famí-lias”, contou, referindo-se ao chamado “Massacre do Pinheirinho”, ação de reintegração de posse feita no início de 2012 em uma terra ocupada, lo-calizada na cidade de São José dos Campos, em São Paulo, que resultou em morte e extrema violência (inclusive com repercussão nacional na mídia).

O barraco estava sempre com alguma visita à porta, com alguém pron-to a levar uma boa prosa sob os raios de sol que marcavam presença em um local sem uma sombra natural sequer (não fosse pela árvore central da comunidade). Na moradia de Vô, todo mundo era bem vindo e a presença de seu carro estacionado ali em frente, coberto por vezes com alguma lona improvisada, outras por plásticos de estrutura mais rígida, denunciavam que o local pertencia ao mestre do rap da comunidade.

Entre outros relatos de sua árdua vida, Vô também relembrou da in-fância, quando colecionava gibis. “Tinha um monte deles, adorava todos os tipos.” Além deles, o homem, ainda menino, sambou para conseguir comprar uma tão sonhada bicicleta. “Lembro que paguei ela em prestação, por dois anos, mas ela tinha até farolete”, brincava.

“Aqui, vou sentir muita saudade das amizades. Com o tempo, a gente vai acabar se afastando um do outro, mas quero lembrar dos bons mo-mentos que passei. Cada um tem que dar um pouquinho de si mesmo e se dedicar a tudo.”

Para homenagear a ocupação na qual viveu por dois anos, passando pelas lembranças de quando viveu em Ribeirão Preto e Hortolândia, Vô improvisou uma rima e eterniza aqui suas palavras:

“Rastros de ruínas que imperam na favela,Todos têm direito de ter um tetoMeu irmão, vô te dizê uma coisa,Nenhum aqui é vacilão.Com ajuda da prefeitura de Hortolândia e Sumaré

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Agora nói vai tê algum lugar para ficar,Para manter nossa família com muita fé.Te agradeço, você, por dar essa atenção,Mando um salve Consciência lá de RibeirãoTambém pros mano e mina aqui da grande Campinas.É nóis aqui que tamo nessa união.”

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Além do rap de José Marcondes – o Vô – Zumbi também recebeu outras diferentes formas de expressão de cultura durante sua existência. O local, por quase um ano, foi o destino final de constantes visitas de um grupo de voluntários, todos jovens universitários de diferentes cursos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que levaram aos morado-res diversas oficinas, como teatro e circo, além das aulas para aqueles ainda não alfabetizados com a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ao todo, foram dezesseis alunos dos cursos de Medicina, Economia, Artes Cênicas, Educação Física e História que, mesmo sem serem moradores dali, deram sua parcela de contribuição para a trajetória de Zumbi. O nome do coleti-vo? “Uma Outra Cultura”.

Eles deram início aos trabalhos voluntários já em 2010, depois de dois anos de consolidação da comunidade. Segundo Vinícius Todorov, 23 anos, um dos participantes deste grupo, tudo começou com uma turma do Cen-tro Acadêmico de Medicina. A princípio, eles levariam os calouros para desempenharem um projeto de extensão através da vivência em uma co-munidade de baixa renda, mas tudo tomou determinada forma no início de 2011, quando o projeto se estendeu a outros cursos da universidade.

No ano seguinte, então, eles deram início, com doze integrantes, a um trabalho de campo, chamado de visitas semiestruturadas, para verifica-rem tudo aquilo que a população local necessitava. “Tinha algumas per-guntas-chave que a gente fez nesse roteiro para colocar para eles durante a conversa”, apontava Todorov, que relatou ainda que o pedido inicial do Movimento era o de que eles introduzissem atividades culturais em Zum-bi. A presença constante dos integrantes do coletivo na comunidade deu outros ares para o lugar, que clamava por algum tipo de ação para enrique-cer as mentes e corpos de todos.

Os meninos contaram que o recebimento era diferenciado em cada barraco e as conversas eram feitas porta-a-porta. Divididos em equipes, geralmente de duas pessoas, durante cerca de dois meses eles visitaram o local e conversaram com os habitantes. “Em cada barraco a gente era re-cebido de uma forma diferente. Em alguns eles falavam pontualmente na porta de casa, em outros a pessoa nos recebia dentro da residência e nos tratava bem”, relembrava, fazendo referência aos desconfiados e aos mais

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soltinhos, que confiavam bastante nessa galera. “A gente não tinha um formulário para preencher. Nosso processo se dava por meio de uma con-versa informal e a gente conduzia para a resposta de cada uma das pergun-tas.” Além de chegarem à conclusão de o que a população necessitava, de acordo com a palavra dos próprios moradores, eles também descobriram, por exemplo, o motivo pelo qual cada um estava residindo na ocupação e há quanto tempo moravam ali.

“Precisa ter uma coisa para as crianças, porque elas vão para a escola só meio período, e tem que ter algo para que elas possam se ocupar no resto do dia, senão vão se meter com coisa errada.” Essa frase defi-niu a ação principal do grupo que decidiu, então, levar diversas atividades voltadas realmente para a garotada, como cinema e teatro. E apesar dos recursos escassos, parece que a meninada da Unicamp agradou o pessoal de forma certeira, já que, em uma das primeiras atividades, a partir dos re-cursos financeiros disponibilizados pela universidade através de um edital – que rendeu a eles um fundo de caixa de cerca de R$ 20 mil –, o grupo levou as crianças para assistirem uma peça teatral sobre Rosa Luxemburgo na capital paulista, sem gerar prejuízo algum para o bolso do pessoal, o que era um ponto relevante para a conquista deles naquele momento.

A maior dificuldade que os universitários passaram ali durante o tempo em que trabalharam voluntariamente em prol da comunidade foi arrumar um espaço físico adequado para as atividades. Existia um galpão enorme, usado pelos coordenadores durante as assembleias, que serviria de local ideal para o pessoal, mas para isso eles tiveram que reformar, mais de uma vez, toda a estrutura.

Fósforo Quadros (nome artístico), 23 anos, que também foi voluntário no projeto, brincava que às vezes eles chegavam a passar a maior parte do tempo arrumando o espaço do que efetivamente dando aulas. Numa dessas, sobrava até tempo para a própria população tirar um sarro deles. “A gente parecia mais um grupo de construção. Muitas vezes os próprios moradores ensinavam a gente a fazer esse serviço”, contava Quadros.

Depois de feita a primeira reforma no espaço, chamado posterior-mente de Espaço Cultural do Zumbi, havia chegado finalmente a hora de

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acontecer a primeira aula. “Fizemos um festival com diversas atividades culturais”, relembrava Todorov.

Naquele dia, contou, o grupo foi bem recebido pelos ocupantes, mas a chuva atrapalhou o bom andamento do festival. Eles convidaram alunos do curso de Artes Cênicas para fazerem uma apresentação e jogos teatrais, além de levarem um morador de Barão Geraldo – distrito de Campinas – para ensinar o pessoal a dançar hip hop e um especialista em histórias em quadrinhos para fazer uma oficina com a criançada.

“O pessoal reagiu bem ao festival”, afirmava Todorov. “O único pro-blema é que em determinado momento começou a chover e a água veio toda para cima da gente. Nesse momento, acho que o que as crianças mais aprenderam foi a se protegerem da chuva usando as lonas em cima da cabeça”, brincou o integrante.

O circo também marcou presença. Os integrantes do grupo, que ainda eram doze, foram aos poucos direcionando atividades diferenciadas para que pudessem ser levadas a Zumbi e uma das ideias foi a de imple-mentar uma oficina de circo no local. Foi então que Quadros entrou em ação. O universitário, que já tinha conhecimento da causa e simpatizava com o Movimento, topou ensinar à criançada a arte dos malabares e acro-bacias, suas especialidades.

Além do circo, um dos pontos altos do projeto na comunidade, outra atividade que deu certo foi a do EJA (Educação de Jovens e Adultos). Ven-do a grande necessidade de implementar a alfabetização para os morado-res que não sabiam ler e/ou escrever, foi que o grupo, aos poucos, buscou recursos e permissões para atuarem com este tipo de ensino não só ali, mas em outras ocupações também, o que é o caso mais atual da Flaskô.

Os mutirões de construção também foram marcantes, tanto para os meninos do grupo, quanto para os moradores, que reconheciam o esfor-ço do pessoal em querer um local adequado para repassar as atividades. Todorov e Quadros, quando questionados sobre qual atividade mais lhe ficara na memória durante os dias de Zumbi, não hesitaram em apontar as reformas como o ponto alto das atividades. “A gente fazia muito mutirão para reformar o espaço e era ali que a gente via o quanto os habitantes

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tinham respeito por nós”, afirmava Todorov. O grupo se sentia tão aco-lhido nestes momentos, até porque, confessaram, não sabiam muito de construção, que era ali que vivenciavam a união da comunidade.

“A receptividade deles era muito grande com a gente, principalmen-te com esta parte do nosso trabalho. Parecia que eles queriam ensinar o pessoal.” A coordenação, segundo eles, era quem dava a força maior para que tudo acontecesse. “Eles chegavam e viam que a gente estava com difi-culdades, então saiam batendo na porta de todo mundo pedindo para que eles fossem nos ajudar.”

O Espaço, aliás, tinha dimensões suficientes para se desenvolver um trabalho diferenciado para o pessoal. As crianças eram, sem dúvida, as principais participantes das oficinas e era só o grupo colocar o pé na ocu-pação, que elas já davam as caras atrás deles. “Quando cheguei lá, a primei-ra coisa que me disseram foi: cuidado com as crianças”, brincava Quadros. Em diversas ocasiões, ele relembrou que chegava a ver um “mar sem fim” de pequenos seres humanos, sedentos por aprendizado a cada dia. “Às vezes, chegavam a ficar umas vinte crianças na minha frente.”

O local ficou tão marcado pela presença dos universitários que, quando eles não estavam ali, mesmo que o espaço cultural fosse de propriedade dos próprios habitantes, as portas ficavam trancadas. “A gente sabe que tinha criança que tentava quebrar a cerca e pular as janelas para conseguir entrar lá”, lembrava Todorov com ar de nostalgia, enquanto repetia a frase mais ouvida pelo grupo assim que chegavam. “Era engraçado, eles olha-vam para a gente e já perguntavam: tio, tem Espaço Cultural hoje?”

O que eles chamavam de Espaço Cultural, por sinal, não passava de um barracão. Feito bem próximo à Avenida Zumbi e à árvore central da ocupação, ele se destacava mesmo pelo tamanho. Salvo isso, se confun-diria facilmente com qualquer uma das centenas de barracos à sua volta. O que o diferenciava é que, logo na entrada, já era possível ver como os universitários tinham cuidado pelo local. A porta devia ter cerca de dois metros e meio de altura e, na parte de dentro, as paredes feitas em madeirite permaneciam forradas de “mãozinhas” dos alunos, feitas em tinta guache para dar o tom preciso da proposta do espaço. Aliás, se estas mãozinhas não estivessem ali, o local teria lá o seu quê de sombrio, já que

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a construção carecia de janelas – a circulação do ar só se dava através da porta e dos ventiladores.

A turma começou a se despedir de Zumbi aos poucos. Mesmo que as atividades ocorressem em massa, todos os sábados, durante o dia inteiro – eles dividiam-se em carros para chegarem lá – durante os cerca de oito meses em que estiveram ali, perceberam que as atividades não estavam tendo o retorno que esperavam e, inevitavelmente, os cursos co-meçaram a entrar em processo de desgaste.

Além de marcarem presença por lá aos finais de semana, as reuniões do grupo para decidirem suas ações também eram feitas no espaço, mas durante os dias úteis da semana. Todorov contou que as coordenadoras, aproveitando que eles iam até a comunidade em determinados dias, também utilizavam-se da ocasião para realizarem suas reuniões de brigada e recebe-rem todos os comunicados do grupo. Assim, ficava mais fácil a comunica-ção entre ambos, uma espécie de parceria que pareceu dar certo.

Entre outras atividades que foram introduzidas, mas não tiveram o su-cesso esperado, estavam a de oficina de dança do ventre e de teatro. No caso da dança, a proposta não vingou por causa da repressão das próprias mulheres. “Elas falavam ou que fariam as aulas para dançarem para os seus maridos, ou que os homens não deixavam elas participarem”, contava To-dorov, fazendo referência a um conceito predominantemente machista que, mesmo que de forma inconsciente, estava enraizado no cotidiano dos mo-radores. Já no caso do teatro, a atividade não avançou porque a proposta do grupo era o de desenvolverem uma atividade continuada e, a cada aula, apareciam alunos diferentes. “Cada vez que ia acontecer a aula, o pessoal tinham que recomeçar a explicar tudo porque não existia um grupo fechado, apesar de a gente pedir para que os alunos se organizassem para isso.”

Em meio a este pequeno enfraquecimento na atuação dentro de Zum-bi foi que, por coincidência, surgiu a ocupação Dandara, em Hortolândia. O grupo foi convidado para participar do primeiro dia da ocupação – ain-da durante as reuniões de base – e organizar o setor de cultura do espaço, mas o único que entregou-se à causa foi Quadros. O resto do pessoal frequentava assiduamente o local – a ponto de entrarem em situações de-licadas de quase reprovação na universidade, devido ao grande número

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de faltas –, mas foi Fósforo quem tomou coragem de erguer seu próprio barraco ali no meio.

Ele contou que, por ter pouco conhecimento em construção, fez uma barraca bem improvisada com cinco pedaços de bambu, mesmo que um deles, segundo ele, não servisse de nada ali dentro. “A gente brincava que era o pole dance”, retomou. “Na noite do primeiro dia eu tive que cavar buraco, cortar mato, fazer tudo o que fosse possível para que o lugar caracterizasse uma ocupação. No meio disso, a gente viu a Polícia Militar chegando.”

No barraco de Quadros, diversas vezes outros integrantes do grupo chegaram a ficar. Passavam dias ali no que se encaixaria em uma perfeita imersão, tão grande que alguns deles chegaram a se assustar com a situa-ção. “A visão é outra, né. Quando a gente é um grupo, a gente visita, mas dessa vez as pessoas estavam realmente morando lá. Você passa a ser um morador e acaba gerando críticas ao Movimento”, afirmava Todorov, e Quadros reiterava. “Ali eu era um integrante da ocupação, não era mais uma pessoa de fora. A visão é totalmente diferente.”

Vendo então que o “brinquedinho novo” tomava mais tempo do que o esperado e que, aos poucos, Zumbi fora ficando para trás, eles então se voltaram para o Dandara e se despediram da ocupação anterior. Isso aconteceu já no início de 2012.

Na ocasião, continuaram contando, havia um jornalzinho que eles pró-prios produziam, com conteúdos sobre movimentos sociais, entre eles o MTST, que eram distribuídos para a própria população. No último dia de atividades em Zumbi, eles entregaram um exemplar em cada casa como um gesto de despedida – agradecendo pelo acolhimento e pela experiência adquirida ali – além de presentearem todo o pessoal com fotos feitas pela câ-mera profissional de Quadros durante as atividades desenvolvidas no local.

Os integrantes do projeto vieram de diversos cursos. Durante a conversa, Todorov e Quadros enumeraram todos os participantes. Da Medicina, havia Henrique, Sarah, Thais, Daniela, Gines, Brunelly, Daniel “Fanta”, Natália e Josué. Da Economia, Carol, Dudi e Bernardo. Das Ar-tes Cênicas, o Miguelito. Da Educação Física o próprio Fósforo e, da His-tória, Vinícius Todorov (já formado) e “Moscão”.

Cada um deles tem uma história diferente. Carol, por exemplo, ingres-

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sou na Economia em 2010, mas depois de dois anos de curso, mudou seus rumos e começou a cursar Ciências Sociais.

Todorov já conhecia bastante o Movimento. Antes de entregar suas forças a Zumbi, já dava aulas em um cursinho popular no Parque Oziel, em Campinas, também formado pelo MTST. Foi através desta aproxi-mação que, aos poucos, juntou-se ao Uma Outra Cultura. Em sua visão do que o grupo representava para a população de Zumbi, ele foi sucinto. “Acho que viam a gente como pessoas bem intencionadas, que de vez em quando não tinham a menor ideia do estavam fazendo. Era algo do tipo: eles são uns menino bom.”

Questionados se por acaso participariam novamente de outra ocupa-ção do MTST, caso ela ocorresse na região de Campinas, os dois integran-tes do coletivo reagiram positivamente. “A gente dá um jeito, mas participa sim. Com certeza vai ser outra experiência, outra coisa. A gente sabe o quanto isso representa para as pessoas que se envolvem com a atividade”, afirmava Todorov, fazendo referência às diversas reações presenciadas por ele, vindas de outros integrantes.

Mais que uma experiência de vida, os dezesseis do coletivo, com uma visão externa totalmente diferenciada de quem não viveu e conviveu ali, saíram de Zumbi renovados. A experiência foi tão forte, aliás, que era perceptível o envolvimento emocional quando deixavam o brilho trans-parecer em seus olhos ao falarem com alegria do que passaram ali. “A impressão que a gente teve lá é que as pessoas dali se viravam muito bem sem a gente. Eu acho que eles representaram muito mais para a gente, do que nós para eles”, concluiu Todorov. “As pessoas se relacionaram, se transformaram e foram muito transformadas. Todo mundo saiu de lá uma nova pessoa. Foi muito forte”, exclamou Quadros.

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“Quando entrei aqui, me sentia vivendo em uma casinha de cachorro. O barraco era feito com dois paus e um plástico por cima”. Foi assim, nes-se sentimento de abandono, que a dona de casa Marlene Ferreira de Souza, 39 anos, criou os sete filhos de diferentes gerações – desde pequenos, até os mais jovens e até dois filhos agora na idade adulta – sozinha, ao menos dentro de Zumbi, que existiu por cinco anos. Ali dentro, nada lhe restou além da dignidade e a cria que cuida com suas duas mãos e o coração, su-ficientes para fazê-los verem o que é o mundo real para eles, um local de extremas dificuldades de convivência, de problemas financeiros, qualidade de vida e tudo mais que o ser humano precisa passar por cima para poder crescer e amadurecer. “Tenho que ensinar eles a viverem desde cedo”, afirmava, enquanto colocava a mais nova, Giovanna Agatha, para deitar no sofá discreto na sala de estar.

Com a filharada, Marlene poderia criar um time de vôlei, com direito até a jogador reserva: Jaqueline, 20 anos, Washington, 19, Thauana, 15, Júnior Vítor, 13, Maytt Uallf, 10, Ítalo Miqueias, 6, e Giovanna Agatha, 4. Questionada sobre a escolha do nome dos filhos, visando principalmente aqueles com nomes mais incomuns, a mãe abria um sorriso de canto e explicava de forma clara: “peguei o ABC (alfabeto) e comecei a juntar as letrinhas, daí formei os nomes, gostei e coloquei.”

Separada do marido desde fevereiro de 2013, a dona de casa criava os filhos sozinha, realidade semelhante à vivida por muitas mulheres no Brasil. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta: em 2000, 11,6% das residências brasileiras eram constituídas por mulheres com filhos e sem cônjuge. Em 2010, o número subiu pouco e continua sendo representativo: 12,2% das mulheres continuam na situação de soli-dão para criar a ninhada.

A maioria da mulherada que sofre com isso – e que tem de se des-dobrar nos papéis de mãe, pai, trabalhadora, amiga e conselheira dos filhos – pertence às classes baixas e miseráveis. Ao todo, são 80,7%, sendo a faixa de meio até um salário mínimo (renda mensal) a que mais chama a atenção: 27,2%.

Marlene contou que sua família sobrevivia às custas de uma renda do Bolsa-Família – programa de auxílio financeiro às famílias com renda per capita (por pessoa) de menos de R$ 70 mensais, criada e sustentada pelo

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Governo Federal – de R$ 316 por mês, mais um pouquinho que conse-guia juntar revendendo trufas de chocolate, fabricadas por uma conhecida. “Além disso eu faço serviço de cuidadora de crianças e também ganho um pouco com o bolsa-aluguel”. Sua filha mais velha, Jaqueline, também dava uma força com as contas de casa com o trabalho de auxiliar em um laboratório de fotografia da região.

Conheci Marlene depois de Daniela, uma das coordenadoras da ocupa-ção, me apresentar a ela no meio da Avenida Zumbi. A mulher, que vinha caminhando na direção contrária à nossa, tinha um andar discreto, e quem mais chamava a atenção ali era mesmo a pequena Giovanna, pela forma com que dava seus passos, meio que dando alguns pulinhos. Depois de sermos oficialmente apresentadas, a mãe convidou-me para entrar em sua casa e relatou suas origens durante a conversa, sentadas uma em cada sofá da pequena e estreita sala.

Nascida em Sertânia, Pernambuco – cidade distante cerca de quatro horas de carro da capital Recife –, Marlene retomava na mente toda a seca que já vira por lá. “Me casei com dezesseis anos com o homem que me separei.” O homem passou a morar com a ex-sogra da ex-mulher no Jardim Boa Esperança, em Hortolândia, cidade vizinha de Sumaré. Sepa-rados desde fevereiro de 2013, a dona de casa contou que não impedia a filharada de ver o pai – mas só quando eles quisessem e pedissem. “A gente se dá bem”, resumiu o repertório sobre o não mais cônjuge – que inclusive tinha grau de parentesco com ela, já que eram primos distantes –, retratando nas poucas palavras e no pesar em seu olhar a certa distância com a qual ainda tem de conviver com o pai de seus filhos.

Em Zumbi, Marlene foi uma das fundadoras, já nos primórdios da ocupação. Ela relatou que ficou sabendo, através do ex-cunhado, que a co-munidade ia ser feita, quando ele residia em outra ocupação da região. “Ele chegou para mim e disse: tá tendo uma turma invadindo lá em Sumaré”, retomava fielmente as palavras do homem, fazendo referência ao pessoal que tinha dado início à comunidade. Ela e toda a família não pensaram duas vezes e foram constituir a massa de Zumbi. Como já dito anterior-mente, no início, a “casinha” era na verdade uma barraca, na qual ela tinha passado por poucas e boas por algum tempo. Depois que ficou liberada a construção de barracos, foi que a estrutura física de sua casa ganhou ares

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de uma residência melhor – mas ainda longe do ideal. “Aqui dentro de Zumbi tinha vários lugares para construir o barraco. Eu fiquei com um dos três melhores”, contou com orgulho.

Seu barraco, depois da mudança, ficou construído de uma forma bem improvisada. Feito de madeirite, assim como a maioria dos outros bar-racos da comunidade, não tinha paredes bem estruturadas na parte de dentro. No lugar de madeira, havia um punhado de lençóis, que cumpriam fielmente o papel de divisor de cômodos. Havia também uma pequena sala com dois sofás velhos, encapados com mais lençóis, certamente postos es-trategicamente ali para disfarçar o desgaste no tecido dos móveis, que não eram de primeira qualidade. Os filhos, e ela também, dividiam as camas e colchões e se espremiam no pequeno caixote que, apesar do tamanho, não sufocava. Além dos muitos panos colocados em funções as quais não eram as suas originais, logo na entrada da sala, ao lado direito, também havia uma pilha de roupas que ficava disposta de uma forma em que quase não era possível ver a parede de madeirite: ali, elas se amontoavam organi-zadamente pela falta de um guarda-roupas.

O problema maior chegava junto com o vento e a chuva. Marlene lembrava com tristeza de todas as vezes que perdeu montes de roupas – pela falta constante de lugares suficientes para armazenar tudo de forma correta e segura – e até móveis por conta dos fenômenos naturais.

A mulher, que devia ter pouco mais de um metro e meio de altura e transparecia, na forma de se vestir, a sua religiosidade – usava uma daquelas saias compridas, que vinha até um pouco abaixo dos joelhos, traje caracterís-tico de algumas vertentes da religião Evangélica –, tinha o olhar cabisbaixo, mas um sorriso discreto bastante cativante, que parecia esconder muitos mistérios a cada vez que sumia para dar lugar ao semblante mais sério de seu rosto. “Qualquer vento acaba com tudo por aqui”, retomava na memó-ria. Exatamente por ser uma vítima tão ferrenha dessas destruições, é que a dona de casa decidiu não levar praticamente nada embora quando saísse dali. “Não quero nada. Vou levar só o rack, geladeira, fogão e duas camas”, enumerava, enquanto tentava se esquecer das lamentações. Do mais, tudo ficou ali, enterrado junto com as tristezas que vivenciara na ocupação.

Por exemplo, a dona de casa relembrou uma das mais devastadoras

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tempestades que, em 2012, deixou a casa dela quase que por completo no chão. “Nesse dia, minha televisão parou de funcionar e a chuva estragou muita coisa. A cerca que existia em volta da minha casa caiu e o vento sol-tou toda a parede. Eu tive que segurar ela sozinha.” Além disso, ela ainda apontava os outros perrengues vivenciados no local: a energia elétrica caía quase sempre e não havia sequer um chuveiro em casa para a criançada to-mar banho. Todo mundo tinha que se virar no velho estilo da canequinha, com água esquentada no fogão e misturada com outra porção mais fria, para não machucar e formar queimaduras.

Mesmo assim, a posição do barraco de Marlene era considerada, de certa forma, privilegiada dentro da comunidade. Ao contrário do resto do pessoal, que literalmente se espremia nas “quase-vielas”, a residência da dona de casa dava de frente para a Avenida Zumbi, a principal ali dentro. Com o local digamos, de luxo, ela tinha posição melhor até mesmo para vigiar a filharada que ficava brincando pelos arredores de Zumbi, e seu barraco era facilmente conhecido por ali – na frente da porta de sua casa, havia uma pia (ou o que restava dela) sem parede alguma em volta. Sem a estrutura feita em madeirite que, apesar da fragilidade perante os fenô-menos naturais como a chuva e o vento, Marlene deixava transparecer um pouco o seu incômodo com a falta de privacidade. “Tinha parede lá, mas o vento derrubou e, como vamos sair em pouco tempo, nem reergui”, afirmou, dando chances à esperança de sair logo do local sem passar muito percebida pelos vizinhos, com certa discrição.

A mãe disse apoiar-se na fé para seguir na luta diária, fazendo jus até mesmo às roupas que costumava usar por onde andava. “Frequento a igre-ja e sabe... De amigo mesmo? Só tenho Deus”. Ela costumava ir à Igreja Pentecostal Assembleia de Deus, localizada em um bairro vizinho, todos os sábados e domingos, além das terças e quintas-feiras. “As crianças gostam de ir comigo, elas têm muitos amigos na igreja e levo uns quinze minutos para chegar lá. Às vezes consigo até uma carona”, contava com alegria e também alívio, já que a igreja não ficava muito perto da ocupação e pegar o rumo a pé para fazer suas orações era algo que certamente a frustrava.

Os filhos de Marlene, pelo menos, eram o grande bem que ainda possuía. Enquanto me mostrava a casa, nos deparamos com dois ou três

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MÃE

deles acordando, já que o encontro aconteceu ainda na parte da manhã e o período de recesso de julho, em 2013, havia começado fazia cerca de uma semana. Enquanto se espreguiçavam entre dois colchões, colocados um ao lado do outro para dar mais espaço para os movimentos involuntários durante o sono, já iam dando bom dia à mãe entre carinhos e bocejos.

Júnior Vítor, de 13 anos, um dos que estavam na residência naquele dia, era o mais sapeca, pelo relato da mãe. Todos frequentavam a escola – que ficava a cinco passos da entrada de Zumbi – exceto a mais nova (devido à pouca idade para ingressar nos estudos), e ele era o que trazia mais proble-mas, vindos através da direção. Comumente, Júnior chegava em casa com bilhetes anexos aos seus cadernos, todos delatando suas peripécias e as reclamações de professores sobre seu mau comportamento.

A mãe amava todos os seus filhos com a mesma intensidade, mas dei-xava escapar uma ponta de desânimo ao lembrar da falta de ocupação de Washington. “Meu filho de dezenove anos parou de estudar na quinta série e atualmente está desempregado”. Os outros filhos se dividiam na ajuda com as tarefas caseiras. Os maiores sabiam cozinhar, lavar a louça e botavam ordem nos mais novos.

A mais velha, Jaqueline, do contrário, dava o seu exemplo. Já traba-lhava, ajudava nas contas de casa e ainda tinha sonhos bem ambiciosos: queria fazer faculdade de direito e já tinha engatado uma alavancada na vida com os estudos na área de enfermagem. “Ela já fez vários cursos, in-clusive o de enfermagem, mas trabalha em um laboratório de fotografia”, contava, demonstrando afeto pelo esforço constante da mais velha, que era a filha mais presente no auxílio dentro de casa.

A turminha, sustentada pelo pouco dinheiro e muito amor da mãe, acordava tarde. As únicas que acompanhavam fielmente o ritmo frenético de Marlene eram a filha mais velha e a mais nova. A primeira acordava cedo para pegar no batente e a segunda batia perna com a dona de casa por onde quer que ela estivesse.

Giovanna, a mais nova da turma, adorava brincar pela comunidade e dá até parar dizer que ela era uma espécie de sombra da mãe, já que não des-grudava o dia inteiro da mulher que era, certamente, seu exemplo maior de vida. “Ela pega a bicicleta dela e sai andando por aí”, comentou a mãe, retomando as palavras da filha, que sempre dizia estar com medo da casa

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nova, ainda indefinida. Insegurança de menina. No tempinho que conquistou para um pequeno descanso no dia em que

as conheci, Giovanna aproveitou e tratou logo de puxar um cochilo. Acon-chegada em um dos sofás, embelezados pela disposição daqueles mesmos lençóis, largou as pernas finas e compridas no colo da mãe e debruçou-se sobre um dos braços do móvel. Naquele momento, mesmo com a simplici-dade do espaço e de toda a trajetória já vivenciada, supõe-se que a menina imaginou, durante o descanso, estar deitada em um berço de ouro, local perfeito para repor as energias de uma pequena e traquina sonhadora.

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Dona Maria, figura conhecida na extinta comunidade pela vendinha que possuía logo na entrada da avenida principal, levava no nome a espe-rança depositada em seu Cristo. Maria das Graças Rezende, 60 anos, tinha de tudo para resumir a sinuosa estrada que percorrera por seis décadas em uma palavra: fé. Mineira de Governador Valadares, Maria tinha o jeitinho da terra em que nascera já na forma de falar. Economizava nas palavras, pronunciadas de forma bem vagarosa, mas esbanjava simpatia no sorriso. A senhora, com pouco mais de um metro e meio de altura e rosto em for-mato arredondado, bochechas salientes e rosadas, conquistava a vizinhan-ça na simplicidade de um olhar terno, visto através dos olhos castanhos profundos de uma guerreira da vida.

Lá em Zumbi, Dona Maria era a senhora dos doces e das guloseimas. Tinha uma venda de quitutes bem discreta, mas bastante popular entre os moradores. O espaço, improvisado com os mesmos madeirites que com-punham o resto das residências modestas da ocupação, tinha uma fachada bastante convidativa.

Ali no comércio, o que mais chamava atenção com certeza era a pró-pria presença física de Dona Maria. Sentada numa das cadeiras de plástico com os braços repousados sobre os apoios em uma posição um tanto des-leixada, mas confortável o suficiente para que não sentisse suas dores na coluna, ela parecia querer sempre a companhia de alguém para bater papo. A vendinha ficava a cerca de vinte passos depois da entrada pela Avenida Zumbi, pelo lado esquerdo de quem olhava, logo ao lado de um barzinho também simpático que estava sempre com clientes à porta.

Atrás de Dona Maria, que permanecia sempre na mesma cadeira e na mesma posição – o hábito de ficar ali, cuidando do comércio, deve ter arrastado a mulher para os âmbitos da rotina –, ficavam os quitutes, em-pilhados estrategicamente em cima de um balcão feito com os mesmos madeirites do resto da estrutura da construção. Tudo ali ficava bem ar-mazenado em potes plásticos com tampas de diferentes cores, e a grande variedade de doces e salgadinhos parecia seduzir quem passava. E logo alguém falava: “Dona Maria, quanto tá esse aqui?”, e apontava para um dos potes. A exímia vendedora sabia todos os preços de cor. E sua agilida-de, junto ao precinho camarada, formavam uma dupla de sucesso certeiro.

Eu entrava na comunidade e era Dona Maria quem sempre me recebia.

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“Ô, minha linda, como você está?”, olhava para mim, enquanto pronun-ciava estas palavras e me acolhia de braços abertos para conversarmos. Sempre me sentava nas cadeiras amarelas feitas de plástico resistente, pa-trocinadas por marcas famosas de cerveja, e ali ficava divagando sobre qualquer coisa da vida com ela.

A senhora “das Graças” levava a crença em Cristo com fervor. Em um dos nossos encontros, fez questão de mostrar-me a Bíblia que a acom-panhava em todos os passos e pediu para que eu lesse os versículos mais importantes para a vida dela. E eles tinham esse grau tão elevado de im-portância por um grande motivo.

Dona Maria e sua fé. Para explicar como ela chegou aos pés da cren-ça divina, é necessário retomar parte de sua vida na memória. Saiu de Governador Valadares, cidade natal, aos quinze anos de idade e foi morar em Vitória, capital do Espírito Santo. Casou-se no mesmo ano com seu primeiro homem, que não teve o nome revelado, e com quem teve três filhos: Alcenir, hoje com 40 anos; Romário, 38, e Lucenir, com 36. “Casei no papel e usei vestido de noiva. Era um sonho da minha mãe, mas nem tanto meu”, relembra.

O marido mudou-se então para São Paulo, pouco tempo depois, para trabalhar na capital paulista na empresa de construção civil Camargo Cor-rêa e tentar levantar um pouco de dinheiro para a família. “Ele ia em casa de três em três meses até que um dia, por carta, falou para eu vender tudo em Vitória e me mudar para São Paulo.” Sem titubear, seguiu a recomen-dação do então marido e, em primeiro de maio de 1975, pisou pela primei-ra vez em solo paulista. E ficou.

Mesmo depois da mudança e com a presença efetiva em casa, o marido de Dona Maria colocava dinheiro dentro de casa, mas não a tratava como ela merecia – com carinho e respeito. Mãe, dona de casa e batalhadora, recebia dele só os maus-tratos. Embebida pela tristeza que as lembranças lhe traziam, ela conta que o homem perdia o controle quando estava em-briagado pelo álcool. “Ele bebia muito e o nosso casamento não ia bem. Ele me batia quando estava bêbado e dizia que ia matar as crianças.” Ao relembrar dessa realidade que mais parecia um pesadelo com que tinha que conviver durante toda a vida, Dona Maria deixou a emoção transpa-

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recer e, como se não houvesse mais ninguém passando pela rua naquela hora, chorou, fazendo com que as piores lembranças de sua caminhada gritassem, implorando por afago.

A realidade pela qual Maria passou é a mesma vivida por muitas mu-lheres no Brasil. Segundo dados divulgados em 2013 pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, houve 107.530 notificações de violência doméstica em 2011 em todo o Brasil (dados mais recentes). Deste índice, 69,8% são mulheres – 24,4% têm entre 20 e 29 anos de idade e 18,9%, entre 30 e 39. Nesse levantamento, ficou constatado também que é dentro de casa que a pessoa é violentada: 57,3% dos casos registrados foram cometidos na própria residência. A violência deriva de diversos mo-tivos, que não podem ser enumerados com tanta precisão. Dona Maria, por exemplo, foi vítima do descontrole causado pelo álcool e foi dessa forma que acabou entrando para os índices.

Mesmo assim, a mulher de fé não desistiu da luta pela vida. “Meu ma-rido foi embora para São José do Rio Preto e de vez em quando aparecia em casa.” Em determinado momento, ela recorda, o homem nem dava mais as caras. Depois disso, decidiu separar-se do mesmo e, após seis anos, recebeu a notícia, do patrão do ex-marido, de que ele havia sido encontra-do morto em um terreno baldio em Araraquara, também em São Paulo. Tristeza e alívio.

A guerreira mudou-se para o Parque das Nações, em Sumaré, e continuou com sua caminhada. Em 1996, sua vida revirou do avesso novamente. Certo dia, contava ela, foi até o forró para ouvir seu filho mú-sico tocar e um homem chegou para chamá-la para dançar. Carlos Wilson Pereira do Nascimento, então com 32 anos, embalou a tímida mulher na música e na dança e o envolvimento foi tanto que, em quatorze de janeiro de 1998, “juntou os trapos” com seu príncipe. “Eu gosto dele. Não bebe, não fuma e o dinheiro que ganha é para ajudar a família, que gosta muito dele”, afirmou com entusiasmo, demonstrando o companheirismo que sentia com relação ao homem.

Devidamente acompanhada, Maria ainda tinha outros perrengues para resolver. E foi aí que a fé bateu à porta. No Brasil, país tipicamente ca-

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tólico de vertente romana, os cristãos evangélicos têm ganhado espaço aos poucos em meio a uma lista tão grande de diferentes religiões existentes não só neste território, mas em todo o mundo. No último Censo divulgado pelo IBGE, referentes a 2010, os números mostram que os Evangélicos representam 22,2% da população, contra 64,6% dos Católicos. Em 2000, a diferença era bem maior: 15,4% de Evangélicos e 73,6% de Católicos. A crença se faz presente nas comunidades carentes independentemente da religião, já que o maior grupo religioso existente no Brasil, 32,3% do contingente, corresponde aos Evangélicos de origem pentecostal que pos-suem uma renda mensal entre meio e um salário mínimo¹.

Tal fé, que embala a caminhada de muitos brasileiros, também estava presente na vida de Dona Maria, já que, em determinado momento de sua vida, a saúde física, mental e psicológica teve uma recaída das grandes, de deixar qualquer ser humano sem estrutura para suportar tanta dificulda-de: além de um desgaste ferrenho no joelho, que ainda a mantém em um tratamento com ortopedista, ela ainda tinha pressão alta, diabetes, artrose, tendinite, bursite e problemas graves na coluna. A lista era enorme e de certo jeito assustadora, já que a forma como levava a vida, de uma forma geral, não a deixava transparecer uma gama tão enorme de problemas. Como se aquele sorriso permanente servisse de escudo para esconder todo o transtorno.

“Tive depressão em 2004, quando fiquei sabendo que estava com diabetes e pressão alta. O nível subia sempre e tinha que ir muitas vezes para o hospital. Não queria tomar insulina e fui internada.” Dona Maria relatou – e fez questão de deixar isso bem claro, como se já houvessem perguntado isso a ela mais de uma vez e, pior de tudo, como se isso a inco-modasse como um espinho entre os dedos – que não chegou ao extremo de tentar cometer suicídio, mas falava sempre para os filhos que preferia morrer do que encarar toda essa fase conturbada. “Tudo para mim era

1. Dado disponível em: http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao/. Acesso em: 7 out. 2013, 17:00.

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triste. A médica que me internou passou um remédio muito forte, anti-depressivo de tarja preta, sabe?”, relembra, deixando transparecer que o status da cor da tarja era algo sombrio e assustador para ela. Depois da internação, a mulher saiu do hospital com novos ares, mas no mesmo mo-mento em que colocou os pés novamente dentro de sua casa, no Parque das Nações, ficou sabendo que seu vizinho – com quem mantinha uma amizade e carinho muito grandes – havia morrido. Foi aí o estopim. “Caí na depressão de novo.”

Sem ter para onde correr, Dona Maria, que já tinha afeição pelo tema religião, começou a olhar com mais carinho para os ensinamentos de Cris-to e foi nesse caminho que passou a enxergar a “luz no fim do túnel”. “Sempre quis ser Evangélica, mas nunca tive oportunidade. Sabia que exis-tia um culto perto de casa e falei para eu mesma: vou abrir a Bíblia, ver o que Deus está falando comigo.” Em sua casa, sozinha, ela conta que pegou uma Bíblia que possuía e abriu então o livro sagrado em uma pá-gina qualquer. Neste momento, deparou-se com dois versículos do livro do profeta Isaías, aqueles mesmos que ela pediu para eu ler enquanto me contava toda sua história:

“Levanta-te, sê radiosa, eis a tua luz,A glória do Senhor se levanta sobre ti.Vê, a noite cobre a terra e a escuridão os povos,Mas sobre ti levanta-se o Senhor, e sua glória te ilumina.” (Isaías 60: 1; 2)

A atitude repentina serviu como escape para aquela senhora, e uma nova forma de encarar seus problemas. “Fui até um círculo de oração com uma amiga e lá levantei minhas mãos, chorei e aceitei Jesus em minha vida.” Debruçou toda a lamentação, carregada nas costas por toda uma vida, em cima de um deus que ela acreditava ser a sua salvação. A fé moveu o mundo dela e foi aí que Dona Maria se reergueu.

Quem ficou sabendo da ocupação no Jardim Denadai foi Carlos. Maria contou que ele tinha participado da construção efetiva da ocupação já no primeiro dia e passado a madrugada toda ajudando o pessoal a ca-

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pinar o mato alto do terreno. “Ele construiu um barraco de lona e depois fizemos de madeirite.” Enquanto viveu lá, a casinha em que morava tinha quarto, cozinha e garagem, na qual Carlos deixava estacionado seu Uno verde modelo 1996, talvez o maior bem material que o casal possuía.

Em Zumbi, Dona Maria sempre deixou suas asas se arrastarem para os ramos do comércio. “No começo eu vendia folhados, vários mostruários e lingeries, mas não estava rendendo muito e ainda tinha o serviço de babá. Cuidava de doze, treze, quinze crianças de uma só vez e tirava R$ 100 para fazer isso o dia inteiro durante o mês”, contava. A rotina de Maria começa-va cedo naquela época. Ela acordava às seis horas da manhã, junto com o sol e o canto dos galos, e o marido também levantava a essa hora da cama para pegar no batente. “Depois de um ano, o pessoal da ocupação anun-ciou quem queria tocar um comércio e decidi abrir a barraquinha”, afirma, relembrando do interesse dos próprios moradores em incentivarem todo mundo a trabalhar e a se ocuparem de alguma forma.

Dona Maria, religiosa que representa a crença de um povo brasileiro atordoado pela dificuldade e abençoado pela fé, foi muito amada dentro de Zumbi. “Todo mundo me conhece, mas tem algumas pessoas que eu nem sei quem são”, brincava, com seu humilde status de celebridade da ocupação. Sorrindo, a senhora dos quitutes ainda completa: “as crianças me adoram.”

E adoravam mesmo. Todas as vezes em que a vi, estava sempre cercada dos pequenos, que rodeavam a vendinha enquanto encontravam algum trocado para comprar uma paçoca ou um salgadinho, os maiores sucessos do ponto comercial. “Gosto de ficar aqui, não queria ter que sair, mas o que ganho não dá para cobrir todos os gastos de casa.” A conta da residên-cia chegava aos R$ 1,3 mil por mês, contou, e a renda familiar beirava os R$ 1,8 mil, ou seja, não sobrava muito para ela recorrer aos inalcançáveis prazeres da vida. “Além de tudo, tomo muitos remédios”, apontava, enu-merando todos os gastos com os quais tinha de arcar.

Durante os finais de semana, a atividade que mais dava prazer a Maria era a de ir a uma igreja que ficava distante cerca de vinte minutos, a pé, da ocupação. Ela relatou que sempre dava um jeito de chegar até lá, principalmente nos finais de tarde de domingo, para poder acompanhar o culto. Para ir, valia de tudo: a pé, acompanhada de amigos, ou mesmo de

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carona com algum dos poucos moradores que possuíam carros ali. E ela garante: era a igreja mais próxima de sua residência.

“Dona Maria, eu queria uma coca-cola. A senhora tem aí?”, perguntei, com a garganta seca devido ao calor excessivo daquele dia. A mulher, que sempre pedia ajuda de uma das crianças para pegar os produtos, dessa vez fez questão de abandonar o seu posto e levantou-se. Procurou no fundo da geladeira o refrigerante mais gelado que possuía – certamente aprovei-tou a oportunidade para também esfriar um pouco o rosto com o ar gela-do que saiu dali de dentro – e me entregou o líquido, com aquele mesmo sorriso intimidante de sempre no rosto. “Tá quente demais hoje, né?”

A mulher do comércio de Zumbi tinha passado por cima do muro da desgraça usando uma escada chamada fé, e não se arrependia de tudo o que passara. Radiante em todos os momentos, a mulher das bochechas rosadas e olhar profundo – como quem tenta lhe confortar sem dizer uma palavra – só não havia conquistado, ainda, um espaço que fosse só dela, de Carlos e dos filhos, mas ainda tinha esperança que isso acontecesse. “Graças a Deus, não falta comida na minha casa. Mesmo assim, queria ter um lugar que seja meu mesmo”, finalizou, depois de cantar duas vezes – tropeçar em uma ou outra palavra, retomar os versos desde o começo e, por fim terminar a estrofe (provavelmente porque a memória musical não estava das melhores naquele dia) – uma das canções que mais gosta de ouvir quando vai ao culto.

“Era um pecador, andava sem Jesus,Não tinha esperança, nem divina luz.Hoje sou remido, Cristo me salvou,Com Seu sangue me lavou.”(Um Pecador Remido – Harpa Cristã)

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Laura Lisboa da Silva Mota, 49 anos, poderia ser uma dona de casa comum – aquela que cuida dos afazeres domésticos, dos filhos e que tem uma trajetória de vida sem muitos alardes –, não fosse pela carga que le-vara durante toda sua vida sobre os pés que já haviam percorrido diversos estados do Brasil. Ao lado do marido Ariston Mota da Silva, 51 anos, ela faz parte de um povo que corre atrás do sonho de ser feliz, seja onde for, com uma casa confortável, o casamento sólido, os filhos com educação de qualidade e a família sempre por perto.

Laura, ou Tia Laura, como era chamada em Zumbi, chegou na comu-nidade em dezoito de abril de 2012, mas passou por muitos perrengues antes disso. Dona de uma simpatia inigualável e um carinho de mãe, a dona de casa não media esforços para fazer com que os outros se sen-tissem em casa. Junto a Ariston, formavam um casal cheio de carinho e romantismo para todos os lados, sem serem melosos, é claro. O que transbordava ali era a cumplicidade, demonstrada nos pequenos gestos de afeto que faziam um para o outro, principalmente na forma apaixonada com que se olhavam. Eternos amantes.

Tia Laura tinha estatura baixa e estava quase sempre usando camisetas em tons coloridos, por vezes no estilo regata, em outras com manga cur-ta. Os fios de cabelo misturados entre tons de castanho escuro e branco denunciavam que a idade avançada começava, aos poucos, a bater à porta. As rugas de cansaço já não eram tão evidentes e deixavam espaço de so-bra para o que mais chamava atenção naquela mulher: seu tímido sorriso, que aparecia a cada passo acompanhado de um leve deslize do rosto em diagonal sentido abaixo.

Ariston, em contraponto ao leve semblante retraído de sua esposa, tinha uma presença forte. Sua estatura era um pouco mais elevada e o homem deixava seu estilo no bigode, com uma coloração mista, tal qual os fios de cabelo da mulher. A visão profunda, com os olhos escuros e bem apertados, escondia um passado de muita caminhada sob o sol e inúmeras dificuldades.

Os passos do casal tinham sido bem largos. Tia Laura nasceu em Santo Antônio da Platina, no Paraná, município com cerca de 42,7 mil ha-bitantes – segundo último Censo do IBGE, feito em 2010 –, bem próximo à divisa com o estado de São Paulo.

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Ela contou, puxando com força na lembrança, que lá sempre vivera trabalhando na roça, pegando no batente em contato direto com a ter-ra. “Ajudava muito tanto na roça, quanto em casa. Lá tinha plantação de mamona, algodão, feijão e soja.” A presença de uma predisposição para a migração na família, particularmente, foi primordial para que Laura se-guisse os passos do desbravamento do território brasileiro. “Meu pai sem-pre trabalhou nas fazendas e minha avó morava na Bahia. Venho de uma família itinerante.”

Com o tempo, os pais se mudaram para Minas Gerais e ela foi para a Bahia, mesmo local onde a avó já estava vivendo. Foi lá que conheceu Ariston, seu marido e inseparável companheiro. No dia vinte de junho de 2013, tinham completado vinte e nove anos de casados. Brincavam que a memória já não era tão parceira na hora de relembrar quando o ataque do “amor à primeira vista” aconteceu. “Na Bahia existiam muitas novenas em que o pessoal fazia promessa para chover. Foi em uma delas que a gente se conheceu”, relata Ariston, que tinha a memória mais precisa. “Meu irmão mais velho namorava uma colega de escola da Laura e nos encontramos por acaso. Foi amor à primeira vista.”

Depois de seis ou sete meses – eles não souberam precisar o tem-po – de namoro, já juntaram os trapos e se casaram, sem nem ao me-nos imaginarem que passariam por tudo isso juntos e que fariam parte de ocupações. “Primeiro foi no civil e depois na igreja. Fizemos até festa e convidamos todo mundo”, contava Tia Laura com um sorriso largo, de-monstração maior de que a felicidade morava sob o mesmo teto que eles.

Já casados, começaram sua empreitada pela estrada da migração brasileira. Quando Laura tinha vinte e um anos, eles se mudaram para o estado de São Paulo e permaneceram em Guarulhos. Questionada sobre o motivo da mudança logo para o estado paulista, a mulher foi simples e direta na resposta. “Sempre ouvi falar do meu irmão mais velho que São Paulo era terra de oportunidade, que não era igual à Bahia, por isso viemos para cá.”

Coincidência ou não, mais de milhares de pessoas ouvem o mesmo que Tia Laura ouviu. Dados comparativos do IBGE mostram um panorama de rotatividade da população por solo brasileiro¹. Em 2004, as regiões que tiveram saldo positivo no fluxo migratório – ou seja, que receberam mais

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e perderam menos gente para outros estados – foram, em ordem do pri-meiro para o último, o Centro-Oeste (203.568 pessoas); Norte (63.741) e Sul (3.586). Já as com saldo negativo, foram o Sudeste (215.308 pessoas) e o Nordeste (86.587). Em 2009, a variação se alterou um pouco. As regiões com maior saldo positivo foram, ainda em primeiro lugar, o Centro-Oeste (136.590 pessoas) e, em seguida, o Sul (98.853). Com saldo negativo, estão o Nordeste (187.869 pessoas); Norte (35.159) e o Sudeste (12.415).

Já especificamente em Zumbi, a maioria do pessoal tinha como a região Nordeste sua terra natal. Entre os estados que mais marcaram presença ali, estavam a Bahia, Ceará e Pernambuco. Em segundo lugar, vinham os mora-dores que nasceram na própria região de Campinas, principalmente no caso dos jovens, geralmente originários de famílias vindas também do Nordeste.

Pois bem, a oportunidade foi aos pouquinhos batendo à porta da

família. De Guarulhos, foram para o município de Águas de São Pedro, no interior do estado, porque o irmão mais velho de Laura morava lá. “Vim de surpresa para São Paulo, mas não posso me queixar de nada”, afirmava, demonstrando certa gratidão pelos territórios pelos quais pas-sou. Na última cidade, ficaram vivendo por cerca de um ano prestando serviço para o dono de uma chácara. Depois disso, almejaram novos hori-zontes e foram para a capital.

Lá, eles viveram no Jardim Ângela, na Zona Sul da cidade, na encosta com a Represa Guarapiranga. Era o ano de 1987, e o casal relembrava com tristeza das condições precárias em que viveram. As palavras sobre lá foram curtas e os olhares se desviavam, tentando procurar algum apoio para o sentimento ruim que permeou o momento, como se não houvesse o mínimo interesse em relembrar da situação. “Morávamos em um porão horrível, tão ruim que a água escorria pela parede o tempo inteiro”, conta

1. OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de; OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de, org. IBGE: Reflexões sobre os deslocamentos populacionais no Brasil. IBGE: Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/popula-cao/reflexoes_deslocamentos/deslocamentos.pdf. Acesso em: 13 out. 2013, 18:10.

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Ariston, que por ali arranjou um bico de ajudante de pedreiro, que mal dava para cobrir as contas.

Dali, os companheiros partiram para a Vila Pauliceia, também na capital paulista, no distrito de Santana, Zona Norte. Viveram nesse ponto por cerca de três anos e relembravam bem de como era viver ali. “Vivemos em um barraco muito menor do que este (em Zumbi). Em frente à nossa casa, pas-sava muito escorrimento de óleo e de melado, era bem ruim”, contou o ma-rido, fazendo referência ao cheiro que invadia sua casa por conta da sujeira.

Sempre pipocando de um lugar para o outro, ainda sem uma situação regular e confortável em algum desses diferentes bairros e municípios, o casal partiu novamente. Saíram da Zona Norte para regressar à região sul, dessa vez em Santo Amaro. Ali, praticamente às margens da Represa Billings e ainda vivendo de forma irregular, firmaram-se por um tempo maior: oito anos. “A gente sabia que era irregular, mas não tinha outra solução.” Ariston ainda contou que o local “era de área verde” e, por isso, não podiam viver ali. Em outras palavras, o terreno em que montaram um barraco ficava em uma Área de Proteção Permanente (APP) e, por isso, poderiam ser expulsos do local a qualquer momento. Mas isso não aconte-ceu. Antes que levassem um pé, o casal foi para Minas Gerais.

A cidade onde viveram chama-se Espinosa, com uma população de pouco mais de 31 mil habitantes, segundo o Censo 2010 do IBGE. Ali, a vida foi pouco promissora. Viveram um pouco ao lado dos pais de Laura, que estavam em Minas, e logo voltaram para o estado de São Paulo, dessa vez para morarem na cidade de Jales.

Em solo paulista novamente, trabalharam em plantações de cana – pela primeira vez, voltaram às origens de Laura, que crescera no meio de plan-tações na roça junto aos pais – e levavam até a filharada para ajudar. “Na verdade, eles iam com a gente para ficar chupando cana”, brinca Ariston, referindo-se a dois dos três filhos que possuem (o mais novo não havia nascido nesta época): Cláudio e Fábio, na época com quatro e três anos, respectivamente.

A vida na roça não foi suficiente para prender a família itinerante em um só local e eles partiram de Jales rumo a Louveira, cidade distante cerca de sessenta e cinco quilômetros da capital paulista. Ariston prestou muito serviço como pedreiro na cidade, função que já havia desempenhado em

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outros locais, mas já começou a sentir nessa época a dor que a idade um dia ia lhe trazer. “Sentia muitas dores nas costas e no corpo todo. Também sentia muito calor trabalhando.”

Ficaram na cidade por quase um ano e saíram dali para viverem em Hortolândia, pagando aluguel em uma casinha – no diminutivo, porque a casa era pequena mesmo – por cerca de seis meses no Jardim Nossa Senhora Auxiliadora. Em julho de 2011, ficaram sabendo da ocupação Dandara, naquela cidade mesmo, e decidiram juntar-se ao resto do pesso-al: foram ocupar. “Montamos uma casinha que parecia de cachorro. Lá, não tinha água, nem luz. Não tinha nada”, contava Ariston.

Improvisaram, junto aos outros moradores ali na ocupação hortolan-dense, um “gato” na fiação elétrica para garantir pela menos a luz dentro de casa, mas, depois de cerca de três meses vivendo ali, foram expulsos do terreno ocupado. Da situação, lembram-se com tristeza. “É muito ruim ser despejado de um lugar sem nem saber para onde você vai depois dali. A gente tem que se sujeitar a acompanhar pessoas que a gente nem conhe-ce direito, mas sabemos que as coisas não dependem só dos movimentos, tem também a Prefeitura e todo o governo”, apontava Tia Laura, mos-trando ter algum conhecimento sobre toda a parte burocrática e política envolvendo a situação.

Do Dandara, ainda tiveram uma também rápida passagem pela Flaskô, a fábrica em Sumaré que tinha sido ocupada por trabalhadores. Foram re-cebidos pelos ocupantes do local e, após seis meses de estada, saíram para fazer parte da Comunidade Zumbi dos Palmares.

Um fôlego para a família e um novo raio de esperança. Tia Laura contou que a construção do barraco deles se deu por três etapas. “O pes-soal daqui nos recebeu muito bem. Fomos erguendo o barraco aos poucos até chegar nisso”, relatou, mostrando o espaço onde viviam.

A residência da família era bem dividida e tinha suas particularidades. Eram seis cômodos, bem pequenos, sendo três quartos ao fundo, um ba-nheiro com a porta virada para uma espécie de corredor – fazendo a liga-ção entre a sala e os demais cômodos, exceto a cozinha –, uma sala e uma cozinha, que acabara sendo dividida em dois cômodos para caber mais uma cama, ocupada até então por sua sobrinha e o filho dela, últimos a

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chegarem para compor a família na ocupação.Tudo ali era bem apertado, mas não deixava de ser aconchegante, já

que as coisas, magicamente, estavam tão bem dispostas, que o aperto pas-sava despercebido aos olhos – e corpos – de quem entrava ali. Além de Tia Laura e Ariston, com seus três filhos Cláudio, então com 28 anos, Fábio, com 27, e Ezequiel, 12, a turma também era formada por outros parentes de Laura: o irmão Garcia Antônio Lisboa, 59 anos; a irmã Maria Aparecida Lisboa da Silva, 55; Delzemara da Silva Santana, 30 anos, filha de Aparecida e o menorzinho de todos, Everson Luan da Silva Pardinho, de um ano e meio, filho de Delzemara.

A grande família cabia no barraco e ainda sobrava espaço para receber as constantes visitas, que enchiam seus olhos à primeira luz do dia em busca do convidativo café da Tia Laura. A sala, que parecia ter sido feita especialmente para o recebimento dos fãs da iguaria, tinha um sofá que estava quase sempre rodeado por gatos que a turma acabara adotando, por carinho pelos animais. O chão era de terra batida e deixava transparecer a simplicidade da habitação, sustentada por paus de madeira deixados à mostra – o que dava até um certo toque rústico para a casa. “Gosto muito daqui e tenho amizade com meus vizinhos. A gente acaba sem saída nesse lugar. A área não é nossa e não queremos ajuda de parentes. Estamos sem destino na vida”, elucidava a dona de casa.

Como a família tinha passado antes pela ocupação do Dandara, em Hortolândia, o cadastro deles para ganhar uma moradia pelo Minha Casa Minha Vida ficou por lá e eles ficaram no aguardo. Enquanto isso, tive-ram de encontrar outro lugar para morar e garantir o sustento deles e dos demais familiares.

Para isso, contou Ariston, ele topava qualquer bico e mostrava intensa disposição em trabalhar e ajudar no que fosse possível. “Eu faço o que posso, o que não pode é fazer corpo mole. Não tenho culpa da falta de informação que temos e a gente sabe que corre o risco de sair disso tudo sem nada nas mãos.” O trabalhador, aliás, tivera seu serviço comprome-tido em setembro de 2012. Enquanto fazia um serviço no mesmo bairro onde se situava a Flaskô, no Jardim São Judas Tadeu, um arame acabou entrando em seu olho e ele perdeu a vista quase que por completo. “Es-tou fazendo tratamento para recuperá-la. Colocaram uma lente em mim,

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já passei por duas cirurgias e hoje enxergo trinta por cento”. Além do problema na vista, Ariston também estava com problema em um dos pés, que até desistiu de tratar. “Dá muito trabalho. Ao invés de ir ao médico, dou umas marretadas nele para ver se volta no lugar”, falava o homem, em tom de brincadeira com uma mistura de angústia. Mesmo assim, ele nunca parou de trabalhar.

E como os outros familiares foram parar ali? Tia Laura e Ariston contaram que Garcia, o mais velho dos dois irmãos da dona de casa que moravam com eles, tinha sido atacado na perna por um cachorro enquan-to trabalhava no cultivo da cana. Depois disso, foi morar com a outra irmã em Campinas e, já dependente de familiares por ter uma doença mental desde os dezessete anos, acabou caindo nos braços do casal. Em junho de 2013 ele já havia completado um mês como morador da ocupação e passava por tratamento médico em Campinas.

De poucas palavras e com a fisionomia visível de um homem cheio de problemas, Garcia tentou conversar comigo algumas vezes, mas as poucas palavras que conseguia pronunciar se restringiam a perguntar quem eu era; o que estava fazendo ali e se eu era médica. “Ele acha isso de todo mundo que chega aqui um pouco mais arrumado”, explicava Ariston, acalman-do os nervos do homem que parecia ter confiança no cunhado. Depois de uma conversa entre os dois, nos dias que se seguiram eu o encontrei perambulando pelo espaço e, como o homem já me reconhecia de longe, tentou se aproximar novamente, desta vez com carinho e zelo.

A irmã Maria Aparecida, que chegara de mala, cuia, filha e neto para viver ali, foi para a ocupação em busca também de tratamento médico e alguns exames mais especializados. Na mesma data, ela já estava no local há quatro meses e veio diretamente da Bahia só para isso. “Lá é complica-do arrumar os exames. Aqui, todo mundo é atendido pela Unicamp, que é bem mais fácil do que ir até o Mário Gatti (hospital público localizado em Campinas, em uma região próxima à Rodovia Anhanguera)”, resumiu Laura, referindo-se à família que depende, além de tudo, do SUS – um problema a mais, já que o sistema público de saúde brasileiro vinha enfren-tando diversos problemas com a falta de médicos capacitados, tratamen-tos especializados e recursos financeiros para investimento em melhorias

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e criação de novos leitos e hospitais.

Além do café, bem característico do reconhecimento de Tia Laura dentro de Zumbi, a mulher também era famosa pelos pratos que gostava de preparar para a família. “Tenho um livro de receitas e gosto de fazer comidas diferentes todos os dias”, contava, mesmo afirmando que, na maioria das vezes, tirava os pratos de sua intensa memória para cozinhar, uma de suas maiores distrações ali.

Ela contou que, em Minas Gerais e Hortolândia, por exemplo, vendeu salgados e lembrava ter recebido um monte de encomendas naquela épo-ca, sinal de que a mão era cheia. No balcão da pia da cozinha de sua casa em Zumbi, que tinha um tamanho bem razoável, havia desde legumes, até frutas e condimentos. No dia em que apareci por lá, cheguei a ver alguns pimentões bem coloridos e bonitos, que certamente virariam alguma de-lícia logo após o meio-dia. Pelo menos comida, daquela vez, não faltou à grande família de itinerantes.

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Quatro horas e quinze minutos da madrugada de cinco de julho de 2013. O frio de um final de noite típico de inverno não foi convidativo o suficiente para ganhar Daniela no aconchego de sua cama, tamanha a angústia que lhe permeava as veias. Ela só fechou os olhos porque não suportava mais ficar atordoada. E acordou junto com o sol e o canto do galo, às seis horas da manhã, com o mesmo cansaço mental que a acom-panhava por dias consecutivos. Ela já sabia que o fim da comunidade estava próximo.

A voz se calou. O timbre que sempre liderou a comunidade, dessa vez ressoava baixinho. “Eu amo este lugar”, dizia. Daniela Cristina de Moraes, 32 anos, uma das coordenadoras de Zumbi que permaneceu nesse posto até o final da ocupação, aprendeu na marra o significado da paixão por um local. “Esse Movimento, ou é para todos, ou não é para ninguém”, afirmava.

Daniela, ou Dani, como era chamada pelos então companheiros de ocupação, nascera em Piracicaba, cidade distante cerca de quarenta e dois quilômetros de Sumaré. Aos três anos de idade, saiu de sua cidade natal, aconchegou-se em solo sumareense e nunca mais saiu dali.

Dani nunca havia exercido a vocação de líder antes de entrar em Zum-bi – na verdade, não era muito chegada a movimentos sociais de luta por moradia, tinha uma visão bem diferente de o que era aquilo. Ela contou que ficara sabendo que iam ocupar um terreno através de uma amiga de sua irmã, e então tomou coragem de se juntar à massa, visando um futuro financeiro e habitacional melhor para ela e sua família. “Chegamos aqui com mais mil e quatrocentas famílias. Na segunda semana de ocupação, já virei coordenadora.”

A luta dessa mulher pelo bem-estar da população local foi no-

tável. Entre uma conversa e outra, ela enumerou algumas “aventuras” vividas e presenciadas na comunidade. Sabe-se, por exemplo, que a difi-culdade passada pelos moradores era bem gritante ali dentro, em muitos aspectos já citados, como a qualidade de vida, disponibilidade de recur-sos básicos – saneamento, infraestrutura, saúde e educação. Mesmo as-sim, uma vez Daniela viu uma das acampadas passando fome e tratou de solucionar o problema na hora: saiu batendo de porta em porta – ou de barraco em barraco – pedindo ajuda com doações e conseguiu lotar um

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carrinho de feira para entregar os mantimentos à mulher que estava no extremo do sofrimento.

A amizade foi bem marcante na vida de Dani. E das outras coordena-doras também. Em Zumbi, elas formaram uma espécie de laço materno com os demais moradores. Era pedido de ajuda de um lado, conselho amoroso do outro; ombro amigo aqui e risada ali. “Dou muito valor para a amizade sincera, que não tem outro tipo de interesse”, contou, no dia em que se reuniu informalmente com as companheiras em uma das duas mesas que compunham o único boteco existente na comunidade.

Amante de um bom samba, ficava brava com os meninos que ouviam funk em plena luz do dia e não media a quantidade de sermões a dar ao pessoal. “Às vezes falo para eles abaixarem o volume, mas eles são teimo-sos.” O jeito dela, uma pequena mulher (em estatura) com ares de invo-cada, deixava os marmanjos na defensiva. E ela botava ordem na casa, ou melhor, na comunidade.

Sua casa era modesta, mas uma das maiores ali dentro. Tinha quar-to, banheiro, sala, cozinha e um quintal onde sempre me recebia para as conversas matinais. Ali onde ficávamos, havia uma espécie de portão na casa, improvisado com madeirite, que me lembrava um pouco aquela ve-lha história da mulher que fica à espera de seu amor à beira da janela. Só que, neste caso, eram as outras pessoas que se debruçavam na madeira e já gritavam pelo nome de uma das líderes da comunidade, recorrendo a ela para ajudar em qualquer coisa.

O quintal tinha um sofá, simples, com estofado em tons de roxo e pre-to, feito com linhas bastante resistentes e colocado logo abaixo da enorme janela da sala, que dava com a vista para a televisão – dali dava para a mãe ver o que os filhos estavam aprontando, todos sempre muito brincalhões. Do lado de fora, havia também uma cadeira com cara de que já havia apa-nhado um pouco do tempo e era oferecida normalmente às visitas, que podiam assim escolher um canto que mais lhes agradasse.

Parecia um lugar bem convidativo, ideal para se jogar conversa fora o dia inteiro. De vez em quando, as reuniões da liderança aconteciam ali. As coordenadoras marcavam no boca a boca um horário e se reuniam naque-le espaço. Ali, cada uma se aconchegava onde era possível, e abriam uma cerveja para quebrar o gelo da seriedade.

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Entre os temas mais discutidos durante as reuniões informais – que por sinal chegavam a durar horas em certas ocasiões –, estavam a organização da lista dos beneficiados pelo Minha Casa Minha Vida, o atendimento no Posto de Saúde local, a organização da pauta das assembleias, o recebi-mento de doações para a organização de eventos internos e a resolução de problemas dos moradores que recorressem à ajuda delas. O volume de assuntos era bem grande, mas, mesmo assim, ainda dava tempo para uma pausa de vez em quando, momento em que aproveitavam para dar uma respirada e pegarem outra cerveja – devidamente gelada.

No meio de tanta gente, havia ali uma necessidade de ter um ou mais líderes para, digamos, botar ordem na casa. Guilherme Simões, um dos coordenadores estaduais e nacionais do Movimento, contou sobre a criação desta coordenação interna não só em Zumbi, como em todas as comunidades erguidas pelo MTST. Ele disse que as instruções dadas à população local eram feitas por meio de assembleia geral, realizada quase que todos os dias, e também pela comunicação dos coordenadores. “Você divide a ocupação geograficamente por grupos e em cada um você extrai uma coordenação.” Em Zumbi, tais grupos eram chamados de brigadas. Daniela era líder de uma delas e tanto sua função, quanto das outras mu-lheres, era a de tratar a fundo cada problema para organizar melhor todos eles. “Tem uma coordenação destes grupos, que vem do próprio povo, e que vai ser responsável pela organização interna”, aponta Simões.

Dentro dos problemas relatados por elas, estavam as questões de lim-peza, frequência dos moradores – consistia em checar se eles ainda esta-vam morando lá, ou se haviam abandonado a ocupação – e cozinha, entre outros tópicos. “O Movimento não tem recursos financeiros, não cobra dinheiro das famílias, mas também não tem condição de bancar absoluta-mente nada para eles. Este método organizativo é que garante isso, garante uma coesão também nesse sentido”, explicou.

As outras mães da comunidade, que também tinham a mesma repre-sentatividade de Daniela, eram Márcia, Rafaela e Dione. Mesmo assim, foi com Dani que tive o maior contato. Ela me levou para conhecer cada canto da ocupação, fez questão de me apresentar a todos os moradores com quem se encontrava e esbanjava carinho e cuidado com quem recor-

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ria a ela. Foi em cada um desses momentos que, minuciosamente, cheguei a uma conclusão certeira sobre esta mulher, algo que todos os habitantes ali também sentiam: Dani era mãe por excelência.

Seus filhos de sangue estavam ali, sempre presentes. A pequena Sofya Laura, de oito anos, era a que ficava por perto rodeando a mãe e apron-tando alguma arte. Na primeira vez que estive na casa de Dani, a pequena quis dar uma demonstração de suas peripécias e estourou um sachê de maionese tão perto de mim, que acabou respingando todo o conteúdo na minha calça. O sermão da mãe foi dos grandes e até eu me amedrontei, mas a cena da menina não passou de mais uma de suas brincadeiras, ações que fazia constantemente para chamar a atenção e mostrar sua presença e personalidade ali... coisas típicas de criança. Mesmo assim, seu carinho era muito grande. Serelepe que só ela, Sofya era quem me levava de cima para baixo dentro da comunidade e batia perna por todos os cantos. Acompa-nhava-me por tudo, como se quisesse me mostrar a todo tempo as coisas, as diferentes pessoas e os “tesouros escondidos” da ocupação.

Além dela, Dani também tinha outros dois filhos: Victor Hugo, que não tinha chegado ainda a um ano de vida, e Alisson Wender, 12 anos – um menino de pele morena com sorriso tão branco e sedutor que até rebatia a luz do sol, além dos traços suaves do rosto, que dariam a ele facilmente um emprego de modelo fotográfico. Seu marido, o pintor Jair Rodrigues Dias, 43 anos, morava com a esposa e tinha um filho com outra mulher, Lucas Gabriel, de 17 anos, que era tratado como filho por Daniela.

Ali dentro – e talvez fora da comunidade também – a coordenadora Rafaela era a melhor amiga de Dani, e as duas estavam sempre grudadas. Uma morava ao lado da outra e viviam se trombando pelas ruas estreitas de Zumbi. “Nós éramos amigas desde a época em que morei no Jardim Manchester (outro bairro de Sumaré).”

As duas, juntas, passaram por algumas situações inusitadas. Era mui-to comum, por exemplo, as pessoas virem a óbito sem motivo aparente – Dani deduzia que a tristeza vivida ali dentro contribuía em peso para o enfraquecimento físico, mental e psicológico dos ocupantes. “Muita gente aqui dentro mora sozinha e acaba adoecendo”, contou Dani. Em outro caso, ela presenciou um homem correndo com desespero pelas

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ruas da comunidade só de cueca e um balde na mão. Comumente os barracos pegavam fogo e todo mundo tinha que se juntar para ajudar a apagar as chamas.

Daniela, que transparecia uma personalidade invocada, tinha tom de pele bem moreno, nariz com a ponta arredondada, olhos escuros como um céu em dias de chuva e, mostrando não se importar muito com seus status de coordenadora, às vezes saía de dentro de sua casa usando a pri-meira roupa que via pela frente – às vezes até de pijama. Mas aquela mu-lher marrenta usava esse disfarce para esconder um arco-íris dentro de si.

Ao contrário de como pensava antes de entrar em Zumbi, Daniela passou a ser a favor da criação desse tipo de comunidade. “A gente não ocupa para ficar. Ocupamos para alertar e mostrar que o lugar está ilegal. Não construímos moradia.” É tão a favor, que se apegou a tudo o que vivera ali. E chorou. Enquanto conversava comigo, deixou algumas lágri-mas escorrerem, lembrando-se das derrotas e conquistas que havia tido por conta da comunidade. “Quando chegamos, muitos desistiram, outros já tinham uma casa e foram embora. Outros, ainda, conseguiram juntar dinheiro suficiente para sair daqui e não pensaram duas vezes.”

Ela conta que muita gente de fora também deu uma força para a vida ali. “Temos ajuda de sindicatos como o STU (Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp) e o dos Químicos. Somos um movimento social e político, mas não pertencemos a nenhum partido”, deixa claro a coordenadora, além de relembrar com carinho do coletivo da Unicamp que levara um pouco de cultura para o espaço.

Uma outra função das líderes era a de auxiliar nos tratamentos de saú-de do pessoal. O Posto de Saúde, que ficava há cinco passos da entrada principal da comunidade, era rígido com o atendimento às famílias. A co-ordenadora conta que eles tiveram que fazer uma lista de cada morador e entregar no PS. Assim, quando um deles tivesse que ser atendido ali, respondia a “lista de chamada”; tudo para não criar bagunça e seguir a burocracia do município, que era bastante rígido com os moradores.

Além disso, eles também contavam com a conquista de um sistema precário de distribuição de energia elétrica. “A Prefeitura colocou os pos-tes na rua, mas não interligou de casa em casa. Aí, a gente teve que dar o nosso jeito”, brinca, remetendo-se ao famoso “gato”.

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Tudo ali dentro só funcionava na base da doação. Quando aparecia al-gum problema, como esse, todo mundo era recrutado para dar um pouco de si em prol da melhoria do espaço, fosse através de dinheiro, ou com a contribuição braçal. Também houve casos em que eles protestaram em frente a prédios públicos do município e até mesmo no meio de rodovias. Aí, valeu a força de cada um.

“Paramos a Rodovia Anhanguera três ou quatro vezes e a Santos Du-mont uma vez”, relatou Dani. Nessas ocasiões, elas arrecadavam mais dinheiro para conseguirem confeccionar camisetas estampadas com a bandeira do MTST, quase todas banhadas a tinta vermelha, símbolo em semiótica de luta dos movimentos considerados “de esquerda” – aqueles em defesa do proletariado e das camadas da mais extrema pobreza. “No nosso grupo de trabalho, a gente forma uma comissão de frente que joga pneus e gasolina para colocar fogo e fazer a barreira. Além disso, temos todo um esquema de mapeamento.” O estardalhaço era tanto quando eles faziam ações deste tipo que até a imprensa regional virava os holofotes para eles. Em matéria publicada no dia trinta e um de março de 2009 no jornal Correio Popular, um dos mais tradicionais da Região Metropolitana de Campinas (RMC) – que inclui Sumaré –, é possível ver o quanto eles conquistaram seu espaço, pelo menos na atenção dos outros.

“As manifestações simultâneas organizadas pelo Movimento dos Tra-balhadores Sem Teto (MTST) em todo o Estado de São Paulo ontem pela manhã causaram um nó no trânsito de Campinas. Às 11h30, quando o tráfego já não apresenta tantos problemas quanto nos horários de pico, eram registrados ao menos seis quilômetros de congestionamento entre as rodovias Anhanguera e D. Pedro I por causa da interdição de uma das pistas principais da Anhanguera por moradores da ocupação Zumbi dos Palmares, em Sumaré. Eles atearam fogo em pneus e só depois de 40 minutos, com a chegada do Corpo de Bombeiros, libera-ram a pista. Ninguém se machucou. Eles protestaram contra a falta de moradias populares, a crise financeira mundial e as demissões. (...) Elas reivindicavam maior agilização e desburocratização nos planos habitacionais da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Ur-bano (CDHU), inclusão das famílias da ocupação no Programa de

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Aceleração do Crescimento (PAC) da Habitação do governo federal, que prevê a construção de 1 milhão de casas no País, e o fim dos despejos e mais políticas de moradia popular pelas prefeituras.” ¹

Eram as próprias coordenadoras, também, que faziam o papel de assessoras de imprensa de Zumbi. “Nós temos contatos em vários veí-culos e assim fazemos o anúncio dos nossos atos pela região.” Foi assim, através da voz e até do grito – que deixou as coordenadoras roucas – que Zumbi venceu.

Mas, no dia cinco de julho, Daniela entristeceu-se. Parecia que a ficha finalmente havia caído. Ela não tinha conseguido dormir, mal se reerguia e ainda, contou, tinha que ouvir o marido falar que não aguen-tava mais viver ali, porque as condições em que estavam não ajudavam muito na superação das inúmeras dificuldades. Numa dessas, a mulher se encontrou na incerteza do lugar para o qual iria – antes de se mudar para os prédios do Minha Casa Minha Vida – mas tinha que aceitar de vez que Zumbi, sua amada ocupação, estava morrendo. “Vou fazer esta luta a vida inteira, quero garantir moradia para os meus filhos”, afirma.

Após tal pronunciamento diante de seu quintal rodeado de esperança, Dani levantou-se do modesto sofá, abriu o portãozinho feito de madeirite e saiu cambaleando pela rua de terra batida na qual pisou por cinco anos. Acompanhada ali da filha Sofya, que curtia um passeio de bicicleta – sua brincadeira preferida ali dentro –, deu dois passos para fora de casa e já foi parada por um dos moradores. “Bom dia Dani, preciso da sua ajuda.” Ela então se recompôs e tudo voltou ao normal.

1. BORLINA FILHO, Venceslau. Protesto para o trânsito em rodovias. Correio Popular, Campinas, p. 7, 31 mar. 2009.

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O cenário era desolador. Sempre fiz o mesmo caminho para chegar na ocupação: pegava a Rodovia Anhanguera, sentido interior, e passava por um acesso à Área Cura de Sumaré. Depois de enfrentar milhares de buracos pelo asfalto – parece que a Prefeitura não tem dado muito as caras por ali com obras e serviços públicos –, virei à direita em frente ao super-mercado mais representativo do Jardim Denadai e duas quadras abaixo já estava ali, na rua de Zumbi. Subi até o final, como de costume, mas o meu preparo psicológico não havia sido blindado o suficiente para encarar aquele lugar, que mais parecia uma cena de filme de guerra.

Era dezessete de outubro de 2013. Após cerca de um mês e meio da completa retirada das famílias, o terreno deveria estar em melhores condi-ções. Mas não estava. Vi amontoados de pedaços de madeira, de grandes placas de madeirite e diversos materiais de construção que nem pareciam fazer sentido ali no meio, como pedaços de concreto e alvenaria. Com certeza pessoas de outros lugares da cidade aproveitaram-se da situação para fazer do local um grande depósito de entulho.

Desci do carro para ver mais de perto tudo aquilo e encontrei alguns pequenos focos de incêndio – na verdade, só se via uma fumaça bem cin-zenta, sinal de que não havia borracha ou materiais explosivos ali no meio – espalhados em pontos distintos. Não sabia o que aquilo significava, mas não havia nenhum ser humano por perto que eu pudesse identificar como causador do fogo.

Decidi pegar o velho caminho a pé que me levava para dentro do mundo mágico de Zumbi e subi a entrada do que, antes, era a Aveni-da Zumbi. Ao invés de ver crianças correndo sem preocupação alguma com a vida, adultos conversando sobre assuntos diversos e os jovens ou-vindo música e dando uma volta de bicicleta, só vi e ouvi o nada. Aquele lugar nunca fora tão quieto.

Vi dezenas de móveis jogados a céu aberto, sofás revirados de cabeça para baixo e inúmeros vasos sanitários que de nada serviriam ali, a não ser de empecilho para a limpeza, que ainda não havia sido feita. E quando me virei para a esquerda, procurando alguma coisa que ainda simbolizasse a tremenda ocupação que um dia existiu ali, percebi a presença de homens da construção civil, que já estavam a todo vapor naqueles cantos, com suas enormes máquinas e tratores amarelos. Nem os raios de sol conseguiram

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pintar o que já ficara estampado em preto e branco.

A luta do MTST, em Zumbi, foi eficiente. Guilherme Simões afir-mou que um dos objetivos maiores do Movimento, o da conquista de moradias dignas aos trabalhadores, tinha sido feita, mas ainda assim os militantes continuavam batendo em outra tecla: a da territorialização. O Movimento marcou presença na região de Campinas mais uma vez – outra ocupação de sucesso, que culminou com o início do MTST no país, foi a do Parque Oziel, às margens da Santos Dumont, em Campinas, e já citado em capítulos anteriores – e agora eles partem para outros locais dentro do Estado de São Paulo.

Mas a saída, em Sumaré, se deu aos poucos. No começo de julho de 2013, já era possível ver o pessoal se dividindo em equipes e trabalhan-do em conjunto para desmontarem, cada um, seus respectivos barracos rumo a uma nova jornada longe de Zumbi.

Como tudo que acontecia na ocupação, o trabalho era feito em equipe. Um ajudava no transporte, outros na desmontagem, mas sempre havia in-tervenção de mais de uma família para a tão aguardada – e temida – saída.

A única que parecia descontente com a situação era Dani. Entristecida, representava em suas lágrimas a mesma lamentação que tem uma mãe quando o filho cresce, cria asas e voa para o mundo. Ao mesmo tempo tinha ali, no olhar, a busca de um novo horizonte, já que o sonho da casa própria estava finalmente diante de seus olhos. Dali em diante, era se aprontar para a chegada da tão árdua conquista.

E foi o que aconteceu. Dani foi uma das últimas a sair da ocupa-ção, que terminou de vez no comecinho de setembro. Ainda um pouco amargurada, despediu-se das terras que a tinham como filha e foi morar no Parque Santo Antônio, também em Sumaré.

A casa em que passou a viver – e onde permaneceria até o início do ano seguinte, período em que o contrato de locação do imóvel venceria – ficava em um bairro simples e quase que escondido em meio à multi-dão sumareense.

O Parque Santo Antônio fica na região de Nova Veneza, bem próximo

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à Rodovia Anhanguera, na beira da Estrada Municipal Valêncio Calegari. Local bem estratégico, por sinal. O bairro de Dani fica na ligação entre Sumaré, Paulínia e Hortolândia, além de estar pertinho da rodovia. Mas, segundo ela, não existia quase nada por ali.

Os filhos continuaram frequentando a antiga escola, tendo de cami-nhar por cerca de quarenta minutos – uma metade na ida e outra na volta – para estudar. O filho Alisson contou que pegava muito sol, mas se di-vertia na rota para os estudos. “É bom que lá tem computador pra gente usar internet”, afirmou com entusiasmo. Enquanto sorria relatando seus passos entre um bairro e outro, relembrou com carinho de Zumbi e dos amigos que tinha feito lá. Sempre que podia, ia visitar os colegas filhos de Rafaela, amiga de Dani. O único perrengue era ter que atravessar a Anhan-guera a pé, já que eles tinham ido morar no Jardim Maria Antônia, distante também cerca de vinte minutos de sua nova casa.

Aliás, a nova moradia da família de Dani esbanjava simpatia. Ficava na Rua 3 do Santo Antônio e já na entrada tinha um espaço ideal para fazer uma festinha aos finais de semana – coisa que, garantiu Dani, já tinham feito. “Fizemos churrasco aqui, mas é bem diferente de quando acontecia a mesma coisa no Zumbi. Lá parecia maior”, lembrou com apreço.

Mesmo assim, o novo lar era bem mais adequado, ao que se podia ver, para criar os filhos. Depois de passar pela área de festas, havia uma escadi-nha que dava para a sala da casa. Tudo ali ficava bem ajeitadinho, limpo e em ordem e um corredor espaçoso levava o visitante para os outros cômo-dos da casa: quartos, banheiro e cozinha. Parece que finalmente a família deu um suspiro de alívio, comparado às condições em que tinham vivido.

Tia Laura também havia melhorado na vida. Depois de dar tantos passos ao longo do território brasileiro, viver à beira de represas, no meio da degradação humana e em mais de uma ocupação, tudo sempre de for-ma irregular, dessa vez ela estava a um fio da conquista maior.

A dona de casa foi uma das últimas também a sair de Zumbi. Ainda no final de agosto, restavam sete ou oito famílias na ocupação e a de Laura era uma delas. “A gente ainda está aqui porque estamos registrados pela ocu-pação Dandara, de Hortolândia.” Depois de explicada a situação, ela me levou para conhecer o segundo barraco em que viveu em Zumbi. Ele era

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maior, tinha uma cozinha enorme comparada à que havia construído no primeiro lar de madeirite em Sumaré. Mesmo assim, estava longe daquilo com que ela sempre sonhara.

Depois que o prazo final de saída das famílias finalmente chegou, ela e a família partiram do território. Foram todos morar em Hortolândia, no bairro Nova Hortolândia. O local, comparado a outras regiões da cidade, fica bem próximo ao centro e é cortado pela Avenida Anhanguera, impor-tante via dentro do município.

Lá, Tia Laura garantia estar bem, falando com sorriso no rosto e tom de alívio pela primeira vez em muito tempo. “Aqui é muito melhor do que em Zumbi”. Agora, ela e a família, comemorando com felicidade a conquista parcial, aguardavam o aval da Prefeitura de Hortolândia para a liberação do empreendimento que abrigaria não só eles, mas outros ha-bitantes que seriam beneficiados pelo Minha Casa Minha Vida. A espera ainda estava sem prazo para acabar, mas, só de ter ciência de que seu nome tinha finalmente entrado para a lista dos ganhadores, Tia Laura já exibia alegria. “Daqui pra frente a gente vai viver muito melhor.”

Vô deu um grande salto na busca por moradia. O homem, que tinha uma vida embebida pelo rap e pelo amor por Julinha, saiu contente de Zumbi. Pouco antes do final de julho, ele já havia juntado seus trapos para partir dali e foi viver no Jardim Santa Carolina, também em Sumaré.

O bairro, à beira da Anhanguera, mas do lado oposto do Jardim De-nadai, está em uma posição de fácil localização. Para chegar em sua casa, era só pegar um acesso e uma esquina. Pronto, ali estava a simpática casa feita em alvenaria e paredes cor de salmão, com direito a garagem e espaço para as crianças brincarem. E, claro, criança é o que não faltava lá, na casa do vô de muitos netos.

“Aqui a gente vive bem melhor, mas por enquanto a casa é tempo-rária”, contou o homem. Ele relatou que ia ficar ali por pouco tempo e, depois, queria voltar a viver no Jardim Denadai. “Já tenho até uma casa por lá e vou alugar até ganhar meu apartamento.”

Enquanto isso, no Santa Carolina, Vô exibia o feito. A conquista era um marco em sua vida. Enquanto me mostrava a nova casa, fazendo ques-tão de exibir os detalhes, deu uma pausa no corredor para dar atenção

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à amada. “Olha só como a Julinha está feliz aqui na casa nova”, falava, ajeitando a mulher na cama e verificando se estava tudo nos conformes. “Julinha, fala oi para a nossa amiga”, conversava. A mulher, ao contrário do que ele esperava, não exprimia qualquer reação. A frustração no rosto do homem foi explícita, mas não suficiente para pará-lo na caminhada de exibição da nova casa.

O local era grande, mas ainda insuficiente para abrigar tanta gente. E ele reiterou que era temporário. “Quero voltar para perto do Zumbi, ali tem tudo o que a gente precisa”, afirmou, fazendo referência aos serviços que ele tinha sempre à mão como escola, posto de saúde, delegacia, farmá-cia e supermercado. “Aqui é distante das coisas.”

Antes de chegarmos à casa nova naquele dia, Vô foi me encontrar no que ainda restava da ocupação. Havíamos combinado o encontro ali porque, confesso, não sabia chegar no Jardim Santa Carolina e o ho-mem, muito disposto, fez questão de me levar até lá na posição de guia com seu Palio Weekend verde musgo.

Ao estacionar o carro, a surpresa foi grande. Além dele, também esta-vam lá a Tia Laura, Dani e Rafaela, conversando como se não houvesse o amanhã. Laura, que estava nos últimos dias de vivência na ocupação, era a única que fazia sentido em sua aparição. As outras duas revelaram, no momento em que fui cumprimentá-las, deixando transparecer, mais uma vez, aquilo que é o espírito da paixão por um lugar. “A gente vai embora, mas não consegue se desgrudar, né”, pontuou Dani, enquanto caminhava para a escola onde os filhos ainda estudavam – na ocasião, ela havia ido até lá para resolver o problema de um dos filhos e aproveitou para dar uma passada na sua antiga comunidade.

Enquanto isso, Vô, pela última vez, pediu o isqueiro emprestado. Acen-deu um cigarro, deu dois tragos, e divagou: “eu gosto daqui... Sabia que eu já fui hippie?” Em uma viagem de um assunto para o outro, contou, em um relato informal, que amava usar calças boca de sino e ouvir o ritmo psicodélico vigente na cabeça de noventa e nove por cento dos jovens dos anos sessenta. O homem do rap, com ouvido apurado para diversos outros ritmos, ainda fez uns versos e sinalizou um abraço para o pessoal de Zumbi. Naquele chão, ele não mais voltou a pisar.

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Dona Maria não largou a Bíblia. Saiu da ocupação para morar novamente no Parque das Nações, em Sumaré, e levou consigo tudo o que podia, até mesmo o livro sagrado que lhe guiou nos momentos mais difíceis de sua vida.

Na nova casa a recepção da mulher foi calorosa. O local era acon-chegante, e livre do poeiraço que marcava presença vinte e quatro horas por dia em Zumbi.

A casa de Dona Maria era simpática, tanto quanto ela. Os sofás, dis-postos de maneira perpendicular em frente à televisão bem posta em um grande rack, estavam encapados com uma manta verde-limão, tom muito semelhante àquelas canetas de grifar texto. Uma cor que dava uma cara bem jovial à sala de estar.

Além do espaço perfeito para receber visitas, a casa espaçosa também tinha um vasto corredor, banheiro nos conformes, com espelho e chu-veiro excelentes, quarto e cozinha. No quarto, com cama de casal e tudo o que a mulher e o esposo têm direito, havia um armário que guardava a Bíblia de Dona Maria. Ela fez questão de pegá-lo durante a conversa e ficar segurando-o como se fosse um escudo.

Quando questionada sobre o sentimento que tinha com relação à re-cém-extinta ocupação, a dona de casa puxou na lembrança o quanto era amada por lá. “Eu sinto muita falta de ver bastante gente o dia inteiro, de todo mundo vir me dizer oi quando passava”, afirmou. Mesmo que a casa nova fosse anos-luz melhor do que o barraco, a não mais dona do comér-cio de Zumbi se sentia muito sozinha ali.

O marido trabalhava o dia todo e ela não tinha com quem dividir a pro-sa, ou as tardes de primavera e verão sob o sol forte e o ar seco que inva-diam Sumaré. “Aqui o silêncio é muito grande, mas logo vou mudar, né. A gente vai ganhar um apartamento também”, relembrava com entusiasmo a chance que tinha de se livrar do aluguel. “Não dá pra pagar o aluguel todo da casa com o auxílio que a gente recebe da Prefeitura.”

A esperança era algo em evidência entre os ex-moradores de Zumbi. Andreia, que estava no desespero para conseguir um espaço para ela e os filhos viverem e que tinha passado por poucas e boas, sustos e devaneios em

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Sumaré, conseguiu através da ocupação Dandara, de Hortolândia, o auxílio-moradia e um espacinho na fila para receber a chave de um apartamento.

A mulher passou a viver com as suas crianças no Jardim Boa Esperan-ça 2, bairro de origem hortolandense. Conseguiu, ali, arrumar uma casa ajeitada e bancava tudo com o auxílio-moradia. “Aqui é bem melhor que ficar em uma ocupação. Já entrei para a lista do Dandara e nem precisei ir morar com a minha sogra”, afirmou, retomando a situação complicada em que estava. No meio tempo em que ficou na corda bamba entre sair de Zumbi e ir morar com a mãe de seu marido, ela estava a ponto de desistir de tudo. Naquela época, contou, estava construindo um cômodo nos fun-dos da casa da sogra, que morava também no Boa Esperança 2, mas não mostrava muito contentamento com a situação.

Agora, na casa nova onde não tem de depender de ninguém além dela mesma e de sua boa vontade, até mesmo o tom de voz mudou durante a conversa. Dali para frente, ela só aguardaria o aval da Prefeitura para ir para seu apartamento e realizar o sonho de ter um lugar para criar os filhos com liberdade, sem repressão de terceiros.

Na última visita que fiz à ocupação, nada mais existia além de destroços. O que era barraco virou sucata e, aos poucos, os tratores da construção ao lado já iam avançando sobre o que antes era espaço de mo-radia. Somente Marlene, a mãe de sete filhos, não foi localizada depois da extinção da ocupação. Nem mesmo Dani, que era coordenadora e tinha contato com todos os ex-moradores, sabia onde ela estava.

Na região onde tinham se alojado especificamente Dani, Tia Lau-ra, Vô e Marlene, nem mesmo a destruição apareceu. Ali era visível a intervenção das máquinas e só existia terra e um campo bem plano, pronto para receber as misturar de concreto e blocos enormes, que da-riam origem a mais um empreendimento do Minha Casa Minha Vida. Ao lado do terreno da não mais ocupação, os prédios do que se chama-ria futuramente “Residencial Itália” já tomavam forma. Os arranha-céus começavam a modificar a paisagem do bairro lotado de casas baixinhas e simples e a promessa da Prefeitura é de que, em 2015, as moradias es-tariam prontas, de portas abertas para abrigar mais famílias que estavam vivendo de forma irregular na cidade.

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Fazendo jus à bandeira do Movimento, a luta dali para frente seria a de territorializar, passo que, segundo Guilherme Simões, já tinha sido dado. “Nosso objetivo, quando a gente faz ocupações, é ganhar, eviden-temente, a moradia. Conquistar, através da luta, da pressão, da força so-cial, mas também conseguir territorializar a ação do Movimento, os mé-todos de luta, a consciência dos trabalhadores, o avanço da consciência deles. É como um trabalho político mesmo, que é o que a gente chama, nos nossos gritos, de poder popular. Quer dizer, a atividade política, o enfrentamento contra o Estado, contra a especulação imobiliária... con-tra essa lógica de cidade que é completamente excludente.” Da “luta para valer”, frase que inclusive acompanha os gritos do Movimento, é que consolida a busca, a batalha e a esperança de que um dia exista uma situação menos desoladora ao se falar de moradia.

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Uma das poucas lembranças que tenho da minha infância é aquela em que me via no meio de montanhas de papéis. O cheiro de jornal que permeava meus dias fica sempre muito claro na minha mente. Aqueles dias em que ia até a redação do jornal do tio de minha mãe, em Vinhedo (minha terra natal, onde vivo até hoje), para fazer o tempo passar e brincar – ilusão do destino – de ser repórter.

Foi ali que cresci, rodeada dessa convivência entre jornalistas e pro-fessores (como minha mãe, por exemplo), mas ainda sem saber que era isso que eu queria. Na verdade, não existe motivo concreto para eu ter arrastado minhas asas para esta paixão chamada “jornalismo”. Só sei que vim parar aqui.

Quando comecei a faculdade, ainda não tinha noção de como ia me vi-rar, de onde ia tirar coragem para entrevistar políticos e encarar acidentes trágicos de beira de estrada – na verdade, acho que nem passava pela mi-nha cabeça que ia fazer esse tipo de coisa. Eu só sabia que queria escrever.

Ainda no primeiro ano de faculdade na Pontifícia, em Campinas, con-segui meu primeiro estágio, em um jornal concorrente ao do meu tio – aquele lá da minha infância de montanhas de papéis – exatamente porque nunca gostei de depender dessa coisa chamada “família”. Tive um período de grande crescimento profissional naquele jornal, mas pedi as contas. Não sou do tipo de passarinho que fica preso em gaiola. Às vezes canso, e boto as asas para bater.

Fui trabalhar na área policial, pela qual me apaixonei ainda no estágio, em outro jornal, só que dessa vez em Valinhos, cidade vizinha. Antes mesmo que pudesse respirar um pouco ali, fui chamada para retornar ao “ex-estágio”, desta vez com contrato e status de repórter. Eu ia ignorar? Claro que não.

Passei alguns meses ali e tive o prazer de cobrir um caso dos grandes, daqueles de repercussão nacional, nos instantes finais da minha estada em jornais vinhedenses. Ainda lembro-me com clareza do dia em que chegou aos meus ouvidos a notícia de que Gabriela Nichimura havia caído do famoso “elevador” do Hopi Hari.

Quando peguei esse caso, senti o sangue ferver nos olhos. Passava meus

O fim do começo

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dias e tardes literalmente plantada na delegacia, rodeada de representantes dos maiores jornais (impressos, televisão, rádio e portais na internet) de todo o Brasil e, pela primeira vez, me senti importante ali.

Passado esse caso, ainda tive a ousadia – sem brincadeiras – de contor-nar meu emprego e fazer um pequeno estágio de duas semanas no grupo de comunicação mais influente de Campinas.

Não demorou muito, me cansei novamente da vida rotineira de jornais menores e fui trabalhar em Americana. Pulando de galho em galho, como sempre, saí de lá e retornei ao jornal campineiro em que havia feito estágio, a pedido de um dos superiores por ali.

Quando me dei conta, já havia me tornado repórter na Rede Anhan-guera de Comunicação (RAC), mais especificamente no Notícia Já, jornal popular que você vê qualquer um lendo na rua. Contratada faltando ainda um ano e meio para completar meu curso de jornalismo, já havia alcan-çado uma posição na região à qual nem sonhava em chegar. Pela segunda vez, me senti importante ali.

Foi por conta desse jornal que conheci a comunidade Zumbi dos Pal-mares. Quando já fazia cerca de oito meses que estava na empresa, passava por Sumaré em um dos “passeios” que fazia toda semana junto com al-gum dos fotógrafos em busca de notícia pela região, no momento em que me deparei com a ocupação. A sensação que tive quando olhei para o local me intrigou. Na minha frente, via o lugar preenchendo todas as páginas do meu livro do Projeto Experimental, que ainda estava sem tema definido.

Aliás, escolhi livro-reportagem por motivos óbvios. Entrei na faculda-de porque queria escrever, me dediquei ao aperfeiçoamento da escrita nos quatro jornais pelos quais passei até agora e sinto que não há nada que me dê mais adrenalina do que fazer algo totalmente desconhecido – minha sede era por desafio. E escrever sobre seres humanos, sobre as pessoas que fazem a máquina chamada “mundo” girar... Era isso que eu queria. E encontrei esse desafio ali, em Zumbi.

Nos dias que se seguiram, fui visitar o local com mais afinco e conhe-ci Daniela, a Dani, pessoa que teve um papel primordial neste trabalho. Com carinho de mãe, liderança de coordenação e uma simpatia das mais cativantes possíveis, ela me acolheu em todas as visitas ali. E me mostrou a comunidade de cabo a rabo para que eu pudesse descrever tudo com o

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máximo de detalhes possível nas linhas deste livro. Antes de decidir por fazer a trajetória “do início ao fim”, ainda ousei ten-

tar uma vivência mais envolvente no local: a imersão. Ia me mudar para lá, já estava com as datas de folga agendadas no meu trabalho, e permaneceria como moradora da ocupação por quinze ou vinte dias. Mas não deu certo. No dia em que fui acertar os últimos detalhes, fui surpreendida com o co-municado de que a ordem final de despejo havia saído. E a ação aconteceria no final de julho de 2013, data muito anterior ao que eu havia planejado.

Antes mesmo de desistir desse tema e procurar outra coisa, minha orientadora, que na época era, coincidentemente, a professora responsá-vel por todos os grupos no anteprojeto, me aconselhou a fazer a trajetória deste pessoal. E eu topei. Nas visitas que se seguiram, conheci muita gente especial. Apaixonei-me pela dedicação de Vô a sua mulher, Julinha, além de suas milhares de histórias de vida e a facilidade que tem para rimar as palavras no rap. Admirei a força e coragem de Marlene com seus sete fi-lhos e também da guerreira Andreia, que não desistiu nunca da luta. Tam-bém me senti acolhida nos braços de Tia Laura, uma mulher com um dom incrível de fazer você se sentir em casa, esteja onde estiver. Em qualquer canto do Brasil.

Todas as vezes que ia à comunidade, era recebida pelo sorriso largo de Dona Maria. Parava a caminhada e me sentava com ela em frente ao seu comércio para bater papo. Se pudesse, ficaria ali a vida inteira, só dando risada e jogando conversa fora. E Dani, então? Ainda procuro uma pala-vra para definir o momento em que vi aquela mulher forte derramar uma cachoeira de lágrimas, dias antes de a ocupação chegar ao fim.

Dizem que todo jornalista, para ser bom, tem que encarar com frieza e seriedade todas as matérias que está cobrindo, seja lá em qual situação ele estiver. Nos momentos em que pisei nas ruas de terra batida de Zumbi, mantive o mandamento, mas foi impossível não ficar baqueada e soltar o choro no dia em que passei na frente daquele lugar pouco tempo antes de terminar o Projeto Experimental e ver tudo completamente destruído.

Aquela ocupação tinha vida. Ela era feita por vidas. De qualquer for-ma, vou levar a experiência na mente e na alma todos os dias. E no final, a gente sempre torce para que os entrevistados vençam na busca pela felicidade.

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O livro ZUMBI: DO INÍCIO AO FIM relata a vida dos mo-radores da comunidade Zumbi dos Palmares, localizada no Jardim Denadai, na região da Área Cura de Sumaré, durante os cinco anos em que o local existiu. Por meio de relatos de quem passou por ali, as páginas deste livro remetem à realidade de muitos brasileiros que têm de conviver com o problema da falta de moradia.

Zumbi, formada a partir do Movimento dos Trabalhado-res Sem-Teto (MTST), escondia, entre as “quase-vielas” de terra e os barracos feitos em madeirite, diversas histórias de vida que servem de exemplo para os guerreiros na luta por um de seus maiores sonhos: o da felicidade de ter um local para viver, adequado para educar seus filhos, sem que corram risco de vida e, acima de tudo, sem perderem a fé num futuro mais próspero.