UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
Marlon Santos Trindade
RELAÇÃO ENTRE DIALÉTICA E TONALIDADE NA ESTÉTICA MUSICAL DE
HEGEL: O RETORNO A SI MESMO COMO CONTEÚDO VERDADEIRO DA
OBRA
Ouro Preto – MG
2011
Marlon Santos Trindade
RELAÇÃO ENTRE DIALÉTICA E TONALIDADE NA ESTÉTICA MUSICAL
DE HEGEL:
O retorno a si mesmo como conteúdo verdadeiro da obra
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
Orientador: Gilson Iannini
Coorientador: Romero Freitas
Ouro Preto – MG
2011
RESERVADO À FICHA CATALOGRÁFICA
RESERVADO À FOLHA DE APROVAÇÃO
Agradecimentos especiais ao meu orientador Gilson Iannini, que se fez presente nas horas precisas, mantendo uma distância respeitosa, possibilitando à minha criatividade atuar no meu trabalho intelectual, fundamental para a autonomia de um estudante. Ao meu coorientador Romero Freitas por me ajudar a achar a porta, ao professor Rodrigo Duarte pela lapidação das ideias e boa vontade, e ao professor Bruno Guimarães pela disponibilidade. À CAPES pela bolsa. À UFOP pela oportunidade de realização deste mestrado, aos secretários do IFAC Claudinéia e Toninho pela competência e prontidão. Aos meus amigos e meus familiares. Em especial à minha esposa Márcia pelo amor, que do começo ao fim nos alimentou!
RELAÇÃO ENTRE DIALÉTICA E TONALIDADE NA ESTÉTICA MUSICAL DE
HEGEL: O RETORNO A SI MESMO COMO CONTEÚDO VERDADEIRO DA
OBRA
RESUMO
Essa dissertação busca demonstrar que Hegel vê no retorno a si mesmo da tônica o conteúdo
verdadeiro da música, pois a melodia e a harmonia não vão para o indeterminado, mas
caminham para o retorno a si mesmo da tônica, a partir da resolução de uma tensão. A música
é sem conceito e toca o espírito em sua interioridade subjetiva. Hegel busca é o espírito
absoluto que se dá na forma do puro conceito; só ele, em uma época prosaica, pode levar o
espírito à consciência de si. Em épocas passadas, quando em parceria com a religião, a música
já cumpriu esse papel. Mas o espírito de seu tempo [Volksgeist] (século XIX) a deslocou para
o prosaico, onde a música passou a ser mais uma questão de erudição do que de tocar os
afetos. Defendemos que a forma sonata de Beethoven possui a estrutura lógica formal abstrata
da dialética hegeliana, apesar do filósofo não citar o compositor em sua estética. Para Hegel,
há na música de sua época uma extrema razão prosaica habitando a obra como seu Conteúdo.
Hegel não reconhece no formal [Gestalt] da música um Conteúdo dialético: para ele, essa já é
uma arte prosaica e morta, que nos convida a pensá-la e não a senti-la, e por esse motivo
Hegel a supera. Apresentamos a peça Grande Fuga – Opus 133 de Beethoven como exemplo
de uma arte extremamente racionalizada, que já começa a colocar em questão o retorno sereno
e beato da tônica, tão defendido por Hegel. Finalmente, apresentamos um exemplo da lógica
dialética abstrata aplicada na forma musical com a peça Allegro-de-Sonata para piano no 2 –
Opus 2, 1o movimento, também de Beethoven.
PALAVRAS-CHAVES: Hegel, tonalidade, dialética, sonata, verdade.
RELATIONSHIP BETWEEN DIALECTIC AND TONALITY IN HEGEL’S
AESTHETIC: THE RETURN TO HIMSELF AS THE TRUE CONTENT OF MUSIC
AS A WORK OF ART
ABSTRACT
This work demonstrates that Hegel sees, in the return to himself of the keynote, the true
content of music, since the melody and the harmony don’t go to the undetermined, but go to
the return to itself of the keynote, as from the resolution of a tension. The music has no
concept and touches the spirit in its subjective interiority. Hegel seeks the absolute spirit that
comes to be in the form of pure concept. In a prosaical era, it can only conduct the spirit to the
conscience of itself. In the past, when music and religion were associated, music already
fulfilled its function. But the spirit of time [Volksgeist] moved music to the prosaical, where
music became more a matter of erudition than a matter of touching the emotions. We argue
that the sonata form of Beethoven has the logical formal abstract structure of Hegel’s
dialectics, despite Hegel’s lack of reference to the composer in his aesthetics. For him, an
extreme prosaical reason is present in the music of his time as its Content. Hegel does not
recognize a dialectic Content in the formal [Gestalt] of the music. For him, it is already a
prosaical and dead art, that invites us to think of it and not to feel it, and because of that,
Hegel overcomes it. Beethoven’s Great Fugue – Opus 133 is presented as an example of an
extremely rationalized art, which already starts to put in question the serene and pious return
of the keynote so defended by Hegel. Finally, we present an example of dialectical
logic applied in the abstract musical form with Beethoven’s Allegro-of-Sonata for piano no 2
– Opus 2, first movement.
KEYWORDS: Hegel, tone, dialectics, sonata, truth.
LISTA DE ABREVIATURAS
• Est, I – HEGEL, G. W. Cursos de Estética, volume I. São Paulo: EDUSP, 2001.
• Est, II – HEGEL, G. W. Cursos de Estética, volume II. São Paulo: EDUSP, 2000.
• Est, III – HEGEL, G. W. Cursos de Estética, volume III. São Paulo: EDUSP, 2002.
• Est, IV – HEGEL, G. W. Cursos de Estética, volume IV. São Paulo: EDUSP, 2004.
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 - Volksweise nº 213 - Ade zur guten nacht ................................................................ 81
Figura 2 - Chorus nº 4 - And the glory of the lord, Allegro ..................................................... 82
Figura 3 - 3 wind quartet - Opus 4............................................................................................ 83
Figura 4 - Requiem ................................................................................................................... 86
Figura 5 - Quarteto Opus 133 ................................................................................................... 91
Figura 6 - Partita nº 1 - BWV 825 ............................................................................................ 92
Figura 7 - Concerto nº 1 para violino - BWV 1041 .................................................................. 97
Figura 8 - Ária das Variações Goldberg ................................................................................... 98
Figura 9 - Concerto nº 1 para órgão - BWV 592-597 .............................................................. 99
Figura 10 – Ricerare in G ....................................................................................................... 110
Figura 11 - Chorale Harmonisations BWV 1-438 .................................................................. 113
Figura 12 - Noturno em D - K. 286 para quatro orquestras ................................................... 119
Figura 14 - A Flauta Mágica [Die Zauberflöte] ..................................................................... 124
Figura 15 - Te Dominum, da peça Te Deum .......................................................................... 126
Figura 16 - Relações Estruturais do Allegro-de-Sonata ......................................................... 166
Figura 17 - Allegro-de-Sonata para piano nº2 - Opus 2, 1º movimento ................................. 167
Figura 18 – Variedades do material temático dado na exposição .......................................... 169
Figura 19 – Dominante e recapitulação .................................................................................. 170
Figura 20 – O retorno a si mesmo do tema inicial.................................................................. 171
Figura 21 – Transição para a tonalidade principal ................................................................. 172
Figura 22 – Síntese ................................................................................................................. 172
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 15
1.1. Apresentação do problema ............................................................................................ 15
1.2. Divisão dos capítulos ..................................................................................................... 17
2. CAPÍTULO I .................................................................................................................... 26
2.1. Tonalidade: feita pelo espírito ou dada pela natureza? .................................................. 28
2.2. A finalidade da arte........................................................................................................ 37
2.3. Hegel em seu tempo: arte e moral ................................................................................. 43
2.4. Críticas de Hegel à ironia de Schlegel ........................................................................... 47
2.5. O prosaísmo na música .................................................................................................. 53
2.6. O absoluto e as formas particulares de arte ................................................................... 56
2.7. O sistema das artes particulares ..................................................................................... 57
2.8. A música como arte particular ....................................................................................... 64
2.8.1. A concepção musical do seu conteúdo: música e linguagem ................................. 64
2.8.2. Efeitos da música .................................................................................................... 66
2.8.3. Concepção musical do conteúdo ............................................................................ 71
3. CAPÍTULO II: OS SONS COMO A EXPRESSÃO ARTÍSTICA CONFIGURADORA DO SOM MESMO – A SUPERAÇÃO NA MÚSICA ............................................................ 74
3.1. O movimento dialético temporal como superação na música: o um após o outro temporal enquanto retorno a si mesmo ................................................................................. 74
3.2. Ritmo: o pontual temporal na música como atividade negativa .................................... 75
3.2.1. Tempo e interior subjetivo: a efetividade do espírito no tempo histórico e o tempo como o um depois do outro na música ............................................................................. 76
3.2.2. O compasso: unidade de repetição uniforme .......................................................... 78
3.2.3. Ritmo: a valorização de pontos específicos do compasso a fim de vivificar a música ............................................................................................................................... 80
3.3. Harmonia: relação entre as notas ................................................................................... 84
3.3.1. Sons singulares: alturas definidas que caracterizam as notas ................................. 87
3.3.2. Sons concordantes: intervalos que concordam entre si .......................................... 88
3.3.3. Escalas: sistema abstrato necessário de atração, distanciamento e resolução a uma nota específica. ................................................................................................................. 88
3.3.4. Tonalidades: relação de concordância ou discordância entre a tônica e as outras notas do acorde ou escala ................................................................................................. 89
3.3.5. Modos na Grécia antiga, época medieval e renascimento: a relação de cada modo musical com os seguimentos da sociedade ....................................................................... 93
3.3.6. O sistema dos acordes: a relação da tríade do acorde com sua tônica e a relação desse acorde com uma tonalidade .................................................................................... 96
3.3.7. Repouso como tonalidade: é o em si como tese e síntese ...................................... 96
3.3.8. Tensão e resolução ou negatividade e síntese: a lógica da dialética na tonalidade 98
3.3.9. Sonata e forma dialética ....................................................................................... 101
3.4. Melodia: o reino da liberdade ...................................................................................... 103
3.4.1. A relação senhor e escravo visto através da melodia e harmonia: a liberdade do cantábile a partir dos sons singulares construídos na harmonia ..................................... 105
3.4.2. Autonomia da melodia em relação à harmonia: processos históricos .................. 109
3.4.3. Liberdade da melodia: momento do particular se achar no universal .................. 116
3.5. A Relação dos meios de expressão musical com o seu conteúdo: sobre qual conteúdo deve alcançar na música uma expressão adequada à arte ................................................... 121
3.5.1. A música de acompanhamento: a relação com a palavra e a representação ......... 122
3.5.2. Música autônoma .................................................................................................. 128
4. CAPÍTULO III: A DIALÉTICA MUSICAL ................................................................. 133
4.1. Olivier: Hegel e a música de sua época. Relação dialética entre Hegel e Beethoven. 137
4.2. Hegel e Beethoven: a lógica como base para o sistema tonal e para a dialética. ........ 138
4.3. Conceito abstrato: a estrutura tonal enquanto lado abstrato ainda não efetivado no fenômeno musical. .............................................................................................................. 140
4.3.1. O movimento e a particularidade: é dado movimento ao ponto. .......................... 142
4.3.2. As partes singulares do conceito de belo artístico como exposição do absoluto . 143
4.4. A ideia de belo artístico ou Ideal ................................................................................. 144
4.4.1. Ideia Absoluta ....................................................................................................... 145
4.4.2. A arte e o saber imediato ...................................................................................... 147
4.4.3. A Ideia: momento da realização de um conceito. ................................................. 151
4.4.4. Beleza exterior da Forma abstrata – a exterioridade abstrata enquanto tal .......... 153
4.5. O belo artístico ou Ideal .............................................................................................. 155
4.5.1. A relação do ideal com a natureza ........................................................................ 158
4.5.2. A determinidade do Ideal ..................................................................................... 160
4.6. A lógica da Dialética ................................................................................................... 162
4.6.1. Forma sonata e sua estrutura dialética .................................................................. 164
4.6.2. Allegro-de-Sonata ................................................................................................. 166
4.7. Circularidade ............................................................................................................... 173
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 175
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 185
15
1. INTRODUÇÃO
1.1. Apresentação do problema
Em termos gerais, perguntamos neste trabalho o lugar ocupado pela música no sistema
hegeliano. Como se dá a relação entre dialética e tonalidade em seus Cursos de Estética?
Trata-se de refletir sobre como a música, pertencendo ao espírito absoluto, pode oferecer ao
espírito o conteúdo verdadeiro. Seu limite, enquanto arte particular, é que, sendo sem
conceito, a música não seria a forma mais ideal de manifestar o absoluto, e por isso seria
superada pela poesia. Neste sentido, investigamos como o formal [Gestalt] da música, através
da sonoridade causada pelo retorno à tônica, toca o espírito em sua interioridade subjetiva.
Pode tal conteúdo formal conduzir o espírito à consciência de si? Ele é suficiente? O método
em Hegel é dialético, ou seja, o em si pode ser tratado como repouso na tônica, o para si como
distanciamento, gerando tensão, enquanto a resolução da tensão estaria no retorno a si mesmo
na tônica. Tal retorno oferece ao espírito o conforto do repouso beato e sereno na tônica
através da resolução de uma contradição. Assim, o que move esta dissertação é a observação
do retorno a si mesmo tonal como forma de expressão musical e de seu processo histórico.
Quando jovem estudante de música, tinha como referência a música popular e a
música erudita tonal. Contudo, uma nova arte erudita, a música erudita contemporânea,
apresentou-se aos meus conhecimentos e curiosidade. O encontro, a princípio, gerou
estranhamento aos meus ouvidos, até então tonais, para os quais outra forma de expressão que
não fosse tonal logo daria a impressão de um erro. Tal estranhamento, por sua vez, teria sido
causado justamente por essa nova arte estar fora de um sistema estruturado em rígidas leis
tonais.
Esta investigação, portanto, nos introduz um problema, que é o de relacionar um tema
técnico da música com o campo de questões filosóficas. Como coloca Safatle,
Podemos falar aqui em “problema” porque a articulação de uma reflexão filosófica sobre a forma
musical, ou seja, a defesa da possibilidade de uma “filosofia da música” traz uma série de pressupostos.
Por exemplo, assume-se que a música produz questões cuja articulação correta se dá fora do campo
estritamente musical, ou seja, no campo propriamente filosófico. Como se as questões técnicas musicais
não fossem simplesmente questões de técnica musical, mas dissessem respeito a algum problema
estritamente filosófico. Por outro lado, uma filosofia da música que não se reduza a um mero exercício
16
de diletantismo pressupõe a existência de certos problemas filosóficos que só podem ser abordados de
maneira adequada se levarmos em conta a necessidade de sustentar um campo privilegiado de interfaces
entre filosofia e música (um campo de interfaces que deve ser inscrito no interior de um campo maior
que diz respeito aos sistemas de importação entre filosofia e arte). (SAFATLE, 2006, p. 8.)
Hegel vê a questão técnica, na música, como tema para técnicos, de que ele se diz
pouco conhecedor. Porém é fato que ele bem desenvolveu o formal musical, apropriando-se
do retorno à tônica e relacionando-o com o retorno a si mesmo, onde observamos relações
dialéticas. Nesta dissertação, é trabalhada justamente a ideia de que um problema técnico
dentro da música pode remeter-se a uma questão filosófica, a saber, a dialética e a tonalidade.
Hegel apropria-se do retorno a si mesmo tonal na sessão “A música” (Est, III),
chamando-o de conteúdo verdadeiro da obra, o que confere a Hegel uma apurada percepção
do material musical de sua época. Tal apropriação só fortalece sua teoria dialética no sistema
das artes particulares, uma vez que, na música, o retorno a si mesmo é a própria ressonância
de sua dialética – apesar dele não reconhecer tal relação como dialética em seu Cursos de
Estética. Temos consciência, contudo, de que essa ressonância se dá apenas no plano formal.
Eis o início do nosso problema que aqui tentaremos solucionar, tarefa nada fácil, pois já de
início esbarramos no problema do formal [Gestalt] musical não ser possuidor de conceito,
mas apenas possuidor de medidas temporais matemáticas quantitativas do som. Eis a nossa
questão e também o nosso limite ao caminharmos com Hegel, pois no formal não há conceito,
e em Hegel a consciência de si só é alcançada ao longo do processo histórico dialético que se
desenvolve passando pelas artes até chegar ao puro conceito filosófico, ou o conhecimento
absoluto. Nesse ponto, nos distanciamos de Hegel e não nos intimidamos em chamar o
retorno a si mesmo de dialético. Eis, talvez, a originalidade dessa dissertação, uma vez que
assumimos ver em questões formais da música problemas filosóficos. Cabe agora articular as
partes da dialética com as partes de um Allegro-de-Sonata de Beethoven a fim de mostrar a
pertinência dessa dissertação, tarefa presente no terceiro capítulo. Portanto, nesse capítulo,
demonstraremos nossa tese.
Voltando aos motivos que engendraram este trabalho, em busca por uma compreensão
melhor dessa nova arte musical que me era apresentada, percebi que, antes de negar a
tonalidade, seria necessário demonstrá-la. Nesse sentido, o filósofo valoriza a discussão em
torno da relação entre dissonância e consonância, que é uma relação de síntese e antítese. Para
ele, tal conteúdo verdadeiro da obra é o que a sustenta como arte autêntica.
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1.2. Divisão dos capítulos
1.2.1. O primeiro capítulo é uma ideia geral da concepção estética hegeliana, bem
como o que é específico da música para o filósofo. Inicia-se a partir da estética kantiana, que
vê o juízo estético entre o espírito que repousa em si mesmo e a natureza, sendo que o juízo
estético não vem nem do conceito nem da sensibilidade, e sim do livre jogo entre imaginação
e entendimento. O que Hegel pretende é superar a estética kantiana. Podemos ver isso na
delimitação de sua estética, onde a arte é obra do espírito, o que o distancia assim da ideia de
belo natural kantiano.
Kant, por sua vez, escreve na Crítica da Razão Pura que todo interesse é prático, e
completa essa ideia na Crítica da Razão Prática: “o estético, domínio do belo, arraigado à
Natureza, enquanto objeto de juízo de gosto, é ohne interesse, sem interesse.” (NUNES, 1993,
p. 12) Hegel vê a obra como junção entre o particular e o universal, ou forma e conteúdo. Em
seu tempo, ele vê a finalidade da música como aperfeiçoamento moral, como os
românticos, que religaram o estético, por intermédio da arte, aos interesses morais e
cognitivos, quebrando assim esse desinteresse kantiano.
Um primeiro desmembramento do problema kantiano está em Fichte, onde há um Eu,
que é total, abstrato e formal, como princípio absoluto de todo saber, de toda razão e todo o
conhecimento. A liberdade absoluta desse Eu se dá na união de seus impulsos naturais
essenciais, onde “eu sou sujeito-objeto e meu verdadeiro consiste na identidade e
inseparabilidade desses dois aspectos” (FILHO, em notas para FICHTE, 1984, p. XI). O
impulso natural deve abdicar-se do desejo, e o mais elevado deve abdicar-se da pureza de sua
atividade. Outros pensadores românticos como Schiller, Schlegel, Novalis e Schelling terão
posições acerca do tema arte e moral. Em Hegel é o dever ser moral que deve ser escolhido
segundo a universalidade abstrata da vontade e as forças das paixões. É na dicotomia ânimo e
razão que um tende a eliminar o outro. A moral habita essa contradição e a vitória seria a
escolha consciente do dever e a superação das paixões.
Hegel tenta superar o esquematismo kantiano com o movimento histórico, o que, por
sua vez, o separa dos românticos. Ele realiza a busca pelo conceito na arte, onde o espírito
gradativamente passa a ter maior consciência através do movimento de superação. Esse
movimento histórico pretende superar Kant, que vê a arte como sem conceito.
18
No aparecer da moral enquanto obra de arte, Hegel realiza críticas à ironia de Schlegel
diante deste ideal da moral como retraimento em si mesmo, como uma bela alma retraída em
si mesma que não parte para a ação. Nesta etapa da dissertação será desenvolvida a
investigação sobre a ironia de Schlegel. Chega-se à ideia de que Hegel vê no prosaísmo as
causas da superação da arte. Exploramos algumas especulações acerca das consequências do
prosaísmo na música. A arte poética seria então uma arte com um conteúdo absoluto. Na
relação entre Ideia absoluta e natureza, a Ideia absoluta como Conteúdo configura o
particular. A forma sensível, por sua vez, passa a ter um conteúdo verdadeiro.
Essa relação entre ideia absoluta e natureza se dá no tempo histórico. São
configurações artísticas que estão de acordo como o espírito de um povo [Volksgeinst]. É o
sistema das artes particulares, a saber, o simbólico, o clássico e o romântico. Através de uma
análise da estética musical de Hegel e da música em seu tempo histórico, vê-se a relação entre
a forma sonata e a dialética.
No que diz respeito à relação entre música e linguagem, há uma discussão na
Alemanha do século XIX entre os românticos sobre a música e o saber absoluto, onde tendem
a pôr a música acima da linguagem, como revelação do absoluto, tese defendida por
Schopenhauer. Hegel se opõe a essa visão, pondo a música como apenas tocando os
sentimentos. A música como arte particular, sendo duplamente negativa, é internamente sem
conceito, enquanto externamente possui seu formal como forma abstrata, a saber,
regularidade, simetria e leis da harmonia. Hegel demonstra que a música, no processo de
superação, supera o elemento espacial da pintura pelo elemento temporal, pois o tempo é mais
ideal, e é na história que o ideal absoluto se realiza. Entretanto, por ser sem conceito, a música
é superada pela poesia, que também possui o material sensível som, só que preenchido pelo
conceito.
Na concepção musical do conteúdo, será analisada a relação da música com a poesia.
Em tal junção, a poesia tem que estar a favor da música – e não o contrário. Assim, a música,
por não possuir conceito, toca a interioridade subjetiva. A música apreende seu conteúdo na
Forma da interioridade. Ela nos toca os sentimentos, mas eles apenas revestem o conteúdo.
Eis a esfera de atuação da música: expressar os sentimentos particulares. É a relação entre
interioridade e temporalidade, pois é no tempo que o espírito se manifesta.
1.2.2. No segundo capítulo, será discutido a determinidade particular dos meios de
expressão musical. É a dialética ascendente em busca do mais ideal: o ritmo, a harmonia e a
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melodia.1 É o processo de superação [Aufhebung], do menos ideal para o mais ideal, que
caracteriza o movimento dialético. Nesse processo, a figura superada não deixa de existir, mas
coexiste com a figura mais ideal. Esse é o reino do todo.
Dividiremos a primeira sessão em três partes: medida temporal, compasso e ritmo. O
tempo, como aquilo que predomina na música, superando o espaço da pintura. Há uma estreita
relação entre tempo e interioridade subjetiva como historicidade, uma vez que a subjetividade,
que é espírito, é fenômeno que se encontra no tempo, na história.2 O compasso surge como
nova figura que fornece uma igualdade abstrata ao movimento contínuo abstrato do tempo e
de seus sons.3 São as medida e regras do compasso que estabelecem uma unidade temporal
determinada: o compasso é a medida regular, é ele o que dá regularidade e simetria à música.
Finalmente, o ritmo vivifica a música através dos acentos em tempos fortes e fracos, a fim de
evitar a monotonia. Estas duas grandezas, a regularidade e a simetria, ordenam principalmente
o quantitativo.
A segunda sessão é a da harmonia como o reino das leis, o que torna a música mais
ideal, pois a aproxima mais do pensamento. A arte, quanto mais se liberta da exterioridade,
menos será regida pela regularidade e simetria: ela sai do mero quantitativo e caminha para o
qualitativo; ela ressoa segundo conformidade a lei. São as leis da harmonia.4
No âmbito da harmonia, surgem os sons singulares como sons determinados. Há notas
que são consoantes e as que são dissonantes. Surge a escala, que é uma série simples de
notas.5 Uma escala tem a tônica como a fundamental que se repete em cada oitava. Ela se
estende em mais seis notas que estarão ordenadas segundo a tônica, e que em seu conjunto
completarão a escala. Nesse duplo limite, ela tem a tônica para concordar consigo mesmo,
enquanto retorno para si mesmo. Assim, todas as notas de uma escala estão em relação com a
tônica. A partir das escalas surgem, por sua vez, as tonalidades e os modos. À luz de
Schoenberg, questionaremos os conceitos de consoantes e dissonantes ao analisarmos a
harmonia.
1 “Há, no hegelianismo, uma lei absoluta do desenvolvimento: uma figura mais verdadeira do espírito – cuja necessidade é estabelecida pela autonegação das figuras menos verdadeiras que ela.” (BOURGEOIS, 2004, p. 215) 2 “O processo dialético é assim, ao mesmo tempo, lógico, ontológico e cronológico.” (HARTMAN, em prefácio para HEGEL, 2001, p. 17) 3 Fornece “uma repetição uniforme da mesma unidade temporal” (Est, III, p. 301). 4 “A relação da tônica com a mediante e dominante não é meramente quantitativa, e sim trata-se de sons essencialmente diferentes que se unem ao mesmo tempo numa unidade, sem permitir que sua determinidade soe como oposição e contradição agudas. As dissonâncias em contrapartida necessitam de uma resolução.” (Est, I, p. 254) 5 Escala: “uma sucessão de sons segundo sua relação mútua a mais simples.” (Ibidem, p. 254)
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Através de Alain Patrick Olivier, exporemos a música da época de Hegel, a relação
que Hegel tem com a música de Rossini e Paganini e a relação formal entre o filósofo e
Beethoven, entre a dialética e a forma sonata. Serão vistos os modos na Grécia antiga e sua
influência sobre o “canto dos afetos” renascentista.
O sistema dos acordes, por sua vez, surge como sons em concordância unidos em um
mesmo soar. Os sons passam a ter uma relação mútua, que se concretiza no acorde, que
possui uma regularidade interna ordenadora da sucessão dos sons6, regidos pelas leis da
harmonia. A tríade (I, III, V) dos acordes dará suas funções em relação à tonalidade.
As funções dos acordes em um sistema tonal serão de repouso, distanciamento, tensão
e resolução. Em relação à tônica, os acordes consoantes realizam o repouso e os dissonantes a
tensão, que pede uma resolução, como retorno em si mesmo.
A harmonia atinge apenas os âmbitos essenciais, que são as leis da necessidade para o
mundo dos sons. O ritmo cuida do pulsar via regras às quais caminha a alma livre. Essa alma
livre é a melodia7, que é o “poético da música, a linguagem da alma que derrama a dor do
ânimo” (Est, III, p. 315). Faremos uma analogia entre melodia e harmonia com a relação
senhor e escravo, onde é o aspecto melódico que assume um papel senhoril em relação ao
harmônico, que por sua vez, se faz servo.
No que diz respeito ao caráter particular da melodia, Hegel a divide em três partes.
Elas dizem respeito à relação de liberdade da melodia em relação à harmonia, onde a melodia,
em sua liberdade, não abandona o necessário: ela na verdade torna-se livre e idêntica a ele.
Esses três momentos são históricos: no primeiro momento, a melodia e a harmonia existem
sem conflitos agudos, como na obra de Palestrina. No segundo momento, ambas permanecem
em um todo compacto, como nos corais a quatro vozes de Bach. No terceiro momento, a
melodia “deve separar em dissonâncias a primeira concordância simples” (Est, III, p. 315),
como na obra de Mozart. Analisamos a liberdade como a justa adequação entre o universal e o
6 Bach teve um papel determinante na discussão barroca das escalas e tonalidades, uma vez que as dramáticas vicissitudes da escala musical ainda não estavam determinadas. Bach foi contra as escalas naturais teorizadas por Zarlino, ao escrever o “Cravo bem temperado, para demonstrar que a afinação temperada é excelente para o ouvido – que, realmente, não percebe as pequenas traições à natureza – e que, destarte, todas as tonalidades se tornam perfeitamente praticáveis” (MAGNANI, 1996, p. 85). Cada volume do Cravo bem temperado contêm 24 Prelúdios e Fugas, um em cada uma das doze tonalidades maiores e menores. 7 “Se coordenarmos os elementos constitutivos do som, conseguiremos estruturas que formam a base da síntese musical. Assim, uma série de alturas diferentes, coordenadas horizontalmente, isto é, nenhuma seqüência temporal, dará origem à melodia; a sua organização no espaço vertical, dentro da mesma unidade de tempo, resultará em contraponto ou harmonia.” (Ibidem, p. 80)
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particular. É neste terceiro momento, portanto, que a melodia se torna autônoma em relação à
harmonia; ela se torna o cantábile.8
Na relação dos meios de expressão musical com seu conteúdo, analisamos a música
cantada e a instrumental. A primeira é quando o seu conteúdo espiritual é apreendido pela voz
humana, que se expressa cantando palavras que, por sua vez, indicam um conteúdo
determinado. No segundo caso, “a música se autonomiza em seu próprio campo” (Ibidem, p.
315), via melodias e elaborações harmônicas, onde a condição do texto nessa relação é
meramente servil. A música mantém essa liberdade pelo fato dela não apreender “o conteúdo
do mesmo modo que o texto, [que] o torna representativo, e sim se apodera de um elemento
que não pertence à intuição e à representação” (Ibidem, p. 315). A interioridade da música
pode ser apreendida de dois modos, a saber, segundo o seu significado ideal ou na
subjetividade do sentimento, que é a alma das notas.
Ao compositor, cabe ir ao peito humano pelo melódico, o puro soar do interior, a alma
própria da música, colocando no som os seus sentimentos. A música não nos conduz a
nenhuma representação: ela nos suaviza, acalma, agita, nos faz rir ou chorar. Prende o ânimo:
é feita para o sentimento interior subjetivo, e não para o conceitual.
Interpretamos que a música nos toca os sentimentos, mas é via sua condição formal
que esses sentimentos são elaborados. O formal [Gestalt], nesse sentido, se torna importante
para a análise musical. Na música, o que há de mais ideal são as leis da harmonia. Um bom
domínio destas leis dá ao compositor a chave dos sentimentos humanos, de como tocá-los.
Os sentimentos causados pela música são proporcionados pela relação de tensão e
retorno à tônica, onde os sentimentos humanos não devem ficar presos “na cisão ou
desespero, e sim no júbilo do prazer” (Est, III, p. 315). O coração deve estar mergulhado na
percepção de si mesmo, em intuir-se a si mesmo. Eis o caráter do melódico para Hegel.
A tarefa da música, ao se relacionar com o texto, é dar particularização à expressão,
onde “no autenticamente melódico, que se entrega menos a este modo determinado, as
relações mais específicas do texto permanecem, sobretudo, apenas secundárias” (Ibidem, p.
326). É apreender o texto e reproduzi-lo em sons. É achar um tom que expresse o texto. No
recitativo, o musical menos importa, e mais vale o textual. Na oratória, a música instrumental
8 Hegel aponta que, em sua época, certos compositores se relacionam com as leis da harmonia de uma forma que surpreende o ouvinte. Supomos que ele se refere a Beethoven, principalmente na Grande Fuga – Opus 133. Contudo, o filósofo não se refere ao compositor em nenhum momento de sua estética musical.
22
pode existir como “pontos de sustentação para as harmonias ou também para interromper o
canto com intercaladas” (Ibidem, p. 326), a fim de colorir a cena textual.
1.2.3. No terceiro capítulo, pretendemos mostrar a arte ideal como manifestação
sensível do espírito absoluto. Levantaremos a ideia de que há um sistema dialético da
tonalidade que é baseado na relação de repouso, tensão e resolução que, em analogia, bem se
adequa ao sistema dialético hegeliano.9 Será pela forma Allegro-de-Sonata de Beethoven que
pretendemos explorar essa dialética.
No sistema tonal, a tônica (I) é a tonalidade como repouso em si mesmo. Ela parte
para um distanciamento de si mesma e se lança para a alteridade (II), que se dá na negação
como movimento de si mesma e expressão de si mesma. Ela modula (IV menor) e se altera
em determinado momento da música, porém se torna pura tensão (V7) e se resolve na tríade
da tônica (I)10: essa resolução é a síntese. É no todo do processo, que conduz à resolução da
tensão com o retorno a si mesmo, que a música se apresentará dona de um conteúdo
verdadeiro.
Nessa dialética, o universal – que na sua particularidade colocamos como a forma
sonata – por um lado se nega, por ser uma obra particular, mas por outro supera essa
particularidade como negação do universal e restabelece no particular sua unidade consigo
mesmo, como universal, pois os conceitos de tonalidade estão presentes na obra. Essa
manifestação do universal no particular dá à forma sonata um caráter de verdadeira
singularidade.
Partimos do conceito abstrato, onde ainda não temos o movimento. Em analogia com a
dialética hegeliana, o conceito tonal presente nas leis da harmonia, leis da necessidade, é puro
conceito ainda não efetivado. (LEBRUN, 2006, p. 333)11 Ainda não temos a negação, que
seria a efetivação fenomênica. Mas é preciso o momento do fenômeno, para Hegel.
(NÓBREGA, 1974, p. 32)12
Surge o movimento e a particularidade. São notas que soam e se esgotam. É o pontual
temporal. A lógica surge como “lógica do processo (formal) do significado (material), logo
9 “Vale dizer que a ordem dos momentos descreve propriamente o movimento dialético ou a lógica imanente da fenomenologia e faz com que a aparição das figuras não se reduza a uma rapsódia sem nexo, mas se submeta ao rigor de um desenvolvimento necessário.” (VAZ, na apresentação de HEGEL,1999, p. 16) 10 O (III) e o (VI) podem substituir o (I), pois tem também função de repouso. 11 Para Lebrun, é “o conceito hegeliano [...] como tema discursivo, não epistemológico” (Ibidem, p. 333). 12 Tal movimento é dialético, “um movimento pelo qual realidades novas se explicitam, se deduzem, graças à contradição, a oposição que existe na realidade anterior” (Ibidem, p. 32).
23
[...] uma lógica da verdade que procura enunciar a configuração do ser na totalidade”
(KERVÉGAN, 2005, p. 73). Tal pensamento dialético e especulativo tem como ciência a
lógica; em Hegel, é o modo mais elevado de se apreender o ser absoluto, diferenciando-se das
“representações”, que é a “relação imediata com o aí-imediato” (Ibidem, p. 74).
Hegel define a Ideia como aquilo que se configurou na efetividade, estando em
unidade com essa. Essa é a ideia como o belo artístico, e não Ideia enquanto tal, que é abstrata
e não objetivada. É a própria ideia do belo artístico ou Ideal. O Ideal, por sua vez, é a Ideia
configurada segundo seu conceito, sendo que a Ideia tem que ser verdadeira.
A Ideia absoluta é espírito sem aprisionamento, absoluto, universal e infinito, que
estabelece o que é verdadeiro a partir de si mesmo, onde a natureza perante ele ocupa a
“posição de ser posta por ele” e não de ser limite. Na obra de arte, o espírito absoluto é
percebido como diferença absoluta de si em si mesmo, onde “o espírito tem a bondade de dar
a este outro de si mesmo toda a plenitude de sua própria essência” (Ibidem, p. 74).13
A subjetividade do espírito é “esta idealidade e negatividade infinita” (Ibidem, p.
74).14 É preciso que a vontade criadora busque o verdadeiro; é preciso superar a finitude que
está em si mesmo. Isso se dá pela consciência alcançada, que lhe diz que ele é aquele que
sabe, e se coloca como objeto absoluto do saber. (Ibidem, p. 74)15 É a necessidade de
objetivar aquilo que no espírito é subjetivo. É na superação desta contradição que se encontra
o conteúdo verdadeiro.
A arte é uma esfera do espírito absoluto, juntamente com a religião revelada e a
filosofia: ela é um saber imediato. Mas no momento após o “fim da arte”, a consciência
caminha para outras formas de conhecer o absoluto que não mais a arte. (Est, I, p. 115)16
Mostramos que na procura pelo belo, Hegel o encontra como Ideia do belo, ou seja, o
conceito, a realidade do conceito e a unidade de ambos como ideal, sendo que o conceito
permanece o dominante, pois a realidade é criada a partir dele. A realidade é seu
13
A obra é criada, justamente por ela ser “a Idéia na Forma de ser posta por meio do espírito absoluto como o outro do espírito [...]. Sua verdade, portanto, é o próprio ponente [das Setzende], o espírito como a idealidade e negatividade, na medida em que ele de fato se particulariza e se nega em si mesmo, mas igualmente supera esta particularização e negação de si mesmo enquanto posta por ele e, em vez de possuir nisso uma fronteira ou limite, se une com o seu outro numa universalidade livre consigo mesmo” (Ibidem, p. 74). 14 Na música, temos a lógica da tonalidade como este absoluto abstrato. Ela se particulariza como obra, negatividade, mas é um outro de si mesmo. Uma obra verdadeira para Hegel é aquela que bem se articula no sistema tonal. 15 “É o próprio espírito absoluto, que para ser para si o saber de si mesmo, diferencia-se em si mesmo e, assim, põe a finitude do espírito, no seio da qual ele se torna objeto absoluto do saber de si mesmo. Assim, ele é espírito absoluto em sua comunidade, o absoluto efetivo como espírito e saber de si mesmo.” (Ibidem, p. 74) 16 “Para nós a arte não vale mais como o modo mais alto segundo o qual a verdade proporciona a verdade para si.” (Ibidem, p. 115) Não nos ajoelhamos mais diante das obras de arte.
24
autodesenvolvimento, “uma totalidade de determinações” (Est, I, p. 122). O conceito que é
universal dirige-se para o particular, que é sua negação, por ser particular. O universal supera
essa diferença, tornado o particular universal. Eis o conteúdo absoluto da obra: ele é unidade
consigo no seu outro.17
A obra será, portanto, a existência da ideia. Beleza e verdade são, por um lado, a
mesma coisa, mas também se distinguem. Ideia é segundo o seu eu em si, ela é pensada pela
consciência. O verdadeiro também é belo, se há concordância entre conceito e obra sensível.
É na verdade da tonalidade, enquanto relação de tensão e resolução, que a verdade e a beleza
da obra musical aparecem. (Ibidem, p. 127)18
Mostraremos também que a música, sendo sem conceito, terá sua beleza no exterior da
forma abstrata e na unidade abstrata da matéria: é a realidade exterior, ponderada como modo
de configuração do exterior que não alcança o seu si interior na Forma ideal como conteúdo
ideal. Seu exterior, em um primeiro momento, é a regularidade e a simetria, como mera
unidade não viva do entendimento, signo do domínio e da prudência. É o campo do
quantitativo. Já as leis da harmonia produzem o qualitativo. A harmonia começa, ao se
subtrair da mera exterioridade, a acolher em si mesma e expressar um Conteúdo mais
espiritual. Já o material sensível, que é o som, deve ser puro: uma corda deve soar com tensão
e comprimento determinado.
É no desdobramento para a realidade exterior que o ideal da arte será verdadeiro. Ele
tem que ser “capaz de reunir e manter a separação recíproca da realidade numa unidade, que
cada parte do desdobramento faz nela surgir esta alma, o todo” (Ibidem, p. 165). Aqui, o
Conteúdo substancial fica preso nesta subjetividade individual, que ao mesmo tempo em que
o possui, o faz aparecer em sua exterioridade. O problema é que o substancial que o particular
possui não pode sobressair-se abstratamente para si segundo sua universalidade, mas
permanece aprisionado na individualidade. A individualidade determinada, entrelaçada com o
Conteúdo, entra numa livre sintonia com o interior da alma.
Assim, o belo é unidade total subjetivada. A partir do conceito de ideal, perguntamos
qual é o ideal para um conteúdo musical. Aqui, definimos o que é uma arte poética e uma
prosaica justamente pelo conteúdo verdadeiro. É na relação entre ideal e natureza que a arte
poética se dará como ideal. É o espírito que configura na Forma do fenômeno exterior o
17 Assim, a obra de arte será considerada a realidade do conceito como particularização autônoma, de onde o conceito, mesmo estando na forma particular subjetiva, é unidade ideal. 18 O belo é infinito e livre, pois lá o conceito o habita, e é lá que o conceito “determina a partir de si a articulação e forma fenomênicas” (Ibidem, p. 127). A potência dessa coesão é a alma subjetiva.
25
mundo interior de seu Conteúdo. Assim, idealizar é o espírito que se corporifica apenas em
expressão do espiritual. (Est, I, p. 179)19 O espírito penetra o exterior e efetua-se.
Na determinidade do ideal, nos utilizamos da forma Allegro-de-Sonata para piano nº
2, opus 2, 1º movimento, de Beethoven, para mostrar um conceito verdadeiro em sua
efetividade e estrutura dialética. Esta forma é dividida em três partes. A exposição instaura a
tonalidade e o desenvolvimento concretiza a tensão, cabendo à reexposição a resolução da
tensão. Tanto para Hegel na dialética quanto para Beethoven na forma sonata, o retorno a si
mesmo ou o retorno à tônica é condição necessária.
Portanto, são formas musicais enquanto organização de ideias musicais inteligíveis,
logicamente articuladas20 que bem dialogam com o sistema hegeliano. É a totalidade, onde o
verdadeiro é o todo. Assim, em um movimento dialético, na produção de um verdadeiro
infinito, é na oposição absoluta que deve ser pensada a reunião, a reconciliação. No sistema,
deve-se pensar a união na cisão, pensar a dialeticidade do real em sua totalidade.
19 “Este acolher no espírito, este formar [Bilden] e configurar [Gestalten] por parte do espírito se chama justamente idealizar.” (Ibidem, p. 179) 20 “Somente a sensibilidade formal do artista pode determinar a evolução de um motivo em uma obra prima muito elaborada, privada de excessos, mas capaz de realizar, de maneira integral, a visão do compositor [...]; é também evidente que as formas mais desenvolvidas não podem ser construídas pela simples união de ‘tijolos’ musicais, ou pela ‘cimentação’ das idéias em molduras predeterminadas.” (Ibidem, 257)
26
2. CAPÍTULO I
Apresentaremos um panorama do que é estética para Hegel e o que, sobre o tema, é
específico da música. Analisaremos a música como sistema no processo de superação em
busca do mais ideal.
Primeiramente, entraremos nas bases teóricas sobre a estética de Hegel e a concepção
do tema em sua época. Perguntaremos sobre a origem da obra, que o filósofo define como
produto do espírito. Assim, procuramos saber de que forma a arte pertence ao espírito
absoluto enquanto belo artístico; como ela nos toca, qual é o seu conteúdo, sua função e seu
limite diante dessa função; finalmente, de que forma o espírito reflexivo sobrepuja a bela arte.
Estaremos agora fundando nossas bases teóricas para, adiante, analisarmos a música no
sistema hegeliano e o problema da tonalidade.
Essa sessão nos é de grande importância, pois estaremos explorando a consideração
que Hegel dá ao sensível sonoro musical, ou seja, ao formal, apesar de seu pouco domínio do
assunto. Ao contrário de Kant, Hegel volta-se para o sensível da obra, uma vez que a Ideia é o
momento da singularidade: ela é a realidade do conceito posto em unidade, como uma
representação onde o conceito não é exterior ao objeto – ao contrário, o conceito já inclui em
si o objeto. Aqui, estaremos explorando esse material musical que traz em si um conceito
formal, a saber, o conceito tonal.
Diante de toda a problemática dos séculos XVIII–XIX envolvendo o tema da
aesthetica como a capacidade de percepção do artístico, do belo (usado neste sentido
primeiramente por Alexander Baumgarten), ou do termo “kalística”, usada por Schiller como
ciência do belo, as obras na Alemanha passam a ser consideradas pelo agrado provocado,
como admiração, temor ou compaixão. Hegel trata esse conhecimento como estética, ou
filosofia da bela arte.
Uma grande discussão foi levantada antes por Kant acerca do belo. Pode-se dizer que
Kant põe o problema da natureza da arte e sua posição como ciência. Kant localiza o juízo
estético entre “o espírito que repousa em si mesmo abstratamente e a natureza” (Est, I, p. 74),
de tal modo que “ele não provém do entendimento enquanto tal – enquanto faculdade de
conceitos – nem da intuição sensível e de sua multiplicidade variada, mas do livre jogo do
entendimento e da imaginação” (Ibidem, p. 76). Sendo sem conceito, seu universal está no
comprazimento: “a necessidade do assentimento universal, que é pensada em um juízo de
27
gosto, é uma necessidade subjetiva, que sob a pressuposição de um sentido comum é
representada como objetiva.” (KANT, 2005, p. 85) Fundamos nossos juízos sob nossos
sentimentos e não em um conceito, sendo que o em si e o para si têm que valer
universalmente e de modo necessário. Eles têm que ser de tal modo que envolvam os dois
lados, sem que, para tal necessidade universal de belo, tenha que haver um conceito. Aqui não
há separação do objeto singular e do conceito universal, ou seja, “o belo existe em si mesmo
conforme a fins, sem fins, sem que o meio e a finalidade se mostrem como lados distintos e
separados” (Est, I, p. 77).
Com relação à problemática entre o belo natural e o artístico em Kant, a própria
natureza é tomada como arte a partir do princípio de finalidade da natureza, onde, através dos
nossos limites de tempo e espaço, a natureza nos oferece o julgamento por meio desses
limites. Ele valoriza o belo artístico por seu parentesco com o belo natural. Kant vê uma
teleologia na natureza. Há que se ter em vista que
o princípio da faculdade de julgar é o de que a natureza especifica as leis gerais do entendimento a favor de nossas faculdades. Nessa relação, a natureza é pensada como um sistema de leis empíricas à nossa faculdade de julgar, ou seja, a natureza deve ser pensada como tendo afinidade com a nossa capacidade de conhecimento. (ARAUJO, 2006, p. 49)
Kant pensa a natureza também como estética, e não apenas como mecânica. Assim, a
partir dos limites de nossas percepções, julgamos o belo. Nossos juízos estéticos de gosto
intercedem pelo belo, e a nossa satisfação interior desinteressada e desprovida de conceito é
que fundamentam nosso ideal de belo. Por mais que seja só uma percepção sensível do
subjetivo, que só o eu subjetivo possa validar meu juízo de gosto, acontece que é “como se”
todos gostassem. Em Kant, a questão é a representação do objeto em mim, o que independe
do objeto. Essa questão é importante para nossa argumentação, pois para Kant o que vale é a
representação subjetiva de cada um do objeto representado. O filósofo pensa que o estado de
ânimo seja universal na experiência estética, enquanto que, para Hegel, seu olhar se volta para
o sensível que manifesta o absoluto; no caso da música, no conceito formal, ou seja, suas leis
da harmonia tonal. É a representação sensível do objeto, que manifesta o conceito – Ideia –
absoluto. Para ele, é indiferente o interesse. Novamente a questão: para Hegel a música é
medida temporal do som, e não puro conceito. São conceitos formais, técnicos. A grande
pergunta dessa dissertação está nesse ponto: é possível um formal dialético? Pensamos que
28
sim.21 Verificamos que a música alcança um dialético formal, demonstrado na forma Allegro-
de-Sonata. Em nossa argumentação, não queremos alcançar o conceito para poder justificar a
relação direta do espírito com o formal: queremos fundar no próprio formal nossa
justificativa. Buscamos argumentos dessa relação na lógica formal dialética que rege todo seu
sistema.
2.1. Tonalidade: feita pelo espírito ou dada pela natureza?
Aqui discutiremos essa questão, que tem como pano de fundo toda a problemática
kantiana do belo natural. Para Hegel, sendo as obras produtos do espírito, elas não estão já
prontas no interior, como se fossem naturais: elas possuem um “começar, progredir, consumar
e finalizar, um crescer, florescer e degenerar” (Est, I, p. 16). Há essa ideia de superação, de
tempo, de passagem, a saber, Aufhebung. Dessa forma, podemos pensar a tonalidade como
uma manifestação do espírito, temporal, a ser superada.22
Hegel pergunta-se ainda de que maneira o belo natural se distingue do belo artístico. A
questão para Hegel é a interação do singular com o Ideal, que é o substancial, o universal. A
discussão é a relação da ideia com a sua realidade, uma vez que a ideia deve partir para sua
efetividade.23 Nessa relação, a ideia dá existência a si, onde a ideia e a ideia do belo são a
mesma coisa. O belo natural é imperfeito, pois “o vivente está, deste modo, articulado
segundo conformidades afins; todos os membros apenas servem como meio para esta única
finalidade da autoconservação” (Ibidem, p. 157). Falta-lhe o sentido de si, sendo que “a
autêntica sede das atividades da vida orgânica permanece-nos oculta, apenas vemos os
contornos exteriores da forma e esta é por sua vez completamente revestida por penas,
escamas, cabelos, couro, aguilhões e peles” (Ibidem, p. 157). O natural é apenas vivo em si
mesmo, onde o ser-em-si-mesmo não se torna real na própria Forma da interioridade.
Assim, o singular imediato do mundo natural e espiritual é limitado e particularizado,
o que “definha a visão de autonomia e da liberdade que são necessárias à autêntica beleza”
21 Para Hegel não: por isso ele a supera. Para o filósofo, o formal toca apenas o nosso interior subjetivo, nossos sentimentos, e não o conceito. Trata-se do limite do formal. 22 Aqui nos é de grande importância essa discussão, pois é como Hegel se coloca diante do estético, das origens da estrutura formal da arte. 23 “A unidade da Idéia e de sua efetividade, portanto, é a unidade negativa da Idéia enquanto tal e de sua realidade enquanto pôr e superar da diferença dos dois lados.” (Ibidem, p. 156)
29
(Est, I, p. 161). É um limite do natural em relação ao autônomo, estando preso em seu
organismo corporal próprio. Para Hegel, a deficiência da existência imediata é a sua finitude
que não corresponde ao seu conceito. A vida natural não vai além da sensação, ficando presa
a si mesma.24
Já a arte é o terreno superior, onde o espírito pode realizar a necessidade da liberdade.
A finitude da existência não oferece a visão e o gozo imediatos da verdadeira liberdade. O
belo artístico supera as deficiências da efetividade imediata. Através da obra de arte o
verdadeiro supera as indulgências da natureza e da prosa. A arte possui uma existência digna
da verdade que permanece em livre autonomia, pois “possui sua determinação em si mesma e
não a encontra posta em si mesma por meio de outro” (Ibidem, p. 163).
Diante dessa problemática, surge uma questão: se a tonalidade, enquanto verdadeira, é
para Hegel feita pelo espírito ou dada pela natureza. Para ele, a arte como um todo é feita pelo
espírito e para o espírito, e “a combinação dos sons diversos em relações determinadas é, por
conseguinte, mesmo que também não seja contrária à essência do som, algo contudo
primeiramente feito e não de outro modo já dado pela natureza” (Est, III, p. 297). Dessa
forma, Hegel define a estrutura do formal da música como algo feito e não dado pela
natureza. “A música, que em geral se move em um elemento primeiramente feito por meio da
arte e para ela.” (Ibidem, p. 307) Esse conteúdo, que é feito, para Hegel é nulo, não tem
conceito, restando à música ser apenas formal. É daqui que se tem um discurso sobre a
música. Seu Conteúdo é o sentimento subjetivo, expressão.25
É sobre os quanta e suas determinidades exterior intelectual que a música “constrói
suas invenções sobre a base firme e a estrutura das proporções” (Ibidem, p. 298). Essa
estrutura é o próprio sistema tonal e suas modulações enquanto retorno a si mesmo. Esse
desenvolvimento do sistema tonal como verdadeiro é o movimento da consciência em direção
ao seu em si, tendo a obra de arte como esfera do absoluto. A saber,
esse caminho é um caminho de experiências e o fio que as une é o próprio discurso dialético que mostra a necessidade de se passar de uma estação a outra, até que o fim se alcance no desvelamento total do sentido do caminho ou na recuperação dos seus passos na articulação de um saber que o funda e justifica. (VAZ, em introdução à HEGEL, 2005, p. 13)
24 Com relação às outras artes, a imitação da natureza também não é aceita por Hegel. Como a poesia, que não se presta apenas a descrever a natureza, o autor também não aceita a mera formalidade da cópia descritiva da natureza. Um simples artifício técnico não é obra. A busca de naturalidade, daquilo que é firme, regular e imediato da natureza contra o meramente arbitrário, fez a arte se perder. 25 Aqui, entendemos que tal conteúdo é verdadeiro, mas será superado, pois como manifestação artística criada pelo e para o espírito, é histórico e será superado.
30
Interpretamos essa passagem como sendo o caminho da experiência sonora que o
discurso dialético une, mostrando a necessidade de se passar de uma acorde ao outro, até que
o fim seja alcançado no desvelamento tonal do sentido do caminho ou na recuperação de seus
passos ou caminhos harmônicos na articulação de um saber que o funda e o justifica, a saber,
a tonalidade.
Na estética hegeliana, a arte é a essência do ser em aparência, onde a aparência não é
um não ser. É onde o conhecimento atinge o reino das essências, ultrapassando os limites
kantianos de impossibilidade do conhecimento da coisa em si. “É a afirmação da
racionalidade do real, da perfeita transcendência racional da realidade pelo pensamento.” (Est,
III, p. 378)26
Assim, partindo da problemática levantada por Kant, Hegel inicia sua estética fazendo
uma delimitação da mesma. Exporemos a sua estética em caráter geral, a fim de criar sólidas
bases conceituais para enfrentar o problema que ela institui.
Hegel inicia sua reflexão excluindo o belo natural do campo estético. Para ele, a beleza
artística é “nascida e renascida do espírito. Ela está acima da natureza, é produzida pelo
espírito, e é própria dele” (Ibidem, p. 78).27 Há em Hegel uma supremacia do cultural, do
pensamento humano, em que mesmo um mau pensamento está acima da mais bela pétala de
flor, uma vez que na arte há a espiritualidade e liberdade, somente o espírito é verdadeiro.
Assim, a bela arte é afastada do necessário da natureza, que não é livre em si mesma.28
26 Desta forma, o sistema tonal já possui toda a estrutura do fenômeno musical, mas ainda não o é, sendo que o fenômeno será sua efetivação. Desse princípio, que é uno e múltiplo, procederá todo o fenomênico, e “o primeiro princípio deve, de certa maneira, conter todas as demais coisas” (NÓBREGA, 1974, p. 30). O nada está em devir no ser. Assim, a multiplicidade dos fenômenos terá em comum um mesmo princípio, que aqui é o tonal. É a identidade dos opostos, o que não cessa a oposição. O que gera o movimento é a luta das contradições que existe na realidade anterior. Esse princípio “carrega em si a contradição e a luta dos opostos. Portanto, nenhuma realidade existe que esteja isenta deste movimento dialético, desta luta de opostos. [...] E porque a oposição continua é que a dialética acontece. São categorias de tese, antítese e síntese que se opõem e se contradizem. Exatamente por isso, não restou tudo na unidade originária da primeira categoria, mas tudo o que existe se deduziu, se explicou necessariamente dialeticamente” (Ibidem, p. 33). 27 “Para Hegel, só merece de fato o adjetivo ‘belo’ o objeto estético que já realizou a sua passagem pelo espírito, isto é, o que é produzido pelo homem com uma intenção explícita de falar à sensibilidade em sua conexão com a razão.” (DUARTE, 1997, p. 117) 28 “Aqui a natureza é entendida como espírito apenas em si, alienado de si mesmo [...]. O que a natureza tem de espiritual se expressa, em cada um de seus estágios (natureza inanimada, ‘cósmica’ e vida), como anexo racional interno, que não encontra, porém, sua contraparte sensível no mundo dos fenômenos, o que a inabilita para ser candidata ao adjetivo ‘bela’, no sentido estrito do termo. Tal hiato entre uma espiritualidade que se limita à essência da coisa natural, e sua manifestação sensível, abandonado esta última à mais chã imediatidade, é o que constitui, para Hegel, a principal deficiência do belo natural.” (Ibidem, p. 118)
31
A fim de dar à arte um valor digno de um tratamento científico, Hegel a desloca do
local que o senso comum a coloca, a saber, de que ela não é um meio adequado para a ciência
autêntica, pois a ciência preocupa-se com “o pensamento que abstrai a massa de particulares”
(NÓBREGA, 1974, p. 31) com o necessário, o que é próprio da natureza. Já a arte preocupa-
se com a imaginação do espírito.
Para tal fim, Hegel distingue arte livre da servil. A primeira é autêntica, a segunda é
uma arte que só está a serviço do entretenimento, da mera diversão, que não atende sua
determinação por si mesma.29 A primeira também pode atender a outros fins como as
ciências, que também podem ser servis, mas ambas se elevam “à verdadeira autonomia livre”
(Ibidem, p. 32), na qual se realizam independentemente, apenas com os seus próprios fins.
A bela arte é, pois, apenas nesta sua liberdade verdadeira arte e leva a termo a sua mais alta tarefa quando se situa na mesma esfera da religião e da filosofia e torna-se apenas um modo de trazer à consciência e exprimir o divino [das Göttliche], os interesses mais profundos da humanidade, as verdades mais abrangentes do espírito. (Ibidem, p. 32)
É onde o sensível
assume a forma da consciência, a substância possui mão dupla, é algo mais que referência universal de todos os singulares: estes (a comunidade) vêem estampado nela o resultado de sua essência e obra, e deste modo contemplam, objetivado na arte, o espírito ético e verdadeiro que lhes é próprio. (SANTOS, 2007, p. 332)
Assim, a arte expõe sensivelmente o que é superior. Aqui, o autor trata da arte como
mediadora entre o mundo sensível, passageiro, e o puro pensar, mas que em um caminho ela é
o primeiro elo intermediário. Portanto, a questão da aparência para a arte não passa a ser um
problema, pois a aparência torna-se essencial para a essência, pois lá ela aparece “para
alguém, para si mesma como também para o espírito em geral [...]. A arte dá efetividade ao
que é verdadeiro em si mesmo” (Ibidem, p. 332).
É preciso ressaltar que a arte não é, seja quanto à forma, seja quanto ao conteúdo, a
maneira mais adequada de conhecer o absoluto:
[...] tornar consciente os verdadeiros interesses do espírito [...], o espírito do mundo atual, ou melhor, o espírito da nossa religião e de nossa formação racional se mostra como tendo ultrapassado o estágio no qual a arte constituiu o modo mais alto do absoluto se tornar consciente. (Est, I, p. 34)
29 Adorno bem trabalhou críticas à essa arte menor, afirmando que elas estão nas mãos da Indústria Cultural.
32
Para Hegel, a cultura tornou-se reflexiva, e não mais venera a arte como na religião da
arte: “o pensamento e a reflexão sobrepujam a bela arte”. (Ibidem, p. 34) São esses elementos
próprios da vida contemporânea, que têm pontos de vistas universais (formas, leis, deveres,
direitos e máximas) e regulam o particular (vontades e juízos), o que para o artístico é
prejudicial, pois a arte anda junto com o ânimo e o sentimento. Segundo Hegel, o próprio
artista é induzido a introduzir pensamentos “mediante reflexões que em torno dele se
manifestam e pelo hábito universal de enunciar opiniões e juízos sobre arte” (Est, I, p. 35).
Dessa forma, torna-se imprudente voltar a uma mentalidade que já se perdeu, a de
idolatrar obras de arte. É o próprio movimento da consciência, onde a arte já é algo do
passado. Ela suscita em nós a fruição imediata, ao passo que, no juízo, o conteúdo dirige-se
para a nossa consideração pensante. A arte nos convida a pensá-la de forma científica, o que é
bom para a filosofia, que ganha espaço na estética.
Com relação à ciência e à filosofia, elas são inseparáveis. Tendo a arte como objeto, a
filosofia deve demonstrar seu objeto segundo sua natureza interior. A necessidade objetiva de
um objeto reside essencialmente em sua natureza lógico-metafísica. Assim, a filosofia deve
buscar a arte e a sua necessidade no progresso interior do conteúdo e no meio de expressão da
própria arte. A fim de dar um caráter de investigação científica filosófica da arte, Hegel parte
dizendo que o espírito pode observar-se, isto é, pode ter uma consciência pensante sobre si
mesmo e sobre tudo o que dele decorre. O pensar constitui a natureza mais íntima e essencial
do espírito. Ele só se comporta, segundo sua natureza essencial, quando está verdadeiramente
presente nesta consciência pensante de si e de seus produtos.
Assim, as artes são de natureza espiritual; elas são o sensível impregnado de espírito.
O público apreende-se no outro (obra), transformando o que é estranho (sentimentos e
sensibilidade) em pensamentos e, assim, reconduzindo-se de volta a si, pois, nas obras, o
espírito só tem a ver com o que lhe é próprio. No entanto, “as obras de arte não são
pensamentos e conceitos, mas um desenvolvimento do conceito a partir de si mesmo, um
estranhamento em direção ao sensível” (Ibidem, p. 37). Aqui, o público reconhece-se em sua
alienação, no sentimento e na sensibilidade. É o ocupar-se com o outro de si que é a obra. Ele,
na verdade, apreende conceitualmente a si e a seu oposto, pois o conceito se mantém em suas
particularidades; ele supera o estranhamento. Assim, o espírito satisfaz na obra a necessidade
de sua mais íntima natureza, submetendo-a às condições científicas, uma vez que ele
33
“impregna de pensamentos” todos os produtos de sua atividade, transformando-os em parte
integrante de si.
Contudo, o autor ressalta que, diante dessa tarefa, a arte não pode ter um conteúdo
“vagando ao sabor de uma fantasia desregrada” (Ibidem, p. 37), pois é no conteúdo que está
sua sustentação, e é ele quem vai determinar as formas. Assim, é pelo pensamento que nos
orientamos diante das infinitas obras. O conceito filosófico do belo deve ter mediado os dois
extremos, universalidade metafísica com a determinidade particular real,30 sua verdade em si
e para si. Então, um conteúdo, para ser verdadeiro, tem de ser absoluto.
Dentro das concepções usuais da arte, ela é delimitada como fruto da atividade
humana, sendo feita para o próprio homem. Ela possui uma finalidade em si mesma, e é uma
produção consciente de algo exterior, podendo ser objeto de saber e de percepção. A atividade
artística não se limita a uma questão técnica, e esta por sua vez não basta para preencher a
consciência do artista. Falta à arte a atividade espiritual, pois é esta que traz à obra conteúdos
mais ricos. Aqui ele põe um limite para o formal.
Com relação à produção, ela recai sobre o talento e o gênio, e sob o lado natural que o
gênio traz consigo. Assim, a produção não é só da autoconsciência particular. Aparece o
entusiasmo, e o gênio é inflamado por um objeto. Nesse processo, há o momento do natural,
mas é preciso a formação do pensamento, da reflexão, do modo de produção e da habilidade.
Portanto, um grande artista possui a profundidade de ânimo e espírito, e é aí que o espírito
transita do mundo interior para o exterior.
Desta forma, a arte possui o realce da animação espiritual. Sendo o próprio homem
criado por Deus, a arte é criação da criatura, e “Deus se deixa conhecer-se na obra de arte”
(Est, I, p. 52). O homem é um ser pensante, ele faz a partir de si mesmo, para si, o que ele é e
o que em geral é. Ele se duplica (a natureza é uma vez só), ele se representa, pensa, e por
meio do ser para si ativo, é espírito. O homem é, mas ele é para si. Esta é a necessidade do
homem de produzir obras de arte, que sempre esteve ligada à religião e às concepções de
mundo.
O homem adquiriu a consciência de si pela teoria, tornando consciente para si o que na
alma move-o e o impulsiona, intuindo e representando o que o pensamento toma por
essencial, reconhecendo a si próprio tanto no que evocou de si mesmo e no que ele recebeu do
30 É o duplo caráter da estética hegeliana como base para o conceito de belo, onde “se, por um lado, (ela) se funda no conceito ainda bastante metafísico de belo ideal, por outro, este mesmo conceito pressupõe essencialmente o fenômeno da beleza como manifestação da idéia no meio sensível e, consequentemente, como aparecimento empírico” (GONÇALVES, 2001, p. 69).
34
exterior, via atividade prática. Lá ele produz e se reconhece e, para isso, ele modifica as coisas
exteriores, imprime o selo de seu interior e reencontra suas próprias determinações: “é o modo
de produção de si mesmo nas coisas exteriores”. (Ibidem, p. 53)
O Homem quer elevar a uma consciência espiritual o mundo interior e exterior, como
se fosse um objeto onde ele possa reconhecer o seu próprio si mesmo. Ele transforma para si e
para os outros essa duplicação.
Assim, a obra de arte é uma produção sensível dirigida para o sentido humano. Para
Hegel, a bela arte deve suscitar o sentimento de agrado. O belo seria a justa adequação de um
conceito ao efetivo. Ao contrário de Kant, Hegel acha infrutífera uma reflexão voltada para os
sentimentos, uma vez que esses são subjetivos, indeterminados, o que abstrai justamente do
autêntico conteúdo. Diante disso, ele lança a reflexão sobre o espírito consciente na superfície
exterior, onde, para ele, o exterior é a própria coisa. Hegel, ao contrário de Kant,31 não está
preocupado com um juízo de gosto, mas sim com as características peculiares do objeto
artístico.
Novamente, eis aqui um dado importante para a argumentação desta dissertação: o
lugar de importância que Hegel dá ao formal [Gestalt]. Como define o tradutor dos livros
Cursos de Estética de Hegel, Marco Aurélio Werle, “a diferença básica entre Form e Gestalt
reside no fato que Gestalt é necessariamente uma forma efetiva, determinada, ao passo que
Form possui um cunho mais geral, universal e indeterminado” (Est, I, p. 12). A possibilidade
de se falar da música é pela via formal [Gestalt],32 pois ela é sem conceito. Ela manifesta em
seu formal o conteúdo absoluto, mas em um estágio em que ele ainda toca apenas a
interioridade subjetiva, os sentimentos, faltando-lhe o lado mais espiritual, o conceitual. Dessa
forma, o que há de mais espiritual no formal da música são as leis da harmonia que regem o
retorno a si mesmo, que aqui defendemos possuir uma relação dialética. A partir disso,
veremos a relação entre forma e conteúdo.
31 Em Kant, para dizer que o objeto artístico é belo, é necessário que a pessoa faça a representação artística ela mesma, não dependendo da existência do objeto. Isso está ligado ao fato de ser contemplativo o juízo de gosto, ou seja, é o sentimento de prazer e desprazer do sujeito diante do objeto, sendo tal comprazimento sem interesse. 32 Novamente o problema levantado por Vladimir Safatle de que a música produz questões cuja articulação correta se dá fora de seu campo, voltando-se para o filosófico, e que em Hegel essa questão é problemática: “Hegel afirmará a incompatibilidade fundamental entre a racionalidade interna aos procedimentos formais da música e a lógica de produção de sentido próprio à exposição conceitual [...]. Segundo Hegel, o conteúdo musical é algo tão abstrato, o som é tão desprovido dos aspectos significativos da linguagem e sua racionalidade é tão formal que ela perde toda e qualquer relevância para a prosa filosófica do conceito. Daí porque Hegel assumiu sua indiferença absoluta em relação aos procedimentos técnicos musicais. Hegel, o filósofo que nunca viu problema algum em adentrar aos domínios mais especializados do saber empírico, reconhece, de maneira sintomática, seu desconforto diante do fato musical.” (SAFATLE, 2006, p. 10)
35
Com relação a conhecer a obra, ele refere-se a “um conhecimento fundamental de todo
o campo do individual em uma obra de arte” (Est, I, p. 55), que são a época e lugar da obra, a
individualidade determinada do artista e o aperfeiçoamento técnico desse. Para Hegel, a mera
preocupação com o técnico da obra desvia da reflexão, pois esse não é o verdadeiro da obra,
uma vez que tais análises são puramente positivas, técnicas. Assim, o externo da obra conta,
mas de forma parcial,
no entanto, se sua natureza for autêntica, o conhecimento de arte se volta ao menos para princípios e conhecimentos determinados e para um juízo com base no entendimento, ao que se junta também à apreciação da obra de arte e as mais precisas distinções de seus diversos aspectos, mesmo que parcialmente exteriores. (Est, I, p. 56)33
Sobre o contato sensível com o objeto da obra de arte de modo essencial, trata-se da
obra tomada como um objeto, e tendo em vista o subjetivo do artista, seu gênio, o talento.
Tais reflexões, por sua vez, distanciam-nos da arte em seu conceito universal, pois ainda nos
localizamos na sua exterioridade. Assim, a obra de arte é sensível, mas não pode ser vista
apenas como um objeto simplesmente natural: ela é sensível, mas ao mesmo tempo, essencial
para o espírito. A obra é para o espírito, o que torna sua apreensão mais Ideal.34
Como nos é apontado, “o desejo não pode deixar o objeto subsistir em sua liberdade,
pois seu impulso o impele a suprimir igualmente essa autonomia e liberdade das coisas
externas, e a mostrar que elas estão aí apenas para serem destruídas e utilizadas” (Ibidem, p.
57). Essa relação do desejo com o mundo exterior é uma relação negativa35, e o sujeito, preso
a esses interesses particulares, também não se torna livre, pois é dirigido por sua vontade,
negando assim a universalidade da razão. Seu desejo fica preso às coisas em sua existência
sensível concreta; ele as quer consumir e não apenas representá-las, o que não o torna livre ao
mundo exterior, pois seu desejo permanece determinado pelas coisas e a elas referido. Tal
relação de desejo não é própria da arte, pois ela não permite à arte uma existência livre. Com
a obra de arte, a relação do espírito é outra, não pode passar pelo desejo: ele deve permitir que
a obra seja livre “como se (a arte) fosse um objeto existente apenas para o lado teórico do
33 A questão da tonalidade, como retorno a si mesmo, é a natureza autêntica da obra musical, pelo menos enquanto tratamento artístico, pois a obra musical, não possuindo conceitos, não pode ser considerada arte. Tal ponto será investigado integralmente mais adiante. 34 “O espírito não se limita à mera apreensão das coisas externas por meio da visão e do ouvido, ele as transforma para o seu interior; o interior que de início ainda é de fato impulsionado na Forma da sensibilidade a se realizar nas coisas na Forma do desejo.” (Ibidem, p. 57) Aqui o problema da música é que ela é sem conceito, e tocará a interioridade mais subjetiva, o puro sentimento, um interior vazio. 35 Relação negativa, pois tira a liberdade do sujeito, tornando-o preso aos seus desejos.
36
espírito” (Ibidem, p. 57). Ele deve satisfazer apenas interesses intelectuais e espirituais na
obra. A obra é inútil ao desejo.
É a reflexão teórica que quer conhecer a arte em sua universalidade, encontrar a sua
essência e lei interior e apreendê-la conforme seu conceito. Ela pertence ao particular como
universal em si mesmo. Mas ao mesmo tempo, Hegel delimita o campo do estético, onde a
arte está além da intuição sensível e do desejo prático, situada no campo da reflexão teórica.
Contudo, também ela não compartilha do interesse teórico na forma científica, que é próprio
das ciências. Esta última, ao analisar um objeto, abstrai-se dele e transforma o seu interior em
um puramente teórico, conceitual.
A obra parte do sensível, mas o deixa, e o torna pensável. Hegel lidará com o universal
da coisa, onde o sensível está só como superfície. O espírito irá libertar a obra de sua mera
materialidade.36
O sensível está como ideal, mas como ainda não é puro pensamento, ele existe como
coisa. A forma é a aparência do sensível, mas que ainda não chegou à interioridade essencial,
pois assim deixaria de ser forma exterior. Ela depende dos sentidos teóricos: a audição e a
visão. Na arte, são os interesses espirituais superiores que são atendidos, pois ela “possui a
capacidade de produzir para todas as profundezas da consciência uma ressonância e um eco
do espírito. É nesse sentido que o sensível é espiritualizado na arte, uma vez que o espiritual
nela surge como sensibilizado” (Est, I, p. 60).
No processo da criação artística, “o aspecto espiritual e sensível devem ser uma só
coisa na produção artística” (Ibidem, p. 60), assim, tal produção não é de caráter científico,
nem meramente mecânico, nem mero manejo sensível, nem uma atividade formal segundo
regras fixas. Nela, o pensamento não pode vir antes, para depois encontrar para a criação uma
forma: o que vem antes não são os pensamentos prosaicos, mas conceitos formais de uma
lógica abstrata dialética. Tal produção autêntica, por sua vez, cabe à fantasia artística. “Ela é a
racionalidade que, como espírito, somente é na medida em que impele ativamente para a
consciência, mesmo que primeiramente exponha o que traz em si mesma na forma sensível.”
(Ibidem, p. 60) Essa é a forma de tornar consciente ao espírito um conteúdo espiritual, que é
configurado sensivelmente. Tal processo não pode se submeter às regras gerais, nem ser
36 “O sensível na obra de arte foi elevado à mera aparência em comparação com a existência imediata das coisas naturais e a obra de arte se situa no meio, entre a sensibilidade imediata e o pensamento ideal. Ela ainda não é puro pensamento, mas apesar de sua sensibilidade, também não é mais uma mera existência material, como pedras, plantas e vida orgânica.” (Ibidem, p. 59)
37
explicado por meio de reflexões universais, mas são casos particulares configurados em
imagens concretas, determinados segundo o tempo e o espaço.37
A fantasia cabe a um grande espírito de um grande ânimo, que cria representações dos
mais elevados interesses da humanidade. Tal fantasia repousa em um dom natural, onde “o
imagético e sensibilidade” (Ibidem, p. 61) devem estar no subjetivo do artista. Mas o autor
ressalta que, sem o momento da formação, tal talento fica limitado. O conteúdo também será
exposto na forma dos fenômenos exteriormente reais.
2.2. A finalidade da arte
Indagamo-nos como a obra, sendo esfera do absoluto, toca o espírito, e em que nível
se dá a ocupação do espírito com as obras de arte. Essa reflexão nos dará uma maior dimensão
da função da arte no processo da tomada de consciência de si do espírito. Retomamos os
argumentos de Hegel em relação ao belo natural e ao belo artístico no que diz respeito à cópia
da natureza, mas com o propósito de argumentarmos sobre a finalidade da arte.
Com relação à finalidade da arte, descartamos a opinião popular sobre a arte como
imitação da natureza, pois este ponto de vista faz perder o belo objetivo. Para Hegel, a cópia
traz em si apenas o caráter formal da arte, um fazer pela segunda vez. É um esforço supérfluo,
pois já temos diante de nós o real; além do mais, tal imitação torna-se um “jogo presunçoso
que fica aquém da natureza” (Est, I, p. 62). Nesse objetivo, a arte é limitada e produz apenas
ilusões unilaterais, e não oferece a vitalidade efetiva da vida. Para o autor, tal imitação a
princípio impressiona, mas logo entedia.38 “O artifício não é produção livre da natureza, nem
uma obra de arte”. (Ibidem, p. 62) Não se trata do que deve ou não ser imitado, mas apenas
que seja imitado corretamente.
Sobre o gosto na imitação, a escolha do belo ou do feio recai sobre o singular do eu ou
até de uma nação, constituindo um gosto subjetivo, que não se submete a regras nem pode ser
discutido:
37 “Tal tipo de imaginação baseia-se antes na memória de situações e experiências vividas. A memória guarda e renova a singularidade e o aspecto exterior da ocorrência de tais fatos, assim como todas as suas circunstâncias, e não permite que a universalidade se imponha por conta própria.” (Ibidem, p. 60-61) 38 “Por meio de mera imitação, a arte não poderá subsistir na competição com a natureza, mas será semelhante a um verme que empreende a perseguição de um elefante.” (Ibidem, p. 63)
38
Quantas vezes já não ouvimos falar que uma beleza européia irá desagradar um chinês ou mesmo um hotentote, dado que o chinês possui um conceito de beleza totalmente diferente daquele do negro e que o conceito deste é, por sua vez, diferente do conceito europeu de beleza e assim por diante. (Ibidem, p. 64)
De acordo com esta afirmação, ambas as etnias podem achar a cultura da outra
insignificante ou desprovida de beleza; eis a dificuldade de um critério subjetivo. Assim, o
autor não aceita a mera formalidade da cópia descritiva da natureza. Um mero artifício técnico
não é obra. Hegel diz que, em sua época, a busca de naturalidade, daquilo que é firme, regular
e imediato da natureza, contra o que é feito de modo arbitrário, fez a arte se perder.
Na busca por qual deve ser o conteúdo da arte e do porque expressá-lo, a arte tem a
finalidade de “trazer ao nosso sentimento e entusiasmo tudo o que possui um lugar no espírito
humano” (Est, I, p. 66).39
A arte acrescenta à nossa experiência exterior e, através das aparências, não da
experiência efetiva, ela nos toca em nossas paixões, sensibilizando. A possibilidade da ilusão
da aparência artística vem da necessidade de toda efetividade do homem passar pelo medium
da intuição e da representação, só assim, via esse medium, penetra no ânimo e na vontade.
Mesmo sendo ilusão, ela nos toca, nos comove, nos abala. Para o nosso ânimo, diante desse
fim, é indiferente que a arte seja ilusão ou real. Assim, o poder peculiar da arte é o despertar
de todos os sentimentos em nós, a passagem de nosso ânimo pelos conteúdos da vida. A
efetivação de todos esses movimentos interiores através da ilusão artística exterior nos
fortifica no que é mais nobre, dissipando os sentimentos [Gefühlen] mais sensíveis e egoístas
de prazer. Mas gravar coisas boas ou más no ânimo é uma tarefa apenas formal; a arte fornece
apenas a Forma vazia para o conteúdo [Inhalt] e Conteúdos [Gehalt]. O retorno a si mesmo da
música também contribui para essa finalidade, oferecendo ao espírito a resolução de uma
39 Finalidade da arte: “despertar e avivar as impressões [Gefühlen], as inclinações e paixões adormecidas de todo tipo; preencher o coração; permitir que os homens possam sentir – desenvolvido ou não – tudo o que o ânimo humano possa ter, experimentar e produzir em seu ser mais íntimo e secreto; permitir que os homens possam sentir o que pode mover e excitar o peito humano em sua profundidade e em suas múltiplas possibilidades e aspectos; oferecer para o prazer dos sentimentos [Gefühle] e da intuição o que o espírito possui de essencial e de superior em seu pensamento e na Idéia, a saber, a magnificência do nobre, do eterno e do verdadeiro; igualmente tornar apreensível o infortúnio e a miséria, o mal e o crime; ensinar a conhecer intimamente tudo o que é horrível e horripilante assim como o que é prazeroso e beato; e por fim, deixar a fantasia livre no jogo da imaginação assim como deixar as intuições e sentimentos sensivelmente excitantes se regalarem num canto sedutor.” (Ibidem, p. 66)
39
contradição através do júbilo do retorno à tônica. Isso acalma, mas é sem conceito, é
puramente formal.
A arte, através das várias matérias que podem ser adornadas – como, por exemplo, o
som –, coloca diante da intuição e dos sentimentos o formal. O problema para Hegel é que,
frente a esta multiplicidade de conteúdos, os sentimentos e representações por ela estimulados
e consolidados se entrecruzam, contradizem e se suprimem [aufheben]. Quando os
sentimentos estimulados são opostos, o resultado são contradições entre os sentimentos e
paixões, o que nos “cambaleiam baquicamente” (Ibidem, p. 67). Diante da multiplicidade da
própria matéria, o autor busca não se ater às determinações tão formais, pois “a racionalidade
que penetra nesta diversidade heterogênea estabelece a exigência de ver sair destes elementos
contraditórios ainda uma finalidade superior, em si mesma mais universal e que possa ser por
ela alcançada” (Est, I, p. 67). Faz-se necessário haver uma finalidade em comum às partes
singulares e uma finalidade substancial superior. A questão é saber em qual unidade essas
formações diversas devem se reunir, e que objetivo único devem possuir como seu conceito
fundamental e finalidade última.
Enquanto finalidade substancial, a arte pode “ameniza a selvageria dos apetites”
(Ibidem, p. 68)40 onde, na paixão, o que vale é o eu particular e nunca o eu universal.41 Um
apetite brutal pode apodera-se do homem, fazendo-o, enquanto ser universal, perder o poder
de ser para si; é quando a paixão singular guia suas vontades.
A arte, quando expõe externamente para a intuição do espírito suas paixões como
representações, permite ao espírito vê-las externas a si e passar a tomar consciência delas.
Nisso já residiria uma força de suavização. Com isso, ele se torna consciente do que ele é
imediatamente. O fato do espírito ver suas paixões representadas externamente a si,
objetivamente à sua frente, o faz considerar seus impulsos e inclinações, o que o permite
libertar-se delas. É a arte mostrando ao homem, de modo imediato, o seu interior (a dor, um
infortúnio, etc). Para o artista, expressar uma dor nas formas externas artísticas42 já é um
alívio maior do que apenas chorar. Essa forma é um sair da unidade imediata com a natureza,
e caminhar para um ocupar-se dos objetos da arte de forma puramente teórica.
40 “Que encontram seu fundamento num egoísmo direto dos impulsos.” (Ibidem, p. 68) 41 “Por meio disso, o homem pelo menos tomaria consciência do que ele é imediatamente.” (Ibidem, p. 68) 42 “A arte nos liberta da potência da sensibilidade por meio de suas representações [Darstellungen] dentro da esfera possível.” (Ibidem, p. 68)
40
A suavização da potência das paixões encontra, por conseguinte, seu fundamento universal no fato de o homem se livrar do aprisionamento imediato provocado por um sentimento e se torna consciente dele como algo que lhe é exterior, com o qual ele apenas deve relacionar-se de um modo ideal. (Ibidem, p. 68)
Como consequência, a purificação das paixões, a instrução e o aperfeiçoamento moral
surgiam como a finalidade artística por excelência, pois são princípios formais e universais,
onde a questão é a separação do puro e do impuro nas paixões. Para tal objetivo ser alcançado,
está em jogo a dignidade da obra, e disso depende de seu conteúdo, que deve ser capaz de
manifestar essa força purificadora; deve tornar o conteúdo consciente segundo sua
universalidade e essencialidade. Esse é o seu caráter de instrução, ou de “tornar consciente
por meio da obra de arte um conteúdo espiritual e essencial em si e para si” (Ibidem, p. 69). É
a obra como essa potência negativa, onde o espírito “assenhoreando-se dela, fez do phatos sua
matéria, e se deu o conteúdo dela. Essa unidade emergente como obra: [é] o espírito universal
individualizado e representado” (HEGEL, 2005a, p. 476).43
A arte tem como finalidade a instrução; a questão para Hegel é que tal instrução ou a
natureza universal do Conteúdo exposto não pode ser “explicitada diretamente por si como
enunciado abstrato, reflexão prosaica e doutrina universal” (Ibidem, p. 70), porque assim a
obra se tornaria apenas um invólucro, um acréscimo ocioso. Para ele, tal instrução deve vir
contida na obra apenas de forma indireta; ela deve estar implicitamente contida na
configuração artística concreta. Se a instrução vier de forma prosaica, a natureza da arte se
torna deturpada, pois “a obra de arte deve tornar consciente um conteúdo não em sua
universalidade enquanto tal, mas nesta universalidade pura e simplesmente individualizada,
sensível e singular” (Ibidem, p. 70). O elemento sensível da obra não pode ser apenas um
adorno exterior e supérfluo, se assim for, a obra se tornaria algo fracionado. Na obra
autêntica, o Conteúdo e o formal devem aparecer como amalgamados um ao outro. Nesta
relação de autonomia da obra, o deleite, o comprazimento com a obra deve ser essencial, do
contrário, a finalidade da obra se torna mero meio. Ela não pode ser um simples meio de
mostrar aquilo que é útil. Se assim for, ela se rebaixa a um mero jogo de entretenimento ou a
um meio de instrução. Esse é o limite da obra.
Acima, Hegel valoriza a questão formal da obra, pois é através dela que os
sentimentos serão tocados, e sua finalidade moral virá à tona. A partir desse ponto, o retorno
43 “E assim chegamos ao limite em que a arte precisa deixar de ser arte, deixa de ser finalidade para si mesma, já que foi rebaixada a mero jogo de entretenimento ou a um mero meio de instrução.” (Est, I, p. 70)
41
ao si mesmo passa a fazer mais sentido para nossa investigação. Ao mesmo tempo, Hegel
delimita o campo de atuação da arte, uma vez que ela precisa do sensível formal para se
mostrar. Eis sua condição e seu limite. Nesse sentido “a arte foi o primeiro mestre dos povos”
(Ibidem, p. 70). Sua superação virá quando seu conteúdo se tornar extremamente prosaico.
Assim, temos a arte poética, como arte autêntica, e a arte prosaica, que se distancia da
autêntica, onde “os limites do mundo do belo são a prosa da finitude e da consciência
habitual, a partir da qual a arte se liberta para a verdade; do outro lado, são as esferas elevadas
da religião e da ciência, nas quais ela passa para uma apreensão menos sensível do absoluto”
(Est, IV, p. 20). Como já dito pelo autor, o espírito de seu tempo se tornou mais reflexivo, e a
arte já não seria o conceito puro em si, e sim um desenvolvimento em busca do mais
espiritual. A poesia, em outros momentos da humanidade, já cumpriu a função de manifestar
o absoluto: “a tarefa principal da poesia é trazer à consciência as potências da vida espiritual”.
(Est, IV, p. 20) Cabe ao poético superar as paixões, ou seja, a consciência só irá agir de
acordo com a lei quando ela souber e experimentar aquilo que ela é. Diante da questão ética,
o homem existe adequadamente à lei de sua existência apenas quando ele sabe o que ele mesmo é e aquilo o que está ao seu redor; ele deve conhecer as potências que o movem e o dirigem, e um tal saber é o que a poesia fornece em sua Forma substancial primeira. (Ibidem, p. 24)
O poético, ao tornar-se prosaico, esgota-se em seu próprio significado. Uma lei
prosaica exerce a função de conduzir o espírito ao ético, mas não é via arte. Tal solução Hegel
considerou mais conveniente à sua época, onde o espírito se tornou mais reflexivo. Assim, ou
superamos a arte e vamos para as leis, ou teremos uma arte como mero invólucro. Nesses dois
sentidos temos o fim da arte para Hegel.44 A arte na estética de Hegel, portanto, encontra-se
em um processo de superação, que vem de um ponto e caminha para outro, tendo assim
virtudes e limites em sua finalidade.
Considerando o tema da busca pelo conceito sob o ponto de vista da Fenomenologia
do Espírito, Hegel descreve o caminho percorrido pelo espírito em busca da formação de sua
consciência. Nesse caminho, o conceito é que melhor elucida a consciência nesta busca pelo
verdadeiro saber, que é o próprio espírito absoluto, e que se manifesta em três esferas: a arte,
44 Aqui surge um problema que não pretendemos resolver, mas que vale a pena ser citado. Na música, sendo a tonalidade o verdadeiro, ela leva, com a resolução na tônica, o ouvido à beatitude. O não retorno à tônica, ou uma dissonância sem resolução, como na Grande Fuga, não pode oferecer tal experiência, estando assim fora dessa finalidade moral. Adorno retoma essa questão moral na música serial, mas não nos cabe aqui tal investigação. Podemos também interpretar essa passagem pelo excesso de razão presente na forma sonata.
42
a religião e a filosofia. Desta forma, a arte manifesta em seu conteúdo o próprio espírito
absoluto. Segundo Hegel:
O conceito, contudo, é a unidade ideal mediada de seus momentos particulares [...]. Esta é a potência do conceito que não renuncia ou perde sua universalidade na objetividade dispersa, mas justamente revela [offenbar] esta sua unidade por meio da realidade e nela. Pois constitui seu próprio conceito conservar a unidade consigo em seu outro. Apenas assim ele é a totalidade efetiva e verdadeira. (Est, I, p. 125)
De acordo com Henri Launer, na religião da arte, o “espírito é artista. É aquele que
sabe o espírito da eticidade que sabe a si mesmo – portanto o espírito verdadeiro”
(LAUENER, 2004, p. 75). Mas, na religião da arte, há mesmo é uma busca pelo conceito, que
é a certeza absoluta de si. Existe um desenvolvimento que vai da pedra arquitetada em direção
à certeza absoluta do conceito. O movimento dialético leva a obra objetiva à obra subjetiva,
da natureza ao espírito. A questão da linguagem surge como uma existência “que é imediata
existente consciente” (LAUENER, 2004, p. 75).
A arte é essa consciência manifestada no sensível, consciência essa que é a essência da
obra. Ela é uma substância que é luminosidade; que “ao contrário (das castas, da dominação
entre povos) é o povo livre, no qual os costumes constituem a substancia de todos, e cuja
efetividade e ser-aí, todo e cada Singular sabe como sua vontade e seu ato” (Hegel, 2005, p.
475). É onde o espírito ético eleva esse espírito acima da efetividade. Ele tem o princípio da
singularidade pura, da consciência de si. A religião só aparece em sua perfeição ao separar-se
de sua subsistência: é a obra. A arte, assim, caminha para o ideal de ter o seu conceito como
figura.45 É onde o espírito puro tem existência fora de seu corpo, “mas aquela potência
positiva da universalidade é subjugada pelo puro si do indivíduo, como a potência negativa”
(Ibidem, p. 476). O pathos é a matéria da arte, e o seu espírito é seu conteúdo. Eis a obra
como o espírito universal individualizado e representado.
Esta totalidade é a ideia, ou seja, “o conceito, a realidade do conceito e a unidade de
ambos” (Est, I, p. 122). A ideia só se manifesta como belo artístico quando, em efetividade,
ela é particular. O ideal, por sua vez, é a ideia configurada efetivamente segundo seu conceito.
De acordo com Gadamer, a verdade da lógica de Hegel é que “não há idéia isolada, e é tarefa
45 “A substância retornou de seu ser-aí à sua pura consciência-de-si, é esse o lado do conceito ou da atividade, com que o espírito se produz como objeto. Atividade que é a forma pura [...]. Essa forma é a noite, em que a substância foi traída e se transformou em sujeito; e dessa noite da pura certeza de si mesmo é que ressuscita o espírito ético, como a figura que se libertou da natureza e de seu ser aí imediato.” (Ibidem, p. 475)
43
da dialética destruir a falsidade de sua absoluta separação […]. A identidade sem diferença
não seria absolutamente nada” (GADAMER, 2007, p. 82). A ideia hegeliana da lógica
pretende conceber em um nexo unitário esta tradição da doutrina das categorias como doutrinas dos conceitos básicos do ser, que constituem o objeto da experiência, juntamente com os conceitos puros da reflexão, que são meras determinações formais do pensar. (Ibidem, p. 84)
Hegel reúne a doutrina do ser e da essência na doutrina do conceito. Para Bourgeois, a
solução da dialética hegeliana para o problema dos opostos conduz a uma unidade, à
totalidade de ambos.
Para o autor, Hegel identifica o saber absoluto ao saber de si e da identidade que só
existe “ao alienar-se ela mesma como tempo” (BOURGEOIS, 2004, p. 192). Assim, o tempo
é a eternidade, que nele vive, o que na teologia cristã pode ser o Deus que está vivo, que se
faz homem. Aqui, o tempo tem que se manifestar como eternidade, mas levando em conta que
só no fim da história ele pode conceber-se nessa verdade de si mesmo, fora disso ele é simples
fenômeno ligado ao conceito, expressis verbis.
2.3. Hegel em seu tempo: arte e moral
A partir da problemática contemporânea a Hegel sobre a arte e moral, queremos aqui
perguntar qual a relação da arte diante do interesse moral que surge a partir de Kant. Hegel
nos dará as diretrizes para melhor entendermos a função da arte dentro do espírito absoluto.
Segundo Hegel, em seu tempo, essa linha limite da arte acentua-se ainda mais quando
objetivos e finalidades superiores da arte deslocam-se para o aperfeiçoamento moral. Isso
quer dizer que a arte saberia do “bem verdadeiro moral, e assim, por meio da instrução, deve
ao mesmo tempo incitar à purificação e, somente então, deve realizar o aperfeiçoamento do
ser humano enquanto sua utilidade e finalidade suprema” (Est, I, p. 71). Segundo Benedito
Nunes, Kant escreve na Crítica da Razão Pura que todo interesse é prático, e completa essa
ideia na Crítica da Razão Prática, a saber: “o estético, domínio do belo, arraigado à Natureza,
enquanto objeto de juízo de gosto, é ohne interesse, sem interesse.” (NUNES, 1993, p. 12) Os
românticos religaram o estético, por intermédio da arte, aos interesses morais e cognitivos,
44
quebrando assim esse desinteresse kantiano. Nesse ponto, Hegel se distancia de Kant e se
aproxima dos românticos, apesar de suas críticas a eles.46
O idealismo germânico surge como parte de um desmembramento do problema
kantiano, que se inicia com Fichte, “seguindo o caminho da constituição transcendental do
mundo através da ação originária do eu, reverteu-o a objeto de conhecimento racional”
(Ibidem, p. 12). O “eu fichtiano constitui uma unidade daquilo que Kant separou como duas
razões, [...] [ele é] mediado por sua intuição intelectual, que apreende sua estrutura e descobre
seus princípios” (NUNES, 2003, p. 12).
Ambos, Eu e não-Eu, estando em experiência, não podem ser definidos e não estão em
absoluta contradição “no eu, ao eu divisível opõe-se um não-eu divisível” (Ibidem, p. 12). A
oposição é interna à consciência e não contra a consciência, o que é uma luta dinâmica, onde
ambos buscam suprimir-se. A liberdade absoluta desse eu se dá na união de seus impulsos
naturais essenciais, onde “eu sou sujeito-objeto e meu verdadeiro consiste na identidade e
inseparabilidade desses dois aspectos” (FILHO, em notas para FICHTE, 1984, p. XI). O
impulso natural deve abdicar-se do desejo, e o mais elevado deve abdicar-se da pureza.
O sucesso desse ideal é a liberdade absoluta. Tal conflito se dá no interior de um
mesmo eu. Para Schlegel, tal conflito se dá na “interação de um impulso consigo mesmo”
(Ibidem, p. XI). Tudo é um e mesmo eu, e esta junção se dá na esfera do ‘eu’. Ao se
manifestar na esfera prática, é necessária uma resistência: sem essa resistência, “o eu não
pode afirmar sua independência e libertar-se; é por sentir-se limitada que a vontade pode
aspirar continuamente à supressão de seus limites” (Ibidem, p. XI).
Segundo Gadamer, em Hegel, “O saber absoluto é, portanto, o resultado de uma
purificação, no sentido de que a verdade do conceito fichteano do transcendental emerge não
como um mero ser sujeito, mas sim como razão e espírito, e, portanto, como a totalidade do
real” (GADAMER, 2007, p. 82).47 “Hegel pode julgar-se como filósofo, que ultrapassou todas
as aquisições desse idealismo filosófico, que as conduziu ao seu termo lógico, e lhes exprime,
por assim dizer, o resultado dialético.” (HIPPOLITE, 1971, p. 3)
Para Hegel, a arte deve escolher o objeto moral para sua exposição. Ele se pergunta
que ponto de vista particular da moral é pretendido por esta exposição. O homem faz o bem
46 “Na tradição do idealismo alemão germânico, o absoluto é o nome do incondicionado kantiano – o real em si, sob as condições a priori da experiência – fora da órbita do conhecimento empírico e apenas visado, como ideal, pela razão.” (Ibidem, p. 12) 47 Segundo Jean Hippolite, Hegel possui uma autonomia inteiramente pessoal e não é apenas um sucessor do pensamento que parte de Kant, Fichte, Schelling. Para ele, essa leitura é esquemática, mas não verdade histórica.
45
porque adquiriu a certeza do que é bom. Aqui, Hegel fala do dever ser moral, que deve ser
escolhido segundo a universalidade abstrata da vontade e as forças das paixões. O outro tende
a ser eliminado pela dicotomia entre ânimo e coração. A moral habita essa contradição e a
vitória seria a escolha consciente do dever e a superação das paixões.48 A verdade está na
reconciliação e mediação de ambos. Se o fim último aponta para o aperfeiçoamento moral,
devemos reclamá-lo para a arte. Neste objetivo, não cabe à arte ser apenas meio, útil para esse
fim. Hegel resolve esse impasse afirmando que “a obra de arte deve revelar a verdade na
forma da configuração artística sensível, isto é, ela é chamada a expor aquela contraposição
reconciliada e, com isso, possui seu fim em si mesma, nesta exposição e revelação mesma”
(Ibidem, p. 74).49 Ele propõe a busca do “conceito de arte em suas necessidades internas a
partir do ponto de vista em que cessa a consideração reflexiva” (Ibidem, p. 74). Segundo o
autor, historicamente, o belo artístico foi reconhecido como um dos meios que resolve e
reconduz a uma unidade a contradição entre espírito e natureza, tanto no surgimento da arte
quanto no sentimento que ela causa. Ele novamente retoma Kant como um importante
pensador do problema dos opostos e da apreensão do belo artístico.
Kant concebe o juízo estético, de tal modo que ele não provém do entendimento enquanto tal – enquanto faculdade de conceitos – nem da intuição sensível e de sua multiplicidade variada, mas do livre jogo do entendimento e da imaginação. Nessa unanimidade das faculdades de conhecimento, o objeto é referido ao sujeito e seu sentimento de prazer de comprazimento. (HIPPOLITE, 1971, p. 76)
Esse objeto é destituído de interesse; não podemos desejá-lo nem necessitá-lo. É
preciso deixar o objeto artístico existir livremente por si. Segundo Kant, o belo deve ser
representado sem conceito e deve valer universalmente, pois o “em si e para si verdadeiros
carregam em si mesmos a determinação e a exigência de também valer universalmente”
(Ibidem, p. 76). O belo, diferente do bem e do mal, deve despertar um comprazimento
universal.50 Na arte não há finalidade, pois o objeto possui a Forma da conformidade a fins,
“na medida em que esta conformidade a fins é percebida no objeto sem a representação de
uma finalidade” (Est, I, p. 77). Em Kant, a separação entre o universal e o particular se
encontra superada pelo belo, pois ambos estão interpenetrados. 48 Para Hegel, esta condição deixa o homem como um anfíbio habitante de dois mundos. 49 Outros fins, como a purificação, o aperfeiçoamento, a fama, o ganhar dinheiro; esses não pertencem à obra de arte enquanto tal. 50 “Na observação do belo não tomamos consciência do conceito e da subsunção que se opera sob esse conceito e não deixamos que aconteça a separação do objeto singular e do conceito universal, que no juízo sempre está presente.” (Ibidem, p. 76-77)
46
Kant vê o belo artístico como uma concordância, na qual o próprio particular é adequado ao conceito [...] Desse modo, o pensamento toma corpo no belo artístico e a matéria não é determinada externamente por ele, mas existe livre por si mesma, na medida em que o natural, o sensível, o ânimo e assim por diante possuem em si mesmos medida, finalidade e concordância e a intuição e o sentimento são igualmente elevados à universalidade espiritual, enquanto que o pensamento não só renuncia à sua hostilidade com a natureza, mas nela se asserena e o sentimento, o prazer e o fruir são legitimados e santificados; de tal maneira que natureza e liberdade [...] encontram seu direito e satisfação em um só termo. (Ibidem, p. 77)
Mas ao mesmo tempo, para Kant, tal julgamento e produção são subjetivos. Para
Hegel, é preciso superar as deficiências kantianas, como a “apreensão superior da verdadeira
unidade da necessidade e da liberdade, do particular e do universal, do sensível e do racional”
(HIPPOLITE, 1971, p. 78).51
Para Hegel, a relação da moral na música está nos sentimentos causados pelo retorno à
tônica. Isso gera um sentimento de agrado, não deixando o espírito na contradição. Para
Hegel, oposições [Gegensätze] não possuem, segundo seu conceito interior, nenhuma
sustentação firme. Para ele, tais acordes de tensão não podem levar ao ouvido a satisfação e o
ânimo. Ele propõe justamente a dissolução da tensão no retorno à tríade. Esse sentimento
satisfatório do retorno a si mesmo é necessário para a formação do espírito ético de um povo,
questão tão fundamental na Fenomenologia do Espírito, pelo menos na época em que a arte
tinha como função levar em seu conteúdo os interesses mais nobres da humanidade, antes de
sua ‘morte’. É na religião da arte que a música, nessa função religiosa, se relaciona com a
moral. Hegel, nesse ponto, valoriza o formal musical, pois é ele que toca o espírito em sua
interioridade, uma vez que a música é sem conceito. Como já visto, se a música trouxer a
51 Hegel vê em Schiller o rompimento com a subjetividade e a abstração kantiana. Nas Cartas Sobre A Educação Estética do Homem, que é um conhecimento da natureza da arte, Schiller vê que cada homem tem em si mesmo uma disposição para um homem ideal, e esse homem ideal é o Estado enquanto Forma objetiva e universal. É onde as particularidades buscam unir-se em uma unidade. Nesse encontro, o Estado enquanto ético, jurídico e inteligente suprime a individualidade. Por outro lado, elevar-se a este Estado (homem da Ideia) enobrece o homem do tempo. “A razão reclama a unidade enquanto tal, o que é conforme ao gênero, enquanto que a natureza conclama a multiplicidade e a individualidade, e as duas legislações recorrem igualmente ao homem.” (Ibidem, p. 80) Tal mediação e reconciliação serão realizadas pela educação estética, que
tende a formar a inclinação, a sensibilidade, o impulso e o ânimo de tal modo que se tornem em si mesmos racionais e que então a razão, a liberdade e a espiritualidade saiam de sua abstração, se unam com o lado natural em si mesmo racional e nele mantenham carne e sangue. (Ibidem, p. 79)
Em Schiller, o belo será a expressão da formação unificadora do racional e do sensível, e tido como o verdadeiro. A Schelling coube o conceito e a posição científica da arte, o que lhe dá uma posição superior e verdadeira. A intuição intelectual foge do castelo que a aprisionava, a saber, a Crítica da Razão Pura. Tal feito é obra do gênio em sua intuição intelectual. A obra se desvincula da ordem das representações empíricas; ela revela a verdade transcendente, e é o real idealizado.
47
moral em forma de texto prosaico ou lei, ela vira um mero invólucro plástico, perdendo assim
sua autonomia como arte. Assim, é no seu interno material que a música se relacionará com a
moral. Eis a importância do estudo de Hegel sobre a relação entre ritmo, harmonia e melodia,
tendo no retorno a si mesmo tonal o seu conteúdo verdadeiro. Eis a pertinência de nossa
questão: se um problema acerca do formal musical se relaciona com uma questão filosófica.
Na música é justamente a melodia que exercerá essa função, pois o livre soar da alma
no campo da música é primeiramente a melodia.
O poético da música, a linguagem da alma, que derrama o prazer interior e a dor do ânimo em sons e nesta efusão se eleva suavemente acima da força natural do sentimento, na medida em que faz da comoção [Ergriffensein] atual do interior uma percepção de si mesmo, um demorar junto de si mesmo e dá ao coração, desse modo, igualmente a libertação da pressão advinda da alegria e do sofrimento. (Est, III, p 315.)
Assim, a melodia tem essa relação direta com o espírito humano, de levá-lo a ter a
percepção de si mesmo na comoção causada pelo retorno a si mesmo. Eis em parte a resposta
à questão levantada logo no primeiro parágrafo da introdução, a saber, como o formal
[Gestalt] da música, através da sonoridade causada pelo retorno à tônica, pode tocar o espírito
em sua interioridade subjetiva, conduzindo-o à consciência de si? Por ser insuficiente a
música, ela leva, através dos sentimentos, à percepção, e não à consciência de si mesmo. A
música se encontra em um estágio inferior, e será superada pela poesia, que melhor realiza
essa tarefa. Toda a questão sobre a música será vista de forma sistemática adiante.
2.4. Críticas de Hegel à ironia de Schlegel52
Queremos mostrar agora como a filosofia irônica de F. Schlegel vai contra toda a
sistemática hegeliana. Já existe em Friedrich Von Schlegel uma negação de uma síntese
dialética, presente em seus fragmentos, o que nos permite interpretar elementos artísticos de
nossa contemporaneidade.
Nesse momento, cabe uma maior atenção ao problema das críticas de Hegel ao
prosaísmo e à ironia, que, desenvolvidas por F. Von Schlegel, encontram seu fundamento em
52 Hegel destaca o valor crítico de Friederich Von Schlegel e de seu desejo do novo, apesar de sua insuficiência filosófica. A obra se concretiza como obra do espírito, que é infinito; ela externa o infinito no finito.
48
Fichte. Ele é apontado por Hegel como aquele que estabelece, em sua filosofia, o eu, que é
total, abstrato e formal, como princípio absoluto de todo saber, de toda razão e conhecimento.
Por causa disso, esse eu é em si mesmo completamente simples.53
Segundo Hegel, tudo o que é produzido pelo caráter absoluto do eu abstrato não é um
em si e para si e nem é dotado de valor, pois são formas vazias. Isso pode causar danos no
plano ético, pois se o eu é senhor de tudo o que existe, ele pode criar e destruir, uma vez que é
um eu que já é absoluto em si mesmo. Assim, tudo o que é em si e para si é mero aparecer por
meio do eu. Há o artista, que é um eu vivo e atuante, que faz sua individualidade para si e para
os outros ao se manifestar e se tornar fenômeno. Ele vive como artista e configura sua vida
artisticamente. Seu agir e manifestar, portanto, ao se referir a um conteúdo, nunca é para uma
consciência como absoluto em si e para si, e sim permanece para ele como aparência feita por
ele mesmo e passível de ser destruída, e sua forma está em seu poder, onde só é atribuída
validade ao formalismo do eu. Para Hegel, não há serenidade neste conteúdo e nem em sua
efetividade. O conteúdo substancial, que é a verdade e a eticidade, não existe, pois só sou
essencial para mim se mergulho em um conteúdo substancial e se me ajusto a ele em meu agir
e saber.
Para Hegel, o significado universal da genial ironia divina é a concentração do eu em
si mesmo, que quebra todos os elos e vive na beatitude do gozo próprio. Aquilo de que o
irônico trata não é algo sério, por mais que para o público pareça ser sério: esses se enganam,
pois tudo parte do próprio arbítrio da “genialidade divina, para a qual tudo e todos são apenas
uma criação sem essência na qual o criador livre, que se sabe desvencilhado e livre de tudo,
não se prende, pois pode tanto destruí-la quanto criá-la” (Est, I, p. 82).
Para Hegel, o conteúdo, fruto do formalismo do eu, que estabelece e destrói tudo a
partir de si mesmo, não é substancial. Ele não é formalmente livre, onde antes havia seriedade
e santidade, o eu estabelece suas próprias verdades. Tal virtuosidade de uma vida irônica de
“genialidade divina”, onde tudo e todos são apenas criações sem essência, e o criador é livre
de tudo, não se prende à sua criação, pois pode tanto destruí-la quanto criá-la. Aqui, o em si e
o para si é algo nulo. Há um desdém para o direito e para o ético, e existe também uma
concentração do eu a si mesmo. Há também a vaidade, que é a nulidade de tudo o que é
objetivo e válido em si e para si, onde tudo o que é nulo é fútil.
53 Por um lado, “nele são negadas toda particularidade, determinação e conteúdo – pois todas as coisas sucumbem nesta liberdade e unidade abstratas –; por outro lado, todo conteúdo que deve valer para o eu somente é estabelecido e reconhecido pelo eu. O que é somente é através de mim, e o que é através de mim posso do mesmo modo aniquilar novamente” (HIPPOLITE, 1971, p. 81).
49
Para ele, há em tal forma uma contradição, pois ela quer ser objetiva, mas se fecha em
si mesma. Isso gera a “solidão e retraimento em si mesmo” (Ibidem, p. 83). Ela não supera
essa “interioridade insatisfeita e abstrata e é acometida pela nostalgia” (Ibidem, p. 83). Surge
o nascimento do culto doentio da bela alma e da nostalgia. Uma verdadeira bela alma age e é
efetiva, mas o mero ansiar é apenas o sentimento da nulidade do sujeito vazio e vaidoso, e
falta-lhe força para sair desse estado e se preencher com um conteúdo substancial.
A ironia como Forma de arte foi além das configurações artísticas da própria vida e da
individualidade particular do sujeito irônico, cabendo ao artista trazer obras de arte externas
como produtos da fantasia. Tal produção tem como princípio, via poesia, a “exposição do
divino como ironia” (Est, I, p. 84). Hegel critica esse princípio, pois o irônico é a aniquilação
de um conteúdo grandioso, é a exposição artística do subjetivo absoluto por si. Isso aniquila a
si mesmo, mostrando que na ironia não há nada de sério, ético, verdadeiro. Em sua aparição,
ela se contradiz, “se aniquila a si mesma em sua aparição [Erscheinung] em indivíduos,
caracteres e ações e, dessa maneira, é a ironia sobre si mesma” (Est, I, p. 84).54 A ironia, se
tomada como fundamento da exposição, torna a obra menos artística, tornando-se trivial, sem
conteúdo, o que não desperta um interesse verdadeiro.
Queremos agora mostrar que a ironia em Schlegel nega a síntese da dialética
hegeliana. Em tal ironia, tudo é paradoxo, nada é eterno e tudo é contraditório enquanto
junção entre a imaginação e a reflexão. É o paradoxo entre o que é dito e o que é inexplicável
pelas palavras. Há vigor na ironia, mas o vigor do silêncio: a ambiguidade.
Segundo Suzuki, as críticas de Hegel vão em direção ao mais novo dos irmãos
Schlegel, a saber, Friedrich, que irá se caracterizar como o filósofo dos fragmentos, como ele
mesmo se declara.55 Ele se afirma como um caos de fragmentos “exatamente num momento
da história da filosofia em que os maiores esforços estão voltados para a completude e
acabamento sistemático da crítica kantiana” (SUZUKI, 1998, p. 12). Tal ‘nota dissonante’
reflete as insuficiências internas do próprio romantismo. Aqui, ele nega um saber absoluto e
sistemático. Segundo Suzuki, sua filosofia pretende “despir a filosofia de seu aparato
artificial, tecnicista, tentando torná-la tanto quanto possível apta a expor o saber na figura
original em que ele mesmo imediatamente se manifesta” (Ibidem, p. 12). Ele nega a ideia de
54 Há um caráter falso que não preserva os fins sólidos, ele os destrói, e não há um fim verdadeiro que possui firmeza e substancialidade, e que pertença a um conteúdo essencial em termos de fins, perseverando junto a tais fins. Segundo Hegel, “tais exposições da ironia não podem despertar um interesse verdadeiro” (Ibidem, p. 84). 55 “De mim, de todo o meu eu, não posso absolutamente dar outro échantillon [amostra] que um tal sistema de fragmentos, porque eu mesmo sou um.” (SCHLEGEL, 1994b, p. 110)
50
Schelling de que existe uma forma da filosofia em geral, onde o saber constitui um sistema
ordenado. Ao contrário, para ele o que há é a
ausência de um princípio a partir do qual não somente se possa entender a presumida unidade e coerência do saber, mas também como ocorre a conexão necessária daquela forma originária da filosofia “com todas as formas singulares dela dependentes” – incluindo, é claro, aquela sob a qual se apresenta a própria crítica da razão pura. (Ibidem, p. 13)
Para Schlegel, o fragmento é a forma da filosofia universal.56 As ideias contrárias não
são excludentes, mas se combinam de maneira complementar, elas estão entre a contradição e
a conciliação, e onde a reflexão oscila entre os extremos, o que Fichte chama de determinação
recíproca.
Segundo o fragmento 434 do Athenäum: “deve então a poesia ser pura e simplesmente
dividida? Ou permanecer uma e indivisível? Ou alternar [wechseln] entre separação e
vínculo?” (SCHLEGEL, 1994a, p. 337). Schlegel explica que tais opostos seriam uma
contradição própria ao eu infinito, “se ao refletir não nos podemos negar que tudo está em
nós, então não podemos explicar o sentimento de limitação que nos acompanha
constantemente na vida senão quando admitimos que somos somente um pedaço de nós
mesmos” (Ibidem, p. 337). Vemos uma fuga de Schlegel do tecnicismo filosófico. Sendo o
indivíduo uma parte de si mesmo,
é a própria atividade originária do eu que, pelo caráter reflexivo, implica fragmentação, determinando a diversidade da poesia, um esforço de combinação dos gêneros poéticos tem então de ocorrer no sentido inverso, numa tentativa de retornar à unidade inicial: a busca de reunificação de todos os gêneros numa nova síntese de poesia e prosa, poesia e filosofia, criação poética e crítica, é o que agora explica as formas mistas e especialmente o romance, que não é de fato um gênero, mas um meio onde se combina os gêneros, o elemento para aquilo que Schlegel chama de poesia romântica ou poesia universal progressiva. (SUZUKI, 1994b, p. 17)
Schlegel não aposta na sistemática da filosofia, e sim na fragmentação da poesia. No
fragmento 206 do Athenäum, “um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte,
totalmente separado do mundo circundante, perfeito e acabado, em si mesmo, como um porco
espinho” (SCHLEGEL, 1994a, p. 82).
56 Onde há na “consciência, estreitamente entrelaçada com sua imperturbável unidade, uma primordial e inevitável inclinação para o fracionamento – um pendor original à fragmentação. Segundo o fragmento 24 do Athenäum: ‘muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras dos modernos já o são ao surgir’” (Ibidem, p. 23).
51
Sobre a ironia, o próprio F. Schlegel afirma no Lyceum, fragmento 42:
A filosofia é verdadeira pátria da ironia, que se poderia definir como beleza lógica: pois onde quer que se filosofe em conversas faladas ou escritas, e apenas não de todo sistematicamente [“não-sistemático” equivale a “conversação”, “diálogo”, “irônico”, “chistoso” e “urbano”, pois a filosofia “de todo sistemática” é construída mediante demonstrações monológicas], se deve obter e exigir ironia; e até os estóicos consideravam a urbanidade uma virtude [“até” porque eles são individualistas]. Também há, certamente, uma ironia retórica que, parcimoniosamente usada, produz notável efeito, sobretudo na polêmica, mas está para a sublime urbanidade da musa socrática, assim como a pompa do mais cintilante discurso artificial [a retórica é artifício, instrumento de uma verdade não irônica] está para a tragédia antiga em estilo elevado. Nesse aspecto, somente a poesia pode também se elevar a altura da filosofia [“poesia universal progressiva”, “beleza lógica”], e não está fundada em passagens irônicas, como a retórica. Há poemas antigos [Aristófanes, devido não à zombaria, mas à parábase (auto critica)] e modernos que respiram, do início ao fim, no todo e nas partes, o divino sopro da ironia. Neles vive uma bufonaria realmente transcendental. No interior, a disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade [superioridade da obra sobre o poeta, a obra como sujeito transcendental, como gênio ou [“gênio do gênio”]; no exterior, na execução, a maneira mímica de um bom bufão italiano comum [parte da ironia, que rebaixa a parte metafísica ao nível da cidade, da conversão, do chiste. (Ibidem, p. 26, notas de FREITAS)
Segundo Freitas, F. Schlegel faz uma junção enfática entre estética (que busca saber o
que é arte em seus fundamentos) e poética (que estabelece elementos normativos).57 Há um
caráter reflexivo em saber o que é arte, que leva a um conhecimento de si mesmo, mas que
pretende alcançar o infinito. Segundo Schlegel, “a poesia romântica é a única em que há mais
do que um tipo de poesia, é a própria arte poética: pois, em certo sentido, toda poesia é, ou
deveria ser romântica”.58 O próprio autor não define em um todo acabado o que seria ironia,
como se nos convidasse a “uma contínua produção de sentidos múltiplos, a partir da
justaposição de formulações paradoxais, tanto por sua relação umas com as outras, como nos
próprios termos” (Ibidem, p. 97).
A ideia de paradoxo se faz presente: “ironia é a forma do paradoxo. Paradoxo é tudo o
que é igualmente bom e grande.”59 Paradoxos seriam justamente esses “polos contrários,
antinômicos, que não se resolvem, ou do movimento do discurso que, justapostos, dão uma
formulação que vai além do senso comum, que extrapola a compreensão trivial da realidade,
ou seja, a doxa” (Ibidem, p. 97). Tal paradoxo abrange a “alteridade não conciliada” desses
elementos, é uma “síntese infinita” em constante devir, que nega as “totalidades sem fissuras” 57“Tem-se uma poética, mas que, ao colocar aquilo que deve ser realizado pela poesia, pretende mostrar o que esta é verdadeiramente, descortinando o que faz da arte literária uma arte propriamente.” (FREITAS, 2004, p. 96) 58 SCHLEGEL, O Dialeto dos Fragmentos, Ateneu, frag. 116, 1994. 59 SCHLEGEL, Fragmentos críticos, Lyceum, frag. 48, 1994.
52
(Ibidem, p. 97). Há cognição nessa forma do homem em lidar com o mundo e consigo
mesmo, pois ele se dirige ao infinito, é um olhar “sobrelevado”; eis o caráter reflexivo da
ironia, pois ultrapassa tudo que é finito, inclusive o homem.
Assim, o processo artístico leva o artista a um processo de autocriação e de
autodestruição da obra, e essa atitude reflexiva gera a liberdade. A cristalização da obra
testemunha a alienação do artista frente a si mesmo, uma perda da substancialidade em prol
da corporificação da obra. “A autodestruição se transforma em autocriação. Através dela eu
me distancio de mim mesmo e neste ato viso a minha liberdade.” (Ibidem, p. 98) Na obra,
essa autodestruição se dá pelo seu caráter material, ilusório, artificial, ficcional.60
Esse distanciamento da vida real que a obra nos oferece é o que proporciona uma
dimensão “boa e grande”. Tais características favoreceram o subjetivismo romântico. Há a
destruição de uma forma determinada de exposição da obra.
Segundo Todorov, “sintetizar os indivíduos com vistas à produção de seres completos
é, com efeito, uma das idéias caras ao jovem F. Schlegel” (TODOROV, 1996, p. 212). A
Sinfilosofia é a ideia de complementariedade, onde se poderiam reunir filósofos adversários –
desde que estejam à altura do desafio.61
Para Maas, há em F. Schlegel uma filosofia da linguagem de caráter oscilante e
híbrido. Segundo a autora, Schlegel parte para uma escrita antidialógica, anti-hierarquizada e
antiarticulada.
A saudável razão humana, que deixa tão prazerosamente guiar pelo método das etimologias, quando estas se encontram à mão, poderia facilmente chegar à suposição de que o motivo da ininteligibilidade reside naquilo que é ininteligível. Quanto a mim, não posso suportar qualquer tipo de incompreensibilidade, seja a incompreensibilidade do que é incompreensível, menos ainda a incompreensibilidade do compreensível. (MASS, 2008, p. 167)
60 “A obra parabásica toma como elemento construtivo a explicitação de seu caráter lúdico, falso, mentiroso, negando uma idéia de obra como colocação do possível. A ironia romântica, assim, é um processo de autocriação poética a partir do aniquilamento da aparência de naturalidade.” (Ibidem, p. 98) 61 Disso, surge a revista Athenaeum que, além dos irmãos Schlegel, reúne Novalis, Schleiermacher, Schelling, Tick e outros, durante cinco anos. Nela, segundo Moritz, “a doutrina é só uma e seu autor é só um, ainda que seu nome seja múltiplo: não quero dizer que cada um repete o outro (isso seria apenas simpatia), mas que cada uma formula, melhor do que todos os outros, um aspecto, uma parte de uma única e mesma doutrina” (Ibidem, p. 213).
53
Schlegel propõe um “leitor implícito”, e que o crítico deveria entender mais do texto
do que o próprio autor.62 Há um “caráter performativo e produtivo de sua concepção de
crítica” (Ibidem, p. 168), onde só a crítica artística é produtiva. Para a autora há uma
inevitabilidade de uma ironia selvagem, uma Urironie, ironia primordial que se instala em todas as instâncias da comunicação humana pela linguagem e que faz impossível qualquer exercício hermenêutico erigido sob o princípio da linguagem referencial [...]. O uso da ironia não aponta para uma síntese entre o real e o ideal, entre arte e vida, entre eu e o mundo; ao contrário, a ironia funciona como a própria negação da síntese dialética, como “unendliche Annährung” (aproximação infinita), como processo inacabado, índice irrevogável da opacidade da linguagem. (Ibidem, p. 171)
Aqui, percebemos, ao afirmar que a ironia funciona como a própria negação da síntese
dialética, seu rompimento com Hegel e, consequentemente, a origem das críticas de Hegel à
ironia de Schlegel.
Na nossa interpretação, a ironia, na música, poderia ser vista pela ótica da subjetiva e
antissistemática ironia de Schlegel; ela é contra um sistema defendido por Hegel na música.
Valeria mais, para Schlegel, uma música sem um sistema, que valorizasse a subjetividade do
artista criador, que aqui interpretamos como um caráter antissistêmico da obra. Essa pode ser
uma linha de leitura da ironia de Schlegel na música.63
2.5. O prosaísmo na música
Investigamos agora possíveis reflexos da filosofia de Schlegel na música
contemporânea. Uma forma de interpretação do fato seria pelos sons prosaicos cotidianos,
comuns do dia-a-dia, invadindo as formas musicais.64 Podemos exemplificar com
62 Ele “passa a desdobrar – debaixo do nariz do leitor – os passos de um procedimento de interpretação que, à custa de apontar onde deve ser levado a sério (com todas as reservas de que carece a expressão, em Schlegel) e onde fala ironicamente, deverá levar tanto ao reconhecimento dos próprios ‘fracassos’, como levar o leitor a um confrontamento com a sua própria razão de leitor” (Ibidem, p. 167). 63 Temos consciência de que o atonalismo não surgiu na época de Hegel e Schlegel, mas queremos apontar que tanto o prognóstico hegeliano de fim da arte quanto a ironia de Schlegel abrem campo para uma nova forma de se ver e de se fazer arte. Seriam eles um prenúncio do modernismo? Os filósofos, de forma sábia, estariam prevendo as mudanças que historicamente já apontavam na aurora que se anunciava nas artes, ou estariam eles fundando o modernismo? Tais questões, aqui, não ouso desvendá-las. 64 “A exposição deve aqui aparecer natural, mas não deve aparecer nela a naturalidade enquanto tal, e sim o poético e ideal em sentido formal é o fazer [Machen], a eliminação justamente da materialidade sensível e das condições exteriores. Alegramo-nos com uma manifestação que deve aparecer como se a natureza a houvesse
54
movimentos contemporâneos como o de Karlheinz Stockhausen, com o quarteto para
helicópteros.65 Assim, podemos ter com o prosaísmo hegeliano uma chave de leitura para
esses movimentos contemporâneos, onde sons como o de um helicóptero que passa por nossas
cidades todos os dias, ou como uma pá (ferramenta de trabalho do campo), distraída em um
campo qualquer, ganham configurações artísticas em uma galeria, a partir de seu
deslocamento.
Para Danto, “as obras são significados corporificados” (DANTO, 2005, p. 18), onde a
chave para entender esses movimentos seria a “interpretação” (Ibidem, p. 19). Assim, para
ele, a interpretação seria o ponto crucial da crítica de arte. Para nós, é a relação entre obra e
objeto que nos interessa, e “a obra é o objeto mais o significado, e a interpretação explica
como o objeto traz em si o significado que o observador (ouvinte) percebe e ao qual reage de
acordo com o modo como o objeto se apresenta” (Ibidem, p. 19), o que nos leva para uma
filosofia da arte que transcende a matéria. Danto, em consonância com Hegel, afirma que
a arte é praticamente uma confirmação da teoria da história de Hegel, segundo a qual o Espírito está destinado a tornar-se consciente de si. Ela reproduziu esse curso especulativo da história tornando-se autoconsciente – a consciência da arte sendo arte sob uma forma autoreflexiva comparável à da filosofia, que é ela própria consciência da filosofia. (DANTO, 2005, p. 102)
Segundo Duarte, na discussão de Danto sobre arte contemporânea ou pós-histórica em
seu texto O Mundo da Arte, ele “indaga sobre o mistério da transformação de objetos comuns
em obras de arte. Sua conclusão é de que se trata de um tipo de olhar teórico, de certo modo
especializado, que tem a capacidade de produzir essa transfiguração” (DUARTE, 2007, p.
33). Segundo Danto, é a teoria que a recebe no mundo da arte e a tira da condição de objeto
prosaico. Duarte nos mostra como Danto associa essa sua indagação ao prognóstico hegeliano
de fim da arte, em que ocorre a perda de substancialidade da arte. É quando história e arte
seguem rumos diferentes, sendo que ambas já foram movidas pela mesma energia. Assim,
nessa pós-história, a arte perdeu qualquer significação histórica. Desse modo, Duarte nos
mostra que, para Danto, somente com esse deslocamento a arte atingiu sua
produzida, quando de fato ela é uma produção do espírito, sem os meios daquela; os objetos não nos deleitam porque são de tal modo naturais, mas porque são feitos [gemacht] tão naturalmente.” (Est, I, p. 175.) 65 Em 1995, quando ele transformou uma praça em Amsterdam em heliporto, onde quatro helicópteros alugados por Stockhausen participaram da estreia da excêntrica obra Helikopter-Quartett (Quarteto para Helicópteros). A apresentação aérea foi transmitida em som e imagem na sala de concertos.
55
autoconsciência filosófica, que seria um sinônimo do fim de sua história, de um modo análogo à estética hegeliana, no qual o fim da arte, como parte da autoconsciência do espírito, redundaria na filosofia. (Ibidem, p. 34)
Danto argumenta que, com o fim da história, a arte se livrou do fardo que carregava,
passando-o para os filósofos – o fardo da história. Agora, os artistas podem, em seu
subjetivismo (muitas vezes irônico), realizar o que bem quiserem, sem nenhum propósito, se
assim o desejarem. Tal liberdade seria uma marca própria do contemporâneo.
Stockhausen utiliza-se, na peça citada, de fragmentos sonoros existentes
concretamente – no caso, o som dos helicópteros; “é no nível do objet trouvé, do ready made
sonoro, ou ainda, da matéria mais concreta” (MENEZES, 2009, p. 18) que ele desenvolve sua
composição. É “uma música na qual cada evento sonoro passa ter lugar – na medida em que a
intensão assim o deseje” (Ibidem, p. 18). Tal recurso só é possível a partir da perda da
significação da matéria. Neste sentido, Pierre Schaeffer, defensor da música concreta,
argumenta a favor desse elemento, pois só assim, conforme Menezes, o “advento do aspecto
eminentemente musical poderá, segundo Schaeffer, emergir” (Ibidem, p. 18). Apesar de
Stockhausen ser representante da música eletroacústica, nessa peça podemos perceber
claramente a sonoridade do helicóptero como um elemento da música concreta. Assim, a
música concreta poderá emergir “apenas por meio de uma variação da matéria destituída de
significação. [...] A música concreta dá as costas às formas puras” (Ibidem, p. 18-19), ela
renova a matéria. Tal música se utiliza de uma infinidade de objetos sonoros anteriormente
excluídos do domínio musical.
Hegel, em seu tempo, está atento às dissonâncias, como por exemplo, as de
Beethoven. A questão se torna problema a partir do momento em que essas dissonâncias
rompem com aquilo que para Hegel é o conteúdo verdadeiro da obra, a saber, o retorno ao si
mesmo tonal – o que não seria aceito por Hegel, pois colocaria em cheque sua lógica, sua
dialética.
O antissistema de Schlegel pode nos auxiliar nessa interpretação, na medida em que
ele aponta para uma arte não dialética, fragmentada – elementos presentes na arte
contemporânea. Dessa forma, interpretamos que já há em Schlegel um germe de nossa
contemporaneidade. A música ser antissistema pode ser interpretado como antitonal, a
princípio.
Como veremos mais adiante no terceiro capítulo, o prosaísmo será visto, em outra
ótica sobre o mesmo assunto, como um excesso de razão presente na obra de arte, quando a
obra nos convida a pensá-la, como no caso da forma sonata de Beethoven que, divida em três
56
partes ou mais, apresenta uma estrutura extremamente racionalizada, dialética, apesar de
Hegel não reconhecer tal relação. Para ele, tal racionalismo presente na música tiraria dela sua
capacidade de ser um “canto dos afetos”, de nos tocar na mais pura interioridade subjetiva; ela
passaria a ser mais racional do que sentimental, onde seu maior valor estaria em sua
construção formal.
2.6. O absoluto e as formas particulares de arte
Portanto, de que maneira esse ideal absoluto se manifesta no sensível? Vejamos a
aplicação da lógica dialética hegeliana no processo histórico das artes. A questão é saber
como a música se encontra dentro de seu sistema: a música, como arte particular, terá como
Ideal o conteúdo tonal manifestado na obra, que é o estágio em que se encontra a própria ideia
na música.
A questão do belo artístico ou ideal da arte está na relação entre ideia absoluta e
natureza, onde “a idéia absoluta em sua efetividade verdadeira é espírito absoluto, universal e
infinito” (GADAMER, 2007, p. 108). Ela só pode ser apreendida como atividade absoluta;
como diferença absoluta em si mesma. A natureza é este outro, que recebe da ideia a
plenitude de sua própria ideia.
Há uma justaposição, uma dignidade idêntica da ideia com a natureza, onde a natureza
é posta pelo espírito, tornando-se assim um produto que foi privado da potência de uma
fronteira ou limite. Assim, apreendemos a natureza como algo criado, trazendo em si mesma a
ideia absoluta. Por isso, segundo seu conteúdo, ela encontra-se na mesma esfera da religião
revelada e da filosofia, sendo que apenas a forma de apreensão diferencia essas três esferas do
absoluto, sob as quais trazem à consciência seu objeto, o absoluto. As formas de apreensão do
absoluto são colocadas por Hegel da seguinte forma:
A primeira Forma deste saber [Erfassen] é um saber imediato, e exatamente por isto sensível, um saber na Forma [Form] e na forma [Gestalt] do próprio sensível e objetivo, no qual o absoluto chega à intuição e sensação. A segunda Forma, por seguinte, é a consciência que representa; a terceira, por fim, é o livre pensamento do espírito absoluto. (Est, I, p. 116)
Assim, é nesse saber imediato, sensível, ou seja, é na forma do próprio sensível que há
a obra de arte, e que o espírito se manifesta para o sujeito. A arte se põe na tarefa de deixar a
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consciência que contempla, sabida e consciente de si, o que é próprio de um espírito livre. Na
esfera da arte, é tendo contato com o conteúdo espiritual da obra de arte que a consciência
caminha rumo ao espírito absoluto, sendo que a forma é o aparecer deste conteúdo espiritual.
Por isso, a arte será uma etapa dessa caminhada, mas segundo Hegel, “devemos, entretanto,
lembrar que ela [arte] não é, seja quanto ao conteúdo seja quanto à forma, o modo mais alto e
absoluto de tornar conscientes os verdadeiros interesses do espírito” (Ibidem, p. 34).
2.7. O sistema das artes particulares
Hegel nos fala dessa espiritualidade presente nas obras que passa por desdobramentos
históricos, e que possui graus diferentes de proporções entre espiritualidade e sensibilidade,
ou entre forma e conteúdo. Aqui veremos como cada período das artes – o simbólico, o
clássico e o romântico – relacionam-se com o conteúdo, e como se dá o processo de superação
entre elas. Buscamos expor o grau de espiritualidade em cada arte particular, onde a música
ocupa um lugar específico.
A unidade do belo artístico consigo mesmo desdobra-se em si mesma, em uma
totalidade de Formas de arte,
cuja determinidade era ao mesmo tempo uma determinidade do conteúdo, o qual o espírito artístico [Kunstgeist] tinha de configurar a partir de si mesmo em um sistema articulado em si mesmo de concepções de mundo [weltanschauungen] belas do divino e do mundo. É a passagem do simbólico, clássico e do romântico, (Est, III, p. 15)
que é a passagem pelo seu interior. Há a exterioridade, que são as artes particulares: a
arquitetura como simbólica, a escultura como clássica e a pintura, a música e a poesia como
artes românticas. Essas duas esferas, o conceito abstrato e a forma sensível, em junção,
compõem o ideal.
Esse ideal irá se desenvolver nas formas particulares do belo artístico. Assim, vemos a
“arte nascendo da própria idéia absoluta e [...] a exposição sensível do próprio absoluto como
sua finalidade” (Est, I, p. 86). A questão é a unidade da ideia com sua forma. São trajetos até a
essência absoluta, onde se configuram, artisticamente, as concepções do mundo a momentos
históricos concretos. Essas formas vão se superando, e há uma direção ao mais espiritual ou
58
racional como uma tendência do próprio desenvolvimento da consciência do espírito, que vai
se aproximando do conteúdo, tornando-se livre.
Aqui, percebemos que a proximidade do conceito e a desmaterialização marcam esta
caminhada, pois é o conceito que melhor traduz esse conteúdo. É o grau de clareza desse
conceito presente em cada forma particular que vai traçar esta caminhada. Portanto, como
veremos a seguir, as formas particulares tendem a ser mais conceituais e menos materiais.
Em primeiro lugar, temos as artes simbólicas, nesta primeira junção, entre forma e
conteúdo. Elas possuem uma existência imediata, em pedra ou madeira. A pedra ergue-se em
um terreno para ser talhada. “O espírito ainda não livre para si mesmo; ele procurava o que
para ele era absoluto ainda no natural e, por isso, apreendeu o natural como divino em si
mesmo” (Est, II, p. 338), em uma concordância abstrata entre significado e forma. Nela, sobra
matéria (forma) e falta espírito (conteúdo). São as artes da antiguidade não clássica. É a arte
do sublime, em particular a arquitetura, “na qual a materialidade da construção coincide com
o espaço tridimensional imediatamente dado, destinado ao abrigo da divindade” (DUARTE,
1993, p. 21). O edifício, para ser autônomo, tem que ser o fim, mas se for meio (morada), a
arte simbólica deixa de ser autônoma. Quando o objetivo da construção torna-se o abrigo, seu
caráter de meio prevalece. Já quando o abrigo é feito para os deuses, ele passa a possuir um
caráter de fim – é o monumento. A arquitetura no simbólico é feita para adornar, e não para
morar.
Nessa discussão, o caráter de finalidade da obra arquitetônica é fundamental. Já no
período romântico, o objetivo da arquitetura é a morada. Para Hegel, a construção
arquitetônica se torna autônoma quando ela não é destinada à moradia. As artes arquitetônicas
que Hegel escolheu para serem simbólicas se localizam em regiões inóspitas para o homem,
como desertos e montanhas: muralhas, esfinges, pirâmides; todas situadas em regiões
desfavoráveis à vida. Desta forma, a arquitetura só tem caráter de autonomia como arte no
simbólico.
O desenvolvimento da espiritualidade supera a configuração simbólica e migra para as
artes clássicas, onde o sujeito é livre e universal. Porém, a universalidade é particularizada,
pois a forma exterior é particular, determinada: é a forma humana. Há nela a perfeita
adequação entre forma e conteúdo. Existe o peso da pedra, mas há um caráter de
espiritualidade no modo como a forma humana se impõe a esta pedra, de modo que a forma
humana é a totalidade harmonizada. Os deuses gregos são expostos como individualidade,
mas afetados pela forma humana – em particular, na escultura clássica, que possui uma
59
tridimensionalidade ideal. É a serenidade, que é própria dos deuses, idealizada na forma
humana, como escultura.
Na estátua grega não há representação do Deus; contudo, ele está lá, presente. É a
escultura autônoma, como Forma superior. Um Deus que ressoa sobre si mesmo, uma vez que
para Hegel o conceito é a própria coisa. O imortal permanece na sua serenidade. Já a
representação exige mediações, e consiste em pôr algo no lugar de outro, que são alegorias.
Na representação, acontece um recorte.
Segundo Lebrun, a questão do homem grego para Hegel passa pela imediatez humana.
O não poder ir “até o fim da antropomorfização é justamente um dos sinais dessa imediatez.
Há no homem Grego desconfiança para com a humanização do divino” (LEBRUN, 2006, p.
33). Ele é condescendente com o visível e o imediato. O deus não pode viver uma vida
humana, “a contemplação estética é a única metamorfose do divino tolerada pelo pensamento
grego” (Ibidem, p. 33). Na passagem do clássico pagão para o romântico cristão,
a Encarnação, por mais grosseiro que tenha sido o modo de interpretá-la, esboçava uma significação do divino que a Grécia não havia entrevisto. [...] o Finito não é tão opaco que não possa acolher o Infinito, e que é possível outra relação entre o homem e Deus. (Ibidem, p. 33)
O deus grego, em sua presença humana, nunca perde sua desumanidade – ele guarda
ironicamente o fato em seu ‘pétreo sorriso’. Apenas o semblante aproxima deus e homem,
mas, na passagem para o clássico, Lebrun afirma que para Hegel o Deus cristão é muito mais
homem. Para um grego, bastava a exposição do divino para haver uma comunidade de
essência, todavia, Apolo era na cidade um estrangeiro de passagem, que permanecia
longínquo. Mesmo assim, o grego o representava, pois a existência mundana era a única
afirmativa. Era como contemplar humanos fictícios no visível. “Esta só ‘espiritualiza’ a
natureza pela metade.” (LEBRUN, 2006, p. 27) Ainda não é o puro pensamento. Esta
natureza se aparecia para o homem grego cheia de signos, designados pela subjetividade do
próprio sujeito.66
A próxima forma que irá superar a forma clássica é a arte romântica. Nela, a ideia do
belo apreende a si mesmo como espírito absoluto, livre para si mesmo; por isso o conteúdo
66 Na relação entre conteúdo e forma na estátua grega, apesar da consonância, “são imagens ainda enganadoras de nossa relação com o Verdadeiro, e a felicidade da expressão atingida pelos gregos não foi, estritamente, senão expressão. [...] a serenidade do deus só trans-parece em seu sorriso, a significação é apenas traduzida no mármore” (Ibidem, p. 31). Tal é um invólucro onde o espírito se manifesta. O humano, em Deus, apenas lhe mostra sua finitude.
60
exige mais do que pode oferecer a forma, onde o espírito transborda a matéria. Ter um
extremo grau de racionalidade, na arte, já é um modo de transbordamento do espírito sobre a
matéria. A arte romântica se particulariza na pintura, na música e na poesia.
Na arte romântica, o filho de Deus “indica qual é a verdadeira relação do homem com
a essência divina” (Ibidem, p. 33). Sua vida vai além de sucessões de imagens, pois expressa a
relação que deus tem conosco. “A historicidade da vida de Cristo abre, no divino, a dimensão
que faltava aos significantes fixos da Grécia.” (Ibidem, p. 33) No cristianismo, a memória
vence a imaginação: ele se torna fascinado pelo passado, mas perde sua obsessão pelo visível.
Memorização é representação e não pensamento, mas há um refinamento na representação
cristã, a saber, “se a comunidade cristã ainda não pensa a historicidade que rememora, vive-a
no lugar de contemplá-la: isso é o importante. [...] A consciência cristã já não adora aquilo
que é; já não visa ao Deus imediatizado, se não no ter-sido” (GERARD, 2006, p. 34).
Acontece uma ruptura com o imaginário.67
Há uma tendência na escultura de ser coisas no mundo, que é seu caráter de
exterioridade, onde o divino na escultura se funde com ela mesma. Já na pintura, o divino
aparece como vivo. O substancial é “transportado para a comunidade e particularizado nela”
(Est, III, p. 196).
Já na pintura, trata-se de pensá-la como subjetividade interior em sua vitalidade. É a
pintura que, nesse processo dialético, coloca-se como uma síntese entre a arquitetura e a
escultura, onde ela representa, de forma bidimensional, a arquitetura como ambientação e a
figura humana em sua subjetividade. É no ambiente externo, juntamente com a forma
humana, que surge a dialética. Hegel tem como referências as obras do renascimento, onde há
cenas bíblicas que são ambientadas pela arquitetura. Como o romantismo é mais subjetivo, há
no cristianismo reformado uma maior subjetividade do que no cristianismo bizantino e
medieval. A realidade externa não é a última palavra no pictórico, há o espaço do subjetivo: é
a arte como mimese estilizada da natureza, mas na marcha do espírito, a pintura é mais
subjetiva. Na pintura, a expressão objetiva interior e exterior torna-se menos ideal, menos
artística. Ela representa um espaço bidimensional, o que a torna mais ideal do que a escultura.
Na pintura, a subjetividade humana manifesta-se no elemento luminoso da cor, e é a
intimidade dos sentimentos.
67 Segundo Lebrun, é na palavra presença, onde Cristo não é só o visível de deus, “então Deus será dito no meio de nós, realmente presente, no sentido em que os católicos o imaginam, no pão e no vinho” (Ibidem, p. 37).
61
Assim, “a pintura resume a totalidade espacial das três dimensões. A concentração
completa seria a do ponto como superação do que está lado a lado [...] Mas é apenas a música
que caminha para esta negação” (Est, III, p. 202).
A música supera a pintura ao eliminar o elemento espacial, o que a torna mais
espiritual. Eis seu unidimensionalismo, que é o ponto em movimento e o movimento temporal
das notas, que, ao superar a bidimensionalidade da pintura, torna-se pontual ou
unidimensional. É dado movimento a este ponto, e é o pontual temporal o “um após o outro”
(Ibidem, p. 202), uma nota após a outra. O tempo e o espaço estão em uma relação dialética.68
É o ponto temporal que apresenta a determinação do ser-para-si, mesmo sendo esse
momento, o da negação e o do ser, o ser-fora-de-si da ideia. O limite do espaço é dado por ser
ele quantidade imediata, o que o impede de ultrapassar-se para se tornar tempo.
O tempo é o ser-aí dessa auto supressão, portanto negação da negação, isto é, pura negatividade referindo-se a si mesma. [...] é no tempo que o ponto terá enfim sua realidade efetiva. O um fora-do-outro, suprimido, equivale a uma nova forma do ideal, a do punctiforme, da negação da negação pontual: a extensão (ou a multiplicidade) espacial transforma-se em ponto e o ponto que se mantém e se desenvolve não é senão o tempo. (Ibidem, p. 47)
Segundo Arantes, Hegel dá ao tempo uma negatividade que é própria do conceito, “o
próprio lugar onde explode a contradição: o instante-limite que traz sua negação em si-
mesmo, e já a negação dessa negação” (ARANTES, 2000, p. 12). É no tempo que o espírito
realiza o seu itinerário dialético, é seu trabalho de fazer o em si ascender ao para si, tendo-se
um resultado idêntico ao do começo. Na relação entre tempo e espaço, Hegel concebe “o
tempo como resultado do desenvolvimento do conceito no espaço [...] [onde] o tempo é a
verdade do espaço” (Ibidem, p. 29). O espaço é o real do todo exterior, é o ser-fora-de. O
outro da ideia se dá na exterioridade, encontra-se fora dela, é sua alteridade, ideia imediata
como seu reflexo, ela mesma como natureza. Aqui, o espaço é o quantitativo, o que ocupa um
lugar primitivo na sequência dos conceitos da lógica. É o mediatizado em si mesmo. As
dimensões do espaço subsistem em justaposição.69
68 “O ponto é a negação do espaço, uma vez que o espaço se mostra inicialmente como ser-fora-de-si indiferenciado e imediato. [...] A continuidade abstrata do espaço é apenas a possibilidade, mas não o estar-posto do ser-par-si, é antes a negação do espaço, e esta negação posta nele.” (ARANTES, 2000, p. 45) 69 “Como negação do espaço, o tempo libera a negatividade ‘paralisada’ naquele. Então, a negação desse ponto não aparece apenas como um outro ponto, mas no primeiro ponto ele mesmo, pois o ponto temporal, o instante, desaparece assim que nasce. ‘O tempo é a negação da negação, a negação que se refere a si.’ No tempo, é assim enquanto ser que o que é não é; o tempo identifica o ser e o nada daquilo no qual ele é, o agora, ele é o devir realizado naturalmente.” (BOURGOIS, 2004, p. 200)
62
Já a negatividade pontual desenvolvida por si mesma é o tempo. O tempo é o ideal
negativo, o negativo do sensível – é a unidade negativa do ser-fora-de-si. O presente é o que
há de positivo no tempo, sendo o andar do tempo uma sucessão de agoras, sendo passado e
futuro modificações do primeiro positivo, o instante presente. “Aquilo que a representação vê
logo de início no tempo é seu escoamento, a passagem que engloba todas as coisas.” (Ibidem,
p. 54)70 O uno no tempo é imanente.71
A música, como arte temporal, apresenta-se como a segunda arte romântica, e, nesta,
seu ser para o outro é destituído de consciência. Ela tem para si o subjetivo, tanto em seu
conteúdo quanto na forma. Seu material é o som, que é abstrato, um interior sem objetivo. Sua
tarefa é “deixar ressoar [...] o modo no qual o si-mesmo mais íntimo é movido em si mesmo
segundo a sua subjetividade e alma ideal” (Est, III, p. 280).
Faltando à música o elemento mais espiritual, o conceito, ela será superada pela
poesia, que ocupa o lugar mais elevado no sistema das artes particulares. A poesia supera a
música por não mais manifestar o conteúdo espiritual em uma matéria sensível exterior, e sim
interior, que é a linguagem. O ressoar é comum a ambas como material exterior.
Para a música, no entanto, a configuração deste ressoar como ressoar é a finalidade essencial. Pois embora a alma leve ao sentimento o interior dos objetos ou o seu próprio interior no andamento e curso da melodia e suas relações harmônicas fundamentais, este não é, todavia, o interior enquanto tal. (Est, IV, p. 14)
Na poesia72, que é a terceira e última arte romântica, o elemento sonoro se rebaixa ao
mero signo exterior da comunicação. Por meio deste preenchimento com representações
espirituais, o som se torna fonema e a palavra se torna uma finalidade em si mesma. “São as
formas espirituais que se colocam no lugar do sensível e fornecem o material a ser
configurado.” (Est, IV, p. 16) Isso manifesta “o verdadeiro em si e para si do interesse
70 O presente é o que é. O passado já foi. O futuro será. A condição na sucessão é o de um ir para o outro vir, assim, há um negativo. As dimensões do tempo são imediatamente sua autossupressão, a supressão do momento. Há uma não manutenção no tempo, pois é algo momentâneo, “cada dimensão do tempo se refere negativamente a si mesma. [...] A dialética pontual ali revelada só pode concordar com a concepção das diferenças temporais como momentos” (Ibidem, p. 54). Para Hegel, há uma sucessão que é dialética. O Tempo é a negatividade do ponto em-si tornando-se para-si. 71 “Trata-se, pois, de um circuito efetuado pela reflexão do tempo. Trata-se, pois, de um circuito em que hora é o Passado que ocupa o lugar de resultado, de verdade do tempo cumprido. A Hora é o próprio presente que se torna resultado – nesse caso, resultado do passado. Entretanto, se nos referimos à instancia do ser-aí, o Presente se mostra, antes, como a reunião [Vereinigung] da dimensão do Passado (entende-se: ‘o ser-aí como suprimido, como não sendo-aí’) e da dimensão do Futuro (isto é: ‘o não-ser-aí, mas determinado a ser-aí.’).” (Ibidem, p. 54) 72 A poesia é, dentre as artes, a que melhor expressa o divino, “a arte deve, sobretudo fazer do divino o ponto central de suas exposições. O divino, porém, retido por si como unidade e universalidade, é essencialmente apenas para o pensamento” (Est, I, p. 185).
63
espiritual em geral” (Ibidem, p. 17). Aprofundaremos nessa questão logo mais adiante, na
sessão ‘Efeitos da Música’.
A ideia de superação surge justamente na passagem de uma forma para a outra, e
busca progredir: “cada arte tem o seu tempo de florescimento de formação consumada em arte
– e para ambos os lados um antes e um depois desta consumação. Sendo as obras de arte,
obras do artista, elas não estão prontas, mas são um ‘começar, progredir e consumar’”
(Ibidem, p. 16). Elas se superam em idealidade, e o espírito, por sua vez, supera-se em
consciência de si, uma vez que a consciência contempladora se mira nesses “argos de mil
olhos” (Est, I, p. 166), que nada mais é do que fruto do seu próprio espírito, que lá configura
seu ethos.
Se, para Hegel, a questão é ter consciência de si, temos que ter diante da consciência
contempladora um conteúdo absoluto de modo que a conduza à verdade.73 No poético, há o
caráter imagético, onde há aquilo que aparece, mas a expressão poética nos oferece mais – ela
apresenta o não propriamente dito. É acrescentado a esse conteúdo um invólucro diferente
dele. Já o prosaico
possui o significado como tal, o que ele toma como seu conteúdo. Por isso ele não tem nem a necessidade de colocar diante dos nossos olhos a realidade mais precisa de seus objetos, nem – tal como é o caso na expressão não propriamente dita – de suscitar em nós uma outra representação, a qual ultrapassa aquilo que deve ser expressamente o exterior dos objetos; mas isso não ocorre por causa do imagético, e sim devido a qualquer finalidade prática particular. (Est, IV, p. 53)
Haverá uma exatidão nesse apresentar prosaico. Há no prognóstico hegeliano um
deslocar do conteúdo: ele sai do poético e dirige-se para o prosaico. O autor aponta para uma
cultura reflexiva que sobrepuja a arte, que deixa de ser a forma mais ideal de manifestar esse
conteúdo verdadeiro. Continua havendo obras de arte, mas essas, sendo prosaicas, não tocam
um conteúdo verdadeiro.
73 Uma obra poética “desmembra a existência concreta nas suas diferenças e eleva-a na forma de universalidade abstrata, [...] ela ainda mantêm estes dois extremos em mediação inseparada e desse modo, é capaz de permanecer no centro sólido entre a intuição comum e o pensar” (Est, IV, p. 50).
64
2.8. A música como arte particular
A nossa pergunta agora é: qual é o conteúdo da música? Às luzes de Olivier, veremos
toda uma problemática em Hegel acerca do formal da música em relação à dialética e à
música de seu tempo. Agora já estamos diante de nosso material de análise, a música, que por
ser sem conceito é dita como duplamente vazia, sentimento subjetivo. Tal questão é
fundamental para entendermos o local por ela ocupado na estética de Hegel.
2.8.1. A concepção musical do seu conteúdo: música e linguagem
É de tradição na Alemanha do século XIX, em relação à música e ao saber absoluto,
pôr a música – como possuidora de uma linguagem específica, acima da linguagem filosófica
comumente nomeada como tal – como revelação do absoluto. A música seria investida de um
poder perfeitamente particular de expressão, mais eficaz que a linguagem discursiva. Em
Hegel, ela faz parte do espírito absoluto, mas como um momento, um estágio intermediário a
ser superado pela poesia. Para o filósofo, a música não ocupa na hierarquia das artes o estado
último. É o conceito da poesia que supera o som abstrato da música. O conceito é para Hegel
o depositário último da verdade filosófica.
Em Schopenhauer, como resultado dessa corrente a que Hegel se contrapõe, a música
está no cume da hierarquia das artes, e tem mais verdade que a linguagem, como uma
expressão metafísica mais imediata. A música seria mais metafísica, a verdade mesma – ela
bem poderia existir antes mesmo de existir o mundo. A música possuiria maior densidade, um
teor suficiente para poder existir mesmo sem a realidade comumente nomeada. Ela seria a
realidade última. Hoffmann, contemporâneo à Hegel, autor da obra Música Sinfônica de
Beethoven, também vê a música dotada de uma linguagem superior à comumente adotada.
Assim, a música seria munida de um poder perfeitamente particular de expressão, mais eficaz
que a linguagem discursiva.74
Contudo, Hegel não abandona o privilégio da linguagem, do conceito. Eis seu ponto
de vista formal, que não dá à música a posição final. A música, em seu sistema, habita uma
74 Hegel é crítico do pensamento dos iluministas e crítico do romantismo. Segundo Olivier, ele tem essa dupla filiação: era amigo de Hördelin e de Schelling, mas, ao mesmo, distanciou-se deles com relação à posição de arte absoluta. Assim, mesmo que Hegel esteja preso a esta hereditariedade dos iluministas, ele as ultrapassou. Dessa forma, assimilou os princípios sistemáticos da música.
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posição intermediária, sendo que é na linguagem poética que a arte atende à sua realidade
suprema. Ele vai aos princípios sistemáticos e dialéticos da música. Segundo Olivier, Hegel,
de acordo com cartas escritas em Viena (e não necessariamente nos Cursos de Estética),
prende-se ao canto, às óperas de Rossini, onde o cantor improvisa e se liberta de uma
linguagem articulada. Ele se vê livre de todo material escrito: Hegel diz de uma total
“liberdade” do melódico. Segundo o autor, Hegel se prende ao virtuosismo, tendo o
instrumento como extensão do intérprete. Virtuosismo para ele seria a presença de um ser que
se tornou amante da técnica e do hábito de estudar. É a capacidade do ser humano de tornar o
elemento sonoro um hábito para si e domesticá-lo. Olivier especula a ideia de que no processo
de superação da poesia, em teatro dramático e finalmente na ópera, haveria uma arte total. O
sentido do espetáculo vai para o canto, toda vez que a voz da música entra em cena. Quando
Hegel vai ao teatro ver as óperas de Rossini, não se trata apenas de uma recreação, mas de um
gesto que está ligado à sua concepção filosófica de satisfação, e que legitima uma forma de
consciência que se revela feliz na música.75 A música se torna importante para a satisfação.
Vincent Estanek, crítico da obra de Olivier, chama a atenção do autor no que diz
respeito à relação que há entre música e poesia na estética de Hegel. Para ele, em Hegel, há
uma justaposição entre palavra e música, de forma que uma não pode sufocar a outra, e que
um texto mais filosófico pode se tornar extremamente dominante na música. A música não
teria a força de resistir a esse elemento conceitual. Teria que haver um equilíbrio. Para ele,
Olivier supervaloriza essa relação de Hegel entre música e texto. Em nossa dissertação, o que
percebemos é que, na Estética, Hegel não é muito otimista numa justa adequação entre texto e
palavra, apesar de ele achar que o canto é a mais alta expressão do instrumento que é o
próprio corpo; é o canto da própria alma, além do conceito.
Assim, para Hegel, a música apresenta-se como a primeira das artes românticas a
eliminar a espacialidade total, como completo retraimento na subjetividade tanto segundo o
lado do interior (sem palavras) quanto do seu exterior (ondas sonoras). Ela “toma para si o
subjetivo como tal tanto como conteúdo quanto como Forma, na medida em que ela, como
arte, na verdade manifesta o interior, mas na sua subjetividade permanece ela subjetiva” (Est,
III, p. 278). Sendo subjetiva, ela não torna livre a sua exteriorização e passa a ter uma
existência que subsiste em si mesma. Ao suspender a objetividade, ela priva seu exterior de
uma existência firme, como uma imagem ou o conceito. A superação da espacialidade se dará
75 Aqui Olivier diz que essa consciência feliz se põe contrária à concepção de Adorno sobre a música de Schoenberg, que para o filósofo é de uma consciência infeliz.
66
na materialidade – é o movimento das partes do corpo. A música se dará em um corpo que
“vibra de tal modo em si mesmo que cada parte do corpo compacto não apenas modifica o seu
lugar, mas também aspira a se recolocar no estado anterior. O resultado deste vibrar oscilante
é o som, o material da música” (Ibidem, p. 279).
Sendo som, ela abandona a visibilidade e caminha rumo à audição, que percebe a
primeira
resposta anímica mais ideal. [...] A negatividade, na qual aqui penetra o material vibrante, é por um lado uma superação do estado espacial, ela mesma novamente é superada por meio da reação do corpo, assim a exteriorização desta dupla negação, o som, é uma exteriorização em que seu surgimento se aniquila novamente por meio de sua existência mesma e desaparece em si mesma [an sich selbst]. (Ibidem, p. 279)
Essa dupla negatividade a torna mais ideal do que a pintura. Sendo o som abstrato, sua
expressão é o interior e a subjetividade abstrata como tal.76
2.8.2. Efeitos da música
A pergunta é: qual são os efeitos da música no espírito? Ela toca os sentimentos do
espírito, seu interior subjetivo. Isso define sua posição em meio às outras artes.
Desta forma, os efeitos da música irão reivindicar a última interioridade subjetiva
como tal; é a arte do ânimo que se volta para o ânimo mesmo. Seu conteúdo é o subjetivo em
si mesmo e a sua exterioridade é sustentada pelo interior e pelo subjetivo.77
Nos aspectos gerais da música, ela é comparada com a arquitetura e com a poesia. Ela
se assemelha à arquitetura pelo fato de representar em suas formas exteriores a abstração; ela
as tira da invenção espiritual. A arquitetura configura suas formas exteriores segundo as leis
da gravidade e simetria, enquanto a música segue as leis da harmonia e das relações
quantitativas. A música realiza um caráter arquitetônico executando, por si mesma, uma
construção musical de sons conforme as leis. Agora, segundo a materialidade, som e massa
sensível pesada são opostos. É a oposição entre o um do lado do outro (espacialidade) e o um
depois do outro (temporalidade). A materialidade da arquitetura fica para a posteridade, em
oposição ao som, que é passageiro, efêmero, o que o difere da pedra.
76 Percebemos que, como a música não tem palavras, para Hegel, ela irá expressar no ressoar “o modo no qual o si-mesmo mais íntimo é movido em si mesmo segundo a sua subjetividade e alma ideal.”. (Est, III, p. 280) 77 Onde “os sons apenas ressoam na alma mais profunda, que em sua subjetividade ideal é comovida e colocada em movimento.” (Ibidem, p. 280)
67
Nessa abstração, a região mais própria das composições é a interioridade mais
formal,78 o puro ressoar, um recuo para dentro da própria liberdade do interior, onde o artista
é livre do conteúdo. Assim,
já podemos ver no âmbito do belo como uma libertação da alma, uma libertação da opressão e do caráter limitado – na medida em que a arte mesma suaviza os destinos trágicos mais violentos por meio do configurar teórico e os deixa se tornarem um prazer – assim a música conduz essa liberdade para o ponto máximo. (Est, III, p. 284)
No sistema hegeliano, a música será superada pela poesia justamente por essa última
possuir a presença do conceito no ressoar da palavra. O significado de um tema musical já se
encontra exaurido, “se ele é repetido ou também conduzido para contrastes e mediações mais
amplos” (Ibidem, p. 284) como, por exemplo, modulações. Todos esses movimentos, que são
próprios da música, mostram-se
para o entendimento como superficiais e pertencem apenas mais à elaboração musical e ao aprofundamento no elemento variado das diferenças harmônicas, as quais não são nem exigidas pelo conteúdo mesmo nem permanecem por ele sustentadas, ao passo que nas artes plásticas, ao contrário, a execução do singular e no singular apenas se torna um ressaltar sempre mais exato e uma análise viva do conteúdo mesmo. (Ibidem, p. 284)
Na música, quando há uma relação entre temas de forma rica e bem elaborada, como
em uma fuga de Bach, por exemplo, a unidade torna-se melhor concentrada. Mesmo assim, tal
conteúdo – que se deve expressar – permanece o ponto central mais universal, mas não
mantém o todo tão firmemente unido. Falta à música o conceito. A música está próxima da
liberdade formal do interior, o que lhe permite voltar para o conteúdo. A recordação do tema
assumido é uma interiorização do artista, isto é, “um tornar-se interior [Innewerden], de modo
que ele é o artista e pode se mover arbitrariamente e se voltar pra lá e pra cá” (Est, III, p. 285).
Como a música é abstrata, ela não possui Formas naturais, e sim um círculo de Formas dadas,
não por uma inteligência para além do homem, contudo, por ele mesmo, através de leis.79
78 Isso, os artistas plásticos produzem para fora, diante dele, como uma análise exata daquilo que já existe em si mesmo. A produção da suprema unidade deve ser, ao mesmo tempo, a expressão mais perfeita do singular na arte de espécie mais autêntica. Aqui, para haver uma boa obra musical, são necessários a articulação e o acabamento interiores ao todo, no qual uma parte se faz necessária à outra. 79 “A abrangência de suas conformidades a leis e necessidade das Formas recai basicamente no âmbito dos sons mesmos, que não penetram em uma conexão tão estreita com a determinidade do conteúdo que neles se introduz, e no que se refere à sua aplicação, além disso, permite, em geral, um amplo espaço de jogo para a liberdade subjetiva da execução.” (Ibidem, p. 285)
68
Na relação da música com a poesia, o ressoar é o que há em comum. O ressoar musical
não é o conteúdo como tal. Hegel está buscando o conceito. Esse, como já visto, não habita a
música – apenas há os conceitos formais de medida temporal do som, que estão ligados ao
lado formal da música.80 Com relação à palavra, a música não abrange as imagens que são
próprias da fantasia.81
Na poesia, por sua vez, o som não é trabalhado artisticamente, ele é articulado pelo
órgão humano da fala e é reduzido a mero signo de discurso, sendo “uma designação de
representações por si mesma destituída de significado” (Est, III, p. 286). O som permanece
uma existência sensível autônoma, que como mero signo de representações e sentimentos
“possui sua exterioridade e objetividade a ela mesma imanente” (Ibidem, p. 286); ele é apenas
um signo. A objetividade do interior consiste em ter consciência de um pensamento, um
sentimento, etc.: faço deles um objeto para mim e assim os tenho na representação diante de
mim. “Certamente pensamos sempre com palavras, sem necessitarmos da fala efetiva.”
(Ibidem, p. 286) É diante do conteúdo espiritual das representações que o som ganha
autonomia, pois, na música, ele é configurado de forma rica e artisticamente, mas sem
conceito. Assim, o som na música tem um fim em si mesmo, ganhando autonomia.82
Na poesia, o som se torna fonema, e a palavra passa a ter uma finalidade em si mesma.
É a própria exteriorização do espiritual. Ela elimina o elemento oposto do ressoar e da
percepção. Na poesia, a palavra já encontra em si sua existência, onde ela “procura tão
somente em si mesma, a fim de expressar o Conteúdo do espírito tal como ele está no interior
da fantasia enquanto fantasia” (Est, III, p. 286). O ressoar deixa de ser o fim.
Assim, Hegel afirma que desse modo a música pode “tornar-se chegar a ser um modo
de configuração que permite à sua própria Forma, como configuração sonora [Tongebilde]
ricamente artística, torna-se sua finalidade essencial” (Ibidem, p. 286). Mas nesse lugar a
80 “Pois embora a alma leve ao sentimento o interior dos objetos ou o seu próprio interior no andamento e curso da melodia e suas relações harmônicas fundamentais, este não é, todavia, o interior enquanto tal, mas a alma enredada do modo o mais íntimo com o seu ressoar, a configuração desta expressão musical, o que confere à música o seu caráter propriamente dito.” (Est, IV, p. 14) 81 A música acolhe “apenas de modo relativo em si mesma a multiplicidade de representações e instituições espirituais, a expansão ampla da consciência preenchida em si mesma, e permanece em sua expressão na universalidade mais abstrata daquilo que apreende como conteúdo e na intimidade mais indeterminada do ânimo” (Ibidem, p. 15). Ela desdobra-se no interior da fantasia mesma. Na passagem da música para a poesia, a música “não está mais em condição de realizar completamente as imagens de fantasia da poesia” (Ibidem, p. 15). 82 A música “não oprime o som em som verbal, e sim faz do som mesmo por si seu elemento, de modo que ele, na medida em que é som, é tratado como finalidade” (Ibidem, p. 286).
69
música importa menos ao interesse artístico universalmente humano, e torna-se uma questão
para especialistas, o que Hegel diz não ser.83
Percebe-se em Hegel que o formal [Gestalt] é o teórico da música. Com relação à
Form, a música só nos é o primeiro impulso dos sentimentos: ela é abstrata. Já na Gestalt, ela
é toda ordenada por questões dialéticas entre a tensão e a resolução, e vive em torno da
questão do retorno a si mesmo e das leis da harmonia. Hegel explora esse retorno a si mesmo,
mas não chega a reconhecer tais relações como dialéticas.
Hegel pensa a filosofia por meio de uma dialética ontológica. Ele vê na tonalidade
uma relação de repouso, distanciamento, tensão e resolução, apesar de não reconhecê-la e não
chamá-la de dialética. Aqui, levantamos a tese de que a tonalidade bem se enquadra na
relação de tese, antítese e síntese. Percebemos que o filósofo se aproveita do retorno a si
mesmo tonal para colocar a música como possuidora de um conteúdo verdadeiro, o que só
fortalece a sua dialética na música. A questão é que ele não reconhece tal relação como
dialética, apesar de se aproveitar dela. Portanto, defendemos que essa relação de retorno a si
mesmo tonal é dialética. O problema é que é uma relação que se dá apenas no formal da
música, e não no seu Formal, pois lhe falta o elemento conceitual. Mostraremos aqui que a
forma sonata de Beethoven também apresenta uma forma dialética, ideia já defendida por
teóricos como Schoenberg e Magnani, mas não por Hegel. Portanto, nos capítulos seguintes,
iremos ver essa dialética tanto em um simples movimento dentro de um mesmo compasso
quanto em uma Allegro-de-Sonata.
Assim, em objetividade exterior, a poesia perde para a música, pois para ela o sensível
é apenas um meio para o conceito. Na música, esse sensível é o fim e é tratado de forma
artisticamente rica. A poesia ganha em objetividade interior das intuições e das
representações, pois a linguagem poética se apresenta diante da consciência espiritual. O reino
dos sons e o tratamento artístico que o humano lhe dá, por si, não suscitam em nós algo mais
determinado. Ocorre de uma obra musical decorrente do ânimo mesmo e que foi
penetrada por uma alma e sentimentos ricos, pode igualmente de novo fazer efeito ricamente. Nossos sentimentos, além disso, também já transitam de seu elemento da intimidade [Innigkeit] indeterminada para um Conteúdo [Gehalt] e um entretecimento subjetivo com ele em direção à intuição mais concreta e à representações mais universais deste conteúdo [Inhalt]. (Est, III, p. 287)
83 Em relação às questões teóricas ou tratamento artístico, Hegel declara: “neste âmbito sou pouco versado, e por isso, devo me desculpar de antemão se eu apenas me restringir aos pontos de vista mais universais e às observações isoladas.” (Ibidem, p. 281)
70
O que nos leva a representações mais precisas são nossas intuições e representações. O
que a música fez foi dar o primeiro impulso, mas ela, por si só, não nos dá representações
mais precisas. A música, nesse seu limite de ser destituída da linguagem, se torna autônoma,
mas é superada pela poesia.84
Na busca por algo mais determinado, a música pode se juntar à palavra, mas Hegel se
mostra pessimista com relação a tal junção. Segundo ele, “em geral, no interior dessa junção
entre a música e a poesia o predomínio de uma arte é prejudicial para a outra” (Ibidem, p.
281).
Para o filósofo, a poesia tem existência autônoma e pode apenas dar um apoio
insignificante à música. Ressalta que os textos profundos em música não caem bem. O músico
não deve querer ser admirado como poeta. Há, na 9ª Sinfonia de Beethoven, no quarto
movimento, um poema de Schiller, o Hino à Alegria, ou Ode à Alegria [An die Freude], o que
para Hegel “não foram feitos de modo algum para tal finalidade, se revelam como muito
pesados e inaproveitáveis para a composição musical” (Ibidem, p. 281).85
84 “A música não permanece presa a esta autonomia diante da arte da poesia e do Conteúdo [Gehalt] espiritual da consciência, e sim se irmana com um conteúdo [Inhalt] já inteiramente desenvolvido por meio da poesia e expresso claramente, como decurso de sentimentos, considerações, eventos e ações.” (Ibidem, p. 281) 85“Oh amigos, mudemos de tom! Entoemos algo mais prazeroso E mais alegre! Alegre, formosa centelha divina, Filha do Elíseo, Ébrios de fogo entramos Em teu santuário celeste! Tua magia volta a unir O que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam Ali onde teu doce vôo se detém. Quem já conseguiu o maior tesouro De ser o amigo de um amigo, Quem já conquistou uma mulher amável Rejubile-se conosco! Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma, Uma única em todo o mundo. Mas aquele que falhou nisso Que fique chorando sozinho! Alegria bebem todos os seres No seio da Natureza: Todos os bons, todos os maus, Seguem seu rastro de rosas. Ela nos deu beijos e vinho e Um amigo leal até a morte; Deu força para a vida aos mais humildes E ao querubim que se ergue
71
Para Hegel, revela-se uma direção não musical pôr o peso principal no texto. Na
música religiosa, que se utiliza de salmos, há uma intenção, que é a da missa, portanto toma-
se dos salmos apenas o universal do conteúdo, e a música toca os sentimentos. Segundo
Schiller, a poesia alemã encaminha-se naturalmente para a música; as suas tendências
panteístas e transcendentais aproximam-na do lirismo da arte dos sons.
Assim, na passagem da música para a poesia, ocorre o “representar e o intuir interiores
mesmos. São as formas espirituais que se colocam no lugar do sensível e que fornecem o
material a ser configurado, como anteriormente o mármore, o cobre, a cor e os sons musicais”
(Est, IV, p. 16).
2.8.3. Concepção musical do conteúdo
A música toca-nos na interioridade subjetiva. Ela pode também entrar em contato com
o conteúdo objetivo, o texto. Portanto, qual a autonomia da música diante do texto? Nessa
possibilidade de relação da poesia com a música, é preciso investigar o conteúdo da música de
acompanhamento e da música autônoma. Em uma, ela ganha objetividade, na outra,
autonomia; compreender essa relação é condição fundamental para localizar o lugar da
música no sistema hegeliano. Hegel, portanto, faz uma pergunta sobre a concepção musical
do conteúdo: em qual Forma a música pode apreender e expressar um conteúdo particular?
Ora, para ele, só quando no formal musical se expressa algo de espiritual de modo
mais adequado, a música se eleva à verdadeira arte, “independentemente se este conteúdo
alcança por si expressamente sua designação mais precisa por meio de palavras ou se deve ser
sentido mais independentemente a partir dos sons e de suas relações harmônicas e animações
melódicas.” (Est. III, p. 289)
diante de Deus! Alegremente, como seus sóis corram Através do esplêndido espaço celeste Se expressem, irmãos, em seus caminhos, Alegremente como o herói diante da vitória. Abracem-se milhões! Enviem este beijo para todo o mundo! Irmãos, além do céu estrelado Mora um Pai Amado. Milhões se deprimem diante Dele? Mundo, você percebe seu Criador? Procure-o mais acima do Céu estrelado! Sobre as estrelas onde Ele mora!” (Schiller – Ode à Alegria)
72
A música apreende seu conteúdo na Forma da interioridade. Ela “deve se restringir a
fazer apreensível a interioridade ao interior” (Ibidem, p. 289). Seu objeto mais próprio é a
intimidade subjetiva. Essa interioridade abstrata entra em conexão com o “sentimento, a
subjetividade ampliadora do eu, que na verdade prossegue para um conteúdo, mas nesse
fechamento imediato ainda o deixa no eu e na relação destituída de exterioridade com o eu”
(Ibidem, p. 289).
Para o autor, o sentimento apenas reveste o conteúdo. Eis a esfera da música, expressar
os sentimentos particulares. Através das Formas musicais “o coração e o ânimo se apoderam
de um tal conteúdo, de modo que tais relações sonoras, apreendidas nesta adequação, dão a
expressão animada do que está presente no espírito como conteúdo determinado” (Ibidem, p.
291).
Os efeitos da música recaem sobre o ânimo como tal, que não é nem formado por
considerações intelectuais nem a autoconsciência dispersa em intuições isoladas, e sim
oferece a vivência na intimidade e na profundidade dos sentimentos. O ressoar da música
ressoa uma “existência sensível distinta do interior” (Ibidem, p. 298), o que causa uma
diferenciação dela com o sujeito. Seu interior é sem conceito, e seu exterior “volatiza sua
existência real para um diluir temporal imediato da mesma” (Ibidem, p. 298). Ela caminha
segundo um rumo peculiar de formas espirituais da fantasia. A música, desse modo, liberta os
sons de seu conteúdo, confere-lhes autonomia, o que, para Hegel, não é propriamente
adequado à arte. Assim, seu Conteúdo é o interior mesmo. Ele diz da alegria que o ânimo
recai ao acompanhar o elemento do som, potência esta peculiar da música, é seu si-mesmo
simples.86
Portanto, o interior subjetivo da arte relaciona-se com o tempo, como condição
universal da música. Ela é unidade negativa, pois é o um depois do outro temporal, é o agora
mais ideal, que elimina o um do lado do outro espacial. “A atividade igualmente ideal é, em
seu âmbito da exterioridade, o tempo.” (Ibidem, p. 294) Todavia, um agora como negação de
si, pois “tão logo ele é, se suprime para um outro agora” (Ibidem, p. 294). Eis sua
negatividade. Esse interior subjetivo, por estar no tempo e por ser um eu vazio, ao se suprimir,
“não ocorre a passagem para a unidade verdadeiramente subjetiva do primeiro ponto temporal
com o outro” (Est, III, p. 294). Ele se suprime, mas continua o mesmo. O eu efetivo da música
86 Há “na música especialmente uma tal mera análise do entendimento”, que para Hegel é puro virtuosismo. Fora disso, somo levados pelo ritmo a dançar, “na música de salão nossas pernas são contagiadas” (Ibidem, p. 293) pelo melódico, e descansarmos depois da comida.
73
pertence ao tempo, pois sendo um eu vazio, torna-se este movimento vazio. “O eu é no tempo,
e o tempo é o ser do sujeito mesmo.” (Ibidem, p. 294) Além desse som abstrato temporal, há o
Conteúdo, que é “um sentimento pleno de espírito para o ânimo, e a expressão, a alma deste
conteúdo nos sons”. (Ibidem, p. 295)
Por último, a música, que toma para si o interior subjetivo, por ser temporal, precisa
do intérprete, este sujeito vivo que introduz sua subjetividade. É a virtuosidade subjetiva o
ponto central e o conteúdo da fruição.
74
3. CAPÍTULO II: OS SONS COMO A EXPRESSÃO ARTÍSTICA
CONFIGURADORA DO SOM MESMO – A SUPERAÇÃO NA MÚSICA
3.1. O movimento dialético temporal como superação na música: o um após o
outro temporal enquanto retorno a si mesmo
A pergunta que nos orienta é a seguinte: como é o processo de superação na música,
compreendida como um movimento do menos ideal para o mais ideal? A melodia é o mais
ideal, tendo superado a harmonia e o ritmo. O que está agora em questão é a liberdade do
particular diante do universal. Como a melodia, que é a mais livre na música, posiciona-se
diante das leis da harmonia? Veremos que é no período clássico que a melodia ganha
autonomia da harmonia. Perguntamos se, em Hegel, ser livre requer estar ou não estar de
acordo com as leis universais.
O movimento dialético temporal é o motor gerador da música. Em Hegel, esse
movimento é superação [Aufhebung] ou morte, como indicou Ernest Renan, em 1848, na obra
La mort de lárt, onde defende que a arte será uma coisa do passado (une chose du passé),
“uma criação já esgotada das idades não reflexivas que se adornará mesmo reconhecendo que
elas não podem dar mais nada” (RENAN, 1948, p. 599-600). Essa superação se dá tanto no
interior da estrutura musical – ritmo, harmonia e melodia –, quanto no movimento temporal
das notas, uma após a outra. Assim, essas notas são estruturadas a partir da relação entre
tensão e resolução: é o movimento dialético como negação, mas de si próprio, enquanto outro
de si que retorna para o seu em si.
Em primeiro lugar, é necessário investigar como se dá a organização do material
sonoro, transformando-o de simples som metrificado pelo ritmo em harmonia e depois em
melodia, como livre soar. O ritmo é o primeiro estágio dessa hierarquia do som, na qual ele
receberá as medidas temporais que o determinam, segundo medidas firmes, a saber, o
compasso e o ritmo. Em segundo, é preciso abordar a harmonia na qual surgem os sons
enquanto sons, graças às medidas matemáticas temporais do som em relação às alturas,
“número diverso de vibrações nas quais os corpos sonoros vibram em idêntica vibração
temporal” (Est, III, p. 299). A harmonia tem a função de dar as leis da necessidade, de onde
surge o conceito como universal abstrato e de onde tudo parte – trata-se do sistema tonal. Em
75
terceiro lugar, trataremos da melodia como a alma livre da música. O melódico “não
encaminha para o indeterminado, mas é em si mesmo articulado e retorna a si mesmo, a
melodia corresponde ao ser-junto-de-si-mesmo livre da subjetividade, de quem deve ser a
expressão” (Est, III, p. 319). Percebemos que o melódico, apesar de ser o mais livre,
considerado a própria alma da música, não caminha sem as leis da harmonia.
3.2. Ritmo: o pontual temporal na música como atividade negativa
A pergunta sobre o tempo investiga como ele é condição tanto da música quanto da
interioridade subjetiva. Na verdade, ele se apresentará como condição de ambas. Na música, é
o um depois do outro que supera a espacialidade da pintura e, no espírito, é sua condição de
historicidade, porém, como veremos, na música, o tempo é apenas pulsação métrica, divisão
do tempo. O ritmo será superado, contudo, em Hegel, superar é coexistir.
Assim, Hegel divide essa seção em três partes – medida temporal, compasso e ritmo.
Primeiro, o tempo, como aquilo que predomina na música, superando o espaço da pintura.
Segundo, o compasso, como a medida regular, mas ainda não efetivamente. Em terceiro, o
ritmo, como o que vivifica a regra abstrata, ressaltando partes determinadas do compasso,
saindo do puro entendimento.
Nessa busca pelo mais ideal na música, temos primeiramente a medida temporal: as
oscilações sonoras só se tornam arte porque se seguem sucessivamente, e assim, o material
sensível entra na música com a duração temporal de seu movimento. O tempo, por sua vez, “é
exterioridade negativa: como separação recíproca suprimida, ele é o pontual [das Punktuelle]
e, como atividade negativa, a superação deste ponto temporal em um outro, o qual igualmente
se supera, torna-se um outro, etc” (Ibidem, p. 300). Cada nota é única: ela está em relação
quantitativa com outras notas, nas quais o tempo se torna numerável. São, portanto, pontos
temporais.87
87 “O tempo se revela como o fluir uniforme e como a duração em si mesma destituída de diferença.” (Ibidem, p. 300)
76
3.2.1. Tempo e interior subjetivo: a efetividade do espírito no tempo histórico e o
tempo como o um depois do outro na música
Aqui, investigamos a relação entre o tempo e a interioridade subjetiva. Nosso objetivo
é afirmar a relação entre o retorno a si mesmo e o movimento da razão de conhecer a si
mesmo. Esse retorno é condição também da música, e por isso a música faz parte do espírito
absoluto, pois, na audição, o eu percebe nos sons seu interior, e tal audição eleva o espírito:
mas, como veremos, no processo de superação, a música nos toca os sentimentos, o que é
insuficiente para o processo de consciência de si, pois ela é abstrata, sem conceito. É
sentimento retraído em sua interioridade subjetiva, porém é essa interioridade subjetiva que
aqui nos interessa. Essa questão sobre o retorno a si mesmo é o que há de mais espiritual na
música, a saber, a tonalidade.
Portanto, como estamos no processo de superação, a música não pode deixar o tempo
nessa indeterminidade; ela irá determiná-lo dando-lhe uma medida que lhe ordene o soar
segundo regras, que são as medidas temporais do som. “O tempo está em estreita conexão
com o si mesmo simples” (Est, III, p. 300), que percebe nos sons o seu interior. O eu, assim
como o tempo em exterioridade, possui o mesmo princípio: eis as bases abstratas do interior e
do espiritual. “O eu, contudo, não é o substituir indeterminado e a duração destituída de
sustentação, e sim se torna primeiramente si-mesmo como recolhimento e retorno em si
mesmo.” (Ibidem, p. 300) Aqui, o eu está fornecendo aos sons de início apenas as bases. É o
próprio movimento temporal: o um-após-o-outro da música temporal que supera o um-do-
lado-do-outro da pintura. Isso se dá pelo fato de haver uma identidade entre a subjetividade e
o tempo da música. É a relação da temporalidade da música com o espírito subjetivo. A
subjetividade, que é espírito, é fenômeno que se encontra no tempo, na história.
Segundo Robert Hartman, “o processo dialético é assim, ao mesmo tempo, lógico,
ontológico e cronológico” (HARTMAN, em prefácio à HEGEL, 2001, p. 17) enquanto ideia
fenomênica. O um-depois-do-outro da música pertence de forma mais ideal ao interior
subjetivo. História para Hegel é o desenvolvimento do espírito no tempo. É esse movimento
“enquanto razão, no processo de conhecer a si mesmo” (Ibidem, p. 22). Para ele, a ideia em si
dá-se na dialética lógica, assim a ideia-fora-de-si, como natureza, desenvolve-se no espaço. O
espírito, enquanto ideia em si, desenvolve-se na forma do tempo “da consciência do espírito
[...]. O tempo é para o espírito o que a estrutura lógica é para a ideia, é a contrapartida
77
concreta da lógica no reino da natureza”88 (HARTMAN, em prefácio à HEGEL, p. 22).
Hartman chama a atenção para o espaço que é determinado pela geometria, já a ideia concreta
é determinada pelo espírito. A ciência do espírito é a do tempo, ou seja, a história: ela é a
relação entre ideia, natureza e espírito. A história é vista como solidificação da lógica, já o
espírito é a ideia concreta.
O pano de fundo desse tema envolve toda uma problemática kantiana. Kant examina a
capacidade de compreensão, depois investiga a natureza das coisas. Hegel as une, “o
pensamento reconhece as próprias coisas, tempo é apenas uma outra dimensão – segundo o
espaço e estrutura lógicos – do desenvolvimento da idéia” (Ibidem, p. 16). Tempo é ideia em
si, já o espírito enquanto espaço é ideia fora de si, natureza. Deste modo, “espírito é síntese
entre idéia e natureza e tempo é a síntese entre estrutura lógica e espaço [...], o tempo é
logicizado” (Ibidem, p. 23). Segundo Hartman, Hegel absolutiza a ideia lógica. A história está
tanto na natureza quanto na mente humana. A lógica vai ao particular e esse, ao absoluto.
A música, por sua vez, ao ser um para si, torna-se objeto, e é sentimento de si mesmo,
autoconsciência. Nesse estágio, o som é apenas um movimento contínuo ininterrupto, é um
“ultrapassar inteiramente formal sobre cada agora para um outro agora homogêneo” (Est, III,
p. 300). É apenas a duração temporal. O tempo torna-se uma progressão vazia, superação do
som que é um para si, o existente junto a si mesmo “cujo recolhimento em si mesmo
interrompe a sequência destituída de determinidade dos pontos temporais” (Ibidem, p. 300).
Ele liberta o eu “que nessa descrição de si mesmo se recorda e nela se reencontra do mero
sair-fora-de-si e da mudança” (Ibidem, p. 300). Com isso, a duração do som progride de
forma determinada. Porém, se em tal progressão cada som em si mesmo conquistar uma
duração que se distingue de um outro som, haverá uma multiplicidade arbitrária, ficando
indeterminadas as quantidades particulares. O ideal será superar esse “vagar destituído de
regras” e o movimento progressivo abstrato, pois eles contradizem a unidade do eu. Os
“quantas singulares são levados a uma unidade” (Ibidem, p. 301), porém, por enquanto, como
mera identidade no exterior.
88 A ideia pertence à lógica, a natureza pertence à geometria e a história pertence ao espírito.
78
3.2.2. O compasso: unidade de repetição uniforme
Nossa intenção aqui é verificar em que medida diferentes partes se reúnem em uma
unidade, fazendo do eu para si mesmo sua identidade consigo mesmo. Nosso objetivo é
mostrar como esse eu, que ainda se encontra abstrato, dá-nos apenas as bases, criando a
repetição uniforme.
O compasso surge como nova figura que fornece uma igualdade abstrata ao
movimento contínuo abstrato do tempo e de seus sons, isto é, fornece uma repetição de
igualdade-unidade temporal. As medidas e regras do compasso estabelecem uma unidade
temporal determinada. Elas criam a interrupção marcada pela sucessão temporal e a
concretizam em uma unidade determinada, o que “permite que esta medida temporal se
renove constantemente de novo em uniformidade abstrata” (Est, III, p. 301), como, por
exemplo, na arquitetura onde se tem o mesmo efeito causado por uma construção barroca de
Ouro Preto, em que uma sequência de janelas com grandezas determinadas em igualdade
produz uma determinidade firme e a repetição homogênea da mesma.
Desse modo, a autoconsciência reencontra consigo mesma como unidade nesta
uniformidade, pois ela reconhece sua própria igualdade “como ordenação da multiplicidade
arbitrária” (Ibidem, p. 302) e, ao retorno da mesma unidade, lembra-se de sua estadia ali, e
este seu retorno se torna a regra dominante. O eu se satisfaz com o compasso nesse seu
reencontrar-se consigo mesmo. Tal movimento é próprio do eu: ele o introduz no tempo para
sua própria satisfação. É a arte como fruto do espírito humano, feita por ele e para ele. Na
natureza, os movimentos não são uniformes como nos corpos celestes; eles aceleram,
retardam seu curso “de modo que em tempos idênticos não percorrem espaços idênticos”
(Ibidem, p. 302). Neste ponto, podemos ver como o autor contrasta o tempo da música com o
tempo do cosmos, justamente por ser a música feita pelo espírito humano, com fins estéticos,
e não como um cronômetro que mede o tempo. Esse movimento temporal totalmente
metrificado não é o mesmo da música, pois esta tem sutilezas, retardos, acelerações e
variações.
O retorno a si mesmo da autoconsciência é o caminho ao saber absoluto. Há na
música, como em todo o seu sistema filosófico, a diferença de graus de consciência. O eu
retorna a si mesmo por meio do compasso, porém, junto da unidade determinada, existe o não
uniforme, que será ordenado pela determinidade da medida, e esse se tornará uniforme: isso
dá ao compasso sua determinidade. Ao compasso, por sua vez, está ligada a ideia de
79
regularidade e simetria como “o modo de configuração do exterior [...] como o signo do
domínio e da prudência também no que é exterior” (Est, I, p. 251). A obra de arte deve ir além
do mero simétrico. Mas, ao mesmo tempo,
nas melodias da música, por exemplo, a regularidade não é completamente suprimida [aufgehoben]. Ela é apenas rebaixada à mera base. Mas inversamente, este conferir medida e regras ao que é sem regra nem medida constitui, por sua vez, também a única determinação fundamental que certas artes, segundo o material de sua exposição pode assumir. Então a regularidade é o que é unicamente ideal na obra de arte. (Est, I, p. 251)
Na música, a regularidade e a simetria vão assumir determinações importantes, pois,
assim como a poesia, ela possui, na duração do som, o aspecto da mera exterioridade. No
espaço, é o um-do-lado-do-outro configurado para o sentido da visão, já no tempo é o um-
depois-do-outro para a audição, “mas no tempo um momento já desapareceu quando chega o
outro, e nesse desaparecer e voltar, os momentos temporais se estendem ao desmesurado [ins
Mablose]” (Ibidem, p. 253).
O compasso estabelecerá, diante da indeterminidade, esta regularidade, determinação e
repetição regular. Para Hegel, a música possui uma força mágica que nos atrai pela repetição
de um compasso durante sua execução, sem nos darmos conta disso. O compasso, como
abordado no primeiro capítulo, é produzido pelo sujeito, assim esse retorno de intervalos de
tempos idênticos, segundo regras determinadas, não pertence, objetivamente, ao som e à sua
duração. É ao ouvir algo produzido pelo sujeito, que temos o “fundamento da pura igualdade
consigo, o qual o sujeito possui em si mesmo enquanto igualdade e unidade consigo, e seu
retorno em toda a diversidade e na mais variegada multiplicidade” (Ibidem, p. 253). O
compasso, que é introduzido pelo sujeito no tempo como unidade abstrata, ressoa no mais
íntimo da alma e toca sua subjetividade, mas não é ele ainda o conteúdo espiritual.89
A fim de superar essa indeterminidade do compasso, que é a multiplicidade, surgem as
espécies de compasso, que lhe dá uma norma determinada; “é a divisão do compasso em si
mesmo segundo a numeração par ou ímpar das partes idênticas retomadas” (Ibidem, p. 302).
Primeiro, os compassos de dois por quatro (2/4) ou de quatro por quatro (4/4), em que o
número par é predominante. Depois, o de três por quatro (3/4) que é ímpar. Há suas
respectivas variações, como o de seis por oito (6/8). Aqui, Hegel ressalta que, em tais
especificações dos compassos que regem a multiplicidade da duração temporal e suas sessões
89 A “alma concreta dos sentimentos que nos fala pelos sons, [...] nem os sons que nos movem no mais íntimo” (Est, III, p. 302).
80
mais curtas ou mais longas (como o de quatro por quatro [4/4], por exemplo), não é
necessário se restringir a ter notas de quatro por quatro idênticas. O limite seria a soma dos
tempos adequada ao do compasso. Segundo Hegel, a duração das notas dentro de um
compasso pode encolher ou aumentar, e são diversas as possibilidades.
3.2.3. Ritmo: a valorização de pontos específicos do compasso a fim de vivificar a
música
Nosso objetivo neste ponto é mostrar como, através do ritmo, as sessões essenciais do
compasso se fazem valer dentro dele, através da distinção causada pelos acentos. O ritmo
surge como a próxima figura musical que vivifica a medida temporal e o compasso, pois é o
ritmo que possui os recursos necessários para realizá-los.
O primeiro elemento constituinte desse processo de vivificação é o acento, que é
colocado sobre notas específicas do compasso. O acento, contrapondo-se às outras partes do
compasso que não são acentuadas, cria um efeito de articulação à música, sendo percebido de
forma mais sutil ou mais acentuada, de acordo com sua utilização. Assim, cada compasso
particular possui uma forma e acentuação própria, que, por sua vez, irá caracterizá-lo de
forma também particular: por exemplo, no compasso quatro por quatro, em que há acentuação
F no primeiro tempo e mf no terceiro tempo. Essas acentuações podem ser forte (F), meio
forte (mf) e fraca (f). No compasso de três por quatro, por sua vez, o acento F é sobre o
primeiro tempo. No de seis por oito, há o acento F no primeiro e mf no quarto tempo, o duplo
acento enfatizando a divisão do compasso em duas metades.
Em consonância, o ritmo na música de acompanhamento deve estar em conexão com
o ritmo da poesia, e as sílabas longas devem concordar de modo geral com as notas longas. O
mesmo vale para as notas curtas. No que se refere à relação do ritmo com a melodia, “a
melodia e seus diferentes períodos não necessitam começar de modo rigorosamente com o
início de um compasso e encerrar com o fim de um outro; em geral, podem se emancipar”
(Est, III, p. 302). A parte forte da melodia “recai na parte de um compasso, ao qual em relação
ao seu ritmo comum não cabe tal elevação [...] portanto, um tal som, em relação com o ritmo
do compasso, faz efeito de modo diverso da validade que pode reivindicar este som por si
81
mesmo na melodia” (Ibidem, p. 305). Na síncope, ressalta o rebate90 no ritmo do compasso e
da melodia.
Segundo Hegel, se não houvesse essas diferenciações entre o tempo F do ritmo e a
melodia, a melodia soaria monótona.91 Para ele, deve-se evitar a “pedanteria do metro e da
barbárie de um ritmo uniforme” (Ibidem, p. 305), pois em um movimento musical que não
seja livre, a lentidão e a moleza podem conduzir à tristeza e à melancolia. Ele acrescenta
ainda que esse movimento melancólico e uniforme, lúgubre, que se arrasta pesado, seria
muito comum nas canções alemãs.
Figura 1 - Volksweise nº 213 - Ade zur guten nacht
Para Hegel, elas apenas retratam os sentimentos de lamento e de um coração partido,
como a Volksweise nº 213 – Ade zur guten nacht de August Linder, em que podemos ver um
exemplo de uma simetria rítmica monótona e repetitiva, ritmos uniformes, a saber, poucas
variações entre semínima e mínima, poucas colcheias, poucas pausas.92 No Messias de
Händel, há mais diversificação.93
90 Ligação da última nota de um compasso musical com a primeira do seguinte. 91 “Facilmente monótona, pobre, destituída de inventividade.” (Ibidem, p. 305) 92 Há uma mínima pontuada no sexto compasso na clave de Fá, mas de pouca expressão dentro desse trecho, apenas para afirmar uma resolução, ou seja, do (V) Si para o (I) Mi. Mas é uma variação rítmica provável. Elas são as canções jâmbicas e acabam com “o livre e alegre abandono-de-si da melodia” (Est, III, p. 305). 93 “[...] em muitas árias e coros a composição não segue apenas, com verdade declamatória, o sentido das palavras, mas também a cadência do ritmo jâmbico, em parte na mera diferença entre longas e breves, em parte no fato que a longa jâmbica alcança no metro um som mais elevado do que a sílaba curta.” (Ibidem, p. 305)
82
Figura 2 - Chorus nº 4 - And the glory of the Lord, Allegro
Nesse Chorus nº 4 – And the glory of the Lord, Allegro, do Messias de Händel, temos,
na primeira voz do primeiro compasso, a presença da semínima pontuada, o que produz um
deslocamento da sílaba forte, aumentando o tempo do som da nota. Dessa forma, ela alcança
um som mais elevado do que a sílaba tônica. Essa, dentre outras características da música de
Händel, é que faz os alemães o apreciarem, e que se difere do gosto dos italianos, que têm um
ritmo rico e uma efusão mais movimentada da melodia. Abaixo temos a peça de V.
Gambaro.94
94 Através dessa obra do classicismo italiano, datada de 1780 aproximadamente, V. Gambaro tornou-se muito conhecido no cenário musical Vienense. Ele escreveu quartetos para flauta, clarinete, trompa e fagote. Esse Opus 4 consiste em três movimentos. Seu estilo é próprio do classicismo tardio e está em forma concertante, onde cada instrumental recebe vários solos. Opus 4 nº 1 começa com uma dinâmica Allegro em que a trompa afirma o tema principal de um acompanhamento pulsante. O clarinete em seguida desenvolve o tema ainda mais, e cada voz acrescenta mais riqueza à sua volta. O segundo movimento, Andantino, é um tema e um conjunto de diversas variações, em que, a cada instrumento, é dado um solo. Esse trecho apresenta o tema e duas variações, uma para o fagote, outra para o clarinete. O final é uma encantadora Polonesa.
83
Figura 3 - 3 wind quartet - Opus 4
Na peça de V. Gambaro, do classicismo italiano95, 3 wind quartet – Opus 4, variações
rítmicas, o 1º ao 5º compasso possui colcheias e mínimas. Do 5º ao 15º, há um retardando,
mínima e semínima; até o 17º, semínima pontuada; até o 24º, um acelerando com
semicolcheias; depois pausas e ligaduras em meio às semicolcheias, o que produz um
contratempo; no 36º compasso, sequência de colcheias, produzindo uma simetria acelerada. É
significativo, pois o compasso vai para semicolcheias, quadruplicando a velocidade ainda em
simetria, desacelera em semínimas e resolve em meio às semibreves, mínima e semínima, o
que acalma a música e prepara o fim. Os reinos dos sons alcançam, eles mesmos, seu
95 “Os clássicos italianos possuem uma fastuosa sabedoria formal, e não desprovidos de profundas vibrações expressivas. O classicismo na música tem um predominante cunho formal e corresponde à fixação estrutural da sonata e do sinfonismo moderno. Bitematismo e trabalho temático, elementos racionais, são os aspectos iluministas. Sentido patético, brilho e redundância expressiva, elementos psicológicos, são o reflexo da filosofia do sentimento. A isso se acrescenta um sóbrio bom gosto, que ainda provém do condicionamento barroco dos materiais.” (MAGNANI, 1996, p. 367)
84
preenchimento, sua condição de música concreta, deixando para trás a base abstrata do
compasso e do ritmo.96
3.3. Harmonia: relação entre as notas
Entramos nos reinos dos sons como sons: investigamos agora a estrutura das relações
entre as notas. Nosso objetivo é mostrar como se organiza o reino dos sons como sons,
formado por notas musicais em alturas definidas, a fim de entendermos como se dá a relação
entre tensão e resolução, base das leis da harmonia.97
Sobre o tema, Hegel destaca três questões. Na primeira, a música, diante das outras
artes, apresenta-se como uma arte mais elaborada, uma criação diferente da pintura e da
escultura que encontram seu material sensível já pronto: por exemplo, a pedra, a madeira, ou
elabora esse material em menor grau. Já a música precisa elaborar o som para o ressoar
efetivo. Na segunda, ele se pergunta sobre a constituição qualitativa desse material
(instrumento) que ressoa segundo sua natureza física e seu modo de construção artificial. Há
os instrumentos de sopro, corda e percussão. Os primeiros elementos dominantes consistem
em uma direção linear que possui uma coluna de ar (instrumentos de sopro) e uma coluna
material esticada que vibre (instrumentos de corda). O segundo, o elemento da superfície, são
os instrumentos subordinados, a saber, o pandeiro, o sino, etc. A interioridade identifica-se
mais com os sopros do que com a percussão. O tímpano é a pele esticada sobre a caixa de
ressonância, que, ao ser batido em um ponto, faz vibrar uma só ressonância abafada que é
afinada, mas restrita à limitação de sua multilateralidade. O sino possui um livre ressoar, mas
sua ressonância é “um eco de uma única batida pontual” (Est, III, p. 308). O ponto espiritual
buscado pelo sujeito é o interior, que foi tratado como sua exteriorização [Entäuberung]. A
próxima superação de si e exteriorização do ponto é o instrumento de sopro. Hegel define a
insuficiência da superfície percussiva: “a este respeito, superfícies largas e redondas não são 96 Aqui percebemos com clareza como se dá o processo de superação, em que a figura superada não deixa de coexistir com aquilo que a supera: esse é o reino do todo, da coexistência entre si. Percebemos também a diminuição do ritmo em relação ao harmônico e melódico, por ser o ritmo menos ideal. 97 Esse âmbito de investigação é novo, pois a exposição em um corpo por meio de sua vibração “sai da possibilidade de exposição [Darstellabarkeit] e sua Forma [Form] espacial e se move na direção do desenvolvimento de sua forma [Gestalt] por assim dizer temporal. [...] ele ressoa segundo sua constituição física particular bem como segundo seu cumprimento e brevidade distintos e a este respeito deve ser apreendido pela arte e ser configurado artisticamente” (Est, III, p. 305).
85
adequadas à necessidade e à força do perceber” (Ibidem, p. 308), elas vibram toda a superfície
em uma única ressonância, que, mesmo sendo afinada, não leva a uma determinidade nem a
uma multilateralidade. O sino é também uma única batida pontual.
Na terceira questão, temos a voz humana, que reúne em si tanto o caráter de sopro (ar
que vibra), quanto o de corda (músculo vocal como uma corda rigidamente esticada). Ela se
apresenta como a totalidade ideal do ressoar, funde-se bem com os outros instrumentos e é,
portanto, um instrumento mais livre. Um caráter definidor da voz humana na música é sua
capacidade de perceber a si mesma como o ressoar da alma mesma, pois ela é uma alma que
rege seu corpo. O cantor é o próprio instrumento,98 não há outro corpo externo.99
Esta vasta gama de instrumentos pode ser utilizada de forma isolada ou em harmonia.
Em ambos os casos, é o conhecimento do compositor que conduz ao sentimento interno da
alma. Hegel cita Mozart, com justiça, como um mestre da orquestração.100
98 Onde a “alma ressoa de seu próprio corpo [Leib]” (Ibidem, p. 308). 99 Como a música toca os sentimentos, a voz é a própria expressão dos sentimentos. Para Hegel, a voz é o próprio canto dos afetos. Essa sua preferência estética guia sua exposição. 100 “Assim por exemplo nas sinfonias de Mozart – que era um grande mestre também na instrumentação e em sua multiplicidade plena de sentidos, igualmente vívida quanto clara – a alternância dos instrumentos particulares muitas vezes se mostrou como um concerto dramático, uma espécie de diálogo, no qual em parte o caráter de uma espécie de instrumentos se estende até o ponto em que o caráter do outro é indicado e preparado, em parte um dá uma resposta a outro ou acrescenta aquilo que, para ser expressado adequadamente, não é facultado ao som do que o precedeu, de sorte que assim surge de um modo o mais gracioso um colóquio do som e do ressoar, do começar, do continuar e do completar.” (Ibidem, p. 309)
86
Figura 4 - Requiem
Na peça Requiem101 de Mozart, acima, a melodia começa na nota Mi, que, em um
movimento ascendente, atinge até o Si, ápice desse trecho dialético, e retorna ao Mi em um
movimento descendente, criando uma tensão com a nota Ré#. O movimento de tensão e
resolução no ascendente e descendente é contínuo ao longo da peça. A melodia inicia-se no 2º
compasso do primeiro sistema com um clarinete bassetto em Fá, que é um instrumento
musical aerófono da família dos clarinetes, juntamente com o clarinete alto em Eb.
101 Levando em conta a orquestração, observamos uma coerência no uso das vozes, que compõem a harmonia em equilíbrio com o melódico.
87
A morte como ideia principal, predominante em toda a obra, está apresentada
melodicamente por um movimento dos intervalos de segunda menor descendente, apoiado
quase sempre na utilização da harmonia de acordes de dominante (predominando o acorde de
7ª diminuta, que aparece desde o primeiro compasso da obra). Também há momentos em que
o baixo harmônico é aquele que realiza esse movimento interválico. Não rara é a utilização de
intervalos melódicos menores e descendentes para se representar a morte, assim como é
bastante comum a utilização de intervalos melódicos maiores e ascendentes para a
representação da vida. A introdução está em Ré menor, sendo que a peça, passando por vários
tons modulares, termina em Ré menor no último movimento do Agnus Dei - Lux Aeterna,
reafirmando o retorno a si mesmo e reforçando o caráter de resolução na tônica.
A relação objetiva na determinidade do som em si mesmo e em relação com outros
sons é o elemento harmônico da música, que se baseia em “diferenças quantitativas e
proporções numéricas” (Est, III, p. 309). São os intervalos singulares que, ao se ordenarem,
tornam-se escalas e, como consequências destas, em tonalidades particulares distintas das
demais, ou modos. É no reino do harmônico que surge o reino dos sons como sons. Surge a
possibilidade dos sons tornarem-se música concreta: o som sai do espacial e dirige-se para o
temporal.
3.3.1. Sons singulares: alturas definidas que caracterizam as notas
Buscaremos agora verificar a estrutura das leis da harmonia, e em que bases elas são
construídas. Estabeleceremos, a partir de agora, as relações de distanciamento, tensão e
repouso, leis que regem a música e que oferecem a ela um caráter mais espiritual.
Para que os sons singulares não permaneçam indeterminados, suas vibrações devem
ser determinadas em si mesmas. Cada soar possui um comprimento e uma extensão. Em uma
corda tencionada que ressoa, sua capacidade de vibração é definida pela sua espessura e
tensão. Hegel retoma Aristóteles para pensar o comprimento “na medida em que as mesmas
cordas, em comprimento diverso, durante uma duração idêntica, fornecem um número diverso
de vibrações” (Ibidem, p. 310). As diferenças entre os números, no que se refere à altura e
profundidade, constituem os sons particulares. Assim, a determinidade dos sons vem da
relação numérica das vibrações, e não simplesmente do nosso sentimento de ouvir, pois esse
pode ser em si mesmo variado. Aqui, mesmo um som simples repousa sobre uma
88
multiplicidade, como na pintura, em que a cor violeta é a mistura do azul e do vermelho que,
por sua vez, são cores simples.
3.3.2. Sons concordantes: intervalos que concordam entre si
Os sons concordantes configuram as bases da consonância, que é a estrutura do
repouso, de onde tudo parte e tudo retorna. É o em si.
Dentre essas combinações sonoras, que se dão na relação numérica de vibrações, há os
sons concordantes ou consoantes, que são de natureza simples como as oitavas, e que não
geram oposições. Segundo Hegel, essas relações são escolhidas de acordo com um princípio
racional, e não casualmente. Elas contêm uma “necessidade interior para seus lados
particulares bem como para sua totalidade” (Est, III, p. 311), e é nesse unir dos sons, segundo
uma totalidade, que ele surgirá como uma nova forma de consciência na música, de ordenação
racional dos sons enquanto tratamento artístico.
3.3.3. Escalas: sistema abstrato necessário de atração, distanciamento e resolução
a uma nota específica.
A escala abrange as relações entre as notas: se podem ser escolhidas ao acaso ou se
possuem uma necessidade interior. Trata-se de verificar como os intervalos se unem em uma
totalidade. Nesse sentido, a escala surge não só como uma necessidade superior, mas também
como uma sucessão abstrata de um sistema.
Assim sendo, a escala é uma série simples de notas, “uma sucessão de sons segundo
sua relação mútua a mais simples” (Ibidem, p. 311). Uma escala tem a tônica como a
fundamental que se repete em sua oitava, concordando consigo mesmo no retorno para si. Ela
se estende em mais seis notas, que estarão ordenadas segundo a tônica e que, em seu conjunto,
completarão a escala. Há nessa concordância de sons, que é a escala, notas que concordam
com a fundamental de forma mais imediata, como a terça e a quinta, formando os arpejos, ou
ainda determinados sons que vão contra a fundamental no ressoar, tal como a segunda ou a
sétima, que se organizam em uma sucessão específica, ou seja, elas estarão em uma relação de
distanciamento e tensão com relação à tônica. Aqui, temos uma escala maior, ou modo jônico:
89
do ré mi fá sol lá si do
T T ST T T T ST
Para Schoenberg,102 os conceitos de consonância e dissonância não são naturais, e
apenas leis naturais teriam o direito de serem válidas para sempre. É mais uma questão de
conduzir a audição até lá.103 No sistema dialético de Hegel, “a circularidade do saber
sistemático é a última manifestação de sua capacidade de engendrar sua própria alteridade: no
fim da lógica, a idéia se despede livremente dela mesma [...] para fazer-se natureza, idéia na
forma do ser-outro” (KERVÉGAN, 2005, p. 51). É no elemento de radical alteridade que o
conceito irá se reconhecer. A certeza sensível só se faz pensável a partir de seu outro, o saber
absoluto. Portanto, a música só se faz música enquanto sistema, estando de acordo com sua
verdade, que é o sistema tonal. Ela se efetiva como movimento circular do um-depois-do-
outro, que só se torna pensável a partir da inclusão da alteridade – que seria as notas
dissonantes –, e resolvendo-as.
3.3.4. Tonalidades: relação de concordância ou discordância entre a tônica e as
outras notas do acorde ou escala
Investigamos aqui a importância das tonalidades para as leis da harmonia, pois, a
partir da tônica, as outras notas da escala criam com ela ou uma relação de concordância ou
de discordância, resultando em consonâncias ou dissonâncias. A partir das escalas, surgem as
tonalidades, em que “cada som da escala, a saber, pode ele mesmo ser novamente 102 “A consonância mais perfeita (depois do uníssono) é a oitava, que ocorre mais cedo na série dos harmônicos e, por isso mesmo, com maior freqüência; logo, com maior força sonora. Segue-lhe a quinta e depois a quinta maior. A terça menor e a sexta maior e menor não são, em parte, relações do som fundamental e, de outra parte, não se encontram na série ascendentes dos harmônicos. A quarta, por sua vez, designada como consonância imperfeita, é uma relação do som fundamental, porém em direção oposta. Poderia, então, ser contada entre as consonâncias imperfeitas, como a terça menor e as sextas maior e menor; ou simplesmente entre as consonâncias como às vezes acontece. Todavia, a evolução da música conseguiu outro caminho e reservou à quarta uma posição singular. Como dissonâncias, só se consideram: as segundas, maior e menor, as sétimas, maior e menor, a nona, etc, além de todos os intervalos aumentados e diminutos de oitavas, quarta, quinta etc.” (SCHOENBER, 2001, p. 60) 103 “Quem quiser julgar deve considerar de frente os problemas e os antagonismos intransferíveis da criação individual, sobre a qual nada ensina a teoria musical geral ou a história da música. [...] A opinião de que Beethoven é compreensível e Schoenberg, incompreensível, é, de um ponto de vista objetivo, um engano.” (ADORNO, 2002, p. 17)
90
transformado em som fundamental de uma nova série particular e sons, que se ordena como a
primeira segundo a mesma lei” (Est, III, p. 312). Hegel observa que na modernidade as
escalas receberam uma riqueza maior de sons, ampliando o número de tonalidades e
enriquecendo a música moderna em relação à antiga.104 É justamente essa riqueza de
tonalidades que enriqueceu a música moderna. O Quarteto Opus 133 de Beethoven, que surge
como desfecho, uma síntese do Quarteto Opus 130, possui essa riqueza de tonalidades, citada
acima por Hegel.105
104 A questão é que as notas do acorde criam com a tônica uma relação ou de concordância ou discordância. Os tons podem ser maior ou menor, e dependerão da distância entre a tônica (I) e a mediana (III). Se houver uma distância de dois tons, o acorde ou escala é maior, se for de um tom e meio, é menor. 105 Sobre Beethoven e o sentido da transformação, com ênfase na análise dos últimos quartetos e destaque para a Grande Fuga – Opus 133: “Este quarteto era o que encerrava a encomenda do príncipe Galitzin, de modo que tem um caráter de desfecho, e portanto de síntese, em seu grande final com a Grande Fuga, intenção original da obra. Apesar de Beethoven tê-la posteriormente separado, devido a sugestões recebidas, deve-se entender que este quarteto com sua grande fuga foi o objetivo inicial do autor.” (NETO, 1997, p. 77)
91
Figura 5 - Quarteto Opus 133
A peça inicia-se na tonalidade de Sol maior. Do primeiro ao quarto compasso, temos
as notas do primeiro violino, segundo violino, viola e violoncelo tocando a nota Sol, o que
afirma a tonalidade. A lógica de tocar em uníssono todas as vozes vai até o compasso 16. Já
no compasso 17 ocorre uma primeira modulação para Fá maior, o que amplia o número de
tonalidades da peça, enriquecendo-a logo no primeiro movimento. Isso mostra a ousadia de
92
Beethoven. No compasso 26, ele ousa novamente, modulando para Sib maior. São duas
modulações numa primeira página.
Iremos mais adiante problematizar a possível relação entre a forma sonata, de
Beethoven, e a dialética hegeliana, investigando o tema a partir de Alain Patrick Olivier,
verificando daí se Hegel conheceu ou não o músico.
Voltando à teoria de Hegel sobre a música, em seu sistema, ele observa que os sons
das escalas estão numa relação de
concordância mútua mais imediata ou de um desvio e diferença mais essenciais um diante do outro, então também as séries que decorrem destes sons, enquanto sons fundamentais, mostram ou uma relação mais precisa de parentesco e, por isso, permitem mais imediatamente uma transição de uma para a outra ou impedem uma tal progressão não mediada, por causa de sua estranheza. (Est, III, p. 312)106
Nessa Partita nº 1 – BWV 825, de Bach,107 no penúltimo tempo em semicolcheia do
segundo compasso desse sistema, temos uma dissonância em acorde, ou seja, uma dominante
Fá7 que irá se resolver no último compasso, cuja tônica é Sib. O movimento das notas na
resolução é de meio tom, em que a nota Lá se resolve no Sib; depois de um movimento
ascendente de meio tom, o Fá continua. O Mib vai para o Ré, em um movimento descendente
de meio tom. O Dó vai para o Sib, em outro movimento descendente de meio tom.
Figura 6 - Partita nº 1 - BWV 825
106 Podemos citar passagens de um acorde dominante para a tônica maior, em uma progressão harmônica, em que as dissonâncias, de meio ou um tom, encontram uma boa resolução. 107 Segundo Olivier, em fins de 1829, vê-se a ressurreição de Jean Sébastien Bach graças a um jovem aluno de Hegel, Felix Mendelssohn, com a peça A paixão segundo São Matheus. Hegel aproxima-se de Schleiermarcher e Heine. Esse não só ressuscita a música de Bach, como afirma que a música é autônoma na medida em que decide suas genealogias à distancia de toda linearidade cronológica, tendo poder de ressurreição.
93
Além disso, as tonalidades também se separam segundo o modo, que pode ser maior
ou menor. Esses modos geram, por sua vez, um tipo específico de sentimento, “do lamento,
da alegria, da tristeza, do incitamento encorajador, etc. Nesse sentido, os antigos trataram
muito da diferença entre as tonalidades e desenvolveram a mesma para um uso variado” (Est,
III, p. 312).
3.3.5. Modos na Grécia antiga, época medieval e renascimento: a relação de cada
modo musical com os seguimentos da sociedade
Vejamos agora a relação entre os modos na música e a sociedade da Grécia antiga,
através de Platão e Aristóteles. Essa relação está exemplificada através da utilização dos
modos maiores ou menores, usados pelos antigos, no livro A República, de Platão, onde ele
classifica os modos de acordo com o que lhe convém.
É por essa razão que Platão afirma, concordando com Dámon, que se ocorresse alguma transformação nos “modos” (trópoi) musicais, isso acarretaria alguma modificação das leis maiores da cidade. Um exemplo do que acontece quando as leis da música são modificadas nos é dado nas leis, 700a-701b. No passado, quando o povo obedecia às regras e a música estava dividida em diferentes gêneros e estilos (hino, trenó, peã, ditirambo e nomo), não havia liberdade expressiva e a vida política caminhava bem. Depois, contudo, aparecem compositores antimusicais (poietái tês amoúsou paranomías, 700d3-4) que desprezavam as leis da música e misturavam os diferentes gêneros. Esse desrespeito aos padrões preestabelecidos levou a uma liberdade abusiva, à audácia e ao atrevimento. Daí a necessidade de legislar acerca da música e de zelar pela manutenção dessa legislação, para que não ocorram transformações indesejáveis também no contexto político. (ROOSEVELT, 2007, p. 37)
Assim, Platão diz que harmonias tradicionais, tais como o modo menor, e modos como
o mixolídio, por causa da sétima menor, e o lídio, por causa da quarta aumentada, seriam
evitadas na boa formação de um jovem livre da polis. “Platão parece um pouco contraditório
nesse ponto, pois, em outras passagens, ele descreve a harmonia mixolídia como uma
combinação da qualidade emocional da harmonia lídia com a nobreza da dórica e, por isso,
ela seria adequada à tragédia.” (Ibidem, p. 38) Para a boa formação dos guardiões, evitaria,
portanto, os modos que levam à embriaguez, à moleza e à preguiça. As variações do jônico e
o lídio seriam evitados, pois são moles, variantes dos banquetes, afeminados.
Somente as harmonias dórica e frígia seriam aceitas na cidade ideal, pois dentre essas uma poderia imitar de modo conveniente a voz e as atitudes de um homem valente na guerra, capaz de se defender nos momentos de perigo com ordem e energia; e a outra seria empregada nos
94
momentos de paz, para as preces ou para ensinar a admoestar os homens a agir com bom senso e moderação. Essas duas harmonias, a guerreira e a pacífica, imitariam as vozes dos homens sensatos e corajosos; desse modo, seriam úteis na educação dos guardiões dos cidadãos da pólis. (ROOSEVELT, 2007, p. 38)
A harmonia dórica para Platão é boa, pois é viril e de caráter respeitoso e severo. A
harmonia frígia, por sua vez, estava associada à cultura orgiástica dionisíaca, apesar de
apresentar também aplicações diferentes das orgiásticas, podendo ocupar um ponto médio
entre tons graves e tons muito agudos. Assim, para Platão, na República, apenas os modos
dóricos e frígios seriam aceitos. Platão aceita as ideias de música como mimese que produz
efeitos na alma do ouvinte, mas que não poderia ser aceita sem palavras. É uma Paideia da
alma humana via música, criando hábitos e tornando-os uma “segunda natureza”. Há modos
que caracterizam o caráter do homem bom e outros de homens maus.
Já em Aristóteles, temos, por influência de Pitágoras, que o estudo da harmonia é uma
ciência abstrata. Segundo Sergio Magnani, “Pitágoras entendeu que a altura de cada som era
proporcional ao número de vibrações de um corpo sonoro” (MAGNANI, 1996, p. 83). É mais
o caráter recreativo e catártico da música que lhe interessa. No livro III da Política, em
consonância com Platão, está a função de Paideia da música. A música é o agradável, porém o
mero entretenimento não serve para a formação do cidadão. A música, para ele, toca o caráter
da criança, mas depende do gênero (entusiasmo, ódio, etc.). Ela imita a natureza e transforma
a nossa alma: imita as afecções do caráter. As diferenças estão nas melodias: “o modo
mixolídio, por exemplo, tem um espírito melancólico e grave; o modo dórico, por outro lado,
produz moderação e calma, o modo frígio provoca entusiasmo”. (ROOSEVELT, 2007, p. 37)
A prática musical serviria apenas para as crianças em formação. Para ele, os modos dórico e
frígio seriam aceitos. Para a educação dos jovens, o modo desejado era o dórico, por ser mais
calmo e viril, um meio termo entre os outros modos. Ao contrário de Platão, Aristóteles
instigava o modo lídio. Assim, para o filósofo, os três princípios da educação através da
música seriam a moderação, a possibilidade e a conveniência. Logo, a música em Aristóteles,
tem funções que abrangem a política, ética, educação e estética.108
108 Estabelecidos tais valores para os diferentes intervalos, surgem consequências para o desenvolvimento histórico da música ocidental. “Um princípio acústico intuitivo afirma que dois sons são tanto mais consoantes quanto mais simples é a razão matemática que representa a sua relação. E da escala pitagórica, auferimos que a ordem das consoantes é: oitava, quarta, quinta, segunda, sendo a terça e a sexta valores matemáticos mais complexos, embora o ouvido os aceite instintivamente como agradáveis consonâncias. Este é o empecilho teórico que trava, ao longo de toda a Idade Média, o surgimento da harmonia. De fato o canto da Igreja Católica – que veio a se chamar cantus firmes, ou cantochão, ou ainda canto gregoriano, do nome do seu organizador – aceita os modos gregos com poucas modificações de nomenclatura e articulação interna, permanecendo
95
Por sua vez, segundo o maestro Magnani, o canto cristão veio de muitas fontes, dentre
elas melopeias hebraicas e canções populares. Houve influências do microtonalismo vindo
dos cultos moçárabes da Península Ibérica, a partir da unificação do país sob os reis católicos,
porém “foi prevalecendo, na prática romana, a tradição erudita herdada da música grega com
o seu severo diatonismo. Assim, o canto cristão, transformando-se em católico, universal, sob
o signo de Roma, adquiriu, com São Gregório, feições definitivas ocidentais” (MAGNANI,
1996, p. 117). Deste modo, o canto gregoriano como sistema adquire “um mínimo de tensões
e um máximo de intimidade mística, expressa através de uma sóbria liberdade de
declamação” (Ibidem, p. 117).
Consoante à ideia dos gregos, temos o canto dos afetos, como fruto do Renascimento
tardio italiano, “século tomado por ventos sonoros transformantes que arrojaram a alma
humana, de modo categórico, para o centro da alma sonora” (CHASIN, 2004, p. 1). Os
compositores da época, como Girolamo Mei e Vincenzo Galilei sofrem influência dos gregos,
principalmente de Mei, que está envolvido “dominantemente com o pensamento aristotélico,
este intelectual florentino surge como o formulador renascentista mais significativo
concernente à orgânica da arte sonora grega” (Ibidem, p. 3). Segundo Chasin, no canto dos
afetos, fruto do movimento da nova Camerata Bardi, considerada uma “sonoridade humanista,
de um canto expressivo” (Ibidem, p. 3), há uma negação de uma estrutura regida pela
orgânica contrapontista. Eles propunham um melos não regido apenas pelo contraponto.
Queriam expandir e intensificá-lo, deixando-o fluir a partir de suas próprias necessidades a
fim de “reverberar o dramático e intenso pulso afetivo do homem tardio renascentista”
(Ibidem, p. 2). Aqui, interpretamos que Hegel terá uma afinidade maior com o canto dos
afetos, pois a música toca os sentimentos, a interioridade subjetiva, ao contrário da forma
sonata, que toca mais o intelecto, nos convidando a pensá-la.
rigorosamente monódico, assim, como as poucas formas de música profana do mesmo período.” (MAGNANI, 1996, p. 83)
96
3.3.6. O sistema dos acordes: a relação da tríade do acorde com sua tônica e a
relação desse acorde com uma tonalidade
Agora, abordando o sistema dos acordes, entramos no centro de uma estrutura ainda
mais rica pela sua complexidade. O retorno a si mesmo ganha força, pois não se trata apenas
de uma escala com um centro tonal, mas sim de acordes, que é um complexo de notas
consoantes, e que possuem um centro interno a cada acorde – a tônica. Temos, por
conseguinte, um sistema que consiste em um acorde em relação a um centro tonal, que é a
tonalidade regendo esse mesmo sistema de acordes.
Surge o sistema dos acordes. Primeiro, como concordância sonora dos sons, surge
como diversos sons unidos em um mesmo soar, uma vez que as escalas se limitam a surgirem,
cada uma, para si mesma isoladamente, tendo ainda um soar abstrato com uma determinidade
particular. Os sons passam a ter uma relação mútua, que se concretizam no acorde, já
possuindo uma regularidade interna que ordena a sucessão dos sons.109 Ele apresenta uma
combinação que será regida por leis, que são as doutrinas da harmonia “segundo o qual
também os acordes novamente se desdobram num sistema em si mesmo necessário” (Est, III,
p. 313). Aqui ele está apontando para uma ordenação maior, verdadeira, em que cada acorde
terá uma função.
Segundo, nesse novo sistema dos acordes que se apresentam, as harmonias são
particulares e diversas; são sons particulares que, em junção, tornam-se harmônicos. Assim,
em um conjunto de acordes, temos um todo dos acordes particulares.
3.3.7. Repouso como tonalidade: é o em si como tese e síntese
Nosso objetivo aqui é mostrar o repouso como retorno a si mesmo. É o em si, de onde
tudo parte e tudo retorna.
A força do acorde está nas tríades, em suas notas consoantes. Nessa junção dos sons
ou notas, haverá uma relação, como já dito, de atração e repulsão. Por isso, há notas que,
dentro dessa atração em torno de um todo maior, se atraem. São os sons que concordam entre
109 Bach teve um papel determinante na discussão barroca das escalas e tonalidades, uma vez que as dramáticas vicissitudes da escala musical ainda não estavam determinadas. Indo contra as escalas naturais teorizadas por Zarlino, escreveu o “Cravo bem temperado, para demonstrar que a afinação temperada é excelente para o ouvido – que, realmente, não percebe as pequenas traições à natureza – e que, destarte, todas as tonalidades se tornam perfeitamente praticáveis” (MAGNANI, 1996, p. 85). Cada volume do Cravo bem temperado contém 24 Prelúdios e Fugas, um em cada uma das doze tonalidades maiores e menores.
97
si. Não há oposição, e sim consonância. São os acordes consonantes, cujas bases são as
tríades, que é o acorde de três sons, e que é formada pela tônica ou fundamental, a terça ou
mediana e a quinta ou dominante.
Figura 7 - Concerto nº 1 para violino - BWV 1041
Aqui temos um exemplo claro, um acorde de Lá menor iniciando esse Concerto nº 1
para violino – BWV 1041, de Bach, onde no primeiro compasso, em anacruse, temos no
violino solo a nota Mi (V), no primeiro violino também a nota Mi (V), no segundo violino a
nota Dó (III), na viola a nota Lá (I), que é a tônica, e no baixo contínuo um Lá e um Dó.
Desse modo, temos o acorde de Lá menor formado com a tônica Lá, a terça Dó e a quinta Mi.
Assim sendo, a tríade – o agrupamento de três sons – pode ser maior, menor, diminuta
ou aumentada. A tríade perfeita maior se caracteriza pela terça maior e quinta justa, e a tríade
menor pela terça menor e quinta justa; a diminuta pela terça menor e quinta diminuta
(superposição de duas terças menores); a aumentada pela terça maior e quinta aumentada
(superposição de duas terças maiores). Segundo o autor, eis a natureza do acorde simples.
Nessa relação, há sons diferentes, mas que se harmonizam de forma perfeita; ao passo que a
mediação, ao mesmo tempo, não fica presa à autonomia dos sons.110
110 “Trata-se de uma identidade imediata, à qual, porém, não falta em particularização e mediação, ao passo que a mediação ao mesmo tempo não fica presa à autonomia dos sons diferenciados e apenas pode contentar-se como o mero ir e vir de uma relação relativa, e sim realiza efetivamente a unificação e, desse modo, retorna em si mesma para a imediatidade.” (Est, III, p. 313)
98
Figura 8 - Ária das Variações Goldberg
Podemos ver que nessa Ária das Variações Goldberg de Bach, a tonalidade é Sol:
portanto, no primeiro compasso, a clave de Fá afirma a tonalidade (jônico) passando pelos
intervalos (I) Sol, (III) Si e (V) Ré, o que afirma o acorde de Sol. Na clave de Sol, no primeiro
tempo, há a tônica Sol, (II) Lá (nota de passagem) e a (V) Si. No segundo compasso, há o
acorde de Fá#m,111 que é o 7º grau do campo harmônico (lócrio), uma tensão; no baixo,
encontramos (I) Fá#, (III) Lá e a (VI) Ré; no agudo, (III) Lá, (I) Fá e (VI) Ré. No terceiro
compasso, ocorre uma resolução, mas não na tônica, e sim na sua relativa menor, que é o
acorde de Mim (modo eólio), onde o baixo é a tônica (I) Mi e a (III) Sol. No sexto compasso,
ocorre uma nova tensão: a dominante que, na tonalidade de Sol, é o acorde Ré7. Na clave de
Sol, temos as notas e suas respectivas funções, o Dó que é a (VII), o Ré que é a tônica (I) e o
Fá# que é a (III). Há outras notas, porém são notas de passagem ou bordaduras. Esse
movimento de distanciamento, tensão e resolução, por sua vez, é um movimento circular.
3.3.8. Tensão e resolução ou negatividade e síntese: a lógica da dialética na
tonalidade
Objetivamos agora mostrar a relação entre a tensão e a negatividade da dialética.
Trata-se da negatividade da tensão, definida como uma cisão que precisa ser resolvida. Tanto
na dialética hegeliana quanto na tonalidade, o retorno a si mesmo é condição necessária. Eis o
caráter dialético da tonalidade. Porém, a consonância não se mantém para sempre: haverá uma
cisão, uma tensão que, por sua vez, necessitará de uma resolução ou de uma síntese. Portanto,
111 Pode-se também pensar em um acorde de Rem (Ré [I], Fá [III], Lá [V]).
99
Hegel passa a falar da oposição ou, nesse momento, da negatividade. Assim como há notas
que são concordantes, há as que são discordantes, como a sétima maior e menor, sons
pertencentes à totalidade dos sons que vão, por sua vez, procurar aderir à tríade. Contudo, é
nesse momento que a relação da mais justa adequação se rompe, pois esses novos sons soam
de forma diferente ou não consoante. Surge assim uma oposição. Isso constitui a
autêntica profundidade do soar, o fato de que ele também prossegue para oposições essenciais e não teme a agudeza e o dilaceramento delas. Pois o verdadeiro conceito é certamente unidade em si mesma; mas não apenas imediata, e sim, essencialmente unidade em si mesma dissociada, que se decompõe em oposições. (Est, III, p. 314)
Hegel afirma que desenvolve em sua lógica o conceito de subjetividade como unidade
ideal transparente, que se supera no que lhe é oposto.112
Nesse Concerto nº 1 para órgão de Bach, BWV 592-597, temos a tonalidade de Sol
maior como unidade em si mesma, mas não imediata: ela passa por vários caminhos
harmônicos antes de repousar. No primeiro tempo do 1º compasso, temos o acorde Dó (IV) da
tonalidade de Sol, depois o V grau, que é o acorde Ré, que se resolve no primeiro tempo do
segundo compasso no acorde Sol (I). No segundo tempo do segundo compasso, a harmonia
vai para outra dissonância, que é o Do# diminuto, e que vai se resolver no primeiro tempo do
terceiro compasso em um Ré, criando uma nova dominante que pedirá sua resolução, que se
dará no quinto compasso, reafirmando a tônica, que é Sol, mas já partindo para um novo
movimento de distanciamento e tensão. Esse movimento, por sua vez, é circular.
Figura 9 - Concerto nº 1 para órgão - BWV 592-597
112 Na objetividade “aliás, ela mesma como mera idealidade [Ideelle] é apenas uma unilateralidade e particularidade que se conserva diante de um outro, de algo oposto, da objetividade, e é apenas subjetividade verdadeira quando penetra nesta oposição e a supera e dissolve”. (Est, III, p. 314)
100
Sendo a música arte, ela pertencente ao mundo efetivo como uma natureza mais
elevada. Ela é dotada da capacidade de suportar e vencer em si mesma a dor da oposição.
Cabe a ela expressar tanto o significado interior, como o sentimento subjetivo do conteúdo, o
mais profundo. Trata-se de suportar a dor, sentimento presente no mundo religioso cristão.113
Segundo Arnold Schoenberg, a tríade sobre o VII grau – a tríade diminuta – exige uma
reflexão especial, pois sua composição é diversa daquela das tríades até aqui estudadas, pois
os outros modos até agora possuíam a quinta justa. Não é o caso da tríade do VII grau: ela
possui a quinta diminuta, intervalo não encontrado entre os harmônicos mais próximos e, por
isso, percebida como dissonância. Segundo Schoenberg, “como introduzir lenta e
cautelosamente o que tem que surgir sem aborrecer o ouvinte? Como convencê-lo a aceitar
também a uva amarga, para depois desfrutar mais ainda a doce, isto é, a resolução da
dissonância?” (SCHENBERG, 2001, p. 95) A questão da resolução está na força de atração
que a tônica exerce sobre a dominante ou outra dissonância, como a VII diminuta, que, no
caso, tem a função de dominante. É o efeito causado pelo trítono, que é um intervalo entre
alturas de duas notas musicais, presentes em um acorde, que possua exatamente três tons
inteiros. O seu efeito consiste em uma complexa dissonância. Eles se dão em acordes
diminutos e estão na distância entre a tônica e a quinta diminuta. Estão também nos acordes
dominantes, nos maiores com sétima menor e na distância da terça para a sétima. Ambos os
acordes são de tensão e pedem uma resolução. O trítono114 está aqui na distância da nota Si
(III) à nota Fá (VII) do acorde de Sol7, que é dominante, onde o Si se resolve no Dó da tônica
e o Fá se resolve no Mi, que é a terça do acorde, sendo todos movimentos de meio tom, o que
reforça a dissonância e a resolução. Eles fazem um movimento contrário: o primeiro é
ascendente e o segundo é descendente, o que enriquece a música.
Para Hegel,
113 “No qual os abismos da dor constituem um lado principal, então ela (a música) deve possuir em seu âmbito sonoro meios que são capazes de descrever a luta das oposições. Este meio ela conquista nos acordes dissonantes dominados de sétima e nonos.” (Est, III, p. 314) 114 “Deve-se evitar a ocorrência do intervalo de 4ª aumentada – o trítono, diabolus in musica, como era chamado na idade média - decorrente da combinação do IV e do VII som da escala diatônica, seja de forma ascendente ou descendente.” (TRAGTENBERG, 2002, p. 23)
101
a relação da tônica com a mediante e dominante não é meramente quantitativa, e sim trata-se de sons essencialmente diferentes que se unem ao mesmo tempo numa unidade, sem permitir que sua determinidade soe como oposição e contradição aguda. As dissonâncias, em contrapartida, necessitam de uma resolução. (Est, I, p. 254)
A questão é a resolução, pois até agora esses acordes “mantêm em uma e mesma
unidade elementos opostos nesta Forma da oposição mesma” (Est, III, p. 314).115 Mas para
ele, em seu método dialético,
algo oposto como algo oposto esteja em unidade é em si mesmo contraditório e sem consistência. Oposições [Gegensätzse] em geral não possuem, segundo o seu conceito interior, nenhuma sustentação firme, nem em si mesmas nem em sua oposição [Entegegensetzung]. Ao contrário, elas sucumbem em sua oposição mesma. A harmonia não pode, por isso, ficar presa a tais acordes, que apenas fornecem ao ouvido uma contradição que exige a sua solução para levar uma satisfação ao ouvido e ao ânimo. Com a oposição, nesta medida, está imediatamente dada a necessidade de uma dissolução da dissonância e um retorno às tríades. (Est, III, p. 314)
3.3.9. Sonata e forma dialética
Aqui retomamos a pergunta principal: como a lógica é condição para a junção entre
dialética e tonalidade? Nosso objetivo é reforçar nosso argumento principal, uma vez que já
expomos a tensão e a resolução.
Segundo Olivier, para se comparar a estrutura dialética de Hegel com a dialética da
forma sonata, de Beethoven, é necessária a utilização de categorias lógicas de Hegel, e não
apenas as categorias estéticas. O autor propõe uma busca na Lógica e na Fenomenologia do
Espírito. Para Olivier, a lógica da dialética musical é a mesma da música de Beethoven, e não
apenas uma modalidade de exposição. Olivier vê a dialética não sendo separada da vida do
espírito e, consequentemente, também presente na música. Neste sentido, Hegel se preocupa
em pensar a música em seu sistema.
François Nicolas, ao fazer críticas ao livro de Olivier, não vê possibilidades de existir
essa relação entre dialética hegeliana e dialética beethoviana. Ele é descrente de um conceito
apresentado musicalmente em Hegel e não acredita ser possível um conceito lógico, ele
mesmo, presente sob uma forma musical. Nicolas acredita que os musicólogos do século XIX
não ataram um bom nó entre filosofia e música, e que, para Hegel, a música era algo
115 Neste momento, ele expõe em seu sistema a insuficiência de uma dissonância sem resolução, pois trairia todas as leis da harmonia tonal – o que seria não cabível em um sistema dialético.
102
insignificante. Para o autor, Hegel via os músicos de sua época como carentes de consistência:
assim é o desinteresse de Hegel pela música de Beethoven. Segundo Nicolas, foi por motivos
filosóficos que Hegel desistiu da música e a colocou como algo do passado.116
Nessa dissertação, concebemos a dialética na própria ideia de tonalidade e em suas
modulações, consideradas como um retorno a si mesmo e, por isso, presente na filosofia de
Hegel, mas no formal [Gestalt]. É pela via formal que buscamos analisá-la. Especulamos a
partir disso que, sendo a mesma lógica, a música pode nos dizer algo sobre a sociedade, como
na relação entre Estado e indivíduo e harmonia e melodia, ou na relação Senhor e Escravo e
melodia e harmonia. Na lógica da tonalidade, estariam implícitas as contradições sociais
históricas.117 O caminho desse entendimento – seu método – é a análise musical.
No sistema dialético hegeliano de “triadicidade das subdivisões e o retorno ao início”
(HÖSLE, 2007, p. 226), segundo E. Hartman, a contradição é o que o sistema dialético mais
ama. Aqui, o fato de haver uma contradição é parte integrante do sistema: não há o princípio
de evitar uma contradição, mas sim suprassumi-la, ir além dela.118
Há nesses acordes dissonantes uma oposição mesma. A questão é que algo em si
mesmo oposto não pode estar em unidade consigo mesmo: tal afirmação seria uma
contradição. Faz-se necessário uma resolução. “Oposições [Gegensätze] em geral não
possuem, segundo o seu conceito interior, nenhuma sustentação firme, nem em si mesmas
nem em sua oposição [Entgegensetzung].” (Est, III, p. 314) Elas sucumbem sem sua
contradição mesma. Tais dissonâncias levam à incongruência e exigem a sua resolução
“satisfazendo assim o ouvido e o ânimo” (Ibidem, p. 314). Hegel define que há uma
necessidade nessa dissolução da dissonância e um retorno à tríade. Para ele, o ponto negativo
é o “ponto de mutação do movimento do conceito: a relação do negativo consigo mesmo deve
ser considerada como a segunda premissa de toda inferência” (HÖSLE, 2007, p. 236).
Importa é voltar, via suprassunção da diferença, determinação
[...] tética: Nesse ponto de mutação do método, o decurso do conhecimento retorna ao mesmo tempo a si mesmo. Essa negatividade, sendo a contradição que se suprassume, é a produção da
116 A insuficiência da expressão musical diante da objetividade do conceito é fundamental para Hegel superar a música. 117 Em Adorno, a obra é espírito, história e sociedade imanente. 118 “As categorias anteriores são pressupostos para as posteriores apenas enquanto categorias que se suprassumem; estas, em contrapartida, expressam explicitamente aquilo que aquelas já pressupunham implicitamente [...]. Nesse sentido, pode-se dizer que, no plano do conteúdo, as categorias posteriores pressupõem as anteriores (com efeito, elas são mais complexas), porém no plano pragmático as anteriores sempre já pressupõem as posteriores.” (Ibidem, p. 232)
103
primeira imediatez, da simples generalidade; pois, de imediato, o outro do outro, o negativo do negativo, é o positivo, idêntico, geral. (Ibidem, p. 236)
Nessa altura do texto sobre a música, o autor dá as bases para essa dissertação e
permite compreender as questões contemporâneas relacionadas à quebra da tonalidade, como
em Adorno, por exemplo, na Filosofia da Nova Música. A saber, “este movimento, como
regresso da identidade a si mesma, é primeiramente, em geral, o verdadeiro” (Est, III, p. 314).
Tal identidade plena só é possível
como uma separação recíproca temporal de seus momentos, os quais, por isso, tornam-se uma sucessão, revelando todavia seu pertencimento recíproco pelo fato de que se apresentam um diante o outro como um progresso em si mesmo fundamentado e como um decurso essencial de mudança. (Ibidem, p. 314)
Interpretamos isso como o todo da composição, onde não há somente uma dissonância
e uma resolução, e sim um todo de dissonâncias e resoluções, passando por modulações,
sendo que a coda em uma sonata, por exemplo, pede esse fim tonal na tríade. Segundo
Schoenberg, ela é a afirmação da tonalidade, mas muito mais, é onde “o compositor quer
dizer algo a mais do que já foi dito” (SCHOENBERG, 2008, p. 224), como uma síntese.
Sendo uma sequência de acordes governados pela tonalidade, eles não estão à deriva:
há uma referência interior necessária que muda e progride. Tal progressão de acorde para
acorde está calcada em parte na formação do acorde, em parte na própria estrutura da
tonalidade. Hegel lembra que na teoria da música há proibições nesses movimentos, e bons e
maus caminhos, como a proibição do movimento das quintas paralelas nos contrapontos, por
exemplo.
3.4. Melodia: o reino da liberdade
O próximo tema que surge dos anteriores, e que, por sua vez, “se fundem em unidade
[in eins bilden] e nesta identidade fornecem a base para o desdobramento e unificação apenas
verdadeiramente livre dos sons, é a melodia” (Ibidem, p. 224). O regente Sergio Magnani
também concorda com Hegel ao afirmar que “é a melodia o grande fundamento da música,
quando mais e quando menos valorizada, mas sempre em posição emergente no defluxo da
mensagem sonora” (MAGNANI, 1996, p. 81). A harmonia atinge apenas os âmbitos
104
essenciais, que são as leis da necessidade para o mundo dos sons. O ritmo cuida do pulsar via
regras onde caminha a alma livre. Essa alma livre é a melodia,119 que é o
poético da música, a linguagem da alma que derrama a dor do ânimo [em] efusão se eleva suavemente acima da força natural do sentimento, na medida em que faz da comoção atual do interior uma percepção de si mesmo, um demorar livre junto a si mesmo e dá ao coração a libertação da pressão advinda da alegria e do sofrimento – o livre soar da alma no campo da música é primeiramente a melodia. (Est, III, p. 315)
Para Hegel, a melodia é o lado mais elevado da música. Segundo Alain Patrick
Olivier, em Hegel, há uma “teoria filosófica da melodia”.120 A melodia constitui aos olhos de
Hegel o que a música de seu tempo pode oferecer ao pensamento e à filosofia. O nome
“melodia”, na categoria musical, torna-se um conceito filosófico que concentra a existência
musical concreta, ou a existência musical como tal, uma vez que a música para Hegel nada
revela do conceito. Sua existência está sobre a harmonia e o ritmo, que a filosofia irá chamar
de liberdade. Olivier reafirma que em Hegel a harmonia é o reino das necessidades, e a
melodia, o reino da liberdade. A teoria filosófica se desenvolve na ausência de uma teoria da
música e articula uma teoria filosófica da voz. Neste ponto, Hegel valoriza a voz na música
dos italianos – veremos mais ao fim do capítulo a teoria filosófica que ele desenvolve acerca
da voz. Olivier, não obstante, pergunta por que Hegel não realizou uma filosofia da música.
Contudo, aqui, nos esforçamos para mostrar que Hegel já desenvolve um retorno a si mesmo,
que chamamos de dialético. Retornamos ao argumento de que Hegel não aceitaria articular
sua dialética no âmbito formal da música, justamente por faltar a ela o conceito. Ele não
discutiria dialética apenas no formal [Gestalt]. Hegel não abre mão do conceito, de um
conteúdo mais determinado, mais objetivo, mais espiritual. Por isso, ele supera a música. A
voz, por sua vez, articula-se com o conceito: a voz seria o cantábile com conceito, uma vez
que a melodia é o mais espiritual.
Retornamos à ideia que Olivier defende no seu livro: a de que Hegel não acharia em
Beethoven121 esse cantábile da voz, que para Hegel seria a verdadeira música. Beethoven
119 “Se coordenarmos os elementos constitutivos do som, conseguiremos estruturas que formam a base da síntese musical. Assim, uma série de alturas diferentes, coordenadas horizontalmente, isto é, nenhuma seqüência temporal, dará origem à melodia; a sua organização no espaço vertical, dentro da mesma unidade de tempo, resultará em contraponto ou harmonia.” (MAGNANI, 1996, p. 80) 120 HEGEL et la musique. Disponível em: http://www.entretemps.asso.fr/Samedis/Olivier.htm. Acesso em: 09 nov. 2010. 121 “Beethoven realiza essa ‘representação de todo tema’, que é algo que estabelece o fundamento a partir do qual a variação é desenvolvida [...] Beethoven configura uma relação todo-parte de modo absolutamente novo, em que o todo está a cada instante determinando a parte, e a parte, por sua vez, está presente no todo. É essa
105
possui o melódico, mas ele não tem esse caráter essencialmente cantábile – muitas vezes, ele é
mais harmônico. Encontramos esse cantábile do melódico mais bem definido em Mozart.
Hegel comenta que, se a questão essencial de uma composição for a harmonia, ficaria por
demais pesada e erudita, perdendo assim a liberdade do movimento, “não deixando que se
mostre o triunfo completo do mesmo” (Est, III, p. 318). É o melódico que melhor define o
retorno a si mesmo. O cantábile, ele o acha em Rossini, porém Hegel aponta um problema em
relação à junção entre música e palavra, pois tal junção afetaria a autonomia da música. Por
outro lado, sendo autônoma, ela se distancia de um conteúdo mais objetivo, restando ao
compositor a busca dessa liberdade no melódico, dando à música um conteúdo mais
espiritual, o que não resolve o problema da música, pois tal conteúdo, mais espiritual, ainda é
abstrato. A saída seria Hegel encontrar na expressão musical uma referência para o discurso
filosófico; contudo, não é Hegel que dá esse passo, e sim Adorno.122
Para Adorno, há um engano na ideia de Hegel de que a música é duplamente negativa,
e que resta ao compositor, além do vazio do conteúdo, a arquitetura musical. O compositor se
ateria ao melódico a fim de dar à música um sentido que lhe seja mais espiritual: ele teria
preferências à melodia, à profundidade e às dificuldades da harmonia. A questão é que, para
Adorno, diante da falência da ideia de expressão (conteúdo espiritual, sentimento subjetivo,
indeterminado e vago), Hegel se iludiu achando que no melódico a liberdade do compositor
seria total.123
3.4.1. A relação senhor e escravo visto através da melodia e harmonia: a
liberdade do cantábile a partir dos sons singulares construídos na harmonia
Nosso objetivo agora é fazer uma analogia entre a dialética senhor e escravo e a
relação entre harmonia e melodia. Buscaremos compreender em que medida o harmônico é
relação intrínseca parte-todo – [...] pois ela se dá precisamente pela relação ‘totalizante’ que Beethoven estabelece com o sistema tonal.” (WAIZBORT, 1992, p. 37) 122 Dado o escopo teórico deste trabalho, não teremos a oportunidade de realizar esse salto. 123 “Hegel tem, por assim dizer, razão contra si mesmo: a opressão histórica vai muito mais além do que diz sua estética e no estado atual o artista tem uma liberdade bem menor do que Hegel podia pensar no início da era liberal. A dissolução de todo elemento preestabelecido não deu como resultado a possibilidade de usar à vontade tudo aquilo que a matéria e técnica põem à disposição dos artistas [...] Esse gênero de liberdade que Hegel atribui ao compositor e que encontrou sua realização máxima em Beethoven, que o filósofo ignorava completamente, está necessariamente relacionado com elementos preestabelecidos, em cujo âmbito existem múltiplas possibilidades. Ao contrário, o que existe em si e por si não pode ser outra coisa senão o que é e exclui todas as tentativas de conciliação das quais Hegel esperava a salvação da música instrumental. A eliminação de todo elemento preestabelecido, a redução da música quase a uma monodia absoluta, fê-la rígida e destruiu seu conteúdo mais íntimo.” (ADORNO, 2002, p. 24)
106
escravo e o melódico é senhor. Só a partir da natureza já trabalhada pela harmonia, entendida
como notas musicais, a melodia pode utilizar-se delas e ser livre em seu cantábile. Tal ideia
tiramos da lógica hegeliana, que abrange todo o sistema; ela é ontológica.
A fim de fazermos um paralelo entre a relação melodia–harmonia e a relação senhor–
escravo, temos a consciência de si como figura do espírito que se desenvolve, e, nesse
momento do desenvolvimento da consciência, o seu objeto muda em relação às figuras
anteriores. Agora é o aspecto melódico que assume um papel senhoril em relação ao
harmônico que, por sua vez, faz-se servo. A consciência em si, que se expressa como
movimento, é dinâmica na busca de seu objeto, encontrado ao debruçar sobre si mesma.
“Como movimento, a consciência busca outra que enquanto outro é o diferente a ser
suprassumido.” (SILVA, 2008, p. 81) Esse é o movimento do desejo de busca da consciência.
Aqui, a melodia é esse “encontro com o outro de si” (Ibidem, p. 82),124 que é a harmonia.
Nessa busca pela independência que se realiza em relação ao seu objeto, “é na singularidade
das partes que haverá a unidade do todo” (Ibidem, p. 83).125 Mas nesse confronto, é preciso
“suprassumir a outra parte” (Ibidem, p. 83).126 Uma consciência reconhecerá a outra em um
duplo movimento das duas consciências. É a efetiva relação, é a experiência que a consciência
de si faz do reconhecimento.127
Na harmonia, falta-lhe o lado mais espiritual da música que é a melodia. A harmonia
teme que, nesse movimento do espírito ao mais espiritual, ou seja, ao melódico, ela seja
aniquilada. Ela teme morrer em importância diante da superioridade melódica, pois na
harmonia ainda não há aquilo que toca o humano no mais espiritual, a saber, o melódico. É no
risco de vida “que se conserva a liberdade” (SANTOS, 2007, p. 128). Para Hegel, a vida é
esse arriscar indo em direção à outra consciência, a saber,
devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]: e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o imediato como ela surge, nem o seu
124 “Assim, um momento chave da consciência de si é o desejo, que, por natureza, impulsiona o movimento de retorno, nesse contexto um movimento de retorno da consciência sobre si, no qual se opera o confronto do Eu com o Eu, na tentativa de afirmar identidade pela diferença negada.” (Ibidem, p. 82) 125 “Tudo ocorre de modo que negada a negação da diversidade, efetiva-se a volta à unidade.” (Ibidem, p. 83) 126 “Podemos concluir que ao realizar esse movimento de negação e desejo do outro, a consciência-de-si se apresenta para a outra consciência-de-si, e, só assim, é possível uma plena realização, pois nesse contexto, encontra uma efetividade do seu si com o seu outro.” (Ibidem, p. 83) 127 “Para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si [ou seja]: ela veio para fora de si. Isso tem dupla significação: primeiro, ela se perdeu de si mesma, pois se acha numa outra essência. Segundo, com isso ela suprimiu o Outro, pois não vê o outro como essência, mas é a si mesmo que vê no outro. A consciência-de-si tem de suprassumir esse seu ser-outro.” (HEGEL, 1999, p. 126)
107
submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela momento evanescente; que ela é somente puro ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente. (HEGEL, 1999, p. 128-129)
Assim, nessa relação, a melodia surge como senhor, enquanto consciência que é para
si e é mediatizada consigo mesma por meio de outra consciência, que é o harmônico. Desta
forma, a melodia senhoril
é relação imediata do ser-para-si, mas, ao mesmo tempo, como mediação ou com um ser-para-si que é só para si mediante um outro, [...] O senhor relaciona-se de modo mediato com o escravo por meio do ser independente, pois é precisamente a isto que se acha sujeito o escravo, esta é a sua cadeia. (Ibidem, p.129)
Desse modo, a melodia irá se relacionar com a coisa mediante o harmônico,128 “mas o
senhor, que interpôs o escravo entre si e a coisa, une-se, deste modo, apenas com a
dependência da coisa e a desfruta puramente; mas o lado da independência da coisa, ele o
deixa ao escravo, que a transforma” (Ibidem, p. 131). Aqui, a melodia é reconhecida pela
harmonia.129 A harmonia, por seu turno, relaciona-se com a música de forma inessencial, seja
na sua relação de transformação da música, pois lhe falta a consciência de si do melódico, seja
na sua relação com o ser aí determinado, ou o melódico.
A consciência inessencial é assim para o senhor o objeto que constitui a verdade da certeza de si mesmo. [...] o que é para ele não é uma consciência independente; portanto, ele não possui a certeza do ser-para-si como verdade, mas sua verdade é, ao contrário, a consciência inessencial e o fazer inessencial da mesma. (Ibidem, p. 132)
Assim, a consciência servil torna-se a verdade da consciência independente.
O escravo nega a natureza dada para criar a espiritual. Lembremos que, antes da
harmonia, não existiam as notas musicais como sons singulares, havendo somente o ritmo,
que é a medida temporal dos sons, mas não a medida da altura. É na harmonia que surgem as
alturas das notas bem-definidas em tom e semitom. Portanto, o harmônico, no lugar do
escravo, elabora a natureza (sons) dada pelo ritmo em notas musicais com alturas bem-
definidas; só assim, o melódico pode usufruí-la. Deste modo, a verdade para o senhor é a
128 “Mas o senhor é o poder sobre esse ser, pois ele demonstrou na luta que este ser valia para ele apenas como uma coisa negativa; e na medida em que é o poder sobre esse ser, e este ser é o poder sobre o outro, nesse silogismo o senhor tem sob si o outro.” (Ibidem, p. 131) 129 Uma melodia que caminha na escala de DóM em um harpejo Dó, Mi, Sol, será harmonizada por um acorde de DóM que, por sua vez, possui também as mesmas notas do acorde.
108
consciência inessencial e o fazer inessencial da mesma, “a verdade da consciência
independente é, por conseguinte, a consciência servil” (HEGEL, 1999, p. 132).130
A verdade da harmonia servil é a consciência de si. A melodia é a sua essência, “sua
verdade é a consciência independente e existente para-si” (Ibidem, p. 132). Mas ainda não é
ela mesma. O que ela tem em si é o fato já experimentado de ser pura negatividade e do ser
para si. A essência simples de sua consciência de si é o movimento universal puro, “a
fluidificação absoluta de toda subsistência” (Ibidem, p. 133). É a negatividade absoluta, o
puro ser para si que assim é nessa consciência. Esse momento é também para o senhor seu
objeto. É no estado de servidão que a harmonia
consuma realmente a dissolução; ao servir, ela suprime todos os momentos singulares de sua pertinência ao ser-aí natural e o elimina pelo trabalho [...] O senhor também se relaciona mediante por meio do escravo com a coisa; o escravo, enquanto consciência-de-si em geral, se relaciona também negativamente com a coisa, e a suprassume. Porém, ao mesmo tempo, a coisa é independente para ele, que não pode portanto, através de seu negar, acabar com ela até a aniquilação; ou seja, o escravo somente a trabalha. Ao contrário, para o senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem como pura negação da coisa, ou como gozo. (Ibidem, p. 133)
Assim, o escravo é quem domina a natureza, e o ser do senhor se vê dependente do ser
do servo. Este vence e domina a natureza, que lhe dá de certa forma a liberdade. No desejo do
senhor, há apenas a pura negação do objeto, o que lhe dá um caráter evanescente, pois lhe
falta o lado objetivo, a subsistência.
O trabalho, ao contrário, é desejo reprimido, desaparecimento retardado; o trabalho educa. A relação negativa com o objeto torna-se a forma do mesmo, torna-se algo permanente, pois é justamente pra quem trabalha que o objeto tem independência. Este meio negativo ou a ação formadora é, ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro ser-para-si da consciência. (HENRIQUE, 2007, p. 133)131
O reconhecimento mútuo se dá quando, na visão positivista de Hegel, o escravo supera
sua inicial alienação via trabalho, pois assim ele recupera sua liberdade. Ao trabalhar a coisa
que lhe era estranha, a consciência escrava suprime a forma existente que lhe é oposta. Assim,
“ela destrói o negativo estranho e se põe a si mesma como negativo no elemento da
130 “É certo que esta aparece primeiro fora de si, e não a verdade da consciência-de-si. Mas assim como a dominação mostrava que sua essência é o inverso daquilo que ela quer ser, assim também a servidão tornar-se-á, em sua completa realização, o contrário daquilo que ela é imediatamente; ela retornará a si como consciência repelida sobre si mesma e se transformará em verdadeira independência.” (Ibidem, p. 132) 131 “Este ser-para-si agora, no trabalho, se apresenta fora de si no elemento da permanência; este modo, a consciência que trabalha chega à intuição do ser independente, como intuição de si mesma.” (Ibidem, p. 133)
109
permanência; e desse modo torna-se para si mesma um ser-que-é-para-si” (HEGEL, 1999, p.
134).132
Reside na natureza da música mesma, em seu interior, um conteúdo espiritual, e a
música faz dele sua expressão. Esse conteúdo ecoa como sentimento subjetivo, indeterminado
e vago. Assim, os movimentos musicais são essencialmente musicais, estão em seus
movimentos próprios e estão sendo regidos por leis e métodos. Eles não são como
pensamentos, e nem sempre uma mudança musical evoca uma mudança de um sentimento ou
de uma representação.
A melodia incorporou nela mesma o harmônico como sua base não apenas universal, mas igualmente em si mesma determinada e particularizada, em vez de perder desse modo a liberdade de seu movimento, ganhou primeiramente para si mesma a força e determinidade. (Est, III, p. 318)133
3.4.2. Autonomia da melodia em relação à harmonia: processos históricos
Nosso objetivo aqui é mostrar, através de desmembramentos históricos, os três
momentos definidos pelo autor nessa relação entre a melodia e a harmonia. São momentos
suprassumidos que geram a total liberdade do melódico.
No que diz respeito ao caráter particular da melodia, Hegel a divide em três partes.
Elas dizem respeito à relação da melodia com a harmonia: a melodia vai se tornando
autônoma à harmonia, porém não abandona o necessário, e sim se torna livre e idêntica a ele.
Esses três momentos são históricos: no primeiro, a melodia e a harmonia existem sem
conflitos agudos, como na obra de Palestrina. No segundo momento, ambas permanecem em
um todo compacto, como nos corais a quatro vozes de Bach. No terceiro momento, a melodia
“deve separar em dissonâncias a primeira concordância simples” (Ibidem, p. 318), como na
obra de Mozart. Hegel aponta que em sua época certos compositores se relacionavam com as
leis da harmonia de uma forma que surpreendia o ouvinte, que supomos ser Beethoven,
principalmente em a Grande Fuga – Opus 133, apesar do filósofo não citar o compositor em
sua obra.
132 “No senhor, a consciência servil tem o ser-para-si como um outro ou é somente para ela; no medo, o ser-para-si é nela mesma; na formação, o ser-para-si torna-se para esta consciência servil o seu próprio ser, e ela atinge a consciência de ser ela mesma em-si e para-si.” (Ibidem, p. 134) 133 É como um corpo que se sustenta sobre uma estrutura óssea, que lhe dá sustentação e segurança aos movimentos apropriados.
110
Figura 10 – Ricerare in G
Nesse primeiro momento, a melodia, em seu decurso harmônico, restringiu-se a
acordes e tonalidades simples, relacionando-se com elas sem oposições e em concordância
mútua – ou seja, uma relação em que a harmonia é uma mera base para uma melodia simples,
não criando nenhuma contradição aguda.
Temos acima o início da peça Ricerare in G de Palestrina,134 que, segundo Magnani, é
o maior gênio musical do século XVI. Há uma melodia principal, mas que não está presa a
uma voz apenas. Nas quatro vozes, a função melódica transita de uma voz para outra, 134 “A poética da música de Palestrina, baseada na missa e no motete, é severamente objetiva e, ao mesmo tempo, misticamente emocionada. O contraponto, rigoroso e, todavia, claro, alimenta uma expressividade profunda, que, longe de criar angústias verticais, dilata-se como um imenso rio, em que a alma mergulha com o sentimento do absoluto. Música plana, sem dramas, que envolve com a segurança de uma paz ou de uma glória já conquistadas. Poderíamos dizer que há, em Palestrina, um novo sentimento do contraponto, baseado no desejo de uma consonância unívoca e conclusiva: mais uma vez, uma síntese entre linguagem gótica e o sentimento renascentista de uma harmonia preestabelecida entre o criador e as criaturas, entre teologia e a beleza.” (MAGNANI, 1996, p. 339)
111
enquanto as outras três exercem uma função harmônica. Podemos ver, nesses breves
compassos, essa relação não conflituosa entre harmonia e melodia. Seu estilo é em
contraponto,135 que é a “sobreposição de duas ou mais linhas melódicas, cada uma das quais
mantêm a sua independência” (MAGNANI, 1996, p. 86). A harmonia surge do entrelaçar das
notas. Na peça, não há ainda um movimento de tensão e resolução bem-definidos, com
dominante e tônica. A música é modal. Seu modo é o de Sol menor. A nota inicial da primeira
voz é Sol (I). No terceiro tempo, surge na primeira voz e na segunda voz a nota Ré (V), Sol (I)
e Ré (V), um acorde sem dissonâncias. No segundo compasso, a melodia faz Ré (V), Mi,
(nota de passagem), Ré, Si (III), e o acompanhamento sustenta a nota Sol nos três primeiros
tempos e, no quarto tempo, vai para Si (III), afirmando a função tônica. No terceiro compasso,
a melodia vai para Dó (III), e surge o baixo, que varia em Fá (I) e Lá (III), caracterizando o
acorde de VII grau Fá, o que produz uma tensão que se resolverá no quarto compasso,
provocando o retorno à tônica com a melodia em Ré (V), Dó (n. p.), Si (III), Lá (n. p.), Sol (I)
e o acompanhamento em Si (III), Lá (n. p.), Sol (I). No segundo tempo do quarto compasso,
surge a clave de Fá com a nota Sol (I), reafirmando a tônica e o acorde de primeiro grau. No
quinto compasso, a melodia faz Lá (II), mas o acorde se mantém na tônica, baixo Ré (V),
terceira voz Ré, segunda voz Sol (I). Aqui, a música cria certo conflito, pois a nota Lá da
melodia não está no acorde, mas logo caminha para Si (III), que é a terça do acorde. No
segundo tempo desse compasso, o baixo vai para Fá#, o que cria tensão, mas que logo se
resolve voltando para a tônica, não chegando a ter um acorde com uma função de dominante,
com a sétima menor. Há notas de passagem (n.p.) com função de tensão, mas que logo se
resolve, não se caracterizando um problema harmônico do tipo dominante e tônica ou de
antítese e síntese. No sexto compasso, o primeiro acorde reafirma a tônica, a melodia está na
segunda voz, e faz Si (II) e Lá (II). No terceiro tempo, a melodia da segunda voz fica em Lá.
A terceira voz permanece em Si, Dó, Si, Dó, Ré, enquanto o baixo fica em Lá e Fá, o que
caracteriza uma mudança de acorde para Ré menor. Este, mesmo não tendo a força de uma
dominante, é utilizado na música porque é da regra desse período que “a penúltima nota deve
ser escolhida do acorde do V ou VII grau da escala, de forma a acentuar o caráter de
tensão/suspensão melódica a ser resolvido pelo último som do cantus firmus, a tônica”
(TRAGTENBERG, 2002, p. 23). No sétimo compasso, a melodia da segunda voz volta para
135 “O termo contraponto deriva do latim punctus contra punctum, nota contra nota, ou ainda melodia contra melodia. Trata, portanto, de sons que se contrapõem simultaneamente. Basicamente, contraponto é direcionamento melódico.” (TRAGTEINBERG, 2002, p. 15)
112
Sol, a terceira voz para Ré e a quarta voz para Sol, caracterizando o retorno à tônica ou a si
mesmo.
Na peça acima, portanto, ainda temos uma consciência unívoca e conclusiva, como
uma consciência que ainda não se lançou para sua alteridade.136 É o em si, mas não ainda o
para si. É a bela individualidade retraída em si mesma.137
Hegel comenta que, nessa primeira relação, melodias de canções com essa
simplicidade não perdem profundidade,138 mas correm esse risco de se tornarem superficiais
como as melodias italianas e francesas de sua época, que possuem, em sua opinião, uma
sequência harmônica leviana. Contudo, o autor substitui essa riqueza da relação entre
harmonia e melodia com “ritmos picantes” e com “outros temperos”,139 assim sendo, de
caráter superficiais.
No segundo momento, nos corais para várias vozes, a aparente autonomia das vozes se
rende à coesão do necessário. Cada singular se iguala ao todo da harmonia.140 O que se
percebe é uma composição compacta como um todo na qual uma mudança em qualquer voz
tem resultado no todo. São vozes que nesse entretecimento constituem um curso
harmônico.141 É o exemplo dos Corais a quatro vozes de Bach, onde as vozes apenas parecem
autônomas: elas se divergem, contudo conservam entre si uma referência harmônica,
introduzindo uma coesão necessária na composição. Abaixo, o Chorale Harmonisations BWV
1-438 de Bach para quatro vozes e acompanhamento:
136 “Elas não criam, por assim dizer, um problema com os enredamentos mais difíceis do acorde e das tonalidades, na medida em que se contentam com passagens e modulações que, para provocar uma concordância recíproca, não se impelem para oposições agudas e não exigem mediações variadas, antes que a unidade satisfatória tenha de ser produzida.” (TRAGTEINBERG, 2002, p. 15) 137 Segundo Magnani, a Itália preparou o sentimento harmônico: “é ele que marca a transição do transcendente para o imanente, deslocando o centro atrativo da música, substituindo a abstração do contraponto pela qualidade naturalista e racional do acorde – perfeita estrutura de proporções matemáticas.” (MAGNANI, 1996, p. 328) 138 “Melodias das canções, por exemplo, que por isso não serão superficiais, mas podem ser de profunda alma de expressão, se deixam levar mais facilmente assim para lá e para cá nas mais simples relações de harmonia.” (Ibidem, p. 328) 139 Essa superficialidade do temperamento rítmico pode ser visto na nossa atual música da Indústria Cultural. 140 “Cada som singular da melodia se preenche como um todo concreto em um acorde e, desse modo, alcança em parte uma riqueza de sons, em parte se mescla de modo tão estreito com o curso da harmonia que nenhuma diferença mais determinada pode ser feita entre uma melodia que se explica por si mesma e uma harmonia que apenas fornece os pontos de sustentação de acompanhamentos e o fundamento e solo mais firme.” (Est, III, p. 317) 141 “Ou mesmo diversas melodias podem também ser elaboradas harmoniosamente uma na outra de modo semelhante, de sorte que sempre o encontro de sons determinados destas melodias fornece uma harmonia, como por exemplo, ocorre com freqüência nas composições de Johann Sebastian Bach.” (Ibidem, p. 318)
113
Figura 11 - Chorale Harmonisations BWV 1-438
A tonalidade é Sol maior. O tempo é quatro por quatro (4/4 ou C). Podemos ver que há
dobras nas vozes, e os instrumentos dobram com o coral. Não há uma melodia solo em uma
voz específica. Em uma leitura horizontal, há várias melodias independentes em vozes
separadas, contudo, em uma leitura vertical, as melodias formam harmonias.142 São modos
específicos que possuem funções dentro de uma tonalidade. Podemos perceber que as vozes
do coral, mais o órgano e contínuo, possuem uma simetria em relação ao ritmo. Essa
característica dá equilíbrio rítmico entre as vozes, não permitindo uma melodia sobressair-se
sobre a outra, não dando a nenhuma delas o caráter de melodia principal. Assim também nos
ensina o mestre Schoenberg:
Das particularidades das vozes, e também da experiência, resultam as condições para a sua montagem na sonoridade do coro. Se nenhuma voz deve sobressair, todas as vozes devem então buscar registros cujos registros cujos rendimentos sonoros sejam mais ou menos equivalentes. Pois, se uma voz cantasse num registro brilhante enquanto as outras se
142 “Todavia, como diversas seqüências de acordes não possuem uma origem puramente harmônica, mas derivam de conduções melódicas, apresenta-se a necessidade de dispor encadeamentos que tornem visíveis a influencia melódica.” (SCHOENBERG, 2001, p. 78)
114
movessem num registro opaco, aquela tomaria de imediato um papel preponderante. (Ibidem, p. 80)
Em uma análise melódica horizontal, percebemos que as vozes estão na mesma
tonalidade. Elas partem das notas do arpejo da tonalidade, Sol (I), Si (III), Ré (V) e se
movimentam como uma melodia de forma independente e com funções dentro da harmonia.
Geralmente, os baixos terão função de tônica, com possíveis inversões – geralmente uma
inversão de quinta preparando a dominante – que equivale a uma subdominante. São as vozes
do órgano e contínuo e do basso. No primeiro tempo de cada compasso, teremos notas do
arpejo de cada modo; no primeiro e no segundo compasso, Sol (I); no terceiro, quarto e quinto
compasso, Ré (V), caracterizando o modo jônico, que, além das notas do arpejo, inclui notas
de passagens. O tenor está também no modo jônico; no primeiro, Sol (I); no segundo e
terceiro, Si (III) e no quarto e quinto, Fá (V). O alto está no modo frígio. No primeiro
compasso, Si (I); no segundo, Ré (III); no terceiro, a nota do arpejo aparece no segundo
tempo, Fá (V); no quarto compasso, as notas do arpejo estão espalhadas e no quinto, a nota Si
(I). O soprano está no modo mixolídio. No primeiro compasso, Ré (I); no segundo compasso,
Lá (V); no terceiro e quarto, Ré (I). A penúltima nota de cada voz, no último compasso, antes
do retornelo, apresenta uma tensão para se resolver na última nota. Serve como dominante ou
sensível para a tônica de cada modo.
Podemos perceber que, em cada voz, são valorizados os arpejos próprios de cada
modo, caracterizando a independência de cada melodia; todavia, esses modos são partes e têm
uma função dentro de um todo, que é a tonalidade. Em uma análise vertical, observamos um
encadeamento de acordes que compõe a harmonia como um todo. São graus a partir da
tonalidade de Sol maior, em que cada melodia, que é independente, passará a ser uma nota do
arpejo da tonalidade de um grau específico. Lembramos ainda que é necessário haver os graus
I, III e V para termos um acorde, enquanto as outras notas terão funções complementares,
como, por exemplo, no modo mixolídio, a sétima menor. Como já dito, no coral, praticamente
em cada tempo, teremos um novo acorde.
No primeiro compasso, em anacruse, temos um acorde de I grau Sol. O órgano e
contínuo, o basso e o tenor iniciam-se na tônica Sol (I). O alto em Si (III). O soprano em Ré
(III). Aqui se compõe o acorde de Sol, a saber, I, III, V, sendo que nenhuma melodia é
115
principal: há um coral a quatro vozes. Já o corno 1 e 2, sendo instrumentos transpositores,143
iniciam-se com dissonâncias, Dó (IV) e Fá (VII). No primeiro tempo do segundo compasso, a
estrutura se repete com o contínuo, contrabaixo, órgano e soprano (I), tenor (III) e alto (V).
No segundo tempo do segundo compasso, vai para o modo lócrio ou VII grau, contrabaixo
Fá#6 (VII), tenor Lá (III), alto Lá (VI), soprano Lá, contralto II Dó (V). No terceiro tempo do
segundo compasso, vai-se para o VI grau, modo eólio, órgano, contralto e contrabaixo Mi–Ré
(VI–V), tenor Mi (I), alto Sol (III), soprano Si (V). No quarto tempo do segundo compasso,
vai-se para o (IV) grau, modo lídio, órgano, contralto e contrabaixo Dó (I), tenor Mi–Do (III–
I), alto Sol (V), soprano Do-Ré-Mi (I–III–V). No primeiro tempo do terceiro compasso, vai-se
para o modo jônico (I) com segunda inversão, ou seja, com a quinta no baixo, órgano,
contralto, contrabaixo e soprano Ré (V), tenor Si-Do (III-I), alto Sol-Mi (I–VI). No segundo
tempo, vai-se para o V grau, modo mixolídio, órgano, contralto e contrabaixo, Ré (I), tenor Lá
(V), alto Fá (III), soprano e corno 2, Dó (VII) – aqui é valorizada, nas vozes mais altas, a
sétima menor. No terceiro tempo, vai-se para o modo jônico, onde ele dá uma fermata, a fim
de resolver e valorizar a tensão criada pela dominante presente no acorde anterior, órgano,
contralto, contrabaixo e tenor Sol (I), alto Ré (V) e soprano Si (III). No quarto tempo, vai-se
para o modo lídio IV grau, órgano, contralto, contrabaixo e alto Dó (I), tenor Sol (V), soprano
Mi (III). No quarto compasso, a sequência harmônica fica V-IV-I-IV e no último compasso,
antes da primeira fermata, temos I/V-V-I.
Entramos em um terceiro momento da relação entre melodia e harmonia estabelecida
por Hegel, onde a música pode ir aos limites da consonância imediata, inclusive violar a
mesma para retornar a ela, e deve criar dissonâncias nas concordâncias simples. Em uma
composição, os fundamentos das relações da harmonia estão nas oposições, que possuem uma
necessidade por si mesma. A melodia mais profunda também encontrará seus fundamentos
nessas relações harmônicas mais profundas. É nesse abandono de uma progressão mais
consoante que está a riqueza de uma composição. É ao partir para oposições, convocar as
contradições e dissonâncias que uma harmonia revela sua potência, “cujas lutas ela
igualmente tem de poder acalentar e com isso tem a certeza de festejar a vitória satisfatória do
repouso melódico” (Est, III, p. 318). Para Hegel, é a luta entre a necessidade e a liberdade,
“uma luta entre a liberdade da fantasia, de se abandonar às suas asas, com a necessidade
143 Instrumentos transpositores são aqueles onde se escreve uma nota na pauta, mas soará outro som, diferente do escrito. No caso do corno, soa uma quinta abaixo do som escrito. Escreve-se, por exemplo, um Dó e ele soará um Fá. Mas aqui na análise nos ateremos mais às vozes do coro.
116
daquelas relações harmônicas que ela necessita para a sua exteriorização e nas quais reside o
seu próprio significado” (Ibidem, p. 318). Por sua vez, ele diz que uma composição que se
baseia apenas na harmonia se torna demasiadamente “pesada e erudita, na medida em que ou
falta efetivamente a liberdade do movimento ou ela pelo menos não deixa que se mostre o
triunfo completo do mesmo”. (Ibidem, p. 318)
Hegel estabelece como dever da melodia violar as consonâncias, entretanto ele, como
um pensador dialético, não abre mão do retorno a si mesmo. O que está em questão é a ideia
de liberdade e necessidade defendida por Hegel, que por um lado dá liberdade à imaginação,
mas, por outro lado, é regida por leis da harmonia ou, pode-se dizer, regida por leis da
tonalidade.
3.4.3. Liberdade da melodia: momento do particular se achar no universal144
Neste momento, perguntamos em que instância se dá essa liberdade da melodia em
relação à harmonia: nosso objetivo é investigar a relação do particular no universal e como se
dá a liberdade nessa relação. Tal passo é de extrema importância, pois sendo o melódico o
mais livre na música, ele discordará ou não das leis da harmonia? Em nossa investigação, esse
argumento nos mostra mais uma vez que a lógica é a mesma para todo o seu sistema, sendo a
relação entre indivíduo e Estado a mesma entre melodia e harmonia. A falta de leis do Estado
ou da harmonia nessa relação geraria o terror ou o atonalismo.
Segundo José Henrique Santos, na passagem de Hegel na Fenomenologia do Espírito
intitulada de A Liberdade Absoluta e o Terror, é a falta de um poder de representação para
mediar a vontade absoluta e a vontade dos indivíduos, o que gera o terror, a fim de evitar uma
identificação imediata entre vontade geral e vontade individual. “Assim como o Absoluto
abstrato se perverte em absolutismo, a vontade geral degenera em ditadura; e quando perdem
o senso da medida e nenhum princípio (arché) consegue governar (archeim), só resta a an-
archía.” (HENRIQUE, 2007, p. 322) Esse poder de representação na música podemos
interpretar, em analogia, como as leis da harmonia ou leis da tonalidade, incluindo
modulações. São regras de consonância e dissonâncias. Tal processo, neste sentido, é
144 “A melodia incorporou nela mesma o harmônico como sua base não apenas universal, mas em si mesma determinada e particularizada, e em vez de perder desse modo a liberdade de seu movimento, ganhou primeiramente para o mesmo a força e determinidade análogas que o organismo humano alcança por meio da firme estrutura óssea, a qual somente elimina posições e movimentos inapropriados; aos movimentos adequados, ao contrário, dá sustentação e segurança.” (Est, III, p. 328)
117
dialético. Como afirma Hegel nos Princípios da filosofia do Direito, “o domínio do direito é o
espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal
modo que a liberdade constitui sua substância” (HEGEL, 1997, p. 12). Pensaremos a relação
entre as leis da harmonia e a melodia livre a partir do conceito de liberdade de sua filosofia do
Direito.
Trata-se da liberdade da vontade: a natureza de ambas só se deduz na correlação com o
todo. A fantasia da melodia está na liberdade da vontade. Sendo o espírito inteligente,
as determinações através das quais, pela representação, efetua o seu desenvolvimento desde o sentimento até o pensamento, são as jornadas para alcançar produzir-se como vontade, que, enquanto espírito prático em geral, é a verdade próxima da inteligência. (HEGEL, 1997b, p.12)
É pela vontade da consciência refletida em cada um que podemos “determinar a si
mesmo, de dar a si mesmo” (Ibidem, p. 13). Uma liberdade negativa ou do intelecto é a fuga
de todo conteúdo e de toda restrição. Não caminham juntos pensamentos e vontade. “É a
liberdade do vazio” (Ibidem, p. 14), pura paixão, representação abstrata, fúria destruidora.
Busca-se o particular contido no universal, em que o segundo está contido no primeiro. Nesse
sentido, a melodia, por mais tensões que crie, estará contida nesse todo, sendo ela
manifestação daquele. O eu ilimitado é tomado apenas como positivo. O Eu abstrato, para si,
deve ser o verdadeiro. Hegel o vê já em Kant e Fichte, sendo a limitação própria do si. Para
Hegel, a questão é a imanência do universal, questão do dualismo, em que a vontade faz essa
ligação. O particular, quando reflete sobre si mesmo, torna-se individualidade. A
autodeterminação do Eu consiste no situar-se a si mesmo no negativo – é determinar o
limitado. “O Eu determina-se enquanto é relação de negatividade consigo mesmo.” (Ibidem,
p. 16) A melodia em relação às leis “concebe-se como pura virtualidade à qual não se prende,
mas onde se encontra porque ela mesma lá se colocou” (Ibidem, p. 16).
“Tal é a liberdade que constitui o conceito ou substância ou, por assim dizer, a
gravidade da vontade, pois do mesmo modo a gravidade constitui a substância dos corpos.”
(Ibidem, p. 16) A melodia é um particular que tem certo fim. Todo verdadeiro é concreto. “É
o universal que tem no particular seu oposto, mas num particular que, graças à reflexão que
em si mesmo faz, está em concordância com o universal.” (Ibidem, p. 16) Para o autor, tal
nível de especulação é de caráter lógico, é uma questão de determinação da vontade. O
118
conteúdo da vontade se torna seu fim. Só no conceito a vontade é livre. Só assim torna-se para
si o que era em si.145
Sendo a música criação do espírito, aqui entendemos a vontade livre da melodia
enquanto vontade livre do compositor diante das leis da harmonia. Hegel vê liberdade no
melódico, mas ele não pode se perder, ou seja, é preciso haver um caminho a ser seguido.
Mesmo nessa liberdade de não se prender a um campo harmônico único, ele modula, cria
tensões, porém é necessário o retorno a si mesmo. Essa infinita capacidade de determinação e
de possibilidades no movimento progressivo dos sons do melódico não tira dele a necessidade
de um todo fechado. Essa totalidade e riqueza de sons com progressos e multiplicidade não
permite ao melódico perder-se de um início e um fim, sendo dada mais liberdade ao meio.
Esse todo tem que ser acabado. O início é retomado no fim.
Para Hegel, a liberdade da melodia não é um caminhar para o indeterminado, esse todo
“é em si mesmo articulado e retorna a si mesmo, a melodia corresponde ao ser-junto-a-si-
mesmo livre da subjetividade, de quem deve ser a expressão” (Est, III, p. 319). Ela expressa a
subjetividade nos sons que são articulados em um todo acabado. A melodia pode sofrer várias
modulações, como em uma sonata, mas há o retorno ao tom inicial. A melodia não precisa
ficar presa a um tom e pode perfeitamente criar dissonâncias, mas tem de resolvê-las.146 Só
assim, para Hegel,
a música – em seu elemento peculiar da interioridade, que se torna imediatamente exteriorização, e da exteriorização, que se torna imediatamente interior – exerce a idealidade e a liberdade que, ao obedecerem ao mesmo tempo a necessidade harmônica, situam a alma na percepção de uma esfera mais elevada. (Ibidem, p. 318)
A melodia, sendo ideal e livre, não deixa de obedecer às leis da harmonia, mesmo que
as melodias tenham um alto grau de liberdade dentro das tonalidades.147 Esse alto grau talvez
145 Em um terceiro momento, no tópico alfa, em cada melodia, o melódico, o cantábile, “seja em que espécie de música for, deve mostrar-se como que é predominante, independente, que na riqueza de sua expressão não se esquece e não se perde. Segundo este lado, a melodia é na verdade a infinita capacidade de determinação e a possibilidade no movimento progressivo de sons, os quais, porém devem ser conduzidos de modo que sempre um todo em si mesmo total e fechado permaneça diante dos nossos sentidos. Este todo contém certamente uma multiplicidade e tem em si mesmo um progresso, mas uma totalidade deve ser em si mesmo firmemente acabado e necessita nesta medida de um início e término determinados, de sorte que o centro é apenas a mediação daquele início e deste fim” (Est, III, p. 318). 146 Esse início e fim bem definidos da melodia nos dá mais ferramentas para entendermos melhor toda questão levantada por Olivier sobre a dialética de Hegel e a forma sonata de Beethoven. 147 “A distinção entre uma modulação transitória e uma harmonia cromática é sempre tênue; em geral apenas as modulações firmemente estabelecidas levam a análise a ser apreciada em termos de uma tonalidade diferente. Entre os acordes relacionados com outra tonalidade, é usado, então, o termo região. Assim, a referência à região
119
chegou ao seu ápice para a época de Hegel com a Grande Fuga – Opus 133 de Beethoven,
onde esse retorno a si mesmo inicia sua relativização:148 processo histórico, por sua vez, que
deságua em Schoenberg.
Portanto, é através da ideia de forma musical que o compositor trará para o efetivo
todas essas questões musicais aqui discutidas por Hegel. Para Schoenberg, “o compositor, ao
escrever uma peça, não junta pedacinhos uns aos outros, [...] mas concebe a composição em
sua totalidade como uma visão espontânea; só então é que inicia a elaboração”
(SCHOENBERG, 2008, p. 28). Ele tem que preencher os requisitos da lógica, coerência e
compreensibilidade, as necessidades de contrastes, variações e fluência de apresentação.
Assim, a forma musical é um todo acabado e pensado. “Em um sentido estético, o termo
forma significa que a peça é ‘organizada’. Isto é, que ela está constituída de elementos que
funcionam tal como um organismo vivo.” (Ibidem, p. 27) Para ele, sem organização, a música
seria uma “massa amorfa, tão ininteligível quanto um ensaio sem pontuação, ou tão desconexa
quanto um diálogo que saltasse despropositadamente de um argumento a outro” (Ibidem, p.
27).
Figura 12 - Noturno em D - K. 286 para quatro orquestras
de tônica menor, ou à região de subdominante menor, indica o uso temporário de acordes derivados da tonalidade correspondente, mas sem que haja a ocorrência de um completo estabelecimento de um tom através de uma cadência.” (SCHOENBERG, 2008, p. 24) 148 “O afastamento frequente da região de tônica para outras regiões mais ou menos estranhas parecia obstruir a unidade e a inteligibilidade. Entretanto, mesmo a mente mais avançada estará sempre sujeita às limitações humanas, e os compositores daquele período (romântico), sentindo instintivamente o perigo da incoerência, contrabalancearam a tensão de um plano (a harmonia complexa) pela simplificação de um outro plano (a construção motívica e rítmica). Isto talvez explique as repetições e as freqüências de Wagner, Bruckenr, Debussy, César Franck, Tchaikovsky, Sibelius, e muitos outros. Para os contemporâneos Gustav Mahler, Max Reger, Richard Strauss, Maurice Ravel, etc., a harmonia complexa não colocava em risco a compreensibilidade.” (SCHOENBERG, 2008, p. 58)
120
Percebemos acima, no Noturno em D – K. 286 para quatro orquestras, de Mozart, a
independência da melodia em relação ao acompanhamento, sem deixar de seguir as leis da
necessidade harmônica. Há uma independência rítmica em relação às outras vozes. A melodia
principal soará como a alma livre da música.
A melodia principal está no violino 1. O violino 2, a viola e o violoncelo estão na
função de harmonia, juntamente com o corni em D na primeira pauta. A melodia move-se de
uma forma mais independente das outras vozes.
A tonalidade é Ré maior. No quarto compasso, há a presença dos arpejos do acorde: o
violoncelo Ré (I), a viola Ré e Fá# (III), o violino 2 Fá#, Lá (III) e o corni F (III). Há a
presença dos arpejos do acorde. A melodia do violino 1 está em Lá e Ré, que são notas do
arpejo, mas seu movimento é de total liberdade, cantábile. O quinto compasso é um acorde de
tensão, a melodia caminha descendente de Ré a Si, havendo um repouso em Dó# (I). A
harmonia é de Dó# meio diminuto, pois temos a sétima menor Si (VII) e não a sexta. No sexto
compasso, a melodia repousa em Lá (I), que será a tônica, formando um acorde de Lá maior,
violoncelo e viola Mi (V), violino 2 Mi e Sol (VII), que caracteriza a sétima, dando ao acorde
um caráter de dominante. No sétimo compasso, no primeiro tempo, a melodia principal do
violino 1 é Lá (III) e Sol (II), forma-se um acorde de Fá# menor, o violoncelo e viola Dó#
(V), o violino 2 Fá# (I) e Mi. No segundo tempo do sétimo compasso, a melodia resolve-se
em Fá#, caracterizando a terça do acorde de tônica Ré (I), o violoncelo Lá (V), viola Dó# (VII
M), o violino 2 Ré (I) e o corni Fá# (III).
Nesses breves compassos do Noturno de Mozart, percebemos um exemplo de uma
melodia como espírito livre, mas que, ao mesmo tempo, não deixa de estar segundo as leis da
necessidade, o que bem caracteriza a alma livre da música em equilíbrio entre a liberdade e a
necessidade. Com relação às contradições levadas ao extremo, temos em Beethoven um
exemplo, mas como já dito, Hegel não cita o compositor.
121
3.5. A Relação dos meios de expressão musical com o seu conteúdo: sobre qual
conteúdo deve alcançar na música uma expressão adequada à arte
Em que medida a música ganha sua autonomia? A questão, neste ponto, é a relação da
música com a palavra. Aqui também perguntamos sobre que tipo de texto é ideal para a
música e sobre os gêneros.
Na relação dos meios de expressão musical com seu conteúdo, o autor observa que a
música pode ser de dois tipos, a saber, a música de acompanhamento (vocal) e a instrumental.
O primeiro se dá quando o seu conteúdo espiritual não é só apreendido na interioridade
abstrata, sentimento subjetivo, e sim quando a representação apreendida é pela voz humana,
que expressa cantando ao mesmo tempo palavras que indicam um conteúdo determinado. É a
palavra cantada. O segundo ocorre quando a música se torna autonoma via melodias e
elaborações harmônicas.149 Não apreendendo o conteúdo do mesmo modo que o texto, a
música pode apreender o texto segundo o seu significado ideal ou segundo sua subjetividade
do sentimento.
Cabe ao ouvinte vivenciar no mais interior o sentimento da obra, fazer a obra ser
percebida nele mesmo. Assim também deve ser o ânimo do compositor. É o subjetivo do
sentimento que acompanha o todo fazer dos homens. É o seu interior subjetivo que nos toca.
A voz fala palavras articuladas para a representação. A execução cabe a um intérprete. Em sua
época, o elemento do virtuosismo estava em alta com Paganini,150 como também a música
vocal com Rossini.
149 O ouvinte não deve aqui intuir uma dor, como o da crucificação, não deve formar uma representação universal disso, e sim deve vivenciar “em seu mais interior si-mesmo” essa dor, mergulhar nisso com todo o ânimo. A coisa tem que ser percebida nele mesmo. Ele tem que, ao ouvir, mergulhar na obra. Hegel dá como exemplo o Crucifixus como música, e aqui citamos também o Requiem de Mozart. (Est, III, p. 320) 150 “Particularmente nesta relação se apresentaram atualmente dois milagres na música – bem como já na época da ópera italiana mais antiga [...] um milagre relativo à concepção , outro relativo à genialidade virtuosa na execução, em consideração às quais se ampliou sempre mais, também para os maiores conhecedores, o conceito do que é a música e o que ela é capaz de fazer.” (Ibidem, p. 322) A música instrumental citada por Hegel é Mozart, mas é Beethoven, seu contemporâneo, quem torna a composição mais erudita, dando movimento à concepção musical.
122
3.5.1. A música de acompanhamento: a relação com a palavra e a representação
Trata-se de investigar em que medida a representação da palavra destitui o elemento
mais sonhador da música, a expressão. Em um primeiro âmbito, a expressão se liga mais
rigorosamente a um conteúdo determinado, e isso nos distancia da expressão musical. Mas a
música de acompanhamento não está em um sentido de conformidade a fins meramente
servis, ao contrário, “o texto está a serviço da música e não possui nenhuma validade ulterior
senão produzir para a consciência uma representação mais precisa do que aquela que o artista
escolheu como objeto determinado de sua obra” (Ibidem, p. 322).151 Nessa busca por
equilíbrio entre ambas, a arte se preenche com os sentidos das palavras expressas. Cabe à
música “encontrar e configurar musicalmente desde o seio desta animação interior uma
expressão plena de alma” (Ibidem, p. 323). Cabe à música não fornecer nada de estranho à
palavra sem deixar de ser “livre efusão dos sons”. Hegel propõe uma síntese entre palavra e
música e ambas serem livres nessa relação. Deste modo, o filósofo vê as formas de expressão
em três partes:
Primeiro, o autêntico melódico autônomo na expressão. Aqui cabe à música animar
artisticamente os sentimentos, não os deixando naturais. A música doma os afetos na
interioridade subjetiva do espírito, em que cabe ao compositor oferecer o repouso da alma que
dissolve uma dor e, não ao contrário, deixar o espírito na cisão do desespero. Está em questão
o retorno à tônica, onde a dor se expressa, mas é dissolvida. Hegel evita o furor báquico e o
tumulto agitado das paixões “que permanece presa na cisão do desespero” (Est, III, p. 324)
das dissonâncias ou dor que não se resolve.
Contrapondo Hegel, temos Adorno, que vê na tensão a expressão do sofrimento
humano “enquanto para o público, que está [...] a superfície da nova música [...]. As
dissonâncias que os espantam falam de sua própria condição e somente por isso lhe são
insuportáveis” (ADORNO, 2002, p. 17).152 Há todo um contexto de negatividade e de caráter
social da música em Adorno.
151 A música não pode é perder o “fluir livre de seus movimentos, e desse modo, em vez de criar uma obra de arte que repouse sobre si mesma, apenas exercite a artificialidade intelectual [verständige] de empregar os meios de expressão musicais para uma designação mais fiel possível de um conteúdo exterior a ela e já pronto sem ela” (Ibidem, p. 322). Nem pode, acrescentaríamos, ser também meras amarras. 152 Para ambos os autores, a música refletirá as contradições históricas da sociedade. Hegel defende uma síntese como júbilo da resolução tonal. É a sua defesa da lógica. Adorno faz duras críticas justamente a essa lógica que ele chama de decadente e vê, na negação dessa síntese, um reflexo da condição humana, a angústia de um fracasso dessa síntese hegeliana. Haverá reflexos epistemológicos acerca do conhecimento do absoluto. Em
123
O repouso da alma é o telos para Hegel e, para que isso aconteça, é preciso que não se
perca nas dissonâncias: é preciso passar por elas, mas se faz necessário o retorno. Ele cita que
nas obras de Palestrina, Durante, Lotti, Pergolesi, Gluck, Haydn, Mozart, o repouso da alma
não se perde. A questão para ele é a dor da alma não se perder em nenhum extremo, “de modo
que o júbilo nunca degenera num furor tumultuoso e forneça ele mesmo ao pranto o mais
sereno descanso” (Est, III, p. 324). É o estar satisfeito consigo mesmo e consigo mesmo
permanecer no som fundamental, ou a tônica.
Assim, não podendo faltar ao melódico a particularidade do sentimento, a alma que
mergulha nesse sentimento deve pairar acima do conteúdo, em uma região do puro sentir a si
mesmo. Isso constitui o cantábile, em que o interior está acima dos sentimentos particulares.
Cabe ao coração mergulhar não em um outro, mas na percepção de si mesmo na reconciliação
feliz da tonalidade.
Num segundo âmbito, a música dá singularidade às expressões, onde um conteúdo
determinado está ligado a um sentimento, porém o que há de mais determinado é indicado
pelo texto, sendo que ele é secundário na música. A melodia apreende o sentido do texto e o
reproduz em som, em um tom.153 Sendo a canção o canto melódico da alma, o melódico,
como acompanhamento, tem como expressão o recitativo. Aqui o conteúdo é dado pela
palavra como uma declamação sonora. A sintática da palavra definirá os rumos. O melódico
ficará mais limitado segundo a necessidade do texto a ser expresso: essa expressão recitativa
declamatória se mostra apta para considerações silenciosas, relatos tranquilos, como na
oratória, recitativos declamatórias ou canção dramática. No épico e no dramático, cabe a
música instrumental.
No terceiro modo de expressão, o melódico deve tentar alcançar uma mediação entre o
seu rico movimento autônomo e o texto, pois o melódico não pode permanecer simplesmente
no seu vazio e indeterminado. Esta é uma questão para Hegel, pois o melódico se sente na
obrigação de se relacionar com um conteúdo mais objetivo, tirando dele sua autonomia. A
música tem que permitir que seja sua prioridade, por meio desse preenchimento textual,
chegar a uma expressão verdadeiramente concreta. Eis a unidade concreta.
Hegel, há o conhecimento do absoluto via conceito. Em Adorno, críticas ao conceito, à lógica abstrata, são apontadas para a expressão musical, o que Hegel nega justamente pela falta de um conceito apropriado. 153 “Um tal tom, mesmo que apenas possa servir para poucos versos e não para outros, deve também dominar na canção, porque aqui o sentido determinado das palavras não pode ser o elemento predominante, e sim a melodia paira simples por si por sobre a diversidade.” (Ibidem, p. 326)
124
Desta forma, passamos a entender mais quando Olivier fala da importância de Rossini
para Hegel como exemplo na música cantada, pois Hegel acredita que o conteúdo
determinado das palavras é de importância essencial para a música e sua expressão. A partir
disso, Hegel pergunta sobre a constituição do texto apropriado para a composição, a relação
do melódico na declamação e os gêneros onde a expressão musical agora se encontra.
Para Hegel, na escolha de um texto, que precisa ter consistência verdadeira, é
necessário que: ele não seja trivial;154 não seja profundo ou filosófico demais;155 não seja
presunçoso como a poesia romântica, que o filósofo vê como uma ingenuidade artificial,
chegando apenas a sentimentos forçados.156 Para ele, o ideal está no lírico, pois é simples,
com poucas palavras, porém de grande profundidade sentimental, que indica situações e
sentimentos. O texto é apenas a base universal, onde o compositor arquiteta sua obra musical.
Ele comenta que, em A Flauta Mágica [Die Zauberflöte] de Mozart, a composição encontrou
o ponto justo.157 Percebemos aqui no 1º ato (parte II) a tonalidade de Sol em adequação com o
texto.
Figura 13 - A Flauta Mágica [Die Zauberflöte]
Um outro exemplo que Hegel cita como insuperável são as músicas religiosas, nas
quais os textos simples e breves, em latim antigo, das grandes missas e celebrações religiosas
em geral, representam “em parte o conteúdo mais universal da fé, em parte os estágios
154 Pois do trivial “não se pode elaborar artisticamente nada que é musicalmente válido e profundo. Mas por mais que o compositor possa torná-lo picante e temperado, de um gato assado não se faz uma empanada de lebre” (Est, III, p. 326). 155 “Como, por exemplo, a lírica de Schiller, cuja amplidão grandiosa do pathos sobrevoa a expressão musical dos sentimentos líricos.” (Ibidem, p. 326) 156 Sentimentos esses “elaborados por meio da reflexão, a uma nostalgia e afetação ruins consigo mesmas e que igualmente se vangloriam muito da trivialidade, parvoíce e ordinariedade, ao se perderem, por outro lado, nas paixões pura e simplesmente destituídas de Conteúdo, na inveja, no desleixo, na maldade diabólica e em outras coisas deste tipo e possuem uma alegria presunçosa naquela excelência própria como nestes dilaceramentos e baixezas.” (Ibidem, p. 326) Em Hegel, ao citar Schiller, podemos pressupor uma leve crítica à Nona de Beethoven. 157 “Uma moral mediana que é excelente em sua universalidade – Tudo isso, na profundidade, na graça e alma encantadoras da música, amplia e preenche a fantasia e aquece a alma.” (Ibidem, p. 331)
125
substanciais correspondentes no sentimento e na consciência da comunidade dos fiéis, e
permitem ao músico a maior amplitude de desenvolvimento” (Ibidem, p. 331).158 Ele cita
também exemplos de réquiens que se utilizam dos salmos, como, por exemplo, o mais célebre
de todos os Réquiens, o de Mozart.159 Cita Händel, que criava textos para suas músicas
baseados em trechos da bíblia. Podemos também citar o compositor da “Escola Mineira”, José
Joaquim Emerico Lobo de Mesquita.160 Na peça Te Deum, podemos ter o perfeito exemplo do
que Hegel fala da música religiosa, onde os textos apresentam uma grande simplicidade e
brevidade, acompanhada de uma pequena orquestra de cordas.161
Abaixo, temos como exemplo o início do coro Te Dominum da peça Te Deum de Lobo
de Mesquita. Sua tonalidade é Lá menor. A estrutura harmônica gira sobre o eixo tônica e
relativa menor. Há o efeito sonoro resultante das antecipações e suspensões cadenciais que
colorem a composição. O Te Deum apresenta uma estrutura tripartida. A primeira seção, em
louvor a Deus, o Pai, compreende os versículos 1 a 13. A segunda glorificando Deus, o Filho,
abrange os versículos 14 a 23. Ao terceiro, foram agregados os versículos restantes do livro
dos Salmos. A função desse hino é litúrgica, além de ser cantado no Ofício divino e no fim de
algumas novenas. Ele também era executado em cerimônias próprias ou após a Missa, em
ação de graças por alguma bênção especial, como a canonização de um santo, ou alguma
comemoração de determinado membro da realeza.
158 A ação passa-se nos reinos da Noite e do Dia. Ao morrer, o pai de Pamina confiou a sua educação e a fonte de seu poder – o círculo solar das sete auréolas (representando o sistema solar conhecido no século XVIII, de cuja imagem e semelhança é composta uma loja maçônica) – a Sarastro, um velho amigo e chefe de uma ordem iniciática humanitária. Sua mulher, furiosa por perder o controle do círculo solar, transformou-se na Rainha da Noite, recusando entregar a filha e forçando assim Sarastro a raptá-la, a fim de que o desejo do pai seja cumprido e Pamina possa alcançar um grau superior de Sabedoria. 159 “Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis. Te decet hymnus, Deus, in Sion, et tibi reddetur votum in rusalemexaudi orationem meam, ad te omnis caro veniet.Requiem aeternam dona eis, Domine,et lux perpetua luceat eis.( ...)”. A instrumentação é para dois clarinetes, dois fagotes, três trompetes, três trombones (alto, tenos e baixo), tímpanos, cordas, vocal de quatro vozes e um coro. 160 Alferes do Terço de Infantaria dos Pardos. Regeu na matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto (1798-1799). Suas músicas são essencialmente vocais (solo ou coro), religiosas e em grande parte com acompanhamento orquestral. Destacam-se, em suas obras, Missa em Mi bemol (nº 1), Missa em Fá (nº 2), Te Deum, Ofício da Semana Santa, Ofício de Defuntos (Ofício das Violetas), dentre outras importantes obras do barroco mineiro. 161 “Nós te louvamos, Senhor: nós voz bendizemos. A vós, eterno Pai, toda a terra adorada. A vós os anjos, os céus e potestades; a vós os querubins e serafins, sem cessar proclamam. Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos celestes. Cheios estão os céus e a terra na majestade de vossa glória...” (MESQUITA, 2006, p. 6)
126
Figura 14 - Te Dominum, da peça Te Deum
Cabe ao melódico e ao característico da música em sua expressão fazer-se conforme a
um conteúdo textual. Isso depende muito das vivências do compositor. Para Hegel, a vitória
tem que ser do melódico, não de traços característicos dispersos. Ele cita ainda que a música
dramática de seu tempo procura o efeito em contrastes violentos de paixões opostas, próprios
da harmonia. Tais contrastes do dilaceramento são contra a harmonia da beleza, pois unem
coisas opostas, “onde não se pode mais falar do gozo e do retorno do interior para si na
melodia” (Est, III, p. 332). Aqui vemos, em Hegel, sua não aceitação de tensões sem
resolução e de como sua época já trazia elementos dissonantes. Pensemos novamente em
Beethoven, que irá compor esse turbilhão de sentimentos, principalmente nas sinfonias, e que
valorizará o harmônico em detrimento do melódico, caracterizando esses contrastes do
dilaceramento. Mais um motivo para talvez Hegel não ter incluído Beethoven como ideal em
sua estética. Esses desvios e agudezas para Hegel são atributos próprios do material musical,
que seria o domínio do material musical, tornando a música mais intelectual, mais erudita,
que, com certeza, deixou de lado a pura expressão dos afetos e, com isso, tornou-se não
melódico abusando do desarmônico.162 Isso torna o característico particular do musical mais
autônomo, o que para o autor incomoda o curso e a unidade.
162 “Tão logo a música aqui se entrega à abstração da determinidade característica, ela é quase inevitavelmente conduzida para desvios, a penetrar na agudeza, no que é duro, inteiramente não melódico e não musical e mesmo a abusar do desarmônico.” (Ibidem, p. 332)
127
O belo musical seria a progressão do melódico para o característico, sendo o melódico
a alma portadora, unificadora, pois ele é pleno de significado; é a unificação presente. O
particular característico é apenas o relevo de lados determinados, movido a partir do
melódico. Hegel defende a obra de Rossini, na qual, se nos acostumarmos mais à melodia, sua
música é “plena de sentimentos [gefühlvoll], rica de espírito e penetrante para o ânimo e o
coração” (Est, III, p. 333). Para Hegel, ele é infiel ao texto e possui melodia livre, então, ao
ouvi-lo, ou se fixa no objeto e fica-se insatisfeito, ou se dispersa do conteúdo e se entrega às
invenções livres e desfruta-se com a alma a alma que elas contêm.
Das espécies de música de acompanhamento, Hegel cita a sacra, que se liga a um
sentimento universal da comunidade entendida como coletividade, sendo, muitas vezes, de
consistência épica. Ela toca o que de mais rico e profundo a arte pode tocar. Ela está nos
cultos católicos como a missa, como vimos com Lobo de Mesquita, e no culto protestante
com Johann Sebastian Bach, compositor, cuja música sacra é a de maior profundidade.163 O
protestantismo trouxe a Forma da oratória em celebração à paixão como novidade em relação
ao catolicismo. Nesse contexto aqui tratado, a música dentro da obra Fenomenologia do
Espírito aparece na religião da arte. O Hino
conserva dentro dele a singularidade da consciência-de-si; e essa singularidade, ao ser escutada, “é-aí” ao mesmo tempo universal. A devoção, que em todos se ascende, é a correnteza espiritual, que na multiplicidade das consciências-de-si é consciência-de-si como um igual agir de todos, e como de um ser simples. O espírito como essa consciência-de-si universal de todos tem em uma unidade sua pura interioridade, como também o ser para Outros e o ser-para-si dos Singulares. (HEGEL, 2005, p. 479)
Contudo, para a consciência de si, que se cultiva na obra de arte, o que vem dela
emana sobre a essência proposições simples e universais do “espírito universal do raiar do
sol” (Ibidem, p. 480), que sobre a essência apenas se enuncia, mas o que parece à música é, ao
mesmo tempo, trivial para a consciência que se cultiva ainda mais. Para Hegel, se “a estátua é
o ser aí estático e o hino é o ser-aí evanescente” (Ibidem, p. 481), ele não está como coisa, em
contraste com a estátua, “nela fica a subjetividade demasiadamente encerrada no Si, chega
demasiada pouca figuração; e, tal como o tempo, imediatamente não ‘é-aí’ quando ‘é-aí’”.
(Ibidem, p. 481) 163 Hegel vê Johann Sebastian Bach como um grande compositor de música sacra, e lhe faz, com justiça, uma exaltada homenagem, a saber, “um mestre cuja genialidade grandiosa, autenticamente protestante, vigorosa e todavia, por assim dizer, erudita, apenas em tempos recentes se aprendeu novamente a estimular de modo completo” (Est, III, p. 334). Podemos ver, em Olivier, Hegel ir assistir a apresentação de Paixão segundo são Matheus de Bach, juntamente com Schleiermarchen e Heine, em 1829.
128
Hegel fala, na Fenomenologia do Espírito, no texto presente na música de
acompanhamento sacra, que “esse conceito do culto já está, em si, contido e presente no
caudal do canto dos hinos” (HEGEL, 2005, p. 481). São os caminhos da cultura, que segundo
Hegel leva a alma a alcançar a morada e a comunidade a beatitude.
Hegel percebe que, historicamente, a música protestante de sua época se liga pouco ao
culto efetivo, não estando mais no serviço religioso, mas “se tornou muitas vezes mais uma
questão de exercício erudito do que de produção viva” (Est, III, p. 334). Aqui ele aponta para
a questão da erudição, que nos ajuda a entender sua relação com Beethoven. Essa erudição é
própria do característico particular e distancia a música do melódico. Isso dá, como já vimos,
mais autonomia ao formal, afastando a música do ideal de beleza.
O lírico é a expressão melódica da disposição anímica singular e deve se manter
autônoma do declamatório e do característico. Ela não acolhe em si a cisão não solucionada
do coração. O dramático muito pouco se desenvolveu musicalmente na antiguidade clássica.
Já na época cristã, a forma opereta ganhou expressão, mas para o autor, ela é uma forma
inferior, pois mistura “a fala e o canto, o musical e o não musical, o discurso prosaico e o
canto melódico” (Ibidem, p. 334). Já na ópera autêntica, ao executar uma ação inteira de
modo musical, eleva-nos da prosa para um mundo artístico mais elevado.164 Ela toma para si o
lado interior dos sentimentos e, por meio da expressão, fala dos afetos.
3.5.2. Música autônoma
Uma vez vista a música de acompanhamento, Hegel parte para a música autônoma,
onde o melódico, em si mesmo acabado, repousa em si mesmo. A música, por conseguinte,
move-se para uma vitalidade multifacetada tendo o acompanhamento do instrumental. É a
música caminhando para a sua liberação, “a palavra poética na verdade oprimia a música e a
tornava servil” (Ibidem, p. 335).
Sendo a interioridade subjetiva o princípio da música autônoma, Hegel diz que a
música, para se tornar livre e repousar sobre si mesma, deve se livrar do texto e de toda
164 “Em cujo caráter também se mantém toda a obra, quando a música toma por seu conteúdo principal o lado interior do sentimento, as disposições singulares universais nas diversas situações, os conflitos e as lutas das paixões, a fim de ressaltar primeiramente os mesmos de modo completo por meio da expressão a mais completa dos afetos.” (Ibidem, p. 335)
129
configuração mais firme. Ela deve assumir seu conteúdo em si mesmo,165 limitando-se assim
aos seus recursos puramente musicais.
Na música dramática (a ópera) os ingredientes estão inseridos em um duplo conteúdo,
onde há a paisagem, os eventos, os atos, etc., por um lado, e a paixão e sua expressão, por
outro. Sendo a ação o elemento que congrega as partes singulares, o peso principal fica a
cargo do recitativo, e não do musical. Em sua época, o ato de ouvir vai aos poucos se
liberando da imposição do recitativo e caminha para uma audição mais musical, em que, nas
passagens mais ricas artisticamente, no musical em si, chamam cada vez mais a atenção do
público. “Aqui, portanto, o compositor e o público estão a um passo de se libertar
inteiramente do conteúdo das palavras e de manejar e desfrutar a música por si mesma como
arte autônoma.” (Est, III, p. 336) Nessa época, os concertos, as sinfonias e as sonatas já são
formas expressivas de música. Hegel divide essa seção em três partes.
Primeiro, é a própria música instrumental que será autêntica esfera de independência
do musical. São os solos e os grupos. O canto, como órgão adequado para expressar a
subjetividade, quando sem palavras, adquire autonomia. Hegel exclui o canto na música
instrumental: ele opta por um sentir mais geral.
Segundo, a questão principal permanece sendo os movimentos próprios da música,
que aqui Hegel expressa de forma comedida, o que mostra seus limites de conhecimento em
relação ao formal musical.166 Percebe-se, na linguagem de Hegel sobre a música, uma
inocência167 em seu discurso sobre esse âmbito do formal.168
Assim, ele distingue dois tipos de ouvintes que se diferenciam de modo especial: os
diletantes e os conhecedores. Na música instrumental, ele vê o leigo como aquele que “ama na
música basicamente a expressão compreensível dos sentimentos e das representações, o que é
165 “O curso e a espécie da expressão, a unidade e o desdobramento de sua obra, a execução de um pensamento principal e uma inserção e ramificação episódica de outros etc.” (Ibidem, p. 336) 166 “Mas nesse âmbito sou pouco versado, e por isso, devo me desculpar de antemão se eu apenas me restringir aos pontos de vista mais universais e às observações mais isoladas.” (Ibidem, p. 281) 167 “Hegel, talvez precisamente por seu distanciamento da música absoluta, cujos produtos mais significativos sempre são, além de tudo, esotéricos, expressou com cautela, como conseqüência de seu repúdio à estética kantiana, um conceito que é essencial para a música. O núcleo de sua argumentação, não desprovida de divertida ingenuidade, ilumina um elemento decisivo neste abandono da música à sua peculiar imanência, como está obrigado a fazê-lo por sua própria lei de desenvolvimento, e pela perda das ressonâncias sociais.” ADORNO, 2002, p. 23) 168 “As idas e vindas puramente musicais, as entradas e as saídas musicais dos movimentos harmônicos e melódicos, o prosseguir fluente, incisivo ou leve, que interfere profundamente, é mais pesado e encontra obstáculos, a elaboração de uma melodia segundo todos os lados dos meios musicais, a concordância artística dos instrumentos em seu ressoar conjunto, sua sucessão, sua alternância, sua procura, encontro, etc.” (Est, III, p. 337)
130
do tipo material, o conteúdo, e, por seguinte, voltar-se de preferência para a música de
acompanhamento” (Est, III, p. 337). Já o ouvinte conhecedor é a
quem são acessíveis as relações musicais interiores dos sons e dos instrumentos, ama a música instrumental em seu emprego artístico de harmonias [...] ele é preenchido inteiramente pela música e possui o interesse mais preciso de comparar o que ouve com as regras e leis que lhe são familiares. (Ibidem, p. 337)
Ele aponta para o ouvinte atento como aquele que mais se interessa pela música
autônoma, que aprecia melhor a obra por ter conhecimento do material da música. Há uma
fruição mais racional em Hegel, se atendo para as discussões da estética musical, que aqui é a
questão da relação entre harmonia e melodia. Assim, o ouvinte pode julgar bem e desfrutar
melhor a obra. Hegel afirma ainda que novos gênios desconcertam os ouvintes – supomos
Beethoven em seus últimos quartetos, principalmente a Grande Fuga – Opus 133.169
Nesse estágio, de relação com a obra de arte, a obra se torna simbólica. Ele lembra que
o que este ouvinte achará de mais objetivo na obra ainda lhe é enigmático.
Com relação ao compositor, ele pode tanto introduzir na obra “um significado
determinado, um conteúdo de representações e sentimentos e seu decurso articulado e
fechado” (Ibidem, p. 338), quanto interessar-se pelo que há de espiritual em tal arquitetura.
Para se buscar esse espiritual, a composição não necessita ser constituída de consciência
profunda da formação e do ânimo. Ele fala que o compositor dá a mesma atenção aos dois
lados, tanto à expressão de um conteúdo, certamente mais indeterminado, quanto à estrutura
musical, dando-lhe liberdade para bem compor os aspectos melódicos, harmônicos,
contrapontísticos, etc. Pelo vazio de matéria, que é a música, ele vê os compositores como “os
homens mais inconscientes, mais pobres de matéria” (Ibidem, p. 338).
Terceiro, como princípio universal desse estágio, a subjetividade em sua criação tem
que ser plena. Para ele, as leis necessárias não podem entravar o processo criativo do
compositor. Um conteúdo teórico já afirmado por si mesmo irá também sempre jogar contra o
arbítrio e deve manter um espaço de jogo flexível. A subjetividade pode criar a seu bel-
prazer.170
169 “Embora aqui a nova genialidade inventora do artista também possa levar o conhecedor com freqüência a apuros, que justamente não está acostumado a estes ou aqueles avanços, transições etc. Quando o ouvinte mais diletante começa a procurar na música representações mais determinadas e um conteúdo mais preciso.” (Ibidem, p. 337) 170 Ter seu “arbítrio subjetivo – com suas idéias, caprichos, interrupções, troças ricas de espírito, tensões ilusórias, mudanças bruscas, saltos e repentes, prodígios e efeitos inauditos (pode ele) diante do curso firme da
131
Na execução artística, sendo a música de acompanhamento ou autônoma, o autor da
sua execução artística ou se dá por satisfeito com a obra dada, ou explora ao máximo as
possibilidades de composição; extrai a expressão, a execução, a autêntica animação, não
apenas da composição disponível, mas principalmente dos próprios meios, não sendo assim
apenas reprodutiva. Hegel, por sua vez, divide essa seção em outras três partes.
Primeiro, uma composição de consciência objetiva, em que o compositor colocou em
sons o sentimento próprio da obra, resultando em uma execução objetiva. Nesse tipo de
execução, o executor não acrescenta notas à composição, ele é apenas intérprete. Lembra o
autor que “nesta obediência, todavia, ele não deve por outro lado, como ocorre com
frequência, se rebaixar como mero artesão [Handwerker], o que apenas é permitido ao tocador
de realejo” (Est, III, p. 339).171 Hegel duvida que na manifestação do realejo haja arte. Assim,
cabe ao executor, que se difere do tocador de realejo, não ser apenas um “autônomo musical
que apenas repete uma mera lição e retoma mecanicamente o que é prescrito” (Ibidem, p.
339), e sim, animar a obra com a alma que ali o compositor depositou. A virtuosidade de tal
execução permite ao músico resolver as dificuldades técnicas da obra, permitindo ao
intérprete caminhar com liberdade. A genialidade do intérprete apenas permite trazer à tona a
intensão espiritual do compositor.
Segundo, ele aponta para uma execução mais livre, onde já “predomina a liberdade e o
arbítrio subjetivo pelo lado do compositor e em geral tem de ser procurada menos uma
consistência completa na expressão e em outro tratamento do melódico, do harmônico, do
característico, etc” (Ibidem, p. 340). Aqui o artista “completa o que falta, aprofunda o que é
superficial, anima o que é mais destituído de alma e, deste modo pura e simplesmente,
aparece autônomo e producente” (Ibidem, p. 340), e não apenas realiza a mera execução do
que está dado. No canto gregoriano, havia a notação “neumática”, que era imprecisa em altura
e duração; eram pontos de referência, onde as notações são lembretes para o cantor. Na
música barroca, a liberdade de improvisação se dava no baixo contínuo.172 Era comum
compositores como Bach e Händel improvisarem obras inteiras, principalmente em
cerimônias religiosas. “A partir do classicismo, os compositores começam a buscar um maior
expressão melódica e do conteúdo do texto da música de acompanhamento, também se torna um mestre sem amarras.” (Ibidem, p. 338) 171 Percebemos que Hegel diminui a importância da execução do realejo, comum em festas mais populares. 172 “A liberdade de ornamentação nas linhas melódicas permaneceu e o intérprete tinha grandes possibilidades de variações nas repetições das primeiras partes das árias da capo.” (ROCHA, 2001, p. 11)
132
controle de suas obras, o que é evidenciado pelo aumento de ornamentos escritos na
partitura.” (Ibidem, p. 11)
Há obras em que o próprio compositor deixa a cargo do intérprete compor a execução,
completar o que falta com elementos que valorizam uma nota ou uma passagem, como, por
exemplo, nas óperas italianas, onde o cantor, ao pôr ornamentos, torna-se autônomo. Isso
torna o intérprete, no que diz respeito à declamação, mais livre: ele se torna mais livre diante
do conteúdo particular das palavras.173 É seu genius musical autônomo. É um produzir
artístico efetivo, em que a alma do artista que repousa sobre si mesma se entrega à execução,
à obra. Esse movimento da parte do compositor – de dar essa liberdade ao intérprete – ao
mesmo tempo aumenta o compromisso deste com a obra.174
Terceiro, em se tratando de instrumentos musicais que não a voz humana, quando
tocados de modo virtuoso, fazem desaparecer a exterioridade dos instrumentos, uma vez que a
música é movimento e atividade interior. Sendo assim, “a exterioridade dos instrumentos
desaparece de todos, se a música interior penetra inteiramente na realidade exterior, então o
instrumento aparece nesta virtuosidade como um órgão próprio completamente formado da
alma artística” (Ibidem, p. 340). A execução mais elevada é quando o intérprete introduz no
instrumento toda a sua alma, o que requer um domínio técnico do exterior, e coloca para fora
a liberdade interior sem entraves. Assim,
torna mesmo o que é barroco desfrutável em invenções. [...] Nesta espécie de execução desfrutamos o topo máximo da vitalidade musical, [...] um instrumento exterior se torna um órgão completamente animado, e temos [...] o conceber interior assim como a execução da fantasia genial em penetração a mais instantânea e a vida a mais evanescente. (Ibidem, p. 341)
173 Tal executar mais livre “torna um fluxo melódico livre da alma que se alegra por ressoar por si mesma e por se elevar às suas próprias asas” (Est, III, p. 340). 174 Olivier chama a atenção para o elemento de improviso visto por Hegel em Pagannini.
133
4. CAPÍTULO III: A DIALÉTICA MUSICAL
Pela primeira e única vez na história, a filosofia é antecipada pela música: de fato a
formulação dialética do bitematismo na forma-sonata de Beethoven é exatamente igual ao
processo hegeliano. (MAGNANI, 1996, p. 358)
Neste terceiro capítulo, nosso propósito é mostrar como se dá a lógica da dialética em
uma peça musical, bem como sua relação com a tonalidade. A forma sonata chega à
maturidade em Beethoven,175 que, explorando sua lógica interna, leva ao ápice suas
especificidades artísticas. A nossa intenção é mostrar que temos na lógica da forma sonata a
expressão da dialética de Hegel, que propõe a superação de uma tensão e um retorno a si
mesmo. Queremos mostrar que a lógica da forma sonata expressa bem a superação de uma
tensão. Segundo Schoenberg,
o conceito de sonata implica um ciclo de dois ou mais movimentos, com diferentes características. A grande maioria das sonatas, [...] desde os tempos de Haydn, utilizam este princípio estrutural. Contrastes de tonalidade, andamentos, compassos, forma e caráter expressivo distinguem os vários movimentos entre si. A unidade é garantida pelo relacionamento entre as tonalidades empregadas (o primeiro e último movimentos intermediários estão relacionados com essa tônica) e pelas relações motívicas. (SCHOENBERG, 2008, p. 241)
Segundo ele, antes, os movimentos eram em um mesmo tom, ou, no máximo, indo
para sua relativa menor. Os mestres vienenses introduziram outras tonalidades em
movimentos intermediários. Na exposição e no desenvolvimento, ocorre a instauração de um
conflito entre forças opostas, a saber, a região tônica e a dominante; “as afirmações dos temas
principais e secundários são contrastantes, mas afins; uma transição os conecta, mesmo nos
casos mais simples; uma oposição clara de caráter auxiliar a distinguir os vários temas”
(Ibidem, p. 244). São choques entre forças distintas, contrapostas, que se efetivam na tensão.
Na síntese da forma sonata, os temas concretizam as regiões tonais, onde há um retorno a si
mesmo.
175 “Da posição de Beethoven [...] só restaria acrescentar que a sofrida humanidade, a força comunicativa e a teleologia otimista de toda a sua dialética musical, abrindo os horizontes da fé e da esperança, asseguram-lhe um lugar imperecível no coração de todos os homens de boa vontade.” (MAGNANI, 1996, p. 367)
134
Mostraremos como a tonalidade e suas variações, enquanto retorno a si mesmo,
caracterizam um conceito formal universal, bem como sua relação com o particular e o
singular. Essas três instâncias – o universal, o particular e o singular – por sua vez, estão
contidas no conceito. Na forma sonata, o conceito é formal.
O conceito, neste sentido, é
o Universal que, por um lado, se nega a si por meio de si mesmo para a determinidade e particularização, mas que por outro lado, igualmente supera esta particularidade enquanto negação do universal. (...) ele restabelece no particular sua unidade consigo enquanto universal (...) a nenhum absolutamente outro e, por isso restabelece no particular sua unidade consigo enquanto universal. (Est, I, p. 124)
Em seu outro, o conceito formal da música permanece unidade autodeterminada como
unidade afirmativa que se refere a si. Ele é a verdadeira singularidade “enquanto a
universalidade que apenas se une a si mesma em suas particularidades” (Ibidem, p. 124).
Nessa análise da dialética hegeliana, o universal, que aqui, na sua particularidade, é a
forma sonata, nega-se por ser uma partitura particular (obra), mas supera essa particularidade
como negação do universal e restabelece no particular sua unidade consigo mesmo, enquanto
universal, pois os conceitos de tonalidade estão presentes na obra. Essa manifestação do
universal no particular dá à forma sonata um caráter de verdadeira singularidade. A tonalidade
(universal) na peça (seu outro) permanece em unidade como autodeterminação que se refere a
si mesmo. Ele se une a si mesmo em suas particularidades.
Para que haja essa relação dialética entre universal e particular, é preciso o movimento
temporal, que é próprio da música como arte particular. Assim, na relação temporal da música
é que existe o ponto em movimento dialético. Esse movimento primeiro se dá no próprio
movimento das notas, temporal, uma após a outra. Soa uma nota que perde frequência e
desaparece, porém, logo em seguida, soa outra e assim sucessivamente, compondo uma
melodia. Essa melodia possui um caminho que é regido pelas leis da harmonia, ou seja,
repouso, tensão e resolução. Tal relação, por sua vez, é dialética.
Aqui nos deparamos com o problema da música, por não possuir palavra e de ter como
material sensível o som, que é etéreo, por isso Hegel a denomina de duplamente negativa. A
música toca o homem não no entendimento, mas sim nos sentimentos; ela toca na
interioridade subjetiva. O que dela nos toca é o seu formal [Gestalt]. Quando ouvimos uma
música, não somos motivados por conceitos, e sim por relações entre as notas – são questões
puramente formais. Ciente desse problema, nesta dissertação, temos a pretensão de afirmar
135
que a música instrumental é negativa em relação à palavra. Há conceitos na estrutura de seu
formal. Hegel trata do formal da música [Gestalt], que é onde se encontra a relação da
tonalidade: é esse o ponto aqui explorado, mas reforçamos haver nesse formal uma estrutura
dialética.
A música nos toca os sentimentos, nossa interioridade subjetiva e somos por ela
comovidos. Estamos analisando o que no constructo da obra move os sentimentos. É através
da análise formal de uma peça que entendemos o que na música nos toca. Esse é o nosso
objeto. Por mais que para Hegel, nesse formal, não surja um Conteúdo, e por isso ele chama a
música de duplamente vazia, nós, contemporâneos, damos a devida importância à estrutura
formal de uma peça musical. Esse formal está em estreita relação com a sociedade, pois diz de
suas contradições e de suas relações históricas. Em Hegel, isso já acontece, o sistema tonal,
assim como o Estado, abrange as particularidades, que com ele se identificam. Como já
vimos, ser livre não é negar o necessário, e sim identificar-se com ele. Assim, tanto o cidadão
livre irá se identificar no Estado como a melodia livre irá se identificar com as leis da
harmonia. Segundo Hegel “o que é direito deve vir a ser lei para adquirir não só a forma de
sua universalidade, mas também a sua verdadeira determinação” (HEGEL, 1997b, p. 186). O
que é direito define-se para a consciência pelo pensamento. É a lei. As leis devem constituir
um todo acabado e fechado, um sistema, que deve ser apresentado independente da sua
aplicação.
Está em questão a beleza do formal na música. É a regularidade como “repetição igual
de uma e mesma forma determinada que fornece a unidade determinante para a forma”
(Ibidem, p. 147).
Segundo Bourgeois, “é eterno o ser considerado em seu sentido, naquilo que, deste,
pode ser expresso no saber conceitual” (BOURGEOIS, 2004, p. 198). A música, sendo uma
criação artística, só pode ser se for manifestação do sentido da Ideia (tonal) no elemento da
imediatidade, da exterioridade, no qual a Ideia “espalha as determinações dela nessa alienação
de si mesma que é a natureza, uma natureza que ela se pressupõe para nela se reconstruir, em
sua identidade consigo ou sua interioridade a si, enquanto espírito” (Ibidem, p. 198). Mas a
arte não é a forma mais ideal de expressão do absoluto. A música como arte faz parte do
espírito absoluto, mas é sem conceito: ela toca o ser nos sentimentos, mas isso só é possível
porque ela possui uma estrutura dialética em sua forma. É desse formal na música que aqui
tratamos. A partir disso, da importância da forma na música que gera sentimentos no ouvinte,
136
que esse capítulo se propõe mostrar a relação dialética no formal da música. É justamente essa
relação dialética presente na tonalidade que leva o ouvinte ao absoluto.176
A questão é que Hegel não abre mão do conceito. Na Fenomenologia do Espírito, é a
filosofia que melhor esclarece o espírito; nos seus Cursos de Estética, é a poesia que melhor
conduz ao espírito absoluto. Portanto, o conceito é condição para o progresso do espírito.177
Cabe aqui também expormos a perspectiva de Olivier em seu livro Hegel et la
musique.178 De inspiração adorniana, ele vê uma correspondência entre a forma sonata179 de
Beethoven e o movente próprio ao pensamento hegeliano, ou seja, a tripartição dialética entre
tese, antítese e síntese. Para ele, haveria um encontro perfeito: de uma parte o ritmo do
pensamento hegeliano, de outra, a estrutura da forma sonata, todavia para Guilles Dullong,
um crítico da ideia de música dialética de Olivier, é extremamente perigoso um tema como a
dialética hegeliana, “espinha dorsal de todo um sistema”180 entrelaçar-se com o formal
musical. É um mal entendido “crer que a dialética hegeliana é somente uma ‘forma’, sendo
que para Hegel, ela é o movimento mesmo da realidade”.181 Para ele é uma redução
interpretar a música como dialética, pois do ponto de vista hegeliano, é inadmissível que a
música pudesse ser pensada com palavras. O compositor pode estar interessado apenas na
estrutura musical de seu trabalho e na riqueza espiritual de sua arquitetura. Cabe ao
compositor, por um lado, o vazio do conteúdo e, por outro, a estrutura musical. 182
176 Em Hegel, tal apreensão do absoluto via música é histórico. 177 Em movimentos futuros, como em Adorno, a expressão musical é que terá valor, mas ele está justamente criticando a dialética hegeliana, a lógica abstrata. Nessa discussão, para Hegel a expressão musical não tem a importância que ela terá, por exemplo, para Adorno. O que para Hegel é a base de sua dialética, isto é, a lógica abstrata, para Adorno se torna a lógica “decadente”. 178 Disponível em: http://www.entretemps.asso.fr/Samedis/Olivier.htm. Acesso em: 09 nov. 2010. 179 “Poderíamos afirmar que foram o gênero e as formas da Sonata o elemento de continuidade de toda a música instrumental, desde o barroco até os nossos dias. Em virtude daquela forma, tão lucidamente racional e, ao mesmo tempo, tão intensamente dialética.” (MAGNANI, 1996, p. 148) 180 Disponível em: http://www.entretemps.asso.fr/Samedis/Olivier.htm. Acesso em: 09 nov. 2010. 181 Disponível em: http://www.entretemps.asso.fr/Samedis/Olivier.htm. Acesso em: 09 nov. 2010. 182 Para um crítico dessa relação, entre Hegel e Beethoven, chamado Vincent Estanek, não podemos fazer uma exploração filosófica da forma sonata em Hegel. Cabe saber se a estrutura da forma sonata corresponde à tradução da dialética hegeliana. Para ele, Hegel não considerou a Forma [Form] como uma aposta em forma [Gestalt] exterior. Aqui ele se mostra contrário a uma valorização do formal [Gestalt] enquanto próprio de possuir uma estrutura dialética. Não seria possível transpor a estrutura dialética do Formal [Form] para o formal [Gestalt]. Para ele, Hegel não teria conhecimento necessário para explorar a forma [Gestalt] sonata beethoviana. Para Estanek, a visão de Olivier dá mais importância à música que o próprio Hegel. Para Estanek, insistir no canto da música é insistir na presença de uma subjetividade assentada acima da articulação do conteúdo. Para ele, a música não carrega um testemunho de um conceito e nem teria a precisão de um conceito.
137
4.1. Olivier: Hegel e a música de sua época. Relação dialética entre Hegel e
Beethoven.
A partir das reflexões de Olivier, estamos nos aproximando do tema dessa
dissertação, que é o de relacionar a dialética hegeliana com a tonalidade, que aqui está
presente na forma sonata de Beethoven. Nosso objetivo é, a partir da discussão acerca da
recepção dos pensadores e músicos da estética de Hegel, mostrar como é pertinente nossa
tentativa de aproximação entre filósofo e músico. Estamos construindo nosso argumento a
favor dessa aproximação: queremos mostrar que é a partir da lógica que teremos essa
aproximação.
Olivier, em seu livro Hegel et la musique, traça um perfil da música na Alemanha
romântica, onde se encontrava Hegel. Segundo ele, Beethoven foi conhecido na Alemanha,
mais precisamente Berlim, em 1820 – ano em que Hegel elaborava suas ideias acerca da
estética. Foi Adolf Bernard Marx, jovem amigo de Mendelssohn, quem escreveu uma das
primeiras biografias oficiais e a primeira análise de música de Beethoven, além de fundar o
jornal Allgemeime Musikalishe Zeitung, jornal que Hegel tinha em sua biblioteca. Adolf B.
Marx também mostrou que Moritz Hauptmann, um dos pais da musicologia na Alemanha,
inspirou-se diretamente em Hegel, a partir das notas do Cursos de Estética. A partir disso,
surge toda uma filiação ligada à teoria do fim da arte, geração essa que levou a sério a teoria
da “Morte da Arte” de Hegel e, segundo Olivier, mais a sério que o próprio Hegel. Essa
geração, indo contra o prognóstico hegeliano, diz, de uma forma muito modernista, que a
música evoluiu até Beethoven, chegando a seu ponto de culminação, não possível de ser
ultrapassado. Ele a esgotou. A partir dele, não se pode ir além. A música chegou a seu ponto
de organicidade suprema.
Para Olivier, esses musicólogos tiveram uma boa recepção da obra estética musical de
Hegel e buscaram suas categorias lógicas, ou seja, logicisar o discurso musical utilizado por
Hegel.
Coloca-se a questão a Olivier, se ele não estaria vendo a relação entre Hegel e
Beethoven ao modo de Adorno ver a música de Schoenberg. Desta forma, Hegel não
conseguiu ver em sua época a racionalidade estética presente na obra de Beethoven, como
Adorno viu em Schoenberg. Eis a questão: Hegel não teria a consciência dessa
138
contemporaneidade entre música e filosofia, não reconhecendo no formal musical a
possibilidade de uma dialética, de aproximar Beethoven de sua estética, o que demarcaria o
espírito de sua época [Zeitgeist]. Beethoven estava mais próximo de seu pensamento do que
ele achava, porém, para ele, tal racionalização dialética, na forma sonata, já é o próprio fim da
arte. O máximo que Hegel desenvolve é o retorno a si mesmo em sua estética.
Para Olivier, nesse cenário alemão onde Hegel vivia, Rossini, com a improvisação do
canto italiano, e Paganini, com o virtuosismo, tornam-se fenômenos musicais para Hegel. No
virtuosismo, é como se o instrumento passasse a fazer parte do instrumentista, tornando-se o
próprio órgão vivo do artista, onde o instrumento torna-se um corpo animado. Cria-se um
corpo coletivo (sendo que, antes de conhecer Paganini, Hegel criticava o virtuosismo). Olivier
chama a atenção para a estética de Hegel, na qual está em questão a relação com o conceito,
como forma mais espiritual de arte. Assim, Olivier analisa que para Hegel seria a presença
viva do conceito na música a Forma de uma arte mais ideal. O problema de ter a presença
viva do conceito na música através do vocal não é uma característica da música de Beethoven.
Para Olivier, ou Hegel elegeu Rossini para fazer música conceitual, ou Hegel e Beethoven
não puderam se conhecer.
E há razão em dizer que a contemporaneidade de uma música e de um pensamento filosófico não passe necessariamente pela pressa de consciência dessa contemporaneidade entre música e filosofia – ele questiona se será então autorizado a nós, a modo de Adorno ou desde Hotho, o editor de Hegel, que quis integrar Beethoven à sua estética, a fazer esta aproximação e a se perguntar qual é o espírito do tempo (Zeitgeist) que está em jogo e em qual medida Hegel não teria se enganado não percebendo que Beethoven certamente estaria mais próximo de seu pensamento. (OLIVIER, 2004, p. 35)
4.2. Hegel e Beethoven: a lógica como base para o sistema tonal e para a dialética.
Às luzes de Olivier, queremos sugerir como a música pode mostrar as contradições
sociais históricas. Se a tonalidade, aqui na forma sonata, expressa bem a relação de
negatividade com as dissonâncias e de retorno a si mesmo com a tônica, então a lógica
hegeliana, que é a mesma seja para pensarmos o indivíduo no Estado como particular no
universal, seja para pensarmos a música, nós dá essa legitimidade em nosso discurso acerca
da relação entre tonalidade e dialética. Percebemos que no interior da lógica da tonalidade há
sintomas da sociedade, pois a lógica é a mesma. Para Hegel, a lógica é universal e real.
139
Olivier centra a discussão na forte relação que há entre a dialética hegeliana e a música
de Beethoven, principalmente as sonatas. Para ele, está em questão se a música é uma forma
de pensamento: “minha tese é a de que há uma ligação muito forte entre a dialética hegeliana
e a forma sonata beethoviana.” (Olivier, 2004, p. 36) É através da ideia de recapitulação e de
retorno à identidade que Olivier vê essa aproximação. É o princípio da tonalidade. Para ele, se
Hegel tivesse conhecido a música de Beethoven, ele não a aprovaria, pois ele vê a música
com uma forma vazia, sem conceito, portanto impossível de se retirar conhecimentos
filosóficos. A música possuiria uma evolução lógica, mas não conceitual e seu Formal é
vazio.
Olivier vê Hegel como um filósofo que ama a música, contudo que não é músico.
Mesmo assim, ele buscou relacionar a música ao seu sistema.
Olivier reconhece o problema de se relacionar dialética e tonalidade, pois se corre o
risco de crer que a dialética de Hegel seja somente uma forma, sendo que, para Hegel, ela é o
movimento mesmo da realidade. Nesta dissertação, pensamos que a lógica pode sim sustentar
a tonalidade, mas enquanto um momento do espírito, pois a arte, e especificamente a música,
em Hegel, é parte de um processo evolutivo – é um momento, em que ela será superada. A
arte não é a forma mais ideal de expressar os mais altos interesses do espírito.
Para Olivier, em uma sonata, o trabalho do negativo é principalmente operado pelo
conflito tonal, em que o momento da retomada do tema é o momento da reconciliação, da
identidade e da diferença. Aqui ele, dentro do pensamento de Hegel, assume as dissonâncias
como negativo. A recapitulação do tema guarda em si os momentos anteriores, memórias de
antigas tensões e movimentos, que são as alteridades. É a negativa em um retorno a si mesmo.
O trabalho do negativo é a dissolução do material temático, onde haverá uma redução das
unidades em um todo. Olivier levanta a questão de expandir a relação dialética e tonalidade a
outros compositores da época, uma vez que a questão é o trabalho do negativo e o retorno a si.
Partindo do princípio da possibilidade de estabelecer essa relação dialética do formal
[Gestalt] na música em Hegel, veremos como se articula essa relação entre dialética e
tonalidade.
140
4.3. Conceito abstrato: a estrutura tonal enquanto lado abstrato ainda não
efetivado no fenômeno musical.
Nosso objetivo é mostrar que na música há um Conceito verdadeiro e formal [Gestalt]
de tonalidade que existe na forma de entendimento ou lado abstrato. A pintura, como arte
espacial – um do lado do outro –, é superada pela música, que é arte temporal, o um depois do
outro. Aqui, esse pontual temporal existe, mas ainda não como efetivado, e sim no puro
entendimento, abstrato, como em um livro de harmonia (como o de Schönberg, por exemplo).
Ele é um conceito abstrato. Ainda não foi dado movimento a ele. Aqui defendemos a
possibilidade de falar em Ideia articulada em conceitos formais.
No princípio, era o silêncio. Havia o ponto em repouso, como superação da
bidimensionalidade da pintura. A tonalidade encontra-se como conceito, contudo não ainda
como ideia, efetivação. Segundo Bourgeois,
com efeito, se a duração é a identificação a si sempre a reiterar da diferença temporal pressuposta como real, a eternidade é a identidade a si originária de uma diferenciação dela mesma, portanto desde o início idealizada nela. Eis por que a eternidade não deve ser compreendida como pressupondo o tempo, como aquilo que, por seu sentido, remeteria, mesmo negativamente, ao tempo, por uma espécie de abstração, e menos ainda como aquilo que ultrapassaria o tempo no tempo, como o porvir do tempo. (BOURGEOIS, 2004, p. 197)
Segundo Lebrun, é “o conceito hegeliano [...] como tema discursivo, não
epistemológico” (LEBRUN, 2006, p. 333). Está em questão o discurso musical enquanto
relação tonal. Não há fenômeno até então; não há tempo efetivo, e sim conceito formal. Não
há o elemento temporal para ser ocupado pelo fenômeno, pois a efetividade pertence ao
tempo. “Precisamente ali onde o Singular parece prestes a ser a mostra do Universal, ele
permanece, portanto, a pequena amostra deste último: o movimento das significações ainda
permanece fixado numa hierarquia das instâncias.” (Ibidem, p. 334)
A negação é a efetivação do conceito, é sua negação como outro de si mesmo; sua
natureza é diferente do conceito, mas seu conteúdo é o próprio conceito. “O conceito
permanece como a alma que mantém o Todo reunido e só chega por meio de um movimento
imanente à sua própria diferenciação.” (Ibidem, p. 339) Há sim o processo, como síntese do
ser e do nada. Em Hegel a verdade é vista como processo, e a música, como possuidora de um
conteúdo verdadeiro, também constitui um processo. Ela é fenômeno como efetivação do
conceito. O conceito, por sua vez, não pertence ao tempo. “A eternidade, na medida em que é
141
‘absoluta ausência de tempo’, difere radicalmente da duração. Enquanto a duração é uma
supressão relativa do tempo.” (LEBRUN, 2006, p. 339) Portanto, a eternidade, é uma
“duração infinita, isto é, não relativa, mas refletida nela mesma” (BOURGEOIS, 2004, p.
197).
Aqui entendemos eternidade como esse momento conceitual, sendo que
o tempo em seu sentido geral, o próprio tempo é, em seu conceito, eterno, porque o tempo, não um tempo qualquer, nem o agora, mas o tempo como tempo é seu conceito, e por essa razão, também um presente absoluto. (Ibidem, p. 198)
O homem é do tempo, mas ele participa do conceito, do espírito, do racional: “a
subjetividade é antes de tudo a propriedade do conceito enquanto produção de si”
(KERVÉGAN, 2005, p. 49). Hegel privilegia o tempo por ser próprio também da
subjetividade do espírito onde “o eu é no tempo, e o tempo é o ser do sujeito mesmo” (Est, III,
p. 294). No conceito, não há tempo efetivo, não há ideia, que é o conceito mais a sua
efetividade. A música já está no conceito como sistema, mas não como efetividade,
fenômeno. Ela já existe em seu conceito. Ela já é em si, mas é preciso o momento do
fenômeno para Hegel.
Tal movimento é dialético, “um movimento pelo qual realidades novas se explicitam,
se deduzem, graças à contradição, a oposição que existe na realidade anterior” (NÓBREGA,
1974, p. 32). Essa realidade anterior é, enquanto ideia, no caso da música, a tonalidade
absoluta ao reger o todo do sistema. A tonalidade é, enquanto criação humana, um conceito
ordenado, por isso Hegel valoriza o Gestalt (forma-figura).
Nesta seção, a proposta é analisar a música partindo da ideia de que a nota musical é o
pontual temporal que se supera consecutivamente como um-depois-do-outro, contudo que se
mostra como o mesmo, que é a própria composição musical como manifestação do absoluto,
onde
as categorias anteriores são pressuposto para as posteriores apenas enquanto categorias que se suprassumem; estas, em contrapartida, expressam explicitamente aquilo que aquelas já pressupunham implicitamente. Neste sentido, pode-se dizer que, no plano do conteúdo, as categorias posteriores pressupõem as anteriores (com efeito, elas são mais complexas do que estas), porém no plano pragmático as anteriores sempre já pressupõem as posteriores. (VERLANG, 2007, p. 233)
Após a breve exposição do conceito abstrato, dá-se sua efetividade.
142
4.3.1. O movimento e a particularidade: é dado movimento ao ponto.
Nosso objetivo agora é mostrar como se dá a efetividade de um conceito abstrato
formal e como esse conceito se realiza em sua efetividade: eis o belo artístico como efetivação
da ideia.
Dá-se o movimento a este ponto, que se faz som, a saber, a música em movimento e
em efetividade. São notas que ecoam e se esgotam, eis a existência temporal das notas. Tal
temporalidade exige um esgotar-se e um reinício das notas. A superação das notas está no
movimento dos sons, um após o outro, sendo que eles estão relacionados entre si. Uma vez
que as notas estão em sucessão e relacionadas, elas se organizam em um sistema. Em Hegel,
há a beleza exterior da forma abstrata e a unidade abstrata da matéria como sistema. A beleza
da forma abstrata é a regularidade, a conformidade, as leis e a harmonia. Eis a beleza como
unidade abstrata da matéria sensível. Nisso reside o belo artístico do sistema tonal em Hegel.
A lógica surge como “lógica do processo (formal) do significado (material), logo (...)
uma lógica da verdade que procura enunciar a configuração do ser na totalidade”
(KERVÉGAN, 2005, p. 73). Tal pensamento dialético e especulativo tem como ciência a
lógica. O pensamento dialético em Hegel é o modo mais elevado de se apreender o ser
absoluto, diferenciando-se das “representações” que são a “relação imediata com o aí-
imediato” (Ibidem, p. 74). Ao contrário, esse pensamento dialético é o conhecimento. Tal
conhecimento primeiro é entendimento, que ensina o finito a “olhar o negativo de frente. (...)
Sobrepujar a relação de exterioridade que aparece entre o ser e o logos, elevar a consciência
ao conceito, tal é o propósito dessa introdução especulativa à especulação que é a
fenomenologia” (Ibidem, p. 74). “É no ato livre do pensamento colocar-se na perspectiva
onde ele é para si mesmo (chegando ao) conceito do conceito (essa perspectiva, a do saber
absoluto), é o resultado último (do último) círculo voltando a si mesmo.” (Ibidem, p. 74) A
história científica da consciência “é a reconstrução ideal do caminho que a conduz ao saber”
(Ibidem, p. 75).
Partindo do princípio de que é possível levantarmos uma dialética da forma na música,
em Hegel, é no movimento das notas que estão suas relações. A música estará em seu sistema
seguindo uma relação dialética. A teoria como regra tonal é o conteúdo abstrato na música,
como o próprio movimento do conceito, mas como Ideia ele dirige-se para a particularidade,
tornando-se singularidade. A peça musical é o momento do particular, do absoluto concreto,
143
que contém o verdadeiro tonal como conteúdo. Sua base são as relações de repouso,
distanciamento, tensão e resolução, que é o próprio sistema dialético exposto na música como
ordenação do movimento das notas que se encontram em relações.
4.3.2. As partes singulares do conceito de belo artístico como exposição do
absoluto
Nosso objetivo é mostrar como se dá a relação entre ideia e sua configuração sensível.
“O conteúdo da arte é a idéia e sua Forma, que é a configuração sensível imagética.” (Est, I, p.
86) A questão está na mediação dos opostos. Deve haver a justa posição entre forma e
conteúdo, do contrário haverá uma arte ruim. Não adianta aqui uma ideia puramente prosaica,
como uma pá jogada no campo ou um som de um helicóptero, considerados obras de arte.
Para Hegel, ela seria demasiadamente prosaica, não tendo, ou não manifestando, um conteúdo
absoluto. Kervégan fala da lógica como uma ontologia conceitual, como uma doutrina da
verdade, que quer “trazer à consciência [o] trabalho próprio da razão da coisa” (KERVÉGAN,
2005, p. 76).
Assim, a música torna-se verdadeira com suas bases firmes, não das palavras, mas sim
de seu formal [Gestalt]: são suas regras de simetria, medida e forma, ou seja, a regularidade,
as conformidades às leis e à harmonia. Eis a beleza da forma abstrata.
No sistema tonal, há o movimento das notas regido pela relação de tensão e resolução.
“Todo verdadeiro do espírito como também da natureza é em si mesmo concreto e, não
obstante a universalidade, ainda possui em si mesmo subjetividade e particularidade.” (Est, I,
p. 86)
Hegel valoriza o Deus do cristianismo como configuração artística, pois é totalmente
concreto como pessoa, sujeito. Assim, a arte exige “concreção, porque a universalidade
apenas abstrata não possui em si mesma a determinação de progredir para a particularização,
para a aparição [Erscheinung] e para a unidade consigo mesma no conteúdo” (Ibidem, p. 87).
Mas ao mesmo tempo em que a arte cristã romântica caminha para o mais espiritual, ela se
distancia da justa adequação entre forma e conteúdo do período clássico. Segundo Peter
Szondi, Hegel confronta o formalismo kantiano, via discurso teológico-histórico, como um
confronto entre o cristianismo e o judaísmo. Trata-se de um debate sobre o humano e o
divino, o dominador e o dominado. Para Szondi, Hegel aponta o cristianismo como oposto ao
dualismo. “A figura de Jesus lança uma ponte sobre o abismo entre o homem e Deus, pois ele
144
encarna como filho de Deus e filho do homem, a reconciliação, a unidade dialética entre os
dois poderes. Da mesma forma, a ressurreição de Jesus faz dele a mediação entre a vida e a
morte.” (SZONDI, 2004, p. 39)
O concreto pertence tanto ao conteúdo quanto ao particular. Hegel vê a perfeição na
escultura grega através da forma humana, onde o exterior só existe para o nosso ânimo e
espírito. Há um Deus que está lá de forma efetiva e não apenas representado, que necessitaria
de um símbolo que o representasse. Por isso, o conteúdo e a forma artística estão figurados
reciprocamente. A natureza como tal não possui essa finalidade. “No entanto, a obra de arte
não é tão despreocupada por si, mas é essencialmente uma pergunta, uma interpelação ao
coração que ressoa, um chamado aos ânimos e aos espíritos.” (Est, I, p. 87) Ele diz que a arte
não é a forma mais ideal de expressar algo de mais espiritual; ela, “para ser natureza
verdadeira e racional não deve ser um pensamento unilateral, mas concreto, ou seja, possuir
uma forma adequada” (Ibidem, p. 88). Hegel impõe o limite da arte, o de usar a forma como
expressão, sendo que o ápice desse trajeto é o pensamento. Para o autor, a arte é o primeiro
estágio do espírito absoluto. Para ele, é um trajeto a ser trilhado, e este é o momento do para si
como consciência, dando-se conta de seu conhecimento. Ele, o humano, faz a arte para só ele
ver. Ver a arte é ver o espírito absoluto representado, onde as artes terão verdade.
A qualidade da obra está no grau de espiritualidade que a configuração artística
alcançou. Ela depende dessa justa adequação de expor uma ideia para a intuição imediata
numa forma sensível, numa correspondência dos dois lados. O espírito passa por estágios até
chegar ao verdadeiro conceito, que é o autodesenvolvimento desse conceito em configurações
artísticas, “em cuja forma o espírito, enquanto ser artístico dá a si a consciência de si mesmo”
(Ibidem, p. 88). Um movimento que é espiritual e universal, porque se configura
artisticamente às concepções de mundo abrangendo o natural, o humano e o divino que vão
aparecer nas artes particulares.
4.4. A ideia de belo artístico ou Ideal
Aqui veremos que o belo artístico é a justa adequação entre conteúdo e forma.
Hegel define a Ideia como aquilo que se configurou na efetividade, estando em
unidade com ela. Segundo Bourgeois, ao analisar a eternização formal do tempo,
145
a realização alienante do sentido total, da Idéia, é a afirmação de si desta, como eterna, no meio da exterioridade a si onde ela se contradiz, e do qual o tempo é uma dimensão fundamental; a Idéia, sendo a potência absoluta, faz então contradizer-se aquilo que a contradiz, de modo que o tempo é autonegação dele mesmo. Essa autonegação desenvolve-se na dialética, que faz passar progressivamente do tempo como tal àquilo do qual ele é a primeira existência, o primeiro ser-aí, isto é, ao conceito ou ao saber. (BOURGEOIS, 2004, p. 200)
Essa é a ideia como belo artístico, e não Ideia como tal, que é abstrata e não
objetivada.
O Ideal é a Ideia configurada segundo seu conceito. A Ideia tem que ser verdadeira. O
problema não é só do formal. Assim, “a deficiência de uma forma segundo a deficiência de
um conteúdo (...) Nesse sentido, quanto mais excelentes forem as obras de arte, tanto mais
profundas e interiores será a verdade de seu conteúdo e pensamentos” (Est, I, p. 90). Somente
na arte suprema essa correspondência entre Ideia e exposição irá se formar no sensível, onde a
forma se torna verdade em si e para si, pois ela é correspondente ao conteúdo que ela
expressa, e esse é verdadeiro. A totalidade concreta em si e para si é a Ideia determinada,
onde esta determinidade é ponte para o fenômeno. Aqui ele se refere à ideia concreta e não, à
abstrata, pois esta possui a forma ainda não posta por ela como algo exterior. Já a ideia
concreta é que produz a verdadeira forma, sendo que a correspondência de ambos é o ideal.
Teremos a forma sonata como exemplo de arte suprema: é onde se localiza a beleza, que é o
conceito em si mesmo concreto e absoluto, “é a idéia absoluta em sua aparição adequada a ela
mesma” (Ibidem, p. 108).
4.4.1. Ideia Absoluta
Chegamos à exposição do conceito de Ideia absoluta, que é espírito sem
aprisionamento, absoluto, universal e infinito. Esse conceito estabelece o que é verdadeiro a
partir de si mesmo, onde a natureza perante ele ocupa a “posição de ser posta por ele” e não
de ser seu limite. Hegel recoloca o sensível com relação ao espírito, no que diz respeito à
questão kantiana, tendo ele não como limite, porém como manifestação do mesmo, como seu
outro.
Na obra de arte, o espírito absoluto é percebido como diferença absoluta de si em si
mesmo, onde “o espírito tem a bondade de dar a este outro de si mesmo toda a plenitude de
sua própria essência” (Ibidem, p. 108). A obra é criada, justamente por ela ser
146
a Idéia na Forma de ser posta por meio do espírito absoluto como o outro do espírito (...) Sua verdade, portanto, é o próprio ponente [das Setzende], o espírito como a idealidade e negatividade, na medida em que ele de fato se particulariza e se nega em si mesmo, mas igualmente supera esta particularização e negação de si mesmo enquanto posta por ele e, em vez de possuir nisso uma fronteira ou limite, se une com o seu outro numa universalidade livre consigo mesmo. (Est, I, p. 108)
Eis a subjetividade do espírito, “esta idealidade e negatividade infinita” (Ibidem, p.
108). Na música, temos a lógica da tonalidade como este absoluto abstrato. Ela se
particulariza como obra, negatividade, mas é um outro de si mesmo. Uma obra verdadeira
para Hegel é aquela que bem se articula no sistema tonal.
A subjetividade do espírito é apenas em si a verdade da natureza. É preciso tornar seu
verdadeiro conceito para si mesmo e contrapor a natureza como outro posto por meio dele.
Ele precisa retornar. Não basta a natureza como ser outro, ele precisa do outro de si, a obra de
arte. Para isso, é preciso que “a visão, a consciência, a vontade e o pensamento (...) busquem
o infinito e o verdadeiro” (Ibidem, p. 109). Esse movimento é realizado pela racionalidade do
espírito. “O espírito apreende a própria finitude como o negativo de si e conquista, a partir
disso, sua infinitude. Essa verdade do espírito finito é o espírito absoluto.” (Ibidem, p. 109)
Aqui o espírito é negatividade absoluta. É preciso superar a finitude que está em si mesmo, é
o tornar-se para si mesmo, onde o absoluto torna-se objeto do espírito. Isso se dá pela
consciência alcançada, que lhe diz que ele é aquele que sabe, e se coloca como objeto
absoluto do saber.
É o próprio espírito absoluto, que para ser para si o saber de si mesmo, diferencia-se em si mesmo e, assim, põe a finitude do espírito, no seio da qual ele se torna objeto absoluto do saber de si mesmo. Assim, ele é espírito absoluto em sua comunidade, o absoluto efetivo como espírito e saber de si mesmo. (Ibidem, p. 109)
Para o autor, juntar-se com a arte é juntar-se com aquilo que lhe é próprio, como o
homem que encontra no Estado efetivação de sua própria essência.
Assim, o reino da bela arte é o reino do espírito absoluto juntamente com a religião e
com a filosofia. Na obra de arte, nada está presente que não tenha relação essencial com o
conteúdo e o exprima.
No sujeito, há primeiramente o conteúdo subjetivo. É preciso objetivá-lo. Essa
unilateralidade gera dor no sujeito, um negativo que precisa ser superado. É preciso a
realização do interior no exterior. “Passar por esse processo de contraposição, de contradição
147
e de solução da contradição é privilégio superior das naturezas vivas.” (Ibidem, p. 112) A vida
é justamente a superação da dor, da contradição; do contrário, ela sucumbe na contradição.
Tal paradigma dialético hegeliano é vivenciado na música na forma da dominante – tônica,
sendo a resolução tonal o verdadeiro. A verdade deve ser compreendida como um movimento,
como um desenvolvimento progressivo do verdadeiro, pois em Hegel a verdade está em devir:
“o verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu
desenvolvimento.” (NICOLAU, 2007, p. 133) Tal movimento é o verdadeiro. Essa
problemática se torna, para a música, uma rica investigação, pois trata da tonalidade como
conceito abstrato que, ao ser efetivado em obra, torna-se um universal concreto. Se a música
não possui conceito, o que ela tem como conteúdo formal é a própria tonalidade como
conteúdo abstrato e, na obra, o conteúdo concreto. Ela existe como conteúdo abstrato e como
conteúdo concreto, sendo que a obra manifesta o conteúdo espiritual – tonal e há uma justa
posição entre forma e conteúdo. A questão da tensão e da resolução é a sustentação da estética
musical do autor.
Estando a arte na mesma esfera da religião e da filosofia, elas se distinguem segundo a
Forma e pelo próprio conceito do espírito absoluto como espírito verdadeiro que é em si e
para si;
desse modo, não é um ser abstrato que se situa além da objetividade, e sim é a recordação [Erinnerung] da essência de todas as coisas no seio da objetividade, no espírito finito: a finitude que se apreende [sich ergreifend] em sua essencialidade e, com isso, é propriamente essencial e absoluto. A primeira Forma desta apreensão [Erfassen] é um saber imediato, e exatamente por isso sensível, um saber na Forma [Form] e na forma [Gestalt] do próprio sensível e objetivo, no qual o absoluto chega à intuição e sensação. A segunda Forma é a consciência que representa; a terceira é o livre pensamento do espírito absoluto. (Est, I, p. 116)
4.4.2. A arte e o saber imediato
Aqui perguntaremos qual é a forma de apreensão do absoluto realizado pela arte.
A primeira forma, a do saber imediato, é a da arte. Imediato porque é na obra de arte
como configuração artística que a consciência, primeiramente, conhece a verdade. Há na obra
a unidade entre o conceito e o fenômeno, entre a exposição e o conteúdo da verdade, eis a
essência do belo. Aqui o que está para a consciência é a forma da consciência mesma. Tal
forma só se dá na consciência ética; na verdade, no espírito efetivo. “Isso significa que a
substância, que tem individualização é conhecida pelos Singulares como [sendo] sua própria
essência.” (HEGEL, 1999, p. 473) Para Hegel, o que fermenta no artista é aquilo que ele
148
expõe nas obras, isso é, a religião da arte. A consciência religiosa, em outros estágios, mostra-
se pouco favorável à representação artística, como, por exemplo, no protestantismo.
Segundo Hegel, eis o momento do depois da arte, momento esse em que a consciência
caminha para novos modos de apreensão e de exposição do absoluto. O pensamento se volta
contra a arte como o modo mais alto, ou seja, em modos mais altos de consciência. “Para nós
a arte não vale mais como o modo mais alto segundo o qual a verdade proporciona a verdade
para si.” (Est, I, p. 116) Para ele, a arte de uma época aponta para além dela. O espírito
absoluto não mais cabe em uma representação, ele é superado para a interioridade. Não nos
ajoelhamos mais diante das obras de arte. Segundo o autor, o cristianismo proporcionou uma
riqueza artística para as pinturas e para a música, onde podemos pensar em Bach. Por sua vez,
a música supera a pintura em idealidade, é a temporalidade ao invés do espaço, porém
faltando o conceito à música, ela será superada pela poesia, que tem como conteúdo o
conceito. A representação do divino católico será superada pela Reforma, na qual “a
representação religiosa também foi chamada para fora do elemento sensível e reconduzida
para a interioridade do ânimo e do pensamento” (Ibidem, p. 117), que não mais representa o
seu divino. É a religião revelada, onde o conceito basta. A Forma da verdade se desloca para o
interior. No início, a arte retinha algo de misterioso. O espírito sai dessa objetividade e vai
para seu interior, afastando-se da representação artística, pelo menos como forma mais ideal
de atingir o espírito absoluto. Na religião da arte, a arte não é o fim último, ela é apenas um
aspecto para a consciência religiosa, existe também a devoção que desperta no ânimo.
Aqui surge uma questão: o que é da arte e o que é da religião da arte, pois a devoção
não pertence à arte como tal. A arte é a adequação da forma sensível ao ideal. A devoção é o
ânimo que penetra o conteúdo da obra, onde o conteúdo absoluto precisa habitar o interior das
obras. No sujeito que lá mergulhou, esse conteúdo absoluto da obra torna-se propriedade de
seu coração e ânimo. É o pathos humano como conteúdo da obra.
Na religião, o espírito absoluto ainda é exterior para a consciência. O livre pensar, mas
não a representação exterior deve ser visto como a Forma mais pura do saber. É do culto ao
pensamento sistemático da ciência que se apreende aquilo que nas artes era apreendido via
sensação. Filosofia como uma síntese da religião e da arte: “a objetividade da arte – que aqui
certamente já perdeu a sensibilidade exterior, mas que, por causa disso, trocou pela Forma
suprema da objetividade, a saber, a Forma do pensamento – e a subjetividade da religião, que
foi purificada em subjetividade do pensar.” (Ibidem, p. 119) O pensamento é o mais interior e
149
a ideia absoluta “é a universalidade a mais realista, que apenas no pensamento pode
apreender-se na Forma de si mesma” (Est, I, p. 119).
O autor divide seu sistema em Formas de manifestação desse conteúdo absoluto. O
modo sensível da consciência foi o primeiro mestre dos povos. Na religião do espírito, Deus é
concebido pelo pensamento, porém não mais pela obra de arte sensível. É a religião revelada.
Essa “tornou-se, pois, o lugar de chegada do espírito-do-mundo, como se a essência que
buscava no espelho da natureza confluísse para um ponto, unificando o corpo e alma: porque
só o espírito pode dar testemunho do espírito e saber-se Uno na diversidade” (HENRIQUE,
2007, p. 340). Como afirma o professor José Henrique Santos, é a dissipação da embriaguez
dionisíaca. Agora sua essência absoluta migra para seu próprio Si, eis sua certeza de si. Agora
os predicados tornam-se sujeitos, “são o próprio absoluto refletido sobre si a revelar-se ao
homem, (...) como algo imediato que se conhece na consciência-de-si” (Ibidem, p. 141).
Segundo Lebrun, “compreende-se então por que todas as obras de Hegel que descrevem uma
Bildung seguem um mesmo traço: o do declínio do imaginário e das formas da representação”
(LEBRUN, 2006, p. 58).
Aqui cabe uma interpretação da filósofa Márcia Gonçalves acerca do tema. A partir do
prognóstico hegeliano sobre a “Morte da Arte”, haverá um deslocamento do conteúdo da
obra, do absoluto para o prosaico. Para Gonçalves,
segundo esta aparente definição ‘arte verdadeira’ tem, enquanto uma das esferas do espírito absoluto, assim como a filosofia e a religião, o conteúdo divino absoluto; mas sua forma de manifestação difere das formas das outras duas esferas, exceto por um detalhe: ela é sempre absolutamente histórica. O belo é a expressão de deus, mas esta expressão só se realiza em sua forma histórica real e concreta. (GONÇALVES, 2004, p. 2)
Para a autora, esse divino na arte nunca é o mesmo ao longo da sua história. O fim da
arte seria essa dessacralização da mesma. O que ocorre é “apenas o movimento da perda de
uma espécie de ‘tarefa’ originária da intuição estética enquanto lugar de plenitude ou de
satisfação plena do espírito” (GONÇALVES, 2004, p. 3). A arte perderia o que já teria sido
para os gregos na antiguidade e de certa forma para o medieval “a exposição imediata de uma
verdade de dimensão divina” (Ibidem, p. 3). Esta já foi para a humanidade a razão de sua
vida. O homem moderno, não mais se contentando com a contemplação da obra, teria criado
com esse deslocamento “por si e para si mesmo a necessidade de refletir e de pensar sobre a
arte” (Ibidem, p. 3).
150
A autora nos diz que tal perspectiva abre uma dimensão para o destino da arte, isto é,
passar a ser cultivada como objeto de reflexão em museu ou galeria, mudando o espaço, de
culto à divindade para o culto à obra de arte. As catedrais europeias e as de Ouro Preto
tornam-se patrimônios históricos. O próprio templo torna-se obra de arte. Ao nos
relacionarmos com as obras, não temos mais relações religiosas com elas. Não mais as
sentimos, mas conferimos sentido a elas.
Segundo a autora, Hegel foi perspicaz em sua observação histórica e racional acerca
do nascimento da reflexão sobre a arte. Surge a crítica de arte do século XX. O filósofo da
arte daria sentido às obras, despindo-as, às vezes, de seus restritos e finitos contextos
históricos específicos. Seria o mesmo que dinamizá-las.
O que morre não é a arte, tampouco a obra, e sim o deus que constitui seu conteúdo originário. Desse modo, a arte passa a ser tão somente profana, aceitando cada vez mais dentro de si a contingência e a particularidade do mundo prosaico, perdendo cada vez mais a sua poesia originariamente mítica para dar lugar a uma prosa dessacralizada. Admitindo o feio, o dissonante, o finito. (Ibidem, p. 6)
De certa forma, essa dessacralização da obra, seu conteúdo prosaico, aponta para uma
chave de leitura do atonalismo, que surge historicamente como um esgotamento do sistema
tonal, como, por exemplo, na primeira fase de Schoenberg. Se o conteúdo verdadeiro da obra
era a tonalidade, ao haver um deslocamento para o prosaico, podemos lançar uma
interpretação de que esse conteúdo prosaico é dissonante, ou seja, ele nega o retorno a si
mesmo.
Historicamente, o dissonante torna-se um elemento presente na arte modernista e, por
sua vez, já presente na Grande Fuga de Beethoven, apesar de, na Opus 133, haver ainda um
retorno a si mesmo. Assim como visto no texto da autora acima, o que morre não é a arte, mas
o conteúdo absoluto, verdadeiro, que se desloca para o prosaico. Essa dissonância em
Adorno183 surge como uma negatividade em relação à lógica dialética da tonalidade,
defendida por Hegel como conteúdo verdadeiro da obra.
183 Adorno aponta que a música, em sua relação ambígua e multifacetada com a sociedade, torna-se negativa em relação à sociedade, afastando-se de tudo aquilo que aponte para a vida social. A música é negada por ser espelho da sociedade. Eis o caráter dialético social da nova música: refletir a angústia como expressão estética, mas libertadora, pois aponta para uma superação deste sofrimento de uma natureza reprimida. Adorno propõe a filosofia como expressão, aqui entendida como uma negatividade em relação à esclarecida dominação da natureza. É a racionalidade estética da vida, que via sua expressão “nos indica a não coincidência entre a representação da consciência e a racionalidade da ação” (ALVES, 2005, p. 292).
151
4.4.3. A Ideia: momento da realização de um conceito.
Na procura pelo belo, Hegel encontra-o como Ideia do belo, ou seja, o conceito, a
realidade do conceito e a unidade de ambos, como ideal, sendo que no conceito permanece o
dominante, pois a realidade é criada a partir dele. Ela é seu autodesenvolvimento, “uma
totalidade de determinações” (Est, I, p. 122). O conceito, enquanto tal, já é “unidade de
diferentes determinidades, e assim, totalidade concreta” (Ibidem, p. 123). As representações
abstratas universais, como homem, que possuem as contraposições da sensibilidade e da
razão, apenas tornam-se conceitos ao apresentarem “diferentes aspectos em unidade” (Ibidem,
p. 123). Assim, o conceito tem em si diferentes aspectos em unidade e universalidade ideais,
contudo, essas particularidades não podem partir para a singularização autônoma, pois, do
contrário, sairiam de sua unidade: “o conceito contém todas as suas determinidades na Forma
dessa sua unidade e universalidade ideais, que constituem sua subjetividade, à diferença do
real e do objetivo.” (Ibidem, p. 123) Os conteúdos infinitamente variados de um eu, que
estando no eu são sem corpo e imateriais, “estão comprimidos nesta unidade ideal enquanto o
puro aparecer [Scheinem] completamente transparente do eu em si mesmo. Este é o modo
segundo o qual o conceito contém suas diferentes determinações em unidade ideal” (Ibidem,
p. 123).
As determinações que pertencem ao conceito são o universal, o particular e o singular,
sendo que o conceito já é unidade ideal delas. Assim, o conceito universal “estabelece no
particular sua unidade consigo enquanto universal” (Ibidem, p. 124). Eis a singularidade
verdadeira, o conceito “é a unidade consigo no ser-outro” (Ibidem, p. 124), por isso ele é
livre, e a negação não é limite, mas autodeterminação. Mas como já dito, o conceito é
dominante e já tem em si aquilo que a realidade leva à aparição, “e o que a Idéia reconduz à
unidade mediada” (Ibidem, p. 124). O conceito que é universal vai para o particular, que é sua
negação por ser particular. O universal supera essa diferença, tornando o particular universal.
Eis o conteúdo absoluto da obra. “Ele é unidade consigo no seu outro.” (Ibidem, p. 124)
Também, como já dito, o conceito existe primeiro de forma abstrata e, na Ideia, ele migra para
o particular sensível (obra de arte), lembrando que, na religião da arte, o absoluto se manifesta
no sensível, na obra de arte, ou seja, para onde o conceito migra.
Assim, a obra de arte será considerada a realidade do conceito como particularização
autônoma, de onde o conceito, mesmo estando na forma particular subjetiva, é unidade ideal.
152
A obra levará o conceito à efetividade. Cabe ao conceito estabelecer-se igualmente nessas
particularidades; ele revela “sua unidade por meio da realidade e nela” (Est, I, p. 124). Essa
totalidade é a ideia que se refere tanto ao subjetivo quanto ao objetivo e na objetividade ou
obra de arte o conceito refere-se a si mesmo.
Há uma discussão presente na lógica de Hegel sobre o Ser e Essência. Na esfera do
Ser, quando o Algo se torna Outro, ele desvanece. Ao contrário, na esfera da Essência, não
temos nenhum outro de verdade, e sim uma diversidade, uma relação do uno com seu Outro.
No Ser a relatividade é só em si, na “Essência ela é posta” (HEGEL, 1995, p. 260). “No ser,
tudo é imediato; ao contrário, na Essência, tudo é relativo.” (Ibidem, p. 260) Segundo Lebrun,
na esfera do Ser, o movimento é de uma determinação para uma outra. “Sem dúvida, nessa
progressão por rupturas, as determinações finitas denunciam a sua instabilidade, mas somente
sob a forma da substituição de um conteúdo por um conteúdo diferente.” (LEBRUN, 2006, p.
324) Aqui, a ideia do Devir surge como contendo em si o Ser e o Nada, sendo que essas
categorias invertem-se uma na outra, ou seja, suprimindo-se uma na outra. Aqui, segundo
Lebrun, é preciso que o Devir invista em um outro conceito, o Dasein, que é “o Devir posto
na forma de um de seus momentos, o Ser. A unidade negativa, para testar que é também
positiva, deve passar para um conteúdo novo: deve reunir-se noutro lugar com a sua verdade”
(Ibidem, p. 324). Para o autor, na esfera da essência, essa transferência é abolida, justamente
porque não há mais passagem, não há mais “nenhum A que se destruiria para se tornar B”
(Ibidem, p. 324). Aqui não cabe mais a ideia de um Outro. “Os termos têm como única
consistência a relação que os une em ao outro, e se o ‘Outro’ subsiste, é unicamente à medida
que ele permite ao primeiro termo constituir-se ao refletir-se nele.” (Ibidem, p. 324) Assim, na
Essência, na Diferença (e não mais o Outro) cada termo irá ter “sua determinação própria em
relação ao Outro, ele somente é refletido em si enquanto refletido no outro” (HEGEL, 1995a,
p. 233). O outro não é mais um exterior indiferente, pois “tornou-se a condição que lhe fazia
frente, conquanto ainda se possa designar como ‘conteúdo’ aquilo que, precisamente, só tem
sentido na relação” (LEBRUN, 2006, p. 325).
Lebrun nos chama a atenção para esse fato, onde o aparecer é uma categoria chave da
essência, em que o outro se torna indício da presença desse conteúdo, “por meio de sua não-
presença imediata” (Ibidem, p. 325). Na relação entre interior e exterior, o entendimento vê o
Interior sendo o Exterior. O Interior é a essência, o oculto, e o Exterior, o ser imediato. Para
ele, a essência é pensada como redobrada sob si mesma. “Ambos os conceitos foram
artificialmente desmembrados e agora se reencontram na mesma abstração.” (Ibidem, p. 325)
153
Para Hegel, o Universal estende-se ao Outro, não exercendo sua potência, mas nele
permanece tranquilo e em casa.
Em seu sistema, Hegel vê que a obra só será verdadeira se ela for expressão da Ideia.
O que há de mais ideal na música é a tonalidade, por isso se ela não expressar em seu
conteúdo o conceito universal tonal, ela não será verdadeira. O fenômeno, a obra, por só
existir, ainda não é verdadeiro – tal realidade tem que corresponder ao conceito.
Beleza e verdade são, por um lado, a mesma coisa mas também se distinguem, pois a
ideia é segundo o seu em si, ela é pensada. O verdadeiro na sua existência tem que ser para a
consciência. Quando há concordância entre conceito e obra sensível, o verdadeiro também é
belo. É a verdade da tonalidade, uma vez que as leis da harmonia são qualitativas e não só
quantitativas como a regularidade e a simetria. É na relação de tensão e resolução que a
verdade e a beleza da obra aparecem. O belo é infinito e livre, pois lá o conceito habita e é lá
que o conceito “determina a partir de si a articulação e forma fenomênicas” (Est, I, p. 127); a
potência dessa coesão é a alma subjetiva.
“O objeto belo deixa aparecer em sua existência seu próprio conceito como realizado e
mostra nele mesmo a unidade e vitalidades subjetivas.” (Ibidem, p. 127) Nele, o conceito é
concreto, “pois a concordância entre o conceito e o fenômeno constitui a interpenetração
consumada”. (Ibidem, p. 128)
4.4.4. Beleza exterior da Forma abstrata – a exterioridade abstrata enquanto tal
Surgem aqui as mesmas relações que o autor trata na beleza natural. São as mesmas
determinações que mais uma vez se fazem valer, só que agora pelo lado da arte, ou seja, feita
pelo espírito: é o modo de configuração do exterior.
É a realidade exterior como modo de configuração do exterior que não alcança o seu
si interior na Forma ideal como conteúdo ideal. Da mesma forma, o conteúdo da música
também não é pleno como conceito. Aqui a unidade ideal não pode penetrar na forma, pois
não há conceito. A forma musical pode ser apenas analisada. É a determinidade exterior do
Ideal, pois o ideal é a Ideia identificada à sua realidade. No caso da música, é a exterioridade
abstrata como tal. Assim, surge a questão “em qual Forma [Form] e forma [Gestalt] o exterior
no seio de tal totalidade pode, por meio da arte, ser exposto de modo ideal” (Est, I, p. 250). É
quando o ideal é trazido para a realidade exterior. Assim, a obra oferece ao conteúdo do ideal
a forma concreta da efetividade e a “a arte transfere este em si já total num material sensível
154
determinado e, desse modo, cria um novo mundo da arte, também perceptível ao olhar e ao
ouvido” (Ibidem, p. 251). Segundo esses dois aspectos, a arte vai aos pontos extremos da
exterioridade
onde a unidade em si mesma total do ideal não é mais capaz de aparecer segundo sua espiritualidade concreta. A obra de arte nesta relação também tem um duplo aspecto exterior, que permanece uma exterioridade enquanto tal e, desse modo, no que se refere à sua configuração, também pode apenas acolher uma unidade exterior. (Ibidem, p. 251)
Está em questão a regularidade, a simetria e a conformidade a leis. Há o material
sensível também.
A beleza da forma musical terá a regularidade e a simetria como mera unidade não
viva do entendimento, signo do domínio e da prudência. Como igualdade no que é exterior,
podemos pensar nos compassos, ou na arquitetura, nas janelas de igual grandeza, “assim
como nas melodias das músicas, por exemplo, a regularidade não é completamente suprimida
[aufgehoben]. Ela é apenas rebaixada à mera base” (Ibidem, p. 251). A regularidade e a
simetria são leis dominantes. A simetria encontra-se em conexão com a regularidade, como os
tempos na música, por exemplo, ou como na escultura, o nariz que está dividido em dois e,
em suas metades, formado completamente de modo regular. Assim, o regular e o simétrico
como leis dominantes para a forma exterior são facilmente captados pelo entendimento. Na
música, a regularidade e a simetria serão de grande valor, pois a música tem na duração do
som um aspecto de mera exterioridade, uma vez que, enquanto arte temporal, o nascer, o
durar e o morrer da nota são sua condição. Tal condição da música será regularizada pelo
compasso.
O compasso aparece, por conseguinte, como algo feito puramente pelo sujeito, de modo que também no ouvir temos a certeza imediata de possuir nesta regularização do tempo apenas algo de subjetivo e, na verdade, de possuir o fundamento da pura igualdade consigo, o qual o sujeito possui em si mesmo enquanto igualdade e unidade consigo e seu retorno em toda a diversidade e na mais variegada multiplicidade. (Ibidem, p. 153)
Para o autor, o compasso ressoa no íntimo da alma, tocando-nos nessa subjetividade
abstrata e idêntica consigo mesma. O que nos move não é o som propriamente dito, mas a
unidade abstrata criada pelo sujeito no tempo. Essas duas grandezas, a regularidade e a
simetria, ordenam principalmente o quantitativo.
155
A arte, quanto mais se liberta da exterioridade, menos será regida pela regularidade e
simetria. A música se liberta do mero quantitativo e caminha para o qualitativo. Ela ressoa
segundo conformidade à lei. São as leis da harmonia, onde
a relação da tônica com a mediante e dominante não é meramente quantitativa, e sim trata-se de sons essencialmente deferentes que se unem ao mesmo tempo numa unidade, sem permitir que sua determinidade soe como oposição e contradição agudas. As dissonâncias em contrapartida necessitam de uma resolução. (Est, I, p. 153)
É a harmonia como totalidade das diferenças “entre os sons, por exemplo, a tônica, a
mediante e a dominante constituem tais diferenças de som essenciais que, reunidas num
conjunto, concordam em suas diferenças” (Ibidem, p. 153). A harmonia começa ao se subtrair
da mera exterioridade, a acolher em si mesma e expressar um Conteúdo mais espiritual.
O segundo aspecto da exterioridade é o material sensível, de onde a arte se serve para
sua exposição. Aqui a questão é a unidade que consiste na determinidade simples do material
em si mesmo sem desviar-se ou misturar-se, o que gera impureza.
Numa corda de metal ou de tripa, por exemplo, é a vibração deste material que produz o som e, certamente, a vibração de uma corda de tensão e comprimento determinados; se esta tensão cessa ou o comprimento correto não é captado, o som não é mais esta determinidade simples em si mesma e soa falso, na medida em que evolui para outros sons [...] igualmente o som da voz humana deve desenvolver-se pura e livremente a partir da garganta e do peito, sem deixar o órgão vibrar junto ou, como é o caso em sons mais roucos, sem deixar notar de modo perturbador qualquer impedimento não superado. Esta clareza e pureza livres de toda mistura estranha, em sua determinidade firme, destituída de oscilações, constituem nesta relação meramente sensível a beleza do som, pelo que ele se distingue do ruído, do ranger e assim por diante. (Ibidem, p. 255)
É a beleza como unidade abstrata da matéria sensível. Portanto, consideramos bela a
música em relação à beleza da forma exterior.
4.5. O belo artístico ou Ideal
É no desdobramento para a realidade exterior que o ideal da arte será verdadeiro. Ele
tem que ser “capaz de reunir e manter a separação recíproca da realidade numa unidade, que
cada parte do desdobramento faz nela surgir esta alma, o todo” (Est, I, p. 165). O fenômeno
aparece primeiramente como uma realidade existente sem seu em si, posta negativamente,
156
mas que é superada na medida em que a alma torna-se “escultura” dele, pois se a alma
aparece no fenômeno, ele se torna afirmativo, ideal, uma vez que a alma possui como seu
interior o ideal. Então, a alma irá configurar o material em obra de arte, para onde os olhares
irão se direcionar: “a arte transforma cada uma de suas configurações num Argos de mil
olhos, para que a alma e a espiritualidade internas sejam vistas em todos os pontos” (Est, I, p.
166); no caso da música, é nos sons que a “alma livre se deixa conhecer em sua infinitude
interior” (Ibidem, p. 166).
Hegel faz uma pergunta: “qual é a alma para cujos olhos (ou ouvidos) todos os pontos
do fenômeno devem ser e, de modo mais determinado ainda, de que espécie é a alma para
que, segundo a sua natureza, mostra-se apta a manifestar-se pela arte de modo autêntico?”
(Ibidem, p. 166) Como já vimos, cabe à arte “apreender e expor a existência em seu fenômeno
enquanto verdadeira, isto é, em sua adequação ao conteúdo conforme a si mesmo e existente
em si e para si” (Ibidem, p. 167). O exterior deve concordar com o interior, que, por sua vez,
concorda consigo mesmo.
A arte faz uma purificação retirando do fenômeno o que não é do conceito, produzindo
o ideal.184 Esse movimento na música significa adequar as notas ao sistema tonal com seus
modos e modulações. A Forma exterior irá corresponder à alma, ela é a própria revelação
dela. Eis uma arte poética, pois ela tem como conteúdo o conceito formal, o ideal, o
verdadeiro. Para o autor, a arte manifesta o Universal, mas não na Forma abstrata, que é o
extremo do pensamento; porém, não chega até sua Forma mais ideal, que é o mais profundo
interior. Nesse ir para o interior, a arte não é ainda a forma mais ideal de manifestar o
absoluto.
A arte fica presa no ponto médio, no qual coincidem o apenas exterior e o apenas interior. Logo, o ideal é a efetividade tomada de volta da amplitude das singularidades e das contingências, na medida em que o interior aparece como individualidade viva nesta própria exterioridade elevada contra a universalidade. (Ibidem, p. 168)
Aqui, o Conteúdo substancial fica preso nesta subjetividade individual, que, ao mesmo
tempo em que o possui, faz que ele apareça em sua exterioridade. O problema é que o
substancial que o particular possui não pode sobressair-se abstratamente para si segundo sua
universalidade, mas permanece aprisionado na individualidade, que entrelaçada com o
184 Lembremos que estamos abordando na música o Conceito da forma [Gestalt] e não da Forma [Form].
157
Conteúdo entra numa livre sintonia com o interior da alma. Assim, o belo é unidade total
subjetivada.
Para a busca pela alma é que os olhos devem se voltar: Hegel fala da arte romântica,
em que prevalece o dilaceramento e a dissonância do interior. Nela, aprofundam-se as
contraposições representadas, e sua cisão pode ser retirada. “Mesmo na música religiosa-séria
italiana este prazer e transfiguração da dor perpassam a expressão da lamentação.” (Est, I, p.
170) No romântico, essa expressão é o sorriso que é serenidade através das lágrimas que é
dor. Mas segundo o autor, pode haver uma falsa utilização desses elementos, como “por
exemplo, no coro do riso do Franco-atirador de Weber” (Ibidem, p. 171).185 Ele chama a
atenção para o riso que não deve ser incontrolável, para não perder o ideal, como no caso do
riso em um dueto de Oberon186 de Weber, onde, segundo ele, a garganta e o peito da cantora
nos deixam angustiados e temerosos. Para Hegel,
Na música em geral, o canto é este contentamento e prazer de se perceber a si, tal como a cotovia canta ao ar livre; expressar enfaticamente a dor e a alegria ainda não constitui nenhuma música, pois mesmo no sofrimento o doce som da lamentação deve perpassar e esclarecer a dor, de tal modo que pareça valer a pena o esforço de sofrer assim para perceber tal lamentação. Esta é a doce melodia, o canto em toda arte. (Ibidem, p. 172)
Hegel vê que a ironia, apesar de ter nesses axiomas sua justificação, está destituída de
toda seriedade e ama o deleite em objetos ruins. É o problema da nostalgia da bela alma
retraída em si mesma, que resolve os problemas, mas apenas em seu psicológico, não partindo
para a ação. É uma timidez perante a efetividade, por isso sua negatividade. Segundo o autor,
tal alma retraída teme e tornar-se impura mediante o contato com a finitude. Ela ri não só de
si, como o cômico, porém de tudo o que é consistente em si. É uma onipresente arte de
aniquilação. Para Hegel, tal descompostura interior não é artística. O ideal necessita de um
Conteúdo em si mesmo substancial,
185 “Carl Maria von Weber (1786-1826), compositor alemão. O Freischütz é uma ópera de 1821, baseada na obra do mesmo nome do escritor Johann August Apel (1771-1816). Primeiro sucesso de Weber no domínio da ópera e a única de suas obras que permaneceu popular, o Freischütz ilustra bem a tendência romântica ao satanismo, pois o personagem central não é Max, o herói frágil, mas o malvado Kaspar, que vendeu sua alma ao diabo (N. do T.).” (Ibidem, p. 171) 186 “O Oberon, escrito em 1824 para a Inglaterra, é a última ópera de Weber. Segundo Claude Rostand, ‘as três notas do coro de Oberon (e a cena de George-aux-Loups do Freischütz) apresentaram uma grande novidade quanto à necessidade e à possibilidade de uma utilização funcional dos caracteres dos timbres dos diferentes instrumentos’ (Histoire de la musique II, dirigido por Roland-Manuel, Paris, Gualimard, 1963, pp. 328-29) (N. do T.)” (Ibidem, p. 171)
158
pelo fato de expor a si na Forma [Form] e na forma [Gestalt] também do exterior, se torna particularidade e, desse modo, limitação, mas contém esta de tal modo em si mesmo que tudo o que é apenas exterior é nele eliminado e destituído. Somente por meio desta negação da mera exterioridade, a Forma [Form] e a forma [Gestalt] determinadas do ideal conduzem para fora aquele Conteúdo substancial no fenômeno adequado à intuição artística e à representação. (Est, I, p. 171)
4.5.1. A relação do ideal com a natureza
Está em questão a importância tanto do exterior quanto do interior, como conteúdo em
si mesmo consistente, e a relação de ambos. É a oposição entre o ideal e a natureza. Hegel
inicia a abordagem do tema perguntando-se se a arte deve ser poesia ou prosa. Poético é o que
ele denomina de ideal, daí, passa a perguntar-se o que seria poesia e prosa na arte. Ele ressalta
que na pintura holandesa, o cotidiano humano prosaico foi bem expresso, mas através da
recriação feita pelo homem com os efeitos próprios da pintura. São objetos produzidos pelo
espírito “o qual transforma o exterior e sensível do conjunto da materialidade [Materiatur] no
mais íntimo interior [Innersten]” (Ibidem, p. 174). São cores substituindo o real em uma
superfície, no entanto, temos a mesma visão que o efetivo oferece. Ele chama isso de “o
milagre da idealidade, uma troça se quisermos, e uma ironia sobre a existência natural
exterior” (Ibidem, p. 175), pois o macio da tinta, que é tirado do interior de modo mais leve e
dócil, ri do duro trabalho sobre o metal, por exemplo, que na realidade é preciso ter. O artista,
no lugar do criador, é todo um mundo de conteúdo que ele retira da natureza, recriando-o em
sua obra, no âmbito abrangente da representação e da intuição, liberando-o
livremente a partir de si sem as inumeráveis condições e disposições da realidade. Nesta idealidade, a arte é o meio entre a existência carente meramente objetiva e a representação meramente interior. Ela nos fornece os próprios objetos, mas a partir do interior; ela não os cede para uma outra utilidade, e sim limita o interesse à abstração da aparência ideal para a visão meramente teórica. (Ibidem, p. 175)
A arte eleva os objetos cotidianos, antes destituídos de valor, por meio desta
idealidade. Ele os torna simpáticos para o público. É uma idealidade formal da arte, em que a
produção espiritual nos chama a atenção.187 A representação do objeto natural terá em si a
187 Podemos aqui, fazendo um paralelo com Danto, pensarmos nas caixas de brilho box de Warhol, onde não vemos a natureza como ela é, e sim, a criação de um artista. “A exposição deve aqui aparecer natural, mas não deve aparecer nela a naturalidade enquanto tal, e sim o poético e ideal em sentido formal é o fazer [Machen], a eliminação justamente da materialidade sensível e das condições exteriores. Alegramo-nos com uma manifestação que deve aparecer como se a natureza a houvesse produzida, quando de fato ela é uma produção do
159
determinação do universal, tendo o que dela resulta o mesmo caráter. “A representação
oferece neste contexto a vantagem de ser de maior amplitude e, assim, ser capaz de apreender
o interior, de ressaltá-lo e explicitá-lo de modo mais visível.” (Ibidem, p. 176) A obra é
corporificação dessa representação universal, que deixa perpassar esse mesmo universal a
despeito de sua vitalidade intuitiva. Hegel nos dá respostas à questão levantada acerca do
caráter poético ou prosaico da arte. A obra capta a universalidade do objeto e a representa em
seu particular. Cabe ao artista buscar no mundo os traços justos e adequados ao conceito da
coisa.
Nesse sentido, na arte poética, o tipo da expressão é sempre universal, diferentemente
da singularidade natural. É através da palavra concedida pelo poeta que o singular se torna
universal, pois a palavra é produzida pela representação, o que dá a ela o poder de carregar em
si o caráter da universalidade. Nesse sentido, a palavra põe em relevo o que é o essencial, que
é o próprio ideal, e não o meramente dado.
É o espírito que configura, na Forma do fenômeno exterior, o mundo interior de seu
Conteúdo. Assim, idealizar é a atividade do espírito que se corporifica apenas em expressão
do espiritual, “este acolher no espírito, este formar [Bilden] e configurar [Gestalten] por parte
do espírito se chama justamente idealizar” (Est, I, p. 179). O espírito penetra o exterior e
efetua-se. Ele se torna idealizado. Segundo o autor, aqui é que surge o problema entre o ideal
e o natural: por um lado, seria já perfeita a beleza natural, não podendo a beleza da arte
alcançá-la; por outro lado, seria próprio da arte encontrar outras Formas mais ideais,
independentes do efetivo.
No mundo do espiritual, há uma natureza ordinária tanto externa quanto interna, e
“esta natureza é externamente comum justamente porque é o interior, e em seu agir e, no
conjunto do exterior, leva à aparição [Erscheinung] apenas fins do ciúme, da inveja e da
cobiça no que é mesquinho e sensível” (Ibidem, p. 179). A arte pode também expor essa
natureza comum – os holandeses levaram ao topo essa representação da natureza comum.
Eles o fizeram a partir deles mesmos, do presente, de sua própria vida, sendo que a história
deles, segundo o autor, justifica esse seu movimento de representar o comum prosaico na
pintura. Eles construíram, a partir de si próprios, sua história, conquistando o terreno onde
moram, defendendo-o. Tudo isso através da coragem, valentia, lutando pela liberdade política
e religiosa. Eis o conteúdo universal de suas imagens, que foi construído a partir da cidadania
espírito, sem os meios daquela; os objetos não nos deleitam porque são de tal modo naturais, mas porque são feitos [gemacht] tão naturalmente.” (Ibidem, p. 175)
160
e vontade de empreendimento nas coisas de suas vidas. Há uma grande cidadania nesta
atividade que Hegel chama de robusta nacionalidade.
Esta serenidade espiritual de um prazer legítimo que se estende até nos quadros que retratam animais e dá ares de fartura e prazer, esta liberdade e vitalidade espiritual, despertadas e frescas na apreensão e na exposição, constituem a alma superior de tais pinturas. (Ibidem, p. 181)
Para o autor, o que o ideal requer é a ausência de preocupação pelo exterior e a
liberdade interior no exterior. Dessa forma, Hegel concebe a natureza comum na arte, porém,
ao mesmo tempo, a alegria e os valores burgueses sempre insignificantes não são as matérias
mais ideais e superiores para serem representados pela arte, “pois o ser humano tem interesses
e fins mais sérios que provem do desenvolvimento e aprofundamento do espírito em si mesmo
e nos quais ele deve ficar em harmonia consigo” (Est, I, p. 182). Cabe à arte expor esse
conteúdo superior. É posta novamente a questão; falta-nos saber de onde o artista retira essa
Forma para essa criação. A arte, em seu estágio superior, deve ter no Conteúdo interior as
bases para o seu exterior. “Este conteúdo encontra-se no espírito humano efetivo e, assim,
como o interior humano em geral, tem sua forma externa existente, na qual ele se expressa.”
(Ibidem, p. 183)
O artista necessita portar-se criativamente e em sua própria fantasia formar e configurar completamente o significado que o anima a partir de uma fusão, com conhecimento das Formas correspondentes assim como com sentido profundo e sentimento fundamentado. (Ibidem, p. 184)
4.5.2. A determinidade do Ideal
Sendo o belo artístico Ideia, ele não pode permanecer em seu
mero conceito universal, mas já segundo este conceito tem em si mesmo determinidades e particularidades e, por isso, também deve, a partir de si, entrar na determinidade efetiva, apresenta-se sob este aspecto a questão de saber em que sentido – a despeito do sair-para-fora [Herausgehen] na exterioridade e finitude e assim no não-ideal [Nicht-ideale] – o ideal ainda é capaz de se manter, bem como, inversamente, a existência finita é capaz de acolher em si mesma a idealidade do belo artístico. (Ibidem, p. 185)
Nesta parte do texto, no volume I da Estética, o autor apresenta como se dá esse
processo de determinidade do ideal na literatura. Aqui, nesta dissertação, apresentaremos
161
como essa determinidade ocorre na música como arte particular, na forma Allegro-de-Sonata
de Beethoven.
Voltamos ao processo de superação na música, em que o superado não deixa de
aparecer ou de coexistir com aquilo que o supera – esse é o reino do todo. As formas vão se
superando e coexistindo entre si.
A música para Hegel, em seu acontecer, é ritmo, harmonia e melodia, tendo o tonal
como o conteúdo verdadeiro da obra, sendo que a melodia, em seu estágio mais elevado, pode
transitar livremente sobre tonalidades através das modulações. A obra é o momento do
particular que possui o conteúdo verdadeiro. A cisão acontecerá no interno da tonalidade, faz
parte do todo, ela é movimento para a ação, que seria, na música, a busca da resolução. Na
música, o processo de cisão, ação e resolução geram a dialética no interno da música, que é o
seu formal. Tal processo ocorre várias vezes no decorrer da música, e é isso que caracteriza
sua riqueza formal. O absoluto concreto, que se particularizou em obra.
A superação na Estética de Hegel surge na busca pelo mais ideal. “O Ideal é a
efetividade tomada de volta da amplitude das singularidades e das contingências, na medida
em que o interior aparece como individualidade viva nessa própria exterioridade elevada
contra a universalidade.” (Est, I, p. 168)
A individualidade criadora é individual subjetiva, e aqui o conteúdo universal não
pode “sobressair-se abstratamente por si, segundo sua universalidade” (Ibidem, p. 168). No
individual, o universal se aprisiona. Na individualidade, se entrelaça e é nela que ele vai se
mostrar; é o exterior que manifesta a liberdade espiritual. Por isso, o ideal é belo. Belo como
“unidade total, mas subjetiva” (Ibidem, p. 169). Toda essa perfeição, segundo o autor,
aparece-nos como um deus beato. É nessa seriedade que há serenidade como “caráter
essencial”. (Ibidem, p. 170) É nos deuses gregos que está essa singularidade e serenidade,
sempre centrados neles mesmos. Aqui, na questão do destino trágico do homem grego, o
indivíduo pode perder sua vida, mas não sua liberdade. O autor nos aponta que na arte
romântica o dilaceramento e a cisão aumentam e na música é possível ver o movimento das
dominantes, que dilaceram. É a própria estrutura da forma sonata.
162
4.6. A lógica da Dialética
O objetivo agora é expor a lógica abstrata da dialética hegeliana dentro de sua
estrutura tripartida, tomada como ciência da ideia pura. É ver a lógica como “ciência do
pensar, de suas determinações e leis” (HEGEL, 1995a, p. 65) que constitui a determinidade
universal. Aqui estaremos na pura abstração. Para Hegel, a verdade é esse objeto, que só pode
ser experimentado pelo pensamento. Queremos, com a lógica, expor a base do sistema
hegeliano, de sua dialética e, por sua vez, do sistema tonal.
A lógica em Hegel tem três lados: “a) o lado abstrato ou do entendimento; b) o
dialético ou negativamente racional; c) o especulativo ou positivamente racional.” (Est, I, p.
159) Esses três lados, por conseguinte, são momentos do todo.
No primeiro, o entendimento. Sua atividade em geral
consiste em conferir a seu conteúdo a forma da universalidade; e na verdade, o universal posto por meio de entendimento é algo abstratamente universal, que como tal é sustentado em contraposição ao particular, mas por isso também, de novo determinado ao mesmo tempo como particular, ele mesmo. (Ibidem, p. 163)
No segundo, o dialético. É o suprassumir-se de tais determinações finitas e seu ir para
o oposto, em uma “aparência de contradições”, sendo que o verdadeiro é o que pertence ao
entendimento. “A dialética é antes a natureza própria e verdadeira das determinações-do-
entendimento – das coisas e do finito em geral.” (Ibidem, p. 163) Essa determinidade isolada
é posta em relação. A dialética é esse ultrapassar imanente, onde a unilateralidade é exposta
como negação.
O dialético constitui, pois a alma motriz do progredir científico; e é o único princípio pelo qual entram no conteúdo da ciência a conexão e a necessidade imanentes, assim, como, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação – não exterior – sobre o finito. (Ibidem, p. 163)
O terceiro é o positivamente racional, “que apreende a unidade das determinações em
sua oposição: o afirmativo que está contido em sua resolução e em sua passagem [a outra
coisa]” (Ibidem, p. 166). Esse pensar racional, nesse momento, torna-se concreto – são
pensamentos concretos.
163
Assim, Hegel divide sua lógica nesses três momentos. Primeiro é o do conceito em si.
Segundo, o do ser-para-si, que é a aparência do conceito. Terceiro, o do seu “ser-retornado
sobre si mesmo” e ser junto-de-si, “no conceito em si e para si.”
Num primeiro movimento, a antítese já se encontra na tese, que carrega em si sua
contradição. A antítese só se explicita, porque já estava implícita na tese, tensão que será
cessada na síntese tônica. Esse movimento se dá pelo verbo Aufhebung, que surge como essa
supressão da contradição. Nele, vale o superar, mas não o cessar. Assim como uma música
possui várias vezes, ao longo da composição, a relação de tensão que se resolve e ao fazer
isso, ela não permanece nesse repouso sereno e beato da tônica, ela logo caminha para um
distanciamento dessa tônica, depois para uma nova tensão, que por sua vez visa a um novo
repouso. Essa relação na música é sucessiva. Nela, a luta dos opostos continua, onde de uma
síntese resulta uma nova tese, sendo que uma nova síntese já “estava implicitamente contida
na primeira tese da primeiríssima tríade, (...) Todos os momentos contidos entre a primeira
Tese e a última Síntese já estavam contidas neste primeiríssimo momento” (NOBREGA,
1974, p. 35). Esse primeiro momento é a própria tonalidade como conceito abstrato.
A concretização faz parte dessa dialética, mas tratando-se de conceitos. O momento do
conceito é mais abrangente, mais vasto do que o momento do concreto. Assim, a primeira tese
desta primeira tríade hegeliana deve ser “uma categoria, a mais abstrata, a mais universal, a
que engloba, em si, tudo o mais” (Ibidem, p. 36). É o conceito de Ser como o mais universal,
sendo o nada sua antítese e o devir sua síntese. Na música, o devir é tonal. Para Hippolite, na
filosofia da história, seria a identidade da vontade particular e vontade geral, onde o Estado
está acima da sociedade civil. Na música, o tonal está acima dos modos e os rege. Hegel dá
liberdade à melodia de transitar em tonalidades, mas ela segue nas leis, na harmonia,
configurando um retorno a si mesmo.
Este Ser não é individualizado, porém abstrato. Na música, o que há de mais universal
é justamente o conceito de repouso, digressões e retorno a si. A tonalidade com suas funções
possui essas propriedades. Desse conceito, principia toda composição tonal, sendo que a
melodia é livre para modular a vontade. O que lhe é lei rege suas progressões e pede o retorno
a si mesmo. Esse conceito já possui em si toda uma estrutura188; tal conceito de puro Ser é
sem qualquer determinação, é o próprio nada, mas sua efetivação depende do ato criador do
188 Estrutura tonal, a saber, repouso, distanciamento, tensão e resolução.
164
artista que lhe dá um tratamento artístico, que é sua bela obra. É nessa passagem do implícito
para o explícito que está o Devir, que já está implícito no Ser.
Devir é também uma categoria mais concreta do que a de Ser que é a noção mais abstrata (...) Se compararmos agora Devir com as próprias categorias que se seguem, como novas teses e antíteses, é de se esperar que estas sejam mais concretas e existem em Devir implicitamente. (Ibidem, p. 39)
O devir é o momento da passagem.
Nesse sistema dialético, a natureza procede de categorias universais, sem a mistura de
percepção sensorial. Os universais não têm existência objetiva. Eles são os primeiros
princípios de onde fluem a natureza e o espírito. O movimento como um todo é a ideia,
natureza e espírito. Toda a discussão da tonalidade e dialética da música está envolvida em
um sistema, que parte do conceito de tonalidade e efetiva-se na história.
4.6.1. Forma sonata e sua estrutura dialética
A forma sonata normalmente189 é dividida em três partes: exposição, desenvolvimento
e reestruturação, o que está em analogia com a estrutura dialética hegeliana. Nossa hipótese é
de que podemos falar em tese, antítese e síntese.
A exposição instaura a tonalidade e o desenvolvimento concretiza a tensão, cabendo à
reexposição a resolução da tensão. Superar a tensão significa “eliminar a contraposição tonal,
tão somente dissolver o confronto entre tônica e dominante”190 (Ibidem, p. 145). A dominante
189 “A presença de três ou quatro movimentos na FS é normal, mas existem exemplos de até sete movimentos.” (SCHOENBERG, 2008, p. 241) 190 Há uma ideia de Chasin que vai contra a ideia que aqui defendemos, a saber, o prosaísmo hegeliano bem se casa com a forma sonata de Beethoven, pois, segundo ele, a forma sonata expressa o dilaceramento, a fragmentação, a ruptura intrínseca à individualidade do homem burguês. O que não é concordante com esta dissertação é que, segundo Chasin,
Hegel, ao tematizar o fim último da arte, parece estar se referindo particularmente à música sonatística. Não que haja uma identidade entre a determinação hegeliana e a lógica da FS, na medida em que a conciliação dos contrários não é o fim em si da música sonata, ou mesmo seu ponto de partida. (CHASIN, 1999, p. 154)
Neste trabalho, a forma sonata refletiria a possibilidade de uma reconciliação de uma tensão, no sentido de um retorno a si mesmo. Desta forma, a forma sonata refletiria a música possuidora de um conteúdo verdadeiro ou tonal defendida por Hegel, e não uma arte prosaica, que perderia esse conteúdo verdadeiro. Tal desavença é longa e problemática e não a exploraremos em sua plenitude. Voltemos nossa atenção para nosso objetivo, que é mostrar a relação entre a lógica de dialética em Hegel e a lógica da forma sonata de Beethoven. O que podemos afirmar é que a forma sonata não seria então prosaica em Hegel, e sim seria arte verdadeira, absoluta, pois possui a lógica do conteúdo verdadeiro, a tonalidade. Preferimos a questão levantada por Olivier, isto é, porque Hegel
165
é o momento da dissonância, que, por sua vez, exige um retorno à tônica. Em Hegel, não se
sustentaria uma composição que ficasse na tensão – faz-se necessário um retorno a si mesmo;
é necessário eliminar a tensão. Neste ponto, Hegel e Beethoven caminham juntos.191
De uma forma geral, a forma sonata será constitutiva dos três momentos: exposição,
elaboração e recapitulação. Há as modulações à dominante, à subdominante em modo menor
ou maior, onde modular é criar relações entre polos distintos, uma fragmentação tonal. A
relação passa a criar polaridade contraposta entre tônica e dominante,192 principalmente na
exposição. Haverá um complexo harmônico, onde livremente passeará o melódico, com polos
distintos. Segundo Schoenberg sobre a forma sonata
seu grande mérito, que lhe permitiu uma posição de destaque durante cento e cinqüenta anos, é sua extraordinária flexibilidade em acomodar um grande leque de idéias musicais, em quase todo tipo de combinações. Os detalhes internos podem estar sujeitos a diversas mutações, sem que isso deturpe a validade estética da estrutura como um todo. (SCHOENBERG, 2008, p. 243)
não citou Beethoven, uma vez que a forma sonata bem se relaciona com sua dialética. Desta forma, pensamos que a conciliação dos contrários na reestruturação passa a ser sim o fim da forma sonata. Como afirma Schoenberg, na coda de uma sonata “os traços mais comuns são as cadência repetidas na tônica. Nas codas mais elaboradas, os segmentos modulatórios aparecem frequentemente como contrastes passageiros, para depois retornarem à tônica” (SCHOENBERG, 2008, p. 257). Esse é o ponto que nos interessa, esse retorno à tônica na coda, ou o retorno a si mesmo, o que aqui interpretamos como aquilo que dá à forma sonata o caráter de possuidora de um conteúdo verdadeiro, enquanto obra musical particular. 191 Há aqui toda uma problemática envolvendo o trágico e o retorno à Grécia clássica, em que poderíamos incluir Schiller e Goethe, a gosto de Hegel – questão essa tão trabalhada na “Poesia” (vol. IV dos Cursos de Estética), onde o drama surge como síntese entre épico (objetivo) e o lírico (subjetivo). Há críticas de Hegel ao retraimento em si mesmo da burguesia. Hegel critica, portanto, uma subjetividade retraída em si mesma. A bela alma que resolve a tensão do trágico, mas em seu psicológico, e não parte para a ação. Aqui há o subjetivismo contingente que é negado por Hegel, mas há o subjetivismo universal como arte superior aceita por ele, porém, um subjetivismo que é característico da arte romântica. Para Hegel, a resolução mental, psicológica, é própria do prosaico. Há no prosaico uma subjetividade retraída, uma particularidade acentuada; particularidade essa própria da modernidade. Há críticas também de Beethoven a esta mesma questão. Segundo Magnani, “Beethoven está em luta contra [...] a mediocridade espiritual e da vida vilmente egoísta da classe burguesa, todas as duas desprezadas por Beethoven porque impedem o livre desenvolvimento da personalidade, a inteira afirmação do mérito individual” (MAGNANI, 1971, p. 51). Em Hegel, “podemos lamentar a miséria do presente, o estado intrincado da vida burguesa e política, que não permite que o ânimo aprisionado a interesses mesquinhos possa se libertar para os fins superiores da arte” (Est, III, p. 34). 192 “A diferença entre o movimento barroco à dominante e a modulação clássica é que o estilo clássico dramatiza este movimento ou, em outros termos, ele se transforma, para além de uma força, também em um evento.” (ROSEN, 1982, p. 79)
166
4.6.2. Allegro-de-Sonata
Em nossa análise, seguiremos os passos de Schoenberg, ao analisarmos a forma
Allegro-de-Sonata193 onde a presença de três ou quatro movimentos é o normal.194
Temos abaixo um padrão de relações estruturais de um Allegro-de-Sonata, que, sendo
o primeiro movimento de quatro que essa sonata terá ao todo, já possui em si toda uma
estrutura ternária dialética.
Figura 15 - Relações Estruturais do Allegro-de-Sonata
Na Exposição, o andamento geralmente é rápido. Há um tema com duas tonalidades
contrapostas, a tônica e a dominante, que estão em contraposição harmônica. Haverá uma
modulação da tônica à dominante, o que reafirma a tensão, e é nessa contraposição entre polos
distintos que haverá a tensão. É importante ressaltar aqui que a harmonia é condição dessa
colisão, pois ela oferece os modos, dando as funções de cada modo na música como um todo.
Estando-se na dominante, é comum ainda haver uma modulação para o modo menor da
dominante (que são homônimos), criando-se, assim, outro campo de tensão entre o modo
maior e o modo menor da dominante. Aqui o conflito já está sendo formado entre três polos
harmônicos (Tônica, Dominante maior e Dominante menor) que são forças opostas. Todo
esse jogo conflituoso ocorre dentro de uma tonalidade, que Hegel estabelece como o
verdadeiro. São partes do mesmo que com suas particularidades se unem a esse princípio
193 Essa forma permite ao compositor grande capacidade de expor variadas ideias musicais, em variadas combinações. 194 “A forma Allegro-de-Sonata, tal como as outras, é essencialmente uma estrutura ternária. Suas divisões principais são: exposição, elaboração e recapitulação. Ela difere das outras formas ternárias complexas, porque a seção mediana contraste (elaboração) é quase exclusivamente devotada a elaborar a grande variedade do material temático ‘exposto’ na primeira divisão.” (Ibidem, p. 243)
167
tonal universal. É o tema tonal que irá reger essa relação de identidade entre os modos e suas
funções.
Essa conservação, posta na diferença, confere ao tema uma relação intrinsecamente unitária, que engendra um relacionamento temático caracterizado pela unidade (a dos temas) materializada pelas contraposições: os temas, que tem por base iguais conformações motívicas, se efetivam em seu confronto. (CHASIN, 1999, p. 163-164)
Com relação ao tema principal, sua estrutura costuma ser flexível e irregular, já
anunciando as futuras ‘metamorfoses’ dessa ideia. Temos abaixo o início do Allegro-de-
Sonata para piano nº2 – Opus 2, 1º movimento, de Beethoven.
Figura 16 - Allegro-de-Sonata para piano nº2 - Opus 2, 1º movimento
168
Esse primeiro movimento é um allegro vivace. Sua tonalidade é Lá maior, que será o
princípio e o fim. É o em si que sofrerá uma cisão, mas que retornará ao si mesmo. O curto
tema vai até o oitavo compasso. No início, há um caráter de motto, o que dá um estilo mais
incisivo à música com acordes arpejados descendentes. Até o terceiro compasso, estamos em
Lá jônico. No terceiro compasso, ele valoriza a nota Ré (I) e Fá (III), o que pode indicar um
deslocamento para a subdominante Ré. Há aqui um primeiro movimento de cisão, pois ele
saiu do em si e foi para uma primeira alteridade, o que caracteriza o movimento harmônico e
melódico. No segundo tempo do quarto compasso, a dominante Mi será a tensão, pois uma
vez feita a cisão será necessário o retorno ao em si, que será, no terceiro compasso, Lá menor.
O acorde dominante de Mi realiza essa função de tensão. No nono compasso, há uma
continuação mais lírica, com o arpejo da tônica Mi (V), Lá (I), Dó (III). Ele resolve a tensão
retornando para a tônica. Novamente o movimento de retorno a si mesmo. Essa relação entre
arpejos descendentes do primeiro ao oitavo compasso e sua continuação num tom mais lírico
no nono compasso irá se repetir de forma abreviada até o compasso 21, criando duas ideias
presentes que se articulam. No compasso 21, há uma contraposição com uma cadência na
dominante. Essa cadência na dominante caracteriza uma tensão que se resolverá no compasso
32, onde há uma cadência definitiva ascendente na tônica. No compasso 52, há um expressivo
rallentando, o que prepara a música para uma mudança de modo que se dará na dominante.
Essa modulação para o modo da dominante representa um ir para sua alteridade, mas, sendo
dominante, ela é em relação a um princípio verdadeiro, que é o tom de Lá menor. Já havia na
primeiríssima tríade da tônica todo o processo, uma vez que os modos surgem a partir dela.
No compasso 53, há uma modulação para o modo dominante menor, Mi menor, com a
nota Sol bequadro (III), Si (V) e Mi (I) criando três polos harmônicos com forças opostas:
tônica, dominante maior e dominante menor. “A livre articulação das frases de durações
variadas, no âmbito dos trinta e dois compassos, estabelece a principal cadência interna (à
dominante) no compasso vinte.” (SCHOENBERG, 2008, p. 254) Essa modulação cria polos
opostos em uma relação de tensão, de extremo conflito. Como já dito, a dominante é
justamente o campo dessa tensão, da dor do conflito. A dominante menor em conflito com a
dominante maior gera um outro campo de tensão. Eis o “furor báquico” ou a negatividade.
Há então uma grande possibilidade de variedades dos temas principais nesse primeiro
movimento, a articulação livre, segmentos com duração irregular, formulações motívicas
variadas, presença ou ausência de repetições, relações conectivas várias.
169
As transições, por sua vez, são de grande importância em uma sonata. O seu papel é de
contrastar com o grupo principal, utilizando de diferentes tonalidades ou regiões. Formam-se
motivos contrastantes, diferenças rítmicas e articulações diversas.
Após a exposição ser consolidada, o Allegro-de-Sonata irá para o desenvolvimento ou
elaboração.
O Desenvolvimento da peça musical surge como uma confirmação e uma explanação
do conflito de antes entre tônica-dominante, a saber,
A idéia propriamente formadora do método reside [...] no conhecimento de que a partir da auto-aplicação do pensamento [...] a auto-referência, que se manifesta ora negativa, ora positivamente, é a unidade das ligações aparentemente bem diversas que conduzem à antítese e da antítese à síntese [...] Os movimentos deste intermediário restringem-se, em grau, a dois tipos: lento e moderadamente movido. Os movimentos lentos variam do allegretto (ou andantino) ao adágio, largo ou grave; os moderadamente movidos são, em geral, formas de danças estilizadas, como os minuetos e os scherzos. Estes últimos naturalmente possuem, às vezes, uma grande rapidez de movimento. (SCHOENBERG, 2008, p. 242)
Há tonalidades novas que se apresentam e há a fragmentação do tema. A partir de uma
caminhada fragmentada que se utiliza de modulações, cria-se uma nova região tonal, sendo
que modular é fragmentar. Ocorre aqui uma contraposição do tema, que primeiro estará na
dominante, passando em seguida para a subdominante, sendo que a tensão entre dominante e
subdominante passa a ser o eixo do Desenvolvimento. Percebe-se aqui que se trata da
tonalidade em seus particulares, repleta de modulações, mas que retorna a si. Novamente é o
tema da exposição que norteará a composição, tema esse que para Hegel é regido pelo sistema
tonal. É nessa parte que o compositor irá elaborar a grande variedade do material temático
dado na exposição.
Figura 17 – Variedades do material temático dado na exposição
170
Após o compasso 113, há um pequeno trecho de oito compassos que prepara uma
primeira modulação de tom no compasso 122, onde se repete incessantemente o acorde do
novo tom, Dó Maior, alterando apenas as alturas. Em novo tom, ele se inicia, nos primeiros
oito compassos, repetindo o tema principal que conduz no compasso 130, de maneira
enganosa, à região distante de Ab. Essa modulação de tom confirma o momento do
distanciamento da tonalidade. É a cisão indo para o oposto em uma aparência de contradições.
Do compasso 130 ao 157, há uma sutil melodia em meio aos acordes com caráter de
tensão em movimento descendente, resolvendo em final evidente no compasso 160, em Dó
maior. Schoenberg analisa que se segue uma seção fortemente contrastante e muito cantabile,
derivada dos compassos 9-12. No compasso 202, ele vai para a dominante e segue contínuo
para a recapitulação.
Figura 18 – Dominante e recapitulação
Há, após a elaboração, uma retransição que reverte esse impulso modulatório ao
mesmo tempo em que prepara o retorno à tônica. Geralmente fica na dominante, e tem o
caráter de ponte. Esse movimento de modulação dirigindo-se para a dominante indica uma
tensão com uma intenção de retorno à tônica. A modulação para o IV grau anterior caracteriza
uma cisão, mas a modulação para o V indica a dominante, o que pede um retorno a si mesmo
e que caracteriza o ciclo dialético da tonalidade.
A síntese é a reestruturação da unidade perdida, uma vez que, no sistema tonal, um
tema tocado na dominante exige resolução. Geralmente é escrito sob uma das formas do
rondó (variações, fugas). É a superação do conflito, é o retorno à tônica, sendo que, quanto
maior for a tensão na dominante, maior terá efeito a resolução na tônica. Isso não quer dizer
que na resolução não haverá mais tensão, mas esta pode ser alcançada utilizando-se a relação
entre tônica e subdominante maior ou menor.195 Isso é conhecido como desenvolvimento
195 Nas relações com a subdominante menor, essa “nova afinidade, estabelecida por esta relação do acorde principal, permite conquistar para a tonalidade (ao lado dos acordes próprios da escala e daqueles conseguidos através da imitação das particularidades dos modos eclesiásticos) também as tríades secundárias das tonalidades a cujo âmbito pertence este acorde menor de subdominante, ou seja, permite incluir na tonalidade os acordes de
171
secundário, o que na verdade só reafirma a tônica. É a coda, que nessa nova tensão só
reafirma a função tonal. Ela pode ser vista como uma “configuração de um Ideal – a
configuração da ‘superação’ do conflito” (Ibidem, p. 170). De grande valor é a tese de Hegel
de que “a inclusão do negativo, seu poder é conjurado e, assim, é alcançada uma maior
estabilidade” (HÖSLE, 2007, p. 238). Segundo Hösle, ele afirma a lógica sobre o método.
No compasso 224 há uma modulação retornando ao tom inicial de Lá Maior,
marcando esse retorno a si mesmo. Até o compasso 243 ele repete o início sem nenhuma
alteração, o que caracteriza esse retorno. Geralmente, em uma sonata, quando se pretende
finalizar, retorna-se ao tema inicial a fim de lembrá-lo.
Figura 19 – O retorno a si mesmo do tema inicial
“A transição começa a mudar a partir do compasso 255; do 258 em diante, ela é
repetida com poucas mudanças, em parte quinta abaixo, e em parte, quarta acima.”
(SCHOENBERG, 2008, p. 254)
terceiro e quarto círculos de quinta, com o que ela fica consideravelmente ampliada” (SCHOENBERG, 2001, p. 323).
172
Figura 20 – Transição para a tonalidade principal
O restante da recapitulação é uma transposição à tonalidade principal, reafirmando o
tom no acorde final Lá M (I), Dó (III) e Lá. É o retorno a si mesmo como superação de uma
contradição. Momento que apreende a unidade das determinações em sua oposição. É o
afirmativo que está contido em sua resolução.
Figura 21 – Síntese
Aqui estamos diante de formas musicais “enquanto organização de idéias musicais
inteligíveis, logicamente articuladas” (SCHOENBERG, 2008, p. 257),196 que bem dialogam
com o sistema hegeliano. É a totalidade, onde o verdadeiro é o todo. Assim, em um
movimento dialético, na produção de um verdadeiro infinito, é na oposição absoluta que deve
ser pensada a reunião, a reconciliação. No sistema, deve-se pensar a união na cisão, pensar a
dialeticidade do real em sua totalidade.
Para Bourgeois, o tempo é realização sensível do conceito de devir.197 É a passagem
do ser ao nada, que inclui o passado, o futuro e o presente, “o ser foi, antes de ser aniquilado;
196 “Somente a sensibilidade formal do artista pode determinar a evolução de um motivo em uma obra prima muito elaborada, privada de excessos, mas capaz de realizar, de maneira integral, a visão do compositor [...]. É também evidente que as formas mais desenvolvidas não podem ser construídas pela simples união de ‘tijolos’ musicais, ou pela ‘cimentação’ das idéias em molduras predeterminadas.” (Ibidem, p. 257) 197 É no tempo que também há a sucessão de uma nota a outra.
173
a ser assim, passado é, precisamente o passado” (BOURGEOIS, 2004, p. 201). Há o porvir
que é o futuro. “Enfim a mediação mediana, pois mediatizante, que equilibra em sua
identidade o passado e o futuro é o presente.” (Ibidem, p. 201) Assim, o presente “enquanto
puro agora, ele é o desaparecimento de seu ser em nada e de seu nada em ser. Mas em seu
sentido, ele é a totalidade das três dimensões do tempo, na medida em que essa totalidade
sempre é” (Ibidem, p. 202), sendo que sua verdade é progressiva. Mas o tempo da natureza é
vazio, não é sujeito. “O tempo espiritual é uno, como o próprio espírito [...] ele retorna a si
mesmo, afirmando-se como o que ele é, o círculo dessa afirmação final do que ele é
originalmente é um único círculo.” (Ibidem, p. 204) O tempo do espírito é uma história, em
que há uma identidade que liga seu começo a seu fim, onde o espírito exprime o absoluto ou a
Ideia. Aqui temos a obra de arte fazendo parte do espírito absoluto.
4.7. Circularidade
Finalmente, chegamos à ideia de circularidade. Pretendemos mostrar como uma
composição musical segue esse esquema da circularidade dialética, onde o incluir o momento
da negatividade (contingência naquilo que tem de aparentemente irredutível ao sistema, como
por exemplo, os intervalos dissonantes), o sistema se torna um círculo onde todos os
momentos são necessários, o que dá um dinamismo ao sistema que “exprime a subjetividade
do processo de verdade” (SCHOENBERG, 2008, p. 204).
A composição musical também seguirá esse sistema dialético da circularidade, pois o
movimento musical se dá pelo repouso, distanciamento, tensão e resolução. É um círculo
dinâmico, e que inclui nele as dissonâncias da dominante e do diminuto como tensão. Esse
sistema em Hegel se dá como autoprodução da verdade, pois “a verdade da necessidade é a
liberdade” (KERVÉGAN, 2005, p. 51). O ser em si se encontra em sua alteridade, na
liberdade, no seio da necessidade, onde “a necessidade não é suprimida, mas conduzida ao seu
verdadeiro significado: ao mesmo tempo apresentada como necessidade e ordenada à livre
processualidade do conceito que gera a si mesmo e ao seu outro” (Ibidem, p. 51). Sendo a
liberdade a determinação mais alta do conceito, o dinamismo do sistema autoproduz verdade.
Esse sistema é processual, e como em um sistema tonal, “tal produção não pode se fechar em
qualquer ponto, e é por isso que em cada um deles está em jogo a verdade do sistema”
174
(Ibidem, p. 51). A verdade do sistema tonal é esse processual que inclui suas dissonâncias em
seu em si, a saber, “a circularidade do saber sistemático é a última manifestação de sua
capacidade de engendrar sua própria alteridade” (KERVÉGAN, 2005, p. 51). Para se fazer
natureza, é a “idéia na forma do ser-outro (é na completa alienação que ela confirma sua
liberdade, onde) o conceito mostra seu poder ao se reconhecer como elemento de radical
alteridade” (HEGEL, 1997a, p. 187). Sua incapacidade de apreender o isto em sua
singularidade significa que ela só é pensável a partir de seu outro, o saber absoluto. Assim o
saber de si se torna sua liberdade suprema.
A ciência dele [do absoluto] é essencialmente sistema, porque o verdadeiro, enquanto concreto, só é enquanto desdobrando-se em si mesmo e recolhendo-se junto da unidade – isto é, como totalidade [...] pois sistema entende-se erroneamente uma filosofia que tem um princípio limitado, distinto dos outros; ao contrário, é princípio de verdadeira filosofia conter em si todos os outros princípios particulares. (KERVÉGAN, 2005, p. 55)
Assim, é no retorno em si que o eu se torna si mesmo. O movimento circular é o motor
gerador. Esse movimento, por sua vez, é superação: supera-se uma figura que se torna menos
ideal. O movimento, sendo dialético, é uma negação, mas de si próprio, que, após várias
modulações, realiza um retorno à tônica.
175
CONCLUSÃO
Na tentativa de mostrar nesta dissertação a relação entre tonalidade e dialética
hegeliana, tendo como exemplo a forma Allegro-de-Sonata de Beethoven, concluímos
algumas questões e levantamos outras indagações.
No capítulo I, abordamos o tema da estética para Hegel, ressaltando a questão dos
limites do formal em sua filosofia. No capítulo II, desenvolvemos a ideia de superação
[Aufhebung] na música, onde o movimento é do menos ideal para o mais ideal, ou seja, ritmo,
harmonia e melodia, sendo a melodia o mais espiritual. Desta forma, os capítulos I e II são
mais sistemáticos, ou seja, expõem o sistema de Hegel e realizam algumas articulações de
caráter hipotético, especulativo e poético.198 São articulações como as existentes entre a
interioridade subjetiva, música e tempo; harmonia e melodia e a dialética senhor e escravo;
harmonia e melodia e Estado e indivíduo. Há nesses dois primeiros capítulos as nossas bases
conceituais para que, no capítulo III, realizemos a defesa de nossa questão, a saber, mostrar a
relação entre dialética hegeliana e a forma sonata de Beethoven. A lógica abstrata da dialética
rege todo o seu sistema, inclusive a música, por isso a validade dessas articulações em seu
interno sistemático circular, ela é ontológica.
Essas articulações mostram a direta relação entre forma musical e espírito histórico,
onde a arte reflete as contradições sociais. É o tempo que faz essas mediações, pois ele
pertence a ambos, música e espírito. Na música, a nota se movimenta, uma após a outra, em
um sistema tonal.199 O indivíduo, também, como particular, encontra-se na história, em um
momento após o outro. Estando nas leis do Estado, o indivíduo fá-las seu absoluto,
efetivando-as. O histórico é o momento da efetivação. Ambos são livres, tanto a melodia
quanto o indivíduo. Em Hegel, ser livre é fazer do absoluto seu espírito. A lógica que rege a
música em seu aspecto temporal é a mesma que rege o sujeito na história. Assim, a música e o
indivíduo são efetivos dessa lógica absoluta que historicamente manifestam.
Há contradições, como a questão proposta por Chasin, que vê a forma sonata de
Beethoven como arte prosaica, talvez pelo excesso de racionalismo presente em sua forma. O
198 Temos aqui a lógica como conceito abstrato. Acreditamos que neste estudo só estando com a lógica hegeliana é que poderemos entendê-lo melhor e fazermos um juízo mais justo do mesmo. 199 Parte de seu repouso no I grau, vai para o II grau, distancia-se de seu em si, vai para o V grau gerando uma tensão na dominante, que é o momento da extrema tensão, gera a cisão e regressa sereno e beato para o seu repouso.
176
excesso de razão presente na forma sonata é indiscutível, e Hegel aponta o racionalismo na
arte como um dos motivos de sua superação. Aqui nos distanciamos de Chasin no que diz
respeito à forma sonata ser prosaica, pois vemos em sua tripartição e no retorno a si mesmo a
própria dialética, que, de cunho iluminista, visa à superação da contradição entre sujeito e
objeto, o que resolve o problema epistemológico levantado por Kant. Essa nossa postura vem
da ideia de tonalidade como conteúdo verdadeiro. Portanto, para nós, o retorno a si mesmo é a
questão. Se há o retorno a si mesmo, há conteúdo verdadeiro na música. O que aqui
entendemos é que Hegel vê o racionalismo tirar da música sua característica de ser canto dos
afetos, aquilo que toca o interior subjetivo do ouvinte, o puro sentimento. A arte nos convida a
pensá-la. No que tange esse ponto, se caminharmos com Hegel, teríamos que concordar com
Chasin em relação ao racionalismo tornar a forma sonata prosaica. Em concordância com
Olivier, consideramos o contrário, que a forma sonata de Beethoven é por excelência
dialética. A questão levantada é por que Hegel não cita Beethoven e sua forma sonata em
nenhum momento de sua estética. Ao concluir que a forma sonata é dialética, tentamos
responder a tal questão dizendo que Hegel não abre mão do conceito, por isso ele não
reconhece sua dialética na forma musical.200
Em Hegel, partimos da lógica e vamos para sua efetividade. Realizamos com isso a
Ideia. Tal relação se rompe na história. Surgem questões modernas, como o problema de
Danto, por exemplo. Pensamos um deslocar com o prosaísmo, onde o conteúdo não mais é
absoluto, e sim prosaico. Virou prosa, onde a arte nos convida a pensá-la. A filosofia estética
ganha espaço. Pensar a obra, resignificá-la: é um movimento mais do pensar do que do sentir,
através da expressão dos afetos. Com isso, há futuros deslocamentos. O contemporâneo
deslocou o puro prosaico dos sons, resignificando-os como em Schaeffeur ou em
Stockhausen, no Quarteto para helicópteros.
Concluímos que há uma relação lógica entre tonalidade e dialética. Essa relação está
na ideia de retorno a si mesmo, como síntese de uma cisão, e se dá no plano da lógica, que em
200 Diante dessa problemática, Adorno verá na busca pela expressão a saída epistemológica para a filosofia, um retorno ao incognoscível de Kant, onde há uma supremacia do objeto e uma mediação do sujeito, pois ele também, enquanto objeto, não se difere do objeto. Haverá a mediação do subjetivo, por isso um retorno ao estético como expressão, que mediado pelo sujeito, não poderá ser conhecido racionalmente. É um retorno à Crítica do Juízo em Kant enquanto livre jogo entre imaginação e entendimento. É possível falar disso filosoficamente, não necessariamente precisamos nos calar. Em Adorno, após o antissemitismo, há uma urgência em falar. Para ele a forma musical da Indústria Cultural é prosaica, pois repete um padrão, o que a torna pobre. Na música de Schoenberg ocorre também uma desertificação. Segundo Duarte, a incompreensão do público diante da música radical de Schoenberg causou tal distanciamento que desartificou a obra. Já no vazio das obras da Indústria Cultural, o ouvinte ouve nelas o eco padronizado de si mesmo. Veremos a questão epistemológica de Adorno mais à frente.
177
Hegel é o modo mais elevado de se apreender o ser absoluto.201 É como a tonalidade e suas
modulações, como retorno a si mesmo, é conceito universal e sua relação com o particular e o
singular. Esses três estados estão unilateralmente presentes no conceito. Uma obra musical,
sendo fenômeno, de um lado se nega por ser uma partitura particular, mas de outro supera
essa particularidade, sendo negação do universal, e restabelece no particular sua unidade
consigo mesmo como universal, pois o conceito de tonalidade como retorno a si mesmo está
presente na obra. Hegel chama a atenção para o fato de que a melodia é o mais espiritual da
música, e é livre. Por exemplo, uma melodia modula, mas nesse novo campo harmônico, ela
gravitará em relação a um outro polo tonal, onde haverá leis que girarão em torno de uma
nova referência tonal. No caso das sonatas, haverá modulações, mas todas em torno do tom
principal como visto no capítulo III. Concluímos com Hegel, e em grande concordância,
quando ele diz que os segredos da composição tonal estão no domínio desse meio.
Concluímos também que Hegel define a estrutura do formal da música como algo
feito202 e não dado pela natureza,203 como, por exemplo, tirados da série harmônica. A lógica
abstrata de Hegel será combatida por Adorno, que a chama de lógica da decadência. É fato
que a dialética Hegeliana sofreu em Adorno uma inversão, tornando-se negativa, o que gera
reflexos diretos na sua visão sobre a música, que é serial e não tonal. Portanto, historicamente,
a dialética hegeliana como retorno a si mesmo, em Adorno, não se manteve.204 Para Adorno,
na Teoria Estética, o que define uma obra não é o passado, e sim o que ela torna-se. Haveria
aqui uma suposição de que ela distanciou-se da tonalidade por se tornar prosaica? Temos uma
pergunta e não uma resposta. Tal questão se distancia de Adorno, que vê no serial a arte
levando ao homem esse conteúdo verdadeiro, mas negativa, dissonante, como expressão do
sofrimento humano. A música, segundo Hegel, indo para o prosaico, deixa de manifestar os
interesses mais nobres da humanidade. Ou seja, ânimo para a ação ética. Por isso, a
importância dos sentimentos, dos afetos.
Em Hegel, a configuração externa abstrata da música, seu formal, como tonalidade,
leis da harmonia, é afirmada como verdadeira. Verificamos que a tonalidade é verdadeira para
201 Se diferenciando das representações, que é a relação imediata com o aí-imediato. 202 “Mas a música, que em geral se move em um elemento primeiramente feito por meio da arte e para ela mesma, deve passar por uma preparação prévia significativamente mais difícil antes que alcance a produção dos sons.” (Est, III, p. 307) 203 A arte como um todo é feito pelo espírito e para o espírito, e “a combinação dos sons diversos em relações determinadas é, por conseguinte, mesmo que também não seja contrária à essência do som, algo contudo primeiramente feito e não de outro modo já dado pela natureza” (Ibidem, p. 297). 204 Aqui caberia um outro estudo bem mais aprofundado acerca do destino da dialética hegeliana em Adorno, mas que não é o nosso foco no momento.
178
ele, pois ela apresenta em sua estrutura o retorno a si mesmo, que é a lógica de sua dialética e
que serve para todo o seu sistema. Há aqui todo um projeto iluminista, tão negado por
Adorno, porém Hegel o afirma como verdadeiro. Assim, ele não o diz como absoluto e
universal. Deduzimos que em Hegel a tonalidade seria universal, pois ela tem como base sua
lógica, ou seja, o que é lógico é racional, e essa razão para ele é universal: é um projeto
iluminista que vai desembocar na filosofia como discurso racional da realidade, como
conhecimento. A questão que levantamos agora é: a tonalidade, uma vez criada, seria eterna?
O problema para Hegel é que a arte se distanciou do conteúdo verdadeiro. Portanto, a
tonalidade é criada como lógica dialética abstrata. Perguntamos se a obra, ao se tornar
prosaica, distanciar-se-ia da tonalidade? Seria uma forma de interpretação ver a arte prosaica
como dissonante. O nosso problema futuro é dar conta da morte da lógica dialética hegeliana
na música, em que surge uma dialética negativa, contudo, esse breve espaço não nos é
suficiente para tal investigação.
Hegel não criou o fato da música ser dialética: ele teve foi uma boa percepção
histórica, e se apropriou do formal musical como retorno a si mesmo, que na verdade é um
projeto iluminista. Ele bem acertou isso em sua investigação, o que lhe dá uma boa percepção
da música como fenômeno artístico. A lógica Hegeliana é de cunho iluminista, tentando
superar os limites kantianos do conhecimento, trazendo à tona o conhecimento do absoluto.
Adorno irá mostrar, na Filosofia da Nova Música, o caráter negativo em relação ao retorno a
si mesmo e o caráter social da nova música. São futuros deslocamentos históricos.
Concluímos que tanto em Hegel quanto em Adorno, a relação entre a dialética
(positiva ou negativa) e música expressa as contradições sociais históricas da sociedade. Em
Hegel há uma esperança no projeto iluminista de uma reconciliação entre o particular e o
universal. Já em Adorno, vemos o fracasso desse esclarecimento, o que foi relatado na
Dialética do Esclarecimento como uma ‘lógica decadente’. Adorno vê na expressão artística
um deslocamento epistemológico da filosofia para a expressão, o que produz o primado do
objeto diante da subjetividade que o percebe, e essa expressão é sem conceito. Adorno propõe
“dizer o que não se deixa dizer” sobre a expressão da música e sobre sua influência sobre o
fracasso da pura lógica abstrata.
Assim, a lógica de Hegel como estrutura racional é muito bem construída, mas
historicamente, em Adorno, ela será invertida e se torna negativa, o que gera consequências
para sua visão acerca da música.
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As formas artísticas serão superadas, portanto, não são eternas. A tonalidade pode
continuar, todavia, ocorre um deslocamento já acenado por Adorno. A questão é que, em
Hegel, não é mais via arte que a razão ocidental chega ao absoluto, e sim via filosofia, puro
conceito. A arte já até cumpriu essa função, mas foi superada. Em Hegel, a obra de arte é
histórica como espírito de um povo [Volksgeist]. Assim, no período tonal, ia-se ao absoluto
via arte. Na música, a tonalidade teve seus primeiros suspiros em Palestrina, que foi
organizada por Bach com o Cravo bem temperado, chegando a Mozart com a liberdade da
melodia e tendo seu cume em Beethoven, que levou ao extremo as dissonâncias,
principalmente na síntese do quarteto opus 133, a Grande Fuga. O capítulo II se esforça para
mostrar o desenvolvimento histórico da relação melodia e harmonia. Isso nos mostra como a
tonalidade foi percebida por Hegel a partir da sua lógica abstrata de cunho iluminista.
Mostramos como ela chegou ao seu esgotamento histórico em Beethoven.
Aqui levantamos questões como: estaria Beethoven, ao elevar as dissonâncias ao
máximo, pondo em cheque o retorno a si mesmo da dialética hegeliana? Seria esse o motivo
de Hegel não citá-lo nem uma vez em sua estética? Estaria Hegel já atrasado para pensar uma
nova estética musical que surgia ali, na Alemanha contemporânea a ele, com Beethoven?
Talvez Hegel não admitisse sua dialética sendo efetivada pela Gestalt, pois ele não abre mão
do conceito. Levantamos essas indagações e pensamos que talvez, mais uma vez, um grande
espírito como Beethoven (gênio?) sobressaísse ao seu tempo, deixando sua obra para a
posteridade. Talvez estivesse ele antecipando uma nova estética musical, pois, após o
tonalismo sofrer uma cisão com o atonalismo, esse movimento chegou a uma nova síntese
serial com Schoenberg, mas uma síntese negativa, dissonante, caracterizando uma ‘dialética
negativa’.
A fim de entendermos melhor essa relação de negatividade em Adorno como história
pós Hegel, Duarte nos aponta para a dimensão social da origem da música. É o caráter mágico
da música, de retorno aos primórdios como função sacra, em relação com o culto e com a
dança, como no Egito antigo, na Grécia clássica ou no cristianismo bizantino medieval.
Mas, em se tratando de uma arte sonora que não se cristalizou na batida dos tambores, mas que se viu compelida por motivos históricos a organizações estruturais cada vez mais complexas, as relações com a sociedade sempre foram ambíguas e multifacetadas. (DUARTE, 1997, p. 27)
Em Hegel, a partir do prosaísmo, “o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela
arte” (Est, I, p. 34). Para Hegel, em relação à função da arte, ela deixa de representar, seja na
180
Forma [Form], ou na forma [Gestalt], “o modo mais alto e absoluto de tornar conscientes os
verdadeiros interesses do espírito. Pois justamente a sua forma já se restringe a um
determinado conteúdo” (Est, I, p. 34).
Para Hegel, a arte toca em certo nível do entendimento do espírito. Nas esculturas dos
deuses gregos, ele acreditava que a obra atingiu um nível Ideal, de justa adequação entre
forma e conteúdo. Para os gregos, os deuses habitavam a estátua. Hegel aponta que essa
forma de relação com a obra de arte e de fé atingiu uma plenitude na Grécia. É de extrema
percepção essa passagem, pois é desse mágico que Adorno fala. É investigar em que nível de
relação se dá a obra de arte com o humano em Adorno. Em Hegel, por sua vez, a arte deixou
de exercer essa função mágica.
Em Adorno, essa relação da obra com a sociedade não se perdeu, ela se dá na dialética
social da nova música, e como nos lembra Duarte, ela está intrinsecamente relacionada com a
análise formal da obra. É preciso saber as devidas constelações205 de cada análise, a social e a
da música. É a relação do fazer filosófico aparentando-se no fazer artístico, que dá “uma
significação epistemológica precisa” (Ibidem, p. 26) ao termo de constelação usada por
Adorno na Dialética Negativa;
Somente as constelações representam, de fora, o que o conceito extirpou no interior, o mais que ele quer tanto ser, como ele não pode ser. Colecionando o conceito as coisas cognoscentes, elas determinam potencialmente seu interior, atingem pensando, o que pensamento extermina de si mesmo. (Ibidem, p. 27)
Tanto em Hegel quanto em Adorno, a música passa pela questão epistemológica. Há
aqui toda uma questão kantiana. É a questão da subjetividade e do objeto, onde há uma
análise da faculdade subjetiva de conhecimento, o que Kant defendeu como a coisa em si
transcendental. O ser em si não é contraditório com o conceito do objeto, a mediação
subjetiva não pode sair de si, mas pode sim sofrer a ideia de alteridade. O sujeito da Crítica
da Razão Pura é a causa, como categoria, do conhecimento. Segundo Adorno, o idealismo
procurou proclamar esse princípio de causa na subjetividade, que, segundo o autor, foi um
esforço paradoxal e falível. A ontologia critica esse papel dado à subjetividade, mas também
não substitui o sujeito pelo objeto: “o primado do objeto só é alcançável em uma reflexão
205 Ideia inspirada por Benjamin e apropriada por Adorno. “Adorno se apropria do termo modificando-o no sentido de conferir-lhe uma configuração epistemológica precisa no contexto de sua Dialética Negativa: o resultado do exercício correto da existência filosófica (segundo ele, aparentada ao fazer artístico).” (DUARTE, 1997, p. 26)
181
subjetiva e em uma reflexão subjetiva do objeto” (ADORNO, 2009, p. 159). Aqui, Adorno
não vê possibilidade de conciliar esse estado de coisas com a lógica e sua expressão abstrata.
Toda afirmação que diz que a subjetividade “é” já conta que o sujeito irá fundar o
conhecimento do objeto, em virtude de seu ser absoluto.
É somente porque o sujeito é por sua vez mediado, ou seja, porque ele não é o elemento radicalmente outro em relação ao objeto que apenas o legitima, que ele é capaz de apreender a objetividade em geral [...] A mediação subjetiva não absorve aquilo que essa objetividade essencialmente é, ente. (ADORNO, 2009, p. 159)
A suma conceitual, que é ativa no desempenho do conhecimento, a consciência
autonomizada, deriva-a geneticamente de sua “energia libidinal do ser genérico homem”
(Ibidem, p. 159), e sua essência não é indiferente a isso. A consciência não define a “esfera
das origens absolutas” (Ibidem, p. 159), como em Husserl. O sujeito que tem a função da
consciência viva cria seu conceito segundo a sua imagem. Segundo Adorno, o momento
empírico aí não se confunde com o momento transcendental. O que existe de consciência
transcendental, espiritual, é justamente a relação entre consciência empírica com a
consciência do eu vivo. São nulas meditações acerca da gênesis dos objetos. O objeto não
pode ser dogmaticamente conhecido, mas apenas via imbricação com a subjetividade. É a
mediação do sujeito subjetivo que dá ao objeto a possibilidade de ser conhecido. Vê-se o
espírito impotente em todos os seus juízos na organização da realidade.
Chegamos à ideia em Adorno, de pensar uma dialética negativa.
O negativo que se exprime no fato de, com a identificação, o espírito não ter sucesso na reconciliação, de seu primado fracassar, tornar-se o motor de seu próprio desencantamento. Ele é verdadeiro e aparência: verdadeiro porque nada escapa à dominação que ele trouxe à sua forma pura; não verdadeiro porque, em sua confusão com o domínio, ele não é de maneira alguma o espírito pelo qual ele se torna e se dá. Com isso, o esclarecimento transcende sua autocompreensão tradicional. Ele não é mais desmitologisado. Apenas enquanto reductio ad hominem, mas também inversamente enquanto reductio hominis,206 enquanto intelecção do engodo do sujeito que se estiliza como absoluto. O sujeito é a figura tardio do mito, e, no entanto, ao mesmo tempo a figura mais similar à sua forma mais antiga. (Ibidem, p. 160)
Podemos ver essa negatividade também na música em sua relação com a sociedade.
A verdade dessa música (de vanguarda) parece mais exaltada porque desmente, mediante uma organizada vacuidade de significado, o sentido da sociedade organizada que ela repudia, do
206 “Em latim no original: redução ao homem e redução do homem. (N. do T.)” (Ibidem, p. 160)
182
que pelo fato de ser um si mesma capaz de um significado positivo. Nas condições atuais atêm-se à negação arrojada. (ADORNO, 2002, p. 26)
Para Adorno, a causa da dialética entre sujeito e objeto não ser rompida é o fato do
mediador ser o próprio sujeito. É o primado do objeto como algo que é mediado por si
mesmo. A mediação e a mediatidade se encontram na dialética. Para Adorno, um sujeito
autônomo e espontâneo deve ser “formador sobre o imediato; nenhum sujeito, porém, o
possui como o imediatamente dado que está aí pura e simplesmente” (ADORNO, 2009, p.
160). Falta ao sujeito a objetividade do objeto, “com certeza, a imediatidade coloca um freio
na idolatria da dedução” (Ibidem, p. 160), mas é, por sua vez, algo abstraído do objeto,
material tosco esse que a teoria do conhecimento teria como modelo. Aqui o problema é que o
dado não é objetividade, ficando o sujeito limitado e estando preso ao campo de seu
encantamento, não se assenhorando desse dado, que não se faz seu servo.
Adorno, a partir das suas questões epistemológicas, aponta as transformações
ocorridas na música dodecafônica de Schoenberg em relação à música tonal, aqui defendida
por Hegel. Na Filosofia da Nova Música, ele aponta que, na música radical, a melodia deixa
de ser um eu homofônico em forma de solo, como vimos em Mozart, e retorna como um nós
polifônico, na forma de contraponto, onde cada tema dodecafônico tem algo do tema do
rondó. “Esta é a origem da técnica dodecafonica. Ela culmina na vontade de superar a
oposição que há entre a natureza polifônica da fuga e a natureza homofônica da sonata”
(ADORNO, 2002, p. 50). Schoenberg, em sua fase expressionista, busca com a “melodias de
timbre” [Klangfarbenmelodie], ou seja, com a mudança instrumental do timbre de sons
idênticos, reinventar a força melódica sem ter que produzir uma melodia no sentido
tradicional. Segundo Adorno, um acorde tonal já não cumpre sua função, ele é falso. Com
relação às dissonâncias: “o predomínio da dissonância parece destruir as relações racionais,
‘lógicas’, da tonalidade, ou seja, as relações simples de acordes perfeitos.” (Ibidem, p. 53)
Aqui, podemos perceber a negação da lógica abstrata da tonalidade que, em acordes perfeitos,
resolve-se no retorno a si mesmo. A própria melodia cai vítima do ritmo temático, onde os
intervalos “converteram-se em meras pedras de construção. Com relação à harmonia, ela
perde a força do horizontal, pois não há mais intervalos perfeitos, tonais e sim surge a
harmonia complementar” (Ibidem, p. 69). Surge a lei da dimensão vertical da música
dodecafônica, que pode chamar-se lei da harmonia complementar: “na harmonia
complementar cada acorde está construído complexamente: contém os sons particulares como
momentos autônomos e diferenciados do conjunto, sem desaparecerem, como ocorre na
183
harmonia perfeita, suas diferenças.” (Ibidem, p. 71) A música radical não pode separar-se das
dissonâncias; elas não resolvem. Por sua vez, a harmonia suplementar supera a experiência do
tempo na música, ela fica paralisada pela não diferença dos elementos horizontais e verticais.
Os acordes ficam alienados uns dos outros. Com relação à dialética como forma musical, “a
técnica dodecafônica substitui a ‘mediação’, a ‘transição’, pela construção consciente; mas
esta se paga com a atomização dos sons” (ADORNO, 2002, p. 71). Ocorre a inserção de um
acorde após o outro, sendo eles estranhos entre si. Essas são algumas transformações
ocorridas no material musical a partir de Schoenberg em sua técnica dodecafônica vistas por
Adorno.
Aqui brevemente surge uma questão sobre o canto dos afetos, a saber, se Hegel retoma
os gregos na sua visão sobre música. Pensamos aqui que o filósofo vê na voz o elemento mais
espiritual, mas ressalta a autonomia da música, mesmo sendo ela inferior à poesia em
idealidade e, por isso, sendo superada. Para ele, o canto nos toca os sentimentos, nossos
afetos, nossa interioridade subjetiva, todavia, Hegel se mostra um pouco pessimista em
relação a tal junção. Ele vê melhor junção no lírico, pela sua leveza, e na música sacra, com
Bach. Hegel estranha a perda da expressão na música causada pelo excesso de racionalismo;
daqui Chasin tira suas ideias. O não retorno a si mesmo não é concebível por Hegel; essa seria
para ele a grande perda da música. Há pistas no texto, como quando ele cita escalas modernas
onde há intervalos que já não conduzem o ouvinte para um lugar seguro, ou que, em sua
época, certos compositores se relacionam com as leis da harmonia de uma forma que
surpreende o ouvinte. Percebemos que Hegel presenciou tanto o racionalismo na música
quanto o excesso de tensão. Na passagem do clássico para o romântico, visto aqui no capítulo
I, Hegel nos indica essa maior racionalização na arte. Na música, há a passagem do canto dos
afetos para a arte mais racional, o que acarreta a perda da expressão, onde a música deixa de
representar os sentimentos humanos e se torna mais um constructo racional. Talvez para
Hegel, a perda dos afetos afete profundamente a música, principalmente no fato de ela ser
ânimo para a ação ética. Ele percebe esse deslocamento e, como nos aponta Olivier, retoma
Rossini como ideal de canto, como ópera autêntica. Pensamos que Hegel não aceitaria um
excesso de razão na música, “a arte nos convida a pensá-la” e não mais nos ajoelhamos diante
de obras de arte, são dois fatores da superação da arte. Nessa arte mais erudita, temos a forma
sonata, que em três movimentos é dialética, e temos já com Beethoven o abuso da beleza com
184
as dissonâncias da Grande Fuga.207 Talvez por isso Hegel não enxergasse Beethoven, nem
sua forma sonata. Ele busca o sentimento, a interioridade subjetiva.
Tal expressão é vista novamente por Adorno em Schoenberg, mas como expressão do
sofrimento humano, ele subverte a ideia de expressão: “as dissonâncias surgiram como
expressões de tensão, de contradição e de dor. Sedimentaram-se e converteram-se em
material.” (ADORNO, 2002, p. 72) Hegel não vê na música, por ser sem conceito, a
possibilidade de acoplar uma ideia de “conteúdo absoluto sem conceito”, o que desfiguraria
seu sistema. Juntamente com a racionalização romântica, surge uma maior subjetivação
burguesa, o que dá ao artista maior liberdade diante da forma [Gestalt] musical. Na Grande
Fuga, Beethoven realiza seu caminho sem recorrer às funções da harmonia tradicional. Os
intervalos são mais em oitavas, principalmente no início. Não há um caminho em relação a
um distanciamento que, por sua vez, em tensão, pede uma resolução. Ele simplesmente segue
em direção linear a partir de um tema. Há o retorno a si mesmo no fim da peça, quando ele
retorna o tema inicial, contudo, não há ao longo da peça campos harmônicos com funções tão
bem definidas. Há sim um caminhar em torno do tema principal, em uma tensão após a outra.
Percebemos que o temporal continua, porém o seu conteúdo já começa a se desvincular do
beato e sereno retorno a si mesmo da tônica.
Concluímos que Hegel foi sensível a essas mudanças no cenário musical de sua época,
apesar de não aceitá-las.
207 Obra para quarteto de cordas, que, na verdade, era uma síntese do quarteto opus 130, mas que por forças externas foi separado, dando-lhe o caráter de uma peça separada.
185
REFERÊNCIAS
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