005 PrefácioJoão Teixeira Lopes
009 IntroduçãoFilipe Leal
019 Histórias de Ida e Volta. Promover a cultura oral, formar contadoresAna Arnold Guerreiro, Rita Dornellas, Carla Diniz
031 Grupos de Leitores nas Bibliotecas Municipais de OeirasBruno Duarte Eiras, Gaspar Matos, Maria Gabriela Cruz
045 Lugares da Leitura. O público adulto nos projectos das Bibliotecas
Municipais de OeirasAna Paula Jardim
061 Experiências na Promoção da Leitura. Aprendizagens saborosas…
Gostos contagiantes – Jardim da minha infânciaCarmelinda Pereira
069 Biblioteca Escolar e leitura em tempos de mudançaTatiana Sanches
ÍNDICE
Públicos são comunidades de estranhos, efémeras e contigentes, que se formam pela
convocatória de um discurso e pela apropriação reflexiva de sentido. Comunidades que, no
entanto, apesar de pouco cristalizadas, assentam na possibilidade de acrescentar mundos aos
mundos da vida.
Públicos são os espaços de livre acesso, nós de articulação das cidades fragmentadas, onde
não existe, de antemão, um percurso predefinido, uma realidade preexistente ou um sentido
único. Lugares onde vemos e somos vistos, estranhos que somos, nós no lugar do Outro, o
estranho do estranho.
Públicos são os conteúdos destes volumes, de distribuição gratuita, onde se abordam temáticas,
associadas ao desenvolvimento imaterial e simbólico e aos chamados sectores criativos das
sociedades modernas: Leitura(s), Serviços Educativos na Cultura, Exposições, Gestão Cultural
do Território e Comunicação de Ciência.
Três pressupostos essenciais presidiram à organização desta colecção: em primeiro lugar, a
qualidade dos textos, solidamente ancorada na experiência e conhecimento dos autores. Em
segundo lugar, a pluralidade de pontos de vista, longe de uma escrita e pensamento únicos,
enquanto estímulo à diversidade de leituras e ao jogo de cruzamentos que o leitor poderá
accionar: complementaridades, conflitos, sínteses, bricolagem de conteúdos…Em terceiro
lugar, finalmente, o equilíbrio entre a actualidade e o rigor dos conteúdos e a clareza na sua
apropriação, capaz de propiciar, assim o pensamos, um alargamento dos públicos potenciais
desta colecção. Ela dirige-se, na verdade, aos especialistas das diferentes áreas mas, também,
aos chamados «novos intermediários culturais», aqueles e aquelas que lidam com a produção,
difusão e manuseamento da informação e do conhecimento.
O valor simbólico das sociedades actuais está à vista de todos. Importa, por isso, desenvolver
lógicas de cidadania activa, o que requer uma franca, plural e permanente actualização de
repertórios. Ditas de risco, as nossas sociedades são também reflexivas, já que, cada vez mais,
os nossos comportamentos incorporam capital informacional.
PREFÁCIOJoão Teixeira Lopes
005
006
Urge, ainda, que sejam sociedades críticas e exigentes, que tenhamos consciência não só dos
limites e constrangimentos (as portas que se fecham), mas também das possibilidades de
mudança (as janelas que se abrem) nos profissionalismos da inovação e da criatividade.
João Teixeira Lopes. Sociólogo. Professor Associado com Agregação do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto e coordenador do Instituto de Sociologia, unidade de I&D da Fundação de Ciência e Tecnologia.
Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Doutorado em Sociologia da
Cultura e da Educação com a Dissertação – A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,
Edições Afrontamento, 2000).
Membro efectivo do Observatório das Actividades Culturais entre 1996 e 1998 e seu actual colaborador. Foi programador
da Porto Capital Europeia da Cultura 2001, assessor do Presidente da Câmara de Matosinhos para os assuntos socioculturais
(2000-01), fez parte de equipas de estudo e foi avaliador de projectos.
Escreveu, entre 1996 e 2007, dez livros, quatro dos quais em co-autoria, e co-organizou outros dois.
007
Resumo
Esta introdução estrutura-se em dois eixos transversais: por um lado, iremos apresentar os
grandes princípios que devem estar por detrás de um programa de promoção de leitura
desenvolvido a partir de uma biblioteca pública ou de uma biblioteca escolar, por outro lado,
iremos concretizar a aplicação destes princípios no Programa “Oeiras a Ler”, que enquadra
muitos dos projectos que serão apresentados ao longo deste volume.
Promoção da leitura
É nossa profunda convicção que a promoção da leitura deve ser assumida como a missão
fundamental das bibliotecas públicas e das bibliotecas escolares em Portugal. Só através de
um trabalho sistemático e continuado, desenvolvido a longo prazo, será possível obter alterações
substanciais na situação actual, caracterizada pelos baixos índices de leitura da população
portuguesa.
A diversidade das leituras e dos leitores
Podemos definir a leitura como o processo de descodificação de um texto escrito num contexto
significativo específico (para onde é convocada a história de vida de cada indivíduo leitor, ou
seja, as suas vivências, os afectos, os conhecimentos, as emoções, etc.), independentemente
do suporte físico em que este está registado.
Esta definição remete-nos para a ideia de que existem diversos tipos de leitura e,
consequentemente, diversos tipos de leitor.
A promoção da leitura deve ter em conta esses dois factos. Não podemos cair no erro de
associar a leitura somente à leitura das grandes obras-primas da literatura. Esta visão,
profundamente elitista e redutora, muito tem contribuído para a desvalorização social do acto
de ler, ao remeter todas as outras formas de leitura para um estatuto de menoridade cultural.
Estão, neste caso, a leitura dos jornais desportivos, a leitura da BD, a leitura dos romances
cor-de-rosa, a leitura de livros técnicos, etc.
INTRODUÇÃOFilipe Leal
009
010
A leitura pode ter uma dimensão lúdica e estética (ler pelo prazer de ler), mas comporta
também uma dimensão instrumental e pragmática (ler para conhecer). Na promoção da leitura,
nenhuma destas dimensões deve ser sobrevalorizada em detrimento da outra.
Respeitar os diferentes percursos individuais de leitura, dando a descobrir novos caminhos, é a
melhor forma de ter em conta os diferentes tipos de leitor. Não nos podemos esquecer que entre
os leitores mais assíduos das bibliotecas públicas se encontram os leitores dos jornais desportivos
e os jovens que vão realizar pesquisas para cumprirem os seus deveres escolares.
A realização das actividades de promoção de leitura deve ter em conta esta diversidade de
tipos de leituras e de tipos de leitores não excluindo, à partida, nada nem ninguém. Promover
a leitura deve ser uma arte da sedução, uma partilha feita de cumplicidades, um generoso acto
de dar a ler.
A formação de crianças leitoras
Numa perspectiva abrangente (que vai muito para além do processo de aquisição das
competências de leitura), a formação de leitores é uma responsabilidade partilhada entre pais,
professores e bibliotecários, ou seja, é determinante que tudo aconteça dentro do triângulo
«biblioteca – escola – família».
Se é na escola que as crianças adquirem as competências necessárias à leitura (ou não), é na
família que ocorre (ou não) a socialização primária da leitura. Assim sendo, promover a leitura
junto das crianças é obrigatoriamente sensibilizar e envolver os adultos (técnicos de bibliotecas,
professores e pais), destacando o seu papel determinante de companheiros de viagens e de
descobertas. A promoção da leitura pode, inclusive, ser feita simultaneamente junto da criança
que ouve a história e do adulto que a lê.
A consolidação dos hábitos de leitura
Abrir novos horizontes, promovendo a expansão e consolidação de hábitos de leitura devem ser
um objectivo estratégico a perseguir. Para além de criar as condições para manter os leitores
activos a ler, há que perspectivar formas de combater a relutância à leitura.
Para além do investimento inicial na formação de crianças leitores, devem ser desenvolvidas
actividades que estimulem a prática da leitura por parte dos jovens, fortalecendo, deste modo,
os hábitos de leitura. O período da juventude é, sem dúvida, uma fase determinante, pois é
nesta faixa etária que mais se acentua o fenómeno de relutância à leitura.
011
Podemos definir um leitor relutante como alguém que, apesar de ter as competências de
leitura, opta por não ler. Entre as várias causas deste fenómeno podemos citar as seguintes:
“O que é que torna os jovens leitores relutantes? 1. Eles associam a leitura ao fracasso; 2. Eles
não estão interessados em ideias; 3. Eles não são capazes de estar sossegados o tempo
suficiente para lerem; 4. A sua natureza egocêntrica não encontra reflexo em muitos dos livros
que supostamente devem ler; 5. A leitura não fornece o nível de entretenimento que eles
procuram; 6. Eles consideram contraproducente lerem ou lerem somente tipos de materiais
pré-determinados; 7. Eles cresceram num ambiente de não-leitura; 8. Ler é uma tarefa solitária
e em consequência é considerada anti-social; 9. Ler é uma «coisa de adultos» ou uma «coisa
da escola» e em consequência é rejeitada; 10. Ler é difícil para eles porque lhes faltam
competências de leitura.”1
O envolvimento da comunidade
O envolvimento efectivo da comunidade na promoção da leitura é fundamental para garantir
a ocorrência de mudanças profundas e duradouras. Sozinhas as bibliotecas públicas e as
bibliotecas escolares pouco conseguirão, há que criar cumplicidades. Neste capítulo, as
bibliotecas devem assumir uma atitude pró-activa de mobilização de vontades e de liderança
de processos (realizando acções de sensibilização e formação, disponibilizando instalações e
fundos documentais, criando materiais de apoio e de divulgação, obtendo os apoios institucionais
e captando os recursos financeiros, etc.).
O envolvimento da comunidade não se pode esgotar na relação mais ou menos próxima entre
a biblioteca pública e algumas escolas. O estabelecimento de parcerias estratégicas é um
factor de sucesso para a mobilização da população adulta. Para além das instituições nacionais
directamente ligadas à leitura, há que trabalhar em conjunto com autores, editores e livreiros.
Também as escolas superiores de educação deverão ser chamadas à colaboração, assim como
os centros de formação de professores. Mas é na constituição de uma rede informal de pessoas,
associações, colectividades, etc., que poderá estar o segredo para envolver um maior número
de pessoas.
Programa “Oeiras a Ler”
O Programa «Oeiras a Ler», da responsabilidade da Câmara Municipal de Oeiras (CMO), tem
como principal finalidade implementar uma estratégia municipal para a promoção da leitura
no Concelho de Oeiras. Para tal, têm sido desenvolvidos, desde 2004, um conjunto diversificado
e articulado de projectos dirigidos aos diferentes públicos (crianças, jovens, adultos, profissionais).
012
Objectivos estratégicos
Criar e fortalecer o gosto pela leitura nas crianças – O gosto pela leitura começa a despertar
mesmo antes da criança saber ler. O contacto precoce da criança com a leitura é determinante
no seu desenvolvimento psicomotor, social e afectivo. Enquanto forma de descoberta do Eu,
do Outro e do Mundo, a leitura ajuda a crescer. Neste contexto, torna-se fundamental desenvolver
projectos que, de uma forma continuada, ajudem as crianças a trilhar os seus percursos
individuais de leitura desde a mais tenra idade até à adolescência.
Consolidar as práticas de leitura nos jovens – O grande desafio do trabalho de promoção da
leitura com os jovens é conseguir que estes vejam a leitura como algo mais do que um mero
instrumento para aprender ou como um dever escolar. Apresentar a leitura como uma forma
de lazer e como uma forma de descoberta e afirmação individual torna-se fundamental para
consolidar as práticas de leitura nos jovens. Para tal, há que desenvolver projectos num contexto
extracurricular e tendo em conta as formas de ser e de estar dos jovens.
Diversificar as práticas de leitura nos adultos – O público adulto é, sem dúvida, o mais
heterogéneo ao nível das práticas de leitura e dos hábitos de leitura. É nesta faixa etária que
podemos encontrar, em paralelo, indivíduos com hábitos de leitura consolidados (escassa
minoria) e indivíduos sem qualquer prática quotidiana da leitura (esmagadora maioria). Tendo
em atenção este facto, há que pensar os projectos em função destes diversos perfis de leitor,
de modo a diversificar as suas práticas de leitura.
Constituir um corpus teórico/prático para a promoção da leitura – O sucesso de um programa
de promoção de leitura só pode ser avaliado a longo prazo. Esta constatação alerta-nos para
a necessidade de realizar este trabalho com o máximo rigor e a maior qualidade. Não existindo
fórmulas mágicas nem verdades científicas, a única forma de mapear os territórios da leitura
é através do exercício de uma prática reflectida e crítica, o que nos obriga, permanentemente,
a questionar conceitos, a repensar estratégias, a testar modelos, a avaliar os resultados.
Estratégias globais
Assumir a promoção da leitura como uma prioridade estratégica – Em Portugal, tendo em
atenção as características socioculturais das populações (principalmente no que diz respeito
à falta de hábitos de leitura), é fundamental que a promoção da leitura seja assumida como
uma prioridade estratégica para as bibliotecas públicas e para as bibliotecas escolares. No
caso das Bibliotecas Municipais do Concelho de Oeiras, a promoção da leitura foi assumida
013
como uma área de intervenção estratégica. Acreditamos que só através da concretização de
programas de promoção da leitura é possível criar e fidelizar públicos leitores. Assim sendo, muitos
dos esforços e dos recursos disponíveis devem ser canalizados para a intervenção nesta área.
Levar as actividades de promoção de leitura para «fora de portas» – Muitas das actividades
de promoção da leitura desenvolvem-se em âmbito escolar, em âmbito familiar, em âmbito
institucional, etc. Acima de tudo, há que ter uma atitude pró-activa indo ao encontro das pessoas
nos locais onde habitam, estudam, trabalham ou ocupam os seus tempos livres. Deste modo,
é fundamental que as actividades não se desenvolvam exclusivamente nas instalações das
Bibliotecas Municipais do Concelho de Oeiras. Há que envolver neste trabalho o maior número
possível de instituições e organizações do Concelho de Oeiras, utilizando as suas próprias
instalações e articulando os esforços e os recursos disponíveis.
Trabalhar em estreita colaboração com outros serviços da CMO – Apesar da iniciativa de
definição deste programa ter partido da Divisão de Bibliotecas, Documentação e Informação
(DBDI), é fundamental que a sua implementação conte com a estreita colaboração de outros
serviços da Câmara Municipal de Oeiras. Esta necessidade prende-se com diversos factores,
dos quais destacamos: desenvolvimento de actividades em áreas afins às da DBDI; realização
de acções directas junto de muitos dos públicos abrangidos pelo programa; disponibilidade
de recursos que podem ser utilizados no âmbito de programa (instalações municipais, recursos
humanos, meios técnicos, etc.); relações privilegiadas com instituições e organizações do
Concelho.
Estabelecer uma rede permanente de parcerias estratégicas – Apesar do âmbito municipal
do programa (num duplo sentido: a Câmara Municipal de Oeiras é a promotora do programa;
o Concelho de Oeiras é a área de intervenção do programa), é fundamental estabelecer parcerias
com outras entidades nacionais e internacionais com trabalho desenvolvido na área da promoção
da leitura. A nível nacional destacamos: Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, Fundação
Calouste Gulbenkian, Fundação Círculo de Leitores, Rede de Bibliotecas Escolares, Plano
Nacional de Leitura. A nível internacional destacamos: Fundación Germán Sánchez Ruipérez
(Espanha), Opening The Book (Inglaterra).
Angariar recursos e apoios externos à Câmara Municipal de Oeiras – Para garantir o sucesso
do programa tem sido determinante conseguir angariar recursos e apoios externos à Câmara
Municipal de Oeiras, nomeadamente junto dos parceiros estratégicos. Sem dúvida que os
014
recursos humanos e os recursos financeiros são dois dos recursos imprescindíveis para a
persecução dos objectivos do programa. Todavia, é também bastante importante angariar
apoios formais e informais para suportar outras áreas do programa. Damos como exemplo o
apoio dos meios de comunicação social na divulgação das iniciativas do programa e o mecenato
cultural por parte de empresas do Concelho de Oeiras.
Tipologias de projectos
No âmbito do Programa «Oeiras a Ler» têm sido desenvolvidos três tipologias de projectos:
projectos de continuidade, projectos pontuais, projectos de envolvimento.
Os projectos de continuidade caracterizam-se por terem um carácter quotidiano, ou seja, são
desenvolvidos de uma forma sistemática através de um conjunto de actividades regulares (dia
após dia, semana após semana, mês após mês) que, na maior parte das vezes, não têm
visibilidade fora do âmbito do próprio projecto. Apesar de aplicarem modelos comuns aos
vários grupos envolvidos no projecto, seguem uma dinâmica própria. Para este tipo de projecto
podemos apontar três exemplos: Histórias de Ida e Volta, Viagens Por Entre Linhas, Grupos
de Leitores.
Os projectos pontuais caracterizam-se por terem um carácter único, ou seja, realizam-se
somente uma vez. Estes projectos podem ser da iniciativa directa das entidades envolvidas no
programa ou serem da iniciativa de entidades exteriores ao próprio programa. A existência
desta modalidade de projecto é importante para poderem ser acolhidas propostas extra-
programação. Como exemplo deste tipo de projecto apontamos: realização de um estágio,
apresentação de um espectáculo, realização de um projecto-piloto, acolhimento de uma
exposição itinerante, etc.
Os projectos de envolvimento caracterizam-se pela sua capacidade de envolvimento de um
grande número de pessoas, ou seja, pretendem ser projectos de grande impacto junto do
público-alvo. Aproveitando o efeito mediático da iniciativa, procura-se dar visibilidade ao trabalho
quotidiano efectuado, mobilizar vontades e atrair novas parcerias, conquistar e fidelizar os
públicos-alvo a que se destinam. Como exemplo deste tipo de projectos apontamos: realização
do Festival Ondas de Contos, realização do Pijama às Letras, etc.
Metodologia de Implementação
A operacionalização do programa é efectuada utilizando uma metodologia baseada na gestão
015
de projectos. Esta metodologia, composta por quatro etapas, é a que, no nosso entender, mais
se adequa ao tipo de projectos que são desenvolvidos. Vejamos como se caracteriza cada uma
dessas etapas:
Diagnóstico – Na primeira fase de desenvolvimento é sempre feito, projecto a projecto, o
diagnóstico da situação. Neste diagnóstico deverão ser inventariadas: as características do
público-alvo (faixa etária, perfil sociocultural, formação académica, frequência das Bibliotecas
Municipais de Oeiras (BMO), práticas de leitura, estilo de vida, interesses e expectativas, etc.);
os parceiros de projecto (instituições, bibliotecas, escolas, associações, pais, avós, voluntários,
centros de saúde, etc.); os recursos disponíveis (espaços funcionais, fundos documentais,
recursos humanos, tecnologias da informação, etc.); fontes de financiamento (verbas provenientes
do Plano de Actividades da CMO, apoios institucionais, patrocínios e mecenato cultural, etc.);
canais de comunicação (base de dados de utilizadores da BMO, lista de mailling da CMO, rede
de muppies, contacto com os pais através das escolas, etc.). Esta fase de diagnóstico irá ter
como produto final a produção de um relatório de diagnóstico.
Planeamento – Em função do diagnóstico, anteriormente efectuado, são estabelecidos os
grandes contornos do projecto (contexto, objectivos, estratégias e actividades), as tarefas a
realizar (definição das tarefas, sequência e calendarização de execução, responsáveis pela sua
execução), o orçamento (despesas, fontes de financiamento, etc.), os meios utilizados (espaços
funcionais, fundos documentais, tecnologias de informação, transportes, etc.), os canais de
comunicação e os instrumentos de avaliação dos resultados. Esta fase de planeamento irá ter
como produto final a produção de um plano de actividades do projecto.
Execução – Nesta fase é posto em prática o plano de actividades definido para o projecto. O
processo da execução inclui oportunidades para verificar o progresso e ajustar o plano, se
necessário. A comunicação e a gestão de pessoal tornam-se muito importantes nesta etapa.
São realizadas reuniões periódicas para monitorização da execução das tarefas. Esta fase irá
ter como produto final a própria realização do plano de actividades.
Avaliação – A avaliação do projecto decorre em níveis complementares: 1º nível, avaliação do
projecto através dos seus resultados imediatos (no final de cada projecto, utilizando os
instrumentos de avaliação adequados, será feito um balanço obtendo as opiniões dos participantes
e dos dinamizadores das actividades); 2º nível, avaliação trimestral dos projectos pela Comissão
Consultiva (tendo por base os relatórios de avaliação dos projectos será feita uma avaliação
016
mais qualitativa dos resultados obtidos); 3º nível, através dos estudos efectuados pelo Observatório
da Leitura do Concelho de Oeiras (a criar no âmbito do programa, este observatório irá permitir
monitorizar e avaliação os resultados numa perspectiva a médio prazo e com um maior grau
de profundidade e consistência). Esta fase de avaliação irá ter como produto final a produção
de um relatório de avaliação. [encontra-se em implementação].
Nota
1Adaptado e traduzido de Lance Gentile e Merna McMillan, “Why won’t teenagears read?”. Citado por Patrick Jones –
Connecting young adults and libraries. Nova York, Neal-Shuman Publishers, 1999. p. 168.
Filipe Leal é licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa e possui o Curso de Especialização em Ciências
Documentais (FLL) e o Curso de Especialização em Estudos das Informação e Bibliotecas Digitais (ISCTE). Obteve em
2007 o grau de Mestre em Educação e Leitura na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação.
Desde 1988 que exerce a actividade de bibliotecário, em diversas bibliotecas públicas portuguesas (Setúbal, Alcácer do
Sal, Vendas Novas e Oeiras). Desde Novembro de 2002, é Chefe de Divisão das Bibliotecas, Documentação e Informação
da Câmara Municipal de Oeiras.
Para além da sua actividade como bibliotecário desenvolve também uma actividade regular de docência e formação na
área das bibliotecas. Foi docente no Curso de Especialização em Ciências Documentais na Universidade Autónoma de
Lisboa. É formador associado de diversas instituições, entre as quais se destacam: Associação Portuguesa de Bibliotecários,
Arquivistas e Documentalistas (BAD), centros de formação de professores. Entre as matérias em que é formador destacam-
-se: promoção da leitura, bibliotecas escolares, difusão documental.
Ao longo dos anos tem desenvolvido um conjunto diversificado de projectos pioneiros na área da promoção da leitura e
na área da aplicação das TIC na criação de novos serviços.
017
PROMOVER A CULTURA ORAL, FORMAR CONTADORES
Ana Arnold Guerreiro, Rita Dornellas, Carla Diniz
Resumo
Este projecto surgiu em 2004, a partir de uma candidatura apresentada por cinco bibliotecas
públicas e um museu de tradição oral europeus ao programa «Cultura 2000» da União Europeia.
Teve por objectivo geral dar a conhecer a tradição oral dos cidadãos dos países de Leste e dos
países lusófonos residentes em Oeiras.
Para tal, foi desenvolvido um conjunto articulado de actividades: recolha de contos entre a
população imigrante, realização de oficinas de formação de contadores, realização de sessões
de contos abertas ao público, edição de uma antologia dos contos recolhidos.
Ainda no âmbito da primeira edição, foram realizados dois importantes eventos: a nível nacional,
a sessão de contos «A-Braços com Contos». A nível internacional, a «Maratón de los Cuentos»,
em Guadalajara (Espanha).
Este projecto continuou em 2005/06, apenas com recursos autárquicos, mantendo as mesmas
características da primeira edição e assinalando uma crescente procura pelas acções de
formação de narradores, por parte de utilizadores com as mais variadas habilitações escolares.
Registou-se, igualmente, uma intensa solicitação por parte das instituições educativas,
hospitalares e autárquicas pela cooperação dos contadores nas respectivas entidades. A 3ª
edição (2006/07) deste projecto já está iniciada.
Aqui reside a resposta à nossa questão: através dos contos estabelecem-se pontes entre
sensibilidades e culturas, entre oralidade e a literacia, entre a voz e a letra, entre a pessoa e o
livro.
Em resumo, promove-se uma abordagem artística, lúdica e estimulante para o desenvolvimento
da leitura. Um presente, que casa o passado com o futuro.
HISTÓRIAS DE IDA E VOLTA
019
020
Introdução
“Histórias de Ida e Volta – Património Narrativo dos Novos Europeus” concretizou-se a partir
do projecto apresentado pelas Bibliotecas Públicas de Guadalajara e Azuqueca (Espanha),
Cologno Monzese (Itália), Oeiras (Portugal), Vitrolles (França) e pelo Museu Konstanzin-
Jeziorna (Polónia), aprovado e financiado pela União Europeia no âmbito do programa “Cultura
2000”.
Como prioridade, “Histórias de Ida e Volta” propôs-se dar a conhecer o património cultural
dos cidadãos oriundos dos países que recentemente integraram a União Europeia bem como
de cidadãos de países de expressão lusófona, residentes no Concelho de Oeiras. Contudo, toda
a população com domicílio no concelho (e não só) teve a oportunidade de poder participar.
Este projecto, na sua primeira edição (2004/05), teve um carácter exploratório, principalmente
quanto ao envolvimento com as diversas comunidades. Procurou-se, acima de tudo, reforçar
as identidades culturais e criar pontes de diálogo e de integração dessas mesmas comunidades
através de um património comum: os contos de tradição oral (cuja matriz é transversal aos
diversos países e continentes).
Enquadramento do Projecto
Numa primeira fase, de preparação para a recolha da tradição oral, a aproximação foi realizada
tendo por base encontros informais, que decorreram nas escolas e nas organizações de
imigrantes, partindo do princípio que o convívio desempenha um papel fundamental na quebra
de barreiras e inibições.
Esta fase foi fundamental para identificar, dentro do grupo alargado, os potenciais porta-vozes
do património oral da sua comunidade. Paralelamente, iniciou-se, a recolha e registo em áudio
dos contos que foram surgindo.
Numa segunda fase, foram desenvolvidas oficinas de formação com os frequentadores da
biblioteca que corresponderam ao desafio e divulgação efectuada sobre as características
deste projecto.
Como objectivo das formações realizadas, procurou desenvolver-se as competências de
narração, promovendo a evolução de um registo espontâneo para um outro, mais trabalhado
021
ao nível da arte de contar contos (escolha de repertório, trabalho de voz, expressão dramática,
interacção com o público, etc.).
O trabalho de oficina incidiu, essencialmente, no património oral e literário de cada um dos
aprendizes do contar.
Passamos a apresentar uma breve panorâmica do trabalho realizado:
TOTAIS 2004 / 2005 2005 / 2006 2006 / 2007
Ateliers de Formação 6 4 7
Horas de formação 40 38 56
Formadores 3 4 4
Inscrições 156 174 176*
Participações 100 108 122*
Médias etárias 41 37 34*
Géneros (masc/fem) 20 M / 76 F 21 M / 112 F 14 M / 114 F
Figura 1 – Dados numéricos sobre as três edições do projecto (* dados provisórios)
Este percurso de formação registou dois momentos altos de exposição pública: num contexto
nacional, no dia 2 de Abril, através da sessão de contos «A-Braços com Contos», que consistiu
na apresentação pública dos novos contadores formados na Biblioteca Municipal de Oeiras, e,
num contexto internacional, em Junho, através da participação na «Maratón de los Cuentos» em
Guadalajara (Espanha), que reuniu os contadores dos diversos parceiros envolvidos no projecto.
No decurso da última fase, deu-se a conhecer ao público em geral os textos recolhidos junto
das diversas comunidades, através da voz dos seus informantes, por ocasião do lançamento
do Dossier de Antologia de Contos. O leque de géneros colectados é amplo: temos contos,
lendas, histórias de vida, receitas, provérbios e adivinhas. O trabalho de recolha foi generosamente
orientado, identificado e classificado pela eminente investigadora de contos da Universidade
do Algarve, Doutora Isabel Cardigos.
Esta colectânea foi distribuída pelas escolas do concelho, a particulares e instituições que se
relacionam com esta temática.
022
Reedições do Projecto
O sucesso alcançado pelo “Histórias de Ida e Volta” levou-o à sua reedição no ano seguinte,
apenas com financiamento autárquico e mantendo a estrutura de trabalho inicial.
Por parte do público, tem registado uma crescente adesão e procura pelas acções de formação,
bem como pelos serões de contos que são organizados com uma periodicidade bimestral.
O crescente investimento nos serões de contos levou-nos a implementar um evento que se
pretende que venha a constituir uma tradição de grande festa dos contos, tirando partido das
excelentes características geográficas do concelho de Oeiras – as praias.
Deste modo nasceu o “Ondas de Contos” que se realiza à noite, na praia da Torre e constitui
uma festa de acolhimento do início do Verão, das férias escolares, de apresentação dos novos
contadores, para além de todos quanto colaboraram no projecto ao longo do ano.
Os Contadores
Aqui se enumeram os profissionais dos contos e da oralidade que já deixaram a sua marca na
história deste projecto, enquanto contadores ou como orientadores de formação: Cristina Paiva
(Associação Andante), Benita Prieto, Beatriz Quintela, Ana Castellano, Antonio Torrado, Cristina
Taquelim, António Fontinha, Ângelo Torres, Tim Bowley, Carles Garcia Domingo, Charo Pita,
Pep Duran, Nicolás Buenaventura e Sandra Sanchez, Thomas Bakk, Bruno Baptista, Élcio di
Trento, Jorge Serafim, Roberto de Freitas. De todos os nomes supra enunciados é imperativo
que se faça uma menção honrosa a dois grandes profissionais que, desde o primeiro momento,
ofereceram a sua contribuição sob a forma de aconselhamento e consultoria: a Dra Cristina
Taquelim e António Fontinha.
Importa destacar uma feliz ocorrência que resulta da primeira edição – a criação de uma bolsa
de contadores, que entretanto cresceu em número de efectivos e mantém uma colaboração,
contínua e semanal, com as actividades da Biblioteca.
Respectivamente para o público escolar que se desloca à biblioteca para assistir às “Quintas
com Contos” assim como para o público familiar que se inscreve para a actividade “Sábados
com Contos”.
Quanto a bolsa de contadores do “Histórias de Ida e Volta”, parece-nos interessante apresentar
uma descrição das suas características:
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• Média etária: 41 anos
• Habilitações literárias dos participantes:
63% Licenciados
32% Ensino Sec./ Tec-Prof
5% Ensino Básico
ACTIVIDADE DESENVOLVIDA PELOS “NOSSOS” CONTADORES
(Dados coligidos até à data de Março 2007)
Colaboração com a BMO:
• Quintas com Contos – 50 sessões
• Sábados com Contos – 60 sessões
• Serões de Contos – 4 (Oeiras, Carnaxide e Algés)
• Lançamento do Dossier “Histórias de Ida e Volta” – 1 Sessão
• Estafetas das Palavras Andarilhas – 4 sessões
Colaboração com a comunidade educativa do Concelho:
• Escolas Secundárias – 6 sessões
• Escolas EB 1– 32 sessões
• Escolas EB1 e Secund. de outros Concelhos – 7 sessões
Colaboração com outros serviços da CMO:
• Fábrica da Pólvora (Dia dos Museus) – 5 sessões
• Gabinete de Apoio à Juventude – 1 sessão
Colaboração com a Comunidade:
• Hospitais – 34 sessões
• Instituições de Solidariedade Social – 16 sessões
• Associação de Moradores 18 de Maio – 1 sessão
• Estabelecimentos Prisionais – 4 sessões
• Outros eventos de contos – 7 sessões
024
PARTICIPAÇÃO DOS CONTADORES EM FESTIVAIS E OUTROS EVENTOS DE PARTILHA DE
CONTOS
(Dados coligidos até à data de Março 2007)
• Maraton de los cuentos – Guadalajara 2005
• Maratona de contos ”Histórias Correntes” – BM Tomar 2005
• VII/VIII Palavras Andarilhas – BM Beja 2005/2006
• Encerramento Palavras Andarilhas – BM Sintra 2005
• Encontro de Contadores Fundação do Gil – Lisboa 2006
• Clássicos da Gulbenkian “Contos que a voz contou” Lx 2006
• Ondas de Contos – Praia da Torre, Oeiras, 2006
• Cape Clear International Storytelling Festival – Irlanda 2006
• Encerramento Palavras Andarilhas – BM Oeiras 2007
Fruto desta intensa actividade “contística”, os novos narradores, que entretanto se organizaram
em três grupos de contadores, têm registado uma excelente procura pela sua colaboração por
parte de outras instituições da comunidade. Nomeadamente escolas, hospitais, casas de
acolhimento, lares. Um dos grupos já se encontra organizado em associação, no entanto, nenhum
dos contadores da bolsa de contadores do projecto faz dos contos a sua actividade profissional.
Surgimento do interesse pela narração e pela cultura oral
Antes de se abordar a situação actual, vamos tentar definir qual o papel desempenhado pela
narração oral no passado.
A narração de histórias foi sempre uma técnica de transmissão de conhecimentos e sabedorias
e ao mesmo tempo puro e simples entretenimento.
Fazendo uma breve retrospectiva histórica citamos Meireles (1998, p.7) «o conto popular que,
nos primórdios, não era considerado narrativa para a infância e juventude mas sim para um
público alargado, caracterizava-se por uma narração presencial e afectiva. Quem geralmente
o contava eram as amas, as avós, os escravos, as pessoas mais velhas ou aqueles que ao longo
dos tempos se destacavam como bons contadores, capazes de captar e manter a atenção dos
ouvintes com quem criavam, por vezes, espaços de diálogo.»
A representação oral da tradição tem dois elementos principais: quem conta a tradição e o
género pelo meio do qual a tradição se expressa. Por exemplo, em vários lugares do mundo,
025
como em Africa ou nas Américas, onde as pessoas não tiveram acesso à escrita, durante um
longo período de tempo, as suas sabedorias ficaram guardadas na memória e exprimiram-se
sob a forma de mitos, cantos ou relatos épicos.
Os costumes, religiões e tradições orais (representadas sob a forma de contos, lendas ou
mitos) de pessoas privadas de bens e poderes materiais, como no caso das etnias, eram
entendidos como folclore, em oposição à “cultura” da classe dominante. Propp, citado por
Meireles (1998, p. 10): «… geneticamente, o folclore deve ser aproximado, não à literatura, mas
à língua, a qual também não foi inventada por alguém e não tem nem autor, nem autores»,
assim, a «inexistência de um autor permite a apropriação, pelo colectivo, de um produto que
é, também ele, colectivo. E se o colectivo cria, essa sua obra transmite forçosamente valores
e normas.» Meireles (1998, p.11)
A narração oral proporcionava também oportunidades para esquecer dificuldades e carências
de variada ordem: alimentares, privação da liberdade ou ainda actuava como factor de promoção
pessoal para quem dominasse a arte, como refere Sanfilippo (2005).
Abordar a narração oral implica fazer uma breve alusão ao conceito de oralidade. Este conceito
só começou a ser seriamente estudado a partir do séc. XX. Para Tovar, citado por Sanfilippo
(2005, p.54), «com frequência se tem confundido (a oralidade) com o conteúdo da língua falada».
A oralidade convive com variados códigos não-verbais (olhares, gestos, expressões faciais,
tom de voz, etc) sendo que «a palavra deixa de ter importância vital, para ser apenas coadjuvante
do gesto, da expressão facial e do ritmo» Meireles (1998, p. 13). Ainda segundo Sanfilippo (2005,
p.55), «a oralidade pode-se definir em oposição com a escrita (e) ser, simplesmente, uma
palavra que carece da possibilidade de ser fixada mediante signos escritos».
Regressando à actualidade e, citando Sanfilippo (2005, p.124), «Zipes, chama à atenção para
um facto indiscutível: o renascimento da narração oral desenvolveu-se como um movimento
idealista, os novos narradores podem considerar-se pessoas em busca de um novo espírito
comunitário e solidário e apresentam a sua actividade como uma recuperação dessa harmonia
e comunicação de valores, que de forma romântica, atribuem à narração oral de tipo tradicional»,
no entanto, esta situação não significa que a realidade seja igual para todos os contadores.
Existem os contadores, norte-americanos e espanhóis, profissionalizados e conscientes das
leis do mercado, que actuam como animadores ao serviço de editoras de livros para crianças,
apresentando-se como os herdeiros de antigas sabedorias tribais.
026
Com o decorrer das épocas, a tradição oral, passou a ser instrumento ao serviço da leitura e
da escrita, tendo-se revelado útil para o seu desenvolvimento. António Fontinha propõe uma
explicação para este fenómeno: «antigamente, saber ler e escrever não era para todos e tinha
prestígio, hoje é corriqueiro. Aprende-se o utilitário e, assim, ninguém lê por gosto. E de onde
surge o gosto? Quem escuta tem imaginário, porque ouvir contar é a melhor maneira de criar
imagens. Quem tiver imaginação depois tem que a alimentar como se fosse um bicho. A leitura
é uma forma de fazer isso. O contador de histórias não pode estar lá sempre e, como não posso
contar histórias a mim próprio, pego num livrinho e imagino. É um pouco uma caricatura, mas
é o fundamento que leva muitas bibliotecas terem a hora do conto.»
«Com efeito, como em todas as artes orais, a narração oral tem uma grande capacidade
persuasiva, que pode ser utilizada para os fins mais díspares, para que as crianças leiam mais
mas também para que as pessoas sejam atraídas para um qualquer tipo de produto ou
consumo» Sanfilippo (2005, pp.127). Ainda, na sequência desta competência persuasiva, é
importante referir também o «valor terapêutico dos contos e do acto de contar.» Sanfilippo
(2005, pp. 128), Jorge Bucay, Jorodowski, Clarissa Pinkola Estes ou Pep Duran «a partir de
distintos pontos de vista e com distinta formação de tipo psicanalítico, estes autores apresentam
o conto e a narração oral de contos como um meio de autoconhecimento ou um instrumento
de crescimento pessoal.» Sanfilippo (2005, pp.128)
Conclusão
A narração oral apresenta, desta forma, uma grande polivalência de recursos:
• tem desempenhado funções distintas em diferentes épocas e contextos.
• possui um estatuto ambíguo uma vez que partilha códigos de diferentes artes.
• tem um amplo leque de funções segundo as épocas e as sociedades.
• mantém uma relação com a literatura e com o teatro.
Assim, como principais resultados a alcançar pelo “Histórias de Ida e Volta”, propomo-nos
fomentar os hábitos de leitura e de narração oral, envolvendo todos os interessados, para que
esta característica cultural continue a desdobrar-se e a multiplicar-se, envolvendo um número
significativo de munícipes.
De igual forma, com este projecto, pretendeu-se estimular a criação e dar continuidade de
festas culturais baseadas na leitura e na narração oral, como forma de recuperar os saborosos
027
serões de contos, enquanto espaço de diálogo, de sabedorias e de entretenimento inter-
geracional.
Ana Arnold Guerreiro é licenciada em Psicologia, ramo Educacional, pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA).
Em paralelo, possui formação em Fotografia pelo Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing (IADE) e de Apoio à Pessoa
Deficiente, pela Liga Portuguesa de Deficientes Motores (LPDM). A sua experiência profissional iniciada em 1990
desenvolveu-se essencialmente nas áreas da coordenação/animação sociocultural, programação artística e gestão de
recursos humanos e institucionais. Actualmente, desempenha funções de coordenação do Sector Infantil da Biblioteca
Municipal de Oeiras onde é responsável pela organização vários eventos entre os quais o projecto de constituição de um
directório de recursos electrónicos: ARIANE (Acesso, Recursos, Informação, Actividades, Notícias e Enigmas), destinado
ao público infantil utilizador da Internet.
Maria Rita Bustorff de Dornellas Cysneiros possui o Curso de Artes Visuais e Arte dos Tecidos da Escola António Arroios
e de Técnica Profissional de BAD. Tem experiência profissional como Professora de Trabalhos Manuais, Coordenadora
da Formação Profissional e monitora em vários cursos financiados pelo F.S.E. em articulação com o Centro Regional de
Segurança Social. Na Câmara Municipal de Oeiras: foi técnica no Sector de Gestão Social Divisão de Habitação, fez parte
da equipa do Projecto Europeu URBAN e, actualmente, desempenha funções na Biblioteca Municipal de Oeiras no sector
infantil e faz parte da equipa do Projecto “Histórias de Ida e Volta”, no âmbito da Promoção da leitura, formação artística
de contadores de histórias e recolha de tradição oral.
Carla Susana Diniz possui o curso de Técnica Profissional de Biblioteca e Documentação. Iniciou a sua actividade
profissional desempenhando funções como Monitora de Actividades de Tempos Livres na Escola Primária nº 76 no Alto
de Santo Amaro em Lisboa. Desde 1992, na Câmara Municipal de Oeiras, desempenha funções como Técnica Profissional
de Biblioteca e Documentação no sector infantil da Biblioteca. Tem a responsabilidade das aquisições do fundo documental
para o público infantil. Faz parte da equipa do Projecto “Histórias de Ida e Volta”, no âmbito da Promoção da Leitura,
formação artística de contadores de histórias e recolha de tradição oral.
028
Bibliografia
MEIRELES, Maria Teresa (1998) - Contos e Lendas.
Abordagem e Reflexão. 1º vol., Vega Escolar, Lisboa.
SANFILIPPO, Marina (2005) – El Renascimiento de la
Narración Oral en Italia e España (1985-2005).
Departamento de Literatura Española y Teoria de la
Literatura, Faculdad de Filología Universidad Nacional de
Educación a Distancia.
Guia DN – Rostos feitos de Histórias. Diário de Notícias,
10 Maio 2005, p. 51.
Propostas de Leitura
BETHENCOURT, Francisco (1987) - O Imaginário da magia,
feiticeiras, saludadores e nigromantes no Séc. XVI.
Projecto Universidade Aberta.
BETTELHEIM, Bruno (1991) – Psicanálise doa contos de
fadas. Bertrand, Lisboa.
COSTA, Maria José (1992) – Um Continente Poético
esquecido, as rimas infantis. Porto Ed. ,Porto.
DURAND, Gilbert (1989) – As Estruturas Antropológicas
do Imaginário. Presença, Lisboa.
GUERREIRO, M. Viegas (1983) – Para a história da
literatura popular portuguesa. Bibl. Breve, Lisboa.
GUIMARÃES, Ana Paula (1992) – Olhos Coração e Mãos
do Cancioneiro Popular Português . Círculo de
Leitores, Lisboa.
JÚDICE, Nuno – O Espaço do Conto no Texto Medieval.
Vega, Lisboa.
MEIRELES, Maria Teresa (1998) – Elementos e Entes
Sobrenaturais nos Contos e Lendas. Vega, Lisboa.
PEDROSO, Consiglieri (1992) – Contribuições para uma
Mitologia Popular Portuguesa. 5ª ed., Vega, Lisboa.
PROPP, Vladimir (1992) – Morfologia do Conto. Vega, Lisboa.
RODARI, Gianni (1993) – Gramática da Fantasia. Caminho,
Lisboa.
TODOROV, Tzevtan (1977) – Introdução à Literatura
Fantástica. Morais, Lisboa.
TRAÇA, Maria Emília (1992) – O Fio da Memória, do conto
popular ao conto para crianças. Porto Editora, Porto.
Eventos regulares sobre narração
“Um Carreirinho de Palavras de Letras à Procura da
Palavra” – Maio – Pombal.
“Diferentes Leituras” – Outubro – Vila Nova de Paiva.
“Aprendizes do Contar – Palavras Andarilhas” –
– Setembro – Beja.
“Contos de Liberdade” – Algarve.
Páginas web
ARCA – Associação Recreativa e Cultural do Algarve:
http://www.arca-algarve.org/
Buga – Contadores de histórias e lendas:
http://www.bugahistorias.org/mueaudio.htm
Camaleão – Associação Cultural:
http://grupocamaleao.blogspot.com
Catálogo de la Narración Oral:
http://www.maratondeloscuentos.org/centro/catalogo/
catalogo.htm
Contabandistas de estórias:
http://contabandistas.no.sapo.pt
Contando História:
http://www.contandohistoria.com.br/flash/index.html
Contos interactivos:
http://www.contosinterativos.com/
História do Dia:
http://www.historiadodia.pt/pt/index.aspx
O Bichinho de Conto:
http://www.obichinhodeconto.pt/
O Contador de Histórias:
http://www.ocontadordehistorias.com/
Memória Media:
http://www.memoriamedia.net
Roda de Histórias:
http://www.rodadehistorias.com.br/aroda.asp
Simpósio Internacional de Contadores de Histórias:
http://groups.msn.com/8ajnm7ic9kc86h3lg1a2o4ugu1/
simpsiodecontadoresdehistrias2004.msnw
Tellabration:
http://www.tellabration.org/History/index.htm
The National Storytelling Network:
http://www.storynet.org/
Views from the Edge: the Short Story Revisited:
http://www.fl.ul.pt/eventos/short_story/main.htm
Equipa do Projecto “Histórias de Ida e Volta” – BMO
Contactos
Ana Arnold Guerreiro – [email protected]
Rita Dornellas – [email protected]
Carla Diniz – [email protected]
029
Abstract
A avaliação dos resultados do impacto que os grupos de leitores têm no âmbito da promoção
da leitura está por fazer em Portugal. No entanto, independentemente do local onde decorram
ou qual a designação que adoptem, a sua organização é quase sempre um sucesso, enquanto
espaços de reunião entre pessoas que partilham o mesmo gosto pelos livros e pela leitura.
Através da descrição das práticas dos Grupos de Leitores das Bibliotecas Municipais de Oeiras
(BMO) procura-se mostrar como têm funcionado estes grupos e quais os objectivos atingidos,
ao mesmo tempo que já se perspectivam novos caminhos para este tipo de estratégia de
desenvolvimento do leitor.
Introdução
Existem vários modelos para os grupos de pessoas que em vários locais se reúnem para falar
sobre um livro lido previamente: grupos de leitura, clubes de leitura, comunidades de leitores,
grupos de leitores.
A sua introdução em Portugal foi efectuada por Conceição Caleiro que, através do IPLB (Instituto
Português do Livro e das Bibliotecas), apresentou às bibliotecas públicas uma nova forma de
promoção de leitura e de contacto entre os leitores e as obras literárias (Comunidades de
Leitores).
Nas Bibliotecas Municipais de Oeiras optou-se pelo modelo de Grupos de Leitores que coloca
o enfoque no grupo, enquanto elemento agregador da actividade, e nos leitores, enquanto
elementos principais em redor dos quais se desenvolve a acção do grupo e do processo da
leitura.
Grupos de Leitores
Um Grupo de Leitores é constituído por um conjunto de pessoas que se reúne para falar sobre
um livro cuja leitura foi acordada previamente. Esta designação pode parecer demasiado
GRUPOS DE LEITORES NAS BIBLIOTECASMUNICIPAIS DE OEIRASBruno Duarte Eiras, Gaspar Matos, Maria Gabriela Cruz
031
032
simplista, mas em última análise corresponde à realidade. A grande mais-valia dos Grupos
de Leitores consiste na hipótese de juntar duas realidades: a leitura individual que normalmente
fazemos e o complemento de podermos partilhar as nossas ideias e opiniões sobre essa leitura
com outras pessoas. Muitas vezes, o facto de um livro ser lido por um grupo facilita a
compreensão do texto, na medida em que podem ser colocadas dúvidas ou explicadas questões
mais complexas.
Existem vários tipos de Grupos de Leitores: generalistas (lêem todo o tipo de géneros e autores),
especializados (apenas abordam livros de um género ou numa língua específica), para mulheres,
jovens ou até mesmo profissões e podem também ter um carácter mais educativo ou mais
lúdico. Tudo depende da instituição que organiza os Grupos de Leitores ou do público a que
se destina o grupo. Alguns Grupos repartem a leitura de um livro ao longo de várias sessões
enquanto outros optam por se reunir quanto todo o grupo tenha lido todo o livro.
Não existe um número mínimo de participantes para iniciar um Grupo de Leitores, contudo, deve
ser acautelada a assiduidade de todos os elementos de forma a não pôr em causa as sessões
e a existência de diversidade de opiniões com vista a enriquecer as conversas. A maioria dos
autores aponta como número ideal um grupo entre 15 a 20 pessoas, mas tudo depende da
participação dos leitores, do tempo disponível, da complexidade dos livros e, obviamente, da
assiduidade dos participantes. Caso se tenha a noção de que algumas das pessoas podem ter
participações irregulares, porquê deixar algum leitor interessado de fora? Caso o número de
pessoas interessadas no grupo de leitores exceda as 25 ou se torne demasiado difícil dar a
palavra a todos durante as sessões sugere-se a divisão do grupo. Em qualquer dos casos, a
definição das regras de funcionamento dos Grupos de Leitores deve ser feita pela organização
tendo em conta o tipo de público, o tempo disponível e o número de pessoas interessadas.
No que diz respeito aos livros a ler, estes podem depender do tipo de grupo que se pretende
criar: generalista, especializado, para jovens, etc., mas podem também estar relacionados
com outros factores, nomeadamente a forma de acesso aos livros que o grupo vai ler.
Preferencialmente, a instituição que organiza o Grupo de Leitores deve dispor de exemplares
suficientes para todos os participantes, mas caso isto não seja possível deve fazer os possíveis
para que todos tenham acesso ao livro, seja através de bibliotecas da região ou seleccionando
títulos facilmente disponíveis no mercado. A escolha dos livros a tratar pode representar o
maior desafio de todo o projecto, no entanto, os objectivos de cada Grupo de Leitores podem
apresentar algumas linhas para a selecção.
033
O moderador do Grupo de Leitores é, por vezes, o factor-chave deste tipo de iniciativa, não que
seja o elemento principal, mas antes porque normalmente é difícil encontrar uma pessoa que
se sinta à vontade para tomar a seu cargo esta tarefa. A sua função principal é a de regular a
conversa entre o grupo para que todos possam participar. É a figura que organiza as sessões
e comunica ao grupo todas as informações necessárias ao seu bom funcionamento. Deve ter
feito uma preparação do livro a abordar, pesquisando sobre a biografia do autor, a época em
que foi escrito e outras informações pertinentes relacionadas com o enredo. Deve preparar
algumas questões ou temas de conversa de forma a estimular a participação, a conversa e o
debate em torno do livro. Sempre que necessário poderá organizar actividades paralelas em
torno dos livros que forem lidos: encontro com o autor, visitas a exposições, conferência,
visualização de filmes, etc. Os moderadores de Grupos de Leitores podem ter vários tipos de
formação – bibliotecários, professores, investigadores universitários, pessoas ligadas à cultura
ou simples leitores ávidos de partilhar as suas leituras – mas mais importante do que a sua
formação são as suas características pessoais: uma ampla cultura geral, facilidade de
comunicação, capacidade de síntese e de organização e disponibilidade de tempo para
acompanhar a leitura e as exigências do grupo. Essencialmente, o moderador deve potenciar
a conversa entre os participantes e fazer do Grupo de Leitores o centro da conversa.
Questões relacionadas com a divulgação e inscrição dos participantes dependem em grande
parte da instituição que organiza os Grupos de Leitores, sendo que quanto maior for o público
potencialmente maiores têm de ser as preocupações com a organização das sessões. Logo
de início, devem-se informar os leitores das normas de funcionamento do grupo, quais os
objectivos propostos e o que se espera das sessões. É de extrema importância que as expectativas
dos participantes não sejam defraudadas, devendo-se, por isso, esclarecer todas as situações.
A periodicidade com que os Grupos de Leitores reúnem deve ter em atenção o público e as
obras seleccionadas, devendo ser acautelado que todos os participantes vão conseguir ler o
livro no prazo estabelecido. Normalmente, os Grupos de Leitores reúnem-se com uma
regularidade quinzenal ou mensal. Cada sessão deve durar entre uma a duas horas, mas isto
depende da dimensão e disponibilidade do grupo ou da sua capacidade de manter a discussão
interessante. Alguns grupos preferem reunir-se menos tempo por sessão, mas com uma
regularidade mais próxima.
A experiência do Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide
O Grupo de Leitores de Carnaxide surge em Janeiro deste ano, fruto da iniciativa das Bibliotecas
Municipais de Oeiras. Premissas houve a respeitar, nomeadamente quanto ao facto de as
034
equipas que dinamizariam esses grupos fazerem parte dos recursos humanos das próprias
BMO e de as sessões terem lugar nas Bibliotecas Municipais de Oeiras e de Carnaxide (BMC).
Carnaxide avança assim com uma equipa constituída por Gabriela Cruz (bibliotecária e
coordenadora da BMC) e por Gaspar Matos (técnico profissional de biblioteca e documentação,
com pós-graduação em ciências documentais).
Se, inicialmente, se havia determinado que uma lista seria proposta com livros que tivessem
dado origem a argumentos cinematográficos, tal foi completamente posto de parte logo após
a primeira sessão. Este facto ficou a dever-se a uma primeira formação – que antecedeu o
arranque dos grupos de leitores – com Anne Downes, da Opening the Book, empresa britânica
que desenvolve actividades de promoção de leitura (entre outras). Anne Downes sugeriu que
os grupos fossem consultados para que tivessem uma palavra a dizer na construção dessa
lista. Eventualmente poder-se-iam seguir outros caminhos, tais como livros que nos fizessem
rir, chorar, que nos tivessem marcado profundamente, livros que levaríamos para uma ilha
deserta, enfim, uma infinidade de ideias que poderiam despontar do nosso primeiro contacto
com os elementos do grupo.
O processo de inscrições foi, ao contrário do que esperávamos, célere, e rapidamente atingimos
o limite proposto – 15 elementos mais 5 suplentes.
Tinha-se decidido, desde logo, que não haveria dirigismos nem líderes demasiado vincados.
A ideia era precisamente a de criar um grupo de amantes da leitura em que o interesse máximo
seria partilhar, discutir e debater as diferentes visões que cada um tinha da leitura, mais
concretamente, da leitura de uma mesma obra. Esta postura não era necessariamente inocente
pois pretendia-se – e pretende-se – vir a autonomizar estes grupos, surgindo, de entre estes
participantes, novos dinamizadores de novos grupos que venham a surgir. Um pouco como as
vendas em pirâmide…
Em Janeiro, tal como já havíamos referido, inicia-se a primeira sessão. Desde logo algumas
surpresas: muitos elementos de ciências e economia, a saber: biólogos, matemáticos, bancários,
gestores comerciais. Também alguns funcionários públicos e bastantes professores aposentados.
O facto de se apresentar a lista predefinida, com associação a filmes, mas dando-lhes a
liberdade de a aceitarem ou não, de a alterarem ou não, permitiria, logo de início, tomar o
pulso do grupo, sua capacidade de iniciativa e quais os líderes naturais presentes. A reacção
035
foi das melhores: todos opinaram, todos deram sugestões, refutaram a ideia dos filmes (ao
contrário do Grupo de Leitores de Oeiras), sugeriram outras – como a ideia de se ler uma obra
de cada Nobel da Literatura –, enfim, uma adesão e espírito de iniciativa de que não estávamos
à espera e um envolvimento absolutamente fora das nossas previsões mais optimistas.
Acabámos por aceitar sugestões de cada um, tendo elaborado uma lista que procurava agregar
os gostos de todos.
Em Fevereiro surge a primeira sessão, já de leitura. Começámos com um autor polémico –
Saramago – e a “Jangada de pedra”. Polémico acima de tudo pela forma como escreve, o que
provoca em alguns leitores alguma aversão ao escritor em causa. A preparação da sessão foi
feita com a criação de um dossier de leitura em que se inseriram a biografia do autor, o trecho
inicial do discurso à Academia Sueca por altura de atribuição do Nobel, a recensão da Gulbenkian
relativa à “Jangada de pedra” e alguns recortes de imprensa com críticas à obra. No dia do
encontro houve beberete com uns bolinhos e sumos, que sempre ajuda à conversa.
A sessão correu muitíssimo bem. Surpreendente a forma como todos percepcionaram a leitura
política da obra – é de 1986, ano da adesão à UE, e Saramago “desprende” a Península Ibérica
do resto da Europa, em jeito de provocação. Surpreendente também o facto de todos os que
não compreendiam muito bem o discurso, sem vírgulas e pontos finais, se terem apercebido
que, lendo em voz alta, davam sentido ao texto, transformando-o numa oralidade sem mácula
na sintaxe. Fascinante também a partilha – pelos mais apaixonados pelo Nobel luso –, de
outras obras do autor: muito se falou em “Memorial do convento”, “Ensaio sobre a cegueira”
e, na última sessão dedicada a este livro, houve inclusive leitura de alguns textos dos “Poemas
possíveis”.
Partimos entretanto para Gabriel Garcia Marquez e para “O amor nos tempos de cólera”, logo
em Março. Mais uma agradável surpresa. A equipa da BMC recolheu, no Youtube, vários vídeos
com entrevistas de Gabriel García Márquez e assim começou a primeira sessão. O amor provou
ser um excelente motivo de conversa e, já na segunda sessão, quem ali chegasse pela primeira
vez diria que estava perante um encontro de velhos amigos, conhecidos de há muitos anos. A
aposta, por nós, está ganha. O testemunho está dado e aqui fica o exemplo: um grupo de
leitores não precisa nem de vedetas, nem de eruditos, nem de iluminados. Precisa, isso sim,
de gente com um ponto em comum: o amor aos livros e à leitura. E isso, definitivamente, é o
que acontece na Biblioteca Municipal de Carnaxide.
036
A experiência do Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Oeiras
O desejo de criar Grupos de Leitores nas Bibliotecas Municipais de Oeiras (BMO) era uma vontade
antiga, fruto da visão estratégica delineada para as BMO e inserida no conceito de Desenvolvimento
do Leitor (Reader’s Development). Após algumas resistências à ideia e principalmente aos
pressupostos apresentados – as sessões teriam de ser dinamizadas por técnicos das bibliotecas
municipais com uma regularidade quinzenal – o desafio foi aceite e até ao momento tem sido
um projecto muito compensador e com vários resultados conseguidos. O facto de ter sido possível,
no âmbito do Programa Comunitário Leonardo da Vinci, visitar o Centro da Fundação Germán
Sánchez Ruipérez em Peñaranda de Bracamonte (Salamanca) e de se ter observado como
funcionavam os Grupos de Leitores deu um grande impulso e motivação ao arranque da iniciativa.
Tendo em conta que no início não tínhamos uma ideia bem definida do projecto, por falta de
realidades semelhantes, começámos por identificar quais as características que não queríamos
para o funcionamento destes Grupos de Leitores. Após algumas visitas a Grupos de Leitores a
funcionar em outros espaços, sabíamos que não queríamos dirigismos muito rígidos, líderes
forçados, sessões de análise ou crítica literária ou dinamizadores de actividades; pretendia-se
um moderador que distribuísse a conversa, controlasse os tempos das sessões, mas que também
participasse nos debates. Alguém que estivesse ao nível dos demais participantes, que lesse com
a regularidade que o dia-a-dia permite, que valorizasse a leitura independentemente do autor,
género ou enredo e que os participantes sentissem como “um entre iguais”, com vista à criação
de laços entre os participantes.
Como consequência de uma vontade já manifestada pelos leitores das BMO, o processo de
inscrições foi bastante rápido e em menos de três semanas tínhamos angariado o número de
pessoas previamente estabelecido: 15 participantes mais 5 suplentes, prevendo já eventuais
desistências e/ou flutuações nas sessões.
Da análise dos participantes podemos traçar um retrato destes participantes: a idade média
situa-se nos 35 anos, maioritariamente do sexo feminino, e com ocupações tão abrangentes
como estudantes, domésticas, quadros técnicos, professores e reformados. Das conversas
resultantes ao longo das sessões foi possível verificar que os participantes possuem já hábitos
de leitura bem definidos, possuem mais conhecimentos sobre as obras e os autores do que
inicialmente julgavam e têm a necessidade de um espaço para partilha e troca de opiniões
sobre as suas leituras.
037
Desde o início da divulgação do projecto que todos os interessados foram informados da forma
de funcionamento dos Grupos de Leitores, de forma a não gorar expectativas e/ou a induzir
os participantes em erro. Tendo em atenção o registo verificado em alguns dos projectos que
funcionam em diversos espaços, achou-se importante esclarecer muito bem quais os princípios
de funcionamento destes Grupos de Leitores.
O Grupo de Leitores a funcionar na Biblioteca Municipal de Oeiras (BMO) é composto por 16
elementos, sendo as sessões dinamizadas por Bruno Duarte Eiras (bibliotecário e Coordenador
dos Serviços de Apoio ao Leitor), contando-se para a pesquisa de informação com o apoio dos
técnicos Rui Godinho, Vanda Silva e Sofia Sousa. De referir que o facto de todos estes técnicos
prestarem serviço na sala de leitura (Sector de Adultos) permite um maior conhecimento dos
participantes, através do contacto diário na BMO, ao mesmo tempo que cria um maior
envolvimento entre o grupo.
Escusado será dizer que em algumas sessões não comparecem todos os inscritos e que já
houve sessões com 20 pessoas – há sempre alguém que traz um amigo curioso – e também
já houve sessões com 6 pessoas. Contudo, regra geral, as pessoas telefonam a avisar que não
podem comparecer e até aqueles que por motivos vários tiveram de desistir, comunicaram
com alguma tristeza a sua saída do grupo. É interessante verificar que logo após as primeiras
sessões já alguns elementos perguntavam pelos ausentes, o que vem demonstrar que, de
facto, é possível estabelecer laços em torno do gosto pela leitura.
O Grupo de Leitores da BMO aceitou a ideia proposta para o projecto em 2007: livros que
tenham dado origem a filmes. Pensamos que esta adesão à selecção feita previamente está
intimamente relacionada com a divulgação feita junto dos interessados e com a necessidade
de participar neste espaço de partilha de leituras independentemente das obras seleccionadas.
Na BMO optámos por efectuar uma selecção de livros que tenham dado origem a filmes,
procurando explorar a relação tantas vezes estabelecida entre a literatura e o cinema. Não
podemos esconder que esta associação procurou servir de “rede”, caso a adesão aos Grupos
de Leitores não fosse a esperada, isto caso se tivesse optado por uma selecção de obras
literárias sem extrapolar associações; é comummente aceite a atracção provocada pela sétima
arte e foi já muitas vezes testada a relação da literatura com o cinema e a música como forma
de promoção da leitura.
Assim, a nossa escolha recaiu nos seguintes livros e respectivos filmes: “Rapariga com Brinco
de Pérola” de Tracy Chevalier, “A Jangada de Pedra” de José Saramago, “A Importância de ser
038
Ernesto” de Oscar Wilde, “Chocolate” de Joanne Harris, “O Perfume” de Patrick Suskind, “O
Monte dos Vendavais” de Emile Brontë, “O Pianista” de Wladyslaw Szpilman, “O Alfaiate do
Panamá” de John Le Carré e “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury.
Tivemos em atenção a escolha de títulos existentes na colecção das BMO, para além de serem
de fácil acesso noutras bibliotecas ou até mesmo em livrarias, isto porque se optou por não
ser a biblioteca a fornecer os livros aos participantes, como aliás acontece noutros dos países.
Tivemos também em atenção a diversidade de géneros literários, autores, épocas históricas
e eventuais temas de interesse e de discussão para as sessões.
Apesar dos conhecimentos transmitidos na acção de formação de Anne Downes da Opening the
Book, optou-se por manter a lista de livros definida previamente, tendo em consideração a
diferença entre os públicos das bibliotecas públicas do Reino Unido e os públicos portugueses.
Não obstante, considera-se que pode constituir um factor crítico de sucesso que a selecção
dos livros seja feita pelo grupo nas sessões iniciais. Dado o carácter inovador desta forma de
funcionamento dos Grupos de Leitores pretendia-se por um lado, salvaguardar os técnicos
das BMO que participam nos Grupos de Leitores e, por outro, procurar viabilizar um projecto
ainda com poucas tradições nas bibliotecas públicas portuguesas.
Na primeira sessão dos Grupos de Leitores fez-se uma breve apresentação do projecto, referindo
quais os objectivos, normas de funcionamento, periodicidade das sessões e apresentação dos
livros e respectivos filmes que iam ser lidos pelo grupo. Muito embora todos os participantes já
possuíssem estas informações achou-se conveniente repetir estas indicações na primeira sessão
conjunta. No momento da inscrição tínhamos também pedido a todos os participantes para nesta
sessão trazerem um livro de que gostassem especialmente e que após fazerem a sua apresentação
para o grupo (nome, idade, profissão, etc.), falassem também do livro que tinham trazido e por
que motivo aquele livro era especial. Foi neste momento que percebemos que o projecto dos
Grupos de Leitores estava viabilizado e que ia cumprir os objectivos propostos. De imediato, o
grupo começou a interagir entre si, quer a anotar os títulos que iam sendo apresentados, quer
a sugerirem outros livros tendo em conta as profissões e/ou os livros falados. Esta primeira
sessão que tal como todas as outras deveria ter a duração de uma hora e meia, mas acabou por
se prolongar por mais de duas horas, sem que nenhum dos participantes desse conta do passar
do tempo. Tal como em todas as sessões, o grupo senta-se em círculo – de forma a existir
contacto visual entre todos – e no centro do grupo coloca-se o beberete que acompanha todas
as sessões, de forma a criar um ambiente mais informal.
039
Actualmente, estamos a meio da programação para este ano e podemos dizer que até ao
momento superou todas as nossas expectativas, quer pela adesão (todas as semanas chegam
inscrições de leitores interessados), quer pelo entusiasmo (por vezes as discussões são bastante
acesas), quer pela opinião dos participantes (correspondência entre as expectativas e os Grupos
de Leitores).
Perspectivas de Futuro
Partilhar livros, já lidos ou acabados de ler, possibilitando que a opinião dos membros do grupo
enriqueça a impressão inicial que cada um formou ao lê-los isoladamente;
Partilhar diversos hábitos de leitura nos lugares e horas mais insólitos, na cama, ao pequeno-
-almoço, só de manhã, pela noite dentro, nos transportes, nas férias …
Partilhar múltiplas sensibilidades, políticas, religiosas, de vida, face a uma mesma obra, leva-
-nos a reflectir sobre que caminhos devemos ou podemos trilhar neste intercâmbio de ideias.
À partida, pode-se questionar se realmente estamos a fazer promoção da leitura, quando
estamos a actuar num grupo, que se estipulou não ter mais de vinte elementos e cujos aderentes
têm já consolidado hábitos de leitura, continuados, ou que em dado momento da sua vida
interromperam, mas cujo gosto mantiveram intacto.
Assim, observando a experiência de outros grupos de leitores ou clubes de leitura mais testados,
bem como a nossa ainda recente prática, que tem resultado numa entusiástica e positiva
experiência, tanto do lado dos dinamizadores, como do lado do grupo de leitores, pensamos
se não poderíamos partilhar já este nosso entusiasmo, nomeadamente, com escolas e
associações, para que mais grupos de leitores sejam criados e, consequentemente, mais
pessoas envolvidas, nesta ainda pouco difundida forma de leitura, como tentativa de contribuir
para a diminuição do défice de leitura no nosso país.
Poderemos ainda, durante ou fora do horário das sessões dos grupos de leitores, criar actividades
paralelas para enriquecimento e fomento da coesão do grupo, nomeadamente, promover
encontros entre grupos de leitores distintos, convidar escritores, realizadores de filmes cujos
guiões foram inspirados em livros, profissionais do teatro ou especialistas em diversas áreas
abordadas nas leituras efectuadas.
040
Sempre que seja pertinente devemos conciliar a literatura à gastronomia, aproveitando dias
festivos como dia mundial do livro, ou aniversário do Grupo de Leitores, ou mesmo quando o
próprio livro sugere o tema, aproveitar a oportunidade para transferirmos a nossa tertúlia
habitual para uma mesa de refeição com objectivo de fomentar uma maior ligação dos elementos
do grupo.
Estar sempre atento ao que se vai fazendo no mundo do espectáculo, como no teatro, ou no
cinema, ou na música, que possa contribuir para uma mais-valia para o grupo.
Em Portugal, vai havendo ecos da experiência de grupos ou comunidades de leitores,
nomeadamente na comunicação social e na Internet, que nos mostram o que se vai fazendo
neste campo por todo o mundo.
Apesar dos Grupos de Leitores das Bibliotecas Municipais de Oeiras estarem ainda a dar os
primeiros passos, gostaríamos de organizar um encontro entre profissionais, que poderá
traduzir-se no tema do III Encontro Oeiras a Ler, que poderia, inclusive, acolher convidados
de outros países, para a partilha de experiências e reflexão sobre os caminhos e limites deste
formato de leitura, que não é novo, mas que no nosso país continua ainda a dar passos muito
tímidos.
Pontualmente, deveríamos abrir algumas sessões a um público mais alargado, como forma
de aliciar a adesão a um grupo de leitura.
Assim, descobririam a leitura por prazer, o seu fluir natural e a descoberta da Biblioteca e
poderiam fazer das palavras de Blanca Calvo (Conselheira de Cultura da Junta de Castilla-La
Mancha e Ex-Directora da Biblioteca Pública de Guadalajara), na sua receita para um clube
de leitura, “son um alimento muy sabroso, tanto para los organizadores como para las personas
que los componen. Que tengan muy buen provecho todos cuantos se decidan a hacerlos.”
Conclusões
Em Portugal, não se sabe ainda qual o impacto que os Grupos de Leitores têm no âmbito da
promoção da leitura. No entanto, sabe-se que este tipo de actividades potencia a leitura ao
mesmo tempo que cria espaços de partilha e de troca de opiniões. Tal como noutras actividades
em que se fala sobre um livro e/ou um autor, os Grupos de Leitores induzem à leitura das
obras abordadas, bem como de outras que sejam referidas. No caso dos Grupos de Leitores
das Bibliotecas Municipais de Oeiras, podemos dizer desde já que os títulos que têm sido lidos
041
pelo grupo têm continuado a ser alvo de leitura por parte de outros leitores das bibliotecas de
forma muito superior ao que acontecia anteriormente. Títulos que antes praticamente não
tinham empréstimos passaram a ser alvo de empréstimo de forma quase constante.
Pelo que temos observado, as pessoas que aderem aos Grupos de Leitores possuem já hábitos
de leitura bem definidos e talvez por isso seja difícil conseguir cativar para um Grupo de Leitores
uma pessoa que habitualmente não leia. Ainda assim, vale a pena referir que alguns dos
participantes nos Grupos de Leitores manifestam uma maior motivação para a leitura, como
forma de poderem participar nas sessões, sendo que se tivermos em conta a questão social
dos Grupos de Leitores poderemos, eventualmente, vir a cativar um leitor menos regular ou
até mesmo um não leitor.
Bruno Duarte Cruz nasceu em Lisboa, em 1977. É Licenciado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa (1999), com
Pós-Graduação em Ciências Documentais (Biblioteca e Documentação) pela Universidade Autónoma de Lisboa (2003),
onde também está a preparar dissertação de mestrado na mesma área, sobre o tema “Bibliotecas de Estabelecimentos
Prisionais em Portugal”. Actualmente, é Bibliotecário nas Bibliotecas Municipais de Oeiras, onde é Coordenador dos
Serviços de Apoio ao Leitor (SAL), gerindo também projectos de promoção da leitura, além de desempenhar funções em
outras áreas funcionais, em especial na área de indexação, gestão da colecção e atendimento.
Gaspar Matos nasceu em Espinho, em 1974. Bacharel em Marketing e Publicidade e licenciado em Marketing e Relações
Públicas Internacionais, desempenhou funções na banca durante sete anos. Em 2004 frequenta o curso de Técnicos
Profissionais de Biblioteca e Documentação da APBAD e inicia, em 2005, a Pós-Graduação em Ciências da Informação
e Documentação na Universidade Fernando Pessoa (Porto), formação que conclui em Janeiro de 2007. É, desde Agosto
de 2005, Técnico Profissional de Biblioteca e Documentação nas Bibliotecas Municipais de Oeiras. Exerce funções no
Serviço de Apoio ao Leitor (SAL) da BM Carnaxide, dá formação a utilizadores na área das TIC e desenvolve e apoia
projectos de promoção de leitura, entre outras iniciativas.
Maria Gabriela Cruz. Licenciada em Direito, exerceu advocacia durante vários anos. Pós-Graduada em Ciências Documentais,
vertente Leitura Pública, em Direito da Sociedade da Informação e em Direito da Autarquias Locais. Foi bibliotecária nas
Bibliotecas Municipais de Loures e Odivelas e, actualmente, coordena a Biblioteca Municipal de Carnaxide.
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h t t p : / / d a g d a . s h e f . a c . u k / d i s s e r t a t i o n s / 1 9 9 9 -
00/scothern.pdf
042
043
O PÚBLICO ADULTO NOS PROJECTOS DAS BIBLIOTECAS MUNICIPAIS DE
OEIRAS
Ana Paula Jardim
Resumo
A presente comunicação tem como principal objectivo reflectir sobre os conceitos de leitura
e literacia, tendo sempre como horizonte de reflexão, não só o enquadramento teórico e
conceptual, mas também a componente prática mais relacionada com o planeamento, concepção
e execução de projectos de promoção da leitura para o público adulto.
Recuperando o olhar de autores contemporâneos sobre a leitura, procurar-se-á perceber de
que forma é que o espaço lúdico, cultural e físico da Biblioteca Pública sobrevive perante a
emergência deste novo território forjado e ditado pela realidade da globalização cultural cujos
modelos de leitura impostos são completamente diferentes.
Actualmente, o processo de aquisição e consolidação de competências linguísticas, cognitivas
e informativas não se reduz às ferramentas tradicionais da leitura. O livro, enquanto suporte
privilegiado do pensamento e da difusão cultural humanista, deixou de ser o único protagonista
deste processo. Por esta razão, o discurso contemporâneo sobre a leitura alargou o âmbito
da sua intervenção, postulando, assim, um triplo objectivo: distrair, instruir e informar.
O trabalho das Bibliotecas Municipais de Oeiras tem, pois, apostado nestas novas valências
da literacia, desenvolvendo um trabalho continuado, sistemático e articulado em torno da
leitura, junto de todas as camadas da população.
Pretende-se, assim, dar a conhecer e explanar alguns dos projectos de promoção da leitura
para adultos realizados entre 2003 e 2006, apresentando, sumariamente, os objectivos, público-
-alvo, execução, reflexão crítica e balanço: Dez Livros que Mudaram o Mundo; Café com Letras.
LUGARES DA LEITURA
045
046
Palavras-chave
Promoção da Leitura, Leitura, Literacia, Dez Livros que Mudaram o Mundo, Café com Letras.
Introdução
A importância do livro e da leitura parecem estar, desde sempre, no centro de todos os debates
e de todas as reflexões. Esta não é, por isso, uma preocupação recente: os problemas decorrentes
das diversas experiências da leitura e da importância da literacia na formação da identidade
do humano, nas suas variadas valências, são hoje tão fundamentais como outrora.
Por outro lado, o avanço de todo o conhecimento humanístico só foi possível quando todo o
discurso se tornou traduzível em escrita e, consequentemente, foi fixado em livro. Esta dimensão
humana da palavra, do dizer e discursar sobre o mundo constitui o nosso traço fundamental
e é sobre ela que se alicerça toda a cultura e pensamento ocidental.
Mesmo antes da tradição ter fixado o saber oral no texto escrito, a palavra desempenhava uma
função primordial, estruturante e simbólica na relação com o cosmos, o mundo e os outros.
O advento da literacia, as chamadas culturas alfabetizadas, a sua implementação e sistematização
pressupôs a criação de um artefacto suficientemente rigoroso e flexível (alfabeto) para poder
captar qualquer mensagem cultural conhecida que possa ser assimilada por toda a comunidade.
Séculos de informação acumulada transformaram-se, assim, na memória colectiva a que só
se pode ter acesso dominando esta ferramenta incontornável. É bem certo que esta memória,
este saber é feito de vários registos, de muitas estórias narradas (escritas ou orais) que
delinearam todo o imaginário colectivo e que tornam possível a leitura do mundo. Mas a
dimensão da escrita, o domínio da sua decifração, o processo de aquisição e consolidação das
competências linguísticas e cognitivas, possui, inegavelmente, um papel preponderante.
O livro foi, nesta medida, e durante muito tempo, o repositório desta memória e constituía o
suporte essencial da educação e da cultura do pensamento humano. Consequentemente, na
análise clássica, a utilidade da leitura era considerada “o grão de sésamo, o pão para o espírito
e o remédio contra a ignorância dos povos, o tesouro escondido da educação social”. [1] Este
discurso sobre o livro e a leitura foi sendo, progressivamente, alterado, abandonando uma
dimensão e função estritamente formadora do espírito humano e adquirindo, com o decorrer
da própria história, outras valências. Todavia, a descrição histórica deste processo obrigaria
a uma análise e descrição complexa que não se inclui nos propósitos do presente texto.
047
Contudo, parece inegável o facto de que o livro foi e continua a ser um registo e suporte
incontornável de todo o nosso discurso e de toda a história das palavras. Actualmente, e no
decurso da sua educação, qualquer cidadão vai tendo acesso a este arquivo da memória,
tornando-se herdeiro de uma tradição de mais de três milénios que lhe condicionará os hábitos
reflexivos e lhe formará a mentalidade, em obediência a um padrão que não tem poder para
imaginar, quanto mais questionar. As palavras da cultura humanística e científica são
apresentadas já feitas, sendo pedido que as assimile, através de processos cognitivos, mediados
pela leitura. Ao cidadão, ao leitor, não lhe é possível interrogar-se sobre a origem destas
palavras e dificilmente conceberá que, como todos os artefactos, tiveram de ser criadas, e os
seus usos, ou sentidos, variaram com os tempos e os homens que com elas se exprimiram.
É por isso que os lugares da leitura são inúmeros, tantos quanto possíveis os seus sentidos.
São lugares recriados inúmeras vezes pelo tecido de histórias narradas que cada leitor apropria,
reconfigura e incorpora em si mesmo. [2] É esta teia de leituras que desenha e define o
imaginário individual e colectivo da comunidade.
Nas últimas décadas, o acesso a esta memória e as ferramentas que o tornam possível
alteraram-se radicalmente. O processo de aquisição e consolidação de competências linguísticas,
cognitivas e informativas não se reduz aos mecanismos tradicionais da leitura. Existe um novo
território forjado e ditado pela realidade da globalização cultural cujos modelos de leitura
impostos são completamente diferentes.
O livro, enquanto suporte privilegiado do pensamento e da difusão cultural humanista, deixou
de ser o único protagonista deste processo. Por esta razão, o discurso contemporâneo sobre
a leitura alargou o âmbito da sua intervenção, postulando, assim, um triplo objectivo: distrair,
instruir e informar.
Neste sentido, a promoção da literacia deverá, pois, ser entendida como o desenvolvimento
da capacidade de articular diversas formas de apropriação do mundo, através da leitura,
condensadas não só na compreensão, interpretação dos processos e significados da envolvente
comunicacional e escrita, mas, também, no incentivo ao conhecimento de toda a herança
cultural humana, ou seja, de todos os discursos sobre o mundo, quer sejam literários, artísticos,
científicos ou meramente informativos ou de lazer. A leitura possui, assim, uma função
importante no desenvolvimento cultural e no exercício da cidadania, pois fornece os instrumentos
necessários para o acesso a toda a informação escrita, seja qual for o seu suporte.
048
O trabalho das Bibliotecas Municipais de Oeiras tem, pois, apostado nestas novas valências
da literacia, desenvolvendo um trabalho continuado, sistemático e articulado em torno da
leitura, junto de todas as camadas da população. [3]
Procuramos, deste modo, responder de forma concreta às linhas orientadoras fixadas pela
UNESCO e pela IFLA no Manifesto da Unesco para as Bibliotecas Públicas (1994). [4]
Algumas abordagens utilizadas na promoção da leitura para o público adulto: Dez livros que
mudaram o mundo e Café com letras
Um projecto de promoção da leitura surge a partir de determinados pressupostos e critérios
que justifiquem a sua realização, o que implica a atenção a vários factores, como sejam a
especificidade do público-alvo ao qual o projecto se destina, a definição de objectivos a atingir
e a perspectivação das estratégias a adoptar.
No caso concreto dos projectos para adultos, toda a lógica de intervenção é equacionada tendo
em conta os diferentes perfis do leitor. O grande intuito é o de procurar dar resposta às
características, necessidades e interesses específicos de cada grupo, consolidando e/ou
diversificando as práticas de leitura existentes. Por outro lado, um dos vectores estruturantes
desta estratégia envolve todas as pessoas e o estabelecimento de uma rede de parcerias com
todas as instituições envolvidas no trabalho de promoção da leitura.
Trabalhar com o público adulto coloca, contudo, inúmeras dificuldades e questões. Trata-se
de uma faixa etária com hábitos de leitura já constituídos e com interesses definidos. Por esta
razão, a realização de eventos dirigidos a um público desta natureza que potenciem uma
apetência já existente para a leitura e conhecimento do mundo terá de obedecer a um conjunto
de objectivos claramente definidos. Sabemos que um leitor é, sobretudo, conquistado e formado
a partir da infância e que tal processo está dependente das diversas mediações que são
estabelecidas, quer sejam da responsabilidade das famílias, das escolas, das Bibliotecas
Públicas ou outros promotores e mediadores da leitura. Trata-se de adquirir uma série de
competências linguísticas e cognitivas que tornam possível o discurso e a interpretação do
mundo. Por outro lado, o público adulto inclui uma faixa alargada de leitores com características
diferenciadas e com diferentes estádios de desenvolvimento destas competências.
Mas, ainda que seja assim, o programa de promoção da leitura das Bibliotecas Municipais de
049
Oeiras tem feito um claro investimento nesta área, delineando uma estratégia de intervenção
e promovendo iniciativas cujos resultados são muito satisfatórios. Pretende-se, assim, dar a
conhecer e explanar alguns projectos de promoção da leitura para adultos realizados entre
2003 e 2006, apresentando, sumariamente, os objectivos, público-alvo, execução, reflexão
crítica e balanço.
10 LIVROS QUE MUDARAM O MUNDO [5]
Objectivos Gerais
O projecto 10 Livros que Mudaram o Mundo surge no âmbito da candidatura da Câmara
Municipal de Oeiras (através da Divisão de Bibliotecas, Documentação e Informação) ao
Programa de Apoio a Projectos de Promoção da Leitura em Bibliotecas Públicas, promovido
pela Fundação Calouste Gulbenkian. Esse apoio foi concedido e materializado através da
atribuição de uma verba financeira que tornou possível e viável a elevada qualidade do mesmo.
Teve como objectivo geral promover a ideia de que o livro (enquanto veículo de ideias políticas,
teorias científicas, correntes estéticas, concepções filosóficas, visões religiosas, etc.) pode ser
um instrumento de transformação do mundo.
Público-alvo
Muito embora o projecto visasse e se dirigisse ao público adulto em geral, era colocado um
maior enfoque nos professores que residem e/ou leccionam no Concelho de Oeiras. Os
professores foram escolhidos como público-alvo deste projecto por duas ordens de razões:
em primeiro lugar, porque devido ao seu elevado capital educacional e cultural tiveram maior
facilidade em reverem-se na mensagem fundamental do projecto; em segundo lugar, porque
devido à sua actividade profissional puderam actuar como líderes de opinião e indutores de
comportamentos junto dos seus alunos. O verdadeiro desfio na escolha deste público-alvo
residia no facto de conseguir capitalizar as características, as necessidades e os interesses
dos professores, colocando o enfoque na valorização do livro e do acto de ler incentivando a
utilização dos recursos, serviços e actividades das bibliotecas municipais e bibliotecas escolares.
Objectivos específicos
Tais condicionantes delimitaram a especificidade dos seus objectivos, consubstanciando-se
no seguinte:
• Divulgar e valorizar obras marcantes do pensamento humano;
• Seduzir e fidelizar os professores na participação das actividades do projecto;
050
• Cativar os professores para a utilização dos materiais de apoio em contexto de aula;
• Fazer dos professores promotores da leitura junto dos seus alunos;
• Associar uma imagem de prestígio e qualidade às actividades das Bibliotecas Municipais de
Oeiras.
Fase de execução
O projecto teve início em Setembro de 2003 e terminou em Junho de 2005. Ao longo de 2004
foi concretizado um conjunto de dez conferências que contaram com a colaboração de reputados
especialistas nacionais. A tarefa de selecção dos dez livros que foram abordados e a indicação
dos respectivos conferencistas foi atribuída a uma Comissão Científica, presidida pelo Vereador
da Cultura e Juventude da Câmara Municipal de Oeiras (em exercício na altura), Jorge Barreto
Xavier, que reuniu personalidades ligadas às principais instituições científicas, académicas e
culturais do concelho, além de dois convidados a título individual. [6]
Dando sequência às escolhas da Comissão Científica foram realizadas dez conferências para
abordar não dez, mas onze livros:
Breve História do Tempo, de Stephen Hawking
Por Carlos Fiolhais
O Príncipe, de Nicolau Maquiavel
Por Adriano Moreira
A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud
Por Carlos Amaral Dias
Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels
Por José Pacheco Pereira
Odisseia, de Homero
Por Frederico Lourenço
A Origem das Espécies, de Charles Darwin
Por Luís Vicente
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A República, de Platão
Por José Trindade Santos
A Riqueza das Nações, de Adam Smith
Por José Luís Cardoso
O Erro de Descartes, de António Damásio
Por A. Gonçalves Ferreira
Bíblia e Alcorão
Por Armindo dos Santos Vaz, David Munir e Esther Mucznik.
A credibilidade e notoriedade dos conferencistas constituíram uma mais-valia inquestionável
para o projecto:
• Receptividade e projecção junto do público;
• Produção de um texto inédito para a conferência e posterior publicação;
• Revisão científica dos Guiões de Leitura e Dossiers do Professor elaborados no âmbito do
projecto.
Elaboração dos materiais de apoio
Ainda no âmbito deste projecto foram elaborados os seguintes materiais de apoio:
• Um Guião de Leitura elaborado mensalmente para cada obra em análise, com uma distribuição
efectuada no dia das conferências, cuja estrutura era a seguinte: nota biográfica sobre o
conferencista; nota biográfica sobre o autor; contexto histórico da obra; impacto da obra na
sociedade; selecção de Websites, bibliografia. Na perspectiva do público em geral, a distribuição
dos Guiões de Leitura cumpria o objectivo de divulgação das obras e fornecia um enquadramento
histórico-reflexivo das mesmas.
• Um Dossier do Professor elaborado mensalmente para cada obra em análise e que foi
distribuído por todas as escolas secundárias do concelho de Oeiras, cuja estrutura era a
seguinte: nota biográfica sobre o conferencista; nota biográfica sobre o autor; contexto histórico
da obra; impacto da obra na sociedade; pistas de exploração da obra; propostas de actividades;
selecção de Websites; bibliografia. Na perspectiva do público específico – os professores –, o
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Dossier do Professor cumpria o objectivo de fornecer um enquadramento histórico-reflexivo
das obras e de fidelizar o público para os objectivos do projecto:
• Cativar os professores para a utilização dos materiais de apoio em contexto de aula;
• Fazer dos professores promotores da leitura junto dos seus alunos.
Análise crítica e balanço do projecto
Este foi um projecto inteiramente estruturado em torno do livro. Um projecto sobre livros que
apelam à leitura de livros. Desde logo, a sua concepção e planeamento delineava um percurso
histórico por algumas das obras marcantes do pensamento humano o que pressupôs a
subjectividade de uma escolha, circunscrevendo o horizonte da discussão e centrando-a no
livro. Essa escolha foi alvo de debate e reflexão por parte dos elementos que constituíam a
comissão científica, não reunindo um consenso imediato.
Por outro lado, tinha como objectivo principal não só colocar a tónica na importância do livro
como instrumento de constituição e transmissão de saber e veículo de transformação do
mundo, mas, sobretudo, combater a resistência existente, de algumas décadas a esta parte,
à leitura dos clássicos. Esta afirmação é reiterada pelo próprio título do projecto: o número
10 é um número mítico que convoca uma série de referências e simbologias e que materializa,
acima de tudo, um apelo ao imaginário colectivo e individual. Por esta razão, o título do projecto
constituía, em si mesmo, um desafio e lançava um repto ao leitor.
Tal como foi referido anteriormente, este foi um projecto que, desde o início, continha na sua
essência a polémica e subjectividade inerente a uma escolha (que privilegiou um conjunto de
obras em detrimento de outras possíveis) mas que procurava, acima de tudo, definir um painel
de textos fundamentais sobre a história do pensamento humano. Tratava-se de reflectir e
partilhar com o público leitor a história de palavras que alcançaram a excelência, a durabilidade,
a clareza e que, por isso mesmo, constituem referências incontornáveis. Não podemos esquecer
que no dizer de Calvino “um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de
discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles.” [7]
O objectivo foi, pois, promover o amor dos livros e da leitura, a imortalidade de algumas grandes
obras e a sua função no nosso crescimento intelectual, afectivo e inter relacional com os outros
e com o mundo. Não se trata de dizer o que o outro deve ler. Muito menos dizer como deve
053
ler. O importante é incentivar a leitura de obras que desenharam, indubitavelmente, um mapa
de concepções, de referências, de olhares sobre a vida, o cosmos e o homem.
Pretendeu-se desencadear discursos, resgatar a leitura das grandes obras aos lugares do
esquecimento. Clássicos são, por isso mesmo, textos que, como diz Calvino, “nunca acabam
de dizer o que têm a dizer”[8], ou seja, nunca esgotam as palavras. “São livros que nos chegam
trazendo em si a marca das leituras que antecederam a nossa e atrás de si a marca que
deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem
ou nos costumes)” .[9] É por isso que “não se lêem os clássicos por dever ou por respeito, mas
por amor”. [10]
Finalmente, este foi, de facto, um projecto que testemunhou e mobilizou um número significativo
de leitores. A afluência e participação do público constituíram um indicador positivo e
incontornável. Deu origem a algumas discussões, nomeadamente, em blogs, o que contribuiu
para a sua divulgação no espaço virtual. Parece ter cumprido um propósito inestimável: radicou
a discussão e a reflexão no livro, convocou olhares e promoveu o discurso, sempre em aberto,
sobre alguns dos textos fundamentais da cultura humana. [11]
Edição do Livro
Desde o início que o projecto contemplava a publicação das actas das conferências. No entanto,
o livro publicado contém, por sugestão da própria editora, os Dossiers do Professor, elaborados
no âmbito do projecto. A publicação foi responsabilidade das Edições Quasi.
Teve uma tiragem de 1500 exemplares. Foi objecto de referência em alguns periódicos: Jornal
de Letras, Público, Expresso, Revista Ler e Os Meus Livros. É, igualmente, referência bibliográfica
aconselhada em vários cursos de grau superior. Existem dois exemplares em cada uma das
Bibliotecas Municipais de Oeiras, um de consulta local e outro disponível para empréstimo,
verificando-se uma significativa procura.
A edição dos textos regista a história do projecto e a ideia de que a memória se faz … com
livros!
054
Café com letras
Objectivos
Dirigido prioritariamente ao público adulto e juvenil com hábitos de leitura já constituídos, o
projecto Café com Letras tem por objectivo a criação de um espaço informal de encontro dos
leitores das Bibliotecas Municipais de Oeiras com os autores contemporâneos.
Estrutura do projecto
O projecto é constituído por duas componentes essenciais: uma mostra bibliográfica e o
encontro com o autor. Este encontro conta com a participação de um moderador, o jornalista
Carlos Vaz Marques da Rádio TSF e que tem um duplo papel:
• Enquadrar e conduzir a conversa com o autor;
• Estabelecer a mediação entre o público e o autor.
Com uma periodicidade mensal, as sessões previstas realizam-se, alternadamente, nas três
Bibliotecas Municipais (Algés, Carnaxide e Oeiras).
Mostra bibliográfica
Tendo em atenção que as sessões decorrem no final de cada mês, está disponível na Biblioteca
Municipal que acolhe a sessão desse mês, uma mostra bibliográfica composta por três tipos
de livros: livros do escritor, livros sobre o escritor, livros sugeridos pelo escritor. Todos estes
livros podem ser alvo de empréstimo.
Encontro com o escritor
O encontro com o autor, no final de cada mês, é o verdadeiro ponto alto do projecto. É realizado
na Sala de Leitura das Bibliotecas Municipais, sendo recriado, através de alguns elementos cénicos,
um ambiente que propicie uma ambiência de intimidade, proximidade e partilha com o escritor.
Trata-se de conversas na casa dos livros, sobre livros, a vida e o mundo…
Como já foi referido, a conversa é conduzida por um moderador, Carlos Vaz Marques e decorre
num tom informal que convida à participação dos leitores.
Existe, igualmente, uma articulação estabelecida com as editoras mais representativas do
autor que se associam ao Encontro com um ponto de venda e divulgação de livros e com a
realização de uma sessão de autógrafos.
055
Análise crítica e balanço
O conceito subjacente ao projecto Café com Letras não é novo. Trata-se de uma iniciativa
actualmente realizada em inúmeras Bibliotecas Públicas nacionais e livrarias, cujo modelo
assenta, invariavelmente, no Encontro com o Escritor.
No caso particular das Bibliotecas Municipais de Oeiras tentou-se efectuar uma abordagem
que permitisse não só criar uma identidade do projecto, mas, também, fidelizar um público
leitor. Essa identidade está ancorada nos seguintes factores:
• A existência de um moderador fixo que constitui um dos vectores e um dos rostos incontornáveis
do mesmo. Pretendeu-se recriar nas Bibliotecas Municipais de Oeiras um registo próximo do
trabalho desenvolvido pelo jornalista Carlos Vaz Marques na Rádio TSF, nomeadamente, no
programa “Pessoal e transmissível”;
• A tentativa de encontrar um painel de escritores contemporâneos diversificado que
consubstancie um conjunto de vozes e abordagens diferenciadas ao nível da escrita e da
literatura: jovens escritores, autores consagrados, letristas, escritores/jornalistas e escritores
cujo género literário mais conhecido se circunscreve às narrativas policiais, à literatura infantil
ou, ainda, a um registo mais próximo das crónicas, entre outros possíveis. Esta multiplicidade
de registos apenas procura cumprir as diversas valências da leitura e da literacia, numa
abordagem mais contemporânea e consentânea com os propósitos hoje definidos: instruir,
informar e distrair. No fundo, pretende-se ir ao encontro de uma multiplicidade de interesses
e de leitores;
• A definição do projecto como um projecto de continuidade, a realizar nos próximos anos,
procurando potenciar e diversificar abordagens de forma a atingir uma faixa alargada de leitores
e de interesses. A título de exemplo, refira-se que, durante o ano de 2007, o Café com Letras
será, inteiramente, dedicado à poesia;
• O estabelecimento de parcerias, nomeadamente, com as editoras e com a Rádio TSF, que
apoia o projecto. Este apoio está traduzido em termos divulgativos, concretamente, através da
inserção diária de quatro spots nos quatro dias que antecedem cada sessão. Os spots em
questão são produzidos pela equipa afecta ao projecto.
Finalmente, um dos motes e conceitos do projecto que define e orienta o curso da conversa
e que estabelece um fio condutor na abordagem utilizada em cada sessão é o de que “escritores
também são leitores”. Obviamente, que tal facto não determina, nem limita o registo e carácter
056
imprimido em cada sessão pelo moderador desta actividade e que está, naturalmente, dependente
do olhar e da escrita de cada autor convidado.
Por este projecto já passaram os seguintes escritores: Gonçalo M. Tavares, Carlos Tê, Rodrigo
Guedes de Carvalho, José Saramago, Inês Pedrosa, Francisco José Viegas, António Lobo
Antunes, Manuel António Pina e, já em 2007, foi iniciado um novo ciclo de sua vida e existência
dedicado à poesia e que foi inaugurado pelo poeta e tradutor Vasco Graça Moura. Muitos outros
nomes lhe seguirão!
Conclusão
Apesar da imensidade de produção escrita a que hoje assistimos, da dispersão de livros e
autores, existe, claramente uma certa resistência à leitura, sobretudo, no seu suporte tradicional,
o livro. Tal facto, encontra a sua justificação em razões de variadíssima índole: ao processo
de contínua mudança, de mutabilidade a todos os níveis em que a sociedade actual está
mergulhada, à concorrência feroz introduzida por outros meios de suporte de informação e
de literacia e à terrífica concorrência da televisão que faz com que a pergunta “que devo ler?”
tenda a ser substituída por outra, bem mais perversa, “que devo dar-me ao trabalho de ler?”
Contudo, a importância da leitura, do livro tem de radicar, sobretudo, no facto de os livros e a
leitura darem acesso a outros mundos, a outros olhares e a outras formas de dizer a vida
diferentes da nossa!
É por isso que nenhuma escrita, nenhum discurso seja literário, filosófico, artístico ou meramente
informativo ou de lazer vive isoladamente, fechado sobre si próprio. Um texto, um discurso é
sempre mais uma linha numa teia, uma rede de planos que ele tece e que neles se tecem.
O leitor – esse – desloca-se na intermitência da linha, na superfície da página, deambula por
entre sucessivas ondas de significação, num oceano de continuidades, de espanto e liberdade.
O leitor – esse – navega numa totalidade cósmica de significação infinitamente aberta. [12]
É por isso que no dizer do poeta “a alegria é saber”! [13]
Procuramos prosseguir esta verdade, diariamente, com esforço sempre renovado através da
prossecução dos objectivos que nos propomos atingir e procuramos, acima de tudo, cumprir
de forma séria, rigorosa e empenhada uma das missões essenciais que define o serviço à
comunidade nas Bibliotecas Públicas: promover os livros e a leitura.
057
Notas
[1] PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Pref. de José Augusto Mourão. 2ª ed. Lisboa: Vega Passagens, 1998. p. 6.
[2] “Se comprendre, c’est se comprendre devant le texte et recevoir de lui les conditions d’un soi autre que le moi, qui
vient à la lecture. » RICOEUR, Paul. Du texte à l’action, Essais d’Herméneutique II. Paris: Editions du Seuil, p.31.
[3] Este trabalho é norteado por um conjunto de princípios e estratégias que estão definidas no programa “Oeiras a Ler”
da responsabilidade do Dr. Filipe Leal, Chefe da Divisão de Bibliotecas, Documentação e Informação da Câmara Municipal
de Oeiras. Este programa tem como principal finalidade implementar uma estratégia municipal de promoção da leitura
no Concelho de Oeiras e tem vindo a ser desenvolvido desde 2003, através de um conjunto diversificado de projectos
dirigidos aos diferentes públicos (crianças, jovens, adultos, seniores, profissionais), assumindo a promoção da leitura
como uma prioridade estratégica no cumprimento da missão das bibliotecas públicas.
[4] MANIFESTO DA UNESCO [em linha] Paris, 1994. Disponível em:
(URL : http://mbp.iplb.pt/Documentos/manifestoUNESCO.pdf)
[5] A presente reflexão e explanação é da responsabilidade não só da signatária, mas também da colega Ana Isabel Santos
igualmente responsável pela gestão operacional do projecto e pela elaboração dos materiais de apoio. Esta reflexão crítica
resulta do trabalho de equipa que norteou, desde o início, a nossa colaboração e das inúmeras troca de olhares e de
experiências ao redor deste projecto. Acresce, ainda, referir que a concepção e planeamento do projecto é da autoria do
Dr. Filipe Leal, Chefe da Divisão de Bibliotecas, Documentação e Informação da Câmara Municipal de Oeiras.
[6] A Comissão Científica tinha a seguinte constituição: Jorge Barreto Xavier (Vereador da Cultura e Juventude da Câmara
Municipal de Oeiras e Presidente desta comissão); Aline Bettencourt (Fundação Marquês de Pombal); Fernando Pinto
do Amaral (convidado a título individual); Jorge Calado (Instituto Superior Técnico); Mafalda Lopes da Costa (convidada
a título individual); Paulo Costa (Universidade Atlântica); Sérgio Gulbenkian (Fundação Calouste Gulbenkian).
[7] CALVINO, Ítalo. Porquê ler os Clássicos? Trad. de José Colaço Barreiros. Lisboa: Teorema, 1994. p. 10.
[8] CALVINO, Ítalo, op. cit. p. 9.
[9] CALVINO, Ítalo, op. cit. p. 9.
[10] CALVINO, Ítalo, op. cit. p. 10.
[11] “Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quando se impõem como inesquecíveis, como
quando se ocultam nas pregas da memória mimetizando-se de inconsciente colectivo ou individual.” CALVINO, Ítalo.
Porquê ler os Clássicos? Trad. de José Colaço Barreiros. Lisboa: Teorema, 1994. p. 18.
[12] POMBO, Olga. Notas de leitura à margem de uma antologia. Philosophica. Revista semestral do Departamento e
Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Edições Colibri, 2000. p.140.
[13] RILKE, Les Sonnets à Orphée, VIII, Paris : Gallimard, 1994.
Ana Paula Jardim nasceu em 1967, em Coimbra. É licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa. Foi Técnica
Superior no Sector de Acção Cultural do Departamento de Assuntos Sociais e Culturais da Câmara Municipal de Oeiras
entre 1997 e 2003, onde era coordenadora de diversos projectos na área da literatura. Está afecta às Bibliotecas Municipais
de Oeiras desde o final de 2003, tendo exercido várias funções na área da promoção da leitura. Foi coordenadora do Grupo
de Trabalho de Promoção da Leitura dos Sectores de Adultos durante o ano de 2006. Actualmente, é coordenadora de
projectos de promoção da leitura para adultos nas BMO e integra a equipa do Serviço de Apoio ao Leitor.
058
Bibliografia
PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Pref. de José Augusto
Mourão. 2ª ed. Lisboa: Vega, 1998.
CALVINO, Ítalo. Porquê ler os clássicos? Trad. de José
Colaço Barreiros. Lisboa: Teorema, 1994.
RICOEUR, Paul. Du text à l’action. Essais d’Herméneutique II.
Paris: Editions du Seuil, 1986.
POMBO, Olga. Notas de leitura à margem de uma antologia.
Philosophica. Revista semestral do Departamento e
Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Edições Colibri, 2000.
MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, as fronteiras da filosofia.
Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
RILKE, Rainer Maria. Les Sonnets à Orphée, VIII, Paris:
Gallimard, 1994.
059
JARDIM DA MINHA INFÂNCIA
Carmelinda Pereira
Resumo
Este é um relato de experiências de leitura na primeira pessoa, sobre a sua experiência de
leitura enquanto criança, docente e coordenadora da Biblioteca Escolar. É uma narração que
abrange o seu crescimento enquanto leitora e como através do seu percurso procurou incutir
e trabalhar com os alunos estes hábitos e o prazer da leitura.
Minha mãe levava-nos, a mim e à minha irmã, a procurar nos nós da madeira que forrava o
tecto do nosso quarto, as fadas, o lobo, a bruxa má, os cabritinhos, a raposa, a cegonha, o
capuchinho vermelho, a avó e o caçador – as personagens do meu imaginário, bem como as
personagens do mundo real, dos pais aos avós, aos tios, aos vizinhos.
Através daqueles nódulos, de diferentes formas e diferentes tamanhos, eu comecei a reconstruir
todas as histórias, nas quais misturava, como todas as crianças, a fantasia com a realidade.
Histórias que emergiam dos contos, das récitas, das lengalengas, que minha mãe, minha tia
e uma vizinha nos ensinavam e que nós reproduzíamos para o pequeno auditório da família,
empoleiradas num banco em casa dos avós.
Tínhamos apenas dois ou três livros de histórias. Mas foi neste clima de extrema afectividade
e grande intuição dos adultos, sobretudo da minha mãe, que aprendi a imaginar, a verbalizar,
a associar, a compreender, a ver uma representação no espaço – todos os requisitos para
adquirir rapidamente, na escola, o domínio dos mecanismos da leitura e da escrita, em
simultâneo com o imenso prazer de descobrir as palavras e as ideias.
E, certamente, foi nestas vivências que ganhei o hábito de desenhar as situações lidas ou
ouvidas, tal como mais o enunciado dos problemas, para depois encontrar a sua solução.
EXPERIÊNCIAS NA PROMOÇÃO DA LEITURA
APRENDIZAGENS SABOROSAS… GOSTOS
CONTAGIANTES 061
062
A minha experiência pessoal vem ao encontro da conclusão de Conceição Rôlo (2001), quando
diz: “A promoção da leitura passa por nós. Quanto maior for o desenvolvimento oral, mais
depressa aprendemos a ler.”
Ganho o automatismo da leitura, veio o prazer da leitura fluente, da entoação, para rapidamente
concentrar a memória e a atenção na compreensão do texto, na curiosidade crescente de
procurar mais informação.
Assim, retomando os ensinamentos de Inês Sim-Sim (2006), podemos dizer que aprender a ler
é aprender a descobrir, na combinação de um conjunto de símbolos – nos quais cada um é um
som –, as palavras e as ideias que nos transportam a um número tão grande de representações,
consoante são as vivências que possuímos e que verbalizámos. Trata-se de um processo que
se automatiza de tal modo que ler será como que possuir um novo sentido de visão.
Um novo sentido de visão, base para o desenvolvimento de todo o pensamento, para as
incalculáveis associações que permitem depois encontrar caminhos para resolver as situações
problemáticas ou, até, para inventar.
A experiência mostra como as crianças adoram desenhar o enunciado das situações
problemáticas, de inventar outras – como se fossem histórias, e de representar, também
através do desenho, os caminhos do seu pensamento para encontrar as soluções.
Não estão todos estes processos relacionados com as histórias, as lengalengas, as cantigas,
os jogos com o corpo, o desenho, o teatro, os afectos?
Não é por aqui que passa um bom desenvolvimento da linguagem, a aquisição do vocabulário,
o domínio da leitura e o gosto pela mesma?
Como dizia Pascal (citado por T. Guedes, 1990): “Para bem pensar é necessário bem imaginar”.
Uma boa e rica vivência familiar, um bom jardim-de-infância, ainda mais imprescindível quando
este tem que “compensar” o défice de vivências dos primeiros anos de vida, mais afecto sem
medida: eis os requisitos para se adquirir facilmente o automatismo no processo de descodificação
fonológica e gráfica contido na aprendizagem da leitura e da escrita.
Bom desenvolvimento da linguagem, curiosidade e imaginação: eis as condições para aprender
063
a ler rapidamente. Mas, também aqui, a forma como a mesma se processa tem uma influência
determinante no caminho para formar bons leitores.
Santana e Neves (1997, p. 13) afirma: “(...) a leitura é um acto cognitivo, ou seja, está intimamente
ligada à compreensão. Sendo assim, ensinar a ler na escola não pode ter como principal
objectivo o treino das competências mecânicas. O treino das competências mecânicas,
efectivamente necessário, tem de ser subsidiário do projecto de ler textos com sentido e com
uma função definida, tem de ser consequência do mesmo. Consideramos importante que, no
1º Ciclo, se adquira uma leitura fluente, mas que isso se construa sobre um conjunto de práticas
capazes de desenvolver a compreensão e o gosto pela leitura.”
Aprender a ler pode ser um acto de afectividade e auto-estima, de partilha e libertação
Era um grupo de meninos do segundo ano de escolaridade, acompanhados pela professora
animadora da Biblioteca da Escola e, também, pela professora da turma. Estávamos em finais
de Novembro. Líamos um livro de poesias de Luísa Ducla Soares, com o objectivo de treinar
o acto de ler correctamente e com sentido.
Todas essas poesias são sedutoras. Mas uma delas é divertidíssima, pois cada quadra é um
disparate. Cada criança ia lendo, em voz alta, a quadra que lhe cabia, e todos íamos dando
gargalhadas. Quando ia a chegar à vez do João – um menino de espectro autista, que nunca
falava, apenas ouvia a leitura das histórias – este disse: “Eu quero ler.”
Fez-se silêncio no grupo, surpreso com a atitude inesperada do João. Leu alto, correctamente
a sua quadra, riu e fez rir. Depois levou dos amigos uma espontânea salva de palmas.
Poderemos dizer, pelas palavras de João dos Santos (1983): “(O) maravilhoso dos contos
tradicionais (é que), se tiver um bom afectuoso narrador, tem tudo o que é preciso para estimular
o sonho, a fantasia, a sabedoria e o saber da criança e do homem.”
Se se aprende a descobrir novas palavras, a partir dos pedacinhos de palavras que se conhecem,
da combinação dos sons, com prazer, com desejo de descobrir o que está escrito; se todos
estes processos se realizam num contexto que tem significado para uma criança, no meio da
continuação da leitura das histórias e de actividades que prolongam o prazer de ter ouvido ler
– da expressão plástica aos fantoches, das imagens ao teatro –, então estar-se-á, certamente,
no caminho da formação de bons leitores para toda a vida.
064
É assim que se revestem de uma importância crucial as práticas pedagógicas articuladas com
as bibliotecas escolares, a existência de uma biblioteca na sala de aula, bem como todas as
propostas de enriquecimento da nossa língua materna, a partir dos livros adequados a cada
escalão etário, com uma preferência especial pelo texto literário e de sentido ético.
Quando a fantasia vai ao ponto de sentir
“Estou mal disposta, vou vomitar”.
Tinha sido lido, em voz alta, a história “O Soldado João”, também de Luísa Ducla Soares.
Recontada a história, pelo grupo, para que fosse assimilada no seu todo – ajudando, assim,
as crianças a conceptualizar e a ultrapassar uma visão fragmentada da mesma, preparou-se
a sua representação teatral, em que cada menino desempenharia o papel de uma das
personagens.
De repente, a Madalena – a quem coube fazer o papel de “Soldado João” – disse: “Tenho que
sair. Estou muito mal disposta. Não aguento o cheiro a chulé dos pés e das botas do general.”
Tal como diz T. Guedes (1990), criticando as práticas da Escola tradicional: «Por que não
“acordar” (a criatividade, a sensibilidade e o imaginário) na criança e, simultaneamente,
aprender e aperfeiçoar o estudo da língua, passando, para isso, pelos largos corredores do
prazer lúdico e do poder encantatório das palavras?” (pp. 15-16). “(...) Nunca percebi bem por
que é que os adultos remetem para uma torre de marfim inacessível aquilo que se lamentam
de ter perdido: a imaginação fértil da criança, a sua espontaneidade, um certo poder visionário
e um estado linguístico ainda pouca poluído.” (p. 16).
Ávidos de informação e de conhecimento, de realização
Chegados ao patamar da fluência, surgirá então uma panóplia inesgotável de vivências de
práticas, onde professores e alunos sentem o tempo voar (“Já está a tocar? Podemos ficar na
sala?”), que farão com que uma criança vá lendo textos progressivamente mais complexos.
É a mestria da leitura e da escrita – ao serviço da mestria de todas as aprendizagens – que
permite, a cada criança, encontrar o caminho para se poder tornar um cidadão culto. Estas
aprendizagens devem estar alicerçadas num clima de confiança, de auto-estima, de vivências
democráticas, em que cada criança se sente um elemento do grupo, em que o seu desempenho
tem significado para a vida do grupo.
065
Trata-se da vivência do trabalho em equipa, onde todas as actividades, todos os projectos,
todas as metas e avaliações passam pelo grupo, onde todos decidem e se entreajudam. Como
o explicita Josette Jolibert (1984, p. 16). Será o caminho para formar cidadãos conscientes dos
direitos e deveres, ávidos de informação e de conhecimento.
Construir uma outra vida dentro de si
Era carente de tudo: de alimentação, de higiene, de cuidados de saúde. Só não era carente de
violência.
Franzina e inteligente, com nove anos, já sabia usar múltiplos estratagemas para conseguir
esmolas, sobretudo dos turistas. Era preciso levar dinheiro para casa.
Devorava os livros da pequena biblioteca da escola do Casalinho da Ajuda e escrevia. Escrevia
textos de páginas e páginas. Neles, ela fazia entrar as fadas, os palácios cheios de riqueza, o
cão que se tinha perdido… e uma menina, sempre uma menina da sua idade. O conteúdo das
suas histórias era o contrário da adversidade da sua terrível vida.
Analisando, com o colega do ensino especial, o desempenho desta criança na área da leitura
e da escrita, em contradição com as dificuldades nas restantes, ele foi buscar os ensinamentos
de João dos Santos, para me responder: “Quando as condições de vida são demasiado brutais,
há crianças que se defendem desse mundo que as destrói construindo um contrário dentro
delas.”
Numa situação destas, que força não têm as ferramentas da leitura e da escrita?
Sereias e rouxinóis com crianças e artistas
As turmas do segundo e terceiro ano da EB1 Sofia de Carvalho responderam ao desafio feito
pelo Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares do Concelho de Oeiras (SABE). Tratava-se de
usar e abusar, como se quisesse, de dois contos de Hans Christian Andersen – “O Rouxinol
do Imperador” e “A Sereiazinha”. Uma sedutora pasta – com um exemplar da síntese de cada
um e algumas propostas de trabalho nas áreas de expressão – foi oferecida, a cada menino,
pelas responsáveis pela animação de leitura das bibliotecas municipais, no momento em que
foram à escola fazer a leitura encenada de parte dos mesmos.
066
Construiu-se o projecto com professores, com artistas (de teatro, de expressão plástica e de
escrita criativa), com músicos e crianças. A partir dele, trabalhámos a leitura, a escrita, o
funcionamento da língua, a comunicação oral, o movimento corporal, a pintura e o desenho,
a educação musical. Trabalhámos a disciplina, a organização, a atenção, a memória, o esforço,
os laços de grupo, a auto-estima e o equilíbrio emocional.
O resultado foi uma representação coreografada, o conhecimento mais aprofundado do pai da
literatura infantil (Andersen), e mais um passo na mestria da leitura e da escrita dado com
prazer. E, provavelmente, uma recordação deliciosa no jardim da memória daquelas crianças
e daqueles adultos.
Os exemplos de práticas de promoção de leitura, referidos neste artigo, mostram como vale
a pena apostar no ensino das mesmas, a partir da vida, a partir do que se sente, com a convicção
de que – ao fazê-lo – estamos a dar continuidade a um caminho em que tantos investiram ao
longo de milhares de gerações. Agora, é a nossa oportunidade de o manter aberto, acrescentando-
-lhe a nossa parte.
Ao fazê-lo, procuraremos dar às nossas crianças os meios que permitam verificar a afirmação
de Alain: “Ser culto é, em cada ordem das coisas, remontar à fonte e beber com a concha da
nossa mão e não de uma mão emprestada.” (citado por Savalto Telles de Menezes, 1993).
Carmelinda Maria dos Santos Pereira exerceu a profissão docente numa escola do 1º ciclo do Concelho de Oeiras. Tem
dedicado aos últimos anos à dinamização de bibliotecas escolares, dedicando especial atenção ao trabalho de promoção
da leitura. Activista política, foi fundadora e é dirigente do Partido Operário de Unidade Socialista.
067
Bibliografia
GUEDES, T. (1990). “Ensinar a poesia”. Colecção Práticas
Pedagógicas, Edições Asa, Porto.
JOLIBERT, Josette (1984). “Formar Crianças Leitoras”.
Colecção Práticas Pedagógicas, Edições Asa, Porto.
RÔLO, Conceição (2001). Actas do II Encontro Internacional
com o tema “O desafio de ler e escrever – Leitura e coesão
social”. Lisboa, 11 a 13 de Julho.
SANTANA, I. e M.C. Neves (1997). “Cultivar o gosto pela
leitura”. Formação Contínua de Professores, Departamento
de Educação Básica, Ministério da Educação, Lisboa.
SANTOS, João dos (1983). Comunicação pessoal.
SIM-SIM, Inês (2006). “Ler e ensinar a ler”. Colecção
Práticas Pedagógicas, Edições Asa, Porto.
TELLES DE MENEZES, Savalto (1993). “Literatura”. Editora
Difusão Cultural, Lisboa.
Resumo
Apresenta-se uma reflexão sobre a contribuição da biblioteca escolar no ensino-aprendizagem,
sobre a leitura e os novos suportes de leitura e todo o contexto actual que transformou o
paradigma papel nos ambientes digitais e sua influência nos jovens leitores.
Biblioteca escolar e aprendizagem em tempos de mudança
Em tempos de mudança, importa perceber o contexto em que estamos e como nos podemos
melhor preparar para essa mudança e, havendo aspectos que permanecem, serão esses onde
podemos encontrar alguma segurança, quiçá algumas certezas, para de forma confiante
abraçarmos novos desafios.
Desde que a Rede de Bibliotecas Escolares se começou a implementar que as bibliotecas
assumem um papel central na vida das escolas. São o coração da escola.
Se considerarmos levar esta metáfora ao extremo, podemos pensar num coração que pulsa e
impulsiona, num coração que faz circular (conhecimento, informação, aprendizagem) e cria redes
de circulação, que alimenta, vive e faz viver. Que marca o ritmo e dá qualidade de vida à escola…
que acompanha os tempos de pausa, de frenesim, de muita ou pouca actividade, mas que está
lá sempre. E que é sempre o espelho do corpo (essa estrutura macro) que é a escola.
A esta relação simbiótica se refere também Barbara Stripling (1996), quando enuncia que “The
quality of school of library media programs is inextrically linked to the quality of education
offered in the schools”. De facto, torna-se uma evidência para quem conhece algumas bibliotecas
escolares e de alguma forma as escolas acolhedoras, que estas estruturas são reflexo umas
das outras, do seu corpo docente, do seu corpo dirigente.
Ao assumirmos que o enfoque da escola deverá estar na aprendizagem, numa pedagogia
facilitadora da aprendizagem, compreendemos que na biblioteca escolar é imprescindível que
esta preocupação esteja também aí presente. E se estendermos esta ideia até à qualidade
BIBLIOTECA ESCOLAR E LEITURA EM TEMPOS
DE MUDANÇA
Tatiana Sanches 069
070
(entendida aqui como qualificação e excelência de resultados), teremos de concordar com
aquela autora, quando refere que é necessário criar uma cultura de qualidade, em que a escola
esteja centrada na aprendizagem.
Assim, a biblioteca escolar deverá, ela própria, ser o centro de aprendizagem (e auto-
aprendizagem) por excelência, pois ela é a porta de acesso, o centro dos recursos, a fonte onde
todos (docentes, não docentes e discentes) podem beber e partilhar, independentemente da
turma a que pertençam, da disciplina que leccionam, do ano que frequentam, pois o acesso
é livre e a aprendizagem é auto-referenciada, cada um irá andando ao seu ritmo, pesquisando
o que quer, onde quer, através dos meios tradicionais ou das tecnologias de informação e
comunicação mais inovadoras.
O papel do profissional que gere a biblioteca escolar passa assim por ser o de facilitador, tanto
na forma como se propõe organizar e disponibilizar os fundos documentais, como na maneira
como interage com os seus utilizadores, formando, dando achegas, ajudando. Estando lá. E
porque estamos numa era em que a mudança é constante, o bibliotecário escolar ou o professor
bibliotecário (tal como o organismo escola) deverá ser permeável a essa mudança, adaptável
e flexível perante as novas formas de estar, de pesquisar, de trabalhar. E esta atitude deverá
ser integrada e natural, facilitando assim essa valorizada aprendizagem centrada no aluno.
Estas premissas encontram eco na atitude de valorização do aprender e do aprendiz, citada
por Glória Dante (1999), quando se refere ao “valor-conhecimento” ou “valor-inteligência”
descrito por Sakaiya como uma nova forma avançada do estar social. Este estar “valorizante”,
que potencia o que de melhor existe em cada um é também a chave para a boa gestão, ou, nas
suas palavras, uma gestão feliz.
Concluímos, então, que as matérias se interpenetram, uma vez que quando se pretende
qualidade na aprendizagem, pretende-se qualidade na biblioteca escolar e isto passa por
colocar o aluno e as suas necessidades em local central no processo de aprendizagem, mas
quando queremos uma biblioteca escolar de qualidade, queremos também uma biblioteca que
obtenha um resultado feliz e “la felicidad no la deciden las magnitudes, sino la calidad (…)
Además el éxito/felicidad es objeto también de gestión.”
Ou seja, a melhoria contínua é transversal à instituição escola, à biblioteca escolar e ao actor
da comunidade escolar, em especial ao aluno-aprendiz, e em todas estas frentes esta melhoria
só se faz com a avaliação consequente, o investimento no crescimento potenciado (empowerment)
071
e com flexibilidade ou capacidade de adaptação. Só assim o coração pode manter-se saudável.
E também com muito afecto, é claro.
Contudo, em tempos de mudança, é necessário estar atento a outros sinais, a outros recursos,
a outros acessos à informação e ao conhecimento, no seio de uma escola aberta, a outras
formas de olhar e gerir a mudança, fazendo com que a biblioteca escolar passe do mundo
fechado ao universo infinito. Para tal, muito tem contribuído a instalação da Internet nas escolas
e nas bibliotecas, em particular. Mas, se o advento da Internet permitiu uma proliferação de
saberes e de formas de acesso ao conhecimento, uma multiplicação da edição nunca antes
vista, foi também com a Internet que se recolocou a questão da exclusão social, espelhada nos
conceitos relacionados com a info-exclusão, ao mesmo tempo que originava o muito ruído e
a pouca pertinência de muitos dos seus conteúdos. A par, são inegáveis e já socialmente aceites
e integradas as suas vantagens. Chegamos, pois, a uma nova etapa na mudança de visão da
própria educação. Ou como referem Palloff & Pratt citados por José Manuel Moran, na introdução
que faz ao artigo de AZEVEDO (p. 24), “uma mudança de paradigma com relação à maneira
com que nos vemos como educadores, como vemos nossos alunos, e como vemos a própria
educação. Não é um curriculum que estamos convertendo, mas a nossa pedagogia”.
Assim, nesta mudança de paradigma operam diversos conceitos-chave da educação, não só
aqueles que espelham os papéis dos actores do processo ensino-aprendizagem: aluno e
professor, como todo o ambiente digital que oferece novas características contextuais para o
processo educativo.
A formação online, por exemplo, extravasa as questões (também importantes) tecnológicas.
Estas proporcionam as condições reais de aprendizagem, permitindo a partilha, a aprendizagem
colaborativa, o encontro de pessoas distantes geograficamente, através das ferramentas como
o chat, os fóruns, as listas de discussão e o próprio espaço considerado como a Sala de Aula
Virtual (MORGADO, p.7). Mas estas são, quanto a mim, questões meramente técnicas ou
logísticas relativas aos ambientes digitais.
A formação online, tal como muitos outros recursos digitais postos ao serviço da aprendizagem
(blogues, wikis, …), acrescenta e questiona algo mais profundo relativamente aos papéis do
aluno e do professor. Questiona os métodos, as posturas mais passivas, a acomodação, a
gestão pessoal do tempo, o sentido do dever. Questiona até as personalidades ou as formas
de estar em comunidade e as formas de ensinar e de aprender.
072
E acrescenta. Acrescenta reflexão, acrescenta dúvida, acrescenta trabalho individual e colectivo.
Acrescenta flexibilidade e maturidade intelectual. Acrescenta interdisciplinaridade e interacção,
pois toda a aprendizagem é de responsabilidade partilhada, mas é apenas conseguida quando
o indivíduo está predisposto a aprender o que na realidade já conhece, a colocar de forma
visível o seu conhecimento e, assim, completar o seu processo de aprendizagem individual.
A partilha, no âmbito de uma comunidade de aprendizagem online, é valorizada, pois, se é
certo que o papel do professor é o de moderar, dinamizar e ter em conta todos os aspectos
pedagógicos, de gestão, sociais e técnicos (veja-se MORGADO, p. 11), o papel do formando e
o seu posicionamento relativo é a chave da aprendizagem, de uma forma que se deseja integrada.
É este papel-chave, centrado na pessoa que aprende, num contexto digital em permanente
mutação, em colaboração activa dentro de uma comunidade virtual que torna, quanto a mim,
a formação online quase uma metáfora para a pós-modernidade.
É aqui que ocorre a ruptura dos modelos epistemológicos anteriormente aceites, ruptura esta
que se faz precisamente a partir dos contextos de descontinuidade (espacial, temporal,
conceptual…), tendo como pano de fundo o pluralismo teórico e os diversos contributos dos
membros da comunidade virtual. As mutações dos conceitos (o que é afinal a pedagogia, o
ensino, a aprendizagem?; o que é uma aula, o que é um aluno ou um professor?), antes
formulados como certezas, intensificam a necessidade de reflexão, a necessidade de entender
a “realidade” agora fragmentada em termos temporais e espaciais.
Mas se vivemos nesta era de transformação, numa era pós-moderna que não é mais do que
uma “nova forma de racionalidade pluralista e fruitiva” (GATTI) só nos resta “mergulhar na
água e aprender a nadar”, fruindo as aprendizagens, tirando prazer da diversidade, partilhando
o pensamento plural. E aprendendo assim, de forma privilegiada porque diversificada, na
biblioteca escolar.
Leitura e jovens leitores em tempos de mudança
Para reflectirmos sobre a leitura, os novos suportes da leitura e todo o contexto actual que
transformou o paradigma papel nos novos ambientes digitais, teremos de recuar um pouco e
compreender a incontornável influência que tem a concepção social da criança e do jovem na
produção literária para estes destinatários. De facto, as mudanças nos textos destinados às
crianças e jovens, visivelmente observáveis durante os últimos 50 anos, foram resultado, em
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grande medida, de grandes mudanças sociais operadas pela consciência que as “pedo-ciências”
trouxeram. Estas observações introduzem o que, no nosso entender, é a questão fulcral
levantada por Teresa Colomer:
“La visión de la infância como un tiempo de aprendizaje es uno de los elementos básicos para
la emergencia de un sistema educativo progresivamente generalizado a toda la población y
ampliado en el período de edad que debe abarcar. (…) Este proceso há conllevado una enorme
ampliación del público lector y, por consiguinte, el crecimiento del público potencial del libro
infantil que ya incluye la primera infância y los adolescentes (…).”
O que é aqui evidenciado é que a influência do ensino obrigatório em particular, e do sistema
de ensino, em geral, é determinante na produção editorial infanto-juvenil. Isto é, quanto mais
jovens existem no sistema escolar obrigatório, maior será um potencial público-alvo para os
editores. Assim, ao haver obrigatoriedade escolar até mais tarde, terá sido necessário fomentar
a edição de livros escolares, que propiciaram novas leituras e novos leitores que por sua vez
se tornam consumidores mais habilitados requerentes de outros produtos, entre os quais
livros.
Esta situação só se torna visível à distância de algumas décadas e, no caso actual, podemos
arriscar dizer que ainda não se operaram mudanças substantivas. Em Portugal, só nos últimos
cinco anos ou, quando muito, na última década, começou a surgir uma edição visível (na maior
parte resultado de traduções) especificamente dirigida a públicos juvenis.
Relativamente aos novos ambientes digitais podemos fazer um raciocínio semelhante. Se os
conteúdos, as apresentações, os produtos e as actividades, no fundo, os próprios contextos
digitais não estiverem preparados para traduzirem uma adequação a este público, a recepção
irá com certeza ser deficitária e todas as promessas de “El Dorado” que estas poderiam trazer
ficarão comprometidas, concentrando-se o seu papel apenas nos factores que podem contribuir
para as clivagens e desigualdades sociais, mais agravadas quando falamos de crianças e
jovens.
Será importante percebermos que todas as destrezas necessárias para o domínio da técnica
de leitura (descodificação, compreensão, classificação, abstracção, bem como outros processos
cognitivos avançados que concorrem para a interpretação e aplicação das aprendizagens em
contextos futuros diferentes) serão, por sua vez, um primeiro patamar em que assentam novas
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capacidades e destrezas (de comunicação, construção discursiva, investigação) necessárias
no ambiente digital.
Ao reflectirmos nos aspectos da leitura em toda a sua extensão: desde a leitura íntima, passando
pela leitura como busca (de informação, de formação, de prazer), à leitura como aposta social
e participação do cidadão ou à leitura como promoção individual permanente, importa referir
que estas ganham nova dimensão e acarretam renovadas preocupações quando as transpomos
para o ambiente digital. Pois, se é um facto que muitas das formas de leitura (e de escrita) são
a simples migração do suporte escrito para o suporte electrónico, potencialmente existem
muitos processos cognitivos que poderão ser estimulados por via do uso das plataformas hiper-
textuais, da busca de informação online, das novas práticas comunicativas e, inclusivamente,
das possibilidades de criação de outras identidades, por isso, de contextos experimentais
diversos dos habituais.
Daí ser muito importante que o educador, professor, bibliotecário ou outro mediador de leitura
adeqúe o seu trabalho ao nível do funcionamento actual do aprendiz. O mesmo é dizer que as
leituras que estimulam os jovens diferem de acordo com o seu estado de desenvolvimento
psicossocial, contextos sociais e de aprendizagem e que o trabalho de mediação da leitura
nestas idades deve centrar-se exactamente na adequação.
Como referem Sprinthall e Collins:
“Ao longo do desenvolvimento, a passagem para estádios mais complexos depende da
adequação das condições de aprendizagem ao nível real de funcionamento do indivíduo jovem,
podendo-se, mais tarde, aumentar gradualmente a complexidade dos conteúdos que se
ensinam. Este processo pode falhar em ambas as direcções: podemos ensinar de maneira
ineficaz, quer subestimando os alunos, quer dificultando demasiado as tarefas, a ponto de
ultrapassar as suas capacidades reais. (…) A questão (…) não é como acelerar, mas, antes,
como impedir uma estagnação – como promover uma interacção estimulante que favoreça
o desenvolvimento.”
Assim, o processo de incentivo à leitura, de acompanhamento ao desenvolvimento do leitor
adolescente deverá, no nosso ponto de vista, passar por recomendações feitas com base em
leituras experimentadas e ao consequente desejo de partilha, de tornar comum essa experiência.
Daí que o papel de mediador de leitura passe necessariamente pelo ser leitor. Pois, apenas
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na intencionalidade e implicação pessoal com a leitura poderá haver contágio desse desejo
imenso que é o de construir um percurso individual e único de leitor.
Mas este percurso não se adivinha fácil. Publicados em 2000, os dados do estudo Pisa
(Programme for Internacional Student Assessment), realizado no âmbito da OCDE e cuja
finalidade foi avaliar as competências de literacia e as capacidades de utilização de conhecimento
dos jovens adultos, de diversos países, à saída da escolaridade obrigatória, colocavam 48% da
população jovem (14-15 anos) portuguesa em patamares inferiores (1 ou 2) numa escala de 5
níveis de literacia, posicionando Portugal em 27º lugar, numa lista de 32 países participantes.
Os resultados da OCDE sublinham a preocupante situação quando revelam que 25% dos jovens
que terminam o 9º ano com sucesso são analfabetos funcionais. Estes dados vieram
complementar aqueles que já tinham sido apontados por um Estudo Nacional de Literacia,
datado de 1996, levado a cabo por uma equipa coordenada por Ana Benavente, no qual se
realizou uma avaliação directa das competências de leitura, escrita e cálculo da população
portuguesa adulta (com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos) e cujos resultados
possibilitaram uma primeira devastadora reflexão em torno do perfil de literacia da população
portuguesa, revelando que 70% dos activos portugueses se situava nos níveis 1 e 2 de literacia
numa escala de 0 a 4. Após sete e onze anos, respectivamente, da divulgação destes estudos,
não nos podemos colocar numa posição demasiado pessimista, pois apesar dos graves
indicadores, teremos de ter em conta o contexto histórico-cultural do nosso país, além de
termos de considerar os avanços enormes que têm sido alcançados por via, num primeiro
momento, da criação da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas e, num segundo, pela implantação
da Rede de Bibliotecas Escolares, nomeadamente, ao nível da imagem e do valor social em
que se conseguiu colocar a leitura. Por outro lado, esta consciência da efectiva evolução social
do país nestes aspectos também não nos deverá descansar, pois os dados são claros e o
caminho a percorrer ainda é longo.
Se ambicionamos um país com níveis de literacia idênticos à média europeia, desejamos um
país de leitores. Será, portanto, necessário formá-los convenientemente, ou seja, será necessário
construir uma comunidade de leitores, para a qual poderá contribuir o Plano Nacional de
Leitura, através das estratégias de intervenção que apresenta. Estas consideram a leitura nas
suas várias fases, o leitor nos seus diversos níveis de desenvolvimento e as instituições como
parceiros indispensáveis para alcançar aquele objectivo.
Assim, não poderemos deixar de estar de acordo com as intenções subjacentes ao Plano e
com as acções suas correspondentes. Se é necessário intervir na leitura, teremos de actuar
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junto do leitor em construção e do leitor constituído. Desde a fase da leitura descodificação,
passando pela fase da leitura mecanização, à leitura interpretação e construção de sentido.
O papel da escola é incontornável, pois é um facto que institucionalmente é à Escola que cabe
o ensino da leitura, ou seja, a construção de competências leitoras, o ensino do código escrito
e da sua decifração. Mas não podemos exigir à escola que cumpra este papel autonomamente,
isto é, todo o contexto social deverá contribuir para elevar a exigência cultural e fomentar a
partilha social. E isto só é possível fazer-se, no caso da leitura, com o papel activo das famílias
e das bibliotecas, em uníssono com a escola.
As bibliotecas escolares deverão, então, propiciar as condições para o fomento da leitura, no
seio das suas actividades de rotina, pois só quando os alunos se familiarizam com a decifração
do código escrito e automatizam a sua leitura é possível entrarem no nível seguinte: o da
literacia da leitura, em que conseguem extrair significado, criar relações intertextuais e
extratextuais e formular ou produzir conhecimento próprio com base na leitura. E serão estes
sofisticados processos cognitivos que lhes trarão capacidades para aprender de forma transversal
quaisquer conteúdos curriculares. E será, então, este o contributo da leitura para o sucesso
educativo e, por consequência, da biblioteca escolar para o desenvolvimento de cidadãos
leitores.
Tatiana Luena Baptista e Sanches é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Portugueses
e possui uma Pós-graduação em Ciências Documentais. É ainda Pós-graduada em Educação e Leitura, pela Faculdade
de Psicologia e Ciências da Educação. É Mestre em Educação e Leitura com a dissertação de mestrado sob o tema grupos
de leitura de jovens.
Tem trabalhado na área das bibliotecas públicas desde 1993, primeiro como técnica profissional e depois como bibliotecária.
Nesta qualidade, coordenou, entre 2000 e 2006, o Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares da Biblioteca Municipal do
Seixal e desde 2003 o Espaço Jovem da mesma biblioteca. Em 2005 assume as funções de Chefe de Divisão de Biblioteca
e Arquivo Histórico Municipal do Seixal. Actualmente, coordena os pólos da Biblioteca Municipal do Seixal. Tem realizado
actividade como formadora para professores, auxiliares das bibliotecas escolares e técnicos de bibliotecas.
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Bibliografia
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Germán Sanchez Ruipérez, 1998, pp. 134-135.
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-modernidade: confrontos e dilemas.
Consultado em:
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ensino online: problemas e virtualidades.
Consultado em:
http://www.univ-ab.pt/~lmorgado/Documentos/tutoria.pdf
SPRINTHALL, Norman A.; COLLINS, W. Andrew – Psicologia
do adolescente: uma abordagem desenvolvimentalista.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Serviço de Educação
e Bolsas, 2003.
FICHA TÉCNICA
Editor
SETEPÉS
Título
Leitura(s)
Coordenação Editorial
J. Henrique Praça
Coordenação Científica
João Teixeira Lopes
Coordenação da publicação
Filipe Leal
Autores
Ana Arnold Guerreiro Gaspar Matos
Ana Paula Jardim Maria Gabriela Cruz
Bruno Duarte Eiras, Rita Dornelas
Carla Diniz Tatiana Sanches
Carmelinda Pereira
Revisão de textos
Ana Telma Botas
Assistente Editorial
Márcia Pinto
Design
Carlos Mendonça
Pré-Impressão, Impressão e Acabamentos
Empresa Diário do Porto, Lda.
1ª Edição, 2007. Porto
ISBN: 978-972-99312-6-0
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