1.6. Budismo e saúde
No Budismo, doenças físicas podem ser sintoma ou consequência de umdesequilíbrio espiritual?
Sim. A raiz de todas as doenças (e sofrimentos em geral) é a ignorância, da
qual todas as emoções aflitivas surgem. Assim, podemos tentar todos os
tratamentos paliativos que estão nos diversos níveis dos galhos, mas a raiz só
é eliminada com a iluminação completa. A boa notícia é que não precisamos
só atacar a raiz das doenças, mas podemos trabalhar com todos os níveis
disponíveis simultaneamente. Assim um doente — e cada um de nós, que vai
ser um doente, e que vai morrer — deve cuidar da saúde do corpo, da saúde
da mente e da saúde espiritual.
Não cuidar da nossa saúde gera carma negativo?
Sim. E, em particular, se praticando o mahayana ou o vajrayana, os votos
específicos contra não agredir o próprio corpo são mais enfatizados, e o
carma negativo é ainda maior do que se praticando o hinayana, e um não
praticante produz menos carma negativo ao agredir o seu corpo do que um
praticante, mesmo do hinayana — porque além de ser um senciente que
merece cuidado, além disso ele é um relicário dos ensinamentos do Buda.
O Budismo recomenda alguma atividade física específica? O Dalai Lamapratica algum exercício físico (como corrida, natação, futebol...)?
Sua Santidade o Dalai Lama tem mais de 70 anos de idade, mas realiza 300
prostrações por dia. É sua primeira prática pela manhã, as 4h30. Para
terminar essas prostrações em tempo hábil é necessário um condicionamento
físico muito bom. Há praticantes que fazem até mais de 2000 por dia. Mas
em geral qualquer praticante sério do vajrayana faz de 25 a 100, pelo menos.
Essa pratica envolve descer ao chão, sem ser tão bruscamente que possa
machucar, o que exige força nos braços (se você reparar, todos os monges
tem braços fortes) se estirar completamente à frente, e então retornar a ficar
de pé. Evidentemente é uma prática e existe uma oração a ser recitada e
uma visualização a ser feita.
Há uma infinidade de práticas físicas no budismo. As principais e mais
acessíveis são a circumambulação (caminhar ao redor de monumentos
sagrados) e a prostração, mas há a dança dos lamas (algumas que são
bastante extenuantes, e cuja indumentária pesa muito) e uma série de
práticas de postura e movimento ligadas a fisiologia sutil, como na hatha ioga.
Porém todas estas práticas requerem alguma instrução e a recomendação de
um lama. As prostrações são em geral a primeira prática de muitas pessoas.
Budistas em geral podem praticar qualquer esporte que não seja violento
demais nem ponha em risco a saúde dele ou de outro.
Num sujeito que esta sentindo muita dor, a liberdade seria em apenasreconhecer que dor é apenas dor e por isso não sofrer pela dor? Ouconseguir erradicar a dor?
Existem vários graus de liberdade perante a dor. Se a pessoa puder
simplesmente evitar a dor, porque não fazer isso? Não existe nenhum sentido
em deliberadamente sentir dor. Se a dor é inevitável, existe muita diferença
entre alguém que simplesmente se desespera e alguém que consegue operar
em meio a dor. Isso pode ser treinado, como qualquer exército do mundo vai
demonstrar. Dentro das pessoas que conseguem estar com dor intensa e não
perder completamente o uso coerente de suas mentes, existe muita diferença
entre aquele que consegue se manter ético e o que não consegue. E entre os
que conseguem se manter éticos, existe muita diferença entre o que
consegue desenvolver compaixão e o que não consegue. Naqueles que
conseguem desenvolver compaixão, existe muita diferença entre aquele que
consegue reconhecer inseparatividade‐vacuidade, e o que não consegue.
Existem muitas histórias de tibetanos torturados pelos chineses, por décadas
após a invasão — algumas delas são contadas no documentário Cry of the
Snow Lion. Um grande lama foi amarrado a um cavalo, mas mesmo sendo
arrastado pelas pedras e quebrando alguns ossos e dentes, ele manteve a
compaixão, e cantou, enquanto pode, algumas canções de realização —
isentando os torturadores e de fato lhes prestando homenagem como
professores que vieram para purificar seu carma. Mas a maioria de nós sofre
dor como os animais: sem nenhuma capacidade de transformar isso em
prática espiritual.
Evidentemente que para alguém que pensa que as coisas são um sonho, mas
não tem realização nenhuma da realidade das coisas como além de um
sonho, tudo é o mesmo. A dor de sonho é a única dor que se sente. E ela é
bem real para nós que reificamos as aparências, em especial o nosso corpo.
Para alguém que alcançou a realização de ver o sonho como o sonho, ou
algo dessa realização, é mais uma coisa que acontece, e dependendo da
profundidade dessa realização, com que pode conseguir lidar melhor ou pior.
O importante é entender que a dor é uma experiência essencialmente falsa:
ela vem do nosso apego ao corpo. Esse apego não é apenas uma ideologia
nossa, ele está muito arraigado em hábito, e esse hábito engendrou
estruturas fisiológicas capazes de sentir dor. Os nossos limites corporais de dor
e prazer são artificiais, criados por hábito, e bastante estreitos: existem dores
muito piores do que as que os seres humanos sentem, bem como prazeres
muito mais duradouros e intensos. Nossa experiência é um bocado estreita.
Mas mesmo uma experiência mais ampla ainda é uma experiência
condicionada.
Ademais, existe liberdade perante qualquer estrutura fisiológica e qualquer
hábito que gera essas estruturas. Então, para ir além da dor, não basta pensar
algumas coisas espertas e corretas, é preciso penetrar no tecido desses
hábitos e desfazê‐los. Isso não é trivial, mas é possível. É possível superar
completamente o vínculo com esses hábitos que geram essa fisiologia e a
reificação dessa fisiologia.
Mas, se a pessoa é cética, basta ver que em situações menos limite, a
liberdade também está presente. Qualquer pai sabe que a dor da criança
depende muito da atenção que a criança dá a dor: você desvia a atenção da
criança com um brinquedo e ela esquece e para de chorar. Esse é um
mecanismo muito óbvio que demonstra a nossa liberdade e ausência de
liberdade perante a dor.
Tenho um diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade,por isso tenho uma enorme dificuldade em meditar, relaxar, me organizar ecolocar coisas em prática. Existe tratamento medicamentoso para isso, masserá que a prática budista também poderia me ajudar?
Algumas pesquisas evidenciam que sim. No entanto é critério do seu
professor dizer se no seu caso é possível já praticar meditação, ou se o
melhor é apenas o medicamento, ou ambos, ou alguma outra coisa.
O que budismo conhece sobre os pensamentos repetitivos, como os queocorrem no Transtorno Obsessivo‐Compulsivo? A prática pode minimizar osofrimento dessas pessoas?
A prática budista serve para eliminar todo e qualquer sofrimento, mas ela se
foca principalmente nos sofrimento mais gerais e mais comuns — com
sofrimentos mais específicos, como consertar o motor de um carro ou
transtornos psiquiátricos, o melhor é buscar uma ajuda específica.
De forma geral, a prática budista pode ajudar num TOC, ou até pode piorar
um TOC — se ela não for bem prescrita e acompanhada. Isso vai depender
da habilidade do professor e da capacidade do aluno de aplicar as instruções.
Uma pessoa cega e surda pode praticar o budismo?
Depende de quanto ela é capaz de se comunicar, e de encontrar um
professor capaz de se comunicar com ela. Se o grau de deficiência dela não
permite que ela se comunique, então dificilmente ela vai conseguir praticar.
Mas a pessoa nem precisa ser deficiente para não ter essas condições. A
maioria das pessoas não vai ter o menor interesse no budismo, e esse é o
maior obstáculo.
Como pessoas com problemas psicológicos(que necessitam de remédio)podem atingir iluminação? Depender de remédios não é estar preso?
A esmagadora maioria das pessoas não tem interesse no darma. Entre as que
tem interesse, algumas não vão ter possibilidade de praticar — por
circunstâncias diversas como não ter tempo, ou outras circunstâncias que
podem ser obstáculos fáceis ou difíceis de remover. Entre as que tem
interesse e possibilidade, muitas vão encontrar obstáculos na prática e a
iluminação vai ainda levar várias vidas.
As pessoas que têm doenças que impedem a prática do darma têm
obstáculos que podem ou não ser removidos nesta vida, mas que em vidas
futuras poderão com certeza ser removidos. Assim, a pessoa pratica o que
conseguir, e qualquer mérito e conexão que ela possa obter, vai ajudar ela
nessa e em vidas futuras a seguir praticando o dharma e eventualmente
atingir a iluminação.
Para o budismo, qual deveria ser o destino dos serial killers, uma vez q nãohá cura para a psicopatia? Deveriam pegar prisão perpétua e trabalhar nacadeia?
O Buda teve um aluno, Angulimala, que foi um serial killer. Não existia, é
claro, um diagnóstico psiquiátrico de psicopatia naquela época. Em se
tratando de muitas vidas, nenhuma doença é incurável. Mas o budismo não
se opõe a decisões que levem a penalidade perpétua e trabalho (se forçado,
daí torna‐se ponto de discussão). Porém é importante não encarar como
punição. A "punição" das ações de uma pessoa vem naturalmente, através do
carma. O que coloca uma pessoa na cadeia de forma perpétua é a
dificuldade de avaliar se continuará sendo um perigo para os outros.
Enquanto for claro que existe evidência de perigo para os outros, a pena deve
ser prorrogada.
Você poderia falar um pouco sobre o termo "lung"? Em que tradições ele édescrito?
"Lung" é o mesmo que "prana", portanto muitas tradições budistas e não
budistas descrevem esse fenômeno. É um fenômeno pré‐budista, que está
nas medicinas tradicionais de toda a Ásia. É algumas vezes traduzido como
"vento" — ventos sutis que animam a fisiologia sutil.
O lung pode ser fraco, forte, pode estar obstaculizado ou fluir bem, e pode
estar perturbado ou sadio. Lung obstaculizado causa dores, lung perturbado
causa agitação mental e corporal. Em geral a meditação ajuda a tranquilizar o
lung, mas pode também ter efeitos ruins — por isso também é importante
um professor.
Os termos na verdade são três: prana, nadi e bindu. Ventos, canais e gotas. O
estudo da fisiologia sutil pode explicar vários tipos de doenças e perturbações,
bem como ajudar um professor a prescrever práticas específicas. Mas em
geral isto é medicina tradicional e não necessariamente budismo, embora no
que o budismo se ligue com medicina, encontra‐se essa terminologia.
O que significa a palavra "lung" no budismo? Esta palavra é em sânscrito?
Em sânscrito é prana. Alento, vento. Lung é um aspecto de animação interna
na fisiologia sutil tibetana. Também é o nome que se dá a transmissão oral,
isto é, a leitura em voz alta do texto pelo professor. Isso transmite o
entendimento do professor na forma da expressão que ele dá ás palavras, e é
uma parte integral da transmissão de ensinamentos. Em geral não é
aconselhado estudar um texto sem ter recebido ao menos o lung, em geral
também explicações detalhadas, sobre ele.
Na visão budista, casos de suposta possessão demoníaca são às vezescausados por entidades infernais mesmo ou é sempre um fenômenomeramente psicológico?
A objetividade de um fenômeno, que é sempre sonho, não interessa.
Interessa o que se pode fazer pela pessoa. Nesses casos, é muitas vezes
evidente que um exorcismo é mais compassivo do que convencer a pessoa
que ela esteja deludida — mesmo que ela de fato esteja!
Se não funciona conosco, com relação ao apego ao eu e a reificação das
aparências, porque funcionaria com ela? Se nós já estamos acreditando em
coisas absurdas o tempo todo, porque se encasquetar num absurdo muito
menor, comparativamente falando?
"Interessa o que se pode fazer pela pessoa." Mas o que se pode fazer pelapessoa depende de se o demônio está lá ou não. Há conflito entre umasolução tradicional(exorcismo) e uma científica(remédios).
Não depende. Ou, em outras palavras, a objetividade não pode ser tomada
num ser fracionado: "no corpo tem isso, mas ela fala isso, pensa aquilo, e no
fundo, pensa secretamente aquilo outro". Isso é tratar de umas cinco
entidades fantasmagóricas numa mesma pessoas. O foco é uma única
entidade fantasmagórica, que inclui o que observamos e o que ela diz de si
mesma. Ignorar o que ela está dizendo, o conteúdo de sua delusão, é
exatamente o que se chama "falta de compaixão". Se nossas opiniões atuais
são 99.9% falsas, e o nosso corpo todo também é uma falsidade, com todas
as doenças dentro — tudo um sonho, com alguma coerência pelo nosso
mérito, mas com muita falta de coerência devido ao nosso carma negativo.
Acreditar nas próprias opiniões e no próprio corpo como tendo existência
inerente é muito pior e muito mais prevalente do que ser supersticioso. O
pior demônio é a crença na existência inerente do eu, e nesse caso todos nós
estamos possuídos.
Não há conflito, se estiver disponível, dê o remédio também — leve no
psiquiatra! No budismo claramente se diz que se o tratamento eficaz está
disponível, a pessoa deve fazer. Mesmo médicos que possuam visões parciais
— que não sejam Budas — podem ajudar e curar, claro que não em todos
os casos, mas em alguns casos — pelo mérito deles e o mérito dos pacientes.
O que um budista não pode fazer, em caso algum, é simplesmente
desconsiderar o sofrimento do outro porque ele não se encaixa nas nossas
expectativas do que seria real. Se tudo é falso, estamos sempre trabalhando
com os tentáculos da falsidade — e nesse caso o método científico no seu
mais puro e irreligioso é o melhor: o que funciona, o que se repete, o que
produz resultados, o que explica um pouco mais... este é o melhor. E, da
mesma forma que com o método científico, se uma premissa lá na base
estiver corrompida, todo o edifício cai. E, segundo o budismo, nenhuma
premissa está assentada a priori. Tudo de que podemos falar é, num sentido
mais preciso, falso. A única que realidade que possuem esses objetos —
corpo, opiniões, doença, sofrimento — é relativa, convencional. E só assim a
compaixão e o consequente alívio do sofrimento são possíveis.
Qual a visão do Budismo sobre doenças mentais? Tipo Esquizofrenia edepressão em específico...
Cada cultura budista tem uma medicina específica que lida com os problemas
de "vento". Diagnósticos como estes são frutos da pesquisa psiquiátrica e não
estão presentes no budismo. Dentro das medicinas tradicionais de cada país
asiático existem formas de tratar problemas que hoje talvez fossem
diagnosticados assim. Na visão budista, toda doença é fruto do carma, isto é,
ações negativas passadas.
No Budismo, o órgão da inteligência é o cérebro ou o coração?
Depende que sentido se usa para "inteligência". Se você está falando de algo
como raciocínio puro, isso não existe no budismo. O corpo todo pensa, e
todo pensamento é ligado a emoções. Não existe pensamento não emotivo
ou emoção não pensada (embora existam sensações não pensadas).
O coração, não bem o coração, mas a região ao centro do peito, é mais
importante para a prática budista do que a região dentro do crânio. Mas isso
não se refere a inteligência, a não ser se estamos falando de consciência. Para
o budismo a consciência, um tipo de consciência que é localizável, está no
peito, e não no cérebro. Mas basicamente, está em todo o corpo.
O cérebro está vinculado às consciências dos sentidos, bem como a medula.
Se alguém é vivaz, esperto, pode‐se dizer que a mandala de sua cabeça é
límpida. Mas se alguém é inteligente no sentido de integrar sua vida, levar
uma vida íntegra, daí é a mandala do peito que é límpida. Que aliás, inclui os
pulmões também.
A fisiologia sutil budista é um desenvolvimento da fisiologia sutil hindu.
Todas as tradições budistas possuem ensinamentos diretos sobre o sexo?
Todas. No hinayana, por exemplo, eles vão dizer que sexo é um grande
problema. É bastante direto. No mahayana e no vajrayana, em todas as
linhagens, também, o sexo é um tema bem comum — ou seja, como integrá‐
lo (ou não integrá‐lo, no caso do hinayana) na sua prática. Se a pessoa quer
um kama‐sutra da vida, então ela pode pegar o Tibetan Arts of Love, do
Gedun Chopel.
Você poderia por favor falar um pouco sobre a paisagem (não a mental,mas a natural mesmo) no budismo? Qual a importância ou o papel docontato com a natureza nas várias tradições?
Por uma questão de saúde e bem‐estar, que são bons coadjuvantes à prática
espiritual — principalmente para iniciantes como nós — locais aprazíveis e
arejados são melhores. Nos locais altos o ar é mais limpo porque as partículas
se concentram nos locais mais baixos. Também soltar o foco do olho no
horizonte é bom para o olho e para a mente.
Em todas as tradições budistas se tenta vincular a prática e os locais de
prática a locais belos e arejados. Isso não só presta uma homenagem aos
Budas — é uma oferenda à linhagem utilizar locais exaltados e belos para
construir representações do corpo, fala e mente dos Budas — como facilita a
prática.
Nas práticas avançadas, locais degradados como os locais onde se despejava
corpos na Índia — uma mistura de necrotério a céu aberto com prisão e
manicômio, onde tudo de pior se concentrava — são mais adequados. Locais
como hospitais, prisões, pontos de drogas e baixa prostituição, feiras,
aglomerações populares, o centro de uma cidade grande, estações de ônibus
e trens, casas assombradas, onde suicídios e assassinatos foram cometidos,
campos de concentração nazistas, cidades em ruínas pela guerra, favelas, daí
esses são locais de prática adequados para grandes praticantes que querem
beneficiar os seres de forma intensa e progredir rápido na prática através de
locais desafiadores e amedrontadores.
Da mesma forma, praticar em meio à doença, ao vexame público, e assim
por diante — sem que a pessoa deva é claro produzir ou ir atrás dessas
coisas, de forma alguma, só quando elas surgem naturalmente — é muito
importante e produz avanços rápidos. Então devemos também usar essas
oportunidades de paisagens degradadas internas para incrementar nossa
prática.