Carta aos artistas Magistrio da Igreja | 1999
III
Joo Paulo II, Papa Meloteca
Edit. 14/09/2009
Carta aos artistas
Joo Paulo II, Papa
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A todos aqueles que apaixonadamente
procuram novas epifanias da beleza
para oferec-las ao mundo
como criao artstica.
Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa (Gn 1,31).
O artista, imagem de Deus Criador
1. Ningum melhor do que vs, artistas, construtores geniais de beleza, pode intuir algo
daquele pathos com que Deus, na aurora da criao, contemplou a obra das suas mos.
Infinitas vezes se espelhou um relance daquele sentimento no olhar com que vs - como, alis,
os artistas de todos os tempos -, maravilhados
com o arcano poder dos sons e das palavras, das
cores e das formas, vos pusestes a admirar a
obra nascida do vosso gnio artstico, quase
sentindo o eco daquele mistrio da criao a que
Deus, nico criador de todas as coisas, de algum
modo vos quis associar.
Pareceu-me, por isso, que no havia palavras
mais apropriadas do que as do livro do Gnesis
para comear esta minha Carta para vs, a quem
me sinto ligado por experincias dos meus
tempos passados e que marcaram
indelevelmente a minha vida. Ao escrever-vos,
desejo dar continuidade quele fecundo dilogo da Igreja com os artistas que, em dois mil
anos de histria, nunca se interrompeu e se prev ainda rico de futuro no limiar do terceiro
milnio.
Papa Joo Paulo II
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Na realidade, no se trata de um dilogo ditado apenas por circunstncias histricas ou
motivos utilitrios, mas radicado na prpria essncia tanto da experincia religiosa como da
criao artstica. A pgina inicial da Bblia apresenta-nos Deus quase como o modelo exemplar
de toda a pessoa que produz uma obra: no artfice, reflecte-se a sua imagem de Criador. Esta
relao claramente evidenciada na lngua polaca, com a semelhana lexical das palavras
stwrca (criador) e twrca (artfice).
Qual a diferena entre criador e artfice? Quem cria d o prprio ser, tira algo do nada -
ex nihilo sui et subiecti, como se costuma dizer em latim - e isto, em sentido estrito, um
modo de proceder exclusivo do Omnipotente. O artfice, ao contrrio, utiliza algo j existente,
a que d forma e significado. Este modo de agir peculiar do homem enquanto imagem de
Deus. Com efeito, depois de ter afirmado que Deus criou o homem e a mulher sua imagem
(cf. Gn 1,27), a Bblia acrescenta que Ele confiou-lhes a tarefa de dominarem a terra (cf. Gn
1,28). Foi no ltimo dia da criao (cf. Gn 1,28-31). Nos dias anteriores, como que marcando o
ritmo da evoluo csmica, Jav tinha criado o universo. No final, criou o homem, o fruto mais
nobre do seu projecto, a quem submeteu o mundo visvel como um campo imenso onde
exprimir a sua capacidade inventiva.
Por conseguinte, Deus chamou o homem existncia, dando-lhe a tarefa de ser artfice. Na
criao artstica, mais do que em qualquer outra actividade, o homem revela-se como
imagem de Deus, e realiza aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a matria
estupenda da sua humanidade e depois exercendo um domnio criativo sobre o universo que o
circunda. Com amorosa condescendncia, o Artista divino transmite uma centelha da sua
sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o a partilhar do seu poder criador.
Obviamente uma participao, que deixa intacta a infinita distncia entre o Criador e a
criatura, como sublinhava o Cardeal Nicolau Cusano: A arte criativa, que a alma tem a sorte
de albergar, no se identifica com aquela arte por essncia que prpria de Deus, mas
constitui apenas comunicao e participao dela.(1)
Por isso, quanto mais consciente est o artista do dom que possui, tanto mais se sente
impelido a olhar para si mesmo e para a criao inteira com olhos capazes de contemplar e
agradecer, elevando a Deus o seu hino de louvor. S assim que ele pode compreender-se
profundamente a si mesmo e sua vocao e misso.
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A vocao especial do artista
2. Nem todos so chamados a ser artistas, no sentido especfico do termo. Mas, segundo a
expresso do Gnesis, todo o homem recebeu a tarefa de ser artfice da prpria vida: de certa
forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima.
importante notar a distino entre estas duas vertentes da actividade humana, mas tambm
a sua conexo. A distino evidente. De facto, uma coisa a predisposio pela qual o ser
humano autor dos prprios actos e responsvel do seu valor moral, e outra a predisposio
pela qual artista, isto , sabe agir segundo as exigncias da arte, respeitando fielmente as
suas regras especficas.(2) Assim, o artista capaz de produzir objectos, mas isso de per si
ainda no indica nada sobre as suas disposies morais. Neste caso, no se trata de plasmar-se
a si mesmo, de formar a prpria personalidade, mas apenas de fazer frutificar capacidades
operativas, dando forma esttica s ideias concebidas pela mente.
Mas, se a distino fundamental, importante igualmente a conexo entre as duas
predisposies: a moral e a artstica. Ambas se condicionam de forma recproca e profunda. De
facto, o artista, quando modela uma obra, exprime-se de tal modo a si mesmo que o resultado
constitui um reflexo singular do prprio ser, daquilo que ele e de como o . Isto aparece
confirmado inmeras vezes na histria da humanidade. De facto, quando o artista plasma uma
obra-prima, no d vida apenas sua obra, mas, por meio dela, de certo modo manifesta
tambm a prpria personalidade. Na arte, encontra uma dimenso nova e um canal estupendo
de expresso para o seu crescimento espiritual. Atravs das obras realizadas, o artista fala e
comunica com os outros. Por isso, a Histria da Arte no apenas uma histria de obras, mas
tambm de homens. As obras de arte falam dos seus autores, do a conhecer o seu ntimo e
revelam o contributo original que eles oferecem histria da cultura.
A vocao artstica ao servio da beleza
3. Um conhecido poeta polaco, Cyprian Norwid, escreveu: A beleza para dar entusiasmo ao
trabalho, o trabalho para ressurgir.(3)
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O tema da beleza qualificante, ao falar de arte. Esse tema apareceu j, quando sublinhei o
olhar de complacncia que Deus lanou sobre a criao. Ao pr em relevo que tudo o que
tinha criado era bom, Deus viu tambm que era belo.(4) A confrontao entre o bom e o belo
gera sugestivas reflexes. Em certo sentido, a beleza a expresso visvel do bem, do mesmo
modo que o bem a condio metafsica da beleza. Justamente o entenderam os Gregos,
quando, fundindo os dois conceitos, cunharam uma palavra que abraa a ambos:
kalokagatha, ou seja, beleza-bondade. A este respeito, escreve Plato: A fora do Bem
refugiou-se na natureza do Belo.(5)
Vivendo e agindo que o homem estabelece a sua relao com o ser, a verdade e o bem. O
artista vive numa relao peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a
beleza a vocao a que o Criador o chamou com o dom do talento artstico. E tambm
este , certamente, um talento que, na linha da parbola evanglica dos talentos (cf. Mt 25,14-
30), se deve pr a render.
Tocamos aqui um ponto essencial. Quem tiver notado em si mesmo esta espcie de centelha
divina que a vocao artstica - de poeta, escritor, pintor, escultor, arquitecto, msico,
actor... -, adverte ao mesmo tempo a obrigao de no desperdiar este talento, mas de o
desenvolver para coloc-lo ao servio do prximo e de toda a humanidade.
O artista e o bem comum
4. De facto, a sociedade tem necessidade de artistas, da mesma forma que precisa de
cientistas, tcnicos, trabalhadores, especialistas, testemunhas da f, professores, pais e mes,
que garantam o crescimento da pessoa e o progresso da comunidade, atravs daquela forma
sublime de arte que a arte de educar. No vasto panorama cultural de cada nao, os
artistas tm o seu lugar especfico. Precisamente enquanto obedecem ao seu gnio artstico na
realizao de obras verdadeiramente vlidas e belas, no s enriquecem o patrimnio cultural
da nao e da humanidade inteira, mas prestam tambm um servio social qualificado ao bem
comum.
A vocao diferente de cada artista, ao mesmo tempo que determina o mbito do seu servio,
indica tambm as tarefas que deve assumir, o trabalho duro a que tem de sujeitar-se, a
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responsabilidade que deve enfrentar. Um artista, consciente de tudo isto, sabe tambm que
deve actuar sem deixar-se dominar pela busca duma glria efmera ou pela nsia de uma
popularidade fcil, e menos ainda pelo clculo do possvel ganho pessoal. H, portanto, uma
tica ou melhor uma espiritualidade do servio artstico, que a seu modo contribui para a
vida e o renascimento do povo. A isto mesmo parece querer aludir Cyprian Norwid, quando
afirma: A beleza para dar entusiasmo ao trabalho, o trabalho para ressurgir.
A arte face ao mistrio do Verbo encarnado
5. A Lei do Antigo Testamento contm uma proibio explcita de representar Deus invisvel e
inexprimvel atravs duma esttua esculpida ou fundida (Dt 27,15), porque Ele transcende
qualquer representao material: Eu sou Aquele que sou (Ex 3,14). No mistrio da
Encarnao, porm, o Filho de Deus tornou-Se visvel em carne e osso: Ao chegar a plenitude
dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher (Gl 4,4). Deus fez-Se homem em
Jesus Cristo, que Se tornou assim o centro de referncia para se poder compreender o
enigma da existncia humana, do mundo criado, e mesmo de Deus.(6)
Esta manifestao fundamental do Deus-Mistrio apresenta-se como estmulo e desafio
para os cristos, inclusive no plano da criao artstica. E gerou-se um florescimento de beleza,
cuja linfa proveio precisamente daqui, do mistrio da Encarnao. De facto, quando Se fez
homem, o Filho de Deus introduziu na histria da humanidade toda a riqueza evanglica da
verdade e do bem e, atravs dela, ps a descoberto tambm uma nova dimenso da beleza: a
mensagem evanglica est completamente cheia dela.
A Sagrada Escritura tornou-se, assim, uma espcie de dicionrio imenso (P. Claudel) e de
atlas iconogrfico (M. Chagall), onde foram beber a cultura e a arte crist. O prprio Antigo
Testamento, interpretado luz do Novo, revelou mananciais inexaurveis de inspirao. Desde
as narraes da criao, do pecado, do dilvio, do ciclo dos Patriarcas, dos acontecimentos do
xodo, passando por tantos outros episdios e personagens da Histria da Salvao, o texto
bblico atiou a imaginao de pintores, poetas, msicos, autores de teatro e de cinema. Uma
figura como a de Job, s para dar um exemplo, com a problemtica pungente e sempre actual
da dor, continua a suscitar conjuntamente interesse filosfico, literrio e artstico. E que dizer
ento do Novo Testamento? Desde o Nascimento ao Glgota, da Transfigurao
Ressurreio, dos milagres aos ensinamentos de Cristo, at chegar aos acontecimentos
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narrados nos Actos dos Apstolos ou previstos no Apocalipse em chave escatolgica, inmeras
vezes a palavra bblica se fez imagem, msica, poesia, evocando com a linguagem da arte o
mistrio do Verbo feito carne.
Tudo isto constitui, na histria da cultura, um amplo captulo de f e de beleza. Dele tiraram
proveito sobretudo os crentes para a sua experincia de orao e de vida. Para muitos deles,
em tempos de escassa alfabetizao, as expresses figurativas da Bblia constituram mesmo
um meio concreto de catequizao.(7) Mas para todos, crentes ou no, as realizaes artsticas
inspiradas na Sagrada Escritura permanecem um reflexo do mistrio insondvel que abraa e
habita o mundo.
Entre Evangelho e arte, uma aliana profunda
6. Com efeito, toda a intuio artstica autntica ultrapassa o que os sentidos captam e,
penetrando na realidade, esfora-se por interpretar o seu mistrio escondido. Ela brota das
profundidades da alma humana, l onde a aspirao de dar um sentido prpria vida se une
com a percepo fugaz da beleza e da unidade misteriosa das coisas. Uma experincia
partilhada por todos os artistas a da distncia incolmvel que existe entre a obra das suas
mos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeio fulgurante da beleza vislumbrada no ardor
do momento criativo: tudo o que conseguem exprimir naquilo que pintam, modelam, criam,
no passa de um plido reflexo daquele esplendor que brilhou por instantes diante dos olhos
do seu esprito.
O crente no se maravilha disto: sabe que se debruou por um instante sobre aquele abismo
de luz que tem a sua fonte originria em Deus. H porventura motivo para admirao, se o
esprito fica de tal modo inebriado que no sabe exprimir-se seno por balbuciaes? Ningum
mais do que o verdadeiro artista est pronto a reconhecer a sua limitao e fazer suas as
palavras do apstolo Paulo, segundo o qual Deus no habita em santurios construdos pela
mo do homem, pelo que no devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro,
prata ou pedra, trabalhados pela arte e engenho do homem ( Act 17, 24.29). Se j a
realidade ntima das coisas se situa para alm das capacidades de compreenso humana,
quanto mais Deus nas profundezas do seu mistrio insondvel!
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J de natureza diversa o conhecimento de f: este supe um encontro pessoal com Deus em
Jesus Cristo. Mas tambm este conhecimento pode tirar proveito da intuio artstica. Modelo
eloquente duma contemplao esttica que se sublima na f so, por exemplo, as obras do
Beato Fra Anglico. A este respeito, igualmente significativa a lauda extasiada, que S.
Francisco de Assis repete duas vezes na chartula, redigida depois de ter recebido os estigmas
de Cristo no monte Alverne: Vs sois beleza... Vs sois beleza!.(8) S. Boaventura comenta:
Contemplava nas coisas belas o Belssimo e, seguindo o rasto impresso nas criaturas, buscava
por todo o lado o Dilecto.(9)
Uma perspectiva semelhante aparece na espiritualidade oriental, quando Cristo designado
como o Belssimo de maior beleza que todos os mortais.(10) Assim comenta Macrio, o
Grande, a beleza transfigurante e libertadora que irradia do Ressuscitado: A alma que foi
plenamente iluminada pela beleza inexprimvel da glria luminosa do rosto de Cristo, fica cheia
do Esprito Santo (...) toda olhos, toda luz, toda rosto.(11)
Toda a forma autntica de arte , a seu modo, um caminho de acesso realidade mais
profunda do homem e do mundo. E, como tal, constitui um meio muito vlido de aproximao
ao horizonte da f, onde a existncia humana encontra a sua plena interpretao. Por isso
que a plenitude evanglica da verdade no podia deixar de suscitar, logo desde os primrdios,
o interesse dos artistas, sensveis por natureza a todas as manifestaes da beleza ntima da
realidade.
Os primrdios
7. A arte, que o cristianismo encontrou nos seus incios, era o fruto maduro do mundo clssico,
exprimia os seus cnones estticos e, ao mesmo tempo, veiculava os seus valores. A f
impunha aos cristos, tanto no campo da vida e do pensamento como no da arte, um
discernimento que no permitia a aceitao automtica deste patrimnio. Assim, a arte de
inspirao crist comeou em surdina, ditada pela necessidade que os crentes tinham de
elaborar sinais para exprimirem, com base na Escritura, os mistrios da f e simultaneamente
de arranjar um cdigo simblico para se reconhecerem e identificarem especialmente nos
tempos difceis das perseguies. Quem no recorda certos smbolos que foram os primeiros
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vestgios duma arte pictrica e plstica? O peixe, os pes, o pastor... Evocavam o mistrio,
tornando-se quase insensivelmente esboos de uma arte nova.
Quando, pelo dito de Constantino, foi concedido aos cristos exprimirem-se com plena
liberdade, a arte tornou-se um canal privilegiado de manifestao da f. Por todo o lado,
comearam a despontar majestosas baslicas, nas quais os cnones arquitectnicos do antigo
paganismo eram assumidos sim, mas reajustados s exigncias do novo culto. Como no
recordar pelo menos a antiga Baslica de S. Pedro e a de S. Joo de Latro, construdas pelo
imperador Constantino? Ou, no mbito dos esplendores da arte bizantina, a Haghia Sopha de
Constantinopla querida por Justiniano?
Enquanto a arquitectura desenhava o espao sagrado, a necessidade de contemplar o mistrio
e de o propor de modo imediato aos simples levou progressivamente s primeiras expresses
da arte pictrica e escultural. Ao mesmo tempo surgiam os primeiros esboos de uma arte da
palavra e do som; e se Agostinho inclua tambm, entre as temticas da sua produo, um De
musica, Hilrio, Ambrsio, Prudncio, Efrm da Sria, Gregrio de Nazianzo, Paulino de Nola,
para citar apenas alguns nomes, faziam-se promotores de poesia crist, que atinge
frequentemente um alto valor no s teolgico mas tambm literrio. A sua produo potica
valorizava formas herdadas dos clssicos, mas bebia na linfa pura do Evangelho, como
justamente sentenciava o Santo poeta de Nola: A nossa nica arte a f, e Cristo o nosso
canto.(12) Algum tempo mais tarde, Gregrio Magno, com a compilao do Antiphonarium,
punha as premissas para o desenvolvimento orgnico daquela msica sacra to original, que
ficou conhecida pelo nome dele. Com as suas inspiradas modulaes, o Canto Gregoriano
tornar-se-, com o passar dos sculos, a expresso meldica tpica da f da Igreja durante a
celebrao litrgica dos Mistrios Sagrados. Assim, o belo conjugava-se com o verdadeiro,
para que, tambm atravs dos caminhos da arte, os nimos fossem arrebatados do sensvel ao
eterno.
No faltaram momentos difceis neste caminho. A propsito precisamente do tema da
representao do mistrio cristo, a antiguidade conheceu uma spera controvrsia, que
passou histria com o nome de luta iconoclasta. As imagens sagradas, j ento difusas na
devoo do povo de Deus, foram objecto de violenta contestao. O Conclio celebrado em
Niceia no ano 787, que estabeleceu a legitimidade das imagens e do seu culto, foi um
acontecimento histrico no s para a f mas tambm para a prpria cultura. O argumento
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decisivo a que recorreram os Bispos para debelar a controvrsia, foi o mistrio da Encarnao:
se o Filho de Deus entrou no mundo das realidades visveis, lanando, pela sua humanidade,
uma ponte entre o visvel e o invisvel, possvel pensar que analogamente uma
representao do mistrio pode ser usada, pela dinmica prpria do sinal, como evocao
sensvel do mistrio. O cone no venerado por si mesmo, mas reenvia ao sujeito que
representa.(13)
A Idade Mdia
8. Os sculos seguintes foram testemunhas dum grande desenvolvimento da arte crist. No
Oriente, continuou a florescer a arte dos cones, vinculada a significativos cnones teolgicos e
estticos e apoiada na convico de que, em determinado sentido, o cone um sacramento:
com efeito, de modo anlogo ao que sucede nos sacramentos, ele torna presente o mistrio
da Encarnao nalgum dos seus aspectos. Por isso mesmo, a beleza dum cone pode ser
apreciada sobretudo no interior de um templo, com os candelabros que ardem e suscitam na
penumbra infinitos reflexos de luz. A este respeito, escreve Pavel Florenskij: Brbaro, pesado,
ftil luz clara do dia, o ouro reanima-se com a luz trmula dum candelabro ou duma vela,
que o faz cintilar aqui e ali com mirades de fulgores, fazendo pressentir outras luzes no
terrestres que enchem o espao celeste.(14)
No Ocidente, so muito variadas as perspectivas e os pontos donde partem os artistas,
dependendo tambm das convices fundamentais presentes no ambiente cultural do
respectivo tempo. O patrimnio artstico, que se foi acumulando ao longo dos sculos, conta
um florescimento vastssimo de obras sacras de alta inspirao, que deixam cheio de
admirao mesmo o observador do nosso tempo. Em primeiro plano, situam-se as grandes
construes do culto, onde a funcionalidade sempre se une ao gnio artstico, e este ltimo se
deixa inspirar pelo sentido do belo e pela intuio do mistrio. Nascem da estilos bem
conhecidos na Histria da Arte. A fora e a simplicidade do romnico, expressa nas catedrais
ou nas abadias, vai-se desenvolvendo gradualmente nas ogivas e esplendores do gtico.
Dentro destas formas, no existe s o gnio dum artista, mas a alma dum povo. Nos jogos de
luzes e sombras, nas formas ora massias ora ogivadas, intervm certamente consideraes de
tcnica estrutural, mas tambm tenses prprias da experincia de Deus, mistrio
tremendo e fascinante. Como sintetizar em poucos traos, nas diversas expresses da
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arte, a fora criativa dos longos sculos da Idade Mdia crist? Uma cultura inteira, embora
com as limitaes humanas sempre presentes, impregnara-se de Evangelho, e onde o
pensamento teolgico realizava a Summa de S. Toms, a arte das igrejas submetia a matria
adorao do mistrio, ao mesmo tempo que um poeta admirvel como Dante Alighieri podia
compor o poema sagrado, para o qual concorreram cu e terra,(15) como ele prprio
classifica a Divina Comdia.
Humanismo e Renascimento
9. A feliz estao cultural, em que tem origem o florescimento artstico extraordinrio do
Humanismo e do Renascimento, apresenta tambm reflexos significativos do modo como os
artistas desse perodo concebiam o tema religioso. Naturalmente as inspiraes so to
variadas como os seus estilos, ou pelo menos como os mais importantes deles. Mas, no
minha inteno lembrar coisas que vs, artistas, bem conheceis. Dado que vos escrevo deste
Palcio Apostlico, escrnio de obras-primas talvez nico no mundo, quero antes fazer-me voz
dos maiores artistas que por aqui disseminaram as riquezas do seu gnio, permeado
frequentemente de grande profundidade espiritual. Daqui fala Miguel ngelo, que na Capela
Sistina de algum modo compendiou, desde a Criao ao Juzo Universal, o drama e o mistrio
do mundo, retratando Deus Pai, Cristo Juiz, o homem no seu fatigante caminho desde as
origens at ao fim da Histria. Daqui fala o gnio delicado e profundo de Rafael, apontando, na
variedade das suas pinturas e de modo especial na Disputa da Sala da Assinatura, o mistrio
da revelao de Deus Trinitrio, que na Eucaristia Se faz companheiro do homem, e projecta
luz sobre as questes e os anelos da inteligncia humana. Daqui, da majestosa Baslica
dedicada ao Prncipe dos Apstolos, da colunata que sai dela como dois braos abertos para
acolher a humanidade, falam ainda Bramante, Bernini, Borromini, Maderno, para citar apenas
os maiores, oferecendo plasticamente o sentido do mistrio que faz da Igreja uma comunidade
universal, hospitaleira, me e companheira de viagem para todo o homem procura de Deus.
A arte sacra encontrou, neste conjunto extraordinrio, uma fora expressiva excepcional,
atingindo nveis de imorredoiro valor quer esttico quer religioso. O que vai caracterizando
cada vez mais tal arte, sob o impulso do Humanismo e do Renascimento e das sucessivas
tendncias da cultura e da cincia, um crescente interesse pelo homem, pelo mundo, pela
realidade histrica. Esta ateno, por si mesma, no de modo algum um perigo para a f
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crist, centrada sobre o mistrio da Encarnao e, portanto, sobre a valorizao do homem por
parte de Deus. Precisamente os maiores artistas acima mencionados no-lo demonstram.
Bastaria pensar no modo como Miguel ngelo exprime nas suas pinturas e esculturas, a beleza
do corpo humano.(16)
Alis, mesmo no novo clima dos ltimos sculos quando parte da sociedade parece indiferente
f, a arte religiosa no cessou de avanar. A constatao torna-se ainda mais palpvel, se da
vertente das artes figurativas se passa a considerar o grande desenvolvimento que, neste
mesmo perodo de tempo, teve a msica sacra, composta para as necessidades litrgicas, ou
apenas relacionada com temas religiosos. Sem contar tantos artistas que a ela se dedicaram
amplamente (como no lembrar Pero Lus de Palestrina, Orlando de Lasso, Toms Lus de
Victoria?), sabido que muitos dos grandes compositores - de Hndel a Bach, de Mozart a
Schubert, de Beethoven a Berlioz, de Listz a Verdi - nos ofereceram obras de altssima
inspirao tambm neste campo.
A caminho dum renovado dilogo
10. Verdade que, na Idade Moderna, ao lado deste humanismo cristo que continuou a
produzir significativas expresses de cultura e de arte, foi-se progressivamente afirmando
tambm uma forma de humanismo caracterizada pela ausncia de Deus seno mesmo pela
oposio a Ele. Este clima levou por vezes a uma certa separao entre o mundo da arte e o da
f, pelo menos no sentido de menor interesse de muitos artistas pelos temas religiosos.
Mas, vs sabeis que a Igreja continuou a nutrir grande apreo pelo valor da arte enquanto tal.
De facto esta, mesmo fora das suas expresses mais tipicamente religiosas, mantm uma
afinidade ntima com o mundo da f, de modo que, at mesmo nas condies de maior
separao entre a cultura e a Igreja, precisamente a arte que continua a constituir uma
espcie de ponte que leva experincia religiosa. Enquanto busca do belo, fruto duma
imaginao que voa mais acima do dia-a-dia, a arte , por sua natureza, uma espcie de apelo
ao Mistrio. Mesmo quando perscruta as profundezas mais obscuras da alma ou os aspectos
mais desconcertantes do mal, o artista torna-se de qualquer modo voz da esperana universal
de redeno.
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Compreende-se, assim, porque a Igreja est especialmente interessada no dilogo com a arte
e quer que se realize na nossa poca uma nova aliana com os artistas, como o dizia o meu
venerando predecessor Paulo VI no seu discurso veemente aos artistas, durante um encontro
especial na Capela Sistina a 7 de Maio de 1964.(17) A Igreja espera dessa colaborao uma
renovada epifania de beleza para o nosso tempo e respostas adequadas s exigncias
prprias da comunidade crist.
No esprito do Conclio Vaticano II
11. O Conclio Vaticano II lanou as bases para uma renovada relao entre a Igreja e a cultura,
com reflexos imediatos no mundo da arte. Tal relao proposta na base da amizade, da
abertura e do dilogo. Na Constituio pastoral Gaudium et spes, os Padres Conciliares
sublinharam a grande importncia da literatura e das artes na vida do homem: Elas
procuram dar expresso natureza do homem, aos seus problemas e experincia das suas
tentativas para conhecer-se e aperfeioar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a
sua situao na histria e no universo, dar a conhecer as suas misrias e alegrias, necessidades
e energias, e desvendar um futuro melhor.(18)
Baseados nisto, os Padres, no final do Conclio, dirigiram aos artistas uma saudao e um
apelo, nestes termos: O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para no cair no
desespero. A beleza, como a verdade, a que traz alegria ao corao dos homens, este fruto
precioso que resiste ao passar do tempo, que une as geraes e as faz comungar na
admirao.(19) Neste mesmo esprito de profunda estima pela beleza, a Constituio sobre a
sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium lembrou a histrica amizade da Igreja pela arte e,
falando mais especificamente da arte sacra, vrtice da arte religiosa, no hesitou em
considerar como nobre ministrio a actividade dos artistas, quando as suas obras so
capazes de reflectir de algum modo a beleza infinita de Deus e orientar para Ele a mente dos
homens.(20) Tambm atravs do seu contributo, o conhecimento de Deus mais
perfeitamente manifestado e a pregao evanglica torna-se mais compreensvel ao esprito
dos homens.(21) luz disto, no surpreende a afirmao do Padre Marie-Dominique Chenu,
segundo o qual o historiador da Teologia deixaria a sua obra incompleta, se no dedicasse a
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devida ateno s realizaes artsticas, quer literrias quer plsticas, que a seu modo
constituem no s ilustraes estticas, mas verdadeiros "lugares" teolgicos.(22)
A Igreja precisa da arte
12. Para transmitir a mensagem que Cristo lhe confiou, a Igreja tem necessidade da arte. De
facto, deve tornar perceptvel e at o mais fascinante possvel o mundo do esprito, do
invisvel, de Deus. Por isso, tem de transpor para frmulas significativas aquilo que, em si
mesmo, inefvel. Ora, a arte possui uma capacidade muito prpria de captar os diversos
aspectos da mensagem, traduzindo-os em cores, formas, sons que estimulam a intuio de
quem os v e ouve. E isto, sem privar a prpria mensagem do seu valor transcendente e do seu
halo de mistrio.
A Igreja precisa particularmente de quem saiba realizar tudo isto no plano literrio e figurativo,
trabalhando com as infinitas possibilidades das imagens e suas valncias simblicas. O prprio
Cristo utilizou amplamente as imagens na sua pregao, em plena coerncia, alis, com a
opo que, pela Encarnao, fizera d'Ele mesmo o cone do Deus invisvel.
A Igreja tem igualmente necessidade dos msicos. Quantas composies sacras foram
elaboradas, ao longo dos sculos, por pessoas profundamente imbudas pelo sentido do
mistrio! Crentes sem nmero alimentaram a sua f com as melodias nascidas do corao de
outros crentes, que se tornaram parte da Liturgia ou pelo menos uma ajuda muito vlida para
a sua decorosa realizao. No cntico, a f sentida como uma exuberncia de alegria, de
amor, de segura esperana da interveno salvfica de Deus.
A Igreja precisa de arquitectos, porque tem necessidade de espaos onde congregar o povo
cristo e celebrar os mistrios da salvao. Depois das terrveis destruies da ltima guerra
mundial e com o crescimento das cidades, uma nova gerao de arquitectos se amalgamou
com as exigncias do culto cristo, confirmando a capacidade de inspirao que possui o tema
religioso relativamente tambm aos critrios arquitectnicos do nosso tempo. De facto, no
raro se construram templos, que so simultaneamente lugares de orao e autnticas obras
de arte.
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A arte precisa da Igreja?
13. Portanto, a Igreja tem necessidade da arte. Pode-se dizer tambm que a arte precisa da
Igreja? A pergunta pode parecer provocatria. Mas, se for compreendida no seu recto sentido,
obedece a uma motivao legtima e profunda. Na realidade, o artista vive sempre procura
do sentido mais ntimo das coisas; toda a sua preocupao conseguir exprimir o mundo do
inefvel. Como no ver ento a grande fonte de inspirao que pode ser, para ele, esta espcie
de ptria da alma que a religio? No porventura no mbito religioso que se colocam as
questes pessoais mais importantes e se procuram as respostas existenciais definitivas?
De facto, o tema religioso dos mais tratados pelos artistas de cada poca. A Igreja tem feito
sempre apelo s suas capacidades criativas, para interpretar a mensagem evanglica e a sua
aplicao vida concreta da comunidade crist. Esta colaborao tem sido fonte de mtuo
enriquecimento espiritual. Em ltima instncia, dela tirou vantagem a compreenso do
homem, da sua imagem autntica, da sua verdade. Sobressaiu tambm o lao peculiar que
existe entre a arte e a revelao crist. Isto no quer dizer que o gnio humano no tenha
encontrado estmulos tambm noutros contextos religiosos; basta recordar a arte antiga,
sobretudo grega e romana, e a arte ainda florescente das vetustas civilizaes do Oriente. A
verdade que o cristianismo, em virtude do dogma central da encarnao do Verbo de Deus,
oferece ao artista um horizonte particularmente rico de motivos de inspirao. Que grande
empobrecimento seria para a arte o abandono desse manancial inexaurvel que o Evangelho!
Apelo aos artistas
14. Com esta Carta dirijo-me a vs, artistas do mundo inteiro, para vos confirmar a minha
estima e contribuir para o restabelecimento duma cooperao mais profcua entre a arte e a
Igreja. Convido-vos a descobrir a profundeza da dimenso espiritual e religiosa que sempre
caracterizou a arte nas suas formas expressivas mais nobres. Nesta perspectiva, fao-vos um
apelo a vs, artistas da palavra escrita e oral, do teatro e da msica, das artes plsticas e das
mais modernas tecnologias de comunicao. Este apelo dirijo-o de modo especial a vs,
artistas cristos: a cada um queria recordar que a aliana que sempre vigorou entre Evangelho
e arte, independentemente das exigncias funcionais, implica o convite a penetrar, pela
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intuio criativa, no mistrio de Deus encarnado e contemporaneamente no mistrio do
homem.
Cada ser humano , de certo modo, um desconhecido para si mesmo. Jesus Cristo no Se
limita a manifestar Deus, mas revela o homem a si mesmo.(23) Em Cristo, Deus reconciliou
consigo o mundo. Todos os crentes so chamados a dar testemunho disto; mas compete a vs,
homens e mulheres que dedicastes a vossa vida arte, afirmar com a riqueza da vossa
genialidade que, em Cristo, o mundo est redimido: est redimido o homem, est redimido o
corpo humano, est redimida a criao inteira, da qual S. Paulo escreveu que aguarda ansiosa
a revelao dos filhos de Deus (Rm 8,19). Aguarda a revelao dos filhos de Deus, tambm
atravs da arte e na arte. Esta a vossa tarefa. Em contacto com as obras de arte, a
humanidade de todos os tempos - tambm a de hoje - espera ser iluminada acerca do prprio
caminho e destino.
Esprio Criador e inspirao artstica
15. Na Igreja, ressoa muitas vezes esta invocao ao Esprito Santo: Veni, Creator Spiritus...,
Vinde, Esprito Criador, as nossas mentes visitai, enchei da vossa graa os coraes que
criastes.(24)
Ao Esprito Santo, o Sopro (ruah), acena j o livro do Gnesis: A terra era informe e vazia.
As trevas cobriam o abismo, e o Esprito de Deus movia-Se sobre a superfcie das guas (1,2).
Existe grande afinidade lexical entre sopro - expirao e inspirao. O Esprito o
misterioso artista do universo. Na perspectiva do terceiro milnio, fao votos de que todos os
artistas possam receber em abundncia o dom daquelas inspiraes criativas donde tem incio
toda a autntica obra de arte.
Queridos artistas, como bem sabeis, so muitos os estmulos, interiores e exteriores, que
podem inspirar o vosso talento. Toda a autntica inspirao, porm, encerra em si qualquer
frmito daquele sopro com que o Esprito Criador permeava, j desde o incio, a obra da
criao. Presidindo s misteriosas leis que governam o universo, o sopro divino do Esprito
Criador vem ao encontro do gnio do homem e estimula a sua capacidade criativa. Abenoa-o
com uma espcie de iluminao interior, que junta a indicao do bem do belo, e acorda
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nele as energias da mente e do corao, tornando-o apto para conceber a ideia e dar-lhe
forma na obra de arte. Fala-se ento justamente, embora de forma analgica, de momentos
de graa, porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experincia do
Absoluto que o transcende.
A Beleza que salva
16. J no limiar do terceiro milnio, desejo a todos vs, artistas carssimos, que sejais
abenoados, com particular intensidade, por essas inspiraes criativas. A beleza, que
transmitireis s geraes futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da
vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro a nica atitude
condigna.
De tal assombro poder brotar aquele entusiasmo de que fala Norwid na poesia, a que me
referi ao incio. Os homens de hoje e de amanh tm necessidade deste entusiasmo, para
enfrentar e vencer os desafios cruciais que se prefiguram no horizonte. Com tal entusiasmo, a
humanidade poder, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho.
Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuio, que a beleza salvar o
mundo.(25)
A beleza chave do mistrio e apelo ao transcendente. convite a saborear a vida e a sonhar
o futuro. Por isso, a beleza das coisas criadas no pode saciar, e suscita aquela arcana saudade
de Deus que um enamorado do belo, como S. Agostinho, soube interpretar com expresses
incomparveis: Tarde Vos amei, Beleza to antiga e to nova, tarde Vos amei!.(26)
Que as vossas mltiplas sendas, artistas do mundo, possam conduzir todas quele Oceano
infinito de beleza, onde o assombro se converte em admirao, inebriamento, alegria
inexprimvel.
Sirva-vos de guia e inspirao o mistrio de Cristo ressuscitado, em cuja contemplao se
alegra a Igreja nestes dias.
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Acompanhe-vos a Virgem Santa, a toda bela, cuja efgie inumerveis artistas delinearam e o
grande Dante contempla nos esplendores do Paraso como beleza, que alegria era dos olhos
de todos os outros santos.(27)
Eleva-se do caos o mundo do esprito! A partir destas palavras, que Adam Mickiewicz
escrevera numa hora de grande aflio para a ptria polaca,(28) formulo um voto para vs:
que a vossa arte contribua para a consolidao duma beleza autntica que, como revrbero do
Esprito de Deus, transfigure a matria, abrindo os nimos ao sentido do eterno!
Com os meus votos mais cordiais!
Vaticano, 4 de Abril de 1999, Solenidade da Pscoa da Ressurreio.
NOTAS
(1) Dialogus de ludo globi, liv. II: Philosophisch-Theologische Schriften, III (Viena 1967), p. 332.
(2) As virtudes morais, particularmente a prudncia, do ao sujeito a possibilidade de agir de
harmonia com o critrio do bem e do mal moral: segundo recta ratio agibilium (o justo critrio
dos comportamentos). A arte, diversamente, definida pela filosofia como recta ratio
factibilium (o justo critrio das realizaes).
(3) Promethidion, Bogumi l , vv. 185-186: Pisma wybrane, II (Varsvia 1968), p. 216.
(4) A verso grega dos Setenta exprime claramente este aspecto, ao traduzir o termo hebraico
t(o-)b (bom) por kaln (belo).
(5) Filebo, 65 A.
(6) JOO PAULO II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 80: AAS 91 (1999), 67.
(7) Este princpio pedaggico foi enunciado pela pena autorizada de S. Gregrio Magno, numa
carta, do ano 599, escrita ao Bispo Sereno de Marselha: A pintura usada nas igrejas, para
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que as pessoas analfabetas possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que no so capazes
de ler nos livros (Epistul, IX, 209: CCL 140A, 1714).
(8) Lodi di Dio Altissimo, vv. 7 e 10: Fonti francescane, n. 261 (Pdua 1982), p. 177.
(9) Legenda maior, IX, 1: Fonti francescane, n. 1162 (Pdua 1982), p. 911.
(10) Enkomia na celebrao do Orthrs do Grande Sbado Santo.
(11) Homilia I, 2: PG 34, 451.
(12) At nobis ars una fides et musica Christus (Carmen 20, 31: CCL 203, 144).
(13) Cf. JOO PAULO II, Carta ap. Duodecimum sculum (4 de Dezembro de 1987), 8-9: AAS 80
(1988), 247-249.
(14) A perspectiva invertida e outros escritos (Roma 1984), p. 63.
(15) Paradiso XXV, 1-2.
(16) Cf. JOO PAULO II, Homilia da Missa celebrada na concluso dos restauros dos frescos de
Miguel ngelo na Capela Sistina (8 de Abril de 1994): L'Osservatore Romano (ed. port. de 16 de
Abril de 1994), p. 7.
(17) Cf. AAS 56 (1964), 438-444.
(18) N. 62.
(19) Mensagem do Conclio aos artistas (8 de Dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 13.
(20) Cf. n. 122.
(21) CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporneo Gaudium et
spes, 62.
(22) A teologia no sculo XII (Milo 1992), p. 9.
(23) CONC. ECUM. VAT. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporneo Gaudium et
spes, 22.
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(24) Hino de Vsperas, na Solenidade de Pentecostes.
(25) F. DOSTOEVSKIJ, O Idiota, parte III, cap. V (Milo 1998), p. 645.
(26) Sero te amavi! Pulchritudo tam antiqua e tam nova, sero te amavi! (Confessiones 10,
27: CCL 27, 251).
(27) Paradiso XXXI, 134-135.
(28) Ode juventude, v. 69: Wybr poezji, I (Wroclaw 1986), p. 63.