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ResumoO primeiro pargrafo do captulo III do Tratado poltico de Espinosa contmumaverdadeiraprovadefogoparaatraduoeinterpre-taodopensamentopoltico(oupoltico-jurdico)espinosano.Do pargrafo 2 ao 9, levanta-se o instrumental espinosano contra o que chamo de estado servil, uma aberrao poltica nascida no status civi-lis e que a este se ope como resultado da usurpao da coisa pblica.AbstractSpinozasPoliticaltreatise,atchapterIII,1,hasaveryreproof for translation and interpretation of Spinozas political (or politico-legal) thought. From 2 to 9, Spinozas tools arise against what I call servile status, a political aberration born inside status civilis and thatopposesitselftothisoneasaresultoftheusurpationofthe common wealth.***The res publica means, or ought to mean the public conve-nience. When it does not it is an evil to be ameliorated or amended out of, or into decent, existence.Ezra PoundSobre TP, I-IIOsdoisprimeiroscaptulosdoTratadopolticodeEspinosa mostram respectivamente uma defesa do realismo poltico e, por con-sequncia,umdesmontedojusnaturalismo.Apolticavividapelos homensdeveseguirregrastiradasdaexperinciapolticaenode concepesnalistasnemmoralistas.Avidapolticaaquecor-responde um estado civil a prpria vida natural a que corres-ponde um estado de natureza , considerada agora como incluindo as relaes polticas entre os homens; no h passagem cronolgica, portanto, de um estado a outro, nem transferncia de direitos naturais deumaoutronavidapoltica.H,porm,odadorealdasinsti-tuies polticas, que so instituies poltico-jurdicas sem as quais nenhumavidapolticaseconcebeequedecorremdoexerccio,j, Palavras-chave : imperium, status civilis, civitas, res publica, estado servil.Keywords imperium, status civilis, civitas, res publica, servile status.Fernando Dias AndradeUNIFESP, Guarulhos, SP, Brasil.Doutor em Filosoa pela USP. Realizou estgios de ps-doutorado pela USP e pela Universit de Rennes I (Frana). Filsofo espinosano do Direito, um dos membros-fundadores do Grupo de Estudos Espinosanos da [email protected] *O presente texto foi originalmente apresentado ao Grupo de Estudos Espinosanos da USP em 2 de outubro de 2012.Um crisol contra o estado servil* A crucible against servile statusSobre Espinosa, Tratado Poltico, III, 1-9On Spinoza, Political treatise, III, 1-9Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201518de um direito comum. Tais instituies aparecem pela primeira vez, na demonstrao apodtica, em TP, II, 15 antes do captulo III, que explicar a estrutura da ordem poltica.Seograndedadorealdoestadodenaturezaenododi-reito natural a potncia de cada indivduo, o dado fundamental do chamado estado civil, ao menos segundo a ordem apodtica, a existncia, j, de um direito comum antes que no Tratado se dena (em II, 17) o que o imperium, que o nome usualmente dado a esse dado real que o direito comum denido pela potentia da multitudo. Essemovimentosutil,odemostrarprimeiroacoisaedepoisseu nome, particularmente interessante dado que tambm o imperium objetodecertaconfusointerpretativaporpartedosleitoresda poltica espinosana, quando a chave para a sua devida concepo explicitamente dada desde o TP, II, 15, com a referncia ao jus com-mune. O imperium um nome; o jus commune, a despeito de tambm ser um nome, dado como coisa e contm a realidade que o autor poltico exige de seu objeto para deste tratar verdadeiramente. A vida humana,mostramosdoisprimeiroscaptulos,umavidapoltica oucivilporqueumavidamarcadapelapresenadeinstituies polticas comuns, apontadas j na forma desse direito comum. No h descrio de vida poltica sem a presena fundamental de direitos comuns, ontologicamente causados pela potncia da multido e pos-teriormentedenominadosimperium.Estenome,imperium,poderia ser retirado do processo sem prejuzo real; se h vida comum, porm, no h como retirar-se a potncia da multido; restaria saber, toda-via, se haveria como retirar-se o direito comum. O cap. II no nos d essa liberdade: se h vida poltica, h direitos comuns (ou um direito comum), seja l qual for seu contedo. Igualmente, no h cenrio no poltico: no h como voltar ao estado de natureza como ainda permitiriaHobbese,convenhamos,qualquerjusnaturalistaantese depois de Espinosa.Na carta-prefcio ao Tratado poltico, Espinosa, em seu resumo acercadoobjetodolivroemprogresso,dizqueocap.IItratado direitonaturalequeocap.IIItratadoJusSummarumPotestatum (direito das potestades supremas), ou seja, o direito pblico. Na ver-dade,ocap.IInotratasomentededireitonatural,mas,porqueo direito civil continua o direito natural, trata tambm j de direito civil (um direito que pressupe cidados) e, porque o direito civil funda-do num direito pblico (o direito comum denido pela potncia da multido), o captulo j antecipa algo sobre o direito pblico, que o grande objeto do cap. III e ganhar, por todo o Tratado poltico, uma relevnciamuitomaiordoquequalquerdiscussopoltico-jurdica sobre direitos individuais. A partir de II, 17 (denio de imperium) e do incio do cap. III, talvez persista a impresso de que o imperium o principal termo poltico em questo na discusso do Tratado, como se este se dirigisse construo de uma teoria das formas de governo. No o caso. A alegada teoria das formas de governo apenas um artifcio retrico para expor, ao leitor jurista, a constante validade do princpio de que o poder poltico nada mais do que uma imagem dada quilo cuja nica realidade consiste em ser um direito comum determinado pela potncia da multido. A questo posta pelo lsofo Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201519ao jurista : como garantir um direito pblico que convenha ao direi-to comum da multido?Sobre TP, III, 1. I. Imperii cujuscunque status dicitur Civilis; imperii autem integrum corpus Civitas appellatur, & communia imperii ne-gotia, quae ab ejus, qui imperium tenet, directione pendent, Respublica. Deinde homines, quatenus ex jure civili omnibus Civitatiscommodisgaudent,civesappellamus,&subditos, quatenus civitatis institutis, seu legibus parre tenentur. De-niquestatsCivilistriadarigenera,nempeDemocraticum, Aristocraticum & Monarchicum, in Art. 17. Cap. praeced. di-ximus. Jam antequam de unoquoque seorsim agere incipiam, illa prius demonstrabo, quae ad statum civilem in genere per-tinent;quorumanteomniaconsiderandumvenitsummum Civitatis, seu summarum potestatum jus.Ed. Gebhardt1. Diz-se civil a situao de qualquer estado; mas ao corpo inteiro do estado chama-se cidade, e aos assuntos comuns do estado, que dependem da direo de quem o detm, chama-se repblica. Depois, chamamos cidados aos homens na medi-da em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade, e sditos na medida em que tm de submeter-se s instituies ou leis da cida de. Finalmente, do-se trs gne-ros de estado civil, a sa ber, o democrtico, o aristocrtico e o monrquico, como dissemos no art. 17 do captulo anterior. Agora, antes de comear a tratar de cada um deles em sepa-rado, demons trarei primeiro aquelas coisas que pertencem ao estado ci vil em geral, cabea das quais vem o direito sobe-rano da cidade, ou dos poderes soberanos.Trad. Pires AurlioO primeiro pargrafo do cap. III do TP desaador tanto para o tradutor quanto para o leitor. De fato, esto a no apenas todos os principais termos poltico-jurdicos que se desdobram na obra como hadeniescomacostumeiraconcisoespinosana.Eisoster-mos:imprio;estadocivil;cidade;negcioscomuns;coisapblica; cidados;direitocivil;comodidades;sditos;submeter;instituies dacidade;leisdacidade;gnerosdeimprio;impriodemocrtico; imprio aristocrtico; imprio monrquico; direito supremo da cidade; direito supremo; direito das potestades supremas; potestade suprema. Hquesefalaremdenies,nestecaso?Espinosaapresen-ta, anal, denies aparentemente nominais em lugar de denies reais:aissosechama...,issodito....Porm,comoestamosno ambientedapoltica,issonoconstituimaiorproblema,jquea experincia mostra que as coisas a denidas tm descritos os nomes costumeirose,maisimportantedoquetaisnomes,evidenciado cada denido graas experincia suciente do leitor e do autor. Ou seja: no h como no reconhecer o que denido ou o nome que referido. Ainda, talvez seja o caso de considerar se tais denies, mais tcitas que expressas, so to fortes quanto as denies reais da tica. Se transportadas ao plano da tica, que se dirige, nas deni-es, para a intuio e a razo, certo que as denies aqui visveis so mais frgeis; todavia, dado que aqui se dirige o texto para a expe-rincia do leitor uma experincia poltica e histrica , as denies so vlidas para a construo das demonstraes.Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201520O que diz o pargrafo? Basicamente, o pargrafo redene o im-prio (imperium) e dene alguns de seus operadores (cives, subditos): 1 H imprio; este: a. detido por algum (quem?); b. tem negcios comuns (a coisa pblica) dirigidos por aquele algum; c. tem cor-po ntegro (a cidade); d. tem estado (civil), que tem trs gneros (monrquico,aristocrtico,democrtico;cf.II,17);2Hho-mens; dada a cidade: a. h comodidades e h direito civil; donde h fruio de comodidades e fruidores (cidados); e b. h institutos ou leis; donde h subordinao e subordinados (sditos).Osnomespelosquaissochamadososentesadescritosou denidos(coisapblica,cidade,estadocivil,cidados,s-ditosetc.)soterminologiaespecialdovocabulriopolticoeno poderiam faltar num tratado poltico ou jurdico. Mas no so apre-sentados por Espinosa como as coisas em denio. O que denido, quandosefaladetaisnomes,oimprioemprimeirolugar;em seguida, os homens relacionados com o imprio. O imprio e os ho-mens a ele relacionados so os dados reais em denio e, no por acaso, so evidentes para a experincia do leitor. Que so o imprio eoshomensaelerelacionados?Ambossoentesreaisvinculados multido:oimprioumdireitoqueamultidoconstitui;eos homens relacionados ao imprio so, aqui, integrantes da multido, e no indivduos separados desta. O 1 do cap. III, assim, dene ele-mentos constituintes da atividade da multido, desdobra a denio da atividade da multido aqui visvel na forma de atributo (imprio) e de coisa singular (cidado ou sdito).Comotraduziraprimeirafrasedo1(Imperiicujuscunque status dicitur Civilis [...])? J ela reveladora das intenes do tra-dutor enquanto intrprete. Diogo Pires Aurlio a traduz da seguinte forma: Diz-se civil a situao de qualquer estado [...]. Ou seja, tra-duz imperium por estado e status por situao. De todos os termos poltico-jurdicos do pargrafo, imperium talvez o mais desaador, seja pelo papel que presta no prprio texto de Espinosa, seja por con-ta das acepes que carrega da tradio (particularmente a teolgico--poltica). A opo de Pires Aurlio, a adotar estado para imperium, recupera a referncia tanto de Hobbes (que utiliza o termo state para imperium)quantodeMaquiavel(queutilizastato).Sucintamente, cabe dizer que em Hobbes o state um organismo jurdico formado a partir do movimento de separao entre a multido e o soberano, alm de sempre apresentar-se como estrutura institucional qual se subordinamoscidadoseossditos.EmEspinosa,aocontrrio,o imperiumnoseseparadamultidonemseapresentacomoinsti-tuio, ainda que dele decorra a cidade (que tambm no uma ins-tituio) e, desta, nalmente as instituies (as leis e as obrigaes); donde o imperium espinosano no o state hobbesiano. Nem o sta-to maquiaveliano: a despeito do stato, em Maquiavel, corresponder a uma organizao autnoma dos cidados em que estes livremente se organizam na vida poltica e no por subordinao a um soberano, ao stato de Maquiavel se aproxima a cidade de Espinosa e no seu imperium.Finalmenteemaisimportantequeessaquestodecog-natos, o imperium de Espinosa no algo como o Estado moderno, nem mesmo o do sculo XVII. No se trata de v-lo como uma cons-Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201521truo jurdica maneira hobbesiana, pois o que Espinosa prope uma sada da frmula de Hobbes. Trata-se de pensar as instituies polticas e jurdicas como o que so: no separadas da multido. Isso exige reconhecer o poder poltico, seja l o que for isso, como algo nas mos do povo e no de instituies que dele se separem. Dado que o imperium denido como direito da multido, no se separa dela em momento algum nem aceita representao em seu exerccio. Aconcepohobbesianadestate(prximadaideiaatualpositi-vistadeEstado)eaconcepomaquiavelianadestato(prxima danooatualdecomunidadepoltica)soincompatveiscomum imperium que inseparvel da multitudo, expresso pela cidade mas no se confunde com ela, expresso pelas leis mas no se confunde com elas. A despeito da tranquilidade com que Pires Aurlio utiliza o termo Estado para imperium, no vejo motivo para no traduzir este termo por imprio; ao contrrio, parece-me uma necessidade diante do risco constante de adaptao do pensamento de Espinosa seja a uma inclinao hobbesiana seja a uma inclinao maquiaveliana.A denio de imperium vem sendo construda, recorde-se, des-de TP, II, 17. Ali, Espinosa claro ao denir o imperium como um jus:ele,assim,potentia(atividadeinterna)enopotestas(uma potencialidade). Principalmente, o imperium um jus da multitudo: o imprio um direito da multido. uma atividade atual da multido, na forma de direito comum, ou seja, na forma de produo do que comum aos componentes da prpria multido. O imprio uma ar-mao da multido como sujeito poltico coletivo, como comunidade poltica; ele no se confunde com a comunidade poltica nem nome paraela,masnomedeumacriaodacomunidadepoltica:um direito que ela cria para si mesma, um direito comum que atividade comum de armao da prpria comunidade. H imprio enquanto humacomunidadepolticalivrequeporsuaprpriainiciativase arma como comunidade. O imprio no tem, pois, funo como di-reito privado ou individual, como direito separado do que comum; trata-se de um direito fundador e especialssimo, cuja peculiaridade est em ser coletivo. Conceb-lo como um Estado na acepo moder-na ou como uma cidade na acepo renascentista injusticvel: se-ria uma recusa da atualidade da atividade da multido, porque seria a proposta de sua substituio por uma estrutura institucional pensada como sua substituta.Voltando denio que abre o 1 do cap. III, ela, partindo do imprio como um fato dado, trata de esmiuar suas expresses. nesta condio que aparecem, como entidades dependentes, o estado civil, a cidade e a coisa pblica. O estado civil um dos principais usos de Espinosa para o termo status. Na denio presente, estado civil expressamente distinguido de imprio, o que novamente torna abusiva a interpretao de imperium como estado. O imprio tem um estado o estado civil, como dito. No se trata de uma condio passageira, donde outro abuso traduzir status por situao. O status do imperium sempre civilis, sendo impossvel retir-lo dessa condi-o. Donde, em lugar de apenas estar situado como civil, ele civil. O termo status indica no uma situao transitria do imprio, mas uma condio a que ele chegou e na qual se xa uma vez que esteja Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201522constitudo.Ofatodadoeexperienciadooimprio,essedireito comumdamultido;porqueoimpriosemostranalizadoecom efeitos,temumadisposiointerna;porqueestavisvel,mostra--se como um estado; porque este estado tem efeitos polticos, dito civil. O estado civil, assim, uma expresso, no plano da experincia poltica, da disposio do imprio, e no o prprio imprio. O imprio um certo direito; o estado uma certa disposio. Assim, em lugar de Diz-se civil a situao de qualquer estado [...], proponho Diz--se civil o estado de qualquer imprio [...], sem nenhum prejuzo ao exato sentido do texto e dos desdobramentos desses conceitos. Logo: dado qualquer imprio, seu estado civil, ou seja, sua disposio dita civil.Ao lado de estado civil (status civilis), aparecem a cidade (civi-tas) e a coisa pblica (respublica), que no por acaso s vezes so pro-positalmente ou acidentalmente confundidas seja com o estado seja com o imprio, no interior da fortuna crtica e tambm das tradues. O que a cidade e o que a coisa pblica?[...]imperiiautemintegrumcorpusCivitasappellatur:[...] mas ao corpo [ntegro] do [imprio] chama-se cidade. A cidade uma expressofsicadoimprio,seucorpontegro.Noaurbe,que aparecer em outros lugares como distinta do campo. , agora, algo que enm se aproxima do stato de Maquiavel, sem todavia se con-fundir com o imprio (um direito da multido) nem com o estado civil (uma disposio do imprio). A cidade uma estrutura visvel e nte-gra que exprime, por meio de produo fsica de efeitos, o imprio. A cidade, corpo ntegro do imprio, no o conjunto de instituies (estas ainda aparecero em outro momento), mas o conjunto dos ci-dados; especicamente, a organizao coletiva dos cidados, sua expressocoletivasingularizadanumnicocorpo,ouseja,numa nica coletividade identicada por uma mesma ao fsica. A cidade no urbe: no um conjunto de edifcios, muralhas e ruas. A cidade no um nome: no uma designao dada a um local no mundo. A cidade uma atividade fsica especca, a atividade civil coletiva da armao unicada de uma comunidade poltica. Dado o imp-rio, porque este direito de uma multido, necessariamente dada a multido. Esta j realiza uma ao coletiva ao produzir um direito comum, o imprio. Este tem uma disposio civil, ou seja, operado num plano poltico, posto para a vida poltica, diz respeito vida poltica (ou seja, no , em sua concepo, natural ainda que na prtica, como j se sabe pelo cap. II, se identique com a vida natural, o dito estado de natureza). Alm disso, o imprio tem um corpo, que enquanto indiviso enquanto ntegro dito cidade. Como o imp-rio realidade produzida pela multido e como o estado civil a dis-posio desse direito criado pela multido, sua manifestao fsica se d tambm com os elementos da poltica e no com os elementos da natureza no poltica. A cidade a expresso fsica do conjunto dos cidados enquanto multido organizada que realiza uma mesma ao poltica. Em outras palavras, a cidade seus cidados efetivamente unidosnumaprticacomum.interessantequeasurbestenham nomesAmsterdam,Recife,Veneza...,masascidadesquecom elas se confundirem so, na verdade, as organizaes fsicas de seus Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201523cidados. Quando se falar em cidade, assim, no se trata de um lugar, esimdeumacomunidadepolticaqueseidenticacomosujeito poltico e realiza voluntariamente uma mesma ao poltica coletiva. No se trata de imprio num imprio, mas se trata de uma cidade do imprio. Se h uma comunidade poltica formada, ela certamente se instala em algum lugar; porm, a cidade a instalada o prprio cor-po de cidados enquanto se mantm unido em sua atividade poltica. Com isto, a cidade se identica sicamente com um povo e no com um territrio, com o que pode haver cidade sem territrio, mas no cidade sem povo nem, todavia, cidade sem imprio.Continuando: [...] & communia imperii negotia, quae ab ejus, qui imperium tenet, directione pendent, Respublica.: e aos [neg-cios] comuns do [imprio], que dependem da direo de quem o de-tm, chama-se [coisa pblica]. O que a repblica ou, mais precisa-mente, a coisa pblica? Outra consequncia do direito comum que o imprio , a coisa pblica a valiosa denominao dada ao contedo daqueledireitocomum.Defato,dadooimprio,humamultido interessada em organizar-se de maneira unicada (como cidade) para aexpresso(emestadocivil)deuminteressecomum,ouseja,de desejos comuns. Tais desejos comuns que a multido em estado civil manifestanacidadesoacoisapblica:osinteresseseproblemas pertinentes a todos, visveis a ponto de serem apontados como a coisa de interesse de toda a comunidade, de todo o pblico coisa pblica. A expresso res publica particularmente interessante para o leitor jurista para alm de seu signicado poltico porque contm o termo res: a coisa pblica, que decorrente de um jus o imprio aponta para outro jus, um jus sobre rerum. Quem tem direito a essa coisa que a coisa pblica? A multido que concebe o imprio, dispe-se num estado civil e organiza-se como cidade porque deseja a coisa p-blica. O imprio, esse ato, efeito de se desejar a coisa pblica, e no sua causa. No houvesse a coisa pblica concebida e desejada, no haveria impulso para a concepo do imprio e, consequentemente, para a disposio civil (enquanto estado civil) e para a organizao civil(enquantocidade).Donde:semprequeoimprioconcebido sem vnculo com a coisa pblica, ele no real. O imprio s se con-cebe como direito comum de uma multido organizada por si mesma e vidente de sua prpria ao comum, donde sua disposio civil e no servil. Ao contrrio, conceber um imprio para a privatizao dacoisapblicaconcebernoumestadocivil(ondehcidadea despeitodehaverestadodenatureza),masumestadoservil(onde, hobbesianamente, no h cidade mas s estado de natureza).Chega-se segunda parte desse conjunto inicial de denies no 1 do cap. III: aquele que se refere aos homens que, componen-tes da multido, relacionam-se com o imprio. Em lugar de denir, aqui,osoberano(oquenoseriaaberrante,dadoqueoassunto anunciado do captulo o direito das potestades supremas), o que Es-pinosa mostra como fato so os cidados e os sditos uns e outros, distintostradicionalmentedoqueseusariachamarsoberano;mas, uns e outros, no necessariamente distintos entre si no plano do real.O que e o cidado? Deinde homines, quatenus ex jure civili om-nibusCivitatiscommodisgaudent,civesappellamus[...]:Depois, Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201524chamamos cidados aos homens na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade [...]. O cidado decorre do fato da cidade. Uma vez dada a cidade, ou seja, a organizao comum da multido por si mesma, busca-se a realizao e proteo da coisa pblica,cujocontedovistosejanumaacepojurdica,seja numa acepo moral como um bem ou um conjunto de bens. A vida civil construda pela cidade cmoda, cheia de benefcios para seus integrantes, ou seja, os cidados. Ser cidado, portanto, no dispor de um ttulo, mas fruir atualmente dos benefcios proporcionados pela vida civil. Nenhuma palavra dada, aqui, que permita distinguir nativos e peregrinos: o cidado aquele que, na cidade, dela usufrui. Ser cidado , pois, no pertencer a uma raa especca, mas ser acolhidopelacoisapblicaeteracessoaelatambmporquese integra a multido que deseja essa coisa pblica e cuida de manter--se unida. Quanto ao sdito, distingue-se em alguma coisa, como de costume, do cidado: [...] & subditos, quatenus civitatis institutis, seu legibus parre tenentur.: [...] e sditos na medida em que tm de submeter-se [aos institutos] ou leis da cida de. Os sditos so dis-tintos dos cidados unicamente na relao que tm com o imprio: enquanto os cidados so denidos por frurem os benefcios da vida civil,ossditossodenidosporcontadesuasubordinaoaos institutos e leis da cidade. Cidados e sditos, porm, so as mesmas pessoas consideradas apenas em situaes aqui sim, situaes es-peccas diante da cidade e do imprio. No h, na distino entre o cidado e o sdito, uma oposio real tal qual aquela entre cidado eservo,reservadaacertosgnerosdeimpriooudeestadoservil. Ao contrrio, dado o fato da atividade dos homens na formao do imprio e, simultaneamente, da cidade, cuidam de formar sua prpria condio tambm simultnea de governantes (enquanto cidados) e governados(enquantosditos).Estanoo,quesercarademo-cracia, est presente j na noo geral de cidade: em toda cidade h, criados pela potncia da multido, a gura do cidado e a gura do sdito. O papel daquele que exercer um cargo ser secundrio diante desse quadro, e mesmo sequer aparece aqui no panorama do 1 do cap. III do TP. relevante justamente a simultaneidade do lugar do cidado e do sdito: no h como ser um sem ser, simultaneamente, o outro, pois a fruio dos bens da cidade depende do reconhecimen-todacidadecomofontederegrasaquesedevesubmeter.Nose concebe, portanto, a vida civil sem a subordinao a certas regras, os institutos e leis da cidade. Porm, dado que a cidade o corpo ntegro do conjunto unido e ativo dos cidados, tais regras so regras que a multido,dealgumamaneira,pe.Espinosaexplicitamenteinclui a as leis (legibus): instrumentos que, independentemente do gnero imperial,garantemasubordinaocoisapblicaqueacompanha a fruio dos bens da coisa pblica. Como se sabe, este assunto a principal ausncia do inconcluso Tratado poltico: embora possamos construir sua teoria da democracia com o que cou esboado, s h como conjecturar at onde ele iria com o tema da formao das leis.O 1 ainda termina repetindo a meno (j feita em II, 17) da existncia de democracia, aristocracia e monarquia (nesta ordem que a provvel ordem histrica de sua produo sucessiva) como Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201525gneros de imprio (e no de estado), o que ser assunto detalhado da maior parte do Tratado poltico, a partir do cap. VI. No se tra-tar de apresentar uma teoria das formas de governo, ou uma teoria dos modelos de Estado; tratar-se- de mostrar que, independente do gnerodeimprioadotadoporcadacidade,suafontesemprea potncia da multido, com consequncias para os destinos da pr-pria cidade.Sobre TP, III, 2-9Dos seguintes trato com maior brevidade.Sobre TP, III, 2: Retomando TP, II, 15, Espinosa arma que o direito do [imprio], ou [das potestades supremas], no seno o pr-prio direito de natureza. De fato, uma vez dado aquele quadro dos elementos fundamentais do imprio e da cidade no 1, nota-se que no h, ali, denio do tradicionalmente valorizado poder soberano, ou poder supremo. O tema do poder tambm tratado por Espinosa visando certo esvaziamento conceitual: no se trata de revelar uma potestas do Estado ou de uma autoridade como fonte da vida civil, mas trata-se de mostrar que a potentia da multido que causa toda a vida civil e qualquer autoridade que nela se instale. Nesse quadro, a ideia de um poder soberano perde relevncia, pois no h sequer lugar para um poder soberano em sentido tradicional no cenrio es-pinosano; particularmente o soberano de Hobbes, a quem a multido aliena seus direitos naturais, no existe nem poderia existir. H, po-rm, uma potestas no cenrio da espinosano da poltica, e ela aqui descrita:aspotestadessupremas(summarumpotestatum).Trata-se no de uma potestas que causa a vida poltica, mas de uma potestas que a recebe, pois que recebe um direito que lhe especco. Trata--se no de uma potestas nica enquanto nica e una a potentia da multido , mas de vrias potestades. Enm, trata-se no de uma fora abstrata, mas de uma funo concreta, ou seja, um cargo no in-terior da cidade. A expresso jus imperii, seu summarum potestatum diz respeito ao que a tradio jurdica lista como direito do poder po-ltico-jurdico, ou seja, direito pblico, ou direito que regula a ordem pblica assim como a si mesmo. Trata-se do conjunto de regras que pem a forma do imprio, da cidade e dos direitos e obrigaes dos particulares diante da ordem pblica (regras penais, princpios uni-versais, obrigaes perante a comunidade, funo scal e nanceira, regras para a administrao da prpria cidade etc.). Campo poltico--jurdico destinado a regular a vida pblica, regula fundamentalmen-te os direitos e obrigaes dos prprios administradores pblicos. irrelevante, note-se, se este administrador um monarca, um conc-lio ou uma assembleia; independente do tipo que execute a funo, importa que seja executada a funo de administrar a coisa pblica. Por isso, Espinosa menciona, genericamente, as potestades supremas, o que evidencia que se trata de funes que vm a ser ocupadas por pessoas especcas segundo regras denidas por cada cidade. No h a gura de um modelo universal de potestade suprema, por exemplo, umsoberano.Emlugardaguradeumsoberano,oqueha instituio, j, do campo do direito pblico simultaneamente insti-tuio da prpria cidade que efeito da atividade do imprio. For-Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201526mado o imprio pela potncia da multido, dispe-se o estado civil, organiza-se a cidade e denem-se as funes do poder pblico, estas potestadessupremasque,porsuanatureza,tmporrazoproteger a coisa pblica o que impossibilita transformarem a cidade numa anticidade,oestadocivilnumestadoservil.O2mostraque,na cidade, cada indivduo tem suas liberdades individuais estendidas ao limite de sua potncia individual, o que signica que suas liberdades individuais so ultrapassadas pela potncia da prpria multido que, conduzida como que por uma s mente, produz uma ao maior e mais forte do que a ao de cada indivduo isolado. E, como o direito do imprio identicado ao direito de natureza, ou seja, potncia da multido, o direito do imprio, que direito das potestades supre-mas, de fato superior ao direito individual posto naturalmente por cadaum.Comoconsequncia,temosqueoindivduosditodas potestades supremas no porque lhes aliene direitos naturais ou mes-mo direitos civis, mas porque atravs das regras administradas pelas potestades supremas o prprio sdito tem multiplicada sua potncia individual.Talsubordinaocidadesubordinaosregrasdo poderpblicoe,porissomesmo,nosubordinaosvontades individuais de quem detm a investidura nas funes das potestades supremas.Essacondiosemantmenquantoaspotestadessupre-mas se mantiverem guardis do interesse pblico e do prprio direito pblico,oqueobrigaumaadministraoquemantenhapotentea coisa pblica, no sentido de ser fruvel pelos sditos que, fruindo-a, pem-se como cidados. No h, portanto, enfraquecimento do cida-do-sdito enquanto obedece s leis da cidade, porque, se estiver no estado civil e no em estado servil, obedece quilo que o torna mais potente, e neste sentido obedece a si mesmo. Quando se fala, assim, de um decreto comum da cidade, trata-se de um decreto formalmente unicadodeumdesejoqueefetivamenteestemcadaindivduo, aindaquespossaserformalizadoporrazesinstrumentaispelas potestades supremas.Sobre TP, III, 3: O 3 conrma a unidade da potestade pblica. Esta potestade, que um direito derivado da potncia da multido, pode ser pela multido transferida a algum: a um, a alguns, a muitos (seno todos). No que deva ser transferida por qualquer motivo, mas h como faz-lo. A ideia da transferncia cara aos jusnaturalistas que Espinosa ataca: segundo aqueles, a causa do poder monrquico seriajustamenteatransfernciadepoderdetodosparaums,a causa do poder aristocrtico viria da transferncia do poder de todos para alguns, e a do poder democrtico viria do poder de todos para si mesmos. Sem fazer referncia a essa vinculao entre quantidade de receptores do poder poltico e gneros de cidade, Espinosa reconhece a viabilidade da transferncia de potncia, cujo efeito a criao de umapotestadeespecca.Porm,dastrsformastransfernciaa um, a alguns ou a muitos , as duas ltimas destroem a cidade e o imprio. A transferncia a alguns destri o imprio porque divide o poder pblico, que uno, em faces, que no tm como garantir o respeito coisa pblica j que esta exige unidade na identidade entre administrador e administrado. O mesmo vale para a transferncia a todos, dado que, a despeito de sua aparncia democrtica, voltar-se-Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201527-ia ao dito estado de natureza j que a no haveria mais sujeio coisa pblica mas apenas ao interesse particular de cada um dos indi-vduos agora desunidos. S a transferncia a um s, porm, manteria unicada a potncia que forma o poder pblico pois, ainda que im-plicasse transferncia, transferncia legtima (algum, a multido, transfere algo que mesmo seu: seu direito, ou seja, sua potncia) que mantmunooquesetransfere.Aprincpio,aaparnciamonr-quica. No , porm, o caso. A multido no transfere a um monarca (umsoberano)opoderpblico,poisseozesseprovocariauma diviso entre si mesma e o poder poltico, dado que, por denio, um monarca um soberano distinguido de seus sditos e neste caso, te-ramos nova diviso de faces. Quando a multido transfere a um s a sua potncia de maneira a produzir o poder pblico uno, transfere-a a si mesma na forma, porm, de multido unicada como cidade. Aspotestadessupremassoumafunocriadapelacidadeparaa administrao de uma vida civil sobre a qual a multido nunca perde poder.Elatransfereafunoadministrativadacoisapblica,mas noaprprialiberdade.Aspotestadessupremasso,literalmente, funcionrias da multido, e nestes termos o que aqui chamado de direito , em verdade, uma obrigao. No lcito, certo, que em qualquer cenrio cada cidado viva segundo seu engenho individual, o que o colocaria em estado de natureza e que seria perfeitamente lcito l. Ao homem, na verdade, impossvel voltar a um estado de natureza separado do estado civil, de maneira que todas as suas liber-dades individuais medidas pelo que se usa chamar de seu direito na-tural seguem ativas no estado civil: Com efeito, o direito de nature za decadaum(seatentarmoscorretamentenoassunto)nocessano estadocivil.Issofazsentidonamedidaemque,aoobedecer,no estado civil, s instituies da prpria cidade, o cidado obedece na prtica a si mesmo, pois, como s h cidade se h estado civil e s h este se h cuidado da coisa pblica, obedecer aos decretos comuns da cidade signica seguir aquilo que se sente apto a garantir a prpria seguranaeinteresse.Estaaregradevalidadedopoderpblico: garantir que a cidade se mantenha organizada de tal maneira a cada cidado sentir-se seguro e desejar-se sdito da cidade porque isso ser sdito e protetor de si mesmo graas fora da multido.Sobre TP, III, 4: O poder pblico, conjunto de funes que vm a ser exercidas pelas potestades soberanas de modo a cuidar da coi-sapblica,tem,emrazodesuaestruturainstitucional,umcarter administrativo. Signica isto que as potestades soberanas, ao admi-nistrarem a coisa pblica (os negcios comuns da cidade), fazem-no por meio de funes especcas que denem as funes pblicas. Uma destas funes, a primeira explicitada por Espinosa como funo de quem encarregado da administrao do poder pblico, a funo de interpretar os decretos ou direitos da cidade. Ou seja, a funo de julgar, que vir a ser no por acaso designada costumeiramente como funo judiciria do poder pblico (e equivocadamente denominada, em ambientes menos civilizados, poder judicirio). Chega a ser pres-suposto que a funo judiciria contida entre as funes pblicas, e certamente um dado que todos concebem e mesmo desejam praticar o ato de interpretar os decretos e seus contedos (ou seja, os direitos Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201528e obrigaes que conferem). Tal funo, porm, no pode ser deixada nas mos dos cidados enquanto indivduos. Ainda que seja natural o desejo de interpretar as leis e direitos, dado que isso consequn-cia de se desejar direitos, a interpretao individual dos direitos que so denidos por um decreto comum j negao dos princpios que determinamocontedododecretocomum,oquetornaabsurdaa ideiadequecadaparticularpoderiaaseubel-prazerinterpretaros decretos da cidade. Aqui, a ideia de interpretao particular dos de-cretoscomunssignica,naverdade,umainsubordinaodosdito diante da validade do prprio decreto, o que signica igualmente que o indivduo no deseja ser sdito e, portanto, no se v acolhido pelo decreto. Em suma: se o indivduo recusa a validade da interpretao do decreto comum dada pelas potestades supremas, porque no se vintegradocidade.Simultaneamente,ainterpretaodadapela potestade suprema s vale desde que efetivamente preserve o cuidado da coisa pblica: no a sua condio de potestade que lhe garante a validade na interpretao, mas a segurana efetivamente produzi-da sobre o sdito e cidado que conrma sua eccia. uma noo importantssima: da mesma maneira que absurdo ao cidado querer apresentar uma interpretao individual do decreto, tambm absur-dopotestadeapresentarumainterpretaoindividual.Trata-sede apresentar uma interpretao republicana, o que s feito pela potes-tade por uma questo instrumental, e com validade por uma questo publicamente afetiva (o afeto coletivo da segurana).Sobre TP, III, 5: Aqui se corrobora o que dito no anterior. No estado civil, o cidado no est sob jurisdio de si prprio mas da cidade. igualmente pressuposta, no estado civil, a denio de deveres e obrigaes para todas as partes da vida civil, bem como a deniodosvalorespblicosparaavidaprticaeavidaemco-mum (o que justo e o que injusto, o que pio e o que mpio), contedos fundamentais de todo direito pblico por mais rudimentar que seja sua elaborao. Ou seja, assim como cabe ao poder pblico a funo judiciria, cabe-lhe a funo de legislar. interessante que esta funo aparea depois da funo judiciria: o ato de julgar algo como certo ou errado efetivamente vivido antes que se perceba a utilidade de positivar um paradigma para o clculo do que seja certo ou errado na vida civil, pelo que a funo legislativa uma decorrn-cia, e no uma causa, da funo judiciria. Igualmente, porm, seria absurdo permitir ao particular legislar segundo seu interesse privado, assimcomoseriaabsurdopermitirpotestadesupremafaz-lo.Os contedos das leis e os procedimentos para a sua elaborao devem garantir o respeito coisa pblica, sem o que outra vez se pe em riscoaseguranadamultido.Umavezqueosdecretossejamde-vidamente produzidos segundos ritos tambm denidos pelo direito pblico (e que variaro de gnero de imprio para gnero de imprio, e de cidade para cidade), inevitvel que venha a haver discordncia da parte de um particular quanto equidade do que decretado; ain-da a, mesmo que o sdito considere serem [inquos] os decretos da cidade, tem no obstante de execut-los.Sobre TP, III, 6: O 6 busca justicar perante a razo a pr-pria condio da subordinao do sdito. De fato, dado que a razo Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201529garanteaohomemconhecerasimesmocomoumserracionale principalmentepassional,interessadoconstantementeemviverse-gundoosseusprpriosinteressesesemprecomvistasrealizao de seus desejos, no seria contrria natureza humana uma conduta de subordinao a uma vontade ou a um poder externo ao prprio indivduo? No seria mais racional viver segundo as prprias paixes ou, mesmo, segundo a prpria vontade? A hiptese , anal, vlida mesmoemEspinosadadoqueohomemqueefetivamentesetorna apto a viver segundo os ditames da razo alcana uma vida to livre quanto pode alcanar naquilo em que depende de si. Tal condio da-ria ao homem um desejo ainda maior de viver segundo seus prprios desejos,dadoqueavidaracionallhefazconhecerplenamentesua potncia e lhe permite lidar melhor com o prprio desejo, alm de lhe permitir desejar melhor pois que deseja o que o torna ainda mais livre e mais apto a viver segundo a razo. Porm, ainda que no pice do controle dessa vida segundo a razo ou justamente por conta dela, ao homem cabe reconhecer que por mxima que seja sua potncia, esta inferior potncia da multido; que a potncia da multido no apenassuperior,comomultiplicadoradesuapotnciaindividual desde que ele seja dela integrante; e que, dada a cidade, j se cida-do e j se participa da instituio do campo poltico e do imprio. A razo permite reconhecer, enm, que a vida civil o campo prprio paraoexercciodomximodeliberdadequeaohomemcabeem sua vida, porque ela o campo da vida coletiva, em que cada um se une aos demais e integra com eles uma cidade. Ser cidado implica ser sdito da cidade, mostram-no a experincia e a razo; e a razo leva a reconhecer que a causa dessa construo coletiva de liberdade justamenteumasubordinaocoletivaeindividualaosdecretos da cidade desde que estes sejam protetores da coisa pblica. Note-se que esta exigncia de legitimidade para os decretos derivada de sua vinculao ao cuidado com a coisa pblica tem carter ontolgico e no moral nem teolgico. Simplesmente, se a coisa pblica no o ndice da atividade do poder pblico, o imprio usurpado e a cidade no mais existe, impondo-se a todos um estado servil que, todavia, no vingar historicamente pois no h como fazer o homem desejar a prpria destruio. Se, porm, a cidade se organiza claramente no sentido de impor institutos que a todos evidenciam o cuidado com a coisa pblica, todo cidado e sdito sentir imediatamente segurana emsuacondio,eaptoareconhecerracionalmenteautilidade dessa mesma condio. Donde, por qualquer hiptese, a razo sempre leva a concluir que, seja em razo do bem que proporciona (a fruio das comodidades civis), seja em razo do mal que evita (uma condi-o servil ou uma vida em risco), a obedincia aos decretos da cidade desejvel e, para o homem livre, efetivamente desejada. No se trata de um elogio da subordinao, porque a situao tal que, ao subor-dinar-se,osditosubordina-seaumdesejoqueseu.Igualmente no se trata de uma aceitao cega de qualquer contedo por parte dos decretos da cidade pois, desde que a razo que conrma a uti-lidade de obedecer aos decretos, isso signica que eles efetivamente garantem a preservao da coisa pblica. impossvel razo aceitar como equitativa uma determinao que cause o enfraquecimento da Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201530cidade. Por denio, a potestade suprema protetora da coisa p-blica dado que administra os negcios comuns da cidade, e sempre que em algum de seus decretos ou em alguma de suas interpretaes afrontar a coisa pblica em benefcio de uma vontade privada, estar aagirnomaiscomopotestadeaserviodamultidomascomo particular contra a multido, o imprio, a coisa pblica e a cidade. A razo, em suma, recomenda a vida civil (chamada por alguns de estadocivil),desmisticaavidanatural(chamadaporalgunsde estado de natureza) e recusa a usurpao do imprio (aberrao a que bem se poderia chamar estado servil).Sobre TP, III, 7: Assim como a razo faz o homem reconhecer a validade de seguir os decretos da cidade porque isso o torna mais potente, a prpria cidade ser mais potente se seguir os mesmos de-cretos da cidade, ou seja, se estiver sob jurisdio de si prpria. Esse tema, que relevante particularmente para o jusnaturalismo grocia-no,dizrespeitotradicionalmenteliberdadedeumacidadediante deameaasexternas,assuntoquevoltarporalgumasocasiesno correr das exposies sobre a monarquia e as aristocracias. Para Es-pinosa,nestaexposiodeprincpiosdavidapoltica,interessaa liberdade da cidade a partir do que h em seu interior e no em seu exterior. A cidade, porque reunio unicada do conjunto de cidados, nestes termos um indivduo coletivo. Quando a multido cria o im-prio, organiza-se como cidade para que, tendo efetivamente reunido numa s potncia as potncias de cada cidado, funcione como or-ganismo autnomo. A cidade, corpo ntegro do imprio, explici-tamente um corpo: rene num corpo coletivo os corpos dos cidados quenelaserenemcomomodosnitosconformesentresiparaa produodeumamesmaatividadecorprea.Porm,acidade,que corpo,reneindivduosquenosoapenascorpos,masmentes. Por isso, a despeito de ser corpo, tambm opera na vida civil a mente de cada um dos seus integrantes, e porque essa atividade conjunta uma, a atividade do corpo coletivo, sem ser atividade de uma mente nica,talqueoperacomoseofosse.Acidadeumgigantesco modo nito constitudo por uma multido de outros modos nitos, seus cidados; ela mesma um corpo, mas age como se tivesse uma s mente. Essa s mente o conatus da coisa pblica, que se impe navidacivilcomooquemaisdesejadoportodososcidados,e simultaneamente desejado. para constituir uma coisa pblica que o imprio criado por uma multido organizada em cidade. O corpo da cidade deseja sua prpria conservao, o que o mesmo que desejar a preservao da coisa pblica, ou o seu estabelecimento enquanto umacidaderepublicana.Auniodasconscinciasindividuaisdos cidados forma uma conscincia coletiva que, como uma s mente, concebe a ideia do desejo da coisa pblica e reconhece racionalmen-te, por uma comunho racional, a validade da noo comum de que a cidade deseja ser livre e constri sua prpria liberdade por si mes-ma, e no como saldo de ausncia de restries externas. A cidade livre,mostraarazodecadacidadoemostraarazocoletiva da prpria cidade, enquanto est sob sua prpria jurisdio, ou seja, enquantodirigeasimesmasegundosuasprpriasforas.Noh potncia maior, no plano da poltica, do que a potncia da multido; Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201531consequentemente, mais livre a cidade que se dirige para o respeito coisa pblica, porque somente ela que preserva maximamente a potnciadamultido:estauniodenimosnopodedemaneira alguma conceber-se, a no ser que a cidade se oriente maximamente para o que a s razo ensina ser til a todos os homens. No decorrer doTratadopoltico,asrazoespinosanaensinarserumavida democrtica o nico meio de vida poltica e realizar plenamente essa vida aqui dita republicana.Sobre TP, III, 8: O 8 pargrafo tem como concluso uma rei-teraodaoposioentreumacondutacivilorientadapeloestado de natureza e uma conduta civil orientada pelo estado civil: aquele que prefere agir no segundo os decretos da cidade mas segundo os seus prprios decretos (ou seja, no sob a jurisdio da cidade mas segundo sua jurisdio pessoal a despeito de viver na cidade) um inimigo da cidade e pode legitimamente ser coibido. Trata-se de uma conrmao do que acabara de ser dito acerca da necessidade de os cidados obedecerem aos decretos da cidade, uma vez que esta cuida da coisa pblica. Porm, o principal alvo do 8 no o cidado, mas a cidade: aqui se recusam cidade poderes impossveis. Se a cidade pode exigir do cidado que seja sdito, isso decorrncia da neces-sidadecomqueocidadojestpassionalmenteeracionalmente vinculado aos decretos da cidade. O cidado, que deseja maximizao de sua potncia, sente-se protegido pela cidade que integra e sente--se amparado pelo cuidado que a potestade suprema tem pela coisa pblica (quando o tem e o mostra, claro); mais do que esse afeto, elereconheceracionalmenteavalidadeeautilidadedessarelao de subordinao aos decretos da cidade, exclusivamente por fora da equidade que os decretos da cidade efetivamente prestam multido que a integra. Se, ao contrrio, no se vericasse esse amparo e essa equidade,nohaveriaecinciaporpartedosdecretosaindaque aparentassemecciaformal,eemconsequncianoseriam,nem de fato nem de direito, ecazes no plano de uma cidade republicana. Assim, para que os institutos postos pelo poder pblico (as potestades supremas) sejam ecazes no plano da poltica e ecientes no plano da tica, devem por um lado promover o fortalecimento da coisa pblica e,poroutro,nodevemobrigaraoimpossvel.Estepargrafo,dos mais longos no presente captulo, se demora na exemplicao desse erro recorrente por parte das potestades, o de exigir o impossvel da parte de seus sditos. Por impossvel, entenda-se aqui no o que no seria sicamente possvel realizar, mas aquilo que j contrrio es-sncia singular do cidado ou mesmo de toda a multido e, portanto, j impossvel de ser desejado tanto que o cidado ou a multido jdesejaseucontrrio.Assim,tudoaquiloqueningumpodeser induzido, por recompensas ou ameaas, a fazer no pertence aos di-reitos da cidade, ou seja, no cabe ser contedo das leis editadas na cidade pelas potestades supremas. H desde o direito penal antigo a noo de crime impossvel, segundo a qual uma conduta no pode ser considerada delito caso tenha sido impossvel realiz-la. At hoje a noo de crime impossvel excludente penal: se algum no poderia ter cometido um alegado crime (seja porque no tinha os meios para faz-lo, seja porque aquilo no crime), inocente. J irracional Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201532condenar como culpado um inocente; se, porm, um crime impos-svel, no h sequer autoria, ou seja, no h culpa e ningum pode ser culpado. A noo, que parece ter mesmo nascido do direito penal (no h pecado se no h delito), passou ao imaginrio jurdico em geral como princpio segundo o qual no h delito se no h dano. Retoma-se aqui a idia j apresentada segundo a qual s h pecado na cidade, porque a prpria noo de pecado, porque vinculada no-o de delito, instituto civil. No h pecado na vida natural porque na vida natural no h eccia dos institutos civis e, por isso, no h que se falar em pecado nem delito na vida natural. Porm, na vida ci-vil h eccia dos fatos naturais (anal, o estado de natureza conti-nua no estado civil), e o que impossvel segundo a natureza segue impossvel na vida civil. Como a vida civil, porm, uma construo tambm da imaginao, nela que surge uma profuso de aberraes institucionais, concentradas nas tentativas de exigir dos sditos que realizem o que lhes , por natureza, impossvel. Essa crtica j se en-contra, com clareza, em Hobbes: no adianta exigir do cidado que faa o impossvel, que, por exemplo, aliene seu direito vida. Mas em Espinosa ela no se restringe a um cenrio jurdico, sendo na verda-de relevante por conta da impossibilidade constatada imediatamente pela razo. impossvel fazer o contrrio do que se deseja, ensina a razo; igualmente, faz-se o que se deseja. Os institutos da cidade s conseguem ser ecientes sobre os nimos e as mentes de seus sditos desde que cumpram essa regra, fazendo com que os sditos obedeam graas fundamentalmente a uma causa afetiva, que efetivamente os ponha sob a jurisdio da cidade. Ou seja: as leis da cidade no so vlidas por si mesmas. Consideradas em si mesmas, so mesmo letra morta enquanto no produzem efeito sobre o nimo do sdito ou do cidado. Um mesmo homem se relaciona com as leis da cidade sem-pre na condio seja de sdito, seja de cidado; em ambas, o que o move um impulso afetivo, que o pe sob a jurisdio da cidade mas, no caso, sem afronta razo: um indivduo sempre obedece a uma obrigao imposta pelos institutos da cidade, ou usufrui de uma fa-culdade concedida por aqueles institutos, seja porque teme os efeitos de no cumprir a obrigao ou de perder a oportunidade da fruio, seja porque deseja ser compensado pelo cumprimento da obrigao ou porque deseja ser alegrado pela fruio do bem. Se, porm, a ci-dade o obriga a fazer algo que lhe repugna profundamente o nimo ou que por suas foras mesmo impossvel cumprir, no h medo de castigo nem promessa de compensao que o faa cumprir o ordena-do. Numa palavra: o impossvel no pode ser exigido do sdito nem pode ser desejado pelo cidado. O que o impossvel? no aquilo que no possvel, mas aquilo que se ope ao carter do indivduo; portanto,aquiloqueoviolenta;aquilocontrrioaoquelhe tico. da ordem da tica, e no da poltica ou do direito, que vem oprincpiosegundoaqualacidadenodeveexigiroimpossvel. Dada a evidncia dessa regra, por que a necessidade de Espinosa se demorar tanto no assunto, com tantos exemplos e casos a ilustr-lo? Um dos motivos o dado segundo o qual, a despeito do absurdo da situao, todas as cidades costumarem apresentar constituies e leis onde exigido o impossvel de seus cidados. Espinosa no chega a Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201533fazer um inventrio histrico de tais casos, permanecendo no plano dos princpios gerais. Mas tais casos aparecero no interior das expo-sies dos gneros de imprio, e no por acaso estaro vinculados s causas que lero uma cidade sua prpria destruio.Sobre TP, III, 9: A cidade, nalmente, deve ser dirigida segundo uma prudncia especca: ainda que no possa sempre agradar a to-dos os seus sditos (tanto que comum sditos considerarem inquos os decretos da cidade), no lhe cabe provocar a indignao da maio-ria. A cidade livre desde que preserve a potncia da multido que a sustenta desde sua criao. Caso a cidade, por meio de seus institutos civis, promover no mera discordncia individual mas uma profunda indignaocoletiva(oquesocorreriadesdeque,novamente,as potestades supremas no mais cuidassem da coisa pblica), a cidade perderia controle sobre si mesma perderia a jurisdio sobre si mes-ma porque passaria a temer a si mesma, j que provocaria em seu interior uma diviso facciosa que, dada a natureza humana, sempre apta a se instalar em pocas de crise. O que mantm a cidade potente aquilo que mantm unidos os seus constituintes: um mesmo medo, umesmodesejo,umamesmaalegria,reconhecidospublicamente como que por uma s mente. Quando essa mente coletiva se enche de contradies por conta das aberraes que uma m administrao ve-nha a produzir, no h mais identidade entre a multido que compe a cidade e as potestades que gerem a coisa pblica. O resultado no ser a substituio da experincia poltica por um retorno a um esta-do de natureza uma experincia anarquista? , mas o saneamento da prpria cidade por meio do fortalecimento de seus institutos e da sua concepo de potestade suprema.Do crisolO prprio Diogo Pires Aurlio j disse certa vez1 que a prova de fogo para a traduo do Tratado poltico o primeiro pargrafo do captulo III. De fato, esto ali no apenas os principais termos do vocabulrio poltico-jurdico considerado fundamental por Espinosa (vocabulrio que exclui a potestas), como est ali uma tarefa inter-pretativa fundamental por parte do tradutor e do leitor de Espinosa e da Filosoa poltica como um todo. Como traduzir aqueles termos polticos?Especialmente,comotraduzirimperium,status,civitas, respublica e, no menos importante, summa potestas?Aoanunciar,nacarta-prefcio,queocap.IIItratadodireito daspotestadessupremas,Espinosanomeia,comestaspalavras,um meio termo entre um assunto clssico (o direito do soberano) e uma inovao pessoal (o direito da multido). De maneira alguma as po-testades soberanas, reveladas a um mero conjunto de funcionrios, sooprincipalobjetodocap.III.Ospargrafosiniciaisdocap.III acima comentados tratam, ainda, da multido como criadora do im-prio, porque tratam exclusivamente dos efeitos da atividade produ-tora que executada desde o cap. II pela multido. A apresentao dos direitos das potestades supremas revela, na verdade, deveres que taispotestadestmdiantedamultido,econrmaosdireitosque 1 Em conversa pessoal com este autor (Curitiba, setembro de 2001).Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201534esta tem na cidade. A cidade, ao mesmo tempo, um fator muito mais importante, no cap. III, do que as potestades. O captulo se concentra na exposio da maneira como se compe a cidade, ou seja, a mul-tido unicada num corpo ntegro. Sem ser instituio ou conjunto de instituies, a cidade atuao integrada da mesma multido que cria o imprio. O imprio, enm, conrmado no como instituio, mascomofontedanecessidadedecriaodeinstituies,aomes-mo tempo que sempre mantm sua condio de direito fundamental damultido.Semprequeessedireito(queoimprio)usurpado ouviolentado,perde-sealegitimidadedosinstitutoscivis,ouseja, perdemvalidadeasleisdacidadeouoscomandosdaspotestades. Oimprio,portanto,nopodeemhiptesealgumasercontrrio multido, pois que produzido por ela, nem pode ser conduzido con-trariamente ao desejo de segurana da multido, porque seria impos-svel manter a submisso. O imprio, assim, no pode ser concebido como um Estado que, uma vez tornado legtimo soberano, pode agir contra a coisa pblica visada pela multido lhe deu causa. O imp-rio, porm, est na fonte da elaborao de um Estado, ainda que se queira considerar este Estado no a disposio a que corresponde o estadocivil,masumainstituioconstrudaparaorganizaravida civiloque,naconstruoespinosana,fazpartedascriaesda cidade.Amultido,dispostanoestadocivilmasinteressadanum bem comum, concebe a coisa pblica e compe-se como cidade, ins-tituindo da: leis e direitos que deem acesso coisa pblica; e funes administrativas(aspotestades)quegeremacoisapblicaeavida em comum. Qual o lugar do Estado moderno em tudo isso? Nem o estado hobbesiano nem o estado maquiaveliano se identicam com quaisquerdesseselementosdescritosno1docap.III,nemapa-recernenhumabrechaapermitirumaconversodeEspinosaao hobbesianismo ou ao maquiavelismo, a despeito de toda a adeso de Espinosa ao vocabulrio de Hobbes e de sua postura elogiosa dian-tedeMaquiavel.Espinosaestdiretamenteinstaladonadiscusso republicana e democrtica travada na Holanda, e tem em mos um problemaespecco:comoevidenciarqueopoderpolticodecorre no de um modelo de Estado, mas da simples atividade da multido? Como evidenciar que esse poder no uma faculdade de uma potes-tade, mas um direito de uma multido naturalmente democrtica? Em Espinosa, jamais a forma estatal se sobrepe coisa pblica, e isso j mostrado em linhas gerais pelo cap. III do Tratado poltico. Se ser o caso de apresentar em detalhe os diferentes gneros de imprio, tal procedimento permitir apenas conrmar os princpios aqui coloca-dos. O imprio anterior cidade, mas posterior ao estado civil; anterior instaurao de uma potestade, mas posterior aos efeitos dapotnciaumadamultido.Emalgummomentonocorrerdesse processo,apareceacoisapblica.Emboraestavenhaaservisvel especialmente como objeto da gerncia pblica dos assuntos pblicos da cidade, o que levara organizao da multido como cidade fora um desejo comum de constituir um corpo integrado, o que s ocorreu porque houve uma identidade entre as atividades individuais dos cor-pos e nimos dos indivduos conviventes no estado civil. Os homens sempre esto simultaneamente em estado de natureza e em estado Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 201535civil. Mais correto, porm, seria dizer que os homens esto sempre num estado civil que no antinatural. E, dada sua natureza, desejam igualmente aquilo que os fortalece na vida em comum e reconhecem, apartirdaexperinciaedarazo,seudesejocomumdeumbem comum, que no estado civil concebido como por todos, como numa s mente, como coisa pblica. Esse desejo de repblica natural nos homens em estado civil. Porque o tm, criam o imprio, organizam--se em cidade, concebem nalmente as funes de direito pblico e, por tudo isso, instituem-se. A primeira potestade aparece somente no nal do processo, e nunca no comeo. E porque ningum cidado ou cidade lhe outorga potncia o bastante para alunar a potncia da multido, nunca a potestade, a despeito de suprema, tem potncia superiorpotnciadamultido.,realmente,umateoriapoltico--jurdicaqueevidenciaavidapolticacomocriaodamultidoe nodeunsseusdelegados.umavidapolticaquesereconhece enquanto tal enquanto se reconhece a multido como ativa e unida, indisposta constantemente para a servido e sempre apta a fortalecer--se enquanto mente da cidade.Maisadiante,sabemos,Espinosatratarpoisdosgnerosde imprio.Seroosgnerosclassicamentedenidoscomoformasde governo: monarquia, aristocracia (ambas oligarquias, para Espinosa) edemocracia(nicaformanatural).Taisgnerosapenasdoazo a uma diferenciao dos institutos civis, que sero minuciosamente tratadosporEspinosa.Interessavericarcomoseconrmam,nos captulos sobre os gneros, o que dito nos primeiros captulos do Tratado e particularmente neste captulo III. Note o leitor de Espinosa que, mesmo quando descreve os institutos de cada gnero de imprio ou seja, as maneiras de conformao, em cidade, de cada gnero , permanece intocado o princpio segundo o qual o imprio vem da multido e nela permanece. Da monarquia democracia, a multido nunca deseja a servido, e sempre deseja uma vida civil que respeite a coisa pblica. Entre a constatao do estado civil e a conformao da cidade, d-se primeiro o desejo de repblica e depois a criao do imprio e por isso que o imprio pode se distinguir em gneros: sendo posterior ao desejo do bem comum que a coisa pblica, nun-ca um gnero de imprio poder apagar, na multido que o concebe, o desejo fundamental por um direito pblico republicano.BibliograaESPINOSA, Baruch. Tratado poltico. Traduo de Diogo Pires Aurlio. So Paulo: WMF Martins Fontes, ISBN 9788578271411.Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 17-35, jul-dez, 2015


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