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DA HISTORICIDADE E DA RESPONSABILIDADE: ENSAIO FOTOGRÁFICO SOBRE O ANIMAL E A MORTE.
Amanda Cristina de Sousa
Orientadora: Prof. Dra. Beatriz Basile Rauscher [email protected] Universidade Federal de Uberlândia
Resumo: O texto que apresentamos é parte da pesquisa de mestrado intitulada Passagens: construindo estratégias de ações artísticas no contexto urbano visando
reaproximar homem e natureza. Trata-se de uma pesquisa em poéticas visuais, na linha de pesquisa “práticas e processos em artes” tendo o espaço urbano como matéria e contexto. Esta vem se desenvolvendo por meio da sistematização da produção e da elaboração de reflexões referentes à relação homem, cidade e natureza. A pesquisa se fundamenta em conceitos e tendências da Arte contemporânea e busca estabelecer relações entre a poética e os modos de vida atuais.
Pretendemos demonstrar por meio deste recorte da pesquisa, como se desenvolveu a primeira proposta prática, como as investigações poéticas e teóricas foram articuladas no primeiro trabalho, e os desdobramentos que apontam.
Trago referência dos artistas: Joseph Beuys, Damien Hirst, Eric Poitevin, Karin Lambrecht, Miru Kin e Rodrigo Braga. Sobre a fotografia me apoio em autores como: Dubois, Fabris, Sontag, Benjamin. Para desenvolver a pesquisa nos interessa promover recortes e investigar fragmentos de espaços públicos transitando entre espaços da cidade de Uberlândia, cidade onde moro, e Abadia dos Dourados minha cidade natal. Pretendo por meio das ações artísticas: estabelecer cruzamentos conceituais entre as duas cidades; trabalhar com suas especificidades; buscar entender como se dão as relações homem e natureza nestes espaços.
Tendo em vista que na pesquisa de artista o objeto se constrói na própria investigação a metodologia utilizada tem fundamento na “Poiética”- entendida como filosofia da criação (VALERY, 1991)- segundo as abordagens de René Passeron (1997), Sandra Rey e Jean Lancri (2002).
Palavras-chave: poéticas urbanas; natureza e cidade. Comunicação: Relato de Pesquisa
O texto aqui apresentado trata de parte da pesquisa de mestrado intitulada
“Passagens: construindo estratégias de ações artísticas visando reaproximar homem e
natureza”. Pesquisa em processo que segue a linha de práticas e processos de criação
em artes, aqui apresentamos as primeiras experiências práticas que vão indicar possíveis
desdobramentos poéticos.
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A proposta deste texto é refletir o processo de criação tendo a fotografia em
seus alcances contemporâneos como instrumento e linguagem, buscando articular
conceitos fundamentais da linguagem e a prática artística. A produção de imagens se dá
por meio de experimentações sistemáticas, da fotografia como documentação, arquivo,
registro do processo criativo e como imagem plástica, ou trabalho artístico.
O trabalho traz dois tipos de imagem: de registro e de apropriação. Sendo que as
imagens resultantes de apropriação sofrem uma subdivisão: apropriação e apropriação
por “desvio” (DEBORD, 1997). O que interessa nas imagens de registro é a
documentação de um fato, de um instante único e o referente da imagem, portanto ela
não sofre manipulações posteriores, buscando enfatizar assim um caráter de veracidade
(objetividade) nas imagens, tendo referência na fotografia dos anos 60 pelo caráter
“tautológico das imagens” (DUBOIS,1993).
Nas imagens de apropriação simples, a ideia é contrapor as noções de
veracidade, autoria e “atestado de presença” (FABRIS, 2002) a fotografia como ficção,
encenação, afastada de um lugar e de uma memória que não a virtual. Desse modo,
imagens da internet têm características formais que se distanciam muito das minhas
imagens de registro, inclusive pelo modo que serão expostas. Ao usar da apropriação
como operação da arte deslocamos as imagens de um lugar (virtual) e as levamos para o
lugar da arte, as colocamos em evidência, servindo ao propósito do artista.
A apropriação por desvio segue o pensamento de Guy Debord, de se utilizar de
algo no interesse de subverter seu propósito inicial, para ir contra o que aquilo
propunha, não apenas deslocá-lo para o lugar da arte, mas deslocar seu propósito. Neste
trabalho o desvio ocorre quando uso imagens de propaganda de frigoríficos, de
exposições de carne industrial, porque as coloco, de certa forma, desviadas de sua
proposta, não estão lá para se admirar as indústrias da carne, mas para criticá-las.
O tema das imagens gira em torno das relações homem e animal na
contemporaneidade, buscando tecer reflexões acerca das condições animais em nosso
contexto tendo a cidade e o campo como lugar das investigações: o animal doméstico, o
animal como alimento e questões culturais que permeiam estas relações. Questões como
a ilegalidade da criação de animais para consumo da carne, (um aspecto histórico-
cultural da nossa sociedade) e a impossibilidade de imagens do processo de produção da
carne industrial, a não ser imagens virtuais postas pelas próprias indústrias, ou por
grupos de proteção aos animais.
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As imagens de registro apresentam o corpo de um animal sendo preparado para
consumo da carne, apresentam o processo doméstico do abate que traz relação com a
cultura regional: o animal nasce, recebe um nome, é alimentado e criado por pequenos
produtores, na vida adulta são abatidos ali mesmo e consomem sua carne. Este é um
hábito comum em vários lugares do mundo, sofrendo variações quanto ao tipo de
animal e de abate de acordo com a região ou país. Karin Lambrecht é uma artista
gaúcha que realizou trabalhos sobre abate de carneiros em sua região, e buscando
explorar as questões culturais destes abates ela foi pra Israel documentar abates de
carneiro.
A questão é importante tendo em vista que o procedimento está se perdendo, o
caráter cultural da criação e do abate está se apagando de nossa cultura, se tornou ilegal.
Esta reflexão dialoga com o pensamento de Passeron ao falar do homem na
modernidade onde somos privados de “dois traços essenciais: da historicidade e da
responsabilidade” (PASSERON, 1997, p.113). Entendendo a abrangência do problema
sem trata-lo de maneira ingênua, a contemporaneidade em sua forma de produção
capitalista avançada nos priva de identidade, memória e cultura. Enquanto isso a
indústria da carne se fortalece a cada dia, a imagem do animal vai sendo substituída por
animações, e os direitos dos mesmos vão sendo ignorados.
As investigações são feitas em duas cidades: Uberlândia e Abadia dos
Dourados. A primeira já dominada pelas grandes indústrias de carne e a segunda em
processo de transição no que diz respeito a este tipo de produção. A reflexão é a respeito
da vida e morte dos animais que são criados e abatidos de forma doméstica, mais
humanizada, e os que são criados como produtos, em granjas e depois no frigorífico.
Em Abadia presenciei o abate de uma vaca e entrevistei o abatedor e algumas pessoas
que assistiam, todos demonstraram crer que aquela era a melhor forma de abater um
animal, considerando que o sofrimento do animal era o menor possível e que aquela era
a melhor carne para se consumir, pois sua origem era conhecida, ao contrário das carnes
de açougues e mercados que não conhecemos a origem nem o estado de saúde do
animal. Atualmente, a vigilância sanitária das cidades condena esta prática importante
para a subsistência destas pessoas e importante na conservação da cultura local.
Questiono os interesses destes órgãos. Os pequenos produtores estão se sentindo
ameaçados, privados de sua cultura, de suas tradições, por conta de interesses
puramente capitalistas, acordos com as grandes corporações do mercado da carne.
Muitos saem de sua pequena propriedade e vão trabalhar nas indústrias da carne, do
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leite, entre outros, pois se veem incapazes diante das novas exigências nas formas de
produção. Em sua crítica ao que chamou “Sociedade do espetáculo” Debord (1997) fala
da unificação do espaço operada pela produção capitalista que podemos observar
também no contexto dessa pesquisa. Ele diz:
A história econômica, que se desenvolveu toda em torno da oposição cidade-campo, chegou a um estágio de sucesso que anula ambos os termos. A paralisia atual do desenvolvimento histórico total, em proveito apenas da busca do movimento independente da economia, faz do momento em que começam a desaparecer a cidade e o campo não a superação de sua cisão, mas sua destruição simultânea. O desgaste recíproco da cidade e do campo, produto da falha do movimento histórico pelo qual a realidade urbana existente deveria ser superada, aparece nessa mistura eclética de elementos decompostos que recobre as zonas mais adiantadas da industrialização. (DEBORD, 1997, p.115)
Para re-contactar esta realidade fotografei e entrevistei o homem que abateu uma
vaca para o casamento de seu filho, na ocasião a vaca foi doada pelo avô para a festa de
casamento do neto. Pai e filho abateram a vaca no quintal do sítio, prática comum pra
esta família, o avô ensinou ao pai do rapaz e este ensinou a seu filho todo o
procedimento. A urbanização, o capitalismo e suas formas de produção alteram toda
nossa relação com a natureza e mesmo em Abadia dos Dourados, uma cidade de 7.500
habitantes de costumes rurais, as pessoas estão sendo impedidas de produzirem a carne,
de saber a origem de seus alimentos, da possibilidade de conviver com o animal dando-
lhe boa vida e boa morte. Sendo impedidos ainda de serem autossustentáveis discurso
tão em voga nos nossos dias.
As imagens do abatimento doméstico chocam, mas as do abate na indústria
também. Acontece que ver o corpo inteiro do animal sendo destrinchado, já não é tão
comum como antes, mas a intenção não é o choque, é a reflexão sobre as formas de
relação com animal em vida e na morte, na tradição e na indústria. Ver apenas um corte
da carne no açougue ou embaladas à vácuo nas bancas do mercado, nos afasta quase
completamente da imagem do animal é a coisificação do animal.
Vejo uma força contudente na morte do animal que vi ser abatido, era notável o
afeto do abatedor pela vaca “Morena”. Percebo uma valorização da vida e da morte do
animal, como é possível perceber nos trabalhos do artista Eric Pointevin, Rodrigo Braga
e Damien Hirst artistas referência neste processo.
Susan Sontag, em seu livro “Diante da dor dos outros” (2003) questiona nossa
forma de reagir a esse tipo de imagem relacionada à dor e ao sofrimento dos outros.
Será que estamos frios, que não nos sensibilizamos mais tendo em vista o excesso de
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imagens de sofrimento que circulam nos meios de comunicação? Não pretendo
responder estas questões, mas percebo que minha sensibilização pelas imagens que
registrei sem dúvida tem uma força, uma complexidade e verdade que não encontro nas
imagens “assépticas” de apropriação, mesmo que elas representem o animal no
momento da morte, o representado e o vivido são incomparáveis, não somos capazes de
representar o sofrimento do outro. Apenas o autor das imagens e os envolvidos no fato
compartilham da “verdade”. Ao serem expostas enfatizam a impossibilidade da
representação da morte e se não são capazes de nos comover, podem se tornar
ambíguas, de caráter duvidoso, ficcional. Sontag não trata do sofrimento dos animais,
mas nos ajuda a pensar sobre a questão. Ela diz:
Tais imagens não podem ser mais do que um convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa proposta pelos poderes constituídos. Quem provocou o que a foto mostra? Quem é responsável? É desculpável? É inevitável? Existe algum estado de coisas que aceitamos até agora e que deva ser contestado? Tudo isso com a compreensão de que a indignação moral, assim como a compaixão, não pode determinar um rumo para a ação. (SONTAG, 2003, p.97)
Portanto, o objetivo deste trabalho é investigar através da arte para refletir e
propor ações. O ponto de partida é a prospecção sobre as condições dos animais criados
para o consumo da carne no contexto urbano, em sua forma de produção pré-capitalista
e cultural na cidade de Abadia dos Dourados, e em sua forma de produção capitalista
nas grandes indústrias da carne presentes na cidade de Uberlândia. A Reflexão sobre
essas condições animais e sobre o impedimento de mantermos aspectos importantes de
nossa cultura regional no sistema vigente; sobre as grandes cidades que nos afasta dos
outros e de nós mesmos fundamenta a produção artística que se pretende ao mesmo
tempo sensível e crítica. E ainda instigar o pensamento sobre formas de propor maior
valorização dos animais e formas de reaproximar “homem urbano e natureza urbana”
(BORER, 2001), desejo inspirado em Joseph Beuys. Entendo este trabalho como um
ensaio, acreditando que me levará a desdobramentos, e possibilidades de desenvolver a
pesquisa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORER, Alain. Um lamento por Joseph Beuys. In: Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 3ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 8ed. Campinas, SP: Papirus, 1993. FABRIS, Annateresa. Atestados de presença: a fotografia como instrumento científico. In: Revista de História. Juiz de fora: Núcleo de História Regional/ departamento de história/ arquivo histórico, EDUF 1F, v.8, n.1, p. 160, 2002. PASSERON, René. Da estética à poiética. In: Porto Alegre. Porto Alegre, v. 8, n.15, p. 103-116, nov. 1997. SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. 1ed. São Paulo: Companhia das letras, 2003.