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    IMAGEM EM FOCONOVAS PERSPECTIVASEM ANTROPOLOGIA

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    Espao de uma antropologiaaudiovisual1

    Marc Henri Piault *

    "[ ...] um conjunto reale verdadeiro uma doena das nossas idias."

    Fernando Pessoa

    O cinema e a antropologia audiovisual nas-ceram quase no mesmo momento, cujo cente-nrio h pouco acabamos de festejar: em 1895Louis-Flix Regnault filmou com a ajuda de umcronofotgrafo de Etienne-Jules Marey, "umamulher fabricando cermica" no quadro da Ex-posio Colonial de Paris e, em 28 de dezem-bro de 1895, os irmos Lumire apresentavamao pblico de "Grand Caf", em Paris, um fil-me sobre "uma entrada na estao de La Ciotat".

    Regnault, verdadeiro fundador do proje-to de etnologia para o cinema, escrevia desde1912: "Quando possumos um nmero sufici-ente de filmes, comparando-os, poderemosconceber idias gerais; a etnologia nasceria daetnofotografia". (Regnault, 1992)2

    "'Antroplogo e cineasta, doutor Marc Henri Piault professor do CNRS/EHESS -Paris, Frana.

  • Imagem em foco: novas perspectivas em antropologia

    Esse entusiasmo e essa certeza levaram quase um sculo para seestabelecer nas nossas disciplinas. Enfim, comea-se a considerar ocinema e o entretenimento pela e com a imagem e 'o som no maiscomo luxuosos desvios ou como uma distrao frvola diante da seri- ,edade dos textos, at ento verdadeiramente santificados por todosos sbios e intelectuais. Ao ponto de, pelo retorno de um paradoxoclssico, a imagem hoje tenderia ades oar a escrita e o prprio esta-tuto do livro estaria em questo. Mas esse no o momento e a or-dar esta prestigiosa inverso que diz respeito no s ao cinema j quese trata, com efeito, da proposio contempornea de universaliza-o, vale dizer, da tentativa mais forte que jamais se produziu de umamodelizao do universal, de uma objetivao concreta do imaginrioe do real na ordem dominante das tecnologias comunicativas.

    Nossa proposio, aqui, de examinar, levando em conta o di-minuto espao concedido formao e ao ensino do audiovisual em.antropologia, as demandas constitutivas de um campo prprio a umaantropologia visual e de considerar em que medida essas questesconduzem do nosso ponto de vista a uma renovao da disciplina n~seu conjunto.

    Um espao apenas reconhecidopelas instituies acadmicas

    No que concerne, no entanto, antropologia e s modalidades.de sua prospeco e ao seu ensino, assim como o seu desenvolvimen-to, ns podemos minimamente constatar que as produes audiovisu-ais (cinema, registros sonoros, vdeo e fotografia) existem.

    Devemos reconhecer que elas tm melhorado, difundem-se mais.do que antes. Sem dvida, os encontros se multiplicam e as ativida-des de formao se organizam. Os recursos, contudo, continuam pre- .crios, os espaos de pesquisa e de informao deixam a desejar, a,validade cientfica do que produzido raramente considerada e malse comea a reconhecer as funes de ilustrao e, eventualmente;de vulgarizao do conhecimento (livresco, claro). Por um efeito.singular de sociedade, da base, isto , dos estudantes, que a pressoprovm no sentido de fazer entrar o cinema na prtica do estudo e notrabalho de campo. esse sinal indubitvel da eficcia de um instru-

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    Es.r,agode uma antropologia audiovisual

    mente reconhecido freqentemente como necessrio e indispensvel,que, entretanto, as instituies de nossas disciplinas, na Frana emparticular, tardam a reconhecer e hesitam a encorajar.

    Poderamos, a partir disso, visualizar negativamente uma uni-versidade que se encontraria mais contramarcha da sociedade que sua escuta ....Ainda que consideremos como um sinal dos tempos queos lugares de inovao e de criao se dispersem pelas periferias en-quanto que a instituio emudece. Ser, ento, que as instituies deensino no so, como pensamos, destinos e lugares de sacralizaode um saber por excelncia e, portanto, de um poder dominante?

    O progressivo e prudente reconhecimento da antropologia visualfaz aparecer mais cruamente a ausncia de verdadeiros programas deensino. Quando existem, se apresentam freqentemente de forma ca-tica e embrionria e dificilmente se renem num mesmo processo deformao, prticas, tcnicas e reflexes tericas. Deve-se constatar adisperso dos filmes e dos arquivos, suas condies de consulta escan-dalosamente onerosas ou seletivas. Praticamente, no existem cinema-tecas, videotecas ou fototecas acessveis, que garantam a qualidadedos documentos ali conservados e que permitiriam aos estudantes eaos pesquisadores percorrer verdadeiramente esse campo ainda ampla]mente desconhecidoe excessivamente protegido. Mesmoas bibliotecas\universitrias na Frana, dificilmentepossuem o essencial da produoescrita referente a esse domnio. verdade, talvez, que seja da nossaresponsabilidadeainda no se ter produzido os "atos" fundadores, cons-titutivos de um espao cuja prpria designao esquece uma parte deseu domnio pois fala-se em antropologia visual e no como maislegitimamente seria de antropologia audiovisual. Mesmo assim, noteramos coberto, ainda de modo claro e de maneira extensiva, todosos campos de reflexo que lhes seriam prprios.

    Constato, com efeito, que as experincias nacionais qualificam eidentificam como objetos de reflexo fenmenos bem diferentes. Oque, em conseqncia, coloca na ordem do dia quais so e o quesignificam as preocupaes e as referncias que se apresentam svezes singularmente distantes em diferentes pases. Veja-se, por exem-plo, a existncia na Frana de um debate ou, ao menos, de conversasrelativamente freqentes - e nem sempre pacficas - se bem quemuito fecundas, entre cineastas do real (documentaristas) e antrop-

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    logos cineastas. Tais encontros no so considerados, necessariamen-te, parte da ortodoxia do ponto de vista de uma antropologia terica.A preocupao cientfica (quando no cientificista ...) desta ltima ofuscada por ligaes consideradas perigosas: elas contaminaram origor acadmico pelas tentaes estticas e espetaculares, que estari-am muito distantes de um estrito propsito antropolgico. Alis sedaria o reconhecimento disciplinar apenas s produes concebidasexpressamente no interior de um questionamento antropolgico ou,ao menos, a partir de uma pesquisa profissionalmente identificvelpela marca acadmica dos diplomas obtidos pelos realizadores! Al-guns entre eles negaro toda possibilidade de explorao heursticapela imagem e pelo som, aceitam - talvez mais facilmente - asqualidades ilustrativas destes, eventualmente tambm pedaggicas.Outros,O porm, entre os quais eu me incluo, continuaro a pensarque a explorao pela imagem no somente contribui de forma privi-legiada para se colocar em perspectiva esse domnio especfico, queuma aproximao literria clssica ou sistematicamente formalizadano saberia abordar verdadeiramente e que, portanto, a antropologiaaudiovisual abre novos campos de explorao e novos terrenos, o quesignifica, sem dvida, uma nova maneira de conceber a antropologia.

    As questes constituintes

    A partir do final dos anos 50, toda sorte de procedimentos epontos de vista de filmagem foram experimentados, acelerando a dis-cusso sobre os mtodos para registrar e filmar a realidade social. verdade que pouco se falou da definio dos objetos e menos aindasobre o modo de constituio de um objeto enquanto tal, o que, comefeito, teria sido mais complexo. Sem ser exaustivo, posso citar, entredispositivos de filmagem, registro massivo, o que foi designado como"filmes de documentao" (Timothy Ash entre os yanomami; JohnMarshall entre os bushmen, Yan Dunlop entre os aborgenes australi-anos), a taxinomia evolutiva, o comparativismo absolutista e a con-servao cultural segundo Alan Lomax, o etiquetamento maneiradas cincias naturais como nos filmes do Instituto do Filme Cientficode Gttingen, a apresentao didtica e vulgarizante maneira dassries do tipo Disappearing Worldou a cmera participante como em

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    r,,,p11ru dr tnnn nntropologia audiovisual

    Primary de Riochard Leacock ou m1.:1m10p1ovn~n11li; sobre o modeloda Chronique d 'un Et de Jean Rouch l' ele- Hdg;11 Mor 111

    Para responder questo: de que 1111111~1, 11nl11r n qu o Outropensa e em que isto nos concerne, esse ementa oma a explnrnr ogestos, os movimentos, o tempo, a maneira de fal.rr l lnuvr- 1111111ap11-rente transio do cinema-verdade, como tentao L111i.1rJlt1'tdr ohjetividade, em direo ao cinema direto proposto por M.11 ri.:. lhr..ipulre largamente desenvolvido pelo Office Canadien do Fd111 ln1 nmntentativa ingnua que visava a suprimir a presena do obsei v.uku r natingir a um suposto e engrandecido imediatismo sem qualquer rllrdtao de um Outro. Chegamos finalmente a uma espcie de defuuatcnica de abordagem: o cinema era dito "leve" e "na natureza" por-que ele se equipava de instrumentos cada vez mais miniaturizadomanipulveis pelas equipes de filmagem, estas reduzidas o mais pos-svel. Essa identificao - aparentemente mais pragmtica - insis-tia, no entanto, sobre a possibilidade de suprimir ou, ao menos, dediminuir os efeitos da observao sobre o que era observado: em umcerto sentido, era uma reivindicao de uma subjetividade que seriacapaz de respeitar e de dar conta - desafio extraordinrio e ao menosparadoxal - da objetividade do objeto!

    Desde os anos 70, as condies tcnicas e econmicas de filma-gem tornaram-se extremamente diversificadas. O fato de os materiaisterem ficado mais leves e de as hesitaes ideolgicas sobre o sentidoda histria e as virtudes do "desenvolvimento econmico" terem sidopostas no centro do questionamento sobre o lugar do sujeito e de suaidentidade, provocaram novas formas de questionamento: o sujeitoque define o Outro ou o Outro, ele prprio que se define, ou, ainda, a relao mtua, de Um com o Outro, em que esses se observam e seinterrogam que d lugar a essa definio? O antigo "indgena" se equi-pa com gravadores e cmaras e se volta para filmar o observador.Nesse movimento, ele se desvela comons tnhamos comeado a com-preender que nos desvelamos a ns mesmos nas imagens que fabrica-mos. No entanto, ele se mostra de forma diferente daquela que faze-mos e se exprime talvez mais ou, ao menos, diferente do que se julgousobre ele. Essa mudana esclarece a finalidade da antropologia visual eexplica tambm as dificuldades que existem em fazer com que ela sejaaceita como parte integrante da disciplina. Os debates a propsito dos

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    mtodos no progridem nunca porque estes reenviam a um objeto in-definido da antropologia, que seria o Outro ou ela mesma. Na realida-de, a antropologia visual reenvia a uma situao que precisamente aque deveria ser objeto da antropologia: como possvel pensar a rela-o com o Outro, do uno com omltiplo, da vida com a substncia, doindivduocom a ~sociedade;aa sociedade_com a Natureza? O objetivono mais, na realidade, descrever os fatos e os objetos mas de tornar~ensvel a possibilidade de toda a relao e a necessidade de sellestabeleceruma troca, qualquer que seja a probabilidade de realiz-!!!. como compreenso efetiva.

    O ponto de partida dessa via, ns podemos perceber com JohnMarshall quando, filmando na frica austral a vida de uma mulherbosqumana, consegue mostrar o conjunto de imagens que tinha sidofilmado ao longo de um perodo de mais de vinte anos. A relaoentre o passado .e o presente esclareceu, tambm, a relao entreJohn Marshall e os bosqumanos, fez parte do processo e tambm foitestemunha da evoluo forada e obrigatria que eles sofreram. Qual-quer que tenha sido o mtodo de filmagem, o tempo fez desta ummodo de apreenso da mudana da vida e, talvez, da mesma forma,

    uma ao sobre essa transformao. Em todo caso, era impossvelque ele no tivesse uma outra perspectiva sobre o passado filmado,sobretudo sobre o objeto-filme como signo de uma situao e de umarelao anterior, objeto de interrogao no presente. O questiona-mento de hoje, a propsito de imagens antigas, faz possvel um pro-cedimento de descoberta, tornando a distncia e o tempo dispositivosexperimentais. Jean Epstein escrevia que, fazendo variar o tempo,faz-se de um objeto um acontecimento. isso que acontece quandoos antigos "indgenas" falam por eles prprios e, eventualmente, fil-mam eles mesmos. Eles operam uma mudana de foco radical e odito objeto se transforma rapidamente: qualquer que tenha sido a de-,finio anterior, passa a ser situado numa rede complexa de relaesque constituem sua principal definio. Os antigos observadores fo-ram obrigados a se desvelar e torna-se possvel, ento, experimentaro que alguns entre ns designam como "o cinema na primeira pes-soa", levando o antroplogo a definir sua prpria posio num campode observao. Assim, a empresa iniciada pelos cineastas e os~-plogos h cem anos, viagem s antpodas para buscar o Outro e que

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    Espao de uma antropologia audiovisual

    ol' perdia freqentemente em uma hesitao neurtica a reconhecer oMesmo, essa longa volta reconhece a si prpria nas hesitaes dopercurso, para descobrir, enfim, em ns mesmos essa alteridade inici-al, fundadora da diferena inelutvel que nossepara da evidncia danatureza.

    Sem nenhuma dvida, preciso repetir incansavelmente que aantropologia visual est ainda na sua infncia, mas da mesma formaque a antropologia que, ela prpria, no nada mais do que umacincia do sculo 181Ou busca apreender tudo em um sistema ouento se consagra a inventrios infindveis de uma realidade diversi-ficada, cuja aparncia no posta em questo. No incio deste artigo,evocamos o quanto eram rarefeitos os lugares de informao, de for-mao e, tambm, a ausncia de instituies e de instrumentos quecontribuiriam para uma verdadeira acumulao de saberes na medidacm que permitiriam um largo acesso ao essencial do j adquirido. Noentanto, da observao descrio, do inventrio intuio, desde orealismo sensvel at a reconstituio manaca, da cmara "buraco defechadura" ao "cine-transe", o projeto da antropologia audiovisualsofreu mudanas reveladoras das transformaes do seu olhar. O fil-me faz agora parte integrante do dado na antropologia, mesmo se seuestatuto cientfico (ou acadmico, sobretudo!) no est ainda assegu-rado. Entre o tipo de olhar de supremacia que certos cineastas-etn-logos acreditaram que deveriam adotar, tentando fazer esquecer acmara, tanto para os espectadores quanto para aqueles que os ob-servam e a provocao organizada das cmeras incitadoras, curiosas,interrogativas, to prximas s vezes que parecem querer se fazerpassar pelo Outro em questo, a pesquisa prossegue e se oferece elamesma interrogao antropolgica. No entanto, a experincia situaobservador e o observado (mas: quem quem?) e prope a neces-

    sria inverso dessa relao: olhares encadeados, mesmo desigual-mente, desvelam pouco a pouco os lugares e as intenes da observa-o. No processo de elaborao filmica, na mis en scne prpria pesquisa, os protagonistas da situao se interrogam e trocam suasposies. Assim, a natureza mesma do questionamento antropolgicose encontra posta em questo: suas finalidades, a operao de suasescclhas de interveno, como suas prprias dificuldades a se dizer, at-\p1 imir a si mesma tanto fora como em seu prprio crculo.

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    Nas suas experincias,Worth eAdair afirmaram que haveria umaneutralidade da tcnica e que, em se apropriando dos instrumentos docinema, os Amerndios Navajo se expressariam diferentemente, se ex-pressariam diretamente sem filtragem conceituai da lngua dos pesqui-sadores brancos.

    Uma hiptese de trabalho para nosso estudo era que o filme, concebido,fotografado e montado em seqncias por um povo como oNavajo, reve-laria aspectos dos sistemas de classificao, de cognio, de valores quepoderiam ser mascarados, no observveis ou no analisveis, enquantoque a pesquisa depende de trocas verbais - particularmente quando umatal pesquisa deve ser realizada na lngua do pesquisador. (Worth eAdair,1972, p.27-28)3

    Compreende-se bem o erro que consistia em no fazer do ins-trumento mais do que um suporte neutro para a expresso de toda equalquer forma de pensamento e ao, como se uma tcnica norespondesse a necessidades especficas e no fosse o produto do de-senvolvimento autnomo do trabalho tecnolgico e, portanto, de umacincia indiferente s condies de sua produo, s escolhas de ori-entao de sua reflexo. Os filmes Navajo eram portadores, certa-mente, de uma realidade particular, original, reveladores de uma ma-neira navajo de fazer cinema ou de criar um cinema, mas a introdu-o desse procedimento conduzia a responder solicitao da socie-dade circundante, dominante. Mais prxima, sem dvida, de um modode expresso navajo e que os resultados de uma pesquisa oral subme-tida traduo americana, essa produo est contudo, presa mes-ma questo: ela no pode ser transparente ao olhar do antroplogo,nem mais nem menos que teria sido o registro direto de um canto oude uma conversao espontnea entre amigos. Ela vem a ser tantouma realidade Navajo - deles mesmos entre eles-, quanto expres-so dos Navajo no momento em que estes se voltam em direo aoexterior. Nessa imagem construda, na qual o outro no mais passi-vamente designado, mas passa a ser um produtor de dvidas, traznela mesma o reflexo daqueles que buscam produzi-la ou provoc-la.A elaborao flmica, isto , o processo completo que vai da decisode filmar at a apresentao do filme, passando por todas as negocia-es que levaram realizao, implica um desvelamento progressivo

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    Espaode uma antropologia audiovisuul

    da intencionalidade antropolgica. aqui, em definitivo, que se en-contra o verdadeiro objeto-sujeito da pesquisa.

    Construo da imagem e/ ou abordagemantropolgica

    Andr Leroi-Gourhan acreditava que se podia tomar "notas ci-nematogrficas" como se toma notas no trabalho de campo, sem umprojeto previamente concebido, como se fosse possvel descobrir, poruma espcie de observao cinematogrfica cotidiana, a complexida-de da vida social. Mas, evidentemente, essas "notas" no so jamais,como se acreditou, desprovidas de um plano preconcebido: a anlisecomea antes da montagem, ou, pelo menos, durante a filmagem, seno for ainda antes. Essas observaes permitem, ento, questionarno sentido oposto a pretendida ingenuidade da observao etnogrfi-ca clssica. Ser que ela , de fato, no-intencional ou mesmo sempreconcepes? A formao do antroplogo , bem sabemos, umagrade interpretativa que ser submetida interrogao crtica da ex-perincia do trabalho de campo. A produo "cientfica" freqente-mente no permite avaliar isso na medida em que ela quase semprereticente quanto abordagem, de suas hesitaes, de seus erros e dassuas modalidades de estabelecer a situao. Separa-se freqentemen-te esse cotidiano vivido da composio terica que resulta daquele.Sabe-se bem, o quanto a publicao de dirios e de cadernos de notasilumina, de um modo peculiar e perturbador, os resultados dispostospelos antroplogos. A abordagem necessariamente uma mis en sc-ne, uma produo construda em uma forma suscetvel de ser identi-ficada por um ou muitos pblicos adequados.

    Percebe-se bum Iacilmcutc que, ao considerar as modalidadespr!ll tens do umn realizao audiovisual, a pessoa conduzida a inter-' ognr de uma maneira geral o procedimento antropolgico e o conjun-to das estratgias de pesquisa e de constituio do saber. Finalmente,encontra-se em Dziga Vertov, a elaborao de uma teoria de monta-gem que, traduzida em outros termos, no nada alm do que oenunciado de um mtodo cientfico e talvez de um ponto de vistasobre a existncia. Vertov propunha-se apreender "a vida de improvi-so", espcie de intruso miraculosa do olhar e da escuta no passar

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    inextricvel do tempo, no desdobramento infinito do espao. comessa inteno de desvelamento de sentido que l 'homme la camracoloca em relao as imagens que ele capta e extrai de uma realidademltipla e fugitiva. Trata-se de organizar o mundo visvel, deton-loapreensvel, compreensvel, explcito. Vertov situa o empreendimen-to cinematogrfico como uma ao programtica. Trs operaes afazer: a elaborao de uma estratgia de filmar, a organizao dovisvel durante a filmagem e, enfim, a produo de um sentido espe-cfico a partir de materiais brutos da realidade filmada. No se tratade se submeter a lgica nica da representao mas de produzir umsentido, um ponto de vista ativo e no como se fosse o desvelamentode uma verdade ontolgica. Mostrar no significativo, a no serpela organizao dos dados que fazem sentido e que, ento, se fazemcompreender. A operao de desvelamento, realizada atravs da mon-tagem das seqncias filmadas, no nada a no ser na medida emque se faz entender, na medida em que esta permite identificar seusprocedimentos. Para no vir a ser uma simples mistificao, o ato depr em relao organizada o trabalho tcnico sobre a imagem deveser claro para o espectador. As imagens so uma realidade que no a apreendida do documento bruto. O trabalho do filme no colocaro seu movimento "em conserva", o que conduziria, em definitivo, auma coleo infinita, a uma duplicao sem limite de uma realidadeque escapa sem cessar ao quadro que a apreende e a enquadra. Pode-se dizer que Vertov persegue, sua maneira, a experincia realizadapelo operador Koulechov,4 que alternava os planos da face impass-vel do ator Mosjoukine com seus planos, representando sucessiva-mente uma criana, uma mulher num tmulo e um prato de sopa. Osespectadores projetavam sobre o rosto do ator a expresso de senti-mentos relativos s imagens intercaladas. A experincia demonstrava,assim, que a imagem, integrada num contnuo temporal, v a suasignificao marcada, orientada por esse posicionamento realizado,por essa relao produzida. Percebe-se, assim, a plasticidade da ima-gem, a partir da qual podia-se conceber e colocar em evidncia aconstruo significativa da montagem e a elaborao de um relato.

    Ponto de partida de um longo questionamento da realidade doreal- ou mais precisamente da sua verdade-, essa experincia fun-dadora coloca em pauta, igualmente, a identificao de uma realidade

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    Espao de uma antropologia audiovisunl

    .111i 1opolgica, de uma realidade cientfica como tal. A experincia dannngcm na sua relao permanente e complexa com a inteno que ap1oduz, com qualquer coisa que ela supostamente deve exprimir e ospaono interior do qual ela toma o seu lugar como realidade prpria,u111ainterrogao importante a respeito da construo do mundo quese tomaria pelo mundo em si mesmo supondo que haveria um absolutocm termos de sua verdade.

    O ponto de vista modernista situa o mundo como uma espciede lugar exterior, apreensvel por um pensamento que lhe seria, dealguma maneira, homottico, suscetvel, portanto, de descobrir a ver-dade ou, ao menos, de descobrir uma verdade que seria independenteda sua expresso. No entanto, enuncia-se, ns evocamos h pouco,um questionamento legtimo sobre a objetividade de uma realidadepossvel. Eu posso pedir para comparar e confrontar minhas expres-ses do mundo buscando identificar os meios que possuo para darconta de minhas experincias. Posso considerar que a ateno quepresto ao mundo no se situa no silncio de uma apropriao, mas 11-acontinuidade de uma troca em que se experimentam, pouco a pouco;distncias e proximidades, sensaes e pertinncias, termos que asdesignam e as descrevem. Ao menos, seria possvel manter a comu-nicao entre os seres humanos porque ns dispomos desses instru-mentos que formam as linguagens nas quais residem as prprias idi-as de objetividade, de realidade ou de subjetividade. Mas seria, semdvida, uma atitude redutora, quando, diante de ummundo que ultra-passa todas as nossas possibilidades de compreenso, o identificamosa somente uma dessas vrias linguagens. Por outro lado, no se tratada questo de querer refutar inteiramente a possibilidade de um realqualquer para defender uma espcie de um relativismo absoluto. Issoseria, com efeito, cair, paradoxalmente, na armadilha do verismo pos-to cm questo para, atravs dele, anunciar uma verdade! provavel-mente conveniente continuar a se defrontar com a diversidade visveldos seres e das coisas como o cuidado de identific-las, que nos ani-ma. Sem dvida, o parti-pris, reconhecido como tal, de cruzar oslharcs e as escutas, de percorrer os espaos que nos separam e decpcrirnentar as duraes temporais, a troca de gestos e os movimen-

    tos, de conversar atravs das linguagens, de reconhecer na imagemtio Outro uma interrogao sobre a nossa, sem dvida, isso contribui-

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    r para constituir a expresso audiovisual no como realidade nicaou absoluta, mas como uma realidade suficiente. Um programa quetentaria elucidar o que diz o empreendimento do registro audiovisualconduzir, talvez, a nos desencarcerar dos paradoxos habituais quecondicionam a nossa reflexo. No se trata de ultrapassar ou de resol-ver tais paradoxos eternamente repostos nos quais se afrontam infini-tamente o uno e o mltiplo, o contnuo e o descontnuo, o indivduo ea sociedade. A exigncia de um procedimento "imagtico" seria deprosseguir e de reconhecer a encontros, a trocas, a relaes dialgi-cas, a "conversaes" (Rorty, 1990, p.426-432).5 A passagem ima-gem supe um acesso a essa imagem como composio, seno comoresultante de uma negociao, de uma transao entre os agentes desua fabricao e de sua difuso - de seu uso, portanto.

    Parte de uma tcnica de registro e de representao, a imagemantropolgica, ou melhor, a imagem como produo antropolgica, ,em seguida, constituda como objeto no conjunto categorial da repre-sentao. Ela participava, assim, da deriva do modernismo, identifi-cando o significante ao signo e tomando as palavras pelas coisas.Hoje, ns tentamos dar conta da abordagem como tal: na apreenso,na transferncia que ela busca do vivido s suas representaes, en-contra uma outra abordagem, aquela de quem e a que ela se dirige eque, no entanto, a observa e a interroga.

    Em direo a espaos de entendimento euma hipercenograf'ia do provvel

    Finalmente, o movimento de ir e vir entre a idia de objetividadeabsoluta e a proposio de uma antropologia compartilhada e do "cine-transe" nunca ofereceu verdadeiramente ao "objeto observado" a pos-sibilidade de aceder ao estatuto de sujeito ativo e autnomo no pr-prio processo de filmagem: permanecia sempre submetido atenodecisiva do realizador, sua escolha inicial de interveno. A emer-gncia do sujeito enquanto tal, o questionamento do projeto de capta-o e de realizao por eles mesmos, que so os protagonistas desig-nados, um fenmeno bem recente e sobre qual no direi que tenhasido tomado em considerao e, sobretudo, experimentado em todasas suas dimenses. No se trata, com efeito, como j pude descrever

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    Espaode uma antropologia uudtovrsunl

    algumas vezes, de um simples estabelecimento de um dilogo ou deum questionamento recproco que permitiria desvelar a inteno derealizao e de submet-la crtica autctone.

    Um debate deveria se instaurar com a natureza do projeto nocentro de uma discusso entre parceiros diferentes. Os efeitos, senoas prprias condies desse debate, deveriam ser perceptveis na rea-lizao e na mis en scne de sua evoluo. Tratar-se-ia, em suma, deum filme jamais acabado ou ento de sries nas quais os episdios seresponderiam mutuamente sem cessar, permitindo, a cada um expri-mir seu ponto de vista sobre o real e os efeitos dessa posio sobre osprotagonistas de uma situao em permanente reajustamento. Assimenunciado, sem dvida, se trata de um projeto nada realista. Suaprpria proposio nega a possibilidade de escolha de expresses pes-soais, a possibilidade de assumir e de assegurar a colocao de pon-tos de vista particulares, de proposies deliberadamente subjetivas.No entanto, poder-se-ia tomar uma tal sugesto como tendo uma fun-o de utopia. Ela visaria a colocar assim uma espcie de princpio oude orientao paradigmtica permitindo identificar o que desvela aabordagem de uma antropologia audiovisual e quais deveriam ser suascondies de possibilidades. Com efeito, trata-se de propor uma abor-dagem que seria, de alguma maneira, a passagem de uma realidadecomplexa, confusa e sentida - aquela da percepo inicial do mundo- a uma realidade complexa, difusa, mas reconhecida e constante-mente questionada enquanto tal. Haveria aproximaes sucessivas,visando mais a experimentar e reconhecer a eficcia transitria e rela-tiva de uma abordagem, de uma atitude de escuta e de reconhecimen-to do que de definir a adequao absoluta de um mtodo de apreen-so da verdade de seu objeto.

    Compreende-se bem que no se trata mais de um processo deconhecimento que passaria por uma reduo do complexo ao simples,nem do simples ao complexo. No queremos levar em considerao oargumento racionalista da necessidade de cortes arbitrrios no que se-ria a totalidade de um real, para chegar progressivamente a se dar contadeste. De fato, esses argumentos pressupem precisamente a existn-cia de uma totalidade ou de uma formulao mais ou menos explcitado real, no qual, de alguma forma, com acomodaes, poder-se-ia re-constituir a soma e o ser com os procedimentos de reduo temporri-

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  • Imegem em foco: novas perspectivas em antropologia

    os e/ou de reconstruo progressiva. O nosso propsito, ao contrrio,de no ter nenhum pressuposto e de iniciar nossa investigao a partirde uma nica constatao qual seja da permanncia de uma problem-tica da distino e do pertencimento: v-se que se trata de uma posiogeneralista e que no implica somenteuma antropologia visual, mesmose essa a sua procedncia. Nesse processo de re-conhecimento, aabordagem de explorao no pode se subtrair ela prpria da interroga-o a respeito de suas finalidades e de sua pertinncia, tanto do pontode vista do espao observado quanto do ponto de vista do mundo queobserva. Pode-se mesmo pretender que este "pr em situao" antro-polgico um momento essencial para transitar de um universo sub-metido por uma ignorncia perigosa, angustiante e geradora de aliena-o, para aquele de uma explorao sistemtica de proximidades e dis-tncias apreensveis hoje e em tal lugar em particular, hic et nunc. Oprocedimento que toma a imagem como instrumento privilegiado da-quilo que no ele prprio, permite passar por todos os estados deidentificao dessa alteridade e da relao que nos vincula a ela - ouque nos separa dela. nesse sentido que a reflexo conduzida a partirde uma instrumentao audiovisual no pode conduzir a no ser a umaconsiderao sobre o que a observao em geral e sobre o que oprocesso de saber que ela instrui. A pretenso de atingir uma realidadesobre a qual uma linguagem poderia perfeitamente dar conta do queseria de alguma maneira um espelho adequado, significaria que umsistema universal de conhecimento se confunde com aquilo que se des-vela e conhece. Uma tal atitude o que Richard Rorty designa comouma pretenso a uma "comensurao universal", quer dizer, a funda-o de um discurso nico, necessariamente consensual e que negaria,emltima anlise, todas as possibilidades de outras posies, de outrasproposies do real.

    A imagem da qual a antropologia audiovisual trata no responde obrigao que inicialmente se acreditava que ela era suscetvel deassumir e que era capaz de produzir - uma realidade-em-espelho,desvelamento sem discurso de uma verdade do mundo sobre o qualno haveria somente uma boa maneira de dar-se conta. No serviriade nada juntar a ele um discurso que orientaria o olhar e tomariaconta do no-visto da imagem para alcanar o sentido. Isso seria sim-plesmente voltar ao texto, modo privilegiado de entendimento e que a

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    Espaode uma antropologia audiovisual

    imagem ilustraria para lhe dar uma parte de sua dimenso sensvel,ausente da palavra. Esse tipo de comentrio pela imagemvolta a afir-mar a unicidade da compreenso. Seria fazer a hiptese de um qua-dro de referncias universal, permanente, prvio ou produzido infine,independente de todos os pontos de vista, neutro de algum modo.Esse quadro de referncia poderia, ento, ser considerado como ocu em direo ao qual se desenvolveria uma teoria do conhecimen-to, suscetvel de colocar termo diversidade das interpretaes doreal, produzindo um modo de conhecimento da verdade. Nessa pers-pectiva, um comentrio acompanha a imagem e a submete a seu enun-ciado, que toma geralmente a forma de: "h ..., ..., isso se chama ...".Essas afirmaes de ser e de existncia so pontuadas com "porqus"e por "portantes", ao mesmo tempo que em os verbos "saber" e"compreender" reasseguram constantemente ao espectador sobre oque ele deve ver e o que ele partilha com os outros espectadores,porque eles possuem precisamente em comum o mesmo comentriodirecionador e seus pressupostos referenciais. Seu autor seria, alis,detentor do verdadeiro saber pelo fato de possuir uma experinciaque autentificaria um estatuto profissional e cientfico atestado pelasinstituies, o saber fazer tcnico de uma realizao e o investimentoeconmico que ela representa. Na realidade, o que ns descobrimospouco a pouco, interrogando a imagem produzida, que ela no ,em nenhum caso, um reflexo mais que ela reproduz, isto , que elaconstitui, que ela fabrica um objeto particular, novo em sua naturezae em sua significao em relao ao que ela evoca. Uma tal descober-ta conduz a um deslocamento da ateno em direo s condiesmesmas da produo de imagens e privilegiao da relao instau-rada no quadro de uma situao antropolgica.

    O que , ento, que ns chamamos de "a passagem ima-gem"? Da observao elaborao do protocolo de descrio, dacategorizao do Outro nos termos que no lhe pertencem ilusodo partilhamento, o percurso se prolonga e conduz a uma interroga-o recproca, a uma forma, talvez, de conversao indefinida. No preciso que se esteja num relativismo absoluto, mas sobretudonum momento transitrio, cuja indeterminao final no deveria demodo algum interromper. Esses dilogos mantidos, estas conversa-es em que se reconhece as alteridades e as alternncias, constro-

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  • Imagem em foco: novas perspectivas em antropologia

    em espaos de compreenso em que uns no se reduzem aos argu-mentos e s categorias dos outros, mas elaboram e mantm espaosde entendimento em que se pode prosseguir e renovar as interroga-es. Para que a imagem possa continuar o seu trabalho de questio-namento e incertezas, o silncio no deve se estabelecer de mododefinitivo. O saber adquirido, o conhecimento alcanado seria umapretenso ao fim da histria num conjunto cuja infinitude seria -insupervel absurdo - alcanada. Em sentido inverso e simtrico,isso poderia bem ser a exploso do mundo em unidades sem conta-to, autrquicas, mnadas inumerveis que nenhum sistema de sig-nos, que nenhuma correspondncia poderia vir a sair de uma dife-rena irredutvel ou de um serialismo incomunicvel. No, verda-deiramente no mais possvel, olhando a imagem, dizer: isto uma cadeira. E mesmo quando eu tentar prudentemente precisarque isto aqui a imagem de uma cadeira e, portanto, um objeto nelemesmo, ser preciso que eu continue a interrogar o que pde fazerdessa imagem a imagem de uma cadeira para que, enfim, a imagemseja ela mesma este objeto particular "imagem de uma cadeira" eno uma outra imagem qualquer. Assim, eu no posso me contentarde deslocar o problema da objetividade, jogando com as palavras,aceitando, depois de ter abandonado a pretenso de reproduzir oreal em si mesmo, que a imagem seja ela mesma o objeto. O que,em definitivo, conduzir, se a tomarmos um tanto estritamente, expresso segundo a qual o cinema no uma simples reproduode um real mas ele mesmo produo do real.

    Compreende-se bem que no se encontra aqui emjogo a questodo real mas que este interrogado a respeito do que transmite a ima-gem filmica. Ela no um instrumento de transporte que permitiriadeslocar objetos de um lugar a outro, ela no , tambm, um simplessuporte de anlise ou, ainda, um microcosmos atravs do qual um ob-servador advertido apreenderia o que sustenta as situaes e as rela-es sociais na sua verdade ntima e ltima. J passaram cinqentaanos quando Jean Epstein, realizador deFinis Terrae e de Tempestai-re, descobria que o cinema, como toda abordagem cientfica, umdispositivo experimental, que no fazia nada alm de inventar uma ima-gem plausvel do universo. Ele mostrava que o cinema era consagradoa tornar o real a combinao de um espao com o tempo mas, segundo

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    Espao de uma antropologia audiovisual

    ele, esta realizao era de fato uma "trucagem" cuja elaborao seaproximaria "do procedimento segundo o qual o esprito humano sefabrica geralmente uma realidade ideal" (Epstein, 1946, p.194).6 Asposies de Epstein recobrem minhas proposies visando a constituiro procedimento de registro imagem-som nele mesmo como uma abor-dagem-conhecedora, processo cognitivo e no simplesmente comoummtodo de abordagem e de recolhimento de dados. O saber produzido uma interpretao plausvel de dados da experincia cuja colocaocontribui para caracterizar as formas comoos significados.

    A experincia no se interrompe a, porque, comoj indicamos,ela est submetida interpretao (potencialmente) permanente dosespectadores e reinterpretao crtica daqueles que teriam sido seusprotagonistas. Vai-se em direo constituio em definitivo de umaespcie de hipertexto, ou melhor, de uma hipercenografia do prov-vel ou do possvel. Convm que ns possamos refletir a respeito dasua significao hoje, ao mesmo tempo que sobre a sua pertinnciarelativa s interrogaes contemporneas, concernentes a uma uni-versalizao dos instrumentos e, portanto, s formas do discurso. Comefeito, essa universalizao prometida-imposta significa algo que se-ria a classificao, se no for a organizao de uma unicidade dacompreenso, fundada sobre a assero da realidade, do verdadeiroou da veracidade de um s real, de um real que seria unvoco, de umsentido e de uma totalidade.

    Eu diria que impossvel assumir ou negar uma tal posio e quea ambigidade que se pode encontrar em Foucault no uma hesitaoentre objetivismo e subjetivismo, mas uma abordagem consciente enecessariamente oscilante entre uma e outra comoposies respectiva-mente insustentveis e no-contraditrias. Nesse plano, nosso empre-endimento se caracteriza da mesma maneira que o historiador PaulVeynesitua o propsito da histria sobre a qual afirma que ela " umacrtica que diminui as pretenses do saber e que se limita a dizer verda-des sobre as verdades, sempresumir que existe uma poltica verdadeiraou uma cincia com letra maiscula." Ele acrescenta uma informaocomplementar que designava como "fabulao", isto seria acreditar quetodas as "imaginaes sucessivas seriam verdades inscritas nas coisas"(Vcyne, 1983, p.136).7 Dessa maneira, portanto, uma antropologia au-diovisual se constituiria comouma argumentao constante a propsito

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  • .Imagem em foco: novas perspectivas em antropologia

    das condies de possibilidade, das condies de produo e as condi-es de utilizao, de aproximaes particulares de situaes espec-ficas. Haveria, desse modo, o estabelecimento de um plano de interro-gao espao-temporal (a imagem produzida concretamente espaci-alizada e se desenrola, se desenvolve, dura ....) cuja ambigidade seriaa sua virtude profunda: tratar-se-ia de uma aproximao assimptticade uma alteridade supostamente perceptvel, aproximvel, disposta comunicao e, no entanto, sempre irredutvel a ela. Pode ser que aainda se encontre uma iluso que nos levaria a universalizar a potenci-alidade de dilogos sem fim: ao menos, esta a escolha que parecepossvel e necessria operar, caracterstica de um ponto de vista e deuma abordagem, mesmo que a possibilidade de violncia e afronta-mento esteja sempre na ordem do dia.

    Notas

    1 TraduoPatrcia Birman.2 REGNAULT,L.F.Les Muses des films.Biologica, Paris, v.2,n.16, 1912 (supplrnent20).3 WORTH, S.; ADAIR, J. Through navaho eyes: an exploration infilm communicationand anthropology.Bloomington: IndianaUniv.Press, 1972.4Koulechov foi um cineasta russo formado, comoVertov,para a elaborao de filmes deatualidadesdurante a PrimeiraGuerraMundiale aRevoluoSovitica.Fundou, nos anos20, umLaboratrio Experimental desenvolvendoteorias sobre amontagem que, ao con-trriodaquelas deVertov,incluama escritade roteirosassimcomo a utilizaode estdiose atores aos quais pedia, sobretudo, para amplificar seus jogos numa perspectiva quaseexpressionista. Sua experincia comMosjoukine, destinada a demonstrar a importnciacriativa da montagem, freqentemente chamada de Teoriado Modelo Vivo.5 Cf. a utilizao de Richard Rorty destes termos emL 'Hommespculaire. Paris, Seuil,1990.6 EPSTEIN, Jean. L 'intelligence d 'uneMachine. Paris: Jacques Merlot, 1946.7 VEYNE, Paul. Les Grecs ont-ils cru leurs mythes? Paris: Seuil, 1983.

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    No necessariamenteo filme etnogrfico:

    traando um futuro paraa antropologia visual 1

    Faye Ginsburg*

    Introduo

    Aonosaproximarmosdofimdosculo,omomentoparece apropriadopara se reconside-rar como o campo da antropologiavisual temtentadoproduzire reproduzir-seatravsdeumavariedadedeestruturaseprocessos:a formaodos estudantesnas teorias e prticas antropol-gicase sua colocaoemnichosprofissionais,arealizaoe disseminaode filmesevdeosnoscircuitos acadmicos,teatrais, televisivose defestivais;a produo e publicaodetrabalhosrelacionados rea e a crescenteesferapblicaemquea antropologiavisual se insereeem quenosso trabalho , cada vez mais, questionado,particularmente em discusses a respeito darepresentaovisualdas culturasna tela, inicia-da por produtoresdemdia de cor.

    ;;.Antrcploga, diretora do Center for Media, Culture and History do Departamento deAntropologia daNewYork University.

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    Page 1TitlesIMAGEM EM FOCO NOVAS PERSPECTIVAS EM ANTROPOLOGIA

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    Page 2Titles~ ~ tJ 4 80 ~ . h Jj'L~ (,CISA-Of ('1 l~f f /.f\ J Espao de uma antropologia Marc Henri Piault *

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    Page 3TitlesUm espao apenas reconhecido

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    Page 4TitlesAs questes constituintes

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    Page 6TitlesConstruo da imagem e/ ou abordagem

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    Page 8TitlesEm direo a espaos de entendimento e

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    Page 11Titles. Notas Faye Ginsburg* Introduo

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