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DEPOIS DO ÊXTASE,
LAVE A ROUPA SUJA
COMO O CORAÇÃO FICA MAIS SÁBIONO CAMINHO ESPIRITUAL
JACK KORNFIELD
Tradução
CARLOS A. L. SALUN
ANA LUCIA FRANCO
EDITORA CULTRIX
São Paulo
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Dedicado ao Venerando Ajahn Chah, a seu irmão no Dharma oVenerando Ajahn Buddhadasa e à linhagem dos Anciãos da floresta
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UMA PROSTERNAÇÃO INICIALHá mais de trinta anos, quando praticava num mosteiro de umafloresta da Tailândia para ser monge budista, tive que aprender ame prosternar. Era esquisito no início. Quando entrávamos na sala
de meditação, tínhamos que cair de joelhos e tocar três vezes ochão de pedra com a cabeça. Era um ato de reverência e atenção,uma forma de reverenciar com um gesto do corpo a submissão aocaminho do monge: simplicidade, compaixão e consciência. Nósnos prosternávamos todas as vezes que íamos treinar com omestre.Eu estava no mosteiro havia umas duas semanas quando um dosmonges mais antigos me chamou para me dar instruções. "Neste
mosteiro nós não nos prosternamos apenas para entrar na sala demeditação ou para receber ensinamentos do mestre, mas tambémdiante dos superiores." Como único ocidental do mosteiro, eu queriaagir corretamente. Perguntei, então, quem eram os meussuperiores. "Segundo a tradição, todos os que se ordenaram antesde você são seus superiores." Levei um momento para perceberque ele se referia a todo mundo.
Assim, comecei a me prosternar diante de todos. Às vezes estava
certo: havia sábios na comunidade. Mas às vezes era ridículo.Encontrava um monge de vinte e um anos, cheio de arrogância, queestava ali só para agradar os pais ou para comer melhor do que emcasa. E tinha que me prosternar porque eu havia sido ordenadouma semana depois dele. Ou tinha que me prosternar diante de umvelho agricultor babaca que estava no mosteiro para gozar aaposentadoria e vivia mascando folhas de bétele, sem nunca termeditado um único dia na vida. Era duro me prosternar diante
desses companheiros da floresta como se eles fossem grandesmestres.Mas lá estava eu me prosternando e, por estar em conflito,procurava um jeito de fazer a prática valer a pena. Assim, enquantome preparava para mais um dia de prosternações, comecei abuscar méritos em cada um de meus "superiores". E assim passei ame prosternar diante das rugas no rosto do velho agricultor, dasdificuldades que ele tinha enfrentado e vencido; diante da vitalidade
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e da jovialidade dos jovens monges, das incríveis possibilidadesque ainda tinham pela frente.Comecei a gostar de me prosternar. Eu me prosternava diante demeus superiores, antes de entrar e antes de sair do salão de
refeições. Eu me prosternava antes de entrar na minha cabana nafloresta e antes do banho, diante do poço. Depois de algum tempo,a prosternação começou a fazer parte de mim. Eu me prosternavadiante de tudo.É o espírito da prosternação que informa este livro. A verdadeiratarefa da vida espiritual não está em locais distantes ou em estadosincomuns de consciência: está aqui, no presente. Ela exige espíritoaberto para saudar com coração sábio, respeitoso e gentil tudo o
que a vida nos dá. Podemos nos prosternar diante da beleza, dosofrimento, da nossa confusão, do nosso medo e das injustiças domundo. Reverenciar assim a verdade é o caminho para a liberdade.Prosternar-se diante do que é e não de algum ideal não é fácil mas,por mais difícil que seja, é uma das práticas mais proveitosas emais nobres.Prosternar-se diante das dores e traições da vida é aceitá-Ias.
Através desse gesto profundo, descobrimos que tudo na vida vale a
pena. Aprendendo a nos prosternar, descobrimos que temos nocoração mais liberdade e compaixão do que imaginávamos.O poeta persa Rumi diz o seguinte:
Ser um ser humano é uma casa de hóspedes.Todas as manhãs chega alguém.É uma alegria que chega, uma depressão, uma mesquinharia,um dar-se conta momentâneo:
visitas inesperadas.Dê as boas-vindas a todos,Mesmo quando um bando de tristezascarrega toda a mobíliada sua casa.Trate cada hóspede com reverência,Talvez ele abra espaçopara uma nova alegria.
o pensamento sombrio, a vergonha, a malícia,
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INTRODUÇÃO: ALGUMAS PERGUNTAS HONESTAS
Quando o pássaro e o livro discordam,acredite sempre no pássaro.JAMES AUDUBON
A iluminação existe. É possível despertar. Liberdade e alegriairrestritas, unidade com o Divino, despertar para um estado degraça eterna - essas experiências são mais comuns e estão maisperto do que você pensa. Mas tem uma coisa: elas não duram.Descobertas e despertares revelam a realidade do mundo e trazema transformação, mas passam.Você já deve ter lido histórias tradicionais de sábios iluminados da
Ásia ou de santos e místicos imaculados do Ocidente. Mas essasnarrativas ideais enganam. Na verdade, não existe umaaposentadoria iluminada depois do despertar do coração. As coisasnão acontecem assim.Todos sabem que depois da lua-de-mel vem o casamento, quedepois da eleição vem a tarefa árdua de governar. Na vida espiritualé a mesma coisa: depois do êxtase, vem a roupa suja para lavar.
A maioria dos relatos espirituais termina com a iluminação. Mas eque tal perguntar o que acontece depois? O que acontece quando omestre zen volta para casa, para junto da mulher e dos filhos? Oque acontece quando o místico cristão vai fazer compras? Como éa vida depois do êxtase? Como viver a compreensão com coraçãopleno?Para aprofundar essas questões, falei com pessoas que dedicaramvinte e cinco, trinta e cinco, quarenta anos a um caminho espiritual,transformando-se nos mestres de meditação, abades, lamas eprofessores da nossa geração. Essas pessoas me falaram docomeço de sua jornada e do seu despertar, das lições dos anos quese seguiram, do que fizeram para seguir o verdadeiro caminho decompaixão nesta terra.O relato que se segue é de um mestre zen ocidental falando de seusatori (experiência de iluminação) e do que aconteceu depois. Emgeral, relatos assim não são publicados porque podem passar a
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transmitidas em grande parte por histórias assim: contamos erecontamos as histórias de Noé, de Bal Shem Tov, de Maomé, deSanta Teresa, de Milarepa, de Krishna e de Arjuna, a busca doBuda e as parábolas de Jesus. Nos tempos mo demos, ouvimos a
história da vida de Thomas Merton, de Suzuky Roshi, de AnueFrank e de Martin Luther King Jr. Através da vida espiritual dosoutros, enxergamos as nossas possibilidades e aprendemos a vivercom sabedoria.Observar as pessoas também faz parte da minha linhagem. Meuprofessor, Ajahn Chah, sabia que, pelo caráter, é possível descobriro sofrimento e a liberação de cada um. Assim, ele observava os quevinham vê-lo como um relojoeiro abrindo o estojo de um relógio.
Por sorte, como "profissional" do espírito, as circunstâncias mepuseram em contato com muitas figuras da moderna vida espiritual.Vivi e trabalhei com freiras santas e abades sábios de mosteiroscristãos, com místicos judeus, com mestres budistas, hindus e sufise com figuras importantes das comunidades junguiana etranspessoal. O que é possível observar e ouvir em tal companhiarevela muito sobre o desenvolvimento da moderna jornada espirituale sobre as dificuldades que até as pessoas mais dedicadas
encontram. Eis um exemplo do que é possível aprender com essaspessoas.Venho organizando, desde o início dos anos noventa, umasucessão de reuniões para professores budistas das principaisescolas. Uma dessas séries teve como anfitrião o Dalai Lama nopalácio Dharamsala. Professores ocidentais e asiáticos se reunirampara discutir a utilidade das práticas budistas no mundo moderno etambém as dificuldades que estávamos enfrentando. Era um salão
lotado de mestres zen, lamas e monges cheios de bondade ecompaixão, cujo trabalho e sabedoria tinham beneficiado milharesde pessoas. Falamos dos sucessos e da alegria de ter participadodeles. Mas, quando chegou o momento de falar abertamente dosnossos problemas, ficou claro que não havia só harmonia na vidaespiritual. Ela refletia o esforço coletivo e também as neurosesindividuais. Até mesmo em companhia tão augusta e dedicada,havia áreas de preconceito e cegueira.
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A iluminação perfeita aparece em muitos textos, mas não entre osmestres e professores ocidentais que eu conheço. Momentos degrande sabedoria, profunda compaixão e verdadeiro conhecimentoda liberdade se alternam com períodos de medo, confusão, neurose
e luta. A maioria dos professores admite prontamente essa verdade.Mas, infelizmente, alguns ocidentais alegam ter atingido a perfeiçãoe a liberdade sem sombras. Em suas comunidades, as coisas sãoainda piores: com essa inflação do eu, criaram comunidadesperniciosas e centralizadas no poder.Os mais sábios expressam mais humildade. Abades como o PadreThomas Keating do Mosteiro Snowmass e Norman Fischer do SanFrancisco Zen Center, por exemplo, costumam dizer: "Estou
aprendendo." Ou: "Não sei." No espírito de Gandhi, de MadreTeresa, de Dorothy Day e do Dalai Lama, eles sabem que não édeles que nasce a perfeição espiritual, mas da paciência e do amorque crescem através da sabedoria de toda a comunidade; queliberdade e realização espiritual incluem a compaixão por tudo oque surge nesta forma humana.Cabe a pergunta: e os velhos mestres da Ásia? Será que osmestres zen e os lamas ocidentais não são jovens demais e pouco
desenvolvidos para representar a verdadeira iluminação? Muitosprofessores ocidentais diriam que, no seu caso, isso é verdade. Lálonge pode haver alguém que se encaixe na imagem da perfeitailuminação, mas essa aparência pode ser o resultado de umaconfusão entre o nível arquetípico e o nível humano. Um ditadotibetano diz que devemos viver a uma distância de pelo menos trêsvales do nosso guru. Como entre esses vales há montanhasenormes, ver o professor significa uma dura viagem de vários dias.
Mas é só a essa distância que a perfeição do guru nos inspira.Quando disse ao abade Ajahn Chah, considerado santo por milhõesde pessoas, que nem sempre ele agia como um iluminado, ele riu edisse: "Ainda bem, pois do contrário você imaginaria que é possívelencontrar o Buda fora de você. E não é onde ele está."Na verdade, alguns dos mais respeitados mestres asiáticosdisseram que ainda são alunos, que ainda aprendem com seuserros. Alguns, como o Mestre Zen Shunryu Suzuki, nem mesmo se
dizem iluminados. Dizia ele: "Estritamente falando, não há pessoas
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PRIMEIRA PARTE
PREPARAÇÃO PARA O ÊXTASE
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BABA YAGA E O ANSEIO SAGRADO
No momento em que ouvi minha primeira história,comecei a procurar por você...RUMI
A meio caminho na estrada da vida eu desperteie me vi sozinho num bosque escuro.DANTE ALIGUIERI
o que leva uma pessoa à vida espiritual? Até onde a memóriaalcança, cada um de nós sente um certo mistério no fato de estarvivo. Diante de um bebê que acabou de nascer ou quando a mortede uma pessoa querida passa muito perto de nós, o mistério ficapalpável. Lá está ele quando vemos um entardecer radiante ouquando sentimos a quietude silenciosa de um momento nos temposfluidos de agora. Entrar em contato com o sagrado é talvez a nossamais profunda necessidade.
O despertar nos chama de mil maneiras. Como canta o poeta Rumi:"As uvas querem se transformar em vinho." Existe uma atração pelatotalidade, pela vida plena, mesmo quando já esquecemos. Oshindus dizem que a criança no útero canta: "Que eu não esqueçaquem sou." Mas que logo depois de nascer sua canção é: 'Jáesqueci."Mas, assim como há uma viagem de ida, há uma viagem de volta.Em todo o mundo há histórias dessa viagem; há imagens do desejo
de despertar, dos passos ao longo do caminho que todos seguem,das vozes que chamam, da intensidade da iniciação por que todospassam, da coragem que é necessária. No coração de cada um háa sinceridade original do buscador, que admite que é pequeno onosso conhecimento do universo, que é grande o desconhecido.
A honestidade que a busca espiritual exige de nós é ilustrada noscontos russos de iniciação sobre Baba Yaga. Baba Yaga é umavelha de aparência selvagem e maltrapilha que mora no meio da
floresta, está sempre mexendo o caldeirão e sabe de tudo. Ela
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assusta, pois quem a procura é obrigado a entrar na escuridão, afazer perguntas perigosas, a deixar o mundo da lógica e doconforto.Quando, empenhado na busca, o primeiro jovem chegou tremendo
à porta de sua cabana, Baba Yaga perguntou: "Você está aqui porconta própria ou foi mandado por alguém?" Como a família do
jovem apoiava sua busca, ele respondeu: "Fui mandado pelo meupai." No mesmo instante, Baba Yaga o jogou no caldeirão e ocozinhou. A segunda pessoa a procurá-Ia, uma moça, viu o fogocrepitando e ouviu a risada de Baba Yaga. Novamente, Baba Yagaperguntou: "Você veio por conta própria ou foi mandada poralguém?" Essa jovem tinha ido para o bosque sozinha em busca do
que encontrasse. "Vim por conta própria", respondeu ela. BabaYaga a atirou no caldeirão e a cozinhou também.Mais tarde, um terceiro visitante, uma moça profundamente confusadiante do mundo, chegou à casa de Baba Yaga lá no meio dafloresta. Ela viu a fumaça e percebeu o perigo. Baba Yaga aencarou: "Você veio aqui por conta própria ou foi mandada poroutra pessoa?" A jovem respondeu com sinceridade: "Em parte vimpor conta própria, mas em parte vim por causa de outras pessoas.
Em parte vim porque você está aqui, por causa da floresta e porcausa de alguma outra coisa que esqueci. E em parte nem sei porque vim." Baba Yaga ficou olhando para ela por um momento edisse: "Você serve." E a convidou para entrar na cabana.
DENTRO DO BOSQUE
Não conhecemos todas as razões que nos impelem para a jornada
espiritual, mas de alguma forma a vida nos obriga a ir. Alguma coisaem nós sabe que não estamos aqui só para dar duro no trabalho.Há uma atração misteriosa que nos dá vontade de lembrar. O quenos leva a sair de casa para entrar na escura floresta de Baba Yagapode ser uma combinação de acontecimentos. Pode ser um anseiovindo da infância ou um encontro "acidental" com uma pessoa oulivro espiritual. Às vezes, alguma coisa dentro de nós despertanuma viagem para uma cultura estrangeira, quando o mundo
exótico de ritmos, fragrâncias e cores nos catapulta para fora do
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sentimento corriqueiro de realidade. Às vezes basta caminhar pelasmontanhas azuis-verdes ou ouvir um coral cantando uma músicatão bonita que parece inspirada pelos deuses. Às vezes é preciso,ao lado da cama de um moribundo, presenciar a misteriosa
transformação da "pessoa" que desaparece da existência, deixandoapenas um saco de carne sem vida à espera do funeral. Mil portõesse abrem para o espírito. Seja no brilho da beleza, seja no bosqueescuro da confusão e da dor, uma força real como a gravidade nostraz de volta ao coração. Isso acontececom todos nós.
OS MENSAGEIROS DO SOFRIMENTO
A passagem mais freqüente para o sagrado é o sofrimento e ainsatisfação. Inúmeras jornadas espirituais começam num encontrocom as dificuldades da vida. Um começo comum entre os mestresocidentais é o sofrimento da vida em família: pais alcoólatras, maus-tratos, doenças graves, morte de um parente querido, frieza eausência dos pais e hostilidade entre os membros da família sãosituações que aparecem em muitas histórias. Para um mestre de
meditação, sábio e respeitado, a jornada começou com isolamentoe separação.
"Quando eu era criança, havia muita Infelicidade na nossa família.Todos gritavam e eu sentia que aquele não era o meu lugar: eracomo se eu fosse um alienígena. Então, por volta dos nove anos,comecei a me interessar por discos voadores. Durante vários anos,fantasiei que um OVNI ia me pegar, que eu seria abduzido e levado
de volta para outro planeta. Eu queria muito que isso acontecessede verdade, para me livrar da alienação e da solidão. Acho que issofoi o começo de minhas quatro décadas de busca espiritual."
Todos sabem que o coração precisa de amparo espiritual emmomentos de dificuldade. "Respeite essa necessidade", diz Rumi."Seja grato a quem o faz voltar, seja qual for o motivo, ao espírito.Preocupe-se com quem lhe oferece um delicioso conforto que o
afasta da prece."
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Os trinta anos de trabalho interior de outro professor espiritual, queé também médico e agente de cura, começaram com tristezas defamília.
"Meus pais brigavam muito e depois se divorciaram em clima deviolência. Fui mandado para um internato horroroso. Viver com aminha família era tão doloroso que me tomei solitário, magoado,inquieto e descontente com tudo. Eu não sabia viver.Um dia, vi um homem com manto laranja e cabeça raspadacantando 'Hare Krishna' nos degraus de uma praça. Ingenuamente,pensei que se tratava de algum sábio indiano. Ele me falou dekarma, reencarnação, meditação e da possibilidade de liberdade.
Senti no corpo a verdade daquilo tudo. Fiquei exultante, telefoneipara minha mãe e disse: 'Vou sair da escola. Quero ser um mongeHare Krishna.' Ela ficou histérica, mas acabamos escolhendo umlugar para eu aprender meditação. E assim eu me abri para umoutro mundo. Aprendi a esquecer o passado e a ter compaixão pormim mesmo. A meditação salvou a minha vida."
A crise é um convite para o espírito, não apenas na infância, massempre que a vida passa pelo sofrimento. Para muitos mestres, o
portão para o espiritual se abriu quando a perda ou o desespero, osofrimento ou a confusão os levou a buscar consolo para o coração,a buscar uma totalidade escondida. A longa viagem de umprofessor começou já na vida adulta, em outro país.
"Eu estava em Hong Kong. Meu casamento ia mal, fazia dois anosque minha filha mais nova tinha morri do ainda bebê e, no geral, eunão estava feliz. De volta à América, vi um anúncio de aulas de tai
chi na Stanford Business School. Eu me inscrevi e a práticacomeçou a acalmar o meu corpo, mas o meu coração continuavatriste e confuso. Eu me separei da minha mulher e experimenteivárias formas de meditação para me acalmar. Então, uma amigame apresentou ao seu professor de meditação, que me convidoupara um retiro. A sala era formal e silenciosa e ficamos sentadospor várias horas. Na segunda manhã, eu de repente me vi jogandouma pá de terra vermelha no túmulo da minha filha. Vieram as
lágrimas e eu soltei um gemido. Aos sussurros, os outros alunos me
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mandaram calar a boca, mas o mestre pediu que ficassem quietos eme abraçou. Eu chorei durante a manhã inteira, cheio de dor. Foiassim que começou, Agora, trinta anos depois, sou eu que abraçoos que choram."
O encontro com o sofrimento que leva à procura de uma resposta éuma história universal. O Príncipe Sidarta, o futuro Buda, viviaisolado em belos palácios, protegido de todos os problemas pelopai. Finalmente, quis sair para ver o mundo. Percorrendo o reino decarruagem, na companhia do cocheiro Channa, viu quatro cenasque o chocaram profundamente. Primeiro viu um velho curvado efrágil, andando com dificuldade. Depois viu um homem gravemente
doente, atendido pelos amigos. Depois viu um cadáver. A cada vez,perguntou ao cocheiro: "Com quem essas coisas acontecem?" Etodas as vezes Channa respondeu: "Com todo mundo, senhor."Essas visões são chamadas de "Mensageiros Celestiais", poisassim como despertaram o Buda, elas nos fazem lembrar de buscara liberação, de buscar a liberdade espiritual nesta vida.Você se lembra da primeira vez que viu um cadáver ou uma pessoamuito doente? Esse primeiro encontro com a doença e a morte
provocou um choque em todo o ser de Sidarta, Ele se perguntou:"Qual a melhor maneira de viver numa vida assolada pela doença épela morte?" O quarto mensageiro veio na forma de um monge queele viu na orla da floresta, um eremita que tinha devotado uma vidade Simplicidade à busca de um fim para as dores do mundo. Ao vê-lo, o Buda percebeu que ele também devia seguir esse caminho:enfrentar diretamente as dores da vida para encontrar um caminhoalém do alcance dessas dores.
Como um Sidarta moderno, uma professora conta que, viajandopelas cidades e pelo campo, foi chamada para o seu caminho.
"Depois da faculdade, trabalhei como assistente social na Filadélfia.Tentei ajudar famílias desesperadas, que viviam sem trabalho, commontes de filhos, em casas miseráveis e às voltas com o problemadas drogas. Às vezes eu chorava quando chegava em casa. Então,fui trabalhar com um amigo na América Central - El Salvador e
Guatemala. Lá, os camponeses
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pareciam viver num oceano de problemas. Viviam ameaçados porincursões militares e o que ganhavam com o trabalho só dava paracomprar comida e remédios para os filhos. Foi muito difícil. Quandovoltei, entrei para o convento e lá fiquei durante quatro anos, não
para fugir, mas para me encontrar, para descobrir o que fazer paraajudar este mundo."
De uma forma ou de outra, os mensageiros celestes vêm paratodos nós, convidando-nos a buscar a totalidade que falta na nossavida. Eles não assumem apenas a forma das nossas própriasdificuldades, mas também das dores do mundo, cujo efeito époderoso: um simples noticiário pode abrir o nosso coração. As
enchentes perenes de Bangladesh, a fome e a guerra na África, naEuropa e na Ásia, a crise ecológica no mundo inteiro, o racismo, apobreza, a violência das cidades - são esses os mensageiros. Elessão um chamado. Assim como fizeram com o Buda, eles nosconvidam a despertar.
VOLTA À INOCÊNCIA
Por mais difícil que pareça, as forças que nos atraem para o bosquetêm outro lado. Uma beleza nos chama, uma totalidade quesabemos que existe. Segundo os sufis, é "a voz do bem-amado".Nascemos neste mundo com a canção nos ouvidos, mas é pelaausência dela que em geral a conhecemos.Vivendo sem uma iluminação do espírito, acabamos sentindo asaudade profunda de uma criança perdida, uma saudade sutil,como se soubéssemos que alguma coisa essencial está faltando,
alguma coisa que dança na orla da nossa visão, que está sempreconosco, como o ar que só é lembrado quando o vento sopra. Noentanto, é esse espírito indefinível que nos ampara, que nosalimenta o coração, que nos incita a buscar o que importa na vida.Somos compelidos a voltar à nossa verdadeira natureza e ao nossocoração, que é sábio e conhecedor.Essa saudade sagrada pode surgir pela primeira vez na infância,como aconteceu com o mestre zen de uma grande comunidade na
Europa.
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"Quando criança, eu tinha experiências de deslumbramento e deidentidade com o mundo. Eu me identificava com as colinas quepareciam dançar e com os rios entre elas. Um dia, eu me imaginei
como parte de uma forte tempestade de verão que varreu a cidade. Aos doze anos, percebi como é incrível o jogo da vida, maior do quetudo o que eu conhecia. Depois esquecia de tudo e ia jogar futebole brincar com os amigos até acontecer de novo outro momento deingênuo desabrochar. Tempos depois, na universidade, ouvi umswami hindu falar sobre o mundo da natureza e do mistério.Durante a palestra, ele chorou abertamente. Fiquei muito tocado,como se estivesse ouvindo a voz de Jesus, e comecei a lembrar da
inocente ligação com a minha infância. Quem percebe o quantoperdeu tem que sair em busca dos momentos em que o espíritoveio à vida pela primeira vez."
Com os anos, a sociedade prática e materialista costuma usurpar omistério original da infância. Entramos cedo na escola para"crescer" e "ser uma pessoa séria": se não abandonamos logo ainocência infantil, o mundo se encarrega de tirá-Ia de nós. Cem
anos atrás, no curso de engenharia da academia militar de WestPoint, o pintor norte-americano James McNeill Whistler sentiu deperto essa atitude. Certa vez, o professor mandou a classe fazer umdesenho de uma ponte e Whistler desenhou um arco de pedrabelamente detalhado, onde se viam crianças pescando. O tenenteencarregado do curso não gostou: "É um exercício militar. Tireessas crianças da ponte." Whistler refez o desenho, agora com ascrianças pescando na beira do rio. Zangado, o tenente disse: "Eu
disse para tirar essas crianças do desenho." Assim, a última versãode Whistler mostra o rio, a ponte e duas pequenas lápides namargem.Como disse o escritor existencialista Albert Camus:
A vida de um homem é apenas uma longa viagem pelos desvios daarte para recapturar aqueles um ou dois momentos em que o seucoração se abriu pela primeira vez.
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Na tradição zen, essa jornada é descrita na história do boi sagrado.Na Índia antiga, os bois simbolizavam as qualidades maravilhosasque habitam todos os seres, que nos despertam para a descobertada nossa verdadeira natureza. A história zen sobre o pastor e o boi
começa com uma pintura feita em pergaminho que mostra umhomem vagando pela vegetação da montanha. A imagem échamada "Procurando o Boi". Atrás do homem há um labirinto deestradas que se cruzam: são as velhas estradas de ambição emedo, confusão e perda, exaltação e vergonha. Esse homem nemse lembra mais dos rios e das paisagens da montanha. Mas no diaem que lembra, parte em busca dos rastros do boi sagrado. Em seucoração, ele sabe que, mesmo nas gargantas mais profundas e nas
montanhas mais altas, o boi não está perdido. Na beleza dafloresta, ela pára a fim de descansar. E, olhando para baixo, vê osprimeiros rastros.Para uma professora de meditação, agora com sessenta anos, abusca ao boi começou na meia-idade, depois de criar três filhos.
"Quando menina, vivia num ambiente intelectual em que não sefalava devida espiritual, com a exceção talvez do Natal. Meus pais
pareciam achar que estávamos acima dessa coisa de religião. Eutinha muita inveja das minhas amigas que iam à igreja. Com seteanos, comecei a recortar dos cartões de Natal as imagens de Maria,dos anjos e de Jesus. Eu as escondia no fundo de uma gaveta e fizali um altar secreto. Eu as tirava da gaveta todos os domingos erealizava o meu próprio serviço religioso.Então, aos quarenta e três anos, viajando a negócios, tive umafolga e fui visitar uma catedral famosa. Naquele espaço amplo e
frio, vi a luz do sol brilhando através do vidro colorido e um coralcomeçou a cantar cânticos gregorianos anunciando o serviço datarde. No altar havia uma linda imagem de Maria, igual às dos meuscartões. Precisei me sentar. Eu me senti outra vez com sete anos,os olhos cheios de lágrimas e o coração prestes a explodir. Aquelapobre menina estava espiritualmente faminta. Na semana seguinte,eu entrei num curso de yoga e depois me inscrevi num retiro parameditar."
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A PERGUNTA SAGRADA
Nas palavras de Joseph Campbell, a primeira visão do rastro do boié um chamado para despertar, um puxão interior. Com isso surge
uma questão sagrada, que é diferente para cada um de nós. Algunsquestionam a dor, outros querem saber qual a melhor maneira deviver, outros se perguntam o que é importante ou qual é o propósitoda vida. Ou como é possível amar, quem somos, como fazer paraalcançar a liberdade. Em meio à correria da vida, alguns seperguntam: "Por que tanta pressa?"
Alguns dos mestres entrevistados recorreram à filosofia pararesponder às suas perguntas; outros tentaram a avenida da poesia
e das artes. Essas questões sagradas são a raiz de muitas poesias.Yeats escreve: "Retórica é a conversa que você tem com o outro.Poesia é a conversa consigo mesmo." O chamado para a viagem écomo um poema pela metade, à espera da conclusão. Kabir, opoeta místico indiano, pergunta: "Você pode me dizer quemconstruiu esta nossa casa? E para onde você vai com tanta pressaantes da morte? Você consegue encontrar o que realmente temvalor neste mundo?"
Seja qual for a fonte desse questionar profundo, temos que ir paraonde ele conduz. Uma professora budista estava cheia deperguntas quando terminou o curso de psicologia clínica."Terminei o doutoramento em psicologia e comecei a trabalharnuma unidade para adolescentes e em prevenção do suicídio.Durante anos acreditei que a psicologia tinha todas as respostasque eu procurava. Mas quando comecei a trabalhar minha fé seabalou. Diante do vasto sofrimento sem tréguas que conheci, era
ridículo pensar que a psicologia me daria todas as respostas. Aoque eu poderia recorrer para compreender esta vida?Um dia, em 1972, fui visitar uma amiga em Berkeley. Andando narua, ela encontrou um estrangeiro e começou a conversar com ele.Ela me disse depois que aquele homem alegre e brilhante era umlama tibetano e me convidou para assistir à sua palestra sobresonhos. Eu não estava entendendo nada, mas num dado momentouma mulher fez uma pergunta sobre compaixão e a resposta dele
fez com que compaixão deixasse de ser apenas uma palavra para
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mim. A resposta trazia uma manifestação de compaixão que tocouo meu coração. Fiquei atordoada. Até aquele momento, compaixãoera para mim uma bela palavra presbiteriana sem realidade: umabela idéia. Agora era uma força viva. Fiquei muito intrigada,
querendo saber o que havia acontecido. Foi isso que me abriu aporta, espiritual."
Uma mulher de negócios de Chicago, criada numa família muitounida, vivia uma vida tradicional. Mas, sentindo que o seu sucessoera difícil e vazio, ela começou a questionar aquilo tudo.
"Eu era a filha do meio de uma família com cinco filhos - e todos se
amavam. Eu ia à missa todos os dias e freqüentava uma escolacatólica só para meninas. Rezava com fervor. Oferecia coisas àsalmas do purgatório, fazia vários rituais inofensivos para nãoesquecer de Jesus e de meu amor por ele. Então eu me casei.Eram os tumultuados anos sessenta e meu casamento não duroumuito. Vivendo uma vida maior, mais livre e mais assustadora doque a que eu conhecia, conclui ao mesmo tempo o curso deadministração de empresas em Chicago e uma terapia de vários
anos. Meus trinta anos foram um inferno... lutando contra umadepressão profunda e prolongada, sem saber quem eu era e o queesperar da vida. Eu trabalhava dia e noite e, em dez anos, fui aprimeira mulher a se tomar vice-presidente da companhia, numacerimônia no salão de festas do Carlton Hotel. No começo, essesucesso me subiu à cabeça - e compensou outras perdas. Mas como tempo o encanto acabou e minha vida começou a parecerextremamente egoísta. Vendo que os ricos ficavam cada vez mais
ricos e que os pobres desciam cada vez mais na escala social, eupercebi que fazia parte do problema - e nem mesmo estava medivertindo.Então, dois dos meus amigos mais próximos morreram. Minha mãeseria a próxima. Pedi demissão da empresa para cuidar dela.
Ajudar meus pais a superar o choque e a aceitar a situação foi atarefa mais gratificante da minha vida. Eu me tomei voluntária numasilo e comecei a meditar.
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Enfrentar pela primeira vez o persistente demônio do vazio foi comovoltar para casa. Parece mentira, mas agora eu me sinto mais euquando estou sentada em silêncio, ouvindo. Reencontrei meucoração depois de todos esses anos e, com a ajuda de meus
amigos, a coragem de segui-Ia."
CHAMADOS DO ALÉM
Às vezes, o desabrochar da mente e do coração é como umchamado dos deuses, um empurrão que não vem da vida comum. Écomo se forças desconhecidas nos obrigassem a entrar na florestaà procura de Baba Yaga. O poema de Rumi sobre a casa de
hóspedes, citado antes, nos aconselha a agradecer a quem querque chegue, "porque cada um foi enviado como um guia do além".O choque das experiências de quase-morte levou milhares denorte-americanos a se abrir para o espírito. Em Closer to the Light,o medico Melvin Morse documenta experiências de quase-mortevividas por crianças. Uma dessas crianças, ao sair do estado decoma depois de quase ter se afogado, falou ao médico de umafigura dourada, um anjo, que a tirou da água escura e a levou por
um túnel onde ela encontrou o avô, que tinha morrido anos antes, edepois o Pai do Céu. Em todos esses relatos, as crianças contamque encontraram a "luz que faz todos nós" e a "luz onde tudo ébom". Dizem também: "Mais nada me dá medo."Um mestre sufi fala do acidente de motocicleta que sofreu aosdezenove anos.
"Eu estava em estado crítico, com ossos quebrados e lesões
internas. Quando minha mente clareou, lembrei que, por umsegundo depois do impacto, eu fiquei olhando para baixo, vendo decima o meu corpo e a rua. Eu enxergava, mas meu ser eracompletamente não-físico. Estava em paz, aliviado. Eu sabia quetinha uma escolha a fazer: ou voltava para o meu corpo ou meentregava àquela maravilhosa escuridão. Mas quando olhei para acena lá embaixo, nasceu um sentimento muito forte de amor poraquele corpo e pela vida. O amor e a alegria me fizeram voltar.
Soube depois que fiquei rindo e chorando na ambulância. Senti uma
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liberdade que estava além do físico, uma felicidade intensa quemotiva a minha vida espiritual há trinta e cinco anos. Eu amo estarealidade e segui o seu chamado."
Cada chamado do além nos convida a sair da visão corriqueira quetemos do mundo. Para uma professora de yoga kundalini, ochamado veio durante os trabalhos de parto."Minha respiração foi ficando cada vez mais rápida. Meu corpocomeçou a vibrar entre as contrações e se encheu de luz radiante.Não apenas a pélvis, mas o coração, a cabeça, cada parte de mimqueria se abrir. Eu me senti como o meu bebê e estava meexpandindo, contendo toda a energia do mundo. Mais tarde, meu
médico disse que eu o assustei. Ele tentou me dar um tranqüilizantepara me acalmar. Meus olhos estavam arregalados de espanto.Mas a partir desse momento eu quis trazer essa energia para aminha vida."O mundo cientifico e materialista da nossa cultura tenta esconderde nós a vasta fonte da vida, mas não pode negá-Ia. Muitas emuitas vezes ouvimos histórias, grandes e pequenas, do coração,do espírito, da alma redespertando para uma visão maior da
realidade. A doença também serve para nos empurrar para a frente. Um lamaocidental fez este relato:
"Vim para a Califórnia, entrei para uma comunidade e vivia um diadepois do outro. Então tive hepatite e fui me curar numa cabanaemprestada, nas Montanhas de Santa Cruz. Eu vomitava todas asnoites, estava com a pele toda amarela e me sentia no fim das
minhas forças, físicas e emocionais. Eu tinha abandonado tudo eestava confuso, sem saber o que fazer.Então, no meio da noite, comecei a ouvir um canto. Acordei e olheiatravés das gotas de chuva na janela ao lado da cama. Vi umhomem gordo sentado lá fora, segurando com a mão o chapéupreto. Na minha cabeça soavam gongos e cânticos. Ele ficou lá pormuito tempo. Finalmente, cai no sono. Na manhã seguinte, acordeie olhei no espelho: minha pele estava normal e eu estava melhor.
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na minha mão, dizendo: 'Coma isso. Você nunca mais será omesmo.' De fato: nunca mais fui o mesmo. Tive visões de regiõesespirituais e formas de arte que minha mente jamais conseguiriaimaginar. E então tive um incrível desabrochar. Morri e me dissolvi
no mundo flutuante: agonia, êxtase e depois mais nada. Percebique no fim a vida inteira é uma peregrinação espiritual, uma jornadade volta a essa compreensão. Depois disso, logo que pude fui paraa Índia."
Outro professor, que estudou matemática na Columbia University,em Nova York, relembra:
"Sempre tive interesse pelas leis da mente. Foi por isso que meinteressei pela matemática. Um dia, meu colega de quarto me deuuma omelete cheia de cogumelos psicodélicos e, depois de comê-la, os sons e as cores se intensificaram a um ponto até entãodesconhecido. Meu coração se derreteu, se abriu, e eu conseguisentir o mundo, amá-lo de verdade. Percebi que o amor liga todasas coisas.Subi até o Cloisters, o velho mosteiro em Fort Tryon Park, e as
pedras cantavam para mim. Fui visitar Merton. Desde esse dia vivonum mosteiro trapista. Já faz vinte e um anos."
Uma renomada professora zen começou a busca espiritual comviagens psicodélicas, mas percebeu que essas experiênciasvisionárias não bastavam.Foi então para a Coréia e para o Japão à procura de um mestrezen. Visitou muitos templos, sem achar o que procurava. De volta a
Kyoto, o lar do Zen, ela teve a idéia de tomar LSD e ir ao maissagrado dos templos da cidade."Estava a caminho, quando uma força semelhante a uma enormemão invisível me deteve. Fiquei assombrada. Era como se osdeuses não quisessem que eu fosse em frente. O que fazer? Aolado da estrada, vi os portões de um templo. Fui até lá e entrei. Ládentro havia um homenzinho sentado de pernas cruzadas,pregando num inglês muito simples, dizendo as coisas mais claras
que eu já tinha ouvido sobre a mente e o coração. Era o passo
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seguinte, exatamente o que eu procurava. Larguei minhas mochilasno chão e fiquei lá por doze anos."Muitos professores perceberam logo que as substânciaspsicodélicas eram um caminho limitado demais, que não
despertavam a mente nem abriam o coração de maneirasistemática. Como diz um professor budista:
"As substâncias psicodélicas fizeram parte do meu começo, mas eusabia que não bastavam. Decidi ir para os Himalaias. Fui convidadopara um puja conduzido por um velho lama tibetano nos arredoresde Dharamsala. Meu amigo e eu andamos uns dois quilômetrospela floresta de rododendros floridos até uma clareira perto de uma
queda d'água. As montanhas nevadas se erguiam ali perto. Seis ouoito lamas estavam sentados em volta de uma fogueira, despejandooferendas de manteiga no fogo, tocando sinos e tambores,praticando cânticos e mudras. E havia um segundo círculo à voltadeles, formado por melros. Minha mente parou. Senti que estavavendo uma coisa muito antiga, anterior à separação de homens eanimais. Eu sabia que estava na presença de um grande mistério eque o meu caminho era trabalhar com os professores que viviam
naquela realidade."
O chamado do além levou muitos professores da atualidade aaventuras que eles nunca teriam imaginado. Pir Vilayat Khan,mestre da Ordem Sufi, contou que o seu pai, Hazrat Inayat Khan,morreu quando ele tinha apenas dez anos. E que, no leito de morte,o pai lhe disse para procurar um grande sábio na nascente dos riosGanges e Jamuna, na Índia.
"Com dezenove anos, fui para a Índia por terra, quase sem dinheiro.Foi difícil. Numa cidade fui jogado na prisão sob suspeita de ser umespião paquistanês. Seguindo o Ganges, encontrei, acima dacidade encantada de Gangotri, um sábio extraordinário numacaverna de gelo. Esse sábio disse que a nascente dos rios Gangese Jamuna era um segredo e me indicou uma geleira além deJamnotri, já na encosta dos Himalaias.
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Segui a trilha. Já distante dos últimos seres humanos, vi pegadasna neve. Como eram muito grandes, fiquei com medo, pensandoque fosse um urso. Segui essas pegadas por algumas horas efinalmente cheguei a uma caverna. Na entrada, sentado como um
rei, estava um fantástico rishi. Ele me fez um sinal e entendi que erapara eu não entrar.Então sentei na neve de pernas cruzadas, fechei os olhos e,quando voltei a abrí-los, ele estava sorrindo. Ele sabia que eu falavainglês, pois disse: 'Por que veio tão longe para ver quem vocêdeveria ser?' Respondi: 'É maravilhoso me ver em você.' Então eledisse: 'Você não precisa de um guru.' Respondi: 'Meu guru é o meupai. Não estou procurando um guru.' Ele disse: 'Bom, se não está
procurando um guru, entre.'O rishi disse: 'Há outra caverna ali para você.' Então ele me ensinouuma prática: olhar para meu coração com o terceiro olho até sentirele se abrir como uma lótus. E assim eu fiz. Então ele disse:'Descanse na luz, não na luz física nem na imagem reflexa. Vá paraa verdadeira luz. É só isso que importa.'Ele não era o tipo de pessoa para se bater um papo. Estavatotalmente iluminado, repousando em samadhi. E disse: 'Está
chegando o tempo em que não haverá mais rishis vivendo emcavernas, como eu. Então, os seres iluminados terão que viver nomundo entre as pessoas.'Depois de vários dias, ele disse: 'Você já aprendeu o suficiente.'Percebi que tinha adquirido auto-suficiência, desapego eperspectiva. Tinha uma maravilhosa sensação de paz e felicidade enão queria ir embora, mas sabia que precisava voltar para o mundo.Esse foi um passo enorme da jornada, que vai durar a vida toda."
Parece impossível que não haja uma corrente espiritual, umacorrente de despertar em potencial que, no momento certo, estejaesperando por cada um de nós.
O lama Govinda contou a história de sua vida em The Way of theWhite Clouds. Posteriormente, acrescentou este relato:
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"No começo da minha estada na Índia, um velho peregrino tibetano,caminhando nos Himalaias, viu as bandeiras de oração de minhacasa na montanha e entrou. Eu estava fora, mas ele deu à mulherque cuidava da minha casa, por quem eu tinha muita afeição, um
presente para o seu 'filho' e continuou sua caminhada, que durariaum ano, até os santuários. O presente era um livro que nãoconsegui ler e que depois de algum tempo guardei no sótão. Depoisde anos estudando o Budismo Tibetano, eu me tomei um lama, masnão sabia o que fazer. Então, fui convidado para refazer a traduçãooriginal do Livro Tibetano dos Mortos. Infelizmente, não haviacópias fora do Tibete. Três dias depois, subi ao sótão e encontreipor acaso o velho livro que o tibetano tinha me dado. Era uma
edição original do Livro Tibetano dos Mortos impressa manualmenteem Lhasa! Entrei em contato com Evans-Wentz e comecei atrabalhar imediatamente. Tudo o que escrevi depois, o trabalho detoda a minha vida, surgiu porque tinha recebido 'por acaso' umpresente de um velho peregrino."
A VOLTA PARA CASA
Muitas dessas histórias falam de viagens, mas seu verdadeiro temaé a descoberta de nosso lar espiritual. O propósito de recontaressas histórias exóticas e um pouco mágicas não é compará-Iascom a nossa. Cada um de nós tem a sua história singular, o seuchamado. Mas esses relatos podem provocar um choque que nosfaça lembrar que estamos todos aqui com uma incumbência.No momento certo, todos nós vamos despertar. Talvez o despertarfique escondido no sótão durante anos, enquanto cuidamos dos
filhos ou da carreira profissional. Mas algum dia vai aparecer,derrubar o portão e dizer: "Pronto ou não, cá estou eu."Estar vivo é por si só um mistério. Os indícios de nossa verdadeiranatureza estão sempre à nossa volta. Quando a mente se abre, ocorpo se modifica ou o coração é tocado, todos os elementos davida espiritual são revelados. Grandes questões, sofrimentoinesperado, inocência original - qualquer uma dessas coisas nosleva além da rotina cotidiana, "da burocracia do ego", como disse o
professor tibetano Chogyam Trungpa. Cada dia traz seus próprios
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chamados para o espírito, alguns pequenos, outros grandes, algunssurpreendentes, outros comuns.Um praticante zen descobriu, em 1969, os livros de Alan Wattssobre Zen. Os livros atiçaram sua curiosidade e seu espírito e o
fizeram lembrar que a vida é mais do que a vida de advogado e paide família que ele levava na época. Abriu a lista telefônica na letra Ze em poucos minutos estava falando com o roshi do San FranciscoZen Center. Pediu o Programa do centro e, com o apoio do mestre,começou a praticar. Trinta anos depois, ainda praticando comvontade, ele diz: "Minha vida se transformou depois daqueletelefonema."
Ainda mais comum é a história contada por outro mestre da
meditação, que há trinta anos era um esportista entusiasmado. Ogolfe era o seu esporte favorito. Com o tempo, foi percebendo que o
jogo era em grande parte determinado pela mente e pelo espírito.
"Procurei me aquietar. Fiquei pasmo ao perceber que minha menteestava agitada e fora de controle. Uma amiga sugeriu que eu fossecom ela à aula de yoga e meditação. Apesar da dificuldade que tivepara começar a meditar, foi como voltar para casa."
Os indícios estão sempre ai, mas a família e a educação nosensinam a fingir que não os vemos. Uma mulher judia, agora rabina,disse que sua família não dava atenção a ensinamentos espirituais.
As ocasionais visitas ao templo reformista eram motivadas pelaresponsabilidade social e pela comida judaica. Então ela teve que ir,como escreve Rilke, "para uma igreja no Oriente que nosso paiesqueceu". Durante dez anos, procurou seu caminho entre os
nativos norte-americanos. Então, circunstâncias curiosas a levarama Jerusalém, onde conheceu a mulher de um velho hassidim que afez lembrar da herança de milhares de anos de espírito dentro desua própria tradição.
"Depois de visitar o Muro das Lamentações, a mulher do rabino,Miriam, me levou ao quarto dos fundos. Nós nos sentamos ecomeçamos a conversar. Ela me contou que suas avós acendiam
as velas, partiam o pão e criavam os filhos de maneira sagrada. Era
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uma vida governada pela Torah: cada ato, um ato sagrado. Erasemelhante à vida dos nativos norte-americanos que eu tantoamava, mas quando ela pegou umas folhas finas de papel com ummanuscrito kabalista, percebi que eu também fazia parte dessa
antiga linhagem, que a herança do espírito corria pelas minhasveias e pelo meu coração."
Não é só na floresta que Baba Yaga vive: ela vive perto de nós. Elaé parte de nossa história familiar. Podemos ir para a Índia ou paraJerusalém - e algumas histórias mágicas dos mestres nos levam aacreditar que é assim o começo da vida espiritual. Mas ela começatambém quando cuidamos do jardim, quando encontramos a casa
limpa depois de uma viagem, quando ouvimos a execução inspiradade uma peça musical, na canção de um poema, no vôo de umpássaro.Para mim, crescer na costa oeste significou o prazer de ver vaga-lumes no verão. Mas minha filha, que nasceu na Califórnia, nuncatinha visto um vaga-lume. Em nossas viagens, descobrimos quehavia vaga-lumes nas noites tropicais de Bali. Uma noite, espereique ela dormisse, puxei o mosquiteiro que envolvia sua cama e sai
para pegar vaga-lumes. Quando voltei, ela ainda dormia. Soltei osvaga-lumes dentro do mosquiteiro e a acordei de mansinho. Elaficou maravilhada com aqueles rastros luminosos na noite, até quedeixamos os vaga-lumes sair. Como é fantástico, como éimprovável que haja belos insetos com luzinhas que piscam - masnão tão fantástico quanto um coração cheio de amor. Nossocoração brilha como os vaga-lumes, com a mesma luz do sol e dalua.
Dentro de nós há uma vontade secreta de lembrar dessa luz, desair do tempo, de sentir nosso verdadeiro lugar neste mundodançante. É onde começamos e para onde vamos voltar.Podemos vê-lo hoje mesmo ou esperar até o último dia, mas ochamado para o mistério se apresenta repetidamente aos nossosolhos e ao nosso coração - como escreveu Mary Oliver.
Quando a morte vier
como urso faminto no outono;
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quando a morte vier e tirar as moedas brilhantes da bolsa
para me comprar, e fechar a bolsa de novo...
Quero passar pela porta, cheia de curiosidade, me perguntando:como será que é, aquela cabana de escuridão?
E por isso vejo tudocomo uma irmandade...
e para mim cada vida é uma flor, comumcomo uma margarida do campo, e tão singular...
e cada corpo um leão de coragem, e uma coisapreciosa para a terra.
Quando acabar, eu quero dizer: durante toda a minha vidafui a noiva da perplexidade.Fui o noivo, tomando o mundo nos braços...
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2OS GUARDIÕES DO CORAÇÃO:
ANJOS DE LUZ, OCEANO DE LÁGRIMAS
A segurança é em grande parte uma superstição. Ela não existe nanatureza, nem os filhos dos seres humanos como um todo aexperimentam. A longo prazo, evitar o perigo não é mais seguro doque a exposição total. Ou a vida é uma aventura ousada ou não énada.HELEN KELLER
Uma vez chamados para a aventura interior, começamos a seguiros rastros do boi sagrado na floresta. Examinando a mente ou ocoração, descobrimos que eles contêm todo o nosso mundo.Externamente, os telescópios revelam a vastidão do espaço, comsua miríade de galáxias e novas estrelas. Internamente,começamos a descobrir regiões igualmente vastas na consciência,de onde surgem todas as coisas. Há quem diga que é preciso tercuidado quando resolvemos seguir os rastros do boi sagrado, pois a
jornada espiritual nos faz pôr em dúvida todas as coisas da vida. Háquem chegue a nos advertir.Como sempre, o professor tibetano Chogyam Trungpa chegouatrasado para fazer a palestra. Dirigindo-se à sala lotada, disse quereembolsaria quem não quisesse ficar. Avisou aos novatos que overdadeiro caminho espiritual é árduo, trazendo "uma injúria depoisda outra". Sugeriu que os que tivessem dúvidas nem começassem."Se não começaram, é melhor nem começar." Então olhou
fixamente para todos e disse: "Mas se começaram, é melhorterminar."
UMA PRÁTICA DIGNA
Vivemos mima época desordenada, complicada, perturbada eexigente, e no entanto a prática espiritual exige atenção constante.
Assim, em quase todas as viagens espirituais, a primeira tarefa é
nos aquietar para ouvir a voz do coração, para ouvir o que está
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além das preocupações cotidianas. Seja na prece, na meditação, navisualização ou no jejum, temos que nos afastar dos nossos papéishabituais, dos dias atarefados guiados pelo piloto automático.Temos que descobrir uma forma de nos tomar receptivos e abertos.
Não basta detectar o anseio espiritual. O coração precisa deinspiração para a renovação, precisa de apoio para encontrar operdão, para despertar a liberdade, para se abrir para a graça.Temos que encontrar uma embarcação, uma prática digna que nosleve nessa viagem, uma disciplina confiável que nos traga de voltapara o presente e nos abra para o mistério - não para nostransformar em outra pessoa, nem para nos corrigir, mas para quepossamos ver quem realmente somos.
Para isso, as grandes tradições espirituais oferecem centenas demeios. Algumas práticas usam a respiração para aquietar a mente eabrir o coração. Existem disciplinas do corpo baseadas nameditação que transcendem a avidez do pequeno eu e nos fazemdesabrochar. Existem mantras e rituais de devoção, preces erosários, práticas diárias de atenção sagrada; existe a indagaçãosecreta do coração. Numa comunidade nativa norte-americana, os
jovens jejuavam dias e dias em busca de visões, girando sem parar
uma pedrinha em tomo de uma pedra maior, como a lua em tomoda terra, até que surgisse a resposta para as suas perguntas.No início podemos experimentar várias tradições e práticas, mas nofim temos que escolher uma prática e segui-Ia de todo o coração. Oque importa é a sinceridade que trazemos para o caminho queescolhemos, a perseverança e a disposição de permanecer com elee ver o que se abre dentro de nós.Uma prática verdadeira nos leva para o silêncio da floresta. Seja
onde for o começo, temos que parar e ouvir. Há uma história daépoca em que Bill Moyers era secretário de Imprensa do PresidenteLyndon Johnson. Num almoço na Casa Branca, Moyers, que tinhaestudado para ser pastor, foi convidado a fazer a oração. "Fale alto,Bill", pediu Johnson, "não estou ouvindo nada." Moyers respondeusuavemente: "Eu não estava me dirigindo a você, presidente."O que esperar quando entramos na floresta para ouvir melhor amais silenciosa das falas? Os primeiros passos para dentro da
floresta - seja através do ritual, da prece ou da meditação - trazem
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um pouco de perplexidade e suaves revelações. Quando a atençãosincera começa a separar a realidade do presente da interminávelcascata de pensamentos, o mundo brilha com uma beleza radiante.Percebemos que a nossa vida é controlada por opiniões e estados
interiores antes despercebidos. Despertamos para padrões deemoções e hábitos. Começamos a sentir os nossos conflitos daperspectiva mais ampla da imensa corrente da prática queescolhemos. Nós nos abrimos mais a cada passo.Uma história tradicional sueca nos dá uma idéia da fase seguinte da
jornada. Por causa de percalços dos pais, uma jovem princesachamada Aris foi prometida em casamento a um terrível dragão.Quando o rei e a rainha lhe revelaram sua sina, ela ficou
apavorada. Mas, recuperando a razão, saiu para procurar umamulher sábia que vivia além do mercado. Essa mulher tinha criadodoze filhos e vinte e nove netos e conhecia os dragões e oshomens.
A mulher sábia disse a Aris que ela tinha de casar com o dragão,mas que havia a maneira certa de lidar com ele. Deu, então,instruções para a noite de núpcias. Em especial, recomendou àprincesa que usasse dez vestidos bonitos, um em cima do outro.
Chegou o dia do casamento. Foi oferecida uma festa no castelo edepois o dragão levou a princesa a seus aposentos. Quando odragão se aproximou da noiva, ela o deteve, dizendo que precisavatirar a roupa do casamento com cuidado antes de oferecer seucoração a ele. E ele também, acrescentou ela (instruída pela mulhersábia), tinha que tirar sua roupa. Ele concordou alegremente."A cada camada de roupa que eu tirar, você também deve tirar umacamada." Tirando o primeiro vestido, a princesa observou o dragão
tirar a camada externa de sua armadura de escamas. Doeu, masele já tinha feito isso várias vezes. Mas então a princesa tirou outrovestido e mais outro. A cada vestido, o dragão se via obrigado atirar outra camada de escamas. No quinto vestido, o dragãocomeçou a chorar lágrimas de dor. Mas a princesa continuou.
A cada camada, a pele do dragão ficava mais macia e sua formamenos definida. Ele ia ficando cada vez mais leve. Quando aprincesa tirou o décimo vestido, o dragão tirou o último vestígio da
forma de dragão e emergiu como homem, um belo príncipe com
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casamento sagrado, não é possível pular para o fim da história eviver felizes para sempre. Temos que passar pelo medo de casarcom o dragão, pela busca do conselho sábio e pelo longo processode abandonar os hábitos dolorosos a que nos agarramos. É um
processo de desapego lento e difícil, que nos faz despertar dofeitiço.
LIVRE DAS ESCAMAS DO CORPO
A maioria das pessoas diz que seus primeiros anos de práticaespiritual serviram para tirar as escamas do dragão. Temos aexperiência direta dessas camadas: no corpo, no coração e na
mente. A primeira camada de escamas a ser retirada, seja atravésda prece, da meditação ou da devoção, é a das tensões queguardamos no corpo. Basta atingir uma certa quietude para que asáreas de contração se tomem aparentes: a rigidez nos ombros, nascostas, nos maxilares ou nas pernas. Ao longo da vida, sempre quenos deparamos com o conflito e o stress, nós nos contraímos damesma maneira, construindo o que Wilhelm Reich chama de"couraça do caráter".
Algumas tradições liberam a tensão física, que se manifesta narespiração e no corpo, através de técnicas como a yoga, o taí chi ouo movimento sufi. Quando essas práticas são usadas comsabedoria, para libertar o corpo e não para dominá-lo, as tensõescomeçam a diminuir e a sensação de contração dá lugar a umanova flexibilidade.Mas mesmo nas tradições sem práticas físicas, as camadas docorpo se manifestam e precisam ser administradas. Nas horas de
prece, meditação ou contemplação, aumenta a tensão e a dor. Oque estava contido há anos começa a vir à tona. Diz um estudante:
"No começo, eram os joelhos que doíam, e eu punha a culpa nameditação. Mas então os ombros e o pescoço ficaram maisquentes, as costas doloridas nos pontos de mais rigidez. A tensãono corpo continuou a crescer. Às vezes, era difícil respirar fundo.Lembranças e velhas mágoas começaram a vir à tona. Era tão
desagradável que eu tentava afastá-Ias. Tentei meditar deitado, no
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colchonete mais macio que encontrei, esperando que a dorsumisse. Mas, para minha surpresa, mesmo deitado, foi só prestaratenção que lá estava a tensão esperando por mim. Lutei com omeu corpo por muito tempo, anos. Ele só começou a se soltar
quando aprendi a aceitar até a dor mais profunda e a tratá-Ia combondade. Agora isso vai e vem. Que bênção seria enfim aceitar omeu corpo."
Junto com as tensões do corpo, surgem também camadas deinquietação e resistência. É como o esforço para se acalmar nomeio de um dia muito agitado. No começo, mal conseguimos ficarsentados - temos tantas idéias e responsabilidades. Dentro de nós
há uma energia febril. Mas a prática da prece, da meditação ou dadevoção exige entrega constante, perseverança em meio a todas asformas de inquietação e resistência. Uma professora lembra o iníciode sua prática de cem mil prosternações:
"Nos meus primeiros anos de devoção tibetana tradicional e práticade prosternações, todo o meu esforço era para continuar. Eusempre fui muito ocupada. Para mim, nunca foi fácil ficar quieta. Eu
estava sempre abrindo a geladeira, ligando a TV, telefonando paraum amigo. Devia ser solidão e dor oculta no corpo. Comecei apraticar porque não queria mais fugir de mim mesma. Achei queessa prática, que me obrigava a me curvar e a me movimentar, eramais fácil do que ficar sentada, mas as resistências foram asmesmas. Aprendi que não podia fugir de mim mesma. Quem seentrega realmente a uma prática, tem que se ater a ela. Háperíodos muito difíceis, mas no fim acaba funcionando."
Felizmente, assim como no caso das peles do dragão, nem tudo édor. Há também a leveza que sentimos a cada vestido que é tirado,como se os anjos trouxessem bênçãos para alternar com as nossaslágrimas. Há momentos de calma maravilhosa, que abrem ossentidos e restauram a inocência do coração. Um monge cristãorelata:
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"Eu estava meditando no jardim do mosteiro: andava de um ladopara o outro, recitando uma prece e respirando suavemente a cadapasso para me fumar. De repente, voltei a ser um garotinho de doisanos, dando meus primeiros passos. Foi glorioso. O prazer de pôr o
pé no chão, a grama macia, o cheiro de terra e de rosas. Todas asplantas e insetos ficaram muito maiores, como quando eu erapequeno. Tudo ficou tão vivo. Senti que faria qualquer coisa paramanter o contato com esse coração puro."
TROCA DAS PELES DO CORAÇÃO
No empenho para deixar o corpo mais solto e mais aberto, nós nos
deparamos inevitavelmente com a necessidade de abrir e curar ocoração. As escamas do coração aparecem primeiro em forma deenergias inconscientes que provocam contração. Os sufis aschamam de "Nafs", os budistas e hinduístas falam de obstáculos aocoração puro, os cristãos lutam com os sete pecados mortais, comoa luxúria e o orgulho. Em todas as jornadas espirituais, temos queenfrentar diretamente as energias presentes na avidez, na raiva, noorgulho, no medo, na inquietação e na dúvida - os hábitos que
fecham o coração.Inicialmente, podemos descobrir como o coração se fecha quandosucumbimos ao poder de nossa própria avidez. A mente carente oua miséria em nós querem mais do que temos agora. E tentamosusar a experiência externa para suprir a necessidade espiritual.Depois de trinta anos de prática, uma professora recorda:
"Meus pais eram do tipo espiritualista, mas nos anos sessenta voltei
minha energia para o impulso sexual e para o rock and roll. Eu nãoqueria me aproximar de Deus sem passar pelos degraus de baixo.Durante anos vi os homens e a sexualidade como o caminho para afelicidade.Eu me tomei uma atriz de sucesso razoável. Finalmente, tive aminha dose de sexo e percebi que essa não era a resposta. Euainda queria alguma coisa. Minha mãe sempre me convidava para ira um retiro de yoga, mas eu nunca quis ir porque tinha medo que
ela prejudicasse meu estilo sexual. Um dia eu fui, e foi exatamente
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A dor e a mágoa que surgem quando começamos a desabrocharsão ao mesmo tempo pessoais e universais. Muitos professoresdizem que não esperavam tal dor, mas o coração tem a próprialógica. Um respeitado professor zen relata:
"Depois de vários anos flertando com o Zen, tinha chegado omomento de me comprometer. Eu me inscrevi para o treinamentode inverno: três meses seguidos de treinamento intensivo. Como eu
já conseguia ficar calmo e confortável quando meditava, esperavaque essa clareza zen só crescesse. Mas não foi assim. Passei todoo período de prática chorando e chorei metade do inverno seguinte.Eu me lamentei pelo conflito e pela insegurança de antes, pelos
relacionamentos perdidos, por ter usado mal meu corpo, pelasmágoas, pela morte de meu pai. Só então, depois de dois anos,minha meditação se abriu para um silêncio profundo e imenso."
A pele de dragão das lágrimas não derramadas cobre a tristeza e oanseio que nos liga ao domínio da tristeza. Às vezes a tristezaresulta de um só fato: a morte dos pais, uma história familiar dealcoolismo e maus-tratos, uma perda importante. Outras vezes é o
acúmulo de milhares de momentos em que nos faltoureconhecimento e apoio.Num poema chamado "De Volta a Maio de 1937", Sharion Olds falada necessidade de reconhecer as tristezas que nos fizeram ser apessoa que somos agora. Ela vê os pais como os garotos inocentesque eram quando se conheceram.
Eu os vejo de pé nos portões formais do colégio,
Vejo meu pai saindoPelo arco de arenito ocre...Vejo minha mãe com alguns livros apoiados no quadril...Eles estão prestes a se formar, prestes a se casar...Quero ir até eles e dizer: Parem,não façam isso - ela é a mulher errada,ele é o homem errado, vocês vão fazer coisasque nem imaginam agora,
vocês vão fazer coisas ruins para os filhos...
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mas eu não vou. Quero viver. Euos pego como bonequinhos de papel,homem e mulher, e bato um no outrocomo se tirasse faíscas
de lascas de pedra. Eu digo:Façam, seja o que for, eeu vou falar sobre isso.
Uma prática espiritual digna reconhece as perdas que sofremos,conta a nossa história e nos arranca lágrimas para nos libertar dopassado. O poeta sufi Ghalib convida as "nuvens da tempestade ase desfazer totalmente em lágrimas", para que o céu volte a ficar
vasto e limpo.Mesmo na dor, na raiva ou na inquietação, percebemos que grandeparte do trabalho com as limitações do coração está relacionadoaos nossos "negócios inacabados". Nós nos deparamos com asforças e situações que nos fecharam para nós mesmos e para osoutros. O que é conflitante, não pranteado, inacabado, se revelalogo que nos tornamos atentos. É nesse ponto que temos queaprender a trabalhar respeitosamente com as forças profundas que
governam a vida humana. São as camadas dessas energias quecriam a contração e o sofrimento. Soltá-Ias traz o despertar e aliberação.
AS CAMADAS DA MENTE
Assim como no caso do corpo e do coração, quando examinamos amente também nos deparamos com a contração. O mestre de
meditação Ajahn Buddhadasa diz que o mundo moderno está"perdido em pensamentos". A mente moderna retém camadas dedúvida, ambição, medo e convicção, mil histórias e auto-imagens,passadas e futuras, que formam nossa estrutura mental defensiva.Vemos a freqüência com que a mente descarta o momentopresente para chegar a outro lugar, tornar-se outra. Na prática daprece, da meditação ou do serviço altruísta, enfrentamos ospensamentos repetitivos e os pontos de vista limitantes que criam a
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estreita noção de eu. Nosso cálice pensante está cheio; nele nãocabe mais nada.
"Nos anos de noviciado, nós nos entregávamos a horas de práticas
em grupo, aos cânticos, ao ciclo diário de prece coletiva, ao estudodas escrituras, à devoção e aos serviços. Nesses primeiros meses,perdida em fantasias ou histórias, eu estava sempre em outro lugar.Ficava imaginando que era uma grande santa, que provava paraminha família que estava certa, que voltava para os que tinham medesprezado. Ou senão eu me preocupava com o passado e ficavadizendo para mim mesma ou para as outras como poderia oudeveria ter sido. A madre superiora me repreendia, dizendo que eu
me perdia em histórias em vez de estar onde estava - que assimacabaria passando em branco pelo noviciado."
Emaranhados em opiniões e pensamentos sobre nós mesmos,sobre os outros e sobre o mundo, não conseguimos estar ondeestamos. É como o pintor zen que pintou na parede de sua casa umretrato em tamanho natural de um tigre. Dias depois, chegou emcasa perdido em pensamentos e levou um susto ao ver o tigre,
esquecendo que era criação sua.Quando nos propomos a aquietar a mente através da meditação ouda prece, percebemos o quanto nossa vida é governada por essashistórias inconscientes. Don Juan, o guia xamânico de CarlosCastaneda, diz isso da seguinte maneira:
Você fala demais com você mesmo. Nisso você não é o único. Todomundo faz isso. Sustentamos o nosso mundo com o diálogo interior.
Um homem ou mulher de conhecimento tem consciência de que omundo vai mudar totalmente logo que parar de conversar consigomesmo.
Começamos a conhecer os temas do diálogo interior: ambição oudesmerecimento, incerteza ou esperança, ódio de si mesmo ouauto-aperfeiçoamento. As histórias refletem nosso condicionamentopessoal e cultural. Uma vez, um grupo de psicólogos norte-
americanos teve um encontro com o Dalai Lama, que lhes
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perguntou quais as dificuldades mais comuns entre os estudantesocidentais do Budismo. Uma das dificuldades mais citadas foi ódiode si mesmo. A reação do Dalai Lama foi de incredulidade, pois oódio de si mesmo é desconhecido na cultura tibetana. Ele deu uma
volta na sala, perguntando a todos: "Você já teve ódio de simesmo?" Quase todos responderam que sim.
As opiniões fixas que temos sobre nós mesmos estão no centro dashistórias que contamos. É como se atuássemos num filme fazendoo papel do deprimido, do bonito, do tolerante, do palhaço, da vítimazangada, daquele de quem ninguém mais vai se aproveitar. Essespensamentos e pressupostos são tão poderosos que usamosrepetidamente sua energia. Esses padrões de pensamento,
juntamente com as couraças no corpo e no coração, criam umanoção limitada de eu. Às vezes são chamados "corpo de medo".Quando vivemos do corpo de medo, temos uma vida que se limitaao hábito e à reação.Uma prática digna desmascara essas histórias e seus pontos devista limitantes, além de abrir o corpo e o coração. Começamos areconhecer padrões nessas contrações e a perceber que elas nãosão a realidade fundamental. Aprendemos a sair da velha pele, da
noção estreita de eu, para a realidade do presente. Aprendemos adeixar o corpo mais à vontade, o coração mais temo e a nos livrardas velhas histórias da mente. É o momento em que vemos o quesão na verdade as peles de dragão - um feitiço kármico que não émais necessário - e em que o príncipe e a princesa revelam seu sertemo e vulnerável.Inocentes e abertos, voltamos à Simplicidade da experiência direta.Quando saímos da corrente de pensamentos, deixando para lá o
"como foi", o "como deveria ter sido" e o "como deveríamos ser",entramos no presente eterno.Mas até mesmo essa troca de pele, essa libertação do corpo, docoração e da mente, é apenas uma preparação para uma jornadamais profunda. O príncipe e a princesa se viram. Agora, juntos,terão de enfrentar a vida e a morte diante deles.
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3OS FOGOS DA INICIAÇÃO
Quase morrer é uma coisa que recomendo a todo mundo, poisdesenvolve caráter. Ganhamos uma perspectiva muito mais clarado que é importante e do que não é, do valor e da beleza da vida.
ASTRÔNOMO CARL SAGAN,QUANDO SOBREVIVEU A UMA DOENÇA QUASE FATAL
Vá em frente, acenda suas velas, queime seu incenso, toque seussinos e clame a Deus, mas cuidado, porque Deus virá e o porá naSua bigorna, acenderá a forja e baterá e baterá até transformar o
latão em ouro puro.SANT KESHAVADAS
É hora de entrar mais fundo na floresta. O que descrevemos atéagora é uma preparação. Começamos a liberar o que há muitotempo está retido no corpo; a nos abrir conscientemente para asemoções profundas que, em grande parte, motivam nossaexperiência; a trabalhar com as crenças e padrões repetitivos da
mente.Por meio desse trabalho, chegamos a uma clareira e nos vemosfrente a frente com o boi sagrado, ouvindo sua respiração calma eregular. Segundo a doutrina zen, temos que domar o poderoso boipara depois soltá-lo juntamente com o eu. Só então vamos entrarem harmonia unificada com o mundo. Liberar as energias da vidaexige um processo radical de transformação, que muitas vezes éacompanhado de um duro ritual de iniciação.
Na prática espiritual, a iniciação não é uma simples cerimônia - éuma tarefa difícil, ao longo da qual o coração amadurece. Apassagem pelas provações do peno do de iniciação modifica avisão que temos de nós mesmos e do mundo. Conseguimos assimdespertar em nós a autoridade espiritual e o saber interior, umaconfiança que vai nos amparar nas dificuldades e diante da morte.
A iniciação impõe a nós uma mudança de identidade que favorece atranscendência da noção estreita de eu, a liberação do "corpo de
medo" e o despertar da sabedoria, do amor e do destemor eternos.
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O processo transformador da iniciação nem sempre é externamenteóbvio. Para alguns é como uma lenta espiral, um refazer constantee repetitivo do ser interior. Aos poucos, o coração aprofunda osaber, a compaixão e a confiança, graças a centenas de milhares
de práticas repetidas e da sinceridade de uma disciplina espiritualregular. O Buda comparou esse processo ao fundo do oceano, quedesce pouco a pouco até as profundezas.Uma vez, os alunos do professor Dainan Katagiri Roshi pediramque ele falasse sobre a fé e o calor que irradiava: "É isso quequeremos aprender com você. Como é que se aprende?" O mestrerespondeu: "Quem me vê hoje não vê os anos que passei com omeu professor!" Ele contou que praticou ano após ano, vivendo com
simplicidade, ouvindo os mesmos ensinamentos muitas e muitasvezes, meditando todas as manhãs, cumprindo os rituais do templo.Esse é o lento caminho da iniciação: assumir vezes sem fim umaatitude de atenção e respeito, pôr-se a assar no fomo até estartotalmente cozido, amadurecido, transformado.Mas é mais comum a iniciação trazer uma mudança intensa,radical, rápida. Essa transformação costuma assumir a formaarquetípica do rito de passagem. Um rito de passagem é como
passar por um desfiladeiro tão estreito que não nos permite levarbagagem - um renascimento que nos obriga a abandonar a antigavida. O risco é grande, às vezes a morte passa raspando, mas sóassim adquirimos coragem e encontramos aquilo dentro de nós queestá além da morte.
Às vezes a iniciação acontece espontaneamente. Perdas, crises oudoenças, quando administradas com sabedoria, fazem o coraçãocrescer. Mas às vezes é preciso criar deliberadamente uma
iniciação. Seja como for, a necessidade de iniciação é universal, epara a juventude moderna essa necessidade é desesperada. Comonão há nada que se assemelhe a uma iniciação espiritual ao mundodos homens e das mulheres, os jovens buscam a iniciação naestrada ou na rua, em carros velozes, nas drogas, no sexoperigoso, nas armas. Por mais inquietante que seja, essecomportamento tem sua raiz numa verdade fundamental: anecessidade de crescer. Uma das motivações para se buscar a
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iniciação, e uma de suas ferramentas, é a consciência cada vezmaior da morte. Um lama tibetano norte-americano me contou:
"Meus pais morreram quando eu tinha só dezessete ou dezoito
anos. A realidade da morte provocou um choque enorme,inesperado, e levei muito tempo para superar a dor. Sem meuspais, senti que não havia mais nada entre mim e a morte. Essaconstatação me empurrou para a prática espiritual. É espantoso queseja tão difícil perceber a iminência da morte."
Don Juan, o xamã de Carlos Castaneda, recomenda fazer da morteum conselheiro:
A morte é a nossa eterna companheira. Ela está sempre à nossaesquerda, à distância de um braço. Ela o observa sempre e vaicontinuar a observá-lo até o dia que bater no seu ombro.Quando estiver impaciente... volte-se para a esquerda e peça oconselho da morte. Muita mesquinharia será deixada de lado se amorte lhe fizer um gesto, se você tiver um vislumbre dela ousimplesmente perceber que sua companheira está ali a observá-lo.
Quem se entrega ao caminho espiritual tem que enfrentar o medoda morte ainda em vida. Na prática mística cristã, isso é "reviver omistério da crucificação e da ressurreição". Na meditação budista, é"aprender a morrer antes da morte". Como a morte vai nos levar dequalquer forma, por que passar a vida com medo? Por que nãomorrer para o jeito antigo e ficar livre para viver?
NACHIKETA E O SENHOR DA MORTE
Há uma antiga história indiana que fala de um jovem, Nachiketa,que ficou frente a frente com a morte. Com a morte de váriosamigos, Nachiketa sentiu a brevidade da vida. Percebeu que,divorciadas da compreensão espiritual, as ocupações mundanassão superficiais. Filho de um rico mercador, ele sabia que afelicidade do coração não vem das propriedades que se tem. Isso
explica o que ele fez quando o pai, instigado pelos sacerdotes
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Brahim da comunidade, resolveu fazer uma grande doação aotemplo para garantir um bom renascer na outra vida. Essa doaçãoseria feita no centro da cidade, na presença de todos. A idéia decomercializar virtude e mérito publicamente horrorizou Nachiketa.
O dia chegou. Em seu discurso, o pai disse: "Dou o meu gado, omeu ouro e tudo o que tenho de valor aos sacerdotes do templo."Mas Nachiketa observou: "Tudo o que tem de valor? E eu, seufilho?" Publicamente humilhado e ofendido por essas palavras, o paide Nachiketa respondeu zangado: "Vou dá-lo também. Vou dá-Ia àMorte!" Os olhos de Nachiketa brilharam e ele respondeu: "Aceito."E foi embora.Nachiketa chegou a um ponto remoto da floresta e ficou esperando
que a Morte se revelasse. Por três dias e três noites ficou sentadoali, concentrado e imóvel, determinado a encontrar o boi branco eolhá-lo nos olhos, determinado a enfrentar a Morte em sua buscaespiritual. Concentrado apesar da fome, da dor e da exaustão,Nachiketa chegou finalmente à terra de Yama, o Rei da Morte,também conhecido como "Guardião das Contas". Lá, os trêsajudantes da Morte - a pestilência, a fome e a guerra - lhe disseramque o Senhor Yama estava fora. "Ele foi receber os rendimentos."
Nachiketa respondeu: "Está bem. Eu espero."Três dias depois, quando o Senhor da Morte voltou, seus ajudanteslhe disseram que um jovem estranho tinha vindo procurá-lo. Quemouve falar da Morte sempre corre na outra direção, mas esse jovemestava esperando havia três dias. O Senhor Yama cumprimentouNachiketa e lhe pediu desculpas por tê-lo feito esperar. "Bem-vindoao meu reino. Vejo que é um homem dedicado à jornada. E eu odeixei esperando. Vou compensá-Io pelos três dias de espera com
uma oferta. Você pode escolher três graças para a sua jornada."Enquanto viajava e esperava, Nachiketa tinha entrado no limiarentre os mundos, onde a verdade é revelada. Agora, três graças lheeram oferecidas. Em seu luminoso estado mental, Nachiketa pediuperdão para si mesmo e para tudo com que tinha tido contato. "Quemeu pai me olhe com a alegria que sentiu no dia em que eu nasci."Nachiketa sabia que para continuar a jornada tinha que abrir mãodo passado e se reconciliar com o que havia de incompleto no seu
coração.
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Ao pedir perdão para si mesmo, Nachiketa perdoou o pai, porque operdão tem sempre mão dupla. Perdoar não é uma simples questãode vontade e nem sempre é fácil. Às vezes, para perdoar, temosque nos submeter a um longo processo de indignidade, mágoa e
pesar. Perdoar não significa relevar as injustiças do passado.Podemos jurar: "Nunca mais vou deixar que isso aconteça." Mas nofim basta deixar para lá a dor e o ódio do passado. Graças a essabondade que tudo suaviza, nós nos livramos da repetição cega, delevar a dor do passado para o futuro. Perdoar não é tirar a outrapessoa do coração: Nachiketa sabia que, se tirasse o pai docoração, não poderia continuar o caminho com todo o seu ser.O beneficio trazido pelo perdão é a reunião com a vida, que deixou
o coração de Nachiketa aberto e claro. Olhando-o de frente, oSenhor Yama observou: "Seu primeiro pedido foi sábio, Nachiketa.Qual é o segundo? Fale!" Depois de um momento de reflexão,Nachiketa falou: "Peço a graça do fogo interior."Nachiketa sabia que para ter sucesso na jornada espiritualprecisava de ardor e coragem para seguir o caminho com todo oseu ser. Assim, pediu força para se entregar à busca: fogo interior éenergia sincera, paixão espiritual, Shakti, intensidade de ser.
Esse fogo, ou plenitude, não deve ser confundido com a ambição,avidez ou sofreguidão na realização de uma meta. Não é umesforço para nos melhorar ou para obter alguma coisa. Quandopediu essa intensidade, Nachiketa não pretendia chegar ao fim deuma jornada imaginada, mas estar totalmente onde estava.Precisamos da energia de nossa presença total para encontraredomar o boi sagrado. O Senhor Yama elogiou outra vez asabedoria de Nachiketa, abençoando-o com a força interior.
Livre das restrições de antigos conflitos e cheio de perseverança eenergia, Nachiketa tinha agora quase tudo que é preciso parapassar pela iniciação. Finalmente, o Senhor da Morte lhe disse parafazer o último pedido. Depois de refletir, Nachiketa olhou para aMorte e disse: "Peço o que é imortal." Surpresa, a Morte lembrou aoaudacioso jovem que esse pedido era o último e que ele podia pedirqualquer coisa. E dito isso conjurou visões do que Nachiketapoderia escolher: um harém de belas donzelas para lhe fazer
companhia na jornada, um carro de guerra dourado puxado pelos
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cavalos mais velozes do mundo, um palácio onde Nachiketareinaria.Nachiketa viu tudo isso e muito mais. "Por que não escolher umadessas coisas?", perguntou-lhe a Morte. Mas Nachiketa era um
jovem determinado, que não se deixava convencer com facilidade.Quem já viu o boi branco sabe que um circo de moscas é só umcirco de moscas. Assim, Nachiketa perguntou: "Essas coisas queme mostrou não vão voltar, mais cedo ou mais tarde, para seureino, Senhor Yama?" O Senhor da Morte sorriu diante dasabedoria de Nachiketa e respondeu: "Sim, é verdade." "Então euquero conhecer o que é imortal."Diante disso, o Senhor Yama disse: "Vou lhe conceder sua graça."
Então deu a Nachiketa um presente simples mas extraordinário: umespelho. "Se você quer descobrir o segredo da imortalidade,Nachiketa, eu só posso lhe dizer para se olhar de frente e se fazerrepetidas vezes a maior das perguntas humanas: 'Quem sou eu?'Olhe além do seu corpo e dos seus pensamentos, Nachiketa.
Assim, vai encontrar o que procura."Seja na iniciação, seja na meditação, nós também temos queenfrentar o Senhor Yama. Temos que perguntar quem é que nasce
e morre. Ao olhar no espelho sagrado, Nachiketa penetrou noprofundo questionamento espiritual que leva ao que é imortal.Quando ele conseguiu abrir mão de tudo a que se agarrava, surgiuum coração puro e eterno - Nachiketa estava livre.
AS LIÇÕES DE NACHIKETA:PRIMEIRO, DESENCANTO
Cada passo da iniciação de Nachiketa se reflete na jornada dosbuscadores modernos. Os temas eternos são os mesmos: anecessidade de encarar a morte, de perdoar, de encontrar energia ecoragem, de buscar a verdade. Essas tarefas repercutem nocoração de todos os que seguem o caminho do despertar.Como em muitos casos citados neste livro, Nachiketa foi chamado àiniciação por um terrível desencanto que o levou a rejeitarcompletamente os valores superficiais deste mundo. Da mesma
forma, o desencanto com os pais, com a comunidade e até mesmo
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com a religião pode favorecer nossa jornada. Joseph Campbellcostumava dizer, com desagrado, que a religião organizada ofereceapenas "inoculação contra o místico", rituais vazios que solapam oimpulso espiritual com uma versão de segunda mão. Há muitas
maneiras de se perder o coração para deuses falsos. Às vezes é um choque ou um golpe, como a morte dos amigos deNachiketa ou a hipocrisia dos sacerdotes que prometeram a seu paia salvação em troca de dinheiro, que nos faz retomar ao coração.
As dificuldades têm valor porque intensificam a coragem, dão vidaao nosso propósito mais profundo, redespertam a tarefa da alma naterra. O doloroso ruir do nosso mundo é muitas vezes a preciosaoportunidade que o coração precisava para aprender a ser
verdadeiro consigo mesmo.Meu mestre de meditação costumava nos perguntar em relação àvida espiritual: "Quais foram as lições mais valiosas, os bonsmomentos ou as dificuldades?" O próprio sofrimento, trazido pelodesencanto, nos dá coragem para questionar, contra todas asprobabilidades. Como Nachiketa, temos que abandonar asegurança e o conforto para depositar nossa confiança noquestionamento. Vem então a necessidade de falar a verdade.
Kabir, o místico indiano, conhecia essa busca. "É a intensidade danecessidade que faz tudo", disse ele.
FRENTE A FRENTE COM O DESCONHECIDO
Em muitas histórias de iniciação, a busca pelo que está além damorte é representada pela imagem do herói atravessando a grandeágua, escalando a montanha impossível, enfrentando dragões,
combatendo os exércitos de Mara, que personifica as forças do mal.Em cada uma dessas situações, arriscamos a vida queconhecemos para descobrir algo novo.Elas são terríveis porque o território desconhecido da iniciação seabre diante de nós só quando temos a coragem de voltar todo onosso ser em sua direção. Ao enfrentar de boa vontade odesconhecido, depositamos confiança num propósito maior da vida.Temos então que ir para onde a estrada nos levar, a despeito da
escuridão e do medo no coração.
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Para enfrentar com firmeza o desconhecido, precisamos da ajudada prática ou do ritual a que nos entregamos. Para Nachiketa, aajuda veio através da meditação, da imobilidade de três dias e trêsnoites. Para outros, vem através da prece incessante em meio à
crise ou