UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
BACHARELADO EM FILOSOFIA
A FILOSOFIA DO CINEMA A PARTIR DE
WITTGENSTEIN E CAVELL
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Guilherme Pinto Ravazi
Santa Maria, RS, Brasil
2015
A FILOSOFIA DO CINEMA A PARTIR DE WITTGENSTEIN
E CAVELL
Guilherme Pinto Ravazi
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Bacharelado em
Filosofia, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para obtenção do grau de Bacharel em Filosofia
Orientadora: Profª. Drª. Janyne Sattler
Santa Maria, RS, Brasil
2015
RESUMO
Trabalho de Conclusão de Curso
Bacharelado em Filosofia
Universidade Federal de Santa Maria
A FILOSOFIA DO CINEMA A PARTIR DE WITTGENSTEIN E
CAVELL
Autor: Guilherme Pinto Ravazi
Orientadora: Profª. Drª. Janyne Sattler
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 1 de julho de 2015.
O objetivo desta monografia é apresentar a filosofia do cinema a partir de dois filósofos que
influenciaram boa parte das abordagens contemporâneas que consideram que o cinema pode
constituir uma forma de filosofia. Ludwig Wittgenstein, indiretamente e em virtude de sua
concepção não teórica de filosofia, consistindo antes em uma atividade, e Stanley Cavell,
diretamente, por meio de sua obra que contempla o cinema como tema central de sua reflexão.
A monografia está dividida em dois capítulos. No primeiro capítulo, apresentarei um breve
resumo da concepção wittgensteiniana de filosofia, principalmente nas Investigações
Filosóficas, a fim de considerar a aproximação do filosofar do cinema com a noção de terapia
filosófica. Em seguida, analisarei a leitura filosófica do filme Amnésia (2000) tal como
elaborada em conjunto pelos filósofos wittgensteinianos, Rupert Read e Phil Hutchinson, que
consideram o filme em questão como um procedimento terapêutico para enfraquecer o
problema filosófico da disputa entre o Dualismo e o Behaviorismo sobre funcionamento da
mente. No segundo capítulo, tentarei expor os principais conceitos da filosofia do cinema de
Stanley Cavell, desenvolvidos por ele no livro The World Viewed, principalmente a questão
do vínculo essencial entre realidade e cinema e sua relação com o ceticismo tal como Cavell o
entende. Ademais, pretendo mostrar como estas noções marcam o modo como Cavell
interpreta o filosofar do cinema de gênero como nas “comédias do recasamento”.
Palavras-chave: cinema, teoria do cinema, ceticismo, realidade.
ABSTRACT
End of Course Dissertation
Bachelor in Philosophy
Universidade Federal de Santa Maria
THE PHILOSOPHY OF FILM FROM WITTGENSTEIN AND CAVELL
Author: Guilherme Pinto Ravazi
Mentorship: Profª. Drª. Janyne Sattler
Date and Local of Defense: Santa Maria, July 1, 2015.
The purpose of this paper is to present the philosophy of film from the point of view of two
philosophers who had a great influence on contemporary approaches to film as a kind of
philosophy. Ludwig Wittgenstein indirectly, because of his non-theoretical conception of
philosophy, this being instead an activity, and Stanley Cavell, directly by means of his own,
including film as a central theme of his reflection. The monograph is divided into two
chapters. In the first chapter, I will present a brief summary of Wittgenstein’s conception of
philosophy, especially in Philosophical Investigations, to consider the approach to cinema’s
philosophizing through the notion of philosophical therapy. Then I will analyze the
philosophical reading of the movie Memento (2000), jointly elaborated by the
wittgensteinians philosophers Rupert Read and Phil Hutchinson, who consider the film in
question as a therapeutic procedure to dissolve the philosophical problem of dualism and
behaviorism on mental function. In the second chapter, I will try to expose the key concepts
of the philosophy of film of Stanley Cavell, developed in The World Viewed, and then mainly
the question of the essential link between reality and cinema and its relation to skepticism, as
Cavell understands it. Moreover, I intend to show how these notions mark the way Cavell
goes on to interpret the philosophizing task of cinema in the “remarriage comedies”.
Keywords: cinema, film theory, skepticism, reality.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6
1 WITTGENSTEIN E A FILOSOFIA DO CINEMA .......................................................... 8
1.1 O conceito de filosofia ....................................................................................................... 9
1.2 Cinema como terapia filosófica ....................................................................................... 11
2 A FILOSOFIA DO CINEMA DE STANLEY CAVELL ................................................ 16
2.1 A Realidade Projetada .................................................................................................... 17
2.2 Ceticismo e Cinema ......................................................................................................... 21
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 22
4 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................. 23
6
INTRODUÇÃO
O cinema conquistou um espaço na cultura e na sociedade humana contemporâneas
dificilmente alcançável por outro tipo de expressão artística1. É provável que a razão disso
seja sua capacidade de se apropriar de quase todas as produções artísticas, principalmente da
cultura na qual o filme é realizado. Uma evidência disso são as adaptações de obras literárias
para o cinema. Prática que se tornou comum logo nas primeiras produções cinematográficas.
Em 1903, no Reino Unido, por exemplo, foi lançada a primeira adaptação de Alice no País
das Maravilhas de Lewis Carroll, Alice in Wonderland, dirigido por Cecil M. Hepworth e
Percy Stow; considerado o primeiro longa metragem da Itália, O Inferno (1911) é uma
adaptação d’A Divina Comédia de Dante; o Estúdios Universal se serviu imensamente dos
romances góticos para lançar seus clássicos de terror entre as décadas de 1930 e 1940,
revisitados mais tarde pela produtora inglesa Hammer. Poderíamos citar ainda as diversas
peças de teatro levadas para a tela, tais como O Mercador de Veneza, Romeu e Julieta,
Cyrano de Bergerac entre muitos outros. E, um exemplo atual, as adaptações de histórias em
quadrinhos, principalmente de super-heróis, que hoje configuram por si mesmos um gênero
de cinema. Quase todos os antigos mitos que revelam as mais diversas inquietações humanas
possuem também suas versões cinematográficas. Além disso, o cinema é constituído por uma
combinação de elementos de outras formas de arte: “a função figurativa da pintura e da
fotografia, a dimensão rítmica da música, a vocação narrativa da literatura e a tradição
dramatúrgica do teatro” (TERRONE, 2013, p. 114, tradução nossa). Para além desta breve
caracterização de sua natureza, no entanto, o cinema apropria-se também da atividade
reflexiva da filosofia.
E este último ponto é o tema central desta monografia.
A aproximação entre filosofia e cinema pode ser efetuada de várias formas. Jerry
Goodenough (2005), por exemplo, aponta quatro razões que poderiam justificar o interesse
dos filósofos pelo cinema: 1) O filósofo pode se interessar pelo cinema em si mesmo, i.e., por
sua técnica, seus processos e o significado social de se assistir filmes. Aqui, podem ser
levantadas questões sobre a natureza do cinema enquanto experiência perceptual, por
exemplo, sobre a percepção do movimento por meio da projeção acelerada de diversas
fotografias estáticas, ou sobre aspectos psicológicos envolvidos no ato de se assistir a um
filme, etc. Goodenough chama essa abordagem de Filosofia e a Experiência Cinemática. 2)
1 Podemos incluir aqui também, no entanto, as mídias cognatas do cinema, como as séries de TV, as novelas, etc.
porque elas se utilizam da mesma linguagem diferenciando-se apenas pelo modo de exibição.
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Os filmes podem servir como um instrumento pedagógico no ensino da filosofia. Como o
cinema faz parte do cotidiano dos estudantes, pode ser útil empregá-los para ilustrar temas e
questões filosóficas os quais, por meio dos filmes, já lhes são familiares. 3) Alguns filmes
abordam questões filosóficas como parte central de sua trama. Essa abordagem trabalha com
uma pequena categoria de filmes: os filmes sobre filosofia ou sobre filósofos, como por
exemplo, a tetralogia dos filósofos de Roberto Rossellini, Sócrates (1971), Blaise Pascal
(1972), Santo Agostinho (1972), Descartes (1974) e o Wittgenstein (1993) de Derek Jarman.
4) Por último, pode-se tomar alguns filmes como filosofia, ou seja, como obras que em algum
sentido fazem filosofia e que são capazes de levantar problemas filosóficos e abordá-los em
seus próprios termos e por meio de seus recursos particulares de um modo mais ou menos
independente dos textos da tradição filosófica. Goodenough não considera que as diferentes
abordagens sejam mutuamente excludentes, pois um filme particularmente rico pode vir a
servir como uma simples ilustração e ao mesmo tempo para o filosofar propriamente dito.
No presente trabalho, eu considerarei de forma mais detalhada apenas a quarta razão
apontada acima, pois esta constitui em si mesma uma questão filosófica. Se um realizador
pode filosofar por meio de um filme, então que tipo de filosofia ele faz? Embora possamos
assumir que o cinema possui recursos diferentes para tratar de problemas filosóficos,
deveríamos poder pensar em um conjunto de características presentes nestas obras as quais
justificassem a sua classificação como ‘filosófica’. Esta me parece consistir ela mesma em
uma questão filosófica e um modo de definir estas características talvez seja possível por
meio de uma reflexão sobre o próprio conceito de ‘filosofia’. Qual sua tarefa? Qual método
utiliza? Assim, a investigação sobre a “dignidade” filosófica do cinema poderá ser
desenvolvida explorando o modo como seria um filosofar cinematográfico. A questão mais
problemática parece estar relacionada ao “veículo” da filosofia, pois estamos habituados à
filosofia na forma escrita, mas será esta uma característica essencial para o filosofar? Como
indaga Julio Cabrera: “Existe alguma conexão interna e necessária entre a escrita e a
problematização filosófica do mundo? Por que as imagens não introduziriam
problematizações filosóficas, tão contundentes, ou mais ainda, do que as veiculadas pela
escrita?” (CABRERA, 2006, p. 17). Para responder estas questões irei apresentar a filosofia
do cinema a partir de dois filósofos que influenciaram grande parte dos filósofos
contemporâneos do cinema: Ludwig Wittgenstein e Stanley Cavell.
A presente monografia está dividida em duas partes. Na primeira parte, apresento um
breve resumo da concepção wittgensteiniana de filosofia, principalmente nas Investigações
Filosóficas, a fim de considerar a aproximação do filosofar do cinema com a noção de terapia
8
filosófica. Neste sentido, apresentarei uma leitura filosófica do filme Amnésia (2000)
elaborada por dois filósofos wittgensteinianos que consideram este filme um procedimento
terapêutico para enfraquecer o problema filosófico de distinções enfáticas sobre o
funcionamento da mente, a saber, o Dualismo e o Behaviorismo.
Na segunda parte, tentarei expor os principais conceitos da filosofia do cinema de
Stanley Cavell, desenvolvidos por ele no livro The World Viewed. Como esta é uma obra
extensa e complexa, limitarei meu trabalho à questão do vínculo essencial entre realidade e
cinema e sua relação com o ceticismo tal como Cavell o entende. Ademais, pretendo mostrar
como estas noções marcam o modo como Cavell interpreta o filosofar do cinema de gênero,
principalmente as “comédias do recasamento”.
1 WITTGENSTEIN E A FILOSOFIA DO CINEMA
É bastante comum encontrar em críticas ou em histórias do cinema filmes que são
qualificados como “filosóficos”. Mas o que significa afirmar que um filme é filosófico?
Talvez esta classificação se deva ao modo como falamos sobre filmes. Muitas vezes ao
descrever um filme imputamos a ele ações intelectuais comuns à filosofia, tal como “criticar”,
“refletir”, “contrapor”, “investigar”. Por exemplo, é adequado afirmar que O Homem de
Palha (1973) contrapõe o paganismo ao cristianismo expondo as falhas de ambos, que
Réquiem Para Um Sonho (2003) investiga as consequências dos vícios humanos, ou que
Violência Gratuita (1997) critica o cinema de terror e sua plateia. Sendo assim, irei assumir
desde já que alguns filmes realmente filosofam. O que precisa ser investigado é o modo como
eles filosofam e o modo como a filosofia usual, escrita, se relaciona com esta “filosofia
cinematográfica”.
Em meio às diversas correntes filosóficas que consideram o cinema como uma forma
de pensamento, optei como uma primeira aproximação ao assunto, por investigar a relação
entre cinema e filosofia a partir da concepção de atividade filosófica presente, principalmente,
nas Investigações Filosóficas do filósofo Ludwig Wittgenstein. Este parece ser um bom ponto
de partida, pois diversos filósofos contemporâneos que lidam com a relação entre filosofia e
cinema são influenciados pela filosofia de Wittgenstein, como por exemplo, Rupert Read,
Stephen Mulhall, Jerry Goodenough, David Rudrum e Stanley Cavell, o qual será abordado
na segunda parte deste trabalho. Não pretendo, de forma alguma, elaborar uma exegese de
Wittgenstein. Apresentarei, no entanto, uma breve caracterização da concepção
wittgensteiniana de filosofia, enfatizando a noção de atividade filosófica como “terapia” para
9
a dissolução dos problemas filosóficos. Em seguida, analisarei a possibilidade do cinema se
comportar como uma espécie de terapia filosófica. Para isto, irei examinar a abordagem de
Rupert Read e Phil Hutchinson sobre o filme Memento (2000) na qual os autores consideram
o filme como um procedimento terapêutico semelhante a um experimento mental presente nas
Investigações Filosóficas.
1.1 O conceito de filosofia
Segundo Rupert Read (2005), o pensamento de Wittgenstein é por excelência aquele
que pode nos auxiliar a compreender o modo como os filmes filosofam: através do seu
questionamento a respeito da utilidade da teoria para a filosofia, de sua abordagem justamente
não-teórica da estética e, entre outras coisas ainda, de sua distinção entre o que pode ser dito e
o que pode ser mostrado2. De acordo com a proposta de Read, os filmes filosofam na medida
em que refletem aspectos da própria atividade filosófica de Wittgenstein, o que significa dizer
que muitos filmes podem envolver o espectador em um processo terapêutico de diálogo. Os
filmes poderiam, ainda, investigar o absurdo (absurd), apresentar coisas para além dos limites
da linguagem e mostrar a vida dos seres humanos de um modo que o próprio Wittgenstein
sugeriu não ser possível para a prosa argumentativa3. Tudo isso conduziria a uma abordagem
do filme pela filosofia, não como um mestre em relação a seu aprendiz, mas como
interlocutores em posição de igualdade numa conversação.
Tanto no Tratactus Logico-Philosophicus quanto nas Investigações Filosóficas,
Wittgenstein traça uma firme distinção entre filosofia e ciência. Em sua primeira obra, ele
afirma que “a filosofia não é uma das ciências naturais (A palavra ‘filosofia’ deve significar
algo que esteja acima ou abaixo, mas não ao lado, das ciências naturais)” (TLP: 4.111), e, na
segunda: “Certo era que nossas reflexões não podiam ser reflexões científicas” (IF: §109).
Diferentemente das ciências, os problemas da filosofia não são empíricos. Enquanto a ciência
procura demonstrar a verdade das proposições, a filosofia se interessa pelo estabelecimento do
sentido das proposições. Por esse motivo, a filosofia não se ocupa da explicação, mas apenas
da descrição que se dá no campo da possibilidade e não do fatual, ou seja, a filosofia não
2 Aqui, sigo os comentadores que entendem as Investigações Filosóficas como uma continuidade do Tratactus
Logico-Philosophicus de modo que a noção de atividade filosófica possa ser tratada de forma (talvez)
intercambiável. Cf., por exemplo, Conant e Diamond 2004, Margutti Pinto 2006, Sattler 2014, Stokhof 2002. 3 Read é um “leitor resoluto” de Wittgenstein, e o modo como ele compreende o conceito de ‘absurdo’ não é
ponto pacífico entre os comentadores – mas esta é uma questão que não pode ser abordada aqui. Tomaremos o
termo de modo mais genérico e sem adentrar nestas questões exegéticas mais espinhosas.
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descreve as coisas particulares e empíricas. Uma sentença deve ser analisada segundo
aspectos de seu significado ao invés de sua relação para com o mundo.
A maioria dos problemas filosóficos resulta do mau entendimento do uso da nossa
linguagem e, por conseguinte, não possui sentido. O exame do funcionamento da linguagem e
sua descrição revelaria assim o caráter “absurdo” desses problemas, mostrando que na
verdade não há problema algum. Assim, a filosofia não é e não pode ser uma teoria, mas uma
atividade. Trata-se sempre de um combate contra o “enfeitiçamento” pela linguagem. A
solução de um problema filosófico é, na verdade, sua dissolução.
No Tratactus, Wittgenstein considera que a linguagem é um sistema usado para
figurar, descrever a realidade. Assim, ele estabelece um método específico para a filosofia. O
trabalho do filósofo seria fazer a análise lógica da linguagem mostrando que os problemas
filosóficos são apenas confusões metafísicas:
O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se
pode dizer; portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem a
ver com filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico,
mostra-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse
método seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação de que lhe estivéssemos
ensinando filosofia; mas esse seria o único rigorosamente correto. (TLP: 6.53).
Nas Investigações, Wittgenstein amplia sua noção de linguagem. As palavras possuem
diferentes funções, nem todas servem para figurar. A linguagem pode ser usada de diversas
formas: dar ordens, rezar, fazer piadas, perguntar, agradecer, xingar, etc. É deste modo que
Wittgenstein introduz a noção de jogos-de-linguagem: para cada um dos usos há um jogo-de-
linguagem com determinadas regras que definem a função de cada palavra no interior do jogo.
Uma mesma palavra poderá ter diferentes significados conforme sua função nos diferentes
jogos-de-linguagem em que é empregada. A tarefa da filosofia continua sendo a eliminação
das confusões, porém não apenas através de um determinado método, mas mediante diversos
procedimentos:
Não queremos aprimorar ou completar o sistema de regras para o emprego de nossas
palavras de maneira exorbitante. Pois a clareza a que aspiramos é, todavia, uma
clareza completa. Mas isso significa apenas que os problemas filosóficos devem
desaparecer completamente. A descoberta real é a que me torna capaz de deixar de
filosofar quando eu quiser. – A descoberta que aquieta a filosofia, de tal modo que
ela não seja mais açoitada por questões que coloquem a ela mesma em questão. –
Mas vai-se mostrar agora um método à mão de exemplos, e pode-se interromper a
11
série desses exemplos. – Problemas são solucionados (dificuldades eliminadas), não
um problema. Não existe um método em filosofia, o que existe são métodos, por
assim dizer, diferentes terapias. (§ 133)
Os problemas filosóficos são tratados como doenças, por isso o uso do termo
“terapia”. Esta noção concede à atividade filosófica tal como pensada nas Investigações um
sentido ético que é o ponto fundamental de sua continuidade com o Tratactus, visto que
eliminar os pseudoproblemas por meio de seu método analítico possui como finalidade viver
uma vida melhor. Do mesmo modo, adotar uma terapia significa eliminar as perturbações
intelectuais que são obstáculos na busca de um estado de paz de espírito. Este aspecto da
filosofia de Wittgenstein pode nos ajudar a entender o modo como os filmes filosofam, mas
também a relação entre o espectador e o filme. Se a atividade filosófica está relacionada à
busca por uma tranquilidade intelectual, então talvez os filmes filosofem neste sentido.
1.2 Cinema como terapia filosófica
De acordo com o segundo Wittgenstein, as confusões filosófico-metafísicas devem ser
eliminadas não necessariamente por um método específico, mas por meio de uma ampla gama
de procedimentos – como diferentes terapias. Poderia o cinema ser considerado uma espécie
de “terapia filosófica”? Se a resposta for sim, então não estaremos dizendo algo somente
sobre o cinema, mas algo também sobre nossa relação com os filmes enquanto espectadores.
Será preciso uma pré-disposição do espectador no sentido de buscar no filme mais do que
simples entretenimento? Quando vamos ao cinema, não sabemos exatamente o que o filme irá
nos mostrar. Não parece natural assistir a um filme com o objetivo de resolver um problema
específico. No entanto, parece existir certa atitude comum entre pessoas que assistem a filmes
para além do entretenimento. Algo como uma busca por auto melhoramento. Sendo assim, o
cinema como terapia não se apresentaria como um portador de uma solução, mas como uma
possibilidade de solução que deve ser buscada pelo espectador por meio do que foi exposto na
tela. Para investigar esta hipótese apresentarei a interpretação filosófica de um filme
específico tal como elaborada por Rupert Read e Phil Hutchinson.
No ensaio, Memento4: A Philosophical Investigation, Rupert Read, em coautoria com
Phil Hutchinson, corrobora a ideia do cinema como terapia ao apresentar seu texto como “a
reading of Memento as a therapeutic dialogue, one purpose of which is to loosen the grip of
4 No Brasil este título foi traduzido como Amnésia.
12
both dualism (the ‘Cartesian’ picture of mind) and behaviorism” (HUTCHINSON; READ,
2005, p. 72). Os autores apresentam uma leitura filosófica do filme Amnésia (2000), no
contexto de uma discussão sobre a interpretação do parágrafo de abertura das Investigações
Filosóficas, no qual Wittgenstein cita um trecho das Confissões de Agostinho e o interpreta
como “uma determinada imagem da essência da linguagem humana” (WITTGENSTEIN,
2012, p. 15) onde as palavras denominam objetos sem, no entanto, fazer uma diferença entre
tipos de palavras. Em seguida, nesta mesma passagem, Wittgenstein apresenta um
experimento mental:
(...) Pense agora no seguinte emprego da linguagem: eu envio alguém às compras.
Dou-lhe uma folha de papel onde se encontram os signos: “cinco maçãs vermelhas”.
Ele leva o papel ao comerciante. Este abre a gaveta sobre a qual está o signo
“maçã”. Ele procura a palavra “vermelho” numa tabela e encontra defronte a ela
uma amostra de cores. Ele diz a sequência dos numerais – suponho que ele saiba de
cor – até a palavra “cinco”, e a cada número retira uma maçã que tem a cor da
amostra. – Da mesma forma, operamos com as palavras. – “Como ele sabe onde e
como deve procurar a palavra ‘vermelho’ e o que tem que fazer com a palavra
“cinco”?” – Ora, suponho que ele aja conforme descrevi. As explicações encontram
um fim em algum lugar. – Qual o significado da palavra “cinco”? – Aqui não se
falou disso, mas somente de como a palavra ‘cinco’ é usada. (IF: §1)
A interpretação padrão deste parágrafo sugere que ele consiste apenas em um ataque à
descrição agostiniana da linguagem – que teria sido endossada até mesmo pelo autor do
Tractatus. Segundo Baker e Hacker, o interesse de Wittgenstein neste parágrafo não leva em
consideração nenhuma teoria externa ou interna da mente, mas somente questões relacionadas
ao significado das palavras. Neste caso, o exemplo da compra das maçãs é tomado por Baker
e Hacker como uma ilustração dos diferentes tipos de uso para cada palavra. As três palavras
do exemplo: ‘maçã’, ‘vermelho’ e ‘cinco’ são de tipos diferentes porque cada uma
desempenha uma operação diferente na fala, a saber, ‘maçã’ nomeia uma fruta, ‘vermelho’
nomeia uma cor e ‘cinco’ nomeia um número. Hutchinson e Read afirmam que esta
interpretação é insatisfatória por duas razões. Primeiro, que ela subestima a sutileza de
significados do exemplo, deixando de dar a devida atenção para diversas questões
importantes. Segundo, porque dizer que cada palavra pertence a um diferente tipo de uso
implica em que existem “tipos de uso” para os quais as palavras podem ser categoricamente
associadas. No entanto, não é difícil encontrar situações em que uma palavra pode “pertencer”
a um tipo de uso diferente do que lhe seria atribuído primariamente. Por exemplo, a palavra
13
‘cinco’ no contexto de um jogo de futebol pode ser usada se referir ao jogador que naquela
ocasião está usando a camiseta em que o signo “cinco” está impresso5.
Segundo Read e Hutchinson, uma parte crucial do trabalho terapêutico deste exemplo
não é capturada pela interpretação padrão. O que estaria implícito no exemplo é que
abordagens teóricas sobre a mente, tais como o behaviorismo e o dualismo cartesiano, não
fazem sentido na medida em que não nos importamos em atribuir entendimento a uma mente
que funciona interna ou externamente, ou seja, que reconheça as palavras e seus usos
mediante processos internos, i.e., cerebrais, ou por meio de recursos externos que podemos
perceber como um determinado comportamento. Isto porque o exemplo do comerciante é uma
descrição externa de como a mente funcionaria internamente. Deste modo, eles sugerem uma
interpretação mais profunda do primeiro parágrafo por meio de uma leitura filosófica do filme
Amnésia:
to show that this stands as a feature-length version of Wittgenstein’s ‘short’, and in
doing so explores the issues in play in a manner rich enough to provide one with
further philosophical (therapeutic) insight of which Wittgenstein would have been
proud (HUTCHINSON; READ, 2005, p. 74).
Antes de apresentar a leitura de Amnésia de Read e Hutchinson deixe-me apresentar
um breve resumo do filme. Amnésia conta a estória de Leonard Shelby, um investigador de
uma empresa de seguros que, como ele mesmo afirma em diversas ocasiões, não é capaz de
formar novas memórias. Ele teria desenvolvido esta doença por causa de um dano cerebral
decorrente da agressão do mesmo bandido que invadiu sua casa, estuprou e matou sua esposa.
A última coisa que Leonard lembra são os acontecimentos deste evento. Agora, tudo o que ele
vivencia é esquecido dentro de poucas horas. No entanto, Leonard conta com diversos
recursos externos para substituir sua memória. Por exemplo, ele carrega uma Polaroid para
tirar fotos das pessoas que encontra; nestas fotos ele escreve o nome e alguma observação do
tipo “não confie nele”, “ela é sua amiga”, etc.; ele possui também uma pasta arquivo com
evidências e pistas a respeito de “John G.” (o assassino); um quadro no qual pendura as fotos
e anotações e, por fim, seu próprio corpo onde tatua as informações mais importantes para a
realização de sua missão auto imposta: vingar a morte da esposa.
De acordo com Read e Hutchinson, o processo usado pelo comerciante para entender a
mensagem do comprador é semelhante ao modo como a memória de Leonard funciona. Aliás,
5 Esta crítica dos autores à interpretação padrão do primeiro parágrafo das Investigações não parece ser justa,
pois não se segue que da existência de “tipos de uso” cada palavra deva ser classificada categoricamente em um
tipo apenas.
14
na verdade, não se trata apenas da memória, já que a mente de Leonard opera de modo
externo. Segundo os autores, Amnésia é uma versão cinematográfica do exemplo do
comerciante. O filme, porém, é mais eficaz enquanto terapia filosófica, pois consegue fazer
com que o espectador “entre na pele” do personagem principal graças ao modo como o filme
é apresentado. O roteiro segue uma ordem cronológica invertida, começa do final e vai
voltando no tempo. Os cortes entre as cenas são feitos no momento em que Leonard perde a
memória recente. Desse modo, o espectador enfrenta a mesma situação do personagem. De
um corte para o outro, o cenário muda completamente, as ações são desconexas fazendo com
que o espectador seja também um detetive juntando as peças de um quebra-cabeça para ver
uma imagem completa.
A jornada junto a Leonard mais cedo ou mais tarde acaba por suscitar no espectador
perguntas tais como: quão diferente ou quão parecido eu sou dele? Aparentemente, Leonard é
incapaz de desenvolver relações humanas normais. Ele não reconhece a mulher dormindo ao
seu lado pela manhã; sabe quem são seus amigos ou inimigos apenas ao ler anotações no
verso de uma fotografia. Além disso, sua doença o torna altamente manipulável. O policial
corrupto que o “ajuda”, na verdade o usa para roubar e matar traficantes de drogas. No
decorrer do filme, porém, descobrimos que não é a doença de Leonard que o torna
manipulável, mas a sua própria personalidade: sua compulsão em contar para todos aqueles
que encontra sobre a sua doença e, sobretudo, a sua obsessão por vingança.
Agora, exceto por estas questões e pensando apenas no funcionamento da mente de
Leonard, qual é de fato a diferença essencial entre nós? Read e Hutchinson nos convidam a
interiorizar a cena: Leonard acorda pela manhã e vê uma mulher deitada ao seu lado, em
seguida ele apanha as fotos em seu paletó em busca de uma que corresponda à mulher; eu
acordo e vejo uma mulher dormindo em minha cama, olhar para ela faz surgir em minha
mente uma imagem mental; Leonard vira a fotografia e lê o nome e as observações sobre ela;
esta imagem mental está associada ao nome da mulher e as impressões que eu tive dela em
encontros anteriores me dizem o que eu penso sobre ela. O procedimento interno e o externo
funcionam de formas muito parecidas.
Mas, e se as fotos se tornassem imagens mentais e as anotações e tatuagens memórias,
o que Leonard ganharia com isso? Read e Hutchinson estão convencidos de que ele não
ganharia nada. E esta conclusão dissolveria os problemas relacionados ao dualismo e ao
behaviorismo, mostrando que são duas abordagens teóricas desnecessárias da mente.
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Sem considerar a validade ou a legitimidade da conclusão dos autores acerca das
teorias da mente, mas priorizando apenas o modo como o filme foi inserido nesta reflexão, a
crítica que se poderia a eles fazer é que tudo o que foi exposto são pensamentos dos próprios
autores imputados ao filme. Não é evidente que o filme tenha sido feito com o propósito de
questionar as teorias da mente. Na verdade, é pouco provável que este seja o caso. Mas isto
nos leva a uma outra questão ainda: será possível afirmar com segurança que um filme se
relaciona diretamente com uma ideia filosófica específica? Existem alguns casos em que o
próprio filme nos fornece pistas sobre esta relação. Em Matrix, por exemplo, há uma
referência ao livro Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard (Neo, o personagem
principal, usa o livro para guardar dinheiro e disquetes entre as páginas do livro). Isto pode
nos sugerir que os realizadores do filme lidaram com ideias deste filósofo em especial6. Assim
como em Azul é a cor mais quente, a personagem Emma lê para Adèle trechos do
Existencialismo é um Humanismo de Sartre. Estas referências contribuem para a significação
do filme, mas seríamos muito exigentes se esperássemos que os cineastas colocassem
referências explícitas para cada ideia (filosófica) presente no filme. Um filme não é um
artefato acadêmico, mas sim uma obra de arte. Dito isso, o tipo de filosofar que podemos
esperar de um filme deve ser uma reflexão aberta. Ou seja, o filme não apresenta uma
conclusão definitiva sobre o tema abordado: é preciso que o espectador construa suas próprias
conclusões e reflexões a partir do filme. Se o espectador é um profissional da filosofia, é
compreensível que suas conclusões sobre o filme se relacionem com pensamentos presentes
na própria história da filosofia, mesmo que estes não apareçam explicitamente no filme. Mas
isto talvez seja apenas um vício metodológico que não acrescenta muito à nossa compreensão
do próprio filme. Imputar ao filme ideias filosóficas pré-existentes parece diminuir sua
importância. Se o filme não apresenta ideias originais, então não há uma filosofia do cinema,
mas algo como uma tradução da prosa filosófica para a linguagem cinematográfica. Não
quero dizer que isto não aconteça também, mas que o cinema faz muito mais do que
“adaptar”. A relação entre a filosofia e o cinema me parece mais profícua quando se
estabelece um diálogo. Quando se tenta interpretar o que o próprio filme apresenta, para
depois fazer relações possíveis com as ideias da tradição – se for de fato o caso.
6 A título de curiosidade, em uma entrevista ao Le Nouvel Observateur, Baudrillard afirma que os irmãos
Wachowski entraram em contato diversas vezes pedindo que ele fizesse parte do projeto do filme; o pedido,
porém, foi negado. De acordo com Baudrillard, há diversos mal-entendidos na interpretação de sua teoria em
Matrix, principalmente em relação a uma confusão a respeito do conceito de Simulação que recebe um
tratamento do tipo platônico. Cf.: <http://www.ubishops.ca/baudrillardstudies/vol1_2/genosko.htm>
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A ideia do cinema como terapia é atraente, mas não parece captar todos os aspectos
que o cinema é capaz de desenvolver filosoficamente – pelo menos, não da maneira como o
pretendem Read e Htchinson. Poderíamos pensar em vários exemplos de filmes sobre os quais
não estaríamos inclinados a confirmar uma capacidade para a dissolução de perturbações
intelectuais e existenciais, mas que ao contrário, criariam ainda mais perturbações7. Claro que
poderíamos responder a esta crítica dizendo que na verdade este tipo de filmes não “cria” as
perturbações intelectuais, mas as tornam evidentes: as perturbações estavam lá, mas como que
adormecidas. Entendendo que o reconhecimento de um problema é o primeiro passo para sua
resolução, a ideia de terapia seria assim preservada. No entanto, esta é apenas uma das formas
de se conceber os filmes como filosofia. Ao apresentar esta concepção não pretendo que esta
seja a única forma de apreciar um filme filosoficamente8.
Neste capítulo, eu apresentei um exemplo do possível diálogo entre o cinema e a
filosofia escrita acadêmica. No entanto, poderíamos pensar esta relação também de modo
menos argumentativo e mais literário, no qual a própria prosa filosófica em sua forma e estilo
remetam a efeitos conquistados pelo cinema. Este modo de se relacionar com o filme está
ligado à negação wittgensteiniana da teoria em filosofia. É partindo deste ideal que escreve
um dos maiores filósofos do cinema: Stanley Cavell.
2 A FILOSOFIA DO CINEMA DE STANLEY CAVELL
2.1 A Realidade Projetada
The World Viewed, publicado em 1971 e mais tarde em uma versão estendida em
1979, foi o primeiro livro de Stanley Cavell inteiramente dedicado ao cinema. Nesta obra,
Cavell desenvolve uma reflexão sobre a ontologia do medium cinematográfico, sem limitar-
se, no entanto, a uma teoria. Ao desenvolver a sua ontologia do cinema, Cavell faz uma
incursão à antropologia filosófica explicitando o modo como o cinema mostra a condição
humana em sua relação com o mundo e com os outros. Isto ficará mais claro a partir da
análise de duas ideias aparentemente contrastantes da obra de Cavell: a) sua defesa do vínculo
essencial entre o cinema e a realidade; b) sua afirmação de que “[o] filme é uma imagem em
7 Os filmes do diretor Michael Haneke são ótimos exemplos disso. 8 Para um trabalho futuro, talvez seja o caso de reformular a concepção de cinema como terapia, não como uma
dissolução ou solução de um problema, mas como um recurso de compreensão e autoconhecimento.
17
movimento do ceticismo” (CAVELL, 1979, p.188, tradução nossa). Para entender como
Cavell harmoniza estas duas ideias é preciso mostrar o que cada uma delas significa. É o que
farei brevemente a seguir.
Cavell apresenta o vínculo essencial entre o cinema e a realidade reformulando as
ideias de dois teóricos realistas do cinema: Erwin Panofsky e André Bazin. O primeiro afirma
que “o medium dos filmes é realidade física como tal” (PANOFSKY, 1992, p. 247, tradução
nossa). O segundo defende que o cinema está comprometido em comunicar apenas por meio
do que é real9. Cavell atenta para o fato de que estas afirmações não devem ser consideradas
literalmente. Sua sugestão interpretativa para estas teses consiste em dizer que a base
ontológica do filme é fotográfica. A partir desta base é que se estabelece a relação com a
realidade porque uma fotografia é sempre da10 realidade. O cinema nada mais é do que um
conjunto de fotografias exibidas em sequência para dar a impressão de movimento. Sendo
assim, Cavell define o cinema como o conjunto de reproduções automáticas da realidade
projetadas em uma tela.
Esta definição poderia ser problematizada considerando-se que o cinema, desde sua
origem, é reconhecido como capaz de representar o fantástico tão prontamente quanto o real.
Porém, esta objeção carrega consigo uma confusão herdada das considerações feitas sobre a
fotografia e sua suposta “competição” com a pintura. Afirma-se que a fotografia foi a causa
do surgimento das vanguardas, pois ao representar a realidade mais perfeitamente do que a
mão humana seria capaz, ela enfraqueceu a obsessão da pintura pela realidade. Como afirma
Walter Benjamin: “Com a fotografia, a mão foi pela primeira vez aliviada das mais
importantes obrigações artísticas de reprodução figurativa, as quais recaíram a partir daí
exclusivamente sobre o olho que vê através da objetiva” (BENJAMIN, 2013, p. 53). Bazin
afirma algo parecido:
A fotografia [...] liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança. Pois a
pintura se esforçava, no fundo, em vão, por nos iludir, e esta ilusão bastava à arte,
enquanto a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente,
por sua própria essência, a obsessão pelo realismo (BAZIN, 1983, p. 124).
Cavell observa, porém, que se em algum momento de sua história a pintura renunciou ao seu
ideal de ser representativa foi por razões internas à própria pintura e não por causa da
fotografia, pois esta, na verdade, não representa absolutamente nada. Apesar da divergência
9 Erwin Panofsky desenvolve estas ideias no ensaio Style and Medium in Motion Pictures e André Bazin no seu
What is Cinema?. 10 No sentido genitivo.
18
quanto à interpretação histórica, a ontologia da fotografia de Bazin é fundamental para a
filosofia do cinema de Cavell. A razão que Bazin apresenta para a fotografia satisfazer nossa
obsessão pelo realismo é crucial, por exemplo, para o argumento de Cavell a respeito da
ausência de representação da fotografia. Segundo Bazin, o realismo da pintura é de ordem
diferente do realismo da fotografia. Enquanto o primeiro é de ordem estética, o segundo é de
ordem psicológica: “Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por
uma inevitável subjetividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença
do homem” (BAZIN, 1983, p. 124). Para Cavell, o ato de representar pressupõe esta
subjetividade que existe apenas quando a mão humana é o principal mediador entre a
reprodução e a realidade. Conforme Bazin, novamente, “a originalidade da fotografia em
relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial. [...] Pela primeira vez, uma
imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção criadora do
homem, segundo um rigoroso determinismo” (BAZIN, 1983, p. 125). A presença do
fotógrafo se dá apenas por um conjunto limitado de escolhas que ele faz ao fotografar o
fenômeno. Assim, poderíamos dizer que as artes em geral são apreciadas pela presença do
homem na obra; na fotografia, a fruição acontece na verdade por sua ausência. Tendo isto em
vista, Cavell conclui que a fotografia deve fazer algo que não é, de fato, representar.
Afinal, diferentemente da pintura, a fotografia não possui uma semelhança com a
coisa, mas apresenta a coisa ela mesma. Isso pode soar paradoxal ou mesmo falso. Ora, a
fotografia de um terremoto ou de Scarlett Johansson, não é a mesma coisa que o terremoto
acontecendo, nem a Scarlett Johansson em carne e osso. Porém, não é menos paradoxal
segurar uma foto da Scarlett Johansson e dizer: “Esta não é Scarlett Johansson”, mesmo se
tudo o que se quer dizer é que aquele objeto que se está segurando não é um ser humano. A
dificuldade que temos para compreender coisas que à primeira vista são óbvias nos mostra
que não sabemos localizar a fotografia ontologicamente. Não sabemos estabelecer a sua
relação com o objeto fotografado: “A imagem não é uma semelhança; não é exatamente uma
réplica, ou um vestígio, ou uma sombra, ou uma aparição tampouco, apesar de todos esses
candidatos naturais compartilharem uma impressionante característica com fotografias – uma
aura ou história de magia em torno deles.” (CAVELL, 1979, p. 19, tradução nossa).
Por outro lado, essas dificuldades não aparecem ao falarmos, por exemplo, sobre a
gravação de sons. Ao escutar uma gravação deste tipo não é problemático afirmar: “Isto é
uma flauta”. Não temos pensamentos do tipo: “Isto é uma flauta... mas eu sei que na verdade
isto é uma gravação”. Uma criança, na presença de uma gravação, poderia ficar intrigada com
o comentário “Isto é uma flauta”, se anteriormente lhe tivessem (perversamente) ensinado que
19
outro objeto, tambor, por exemplo, se nomeia ‘flauta’. Analogamente, porém, esta criança
poderia ficar intrigada se diante de uma foto lhe dissessem: “Esta é sua avó”11. As crianças
deixam de ficar intrigadas com essas coisas bem cedo; ainda assim, afirma Cavell, não
sabemos por que elas estiveram intrigadas em primeiro lugar, nem por que deixaram de estar.
Sobretudo, não sabemos nenhuma dessas coisas a respeito de nós mesmos.
A diferença entre as reproduções auditivas e visuais pode ser explicada a partir do fato
de estarmos acostumados a ouvir coisas que não estão presentes, mas não estarmos
acostumados a ver coisas que não estão presentes. Desde sempre ouvimos coisas não
presentes. Foi necessário para nossa sobrevivência entender que muitos sons que ouvimos são
originados de objetos que não estão acessíveis para os outros sentidos. Porém, instintivamente
sabemos que o som vem de algum lugar, isto é, podemos sair à procura do emissor. O mesmo
não é natural para a visão. Não estamos naturalmente habituados a ver o que não está
presente. No entanto, a descrição fenomenológica de uma fotografia é exatamente esta: olhar
para algo que não está presente. Alguém poderia contra argumentar dizendo que tudo isso não
passa de um jogo de palavras e que, no caso da fotografia, olhamos para algo perfeitamente
presente: a própria fotografia. Cavell não nega que a fotografia esteja presente. Mas isto não
fornece uma explicação para o significado de se afirmar: “Aqui há uma fotografia”.
Para responder a esta inquietação, Cavell insiste na comparação entre a reprodução
auditiva e a fotografia. Ele aponta que outra diferença entre elas é que no caso da primeira
trata-se de uma cópia exata da experiência que o original oferece. É como se a experiência
proporcionada pelo objeto pudesse ser totalmente “descolada” dele. Por exemplo, quando eu
digo, ouvindo uma reprodução, “Isto é uma flauta”, o que realmente quero dizer é: “Este é o
som de uma flauta”. Isto é, se eu estiver na presença de uma flauta sendo tocada eu não estarei
literalmente experimentando a flauta em si, mas estarei ouvindo o som que ela produz. Não é
relevante para minha percepção se a flauta está ou não presente, pois podemos dizer que a
experiência da gravação é a mesma12. Por outro lado, a fotografia não possui a mesma relação
com seu objeto. É adequado dizer que uma gravação reproduz um som, mas não é possível
dizer que uma fotografia reproduz uma vista [sight]. Por meio do mecanismo que reproduz o
som, o objeto emissor e seu produto são “descolados”. Enquanto que a fotografia não é capaz
11 No entanto, poderíamos pensar que pessoas com autismo também não compreenderiam esta frase, pois elas
compreenderiam apenas o sentido literal das sentenças. Para elas, não faria sentido referir-se a uma foto como
“sua avó”. A questão das fotografias e das representações em geral é um problema central para o estudo da
percepção e da consciência, não só em filosofia como em psicologia e ciência cognitiva. 12 Isto não é livre de objeções. Músicos e entendedores de música irão negar que uma reprodução auditiva
constitua a mesma experiência do instrumento sendo tocado ao vivo. Talvez com exemplos de sons menos
complexos que a música o argumento seja mais abrangente.
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de “descolar” a vista do objeto fotografado: “Objetos são muito próximos de suas vistas
[sights] para dá-las para a reprodução; em ordem de reproduzir as vistas que eles (como são)
fazem, você precisa reproduzir-los – fazer um molde, ou tirar uma impressão” (CAVELL,
1979, p. 20, tradução nossa). Deste modo, diz Cavell, na fotografia a presença do objeto
fotografado é preservada. Aqui, mais uma vez, a influência de Bazin é evidente. Ele descreve
a fotografia como um “modelo de luz”, como “uma impressão digital”. Usando o exemplo de
Dudley Andrew: “Robinson Crusoé fica aterrorizado com as pegadas de Sexta-Feira, não
porque elas se pareçam com Sexta-Feira, mas porque foram realmente feitas por ele”
(ANDREW, 1989, p. 144). Assim, para Cavell, o que é essencial na fotografia não é sua
semelhança com o objeto, mas o fato de ser originada automaticamente pelo próprio objeto.
Possuindo a fotografia como base de seu medium, o cinema, por sua vez, é “uma
sucessão de projeções automáticas do mundo” (CAVELL, 1979, p. 72, tradução nossa).
“Sucessão” para criar a impressão de movimento; “projeção” aponta para o fato
fenomenológico do ato de assistir a um filme; “automática” enfatiza o fato de que a fotografia
é gerada mecanicamente, excluindo assim a mão humana do processo; “mundo” refere-se à
origem ontológica da fotografia.
2.2 Ceticismo e Cinema
A transição da “teoria” realista do cinema de Cavell para seu discurso sobre o
ceticismo se dá por intermédio de duas ideias fundamentais. A já comentada exclusão da
evidência da mão humana no processo de criação das imagens do cinema em virtude de seu
automatismo e a ausência do próprio espectador do mundo que lhe é exibido na tela. A única
relação entre a realidade do mundo do cinema e o espectador se dá por meio da visão no caso
do cinema mudo e também pela audição no cinema falado. O cinema é uma imagem em
movimento do ceticismo porque no cinema eu vejo e ouço um mundo que não existe. O
mundo e seus sujeitos apresentam-se a mim apenas como uma imagem que, de certa forma,
está presente para minha visão, embora, ao mesmo tempo, eu não esteja presente para ela.
Esta experiência de ver sendo invisível é a expressão máxima do ceticismo, que, para Cavell
significa uma espécie de isolamento metafísico. Como comenta Pimenta:
O ceticismo não é aqui pensado como a capacidade de duvidarmos do conhecimento
sensorial, mas como uma condição da nossa experiência e do nosso conhecimento,
em que o centro da questão já não é colocado nas nossas dúvidas sobre o
21
conhecimento exterior, mas no medo de estarmos fechados em nós próprios, de
termos perdido toda a relação com o mundo e com os outros, e é por isso que nos
recusamos a vivê-lo. (PIMENTA, 2010).
Para Cavell, a herança cartesiana, o sujeito entendido como uma interioridade, trouxe
consigo o ceticismo como uma possibilidade constante. O sujeito se relaciona com o mundo
sempre a partir de sua interioridade, o que traria para si o temor constante de não poder
conhecer o mundo ele mesmo: “A busca da certeza do saber e do controle técnico é
inseparável do pavor da consciência de que a realidade está, para sempre, fora do nosso
alcance, de que ela está apartada de nós pela forma mesma de nossa subjetividade”
(MARRATI, 2008, p. 54). Sendo assim, o problema que o ceticismo de Cavell coloca está
relacionado com a nossa dificuldade em estabelecer vínculos com o mundo e com os outros
na medida em que os percebemos apenas como imagens.
O ceticismo tal como Cavell o concebe, não só manifesta o elemento unificador de
seus trabalhos sobre o cinema como lhes concede uma vinculação com a ética. O problema do
ceticismo, nossa incapacidade em nos assegurarmos da existência do mundo e dos outros, nos
impõe a responsabilidade de aceitar as suas existências não como um modo de conhecimento,
mas como um modo de reconhecimento. Pois “o verdadeiro problema não é a existência do
mundo e de outrem, mas a existência no mundo e com os outros” (MARRATI, 2008, p. 55).
Este problema atravessa toda a obra de Cavell pertinente ao cinema, marcando para ele o
modo como os filmes significam filosoficamente:
Para Cavell, o ceticismo não é uma doutrina filosófica, mas uma marca da condição
humana, que o cinema exprime através da sua exibição das diferentes formas que
usamos para lhe dar voz. Mas o cinema, enquanto expressão do ceticismo, implica já
também a capacidade da sua superação. (PIMENTA, 2010).
Sua obra Pursuits of Happiness sobre o gênero da “comédia do recasamento”, por
exemplo, mostra como filmes deste tipo retratam o casamento como uma instituição capaz de
revelar e resolver as tensões do ceticismo. Essas comédias expressam também a necessidade
já mencionada do reconhecimento do mundo e dos outros. Para que a partir da separação,
como acontece nestes filmes, possamos estabelecer vínculos com os outros e nos “recasar”
com o mundo.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
22
Nesta monografia, apresentei duas abordagens da filosofia do cinema voltadas à
interpretação daqueles filmes que podem ser tomados como filosofia. Tentei mostrar como a
concepção wittgensteiniana de filosofia pode nos ajudar a compreender o modo como os
filmes filosofam e como nós, enquanto espectadores, podemos nos relacionar com estes
filmes engajados em uma atividade de diálogo filosófico. Neste sentido, analisei a leitura
filosófica de Read e Hutchinson sobre o filme Amnésia, criticando a tentativa de projetar no
filme pensamentos filosóficos da tradição sem, no entanto, atentar para o pensamento do filme
em si. Com efeito, na segunda parte da monografia apresentei a filosofia do cinema de Stanley
Cavell, o qual, também influenciado por Wittgenstein, desenvolve uma reflexão bem diferente
sobre o cinema e filmes particulares. A partir de sua reflexão sobre a ontologia do cinema, de
que há uma conexão essencial entre realidade e cinema, ao mesmo tempo em que este nos
mostra “a verdade do ceticismo”, Cavell transita pela ética e pela filosofia do cinema
mostrando o que os filmes têm a nos dizer filosoficamente.
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