PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A História no pensamento heideggeriano de Ser e Tempo Sílvia Cristina Salvan Strake São Paulo 2006
Sílvia Cristina Salvan Strake
A História no pensamento heideggeriano de Ser e Tempo Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Filosofia Orientador: Mario Ariel González Porta
São Paulo 2006
Agradecimentos
O trabalho acadêmico é um exercício contínuo de
interpretação de texto e de estruturação da escrita que exige
muita disciplina pessoal, mas ao mesmo tempo solicita uma rede
de apoio para sua realização. Eu gostaria de agradecer ao apoio
direto e indireto que recebi na minha jornada.
Antes de mais nada, quero agradecer imensamente ao
meu Professor e orientador Mario Ariel González Porta, pois sua
acolhida reorientou meu trabalho. Suas orientações foram
diretas e precisas, o seu modo ético e generoso de conduzir os
encontros em conversas significativas acerca do estudo e,
também, da “postura do aluno” diante do conhecimento
propiciou o exercício intelectual e um grande amadurecimento.
Muito obrigada por respeitar e contribuir com a minha proposta
de estudo.
Ao meu marido Guilherme, agradeço o apoio e a paciência
em tantos meses de estudo.
A Pedro Monticelli, obrigada pela leitura do projeto e pela
orientação sobre o Historicismo.
Aos meus pais, aos meus amigos e familiares que me
apoiaram nesta trajetória, muitíssimo obrigada a todos vocês.
Entretanto, eu não posso deixar de destacar a participação
intensa e a solicitude das queridas amigas Renata Spinelli e
Beatriz Cytrynowicz. Queridas amigas, o carinho, a
compreensão, as leituras cuidadosas dos capítulos me ajudaram
demasiadamente, a interlocução com vocês foi valiosa.
Aos professores do núcleo de fenomenologia da Faculdade
de Psicologia da Puc/SP, agradeço a oportunidade de, junto com
vocês, ter conhecido o pensamento de Martin Heidegger. À
Associação Brasileira de Daseinsanalyse, da qual me sinto filiada,
agradeço manterem vivo o pensamento e a investigação
fenomenológica existencial iniciada por Medard Boss.
Título: A História no pensamento heideggeriano de Ser e Tempo
Autor: Silvia Cristina Salvan Strake
Resumo
O presente estudo pretende explicitar a historicidade discutida na obra
Ser e Tempo de Martin Heidegger. Entendemos que o autor apresenta
uma discussão original do sentido da história, contrapondo-se às
concepções desenvolvidas pela Escola Histórica [Historicismo]. Para
tanto, descrevemos as considerações presentes no pensamento de
Heidegger de 1927 que corroboram para a superação da abordagem
epistemológica propondo, assim, uma compreensão ontológica da
história. A compreensão do que seja a história, segundo o autor, não se
caracteriza pela tentativa de estabelecê-la como ciência, mas a
compreensão ontológica da história se revela na explicitação da
condição fundamental do homem como Dasein. É a partir da existência
humana cotidiana que Heidegger problematiza o sentido da história, ou
seja, o modo de ser da história denominado de historicidade. Para
realizar a exposição do modo de ser da história, utilizamos a descrição
dos elementos fundamentais contidos na Analítica do Dasein, pois estes
elementos (ser-com-os-outros, temporalidade, compreensão, cuidado,
ser-para-a-morte, disposição, etc), juntamente com a descrição do
método fenomenológico-hermenêutico, evidenciam a perspectiva
ontológica original do pensamento de Heidegger para discutir o
problema da história.
palavras-chaves: história, historicidade, Dasein, ontologia, ser-com-
os-outros, temporalidade, compreensão, cuidado, ser-para-a-morte,
disposição, morte, fenomenologia.
Title: History in Heidegger’s Thought in Being and Time
Author: Silvia Cristina Salvan Strake
Abstract
This study intends to present historicity [or historicality] as discussed in
the work Being and Time by Martin Heidegger. We understand that this
author presents an original discussion about the meaning of history in
opposition to the conceptions developed by the Historicism. In order to
do so we described the considerations presented in Heidegger’s
thoughts in 1927, which reinforce his overcoming the epistemological
approach and proposing the ontological understanding of history.
According to him, the comprehension of what history means should not
be defined by the attempts to establish it as a science, but an
ontological comprehension of history is revealed by describing the
fundamental human condition as Dasein. Based upon daily human
existence Heidegger inquiries the significance of history, namely the
mode-of-being of history - called historicity [historicality]. We tried to
accomplish the exposition of the mode-of-being of history by means of
the fundamental elements description as inserted in the Analytics of
Dasein, because these elements (being-with-others, temporality,
understanding, care, being-towards-death, state-of-mind, etc), along
with the description of the phenomenologic-hermeneutical methodology,
bring into light the original ontological perspective by Heidegger’s
thoughts to discuss the problem of history.
palavras-chaves: history, historicity [historicality], Dasein, ontology,
being-with-others, temporality, understanding, care, being-towards-
death, state-of-mind, phenomenology.
Sumário
Introdução ................................................................................ p.1
Capítulo 1
Uma apresentação geral sobre o contexto de discussão acerca da História no século XIX .................................................................. p.10
Capítulo 2
As idéias fundamentais do pensamento de Heidegger em Ser e Tempo ....................................................................................... p.28
2.1 A proposta de Ser e Tempo..................................................... p.28
2.2 Breve delineamento do método fenomenológico hermenêutico ................................................................... p.32
2.3 A apresentação das estruturas fundamentais do Dasein............... p.34
Capítulo 3
A importância do conceito de morte para a compreensão da totalidade do Dasein em Ser e Tempo ............................................ p.51
Capítulo 4
Considerações acerca da temporalidade em Ser e Tempo .................. p.65
4.1 Temporalidade Imprópria ....................................................... p.74
4.2 Intratemporalidade ................................................................ p.77
4.3 Temporalidade Própria ........................................................... p.81
Capítulo 5
A explicitação da historicidade como possibilidade de compreensão do modo temporal do Dasein ..................................... p.91
5.1 A apresentação dos caminhos para compreender a história ......... p.92
5.2 A discussão dos elementos fundamentais para exposição da historicidade do Dasein ..................................................... p.97
5.3 A elucidação da historicidade .................................................. p.105
5.4 Historicidade Imprópria do Dasein ........................................... p.109
5.5 Historicidade Própria do Dasein ............................................... p.111
Considerações finais ................................................................. p.120
Referências Bibliográficas ......................................................... p.125
1
Introdução
O presente estudo discutirá a historicidade na obra Ser e Tempo,
de 1927, de Martin Heidegger. Neste texto de 1927, o autor
problematiza a história1 como acontecimento do Dasein2. Vale salientar
que Ser e Tempo é um texto importante, mas preparatório no que se
refere ao estudo da história na obra de Heidegger.
O pensamento heideggeriano acerca da história apresenta dois
momentos distintos. O primeiro momento está presente na discussão de
Ser e Tempo e nesta obra há uma explicitação da história a partir do
Dasein, ou seja, a compreensão da história proposta pelo autor se dá a
partir do ente que interroga a própria condição — o Dasein. O segundo
1 No texto utilizo o termo história escrito em letra minúscula para designar a compreensão ontológica de Heidegger acerca do acontecimento do Dasein. E História escrita em letra maiúscula para designar a História como ciência, conforme discussão do Historicismo e da Escola de Marburgo. 2 Dasein: “O termo alemão, que é originário, começa a ser usado no século XVIII. (...) Mas, no uso filosófico contemporâneo, essa palavra ingressou com o significado atribuído pelo existencialismo, sobretudo por Heidegger, que a usou para designar a existência própria do homem. ‘Esse ente, que nós mesmos sempre somos e que, entre as outras possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos com o termo Dasein’ (Ser e Tempo, § 2)” (ABBAGNANO, 2000, p.888).
No decorrer do presente trabalho, para designar a condição de ser do homem no mundo, utilizarei o termo Dasein com o propósito de manter a designação original de Heidegger, bem como da tradução de Ser e Tempo de Jorge Eduardo Rivera, 4ª edição, 2005, usada como apoio deste estudo. O texto em alemão, Sein und Zeit, foi utilizado como apoio para as palavras — chaves do pensamento de Heidegger. O termo Dasein aparecerá escrito em itálico para marcar que é um conceito elaborado por Heidegger. As citações utilizadas neste estudo são retiradas da obra Ser e Tempo, da edição chilena acima referida, e estão no corpo do texto em português (tradução minha) e, em nota de rodapé, o trecho correspondente em castelhano.
2
momento da discussão da história no pensamento heideggeriano
acontece a partir de 19303, no trabalho Sobre a Essência da Verdade,
em que o autor apresenta uma nova discussão sobre o sentido da
história — a história passa a ser compreendida como história do ser.
Esta outra perspectiva de compreensão sobre a história é conhecida
como ‘a virada’ [kehre].
Após a publicação de Ser e Tempo, Heidegger abandona a
discussão do sentido do ser co-relacionada com a existência, isto é,
abandona a compreensão da história como acontecimento do Dasein,
ente que, naquela discussão, permitiria o acesso à resposta de tal
questão. Após 1930, para o autor interessava buscar o sentido do
próprio ser e sua revelação, isto é, a história do ser. Assim sendo, o
estudo do pensamento heideggeriano acerca da história compreende os
dois momentos acima citados, que, embora distintos, são
imprescindíveis no avanço das reflexões do autor sobre o tema.
Entendemos que a compreensão da história como acontecimento
do Dasein explicita a força inicial do pensamento de Heidegger, bem
como contribui para a continuidade e os avanços posteriores de seus
escritos acerca da história. Portanto, elegemos o tema da história em
Ser e Tempo para explicitar os primeiros esforços do autor em discutir o 3 O texto Sobre a Essência da Verdade foi apresentado por Heidegger pela primeira vez em 1930, segundo nota do tradutor, Ernildo Stein, e a primeira edição impressa do texto data de 1943. Ver Coleção os Pensadores, 1999, p.149.
3
tema de uma perspectiva ontológica, ou seja, como acontecimento do
Dasein.
A obra Ser e Tempo referida contém uma Introdução com 8
parágrafos, uma Primeira parte com duas Seções, sendo que a Primeira
Seção contém 6 capítulos com 44 parágrafos; a Segunda Seção contém
6 capítulos com 39 parágrafos. A explicitação das estruturas ôntico-
ontológicas do Dasein, propostas por Heidegger em ST4, é importante
para este estudo; no entanto, o enfoque de análise está concentrado
nos parágrafos: 6 e 7 da Introdução, que se referem, respectivamente,
à explicitação da questão do ser e do método descrito para explicitar tal
questão, e nos parágrafos 72, 73, 74, 75 e 76 da Segunda Seção, que
discutem diretamente a compreensão de história que Heidegger propõe
a partir da Analítica do Dasein.
A escolha do tema historicidade na obra Ser e Tempo (1927), de
Martin Heidegger, e a delimitação dos parágrafos para o estudo aqui
apresentado surgiram da necessidade, primeiramente, de sistematizar e
aprofundar estudos iniciados em 1993 sobre a fenomenologia
heideggeriana. Meu primeiro contato com a fenomenologia ocorreu no
final do curso de Psicologia, em 1993. A partir de 1994, iniciei um grupo
de estudo sobre Ser e Tempo na Associação Brasileira de
4 ST: abreviação da obra de Martin Heidegger, Ser e Tempo, 1927.
4
Daseinsanalyse. Em decorrência dos estudos acerca da fenomenologia
heideggeriana, nasceu meu interesse de realizar um trabalho de
investigação com um tema presente na Analítica do Dasein. O tema
eleito, historicidade, possibilita compreender a noção de história de um
modo peculiar, segundo a explicitação de Heidegger em Ser e Tempo.
A relevância do tema da historicidade apresentada por Heidegger
se dá em vários aspectos. O primeiro aspecto, que considero central, é a
mudança proposta por ele para discutir a História. E como decorrência
desta mudança, o sentido da História, ou seja, sua descrição e
compreensão tomam outras perspectivas no contexto de discussão da
História da Filosofia. A mudança de foco no estudo da História diz
respeito à discussão presente na Alemanha, desde o século XIX, para
tornar a História uma ciência segura e fidedigna como as ciências
naturais em ascensão nesse período, assim como reunir e resgatar o
passado e os feitos nacionais para valorizar as origens daquele povo. Em
1915, Heidegger apresenta o ensaio O Conceito de Tempo nas Ciências
Históricas5, levantando o problema da aplicação da estrutura e
justificação lógica das ciências naturais nas ciências históricas,
entendendo que as finalidades e os objetos de cada ciência requerem,
pela própria especificidade, uma dada delimitação. Apesar de propor
5 Esse ensaio foi apresentado por Heidegger em Freiburg, em 27 de julho de 1915. E foi impresso em Leipzig, em 1916.
5
essa discussão, o autor não problematiza a História como ciência,
tampouco como narração de feitos e acontecimentos humanos como já
fora tratada na Antiguidade. A preocupação de Heidegger consiste em
problematizar a história do ponto de vista ontológico, isto é, explicitar o
acontecer dos entes em geral.
A mudança de foco, acima referida, busca justamente sair da
discussão de como justificar e validar o objeto da História, para torná-la
uma ciência, e propor uma discussão radical e em outra direção, ou
seja, deslocar a questão epistemológica para uma questão ontológica e,
desta maneira, apresentar a explicitação da história como condição
fundamental da existência humana. A partir desta consideração, o
estudo da história assume outros caminhos, ou seja, temos outros
aspectos, conforme mencionados, para analisar. Um deles é a
argumentação acerca da concepção de tempo, que sofre uma
modificação considerável na exposição do autor em ST, pois o tempo
não pode ser considerado, segundo Heidegger, uma medida linear e
sucessiva de passado, presente e futuro, mas o tempo acontece
circularmente a partir do futuro. A compreensão de tempo, para o autor,
é a essência da história. Isto é, a descrição do que é histórico deve
problematizar o que compreendemos como tempo.
6
A história discutida em ST não é estudo do passado, no sentido
dos acontecimentos, de feitos heróicos e políticos de uma realidade que
já aconteceu, pois a preocupação não é descrever situações específicas
de uma dada época, nem construir um campo de investigação que
legitime seu objeto de estudo e análise, mas explicitar as condições de
possibilidade de se dar algo, ou seja, o acontecer do ente na existência.
Neste sentido, a exposição realizada na Analítica do Dasein torna
evidente, através da descrição histórico-ontológica, que a compreensão
de história se coloca em outra perspectiva de reflexão, uma vez que
recorre à ontologia para buscar a origem, o sentido de um dado
fenômeno.
Portanto, em virtude da nova problematização, é necessário criar
elementos para sustentação e explicitação do sentido da história a partir
da ontologia. Assim sendo, o autor elaborou os existenciais ou
elementos fundamentais6 de análise a partir do existir humano. A vida,
enquanto existência, é compreendida como um fenômeno e não como
uma criação divina, entidade mística ou fato biológico. E, a partir de
1923, a vida é igualada a Dasein e é através da descrição de suas
estruturas, de sua constituição fundamental, que o autor alcança o
6 Os elementos fundamentais referidos no texto são as estruturas fundamentais do Dasein, ou seja, os modos constitutivos do Dasein designados e elaborados por Heidegger como existenciais para orientar a análise do sentido do ser presente em Ser e Tempo. Dentre os existenciais, selecionamos os mais significativos para a discussão da historicidade: ser-com-os-outros, espacialidade (ser em), temporalidade, disposição, compreensão, cuidado, queda e ser mortal.
7
sentido do que seja a história. Segundo Heidegger, Dasein deve ser
compreendido como a existência própria do homem — o ente humano
que interroga a si e a própria condição na existência, e que, portanto,
tem acesso à questão do sentido do ser. Simultaneamente à explicitação
das estruturas do Dasein, um outro ponto relevante a citar é o modo de
analisar essas estruturas, ou seja, o método fenomenológico
hermenêutico elaborado por Heidegger, considerando sua releitura da
ontologia tradicional, traz para Analítica do Dasein um modo peculiar de
compreender o acontecer dos entes, do qual trataremos adiante.
Para Heidegger, a historicidade é a compreensão temporal que o
Dasein possui de seu projeto existencial, isto é, o Dasein é um ser
temporal que possui uma duração entre nascimento e morte para
acontecer na existência.
Entretanto, para compreender o sentido do acontecer
propriamente histórico, isto é, o modo de ser da história, torna-se
necessário explicitar os elementos fundamentais encontrados em Ser e
Tempo para mostrar a constituição histórica do Dasein. Os elementos
fundamentais que serão discutidos ao longo do trabalho são: o conceito
de morte, o conceito de tempo, círculo da compreensão, ser-com,
cuidado e, propriamente, a historicidade.
8
Para propiciar essa primeira tentativa de esboçar o estudo da
história realizado por Heidegger em Ser e Tempo, utilizei algumas obras
do próprio autor, que constam na bibliografia e que sustentaram o
entendimento e o desdobramento deste trabalho. A obra Ser e Tempo,
fio condutor do estudo, apresenta algumas traduções (em português,
espanhol, castelhano e inglês), e, após uma breve apreciação delas, foi
adotada a tradução chilena, de Jorge Eduardo Rivera. A tradução
referida tem um texto muito cuidadoso e muito próximo do original (ver
prólogo do tradutor). A leitura dos comentadores como Kisiel, Dreyfus,
Stein, entre outros, foi imprescindível para compreender e elaborar o
problema da história.
O presente estudo compreende: o Capítulo 1, que apresenta um
contexto de discussão acerca da História na época de Ser e Tempo, e
que oferece alguns elementos para localizar o problema epistemológico
e apresentar a proposta ontológica heideggeriana; o Capítulo 2, que
mostra a proposta de Ser e Tempo e uma breve explicitação dos
existenciais que representam a proposta de superação da questão
epistemológica; o Capítulo 3, que traz a descrição da compreensão do
fenômeno da morte – a distinção da morte entendida na vida diária e na
dimensão ontológico-existencial; o Capítulo 4, que apresenta a descrição
da temporalidade própria, imprópria e da intratemporalidade, com o
propósito de demonstrar as considerações peculiares de Heidegger
9
sobre a noção de tempo; o Capítulo 5, que traz a explicitação das
estruturas fundamentais que contribuem para a descrição da
historicidade própria e imprópria, que representam uma nova
abordagem no entendimento da história.
O presente estudo estabelece os capítulos referidos para propiciar
um exercício de investigação que nos aproxime do problema, dos
argumentos e das soluções7 que Heidegger mostrou para abordar a
questão da história. Neste sentido, acredito manter os caminhos de um
possível discurso filosófico.
7 As três perguntas fundamentais, segundo Porta, que precisamos fazer para compreender um
autor: o problema, a solução ou resposta, quais são seus argumentos e fundamentos (Porta, 2002, p.39).
10
Capítulo 1
Uma apresentação geral sobre o contexto de discussão acerca da
História
Torna-se relevante apresentar alguns aspectos presentes no
contexto da discussão acerca da História no momento de Ser e Tempo,
já que Heidegger propôs uma mudança de foco para a compreensão de
História, em 1927, conforme citado na Introdução deste trabalho. A
discussão presente na filosofia desde o século XIX, sobretudo na
Alemanha, concentrava-se na procura de tornar a História uma ciência.
Para esclarecer o tratamento dado ao tema da História, elegi três
dos autores com quem Heidegger dialogou nesse período: Willhem
Dilthey8 (1833-1911), Georg Simmel9 (1858-1918) e Wilhem
Windelband10 (1848- 1915). Podemos encontrar citações em Ser e
Tempo, sobretudo dos textos de Dilthey e Simmel, e algumas
8 Wilhelm Dilthey, historiador e filósofo, é considerado um importante representante da escola
histórica. Sua grande preocupação era fundamentar de maneira autônoma as ciências do espírito.(REALE, 2006, p.36). 9 Georg Simmel, em suas considerações acerca da questão da história, é compreendido como
relativista, “as categorias da pesquisa histórica são produto de homens históricos, e elas mudam com a história” (REALE, 2006, p.42). 10 Wilhelm Windelband é considerado representante da escola de Baden com sua filosofia dos valores: “são os valores que estão na base do conhecimento, da moralidade e da arte”. O autor também contribuiu com a ciência historiográfica na distinção de natureza e história (REALE, 2006, p.24).
11
considerações no texto History of the Concept of Time11 (1925), de
Heidegger, acerca da discussão de Windelband. Obviamente não
trataremos da vasta obra desses autores, mas utilizaremos textos
específicos de cada um, que revelam a preocupação com a explicitação
do objeto e método da História para validá-la como ciência. Foram
selecionados os seguintes textos: de Dilthey, Acerca Del Estudio De La
Historia De Las Ciências Del Hombre, De La Sociedad y Del Estado
(1875), citado por Heidegger no § 74 de Ser e Tempo; de Simmel, El
Problema Del Tiempo Histórico, citado por Heidegger no §80; e de
Windelband, Historia y Ciencia de la Naturaleza12.
Dilthey, Simmel e Windelband são considerados autores
pertencentes ao Historicismo, isto é, autores que entendem que a
realidade é histórica e que, portanto, a história é obra dos homens, das
suas relações que ocorrem em um dado período temporal. A escola
histórica não é uniforme em seus posicionamentos acerca de como
compreender o homem, de como validar o objeto do conhecimento
histórico, mas o que é fundamental para o historicismo é a distinção
entre história e natureza. E é sobre a distinção entre história e natureza
que Dilthey começa a discussão no estudo acima citado.
11 O texto History of the Concept of Time é uma tradução do texto original de Heidegger: Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs. 12 Discurso do reitorado da Universidade de Estrasburgo, 1894.
12
Dilthey, em seu estudo, pretende mostrar a diferença entre o
objeto e o método das ciências naturais e das ciências do homem para
tentar constituir o objeto próprio dessa última. Nesse estudo de 1875,
Dilthey ressalta as diferentes discussões de alguns autores na história
da filosofia, sobretudo de Comte e John Stuart Mill, que tentavam
validar e fixar o objeto das ciências do homem, da sociedade e do
estado, a partir dos parâmetros das ciências da natureza. O ponto
central que o autor trabalha é salientar a dificuldade em estabelecer o
objeto da ciência do homem, do estado e da sociedade, pois não se
trata de delinear fenômenos externos como os objetos das ciências
naturais, mas se trata de circunscrever as relações entre os indivíduos
num dado momento temporal. Assim sendo, sua tarefa se constitui em
tornar claro o modo de investigar e analisar o que é histórico, ou seja,
os produtos culturais, o viver do homem.
Dilthey destaca, no início de seu estudo, que as ciências do
homem, da sociedade e do estado serão designadas por ele de ciências
político-morais13 e que essas ciências não apresentam clareza e
transparência como as ciências da natureza em seus traços
fundamentais. É importante mencionar que esse estudo elaborado por
13 Nesse estudo de 1875, Dilthey designa as ciências do homem, da sociedade e do estado como ciências político-morais, pois este é um dos seus estudos preliminares sobre o homem. É em 1883 que escreve Introdução às Ciências do Espírito, no qual estabelece firmemente a diferença entre objeto das ciências naturais e ciências do espírito. Então, a designação não é mais ciências político-morais, para estudar o homem, mas ciências do espírito. As ciências do espírito partem das experiências do homem, do que está presente no mundo humano.
13
Dilthey constitui um esforço em dialogar com as diferentes áreas do
pensamento, como a filosofia moral e as teorias da sociedade e da
política, para encontrar os elementos necessários para fundamentar as
ciências designadas por ele, nessa ocasião, de político-morais. Portanto,
os pesquisadores das ciências político–morais, nesse momento,
enfrentavam dificuldades em estabelecer o objeto de seu estudo
conjuntamente com o método para analisar e validar essa ciência.
O autor aponta o “estado imperfeito”14 do conjunto, próprio das
ciências político-morais. Na medida em que essa ciência lida com as
situações do povo, com os ideais de uma época, com a comoção da
sociedade, com os interesses que advêm da opinião pública, ou seja,
lida com as experiências dos homens, torna-se difícil submetê-la aos
parâmetros das ciências naturais para justilicá-la. As ciências político-
morais buscam unir o que Dilthey chama de “progressos da inteligência”
e “ordenação da sociedade”15 para encontrar um campo próprio de
investigação. Portanto, as ciências político-morais pretendem uma
investigação histórica com propósitos filosóficos para abordar os fatos
históricos, não apenas para elencar e agrupar tais fatos como faziam os
historiadores da época.
14 DILTHEY, 1875, p.433. 15 DILTHEY, 1875, p.437.
14
Segundo Dilthey, o filósofo deve, ao mesmo tempo, realizar a
tarefa do historiador de trazer o material histórico e propor a
investigação com intenção filosófica, ou seja, com intenção reflexiva e
rigorosa, buscando fundamentar seu objeto de estudo.
O método que poderia efetuar a conexão da história com as
ciências morais e políticas Dilthey chamou de “movimento espiritual”,
que pode ser entendido, por um lado, como o curso histórico (o passar
dos anos em décadas, séculos), e por outro lado, como as experiências
da vida humana em sua unidade natural (a duração da vida, a sucessão
das idades). Então, o recurso que as ciências político-morais dispunham
como instrumento de análise eram as experiências humanas, medidas
através da linha da vida.
Dilthey encontrou na experiência concreta do homem, bem como
em sua produção de costumes, valores e leis sociais, o ponto
fundamental para estabelecer e circunscrever o campo da investigação
das ciências político-morais. O autor entendia que, ao estudar o homem
e suas relações recíprocas em um momento temporal, ele encontraria o
ordenamento e o armazenamento dos fatos culturais, morais, sociais,
econômicos e políticos de um povo, isto é, encontraria tanto a linha da
vida dos homens quanto o seu curso histórico datados em anos,
15
décadas e séculos. Então, encontrou uma unidade que chamou de
“conjunto temporal da vida do homem”.16
E, segundo o autor, há uma importante noção relacionada com o
conjunto temporal da vida humana — a noção de geração. Essa noção
trouxe, segundo Dilthey, a concepção de espaço temporal de um grupo
e de uma época, possibilitando compreender tanto o movimento dentro
do grupo quanto o contexto mais amplo. Ou seja, a noção de geração
mostrou as relações de envolvimento do próprio grupo, isto é, os fatos e
as trocas experimentadas nesse interior, ao mesmo tempo em que pôde
retratar a comunidade mais ampla e armazenar os produtos culturais e
sociais produzidos historicamente e, assim, transmiti-los a outras
gerações. Nessa consideração podemos perceber que o autor não trata
das individualidades, mas da história dos homens, da história de um
povo.
Nos esforços de constituir a História como ciência, isto é, com
objeto e método próprio, o autor precisava, após delinear seu objeto de
estudo, encontrar sustentação para tal. E Dilthey estava convencido de
que as relações causais explicativas como sustentação metódica para
apreender os objetos naturais não poderiam dar conta da natureza
específica do objeto das ciências político-morais.
16 DILTHEY, 1875, p.438.
16
Portanto, entendia que deveria partir para algo simples, para uma
investigação do ponto de vista do conhecimento, ou melhor, como se
pode conhecer a realidade de uma sociedade, os conjuntos de fatos
morais, econômicos, sociais e políticos. O indivíduo cognoscente é o
caminho que permite nos aproximarmos das forças significativas que
estão presentes na sociedade, pois o indivíduo possui uma ação
consciente em sua interação na sociedade, ou seja, observa, considera e
investiga as relações em sociedade. Mesmo que fosse difícil delinear e
estudar os conjuntos de fatos de uma sociedade, os autores dessa
época não negavam as forças significativas advindas da sociedade e
buscaram, assim como Dilthey, caminhos para consolidar as ciências do
homem.
O estudo de Dilthey, de 1875, revela o vigor que o pensador
dispensou para problematizar a diferença entre a história e as ciências
da natureza. Entendia que era necessário discutir tais diferenças para
encontrar os traços fundamentais para torná-la, então, as ciências
político-morais que, naquele momento, não apresentavam nenhuma
clareza. Encontrou validade e fundamentação para o estudo pretendido
na experiência do homem concreto; as experiências vividas, fruto das
interações sociais em um período temporal, abriram caminho para a
emergência de um campo próprio de investigação para as ciências do
homem. Contudo, o autor manteve o questionamento em nível
17
epistemológico, uma vez que apresentou a experiência do homem como
um objeto diferente do objeto natural e que deveria ser investigado à
luz de suas especificidades com cunho e rigor científicos.
O trabalho de Dilthey é relevante e reconhecido por diversos
autores assim como por Heidegger, que faz referência a seus escritos no
decorrer de Ser e Tempo. Com relação a esse estudo de Dilthey,
Heidegger salientou a noção de geração como elemento significativo
para compreender a historicidade do Dasein17. Conforme referido
anteriormente, a noção de geração está subordinada, segundo Dilthey,
ao conjunto temporal da vida humana. E, por meio de sua descrição,
podemos compreender e analisar os aspectos referentes aos grupos, aos
povos e não aos indivíduos isoladamente, pois a noção de geração trata
das relações pertencentes dentro do grupo, como também do contexto
histórico ao qual a comunidade pertence. Apresenta, ainda, um outro
desdobramento: as gerações, por meio de seus grupos, ordenam e
armazenam seus valores, verdades que são transmitidas a outras
gerações. Heidegger reconhece no trabalho de Dilthey acerca da vida do
homem aspectos muito fecundos; no entanto, observa que não há um
questionamento ontológico da vida como um modo de ser próprio do
homem.
17 Comentário em nota do § 74 de Ser e Tempo.
18
Portanto, a questão levantada por Heidegger, não só acerca do
estudo de Dilthey, mas acerca do posicionamento do Historicismo, é que
essa escola manteve a discussão da História na perspectiva
epistemológica. E o esforço de Heidegger foi iniciar uma discussão mais
radical para a problematização da História, isto é, há um modo, segundo
o autor, anterior ao do conhecimento científico, pelo qual podemos
tratar o problema da História, e o modo ao qual se refere é o do
questionamento ontológico. O questionamento ontológico permitiu a
Heidegger discutir o modo de ser da história, ou seja, quais são as
condições de possibilidades do acontecer histórico; ele não estabeleceu
parâmetros para viabilizar a História como ciência.
Tomaremos agora as considerações esboçadas no estudo de
Simmel, que apresenta um tratamento para a questão do problema da
História no contexto do Historicismo, mas que traz também um
elemento relevante para a discussão acerca da historicidade — a
questão do tempo histórico.
O estudo de Simmel propõe uma discussão acerca do
estabelecimento do tempo histórico. A busca de circunscrever o objeto
da História traz a necessidade de encontrar elementos fundamentais
para essa problematização. Simmel ressaltou a idéia de que o tempo é
um dos elementos relevantes, portanto, fundamentais para
19
compreendermos o que pode ser delimitado como conteúdo histórico,
pois nem toda realidade apresentaria um conteúdo histórico. O autor
exemplifica tal afirmação:
Se, por exemplo, em qualquer parte da Ásia, descobrirem os alicerces de uma cidade sepultada, com muitos objetos interessantes, mas que não contenham o mais remoto indício de sua idade, nem por seu estilo nem por seu testemunho direto ou indireto, estes vestígios poderiam ter, em muitos sentidos, grande valor e importância, mas não seriam um documento histórico (SIMMEL, 1950, p.193)18.
O conteúdo propriamente histórico necessitaria de uma relação
simultânea, qual seja, do estabelecimento de um momento determinado
no tempo para ser qualificado como documento ou feito histórico, ao
mesmo tempo em que necessitaria da compreensão dos conteúdos
ocorridos. Segundo Simmel, é na relação de um momento determinado
no tempo com o elemento da compreensão, ou seja, de compreender os
conteúdos ocorridos num dado período, que podemos dizer que algo se
tornou histórico. O autor apresenta exemplos de algumas batalhas na
história, dentre elas, a guerra dos sete anos, de 1756 a 1763, que
apresentou essa duração de tempo; a guerra ocorreu continuamente
nesse espaço temporal com seus ataques e conquistas, no entanto,
escreve o autor, nesse período da história, outros fatos ocorreriam ao
redor, isto é, há uma continuidade na história se considerarmos a
18
Si, por ejemplo, em cualquer parte da Ásia se descubrieran los cimientos de uma ciudad sepultada, com muchos objetos interesantes, que, no obstante, no dieran el más remoto indicio de su edad, ni por su estilo ni por testimonios directos o indirectos, estos vestígios podrían tener em muchos sentidos gran valor e importancia, pero no serían um documento histórico (SIMMEL, 1950, p.193).
20
unidade que a guerra representa, mas uma descontinuidade quando
observamos outros fatos acontecendo paralelamente. Podemos dizer
que há um contexto histórico onde existem diferentes acontecimentos
que ocorrem e se remetem uns aos outros.
Simmel entende que o conhecimento se encontra nas experiências
e que, portanto, os fundamentos da pesquisa histórica estavam
presentes nos produtos históricos dos homens. Os fatos históricos foram
compreendidos como unidades contínuas remetidas a uma anterioridade
e a uma posterioridade, isto é, os fatos não são isolados, são fenômenos
que devem ser compreendidos em sua totalidade. Assim, os
acontecimentos ocorridos ao longo do tempo, como as batalhas, as
guerras ou as descobertas arqueológicas seriam consideradas como
conteúdo histórico a partir de parâmetros fixados pelo historiador, ou
seja, é ele quem compreende e qualifica o conhecimento histórico
baseado na relação, acima mencionada, de estabelecer um momento do
tempo com a categoria da compreensão que, segundo Simmel,
interpreta a realidade histórica.
A delimitação do problema do tempo histórico tratada por Simmel
salienta a importância da concepção de tempo para delinear o que seja
propriamente o tempo histórico e estabelece a categoria da
compreensão para interpretá-lo, porém mantém a discussão da História
21
na determinação do tempo cronológico e no esclarecimento de como
apreender o objeto histórico. Os fatos históricos ocorrem no tempo, as
batalhas ou guerras de um determinado período foram analisadas como
unidades compreensivas do tempo do mundo, como salientou Heidegger
na discussão do tempo ocupado (do qual trataremos no capítulo 4,
sobre Temporalidade), mas podemos mencionar que se tratou da
interpretação do tempo como contagem e datação.
Na perspectiva de encontrar validade e autonomia para as ciências
históricas, Simmel propôs trabalhar nesse estudo com a delimitação de
como poderia tornar possível o conhecimento do tempo histórico. E na
concepção de Heidegger, a compreensão do tempo deve ser guiada pela
ontologia, para que se encontre a noção mais originária para se dizer
acerca do tempo; assim sendo, compreender o tempo como datação ou
contagem é apontar uma das dimensões possíveis de acesso ao tempo.
Segundo Heidegger, apesar de tratarem de problemas relevantes
de um modo rigoroso, nem Dilthey nem Simmel, apresentaram uma
fundamentação radical e suficiente para investigar o problema da
história. Trataremos de apresentar, em seguida, as considerações que
Windelband propõe para responder ao problema da História.
O texto apresentado por Windelband, em 1894, no jubileu de
fundação da Universidade, tratou de discutir a investigação filosófica em
22
torno da questão das ciências históricas e das ciências da natureza.
Apontou criticamente, nessa ocasião, que o discurso filosófico poderia
tanto assumir um panorama meramente histórico quanto se apoiar em
uma ciência empírica como a psicologia, que estava em voga no
momento. No entanto, não assumiria nenhuma destas posturas para
oferecer uma discussão sobre os inegáveis avanços das ciências
históricas presentes no século XIX, mas acreditava que sua importante
tarefa naquele momento era:
(...)vir a testemunhar que a filosofia, ainda que sob sua forma atual, depois de ter-se desprendido de toda apetência metafísica, se sente à altura daqueles grandes problemas aos quais deve o importante conteúdo de sua história, seu valor no campo da literatura e o lugar que ocupa no ensino universitário (WINDELBAND, 1949, p.312)19.
Portanto, para iniciar o questionamento, o autor utilizou a
metodologia e a teoria da ciência, segundo ele, temas presentes na
lógica, que possuem uma relação com a filosofia e as ciências. Entendeu
que se fazia necessário criar uma delimitação e propor um rigor
metodológico para estudar os diversos problemas novos que apareciam
nas ciências, pois os diferentes métodos iam se ramificando, e apontou:
era como se as disciplinas tivessem se misturado, perdendo a sua
especificidade na tentativa de responder aos novos tipos de problemas,
19
(...) venir a testimoniar que la filosofía, aun bajo su forma actual, después de haberse desprendido de toda apetencia metafísica, se siente a la altura de aquellos grandes problemas a los que debe el importante contenido de su historia, su valor en el campo de la literatura y el puesto que ocupa em la enseñanza universitaria (WINDELBAND, 1949, p.312).
23
referindo-se à subordinação da ciência histórica aos fundamentos das
ciências da natureza.
Para Windelband, tanto a investigação da natureza quanto da
história tem um aspecto em comum, as ciências empíricas, pois ambas
se fundamentam na experiência de fatos dados pela percepção. O autor
não concordou, porém, em distinguir as ciências da natureza e as
ciências históricas, como fez Dilthey. Ele salientou que esta
contraposição é meramente objetiva; não é simples e evidente como
tratou Dilthey.
Se não me equivoco ao dedilhar a tônica da novissíma filosofia e as suas repercussões epistemológicas, creio que esta distinção tradicional, vinculada ao modo usual de pensar e de expressar, não pode ser considerada imediatamente como algo tão evidente que sirva como base indiscutível daquela classificação fundamental (WINDELBAND, 1949, p.315)20.
Assim sendo, propõe uma outra classificação para apoiar a
discussão acerca das ciências da natureza e história. O pensamento
científico foi dividido, segundo o autor, em ciências nomotéticas, que
compreendem “as leis gerais que expressam a regularidade dos
fenômenos”21; e as ciências idiográficas, “que voltam sua atenção para
20
Si no me equivoco al pulsar la tónica de la novísima filosofia y las repercusiones de la epistemológica, creo que esta distinción tradicional, adherida al modo usual de pensar y de expresarse, no puede ser considerada ya como algo tan evidente que sirva como base indiscutible de aquella clasificación fundamental (WINDELBAND, 1949, P.315). 21 REALE, 2006, p.41.
24
o fenômeno singular, visando compreender sua especificidade e
individualidade”22.
No momento em que realizou as distinções em ciências
nomotéticas e idiográficas, Windelband pretendeu estabelecer um valor
científico para os problemas das ciências naturais e históricas, isto é,
propôs uma fundamentação científica para a discussão da História.
Segundo as considerações de Heidegger, no texto History of the
Concept of Time (1925), Windelband e os representantes da Escola de
Marburg trataram a questão da história do ponto de vista mais
problemático, pois a discussão, sobretudo de Windelband, girou em
torno de estabelecer uma classificação e fundamentação teórica e
científica para a História, reduzindo todo o questionamento já discutido
por Dilthey acerca da vida e da aplicação do método das ciências
naturais para as ciências do homem. Do ponto de vista de Heidegger, a
contribuição de Windelband serviu para esvaziar metodologicamente a
discussão relevante da Escola Histórica, já que toda a explicitação para
criar um campo de investigação foi por ele reduzida e tratada como uma
questão de construir um sistema teórico-conceitual para discutir o
problema da História.
22 vide nota 7.
25
Sobre os três autores citados, Heidegger salientou que Dilthey foi
um pensador muito importante na Escola Histórica, pois percebeu a
dificuldade que seria transpor o método das ciências naturais para o
método das ciências históricas. Assim sendo, foram necessários alguns
esforços por parte de Dilthey para construir uma teoria a partir da
própria especificidade presente nas ciências históricas. A reflexão do
autor se deu em estabelecer o objeto da ciência que, naquele momento,
não apresentava transparência, ou seja, na discussão com as filosofias
da época, sobretudo de Comte e de Stuart Mill, pôde circunscrever que
o tema da ciência histórica era a realidade. Então, sua tarefa consistiu
em compreender a realidade histórica, tornando-a mais clara para,
desta maneira, elaborar modos possíveis de interpretar tal realidade.
As investigações de Dilthey, sejam nos escritos de 1875 citados ou
nos posteriores, possibilitaram elaborar uma ciência histórica que
rompeu, segundo Heidegger, com as concepções naturalistas de sua
época. Nas discussões posteriores sobre o Historicismo de Simmel ou de
Windelband, Heidegger não indicou um solo frutífero como encontrou
nos escritos de Dilthey, visto que o ponto de inflexão desses outros
autores para pensar a questão da história passou longe do que ele
entendia como saída para responder ao problema do que é
propriamente histórico.
26
A perspectiva de Heidegger, já presente no texto de 1925,
pretendeu trabalhar o tema da história do ponto de vista
fenomenológico. Nessa ocasião, explicitou que a compreensão
fenomenológica tinha como tarefa tratar a questão da história antes de
qualquer consideração científica. Escreve Heidegger em 1925:
Here it is not a matter of a phenomenology of the sciences of history and nature, or even of a phenomenology of history and nature as objects of these sciences, but of a phenomenological disclosure of the original kind of being and constitution of both. (HEIDEGGER, 1985, p.2)23.
Heidegger entendeu que a saída para o estudo da história não
estava em fixar uma distinção entre os objetos das ciências naturais e
históricas ou uma delimitação de cada ciência ou, ainda, a aplicabilidade
da transposição do método natural para o histórico. Entendia que a
investigação deveria aproximar-se de um entendimento original, ou
seja, do modo de ser da história, o modo de ser propriamente histórico
do homem.
E, portanto, para dar andamento à investigação pretendida, o
autor propôs algumas discussões iniciais nas conferências de 1924, em
O Conceito de Tempo; em 1925, no History of the Concept of Time e,
em 1927, na obra Ser e Tempo, trazendo a força e o questionamento
23 Tradução nossa: “Aqui não é uma questão de uma fenomenologia das ciências da história e da natureza, ou mesmo de uma fenomenologia da história e da natureza como objetos dessas ciências, mas de uma revelação fenomenológica do tipo original de ser e a constituição de ambas”.
27
radical da questão do sentido do ser. Foi na obra Ser e Tempo, então,
que Heidegger propôs tratar o problema da história a partir da ontologia
fenomenológica, isto é, a pergunta sobre o modo de ser da história por
meio da explicitação da constituição do Dasein como ente que
compreende a si e o mundo por ser constituído pela compreensão de
ser.
Salientamos a discussão acerca da História como uma disciplina
que passou a ter visibilidade e importância por meio de alguns autores
como Dilthey, Simmel e Windelband, entre outros, que pretenderam
validá-la como uma ciência, assim como procuramos mostrar algumas
discordâncias e a saída que Heidegger ofereceu pela ontologia para
investigar tal questão. Nos capítulos que se seguem, apresentaremos a
maneira como Heidegger elaborou os fundamentos necessários para
ultrapassar as questões epistemológicas estabelecidas pela escola
histórica, para compreendermos a história do ponto de vista ontológico.
28
Capítulo 2
As idéias fundamentais do pensamento de Heidegger em Ser e
Tempo
2.1 A proposta de Ser e Tempo
Nas considerações que seguem, pretendemos apontar as idéias
essenciais discutidas por Heidegger em Ser e Tempo, que demonstram a
compreensão da história na perspectiva ontológica, superando, assim, a
interpretação epistemológica presente no Historicismo. A apresentação
do projeto da Analítica do Dasein 24 tem como finalidade contextualizar
e, em seguida, elucidar a importância de algumas das estruturas
fundamentais do Dasein, bem como a circularidade do método
fenomenológico hermenêutico, pois entendemos serem eles os
elementos primordiais que sustentam a explicitação do estudo da
historicidade como modo de ser Dasein.
Em Ser e Tempo a pergunta de Heidegger é sobre o sentido do
ser25. O autor recoloca a questão sobre o ser26, pois entende que,
24 “A Analítica do Dasein é, como o nome indica, uma interpretação ontológica determinada do ser-homem como Dasein e, na verdade, a serviço da preparação da questão do ser”. (...) A Analítica tem a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de condições ontológicas. A Analítica como analítica ontológica não é um decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura” (HEIDEGGER, 2001, respectivamente, p 150 e 141). 25 A discussão sobre o sentido do ser, bem como a pergunta pelo ser podem ser encontradas na Introdução de Ser e Tempo e nos Capítulos I e II, e o método de investigação no Capítulo II. 26 Neste trabalho o termo ser aparecerá grifado em itálico, pois é um conceito discutido por Heidegger como conceito fundamental para compreender o caminho do conhecimento da tradição
29
embora o conceito de ser tenha recebido diferentes denominações no
decorrer da História da Filosofia, e tentativas de elaborar o problema, a
questão do ser não foi resolvida. Em sua análise, verificou que o
conceito ser tinha estado identificado com o divino e com o ente; ou
seja, a definição de ser estava remetida a outros conceitos. O conceito
de ser estava unido com a definição de um outro conceito para realizar
sua própria definição, isto é, a definição de ser não partia dele mesmo.
E, em suas investigações, Heidegger considerou a compreensão do
conceito ser a partir dele mesmo, ou seja, do próprio conceito.
O ‘ser’ é um conceito evidente em si mesmo. Em todo conhecimento, em todo enunciado, em todo comportamento a respeito de um ente, em todo comportar-se a respeito de si mesmo, se faz uso do ‘ser’, e esta expressão tem um resultado compreensível ‘sem mas’(HEIDEGGER, 2005, p.27)27.
A questão do ser é pensada, pelo autor, tanto no âmbito da
história conceitual, como também no âmbito de quem questiona ser.
Pois não é possível uma análise direta do sentido do ser, segundo o
autor, mas uma análise do ente. E, para tornar acessível a questão do
ser, precisamos nos guiar, como escreve Heidegger, por um ente metafísica: “ser, argumenta Heidegger, é muitas vezes considerado como a mais vaga das abstrações, o aspecto mais geral de tudo que é” (INWOOD, 2002, p.165). Assim, ser não possui uma definição apreensível para o autor, ser não é isto ou aquilo. Heidegger escreve: “...nos movemos desde siempre en una comprensión del ser. Desde ella brota la pregunta explícita por el sentido del ser y la tendencia a su concepto. No sabemos lo que significa ‘ser’. Pero ya cuando preguntamos: ‘qué es ‘ser’?, nos movemos en una compresión del ‘es’, sin que podamos fijar conceptualmente lo que significa el ‘es’. Ni siquiera conocemos el horizonte desde el cual deberíamos captar y fijar ese sentido” (HEIDEGGER, 2005, p.28-29). Ou, ainda: “Ser es siempre el ser de un ente” (HEIDEGGER, 2005, p.32).
27 El ‘ser’ es un concepto evidente por sí mismo. En todo conocimiento, en todo enunciado, en todo comportamiento respecto de un ente, en todo comportarse respecto de sí mesmo, se hace uso del ‘ser’, y esta expresión resulta comprensible ‘sin más’(HEIDEGGER, 2005, p.27).
30
privilegiado que em sua constituição existencial tem a possibilidade de
se interrogar e compreender o ser. Esse ente o autor denomina de
Dasein. “A esse ente que em cada caso somos nós mesmos, e que,
entre outras coisas, tem essa possibilidade de ser que é o perguntar, o
designamos com o termo Dasein. (HEIDEGGER, 2005, p.30)28.
Para constituir a Analítica do Dasein, Heidegger recoloca a questão
sobre o sentido do ser, pois não via solução para o problema do ser na
multiplicidade de sentidos, instaurado na metafísica. Procurando solução
no resgate à tradição, elaborou dois aspectos fundamentais
simultaneamente. Primeiro, foi buscar na História da Filosofia, por meio
de uma releitura dos diferentes entendimentos construídos do conceito
ser, as raízes, ou seja, as primeiras denominações do conceito e trazer
para investigação as noções originais que corroboram para explicitação
do conceito ser a partir dele mesmo (sem uma vinculação com outros
conceitos como ocorreu na metafísica), para elaborar o método
fenomenológico hermenêutico29. O segundo aspecto trata da
explicitação das estruturas do Dasein a partir da elaboração obtida na
investigação acerca do conceito ser. Heidegger, através da busca dos
28A este ente que somos en cada caso nosotros mismos, y que, entre otras cosas, tiene esa posibilidad de ser que es el preguntar, lo designamos con el término Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.30). 29 “Heidegger usa Hermeneutik para significar ‘interpretação’, interpretação da ‘facticidade’, isto é, de nosso próprio Dasein. Como também refere “Hermeneutik ist Destruktion (...) [para] interpretar um texto recoberto por séculos de exegese distorcida” (INWOOD, 2002, p.79).
31
conceitos na tradição metafísica e da explicitação das estruturas do
Dasein, propõe, de um lado, o que chamou de destruição30: ao voltar à
História da Filosofia, recuperou e dialogou com o aspecto vivo presente
nos conceitos, trazendo de volta a origem perdida e encoberta pela
própria tradição; e, por outro, uma construção, quando explicitou as
estruturas do Dasein no horizonte da compreensão de ser. Esse
movimento simultâneo de destruição e construção presente na Analítica
do Dasein se refere à elaboração do método fenomenológico
hermenêutico, e, como escreve Stein (1988), trata-se de um ajuste:
“método e objeto vão se corrigindo sucessivamente”. Heidegger reúne
nesse questionamento uma saída original para se afastar da explicitação
epistemológica presente no Historicismo. Ou seja, através da pergunta
pelo sentido do ser, recupera a vida concreta e, pela compreensão
desta, busca o sentido do ser.
É de suma importância esclarecer as idéias fundamentais da
Analítica do Dasein contidas em Ser e Tempo, pois o universo conceitual
desenvolvido por Heidegger apresentou novos caminhos para
compreender a vida concreta, o tempo e a história. Para o autor, não
bastava recuperar o mundo da vida, fonte encontrada na filosofia de
Dilthey, na perspectiva de contrapor-se ao objetivismo das ciências
30 O termo destruição é utilizado por Heidegger no § 6 em ST. A destruição constitui uma tarefa “en busca de las experiencias originarias en las que se alcanzaron las primeras determinaciones del ser, que serían en adelante las decisivas.” (HEIDEGGER, 2005, p.46).
32
positivas e fundar uma ciência do espírito. Com essa perspectiva Dilthey
manteve uma solução epistemológica para o problema da história.
Heidegger considerou que precisava ir além do conhecimento teórico da
simples interpretação da vida e da história, sendo necessário interrogar
pela via ontológica para chegar à compreensão da constituição do ser.
Ele compreendeu que desdobrar tais estruturas fundamentais,
juntamente com a explicitação do método, possibilitaria elucidar a
questão, por ele investigada, do sentido do ser. Portanto, segundo Stein
(2002), a noção de historicidade e finitude elaborada em Ser e Tempo
foi conduzida por meio da pergunta pelo ser, da recuperação da vida
concreta e da abertura para retornar à História da Filosofia.
2.2 Breve delineamento do método fenomenológico hermenêutico
A elaboração do método fenomenológico hermenêutico conduz a
um novo caminho, a questão do sentido do ser. O método entendido
como um caminho, que dispõe de um modo de descrever e tornar
manifestos os fenômenos. Com a elaboração desse método, o autor
discutiu o sentido fenomenológico dos fenômenos, ou seja, discutiu as
condições de possibilidades de manifestação ou velamento de algo.
Deste modo, propôs uma fundamentação ontológica. E, neste sentido, a
33
fenomenologia é ontológica31. A fenomenologia heideggeriana,
fundamentada na ontologia como compreensão de ser, revela o ser que
já sempre se manifesta na pré-compreensão. Mas ela também é
hermenêutica, ou seja, sendo um caminho de interpretação para a
compreensão do Dasein, serve também para a elaboração do próprio
método através da recuperação dos conceitos legados pela tradição
ontológica. Assim, o método fenomenológico hermenêutico, sendo uma
possibilidade de dispor e clarear um fenômeno, é um método que se
constrói no seu próprio uso, a cada momento. Com a fenomenologia
hermenêutica, Heidegger recupera os aspectos básicos do sentido dos
fenômenos que sustenta a máxima da fenomenologia “voltar às coisas
mesmas”.32
A fenomenologia hermenêutica se propõe a compreender o sentido
do ser com base na existência do Dasein, por meio da explicitação dos
existenciais33. Para elucidar a existência do Dasein, como fenômeno, o
autor parte da vida concreta da existência cotidiana do Dasein para
constituir a investigação.
É importante salientar dois aspectos tratados na Analítica para
compreendermos e discriminarmos a relação entre a explicitação dos
31 “Considerada en su contenido, la fenomenología es la ciencia del ser del ente – ontologia.” (HEIDEGGER, 2005, p.60). 32 ST § 7, p.51. 33 Vide nota 6.
34
modos de ser do Dasein e o próprio método. O primeiro aspecto é que
as estruturas fundamentais do Dasein são descritas e compreendidas
como fenômenos, ou seja, o autor demonstra o modo como cada
fenômeno se mostra e pode se esconder. O segundo aspecto revela que
os fenômenos possuem diferentes âmbitos de compreensão. São eles:
os âmbitos pré-ontológico e ontológico, que são considerados como as
condições de possibilidade de algo se dar; e o âmbito ôntico, no qual se
considera o cotidiano das experiências humanas, ponto de partida da
Analítica do Dasein.
Esses diferentes âmbitos explicitados compõem os fenômenos, e
podem ser demonstrados a partir da análise interpretativa elaborada por
Heidegger. As diferentes dimensões da compreensão do fenômeno
apontam para a complexidade e a originariedade que as constituem.
Portanto, as análises, propostas pelo autor, nos oferecem uma
aproximação vulgar ou cotidiana dos fenômenos, como também uma
aproximação ontológica, qual seja, uma apreciação que nos aparece
quando submetemos a interpretação a uma ontologia fundamental.34
2.3 A apresentação das estruturas fundamentais do Dasein
34 Ontologia Fundamental diz respeito ao método ontológico discutido por Heidegger em S.T § 7, diferente da ontologia tradicional. (HEIDEGGER, 2005, p.50-62).
35
Examinados o contexto de discussão e o modo que Heidegger
elegeu para tratar a questão do sentido do ser em Ser e Tempo,
podemos expor as estruturas fundamentais do Dasein e compreender o
modo de ser desse ente para tornar acessível posteriormente o
entendimento da historicidade que pretendemos discutir. Entretanto,
vale salientar que a exposição a seguir não esgota e nem pretende
discutir detalhadamente todas as considerações acerca das estruturas
fundamentais abordadas em ST. Mas manteremos uma articulação da
totalidade do Dasein que favoreça uma elaboração teórica para apoiar o
estudo da historicidade.
Para o autor, o Dasein já sempre se encontra na compreensão de
ser. Portanto, o sentido do ser se revela na análise das estruturas do
próprio Dasein, conforme trataremos.
As estruturas fundamentais ou existenciais constituem os esforços
do autor em estabelecer novos parâmetros para discutir o problema da
interpretação histórica enfrentado pelo Historicismo (o estabelecimento
da ciência histórica — ver capítulo 1).
Heidegger inicia por compreender o Dasein com base em sua
estrutura fundamental como ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]. Isto
significa dizer que o Dasein é constituído por uma tríplice unidade, ou
seja, é um ente que compreende a si mesmo e já se encontra junto às
36
coisas35, junto com os outros36, no mundo. Não há uma separação entre
o Dasein, as coisas e o mundo; eles perfazem uma totalidade. “A
expressão composta ser-no-mundo indica, em sua própria forma, que
com ela se mostra um fenômeno unitário” (HEIDEGGER, 2005, p.79)37.
Segundo Kisiel (1993), Heidegger utilizou pela primeira vez o
termo ser-no-mundo em 1916, na sua habilitação. Em 1924 coloca a
questão do ser-no-mundo sob o ponto de vista ôntico ‘o ente que é no
mundo’ e, em 1925, mais elaboradamente, como a questão do “ente
definido pelo ‘quem’ desse ser-no-mundo — e o como desse ser, como o
ente ele mesmo é no ser” (KISIEL 1993, p.332). Kisiel aponta, também,
que, nos primeiros usos do termo ser-no-mundo, Heidegger encontrou,
ao mesmo tempo, o ser-com-os-outros e a eqüiprimordialidade dos
termos. O termo ser-no-mundo mostra um modo de encontro com os
entes, não há uma fronteira entre o homem e o mundo, o homem não
apreende as coisas sensorialmente e racionalmente. O autor demonstra
a condição do Dasein de ser junto a, ou seja, faz parte de seu ser
acontecer no mundo. Portanto, há uma desubstancialização da noção do
sujeito que se remete ao objeto para conhecer.
35 Dasein se encontra junto às coisas, isto é, é constituído existencialmente no modo de ser- em [In-sein]. Ver discussão nos §12 e 13 de ST. 36 Dasein é co-existente, isto é, já se encontra existencialmente junto com os outros, é ser-com [Mitsein] mesmo que esteja sozinho. Pois seu modo de existir é no modo da co-existência. Ver discussão nos § 25, 26 e 27 de ST. 37
“La expresión compuesta ‘estar-en-el-mundo’ indica, en su forma misma, que con ella se mienta un fenómeno unitário” (HEIDEGGER, 2005, p.79).
37
A designação mundo [Umwlt] como parte integrante da expressão
ser-no-mundo, quer dizer que nossa condição, como Dasein, é pertencer
ao mundo e, como afirma Heidegger, o Dasein ‘sempre já se encontra
no aberto dos entes’, ou melhor, enquanto ser-no-mundo ele é
transcendência38. Com a noção de transcendência Heidegger pretendeu
mostrar a relação do Dasein e o mundo. É pelo modo de ser da
transcendência que o Dasein, como ente no mundo distingue-se dos
outros entes e reconhece a si mesmo.
A primeira apreensão do mundo acontece como significação
[Bedeutsamkeit]39. Segundo Heidegger, encontramos os entes no
mundo não como meras coisas, mas já significados, como instrumentos
para algo, isto é, para uma dada serventia. A esse modo de encontro
com entes o autor denominou manualidade [Zuhandenheit].
Assim, como o Dasein descobre os entes intramundamos,
[innerweltlich] (os entes não dotados do caráter do Dasein), em virtude
de sua abertura compreensiva constitutiva, também descobre os outros
Dasein junto consigo, ou seja, no seu modo de ser da co-existência
38
Transcendência: “Heidegger retorna para o sentido original de superação (Übersteigung), sendo concebida como um aspecto distintivo de Dasein e envolve a compreensão de ser” (INWOOD, 2002, p.190-191). “é pelo ato de transcendência que o homem, como ente no mundo, se distingue dos outros entes ou objetos e se reconhece como ‘ele mesmo’”( ABBAGNANO, 2003, p. 971). 39
Comentário sobre os termos Bedeutung, Bedeutsamkeit: “Heidegger deve muito a Dilthey, que usava estas palavras tanto para o que um sinal significa ou exprime quanto para o ‘significado’ de uma totalidade complexa como uma vida, um processo histórico” (...) “Heidegger usa Bedeutsamkeit para indicar a rede de relações que une firmemente o mundo de Dasein” (INWOOD, 2002, p.172).
38
[Mitdasein]; sua constituição fundamental é de ser-com-os-outros
[Mitsein mit Anderen], seja num discurso comum no cotidiano ou no
modo autêntico. Os outros vêm ao encontro dentro do mundo, pois o
mundo do Dasein é mundo compartilhado. O Dasein se ocupa das coisas
no mundo, mas no seu modo de ser-com da convivência ele se encontra
como solicitude [Fürsorge].São duas as possibilidades de cuidado do
Dasein no modo da solicitude, no modo cotidiano a solicitude se mostra
como substituição [einspringen], ou seja, colocar-se no lugar do outro,
retirando o outro do seu próprio cuidado. E no modo autêntico da
solicitude o outro libera o cuidado a cada Dasein, isto é o Dasein pode
assumir o domínio de si.
Segundo Heidegger em sua Analítica, pertencem ao Dasein como
ser-no-mundo dois modos próprios de ser40: o modo da propriedade,
quando acolhe a totalidade do existir; e o modo da impropriedade,
quando se encontra disperso de si e envolvido no mundo diário.
Heidegger salientou que não há valoração de um modo em detrimento
40
Os modos de ser do Dasein impróprio e próprio são apresentados e mantidos ao longo da explicitação das estruturas fundamentais em ST. Estes dois modos de ser do Dasein são importantíssimos na filosofia heideggeriana, pois mostram de forma original a diferença e a tensão na maneira de compreensão de si mesmo do Dasein, bem como sua compreensão e acesso ao mundo. Conforme dito, o Dasein compreende a si mesmo, as coisas e o mundo por possuir uma compreensão de ser. Heidegger nos aponta em ST que há uma estreita relação do homem com o ser, e desta forma, podemos ter acesso ao ser através dos modos de compreensão que o Dasein tem de si mesmo e do mundo. Estes modos de compreensão surgem no coditiano, modo mais próximo ao Dasein, onde ele mantém um entendimento nivelador, todos são iguais, e uma compreensão ontológica que, na Analítica, é a possibilidade do Dasein sair do discurso nivelador e buscar o seu sentido mais próprio de existir finitamente. Heidegger salienta que devemos considerar essa diferença no modo de ser do Dasein para, desta maneira, compreendermos originariamente o sentido dos fenômenos presentes na existência.
39
do outro; mas pela sua própria peculiaridade e tendência ao
encobrimento, o Dasein se mantém em grande parte das vezes na
impropriedade, no modo de ser impróprio.
A denominação Dasein como ser-no-mundo pretende mostrar que
a totalidade presente nesse ente, ou melhor, a
compreensão41[Verstehen] que constitui seu modo de ser e o torna
acessível para si e para descobrir o mundo, é fundamental para
desdobrar as demais estruturas. A estrutura da compreensão, referida
pelo autor, não diz respeito ao intelecto ou à razão, tampouco é uma
estrutura teórica, mas é a possibilidade de ser do Dasein que, ao existir,
já pertence ao seu modo de ser.
Dilthey, em 188342, utilizou a noção de compreensão como
procedimento metódico das ciências do espírito para distingui-la do
método explicativo próprio das ciências naturais. Ele entendia que a
realidade humana era diferente da natureza e carecia de um
instrumento peculiar de interpretação, que encontrou na noção de
compreensão. A compreensão é o ponto central do conhecimento
histórico. Enquanto, para Heidegger, o fenômeno da compreensão está
vinculado à disposição afetiva e à noção de possibilidade, pois a
41 A estrutura da compreensão pressupõe: posição, visão e concepção prévia. Ver § 32 de ST. 42
Na obra de 1883 Introdução às ciências do espírito, Dilthey sustenta a diferença de objeto entre as ciências da natureza e do espírito e discute a integração entre a experiência vivida e a compreensão.
40
compreensão é uma noção fundamental para existência humana “já que
ela significa que a existência é, essencialmente, possibilidade de ser”
(ABBAGNANO, 2003, p.159).
Com a estrutura da compreensão, juntamente com a disposicão43
e o discurso44, abre-se a totalidade constitutiva do Dasein. Isto é, a
compreensão mostra-se enraizada no Dasein, ou seja, ele acontece na
compreensão, descobre a si mesmo, as coisas e o mundo, não como
mera coisa, mas como a estrutura que Heidegger denominou “como
hermenêutico”45 [hermeneutische Als], do algo como algo, por exemplo,
Dasein descobre a chave para abrir, o martelo para martelar.
Com a introdução do existencial da compreensão, as coisas são
encontradas no mundo com um ‘para quê’, com uma determinada
serventia; o Dasein encontra os utensílios com uma significação para
algo, para isto ou aquilo. A compreensão explicitada pode ser ‘aplicada’
tanto para as coisas, como para o Dasein. Não há necessidade da
43 Disposição afetiva é a tradução para o termo alemão Befindlichkeit. Este termo alemão é traduzido por disposição fundamental por alguns autores brasileiros. No cotidiano, Heidegger utiliza o termo Stimmung para referir-se ao humor. 44 Discurso “es la articulación ‘significante’ de la comprensibilidad del estar-en-el-mundo, estar-en-el-mundo al que le pertenece el coestar, y que siempre se mantiene en una determinada forma del convivir ocupado”(HEIDEGGER, 2005, p. 185). 45 Acerca da estrutura da interpretação do ‘como’ hermenêutico, esta estrutura demonstra que o Dasein é um ente que interpreta o mundo, não vê o mundo e as coisas como entes simplesmente dados. Conforme Heidegger, “El ‘en cuanto’ originario de la interpretación circunspectivamente comprensora será llamado ‘em cuanto’ hermenêutico-existencial, a diferencia del ‘en cuanto’ apofántico del enunciado.” (HEIDEGGER, 2005, p.181).
41
separação, como fez Dilthey46, em relação à natureza e às experiências
vividas. A compreensão entendida ontologicamente é o poder-ser
[seinkönnen] próprio de cada Dasein, ou seja, é o projetar-se para as
possibilidades que estão em aberto na existência, e que em cada
momento Dasein pode se decidir e assim assumir o seu si mesmo.
A estrutura da compreensão forma um movimento circular,
próprio do enfoque hermenêutico, que remete cada estrutura existencial
a uma outra, constituindo uma totalidade fenomênica. Assim sendo, a
compreensão acontece em conjunto, ou seja, não há uma separação
entre quem conhece e a coisa a ser conhecida; conhecemos algo por
nos encontrarmos junto, remetidos a este algo. Ou melhor, o Dasein
como ser-no-mundo, por se constituir de compreensão, já se encontra
junto com os outros e junto às coisas no mundo nessa rede de
significância. O mundo não lhe é dado por acréscimo, mas é um caráter
de seu ser. A estrutura da compreensão, tratada por Heidegger,
salientou a consonância entre a totalidade das estruturas existenciais,
isto é, a implicação interpretativa de uma a outra, compondo simultânea
e articuladamente o Dasein, ou seja, fundam-no co-originariamente,
formando uma totalidade.
46
Para Dilthey as relações com a natureza deveriam ser explicadas com base na causalidade, própria do método das ciências naturais. Enquanto as relações humanas careciam de uma outra abordagem, visto que o homem é quem se indaga, ele pode compreender a si mesmo e as suas relações com o mundo, assim sendo, o compreender é o instrumento que permitiu apreender a realidade histórica. O homem é o sujeito do saber.
42
A constituição fundamental do Dasein, conforme descrito no
existencial da compreensão, é o seu poder-ser para as possibilidades
fácticas na existência. Isto é, o Dasein existe lançado no mundo com a
responsabilidade de cuidar de sua existência finita, em uma pertinência
com o mundo, com os outros e consigo. Não há uma separação do
mundo, dos outros e de si mesmo, pois habita o mundo de modo
integrado. Isto quer dizer que o Dasein é acolhido pelo mundo numa
proximidade e conformidade. Descobre o mundo e os outros com base
nas tarefas diárias que realiza; a esse modo de ser Heidegger
caracterizou como ocupação47 [Besorgen].
No dia-a-dia o Dasein encontra-se envolvido e absorvido em suas
tarefas e negócios junto com os outros, familiarizado com as tarefas e
empreendimentos; o discurso que se articula no cotidiano é o da
conformidade e da equivalência, isto é, o discurso denominado por
Heidegger de impessoal48[ das Man]. O impessoal é um modo peculiar
em que o Dasein, na convivência, se mantém cotidianamente, sem
permitir a expressão da diferença; o discurso impessoal pretende
manter nivelado e comum todos os acontecimentos da existência
concreta. Esse fenômeno do nivelamento Heidegger aponta como uma
das possibilidades de ser, pois, absorvido pelo cotidiano, Dasein não se
47 O modo de ser cotidiano do Dasein é denominado ‘ocuparse’ (em castelhano), e podemos traduzir por ocupação. Ver ST § 12 p.83. 48 Considerações acerca do discurso impessoal - ver ST § 27.
43
responsabiliza por sua própria condição, ao contrário, encobre a
inospitalidade de estar lançado [Geworfenheit] para o fim.
O seu modo de ser envolvido no cotidiano, e, portanto, disperso e
desencontrado de si mesmo, é denominado de queda49 ou caída
[Verfallen]. A queda é uma condição ontológica que nos mostra o modo
como Dasein é absorvido pelas coisas e também pelos outros no modo
da solicitude [Fürsorge]50, no impessoal. A queda é um fenômeno que
encobre, a inospitalidade do mundo, ou seja, encobre a angústia
perante a impermanência das verdades e a transitoriedade do existir.
Diante do modo precário, inóspito que é existir, o Dasein se refugia e se
entrega ao mundo, cuidando de si, dos outros e de suas tarefas
presentes.
A condição precária sem garantias e segurança de existir diz
respeito ao modo lançado próprio do Dasein. O Dasein cuida de sua
existência de modo próprio ou impróprio; enquanto cuida de seu ser,
49 Inwood explicita o sentido da queda utilizado por Heidegger: “La caída (em espanhol), ‘queda’, é Fall. O prefixo ver - dá a verfallen e Verfall um tom de declínio e deterioração.(...) Apesar do sentido de deterioração, Heidegger insiste que Verfallen não é um termo de desaprovação moral, nada tendo em comum com a acepção cristã de queda da graça. (...) Heidegger dá três explicações daquilo em que Dasein caiu e, implicitamente, de onde Dasein se afastou (ST, 175): 1. Verfallen significa: ‘Dasein está antes de tudo e, na maioria das vezes, junto ao [bei] ‘mundo’ de sua ocupação’ (ST, 250). 2. ‘Esta absorção em...[Aufgehen bei...] geralmente possui o caráter de estar perdido na publicidade do impessoal’. 3. “Decair no ‘mundo’ significa ser absorvido no ser-um-com-o-outro, à medida que isto é guiado pelo falatório, pela curiosidade e pela ambigüidade’” (INWOOD, 2002, p.31). 50
Fürsorge é um existencial e se refere ao modo do Dasein ser-com-os-outros, é um dos membros da tríade Sorge, Fürsorge e Besorge. Fürsorge é usado para falar da relação entre Daseins. O cuidado com os outros acontece tanto no modo próprio quanto no modo impróprio.
44
assume o seu poder-ser, isto é, assume ser para as possibilidades
abertas na existência.
O existencial do cuidado [Sorge] é denominado por Heidegger
como o ser do Dasein. O modo de ser desse ente enquanto cuidado é
antecipar-se a si mesmo [Sich-vorweg-sein] junto a, isto é, já se
encontrar no mundo. A noção de cuidado, elaborada por Heidegger,
pretende demonstrar que nossa atitude no mundo não é primeiramente
cognitiva e teórica, seja em relação a nós mesmos, às coisas e aos
outros, mas se refere ao modo de ser próprio concebido como cuidado,
de já ser lançado em um mundo entregue a si mesmo, ou seja, o Dasein
tem a tarefa de cuidar de si, de viabilizar a sua própria existência.
Antecipar-se a si mesmo é uma condição peculiar ao Dasein como ser-
no-mundo. Isto significa que ele existe projetado para adiante de si. O
cuidado pode ser compreendido como um conjunto de disposições que
compõem o existir humano, seja no modo de antecipar-se a si mesmo
[Sorge], um ater-se a uma certa situação [Fürsorge] ou ocupar-se com
as coisas com as quais se encontra [Besorge]. Com esse existencial,
Dasein retoma o domínio de si mesmo e pode assumir sua unidade
fundamental, como existência, facticidade e queda. Enfim, com o
existencial do cuidado Heidegger pretende demonstrar a totalidade das
estruturas ontológicas do Dasein como ser-no-mundo.
45
Um importante existencial descrito em Ser e Tempo é o da
angústia51 [Angst], no qual Heidegger aponta uma característica
fundamental da existência humana — ser-para-a-morte, pois a angústia
é a disposição afetiva que revela o nada da existência, ou seja, a
possibilidade da impossibilidade de existir. Assim, o Dasein se angustia
com o seu próprio ser, com a indeterminação de sua morte. Segundo o
autor, é na disposição da angústia52 que o Dasein é convocado a ser
responsável por si mesmo. Sendo assim, a angústia convoca53 para a
apropriação de seu poder-ser, pois, retirando o Dasein da dispersão
peculiar da queda, possibilita a sua singularidade e liberdade de escolher
a si mesmo. Na convocação da consciência [Ruf des Gewissens], o
Dasein é chamado a existir no modo da propriedade a assumir o vazio
de estar lançado no mundo para o fim, pois a convocação para 51
O conceito de angústia empregado na Analítica Existencial é fortemente inspirado na filosofia de Soren Kierkegaard. A angústia, segundo Kierkegaard, pode ser entendida como a atitude do homem diante de sua situação no mundo. É o sentimento puro da possibilidade que se apresenta ao homem sem nenhuma garantia de realização. A angústia, segundo o autor, é um sentimento que jamais deixa de estar presente no homem. Alguns trechos selecionados (da obra de 1968) para elucidar a sua explicitação da angústia: “(...) Angústia é a realidade da liberdade como puro possível”, p.45 “A liberdade (como possível) anuncia-se em plena angústia; nestes comenos, uma simples censura poderá fazer desabar o ser da angústia”, p.79 “O homem constituído pela angústia é constituído pela possibilidade e apenas aquele que a possibilidade forma está formando em sua infinitude. Por essa razão, a possibilidade é a mais difícil das categorias” (KIERKEGAARD, 1968,p.158). O ponto central de Kierkegaard que Heidegger assume é considerar a angústia como revelação afetiva e possibilidade constitutiva da situação humana. 52 “La angustia revela en el Dasein el estar vuelto hacia el más propio poder-ser, es decir, revela su ser libre para la liberdad de escogerse y e tomarse a sí mismo entre manos.” (HEIDEGGER, 2005, p.210). 53 A convocação se dá através do que Heidegger chamou de voz da consciência ou Clamor. A voz da consciência é um fenômeno originário do Dasein que se contrapõe à familiaridade e tagarelice do impessoal. Neste fenômeno originário, Dasein clama por si mesmo, é um discurso silencioso que convoca para a condição de possibilidades de poder-ser si mesmo. O dizer silencioso da voz da consciência significa poder assumir o ser e estar em débito, próprio do Dasein — Ver § 60 ST.
46
apropriação de sua própria e peculiar condição vem acompanhada da
compreensão da morte54. Deste modo, entendemos como a angústia
revela o modo temporal e finito do Dasein, como também o seu modo
singular de ser responsável, isto é, ser cuidador de ser. Podemos
entender como o Dasein angustia-se, tendo sido já afetado pela
possibilidade da morte. A angústia se desentranha diante da
possibilidade de estar lançado para a impossibilidade de existir. A
compreensão da morte no sentido ontológico revela ao Dasein a sua
finitude, ou seja, o Dasein não pode ser pensado como uma totalidade
acabada, mas como ser para o fim sempre em vias de findar.
É a partir da morte que o Dasein se descobre como duração — sua
condição existencial se esgota. A morte é um fenômeno existencial que
singulariza e diz respeito a cada Dasein. Existindo, já possui sua morte;
Heidegger denomina esta constituição fundamental de ser-para-a-morte
[Sein-zum-Tode]. A morte não é um acontecimento no transcurso da
vida, mas um modo próprio de o Dasein assumir a si mesmo, ou seja, é
a sua condição mais própria.
Dasein é enquanto existe e descobre que o tempo, que ele mesmo
é, termina. Portanto, para discutir a compreensão do tempo na
existência do Dasein, Heidegger parte do fenômeno existencial da
morte. 54
O fenômeno existencial da morte será tratado no capítulo 3.
47
Até o momento descrevemos as estruturas existenciais que
revelam, segundo o autor, o modo de ser do Dasein e assim,
consideramos a sua totalidade no fenômeno da cura, pois neste se
mostra o ser do Dasein. É o modo de antecipar-se a si mesmo que
permite ao Dasein ser todo, apreender a sua existência lançada com a
tarefa de ter que ser. Mas resta, ainda, submeter as estruturas a uma
análise temporal (que Heidegger desenvolve na parte II da segunda
seção de ST).
É importante, também, esclarecer que o tempo, assim como as
demais estruturas, foi discutido, ontologicamente, partindo de
considerações da compreensão cotidiana para desdobrar o sentido
próprio do fenômeno. Essa discussão em ST evidenciou que o tempo
não está encerrado na dimensão do presente, mas deve ser
compreendido a partir da dimensão do futuro. O tempo não é isto ou
aquilo, observa Heidegger, pode ser compreendido como a possibilidade
de cada Dasein apropriar-se de sua extrema condição – a morte. Logo,
o tempo se abre pela da compreensão da morte e o Dasein se descobre
como um ente temporal.
É na resolução precursora da morte [Entslossenheit Vorlaufen] que
o Dasein se projeta para adiante de si (para a morte), para o futuro;
nesse movimento se dá conta de seu fim e volta para o seu ainda estar
48
aí e, desta maneira, se apropria do tempo de modo originário —
temporalidade própria [eigentliche Zeitlichkeit]. Neste sentido, a
temporalidade enquanto projetar-se para o futuro revela-se como o
sentido ontológico do cuidado. A descrição da temporalidade possibilita
compreender a unidade da existência. (A discussão do fenômeno do
tempo será explicitada no capítulo 4). Com isto, a compreensão da
história55 se tornará acessível com base na temporalidade própria, pois
é ancorada nessa compreensão que a dimensão temporal desse ente se
torna evidente.
O tempo próprio fundamenta a história. Neste sentido, a história
não é a narração dos fatos humanos ou dos acontecimentos do passado,
mas a história explicitada pelo autor é constitutiva do Dasein e
fundamentada no horizonte do tempo. A história autêntica do Dasein se
dá na apropriação da possibilidade mais própria que advém do futuro e
permite ao Dasein retornar a si mesmo, assumindo seu estar lançado, e,
com isso, abre sua destinação. História autêntica, denominada
historicidade própria [eigentliche Geschichtlichkeit], compreende o
acontecer nessa unidade existencial entre nascimento e morte do
Dasein. O acontecer denota a idéia de movimentação, de realização que
o Dasein empreende ao compreender sua própria finitude. O Dasein
possui um projeto existencial que tem uma duração e chega ao fim. 55
No presente capítulo apresento a idéia central da historicidade elaborada em ST, mas a discussão propriamente encontra-se no capítulo 5.
49
Quando compreende a impossibilidade da existência, a própria morte, o
Dasein volta-se para si, para suas possibilidades mais próprias (para o
já ter sido lançado no mundo), assume sua facticidade e decide-se por
empreender sua, existência. Heidegger nos mostra, na explicitação de
ST, que a compreensão da história não é uma característica ou
propriedade empírica, mas o modo como Dasein acontece no mundo.
A possibilidade de acesso à história funda-se na possibilidade de um presente poder realmente compreender-se como sendo algo futuro. Este é o primeiro enunciado de toda hermenêutica. Ele diz algo sobre o ser do ser-aí56, que é a historicidade mesma (HEIDEGGER, 1997, p.37).
Segundo Heidegger, a história é modo próprio de ser do Dasein. O
Dasein é histórico quando se apropria do tempo. Escreve o autor:
“Histórico é o modo como me relaciono com aquilo que vem ao meu
encontro, com o que está presente e com o que já foi”. (HEIDEGGER,
2001, p.181).
As estruturas fundamentais do Dasein foram explicitadas para
mostrar, brevemente, o contexto de discussão de Ser e Tempo, como
também, para dar suporte e fornecer os elementos necessários para
56
As citações foram retiradas do texto “O Conceito de Tempo”, da edição de 1997, na qual o tradutor utiliza o termo ser-aí para o termo alemão Dasein. No presente estudo, optei por utilizar o termo original do autor — Dasein, mesmo com essa diferença na tradução mantive algumas citações dessa obra, por achar relevante para a compreensão da discussão acerca da Historicidade.
50
compreender a historicidade. Os elementos selecionados para a
discussão fundamentam a compreensão do Dasein como ente temporal
e histórico e deste modo, podemos conduzir o estudo da história.
51
Capítulo 3
A importância do conceito de morte para a compreensão da
totalidade do Dasein em Ser e Tempo
O presente capítulo pretende expor a noção da morte discutida por
Heidegger em Ser e Tempo no intuito de construir um caminho para
abordarmos a noção da temporalidade e, subseqüentemente, da
historicidade do Dasein.
A exposição do conceito de morte na obra de Heidegger já se
encontra presente desde 192257, nos seus escritos acerca da vida
fáctica, entretanto, trata-se de um esboço inicial em comparação aos
escritos elaborados em Ser e Tempo. Todos os esforços do autor
concentram-se em inaugurar uma nova compreensão do conceito de
morte com base em uma fundamentação ontológica.
A compreensão da morte que vigorava na década de 20 na
tradição filosófica e das ciências médicas referia-se a uma ordem de
fatos e coisas naturais ou a uma visão espiritual e religiosa. A morte é
percebida como um fato verificável quando se atesta o falecimento do
ser vivo, ou seja, um organismo finda. Essas considerações estão
57
Nas Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles: Indicação da situação hermenêutica.
52
presentes na biologia e nas ciências médicas. Em uma outra apreciação,
a morte pode ser entendida como início do ciclo da vida, quando se
admite a imortalidade da alma; como considerava Platão, a ‘separação
entre a alma e o corpo’ (ABBAGNANO, 2003, p.683). A separação entre
corpo e alma permite iniciar um novo ciclo para a alma que se
desprendeu do corpo material. Uma outra perspectiva para compreender
a morte é como fim do ciclo da vida, ou seja, o findar da vida permite
um descanso das atribulações pertinentes ao viver. Essa é uma
concepção muito comum no cotidiano, “aquele que morre descansa”. A
morte compreendida religiosamente em uma perspectiva bíblica
representa uma pena pelo pecado original. Essas breves considerações,
acima esboçadas, são ultrapassadas, ou melhor, superadas no momento
em que Heidegger elabora a compreensão da morte como possibilidade
que sempre vigora na existência do Dasein. As reflexões ulteriores
pretendem elucidar a nova perspectiva de compreensão do fenômeno da
morte.
O conceito de morte em Ser e Tempo, assim como os conceitos de
tempo, história, compreensão, interpretação são explicitados do ponto
de vista fenomênico. Heidegger entende que tal explicitação favorece a
ampliação e a análise dos conceitos. Ao tratá-los como fenômenos, o
autor amplia a compreensão dos conceitos para além do que é
manifesto e encontra o aspecto velado ou inaudito presente em cada um
53
deles. Assim sendo, o conceito de morte examinado em Ser e Tempo
compreende tanto o sentido vulgar do fenômeno, isto é, o sentido
comum compartilhado com todos no cotidiano, quanto o sentido
originário, inaugurado por Heidegger através da análise fenomenológica
hermenêutica, que compreende as condições de possibilidades em que o
fenômeno se dá — trata-se de uma compreensão que não se dá
imediatamente, mas requer uma análise ontológica conforme proposta
pelo autor.
Pretendemos explicitar o fenômeno da morte no sentido comum,
ou seja, no modo de acesso mais imediato em que Dasein é interpelado
acerca da morte no cotidiano, bem como no sentido existencial58, no
qual Heidegger refere conter o aspecto primordial de um fenômeno.
Antes de qualquer consideração acerca da morte, podemos dizer
que a morte revela o fim, o término. O fim do tempo que temos, o fim
da vida animal e vegetal. Algo chegou ao fim. O entendimento da morte
como fim é um tema difundido e conhecido no dia-a-dia.
No sentido comum, na conversa popular, a morte é entendida
como um fim, porém, trata-se de um fim que acontece às pessoas. A
compreensão da morte como um mero acontecimento na vida denota
58 A palavra existencial é utilizada na tradução chilena de Ser e Tempo e designa as condições ontológicas ou fundamentais do Dasein (ST, 2005).
54
um distanciamento e, de certa maneira, um alheamento dessa
possibilidade. As pessoas morrem, nós morremos, mas não se sabe
quando; um dia a morte chega.
Morrem pessoas próximas e distantes. Desconhecidos ‘morrem’ diariamente e a toda hora. ‘A morte’ comparece como um evento habitual dentro do mundo (HEIDEGGER, 2005, p.273)59.
A morte é conhecida pelo Dasein. Todos sabem do fim da
existência mesmo quando nada querem dela saber, escreve Heidegger.
“O ‘saber’ e o ‘não saber’ acerca do mais próprio ser em direção ao fim,
que de fato sempre impera no Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.271)60.
No entanto, o modo como Dasein lida no dia-a-dia com a morte
faz dela um acontecimento indefinido que diz respeito ao outro. Acerca
da morte ouvimos e conhecemos piadas, ditos populares, poemas que
conferem ao outro o morrer, embora a mortalidade esteja para todo
Dasein; um dito popular conhecido que demonstra certeza e
distanciamento da morte diz: “para morrer basta estar vivo”61. A
incerteza da morte é tão acentuada neste dito popular que não chega a
atingir o Dasein; é um evento distante. Há um conhecimento e um
entendimento que circula sobre a morte e o morrer nos ditos populares, 59 “Este o aquel cercano o lejano ‘muere’. Desconocidos ‘mueren’ diariamente y a todas horas. ‘La muerte’ comparece como um evento habitual dentro do mundo” (HEIDEGGER, 2005, p.273). 60
“El ‘saber’ o ‘no saber’ acerca del más próprio estar vuelto hacia el fin, que de hecho siempre impera en el Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.271). 61 Fonte desconhecida, dito popular.
55
nos obituários dos jornais, nas missas e rituais de sepultamento, ou
seja, há um espaço no cotidiano para acolher a morte. Mesmo
observando diferentes modos de dizer e acolher a morte no cotidiano,
ainda assim a morte referida neste contexto é uma ocorrência pela qual
o Dasein ainda não foi atingido: “(....)algum dia se morre, mas no
momento ainda não” (HEIDEGGER, 2005, p.275)62.
No dia-a-dia a morte não é compreendida como uma possibilidade
constitutiva da existência do Dasein. Ao contrário, a morte é
compreendida como um fato indefinido no transcurso da existência que
cedo ou tarde nos atinge.
Então, Heidegger constata que a experiência da morte
compartilhada no dia-a-dia é impessoal, diz respeito a todos e ao
mesmo tempo a ninguém, todos morrem, mas enquanto o Dasein não
for atingido, experiencia a morte junto ao que se foi. A experiência da
morte, do deixar de existir, acontece com a morte de um ente próximo
ou pelos casos ouvidos e conversados.
Não experimentamos, em sentido próprio, o morrer dos outros, no máximo, somente ‘assistimos’ a ele (HEIDEGGER, 2005, p.260)63.
62“... uno también se muere alguna vez, pero por el momento todavía no” (HEIDEGGER, 2005, p.275). 63 “No experimentamos, en sentido próprio, el morir de los otros, sino que, a lo sumo, solamente ‘asistimos’ a él” (HEIDEGGER, 2005, p.260).
56
Nas situações de morte, de pesar, o Dasein se aproxima da dor do
outro, especialmente daqueles que ficam e choram pelo finado, mas a
rigor não assumimos a morte do outro – compadecemo-nos com o
sofrimento. A morte não é intercambiável ou substituível; não se morre
por alguém, a não ser metaforicamente. A morte singulariza cada
Dasein, pois cada um encontra e tem a possibilidade de assumir a sua
própria morte.
No cotidiano, nas tarefas diárias, nas discussões sobre as doenças,
nas ciências médicas ou nos casos de falecimento, o dizer é sobre a
morte e não como somos afetados na nossa condição de ser-para-a-
morte. Heidegger nos chama a atenção para esta dimensão do
fenômeno no cotidiano: o Dasein, no dia-a-dia, no viver comum, dilui e
encobre64 sua condição mais própria de ser-para-a-morte. O
encobrimento acontece pela dificuldade em acolher a sua condição
finita. O Dasein se angustia65 perante seu fim e, então, foge e se
dispersa de si mesmo, entrega-se ao cotidiano em seus assuntos e
tarefas numa compreensão de conformidade, junto com os outros. 64
Kisiel refere, em suas considerações sobre os escritos de Heidegger, que a noção de encobrimento advinda da queda do Dasein no mundo na análise do fenômeno da morte, somente aparece nos escritos de novembro de 1924. É nesse período que Heidegger enfatiza a importância da indeterminação da morte e a absorção no mundo, que leva o Dasein ao esquecimento da possibilidade da morte.(KISIEL, 1993, p.339). 65 “La angustia no es sólo angustia ante..., sino que, como disposición afectiva, es al mismo tiempo angustia por. Aquello por lo que la angustia se angustia no es un determinado modo de ser nin una posibilidad del Dasein. En efecto, la amenaza misma es indeterminada y, por consiguiente, no puede penetrar amenazadoramente hacia este o aquel poder-ser concreto fáctico. Aquello por lo que a angustia se angustia es el estar-en-el-mundo mismo.” (HEIDEGGER, 2005, p.209-210).
57
Portanto, não se apropria de sua condição finita o seu poder-ser mais
próprio – a morte.
Na angústia diante da morte o Dasein é levado diante de si mesmo,mantendo-se entregue à possibilidade insuperável (HEIDEGGER, 2005, p.274)66.
Este modo de o Dasein se distanciar da própria morte demonstra o
peso de existir como ente que nasce e já se dirige para o fim; contudo,
em grande parte dos momentos, Dasein se encontra, como afirma
Heidegger, na queda, neste modo de impropriedade.
O cotidiano ser em direção à morte é queda, uma contínua fuga de si mesmo (HEIDEGGER, 2005, p.274)67.
A impropriedade é um modo de existir legítimo e peculiar ao
Dasein que, entregue ao cotidiano, busca familiaridade, tranqüilidade,
referência e conformidade para existir. Mesmo disperso de sua condição,
o Dasein possui sua morte; é um ser-para-a-morte no modo impróprio,
isto é, um ente que nasce e se dirige para o seu fim interpretando-se
impropriamente. Como escreve Heidegger em O Conceito de Tempo,
mesmo não querendo saber, Dasein sabe de sua morte.
66
“En la angustia ante la muerte el Dasein es llevado ante sí mismo como estando entregado a la posibilidad insuperable” (HEIDEGGER, 2005, p.274). 67“El cotidiano estar vuelto hacia la muerte es, en tanto que cadente, un continuo huir ante ella” (HEIDEGGER, 2005, p.274).
58
Na impropriedade, desencontrado de si mesmo, o Dasein vive a
maior parte de seus dias com o entendimento da morte como um fato
ou ocorrência vaga e distante, ocultando sua condição finita. No
entanto, esse entendimento perfaz um aspecto do fenômeno da morte,
o outro aspecto que Heidegger salienta em Ser e Tempo é o aspecto
ontológico. Com a explicitação do fenômeno da morte na dimensão
ôntica, acima referida, e posteriormente com a dimensão ontológica,
compreenderemos a totalidade do fenômeno, isto é, a possibilidade do
Dasein de se compreender em sua condição de ser-para-a-morte na
dispersão do dia-a-dia e na apropriação de si mesmo assumindo o seu
fim.
Na compreensão da morte em sentido próprio _ ontológico, o
autor demonstra a totalidade e a singularidade do Dasein, retirando-o
da tendência à dispersão e fuga, devolvendo-o para si mesmo. O
desenvolvimento ontológico da morte permitiu a Heidegger ultrapassar
as concepções tradicionais estabelecidas e propor, a partir deste novo
conceito, um outro acesso ao tempo e à história, conforme veremos.
Ontologicamente a morte não pode ser compreendida como um
acontecimento que ainda não chegou, pois a morte pertence à condição
mais própria do Dasein, a morte constitui cada Dasein desde o momento
em que existe. Existindo, Dasein já se dirige para o seu fim e, portanto,
59
a existência desse ente é permeada de finitude. A concepção da morte
como uma possibilidade sempre presente na existência, que Heidegger
aproxima para a analítica do Dasein, é uma concepção já considerada
por Dilthey68 em 1905, assinala Abbagnano. Dilthey afirmava que a
morte não poderia ser tratada como acontecimento que inicia ou
termina o ciclo da vida, mas, sim, como um modo profundo que limita a
existência e, ao mesmo tempo, torna-se decisiva para compreender a
vida.
Segundo Kisiel (1993), Heidegger reconheceu também a
importância das colocações de Jaspers69 sobre o conceito de situação-
limite (a morte) para sua analítica, pois o conceito expressa a situação
decisiva e essencial da natureza humana no seu modo inevitável de ser
finito. Esse contexto de discussão acerca da morte possibilitou a
Heidegger selecionar as concepções mais pertinentes para elaborar o
poder ser todo do Dasein. Isto é, compreendendo a morte
ontologicamente, o Dasein é revelado como um projeto existencial
singular e finito que dispõe de um tempo para se desdobrar, ou seja,
possui uma duração para cuidar de si mesmo.
Assim sendo, a morte em sentido próprio pode ser entendida
como a possibilidade constitutiva mais própria e extrema de ser do
68
Na obra Experiência vivida e poesia (1905). 69 Na obra Psychology of Worldviews (1919).
60
Dasein. O Dasein chega ao fim, possui uma duração; não tem um tempo
infinito, porém ganha tempo a partir de apropriar-se de sua condição
finita. A compreensão da morte ontológica, ao contrário do que se diz no
cotidiano, não pode ser interpretada com uma familiaridade tal que
encubra o sentido mais próprio e singular da morte do Dasein, mas deve
liberá-lo para dispor de sua existência com as possibilidades disponíveis.
Entendida como um fenômeno primordial, a morte é singular, isto
é, irremissível, intransferível, indeterminada e incontestável; é uma
possibilidade sempre “minha” que não remeto ao outro e não posso
negociar ou alterar, isto é, cada Dasein possui sua morte, não como um
fato empírico que possa ser alterado, mas como uma condição inerente
a si mesmo, que delimita o seu fim – a morte compreende a totalidade
de cada existir. A morte pertence ao Dasein, ou seja, o Dasein se
encontra com a morte como a possibilidade de não existir.
Com esta explicitação da morte em sentido próprio, Heidegger
alcança um novo dizer acerca da morte fora do contexto dos fatos
naturais, religiosos ou espirituais. A morte, segundo o autor,
circunscreve a condição do Dasein como finita, em que cada Dasein
sempre possui a sua própria morte como a possibilidade mais extrema.
61
Segundo Heidegger, quando Dasein compreende a morte como “a
possibilidade enquanto a impossibilidade da existência em geral”70,
como a possibilidade de não existir, mantém-se no que o autor
denomina adelantarse71[Vorlaufen].
Semelhante ser em direção à possibilidade, chamaremos de adiantar-se à possibilidade (HEIDEGGER, 2005, p.281)72.
No movimento de adiantar-se a si [Vorlaufen], Dasein assume sua
existência como possibilidades. As possibilidades assumidas não estão
remetidas a uma realização em particular, pois a morte não oferece
nada para o Dasein realizar, mas apenas diz respeito ao modo em que
Dasein acontece, ou seja, no modo do poder-ser. O Dasein compreende
no adiantar-se à morte o seu modo de estar lançado para a
possibilidade mais própria (seu fim), e assim se depara com a disposição
afetiva fundamental e privilegiada da angústia [Angst]. A angústia como
modo existencial privilegiado de abertura do Dasein abre o mundo como
mundo, isto é, arrasta o Dasein na ameaça indeterminada do ‘nada’,
para a impossibilidade da sua existência. Isto quer dizer que a ameaça
não advém de um ente intramundano específico, mas, sim, de sustentar
70
“la posibilidad en cuanto de la imposibilidad de la existencia en general” (HEIDEGGER, 2005, p.281). 71 O termo adelantarse é utilizado na tradução chilena de Ser e Tempo, e antecipar, na tradução em português. Adelantarse ou Antecipar referem-se (no alemão) ao Vorlaufen. Utilizarei, no presente texto, adiantar-se para traduzir [Vorlaufen], que “explicita um modo de ser que se caracteriza, essencialmente, por dirigir-se para” (HEIDEGGER, 1993, p.258). 72“ Semejante estar vuelto hacia la posibilidad lo llamaremos adelantarse hasta la posibilidad” (HEIDEGGER, 2005, p.281).
62
o sentimento genuíno da própria possibilidade, ou seja, sustentar a
ameaça indeterminada de sua morte e apropriar-se de sua condição de
ser-para-a-morte.
De fato, a ameaça mesma é indeterminada e, por conseguinte, não pode penetrar ameaçadoramente em direção a este ou aquele poder-ser fáctico concreto. Aquilo pelo que a angústia se angustia é o ser-no-mundo mesmo (HEIDEGGER, 2005, p.209-210)73.
A angústia revela dois aspectos importantes para a
fundamentação da analítica do Dasein: O primeiro aspecto é o caráter
ameaçador que revela o peso da existência, pois o Dasein é ameaçado
em seu ser-no-mundo e se angustia de ser em possibilidades, lançado
na indeterminação de sua morte certa, irremissível e insuperável. O
segundo aspecto é o caráter singularizador e liberador presente no
fenômeno da angústia. A angústia singulariza o Dasein abrindo-o para
seu próprio poder ser, ou melhor, para o seu ser possível. E mesmo
diante de toda tensão presente na revelação do ser finito, o Dasein
acolhe a angústia de ser e estar lançado para o fim e, assim torna-se
livre da opressão do cotidiano para assumir e escolher a si mesmo. O
Dasein é livre para encontrar-se consigo mesmo e ser o que já sempre
foi – lançado em possibilidades com a responsabilidade de ser.
73
“En efecto, la amenaza misma es indeterminada y, por consiguiente, no puede penetrar amenazadoramente hacia este o aquel poder-ser concreto fáctico. Aquello por lo que la angustia se angustia es el estar-en-el-mundo mismo” (HEIDEGGER, 2005, p.209-210).
63
A caracterização do adiantar-se [Vorlaufen] à morte é
extremamente relevante para a compreensão da morte em sentido
próprio, pois através do adiantar-se à morte o Dasein se afasta da
compreensão niveladora que a morte recebe no cotidiano e abre-se para
o futuro e apropria-se do tempo. Em face do peso advindo da angústia
para assumir sua condição finita, o Dasein busca uma compreensão
imprópria, decaída acerca da morte, ou seja, a morte acontece em
algum momento, mas não agora. A compreensão da morte no cotidiano
permanece dispersa e difusa. E somente no adiantar-se à morte o
Dasein compreende a convocação em assumir seu próprio fim, sua
condição singular e finita. Portanto, no adiantar-se à morte o Dasein
pode retomar-se e compreender-se como ser-para-a-morte em sentido
próprio.
O fenômeno da morte como a extrema possibilidade demonstra o
poder ser todo do Dasein, isto é, sua condição fundamental. No
movimento do adiantar-se à morte, o Dasein se dá conta dos seus
limites bem como da irreferencialidade da morte, assim sendo,
compreende a totalidade, a singularidade e a liberdade presentes em
sua existência, pois a compreensão, acima referida, brota da
impossibilidade de existir. A morte encerra o projeto, portanto, ela
delimita e dá o sentido do próprio existir. Compreender-se como um
ente finito, que dispõe de um tempo no mundo junto com os outros para
64
empreender sua existência, provoca a angústia diante da
impossibilidade do existir, mas também convoca o Dasein a assumir a si
mesmo com um destino diante de uma comunidade.
A presente exposição permite compreender que Heidegger
estabeleceu uma fundamentação ontológica para o conceito de morte,
para retirá-lo de uma ‘visão de mundo’ simplificada, impessoal e
encoberta que não oferecia o acesso ao sentido mais próprio da
integralidade (ser todo) e da subsistência (existir) do Dasein. A morte
afeta e torna finita a existência e, deste modo, resta ao Dasein
desdobrar-se nas possibilidades disponíveis.
Desenvolveremos, a partir da presente explicitação, o estudo da
temporalidade própria e imprópria para compreendermos como Dasein
dispõe do tempo e viabiliza sua existência, pois acreditamos que, desta
maneira, construiremos o caminho para tornar mais esclarecedora a
noção de historicidade do Dasein, conforme descrita por Heidegger.
65
Capítulo 4
Considerações acerca da temporalidade em Ser e Tempo
Pretendemos abordar a noção de tempo74, segundo Heidegger,
para compreendermos como a historicidade75 do Dasein está
fundamentada no tempo.
Com base nas considerações acerca da morte, apresentadas
anteriormente, explicitamos que a morte, como um fenômeno
74 A discussão acerca do tempo, no presente capítulo, baseia-se em três textos de Heidegger, que nos permitem aproximar da noção de tempo, segundo o autor. Os textos utilizados são: O Conceito de Tempo (1924), Ser e Tempo (1927), tradução de Rivera, e Seminários de Zollikon (1965). Utilizamos também o texto The Genesis of Heidegger’s Being and Time (1993), de Kisiel.
O texto O Conceito de Tempo, de 1924, foi preparado para uma conferência apresentada para a Sociedade de Teólogos de Marburgo. Nesse estudo, o autor investiga detalhadamente o modo mais adequado de abordar e compreender o tempo. Heidegger explicita de maneira contundente, embora preliminar, a noção de temporalidade que desenvolverá posteriormente em Ser e Tempo.
A obra Ser e Tempo nos oferece uma discussão profunda e detalhada da analítica do Dasein, bem como da temporalidade, no intuito de explicitar a questão do ser em geral.
Os Seminários de Zollikon, um trabalho realizado de 1959 a 1970 entre Heidegger e Boss, contavam com a participação de médicos. As discussões ocorriam a partir dos fundamentos ontológicos heideggerianos e situavam-se em torno das seguintes questões: os fundamentos da psiquiatria clássica e da psicanálise, bem como dos fenômenos saudáveis e patológicos do ser humano. Na atual discussão, esse texto é esclarecedor, sobretudo, nos seminários de discussão acerca do tempo, pois Heidegger explicita com muita clareza noções complexas acerca do tempo, já expostas em Ser e Tempo.
O texto The Genesis of Heidegger´s Being and Time, como o próprio título sugere, problematiza a constituição, ou melhor dizendo, a origem da discussão presente em Ser e Tempo. Kisiel, de uma maneira cuidadosa e consistente, oferece os caminhos iniciais em que Heidegger foi problematizando as questões sobre o sentido do ser, sobretudo na década de 20, e que em 1927 culminou com a publicação de Ser e Tempo. O texto é extenso. Portanto, utilizo a parte três “Three Drafts of Being and Time”, que centraliza os aspectos relevantes para discutir a noção do tempo. 75 O sentido da historicidade será explicitado detalhadamente no capítulo 5. Somente para situar e elucidar inicialmente o contexto da presente discussão: “A historicidade de Dasein depende de seu acontecimento ou ‘historização’, o modo peculiar pelo qual ele se estende entre seu nascimento e sua morte” (INWOOD, 2002, p.84).
66
existencial revela a remissão76 entre Dasein e tempo. A compreensão da
morte permite ao Dasein se descobrir como um ente finito que possui
uma duração, um tempo para existir. Portanto, a compreensão do
tempo se abre a partir da finitude, isto é, do adiantar-se à morte
[Vorlaufen in den Tod] em sentido próprio.
A compreensão da morte como possibilidade última traz o modo
de ser singular do Dasein, qual seja, ser-para-a-morte, assim como
permite a compreensão do tempo em sentido próprio. No entanto,
segundo o autor, a compreensão do tempo não se mostra ao Dasein no
modo próprio, a partir da compreensão de sua possibilidade extrema. O
entendimento do tempo mais habitual ao Dasein acontece no decorrer
de seus dias no cotidiano, isto é, na realização de cada tarefa
estabelecida, nos parâmetros medidos pelo uso do relógio, do
calendário, na alternância de dia e noite. A informação mais próxima
sobre o tempo é que contamos com o tempo e medimos o tempo. Para
compreendermos como Dasein lida e dispõe do tempo, porém,
precisamos abordar alguns aspectos desse fenômeno.
As discussões realizadas por Heidegger acerca do tempo na
conferência O Conceito de Tempo, Ser e Tempo ou Seminários de
Zollikon, guardando a especificidade de cada obra, mantêm uma
76
Remissão é utilizada no texto com o sentido de “ação ou efeito de remeter, de referir-se” (FERREIRA, 1999, p. 1740).
67
preocupação comum, isto é, desvelar77 o que seja o tempo. Para o
autor, o tempo não pode ser caracterizado como movimento, tampouco,
como instantes sucessivos e homogêneos que podemos medir. O tempo
não é isto ou aquilo, ou melhor, o tempo não é uma coisa, mas
podemos dizer que o tempo se mostra como um fenômeno.
Se perguntarmos pelo que é o tempo, então não devemos agarrar-nos precipitadamente a uma resposta – isto ou aquilo é o tempo – que sempre designa um o que (HEIDEGGER, 1997, p.39).
A preocupação de Heidegger já nos anos 20, segundo Kisiel,
anterior à publicação de Ser e Tempo, era elaborar um novo conceito de
tempo que pudesse explicitar a complexidade e retirar as expressões e
conceitos tradicionais que, segundo Heidegger, mantêm a discussão do
tempo como ordem mensurável do movimento ou como movimento
intuído. Em ambas perspectivas, a compreensão do tempo funda-se na
primazia do presente, ou como explicita Heidegger, em diferentes
passagens de seus textos, ‘no tempo do agora’. O tempo do agora
representa um aspecto do tempo e não seu fenômeno original.
Heidegger, ao tratar a questão do tempo, dialogou com diferentes
autores da Filosofia, entre eles Aristóteles, Kant e Hegel. E, segundo as
reflexões do autor, o fenômeno original do tempo não se encontra na
77 Utilizo a palavra desvelar com o significado de dar a conhecer, aclarar, esclarecer. (FERREIRA, 1999, p.669).
68
medição ou mensuração do tempo, como elucida a definição de
Aristóteles ‘o Tempo é o número do movimento segundo o antes e o
depois’ (ABBAGNANO, 2003, p.945). E há ainda, outros filósofos na
História da Filosofia que compartilharam desta concepção aristotélica do
tempo.
O tempo, para Kant, não representa uma ordem de sucessão, mas
uma ordem causal. O tempo, para o autor, não é um conceito empírico
que pode ser obtido com base na experiência, mas o tempo é dado a
priori. Não é um conceito discursivo ou universal, mas uma “forma pura
da intuição sensível”. O tempo não é algo que subsista por si mesmo,
ele adere, segundo Kant, ao sujeito que o intui.
Logo, o tempo é simplesmente uma condição subjetiva da nossa (humana) intuição (que é sempre sensível, isto é, na medida em que somos afetados por objetos), e em si, fora do sujeito, não é nada (KANT, 1999, p.80).
A compreensão de Kant é importante para a Filosofia, apesar de
apresentar um caráter centrado na intuição humana, no que é intuído
no imediato, ou seja, em uma dada sucessão causal.
A concepção de tempo como movimento intuído descrito por Hegel
é discutida por Heidegger, sobretudo, no §82 de Ser e Tempo, onde
Heidegger aponta a justaposição de espaço e tempo efetuada naquela
69
explicitação. Hegel elaborou a concepção de tempo como intuição do
movimento ou ‘devir intuído’, ou seja, trata-se de uma mudança
absoluta que faz o movimento do ser ao nada e do nada ao ser.
Conforme esse ponto de vista, o tempo é “o passo não pensado que
simplesmente se apresenta na seqüência de agoras” (HEIDEGGER,
2005, p.444)78.
As concepções de tempo, acima mencionadas, não são eliminadas
por Heidegger, mas, ao contrário, discutidas e compreendidas à luz de
sua fenomenologia hermenêutica, ou seja, à luz da destruição
fenomenológica da história da ontologia com a pretensão de recolocar,
nesse momento, a problematização acerca do tempo. E é com essas
reflexões acerca do tempo que Heidegger busca avançar na elaboração
do fenômeno.
Heidegger sustentou, em 1924, que havia uma conexão entre o
ser humano (Dasein) e o tempo; de algum modo privilegiado, o humano
é interpelado pelo tempo, e que, portanto, a partir dele poderíamos
compreender o tempo. O tempo não pode ser compreendido como
sucessão de movimento, intuição, devir, e não está circunscrito em um
“agora” pontual. Segundo considerações de Kisiel (1993), Heidegger
78
“el paso no pensado que simplemente se presenta en la secuencia de los ahoras” (HEIDEGGER, 2005, p.444).
70
apresenta dois tempos diferentes para reconduzir a questão; o tempo
próprio e o tempo comum a todos “The time proper to me; the time
commom to Everyone: two different times”79(KISIEL, 1993, p.345). As
duas dimensões do tempo não são separadas, ao contrário, compõem a
totalidade do fenômeno. O tempo comum a todos é o que Heidegger
compreende como o tempo presente, isto é, a interpretação do imediato
que o Dasein absorvido no mundo realiza sobre o tempo. E o tempo
próprio é o que define o ser do Dasein e que advém do futuro.
O desdobramento do tempo em comum e próprio, ou os “dois
tempos diferentes” como chamou Kisiel, representa uma das grandes
contribuições de Heidegger para a Filosofia, pois revela a complexidade
envolvida na discussão e elaboração do que seja o tempo, isto é, ele
mostra as diferentes dimensões de acesso ao tempo, ao mesmo passo,
aponta a tensão entre o tempo do cotidiano e o tempo próprio na
existência do Dasein. A tensão denota o próprio movimento constitutivo
do Dasein de esquecer (encobrir) sua condição finita e perder-se de si,
mas ter a possibilidade de retomada. O tempo se torna acessível ao
Dasein, conforme veremos adiante, no entanto, assume modos
diferentes em cada âmbito da existência.
79 Tradução livre: “O tempo próprio para mim; e o tempo comum a Todos: dois tempos diferentes”.
71
Kisiel (1993) recupera em seu texto uma nota na qual o próprio
Heidegger, em correspondência com Löwith, em 1927, observa que
antes dele ninguém havia fundamentado a ontologia onticamente. Essa
relação ôntico-ontológica que Heidegger explicitou a partir da
constituição própria do Dasein como possibilidade de acesso à questão
do ser abre um novo horizonte de questionamento ao tempo. Passemos
à exposição da nova compreensão da temporalidade extática
[Ekstase]80.
A temporalidade exposta por Heidegger compreende o tempo
como fenômeno. Isto é, o tempo não se revela em sua totalidade, mas
solicita um esclarecimento passo a passo para elucidar as distintas
dimensões nele presentes. Então, devemos primeiramente analisá-lo, a
fim de compreender o modo de acesso, segundo o autor, mais adequado
para abordar tal fenômeno. E este acesso não se dará do ponto de vista
abstrato, mas no modo concreto, ou seja, partimos da existência
cotidiana81 do Dasein, ente que interroga e responde acerca do tempo;
pois a existência cotidiana favorece a demonstração fenomenal que se
80
“Ekstase(n) vem do grego existanai, deslocar, desordenar (...) Heidegger reanima o sentido original de ‘sair de si’: o tempo sai de si para o passado, presente e futuro” (INWOOD, 2002, p.141). 81 Cotidianidade se refere “evidentemente, a aquel modo de existir en que el Dasein se mantiene ‘todos los dias’ (...). el término cotidianidad mienta um determinado cómo de la existencia: el que domina al Dasein durante toda su vida” (HEIDEGGER, 2005, p.385).
72
quer explicitar, conforme as considerações de Heidegger em Ser e
Tempo.
O Dasein, como afirmamos anteriormente, é um ente que
interroga sua própria condição e compreende seu modo de ser-no-
mundo, junto com os outros e junto às coisas. O Dasein é ser-no-
mundo, é um ente que se encontra numa pertinência com o mundo,
com os outros e com as coisas; a pertinência referida é a unidade que
perfaz a totalidade desse fenômeno. A designação do Dasein como ser-
no-mundo refere-se à sua constituição fundamental.
Ser-aí enquanto ser-no-mundo significa: estar de tal modo no mundo que este ser designe: lidar com o mundo, permanecer nele num modo de fazer algo, de realizar, de efetuar, mas também de contemplar, de questionar e de determinar por observação e comparação (HEIDEGGER, 1997, p.17-19).
Existindo o Dasein já perfaz esta tríplice unidade, isto é,
demonstra sua estrutura eqüiprimordial. Em virtude de seu modo
remissivo aberto pela compreensão, podemos dizer que o Dasein guarda
uma relação de pertinência com o tempo, ou seja, de algum modo é
interpelado pelo tempo no mundo e, desta maneira, pergunta pelo
tempo.
Para explicitar o fenômeno do tempo e o modo como Dasein é
interrogado por ele, pretendemos descrever as diferentes dimensões do
73
tempo elaboradas por Heidegger, para dar conta das inovações
conceituais estabelecidas para discutir o fenômeno. São elas:
1o) A temporalidade imprópria do Dasein, também denominada
como queda [Verfallen], pois neste modo de compreensão e apreensão
do tempo, Dasein se ocupa do tempo;
2o) A intratemporalidade [Innerzeitigkeit], denominada como
tempo do mundo [Weltzeit]. Com a descrição da intratemporalidade
levamos em conta o tempo do mundo, o tempo disponível a todos no
cotidiano que vem ao encontro dentro do mundo (o tempo referente às
coisas), o modo como Dasein conta com o tempo;
3o) A temporalidade própria do Dasein, também denominada como
resolução precursora da morte [Entschlossenheit Vorlaufen Tod]. Nesse
modo de compreensão e apreensão do tempo, Dasein é o próprio
tempo. A compreensão do tempo como um fenômeno primordial do
Dasein, a partir da resolução precursora da morte, revela o tempo não
como sucessão linear, mas como um horizonte circular e simultâneo
denominado pelo autor como horizonte extático do tempo. As êxtases82
da temporalidade são: porvir, sido e presente83.
82 A palavra êxtase utilizada por Heidegger em ST traz a idéia de movimento, do projetar-se para fora de si, do dirigir-se para. 83 As três êxtases da temporalidade são, segundo Heidegger: Zukunft; na tradução chilena, “porvenir” próprio. No texto utilizo a designação porvir, êxtase que designa o caráter futural do
74
Com a explicitação da temporalidade imprópria, da
intratemporalidade e da temporalidade própria, podemos fundamentar a
existência do Dasein como um ente temporal. Resta-nos adiante, para
complementar a análise, demonstrar o seu caráter histórico na descrição
da historicidade com base nas considerações da temporalidade descritas
segundo a fenomenologia hermenêutica.
4.1 Temporalidade Imprópria
A pergunta e a compreensão do tempo mais imediata e comum
surge no cotidiano. O Dasein compreende o tempo a partir de seu dia-a-
dia, das tarefas e atividades que realiza, de seus empreendimentos e
desempenho para si junto com os outros. Nesse desempenho mantém
uma relação de conformidade consigo e com os outros na busca de
familiaridade e regularidade para existir. Esse modo de existir no
cotidiano, característico do ocupar-se84[Besorgen] no mundo, é
denominado de modo impróprio. O Dasein existe e se reconhece a partir
Dasein. Gewesenheit; na tradução chilena, “haber-sido” próprio. No texto utilizo a designação sido para a êxtase que revela o modo como Dasein já sempre é ‘lançado’ no mundo. Gegenwart; na tradução chilena, “presente” próprio. No texto utilizo a designação presente para a êxtase que mostra o modo em que o Dasein se apropria dos entes intramundanos sem distorções, sendo aquilo que podem ser em sua manualidade. 84 “(....) usa-se a expressão ‘ocuparse de’[Besorgen] na presente investigação como um termo ontológico para designar (....) o ser de uma determinada posibilidad de estar-en-el-mundo” (HEIDEGGER, 2005, p.83). Para o termo ocupar-se, da tradução chilena, utilizamos os termos “ocupar-se, envolver-se no mundo” ou “estar absorvido” como sinônimos.
75
do envolvimento no mundo, pois existir de modo impróprio é a sua
condição legítima, peculiar e freqüente.
Imerso no cotidiano, na convivência com os outros, Dasein vê
passar as horas, os dias, os meses, contando o tempo no uso do relógio
e no calendário. O tempo que aparece é o tempo a partir de suas
tarefas, das questões imediatas que surgem do presente — o tempo
assim apreendido na cotidianidade é descrito como tempo ocupado. A
compreensão do tempo como tempo ocupado se dá pelo fato do Dasein
se entregar ao cotidiano como um modo de existir apaziguador e
familiar para dispersar a sua condição mais própria de ser-para-a-morte
[Sein zum Tode]. Ao buscar a conformidade com os outros em um
discurso idêntico, no qual todos compartilham suas idéias e suas
tarefas, evitando as surpresas e o que é estranho, o Dasein se mantém
no modo caracterizado por Heidegger como queda ou estar caído
[Verfallen].
O Dasein se compreende, escreve Heidegger, na uniformidade, na
convivência impessoal, caído, pois não suporta sua condição de existir
lançado no mundo e entregue à responsabilidade de si mesmo para
cuidar-se. Angustiado diante de estar lançado na ameaça indeterminada
da morte, foge e refugia-se no mundo cotidiano. Entrega-se no
envolvimento do mundo e nas solicitações mais imediatas, isto é,
76
dispersa-se de si mesmo, da sua condição finita. Ou seja: Dasein se
angustia diante do seu poder-ser [könnensein] mais próprio, ser-para-a-
morte.
Contudo, o Dasein empenha-se nos afazeres, nas atividades,
espera e faz planos, mas não está comprometido com a situação
esperada, está distante de seu poder-ser mais próprio, e esse modo
impróprio de compreender o futuro Heidegger denominou de espera
[Gewärtigen]. Distanciado de si mesmo no modo da espera, o Dasein
fecha-se para o seu ser e estar lançado constitutivo, e esquece de seu
modo de poder-ser em possibilidades, e assim, toma o tempo
impropriamente no modo denominado de esquecimento
[Vergessenheit]. Esquecendo-se do seu modo de ser originário, o
Dasein se ocupa com as coisas do mundo e realiza as solicitações
imediatas que vêm ao seu encontro; esse modo de ser entregue às
falações e ocorrências cotidianas o autor denominou como o sentido
impróprio do presente, como presentação [Gegenwärtigen].
Somente uma convocação, a resolução85[Entschlossenheit],
advinda da sustentação da angústia, pode levar o Dasein a recuperar-se
85 “O ‘estado de resolução’ indica um modo de abertura do ‘Dasein’: Este eminente modo próprio de la aperturidad, atestiguado en el Dasein mismo por su conciencia – el callado proyectarse en disposión de angustia hacia el más propio ser-culpable - es lo que nosotros llamamos la resolución [Entschlossenheit]. La resolución es un modo eminente de la aperturidad del Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.314).
77
da dispersão, encontrando a si mesmo e, portanto, apropriando-se de
sua condição finita (conforme veremos na temporalidade própria).
A explicitação do tempo no cotidiano revela um dos modos como
Dasein compreende o tempo e dele dispõe, ou seja, empenhado nas
atividades e cuidando das tarefas, está disperso de si, porém
comprometido com o que é imediato, junto ao tempo impróprio
(presente). Então, as solicitações no cotidiano convidam-no a, a partir
das tarefas, a dispor do tempo, medindo e calculando.
Com a descrição da temporalidade imprópria [uneigentliche
Zeitlichkeit], Heidegger situa esse modo de acesso ao tempo, acima
mencionado, como o tempo comum a todos. O tempo assim
caracterizado revela sua dimensão ôntica, o seu enredamento no
presente. Diante das considerações acerca da temporalidade imprópria,
passaremos à explicitação do que seja o tempo que vem ao encontro no
mundo.
4.2 Intratemporalidade
A explicitação da intratemporalidade86 tornará mais clara a
essência do tempo público, do tempo do mundo. Compreendemos, por
meio da elucidação da temporalidade imprópria, que o Dasein descobre
86 “O Dasein não é apenas temporal: enquanto Dasein de facto é também <no tempo>” (DASTUR, 1990, p.116).
78
o tempo a cada momento, no cotidiano, na relação com os outros;
descobre o tempo ‘para algo’ em virtude de seus afazeres e
empreendimentos. Ou seja, concebe o tempo com base nas tarefas,
interpretando-o como algo que é imediato. A compreensão do tempo a
partir do envolvimento no mundo não é um tempo que Dasein
reconhece como seu, mas é o tempo que dá a si mesmo, e que
impessoalmente está disponível no mundo.
Portanto, arrebatado no cotidiano, escapa ao Dasein qualquer
possibilidade de compreensão do tempo que não seja aquela em que
pode contá-lo.
Posto que o Dasein existe essencialmente como lançado e decaído, em sua ocupação interpreta o tempo na forma de uma contagem do tempo (HEIDEGGER, 2005, p.426)87.
A contagem do tempo é uma característica do estar absorvido no
mundo, pois o Dasein descobre o tempo no mundo, como tempo para
algo e disponível para todos — o tempo é publico. Quanto mais o Dasein
se ocupa do tempo e se orienta impessoalmente, mais conta com o
tempo e torna-o disponível para todos. O tempo pode ser contado
porque de algum modo ele nos é dado. O Dasein mantém uma
proximidade com o tempo que permite contar com o tempo e quantificá-
87
“Puesto que el Dasein existe esencialmente como arrojado y cadente, en su ocupación interpreta el tiempo en la forma de um cómputo del tiempo” (HEIDEGGER, 2005, p.426).
79
lo, “Porque sempre só posso tomar algo que me é dá-vel [Geb-bar]”
(HEIDEGGER, 2001, p.69).
Contar com o tempo para algo e por ele se orientar é um modo
peculiar ao Dasein que antecede qualquer medição ou uso de relógios,
já “ter tempo” é o que possibilita mensurá-lo. Contar com o tempo
manifesta-se nas maneiras de dizer: tenho tempo, leva tempo,
desperdicei tempo, falta tempo; estas expressões mostram as
estruturas88 pertinentes ao tempo, pois, segundo Heidegger, à medida
que o Dasein interpreta o tempo na convivência, já indica o ‘para quê’
deste tempo e não compreende o tempo sem uma significância — “O
tempo é sempre tempo para algo. O tempo é sempre o tempo em que
isto ou aquilo acontece” (HEIDEGGER, 2001, p.87).
A contagem no tempo público se refere a um tempo apropriado ou
inapropriado para efetuar as tarefas que respondem ao imediato, ao que
é presente. O Dasein compreende o tempo, a partir do presente, como
possibilidade de ser contado, datado, “agora em que isto acontece”,
“agora que o vaso quebrou”. Mas essa compreensão do tempo do
mundo é uma possibilidade ancorada na temporalidade imprópria do
Dasein. O tempo, segundo o autor, também pode ser quantificado no
88 Os caracteres do tempo são databilidade, interpretabilidade, amplitude temporal e estado público. Ver Seminários de Zollikon (HEIDEGGER, 2001, p.74-75).
80
cotidiano como mera coisa, isto é, pode ser compreendido como uma
sucessão linear de instantes idênticos ou seqüência de ‘agoras’, um após
o outro.
O tempo é passível de ser medido somente quando é constituído homogeneamente. O tempo é, assim, um desenrolar, cujas fases estão numa relação mútua do mais tarde com o mais cedo. (HEIDEGGER, 1997, p.13-15).
A essa quantificação ou mensuração Heidegger denominou
compreensão vulgar [Verständnis Vulgäre] do tempo. A compreensão
vulgar do tempo acontece quando há um nivelamento do tempo público.
O tempo é compreendido como mera coisa, sem o caráter do ‘para quê’,
isto é, sem a possibilidade de o tempo estar remetido a algo em um
contexto de significância.
A elucidação da intratemporalidade, como tempo do mundo,
mostra como Dasein ‘está no tempo’ e como se compreende a partir do
tempo que vem ao encontro dentro do mundo. Compreende o tempo do
mundo a partir da contagem do tempo, no uso do relógio que se atém
no presente e não consegue unir as dimensões do tempo; então, fica
disperso e entregue às ocupações cotidianas junto ao tempo impróprio.
Abordamos a temporalidade da queda como o sentido impróprio
do fenômeno do tempo, assim como a condição do Dasein no tempo
pela compreensão da intratemporalidade como tempo do mundo.
81
Passaremos, em seguida, a descrever um outro aspecto do tempo que
contribui, juntamente com os aspectos anteriores, para compreender a
totalidade do fenômeno.
4.3 Temporalidade Própria
Tanto na descrição da temporalidade da queda quanto na
intratemporalidade, constatamos a pertinência do Dasein ao tempo, isto
é, o tempo de algum modo diz respeito a esse ente, por isso, pode
contar com ele e quantificá-lo. Embora o fenômeno do tempo no sentido
primordial, proposto por Heidegger, não seja nem o ‘contar com’ nem o
‘quantificar’ o tempo, podemos dizer que ambos derivam do
denominado tempo primordial ou próprio.
O entendimento do tempo em sentido próprio se dá pela
compreensão do adiantar-se à morte89[Vorlaufen]. É no adiantar-se à
morte, na compreensão da finitude, que o Dasein se abre e se apropria
do tempo.
A morte, conforme foi tratada, é um modo de ser próprio ao
Dasein, que, existindo, já possui sua morte. Ao nascer, esse ente já se
dirige para o fim. Mesmo que não lide com ela, na temporalidade da
89 O adiantar-se à morte diz respeito ao adiantar-se à possibilidade extrema realizada pelo Dasein na apropriação de sua condição de ser-para-a-morte.
82
queda o Dasein sabe, de algum modo, de sua condição finita; porém,
encobre-a, refugiando-se nas tarefas diárias, enquanto na
temporalidade própria o Dasein resoluto assume sua impossibilidade de
existir, de não estar mais aí. Quando o Dasein é afetado pela sua
possibilidade mais própria, a morte, ele se angustia diante dessa
ameaça indeterminada. No entanto, o Dasein resoluto diante da
silenciosa convocação da consciência [Ruf des Gewissens] sustenta a
tensão da angústia advinda de ser finito, assumindo e se apropriando de
sua condição de ser-para-a-morte. Ao apropriar-se da sua condição de
ser-para-a-morte assume a si mesmo, ou seja, o seu poder-ser mais
próprio: encontra-se consigo mesmo. A resoluta convocação da
consciência não é para uma possibilidade específica da existência, senão
para a possibilidade de retornar a si mesmo, isto é, o Dasein volta a si
mesmo para o seu poder-ser lançado no mundo sem ruídos e dispersões
e, desta maneira, escolhe a sua existência porvindoura. Neste sentido, é
através da resolução precursora [Entschlossenheit Vorlaufen] que o
Dasein se descobre como tempo.
Projetar-se para a possibilidade da impossibilidade de existir, para
o futuro90, próprio da resolução precursora, retira o Dasein da dispersão
presente no cotidiano e revela a singularidade e a finitude de sua 90 O termo futuro é utilizado como sinônimo de porvir no presente texto e indica a designação elaborada por Heidegger do ‘adiantar-se’. “(...) El ‘antes’ y ‘anticiparse’ indican ese futuro que, en definitiva hace posible que el Dasein pueda ser de tal manera que le vaya su poder-ser” (HEIDEGGER, 2005, p.345).
83
condição. Contudo, cada Dasein deve encontrar-se com sua própria
morte, com seu fim intransferível. A compreensão de sua existência
finita, adiante de si, mostra-o como duração — ao Dasein é concedido
um tempo. Apropriar-se como duração, com um tempo, situa o Dasein
em seu ainda estar aí, e deste modo, é convocado para retornar a si e
empreender sua existência.
Portanto, o Dasein torna-se temporal, ou seja, é o próprio tempo
quando projeta-se para o futuro, compreendendo sua extrema
possibilidade: “O ser-aí, apreendido em sua extrema possibilidade de
ser, é o próprio tempo, não está no tempo” (HEIDEGGER, 1997, p.27).
Assim sendo, o futuro é a dimensão temporal que se abre na
resolução precursora da morte e disponibiliza a compreensão do tempo
próprio. Esse é o modo originário de acesso ao tempo, que Heidegger
denominou temporalidade própria [eigentliche Zeitlichkeit].
Somente à medida que o Dasein está determinado pela temporalidade, torna-se possível para si mesmo o modo próprio do poder-ser-todo que temos caracterizado como resolução precursora (HEIDEGGER, 2005, p. 344)91.
O Dasein, em sua constituição fundamental, conforme
salientamos, já se encontra lançado adiante de si em um mundo junto
às coisas e com os outros. O seu próprio modo de ser, como cuidado, é
91
“Sólo en la medida en que el Dasein está determinado por la temporeidad, hace posible para sí mismo el modo propio del poder-estar-entero que hemos caracterizado como resolución precursora” (HEIDEGGER, 2005, p.344).
84
antecipar-se-a-si mesmo [Sich-vorweg-sein] em um mundo, ocupando-
se das coisas em co-existência. Isto quer dizer que o Dasein, por sua
própria condição, projeta-se em direção ao futuro.
Projetar-se para o futuro permite ao Dasein compreender-se como
um ente finito que, ao apropriar-se de seu poder-ser mais próprio,
retorna a si mesmo para o que já sempre tem sido, ou seja, sua
condição de lançado no mundo. O retornar a si mesmo do Dasein,
sustentando a ameaça indeterminada de sua condição, o porvir próprio,
[Zukunft] Heidegger chamou de adiantar-se ao precursar [Vorlaufen].
O já ter sido, ou seja, a retomada a si mesmo, abre-se a partir do
futuro. O Dasein apropria-se de sua condição de já ter sido lançado
quando retorna a si mesmo, após assumir-se como possibilidade finita
pela abertura compreensiva da resolução precursora da morte. A esse
fenômeno originário do tempo o autor denominou repetição
[Wiederholung]. Do mesmo modo que o ter sido se abre a partir do
futuro, nas considerações acerca do tempo propostas por Heidegger, o
presente também é temporalizado (torna-se temporal) pelo futuro.
Novamente, a resolução precursora da morte, com seu caráter
“liberador”92, retira o Dasein da dispersão das atividades cotidianas
92 As aspas são acrescentadas por mim. A utilização da expressão ‘caráter liberador’ pretende designar o modo próprio em que na resolução precursora é liberada, ou seja, é permitida ou concedida a apropriação da totalidade do Dasein para ele mesmo.
85
compartilhadas no modo desencontrado de si, e coloca-o agindo por si
mesmo e apropriando-se de seu ser mais próprio. A esse modo de
compreensão do presente próprio o autor denominou instante
[Augenblick].
Portanto, o tempo é compreendido, por Heidegger, a partir do
adiantar-se à morte circular e simultaneamente, ou seja, o tempo
acontece na apropriação da possibilidade extrema no horizonte extático,
e não em uma sucessão temporal irreversível onde as dimensões
temporais presente, passado e futuro são encerradas em si mesmas.
O fenômeno do tempo elaborado por Heidegger apresenta
inovações relevantes em contraposição ao tempo como ordem
mensurável, que apresenta simultaneidade das suas partes (uma
seqüência de instantes um após o outro) ou devir intuído, onde ambas
as concepções interpretam o tempo a partir do presente. Para o autor, o
tempo deve ser compreendido como o modo de ser do Dasein e não
como cronologia.
Ao descrever a pertinência do Dasein ao tempo, o autor estabelece
a diferença ontológica e retira o tempo da compreensão meramente
presente. Isto é, o Dasein, por sua constituição existencial ôntico-
ontológica privilegiada, possui um acesso ao tempo tanto no cotidiano,
na dimensão ôntica, quanto na dimensão ontológica, uma vez que
86
possui a compreensão de ser. O tempo no cotidiano oferece ao Dasein
uma linguagem comum, um calendário compartilhado, uma organização
necessária à convivência. Contudo, quando Heidegger descreve a
convocação da consciência e a resolução precursora da morte, ele cria
uma nova proposta de compreensão e apreensão do tempo. O
fenômeno do tempo aparece, então, tematizado nas dimesões: ôntica e
ontológica, quebrando a primazia do presente e incorporando o primado
do futuro. Em verdade, Heidegger propõe uma eqüiprimordialidade das
dimensões temporais (porvir, sido e presente); isto quer dizer que todas
as dimensões são temporalizadas (tornam-se temporais)
simultaneamente, e juntas se articulam e formam uma tríplice unidade
co-originária. Essa tríplice unidade, designada como êxtase, é, cada
qual, um horizonte possível de o tempo se abrir; entretanto, há primazia
de uma delas em cada modo temporal: “As êxtases não são
simplesmente saídas de si mesmas em direção a..., senão que às
êxtases lhe pertence também um “em direção a que’ da saída”
(HEIDEGGER, 2005, p.380)93.
As êxtases explicitam, conforme mencionado, cada modo
temporal, seja em sentido próprio ou impróprio, contudo, elas se
temporalizam a partir de diferentes momentos estruturais. Os
93“Los éxtasis no son simplemente salidas de sí mismo hacia..., sino que al éxtasis le pertenece también un ‘hacia qué’ de la salida” (HEIDEGGER, 2005, p.380).
87
momentos estruturais se referem à unidade estrutural do cuidado94
[Sorge] e são eles: compreensão, queda, disposição e discurso. Cada
um desses fenômenos da abertura do Dasein torna-se temporal a cada
vez em uma das êxtases, embora todas as êxtases sejam
temporalizadas95. Em suma, o esquema horizontal descrito a partir da
tríplice unidade possibilitou não achatar sobre o presente as demais
determinações do tempo, ao contrário, permitiu com o primado do
futuro diluir a força do imediato.
Outros aspectos significativos na discussão do tempo são a
convocação da consciência como um modo autenticador do tempo, pois
interrompe a conformidade e a familiaridade instaurada no cotidiano
pelo Dasein. Conforme discutido, a convocação retira o Dasein da
indiferença em relação a sua condição de ser-para-a-morte. Trata-se de
uma auto-retomada para o Dasein, visto que ele se apropria de sua
morte encoberta na existência cotidiana. A compreensão da morte como
fenômeno também oferece uma importância potencial na discussão do
94 “cuidado...: en alemán, Sorge... Tal como lo advierti el próprio Heidegger, el término Sorge designa solamente una estrutura existencial y no un fenómeno existentivo como sería, por ejemplo, el de la preocupación, de la inquietud o de la solicitud... El cuidado debe ser entendido en este contexto en el sentido del conjunto de disposiciones que constituyen el existir humano: un cierto mirar hacia delante, un atenerse a la situación en que ya se está, un habérselas con los entes en medio de los cuales uno se encuentra” (HEIDEGGER, 2005, p.484). 95
O fenômeno da compreensão se torna temporal a partir do porvir; o fenômeno da disposição afetiva se torna temporal a partir do sido; e a queda, a partir do presente, e o discurso não se torna temporal por uma dada êxtase específica.
88
tempo, já que evidencia o ser todo do Dasein e, com isso, torna finita a
existência do Dasein.
A resolução precursora descrita é extremamente significativa para
consolidação do novo conceito de tempo que Heidegger pretendeu
elaborar desde o início dos anos 20, que toma forma na publicação de
Ser e Tempo. Na resolução precursora modo da temporalidade extática
o Dasein torna-se porvindouro, ou seja, a própria resolução só é
possível porque o Dasein, em sua constituição fundamental, é projetado
para o futuro, sempre já vem a si. Com a descrição dessas estruturas,
Heidegger inaugura a concepção de tempo como possibilidades, ou seja,
como projeção.
Até aqui pretendemos explicitar a temporalidade própria, salientar
que o sentido do tempo é o próprio Dasein. Heidegger nos demonstrou,
com a descrição do tempo próprio, que o conceito tradicional do tempo
como seqüência de instantes sucessivos e idênticos ou a sucessão
temporal presente, passado e futuro não compreendem o acesso
primordial para tratar do tempo, mas apenas dizem respeito à
compreensão vulgar do tempo. O tempo ocupado com o qual Dasein
conta em seus dias foi descrito na temporalidade imprópria e deriva do
tempo próprio; por sua vez, o tempo como sucessão de agoras diz
89
respeito à compreensão vulgar de tempo com origem na
intratemporalidade.
A temporalidade possibilita a unidade da existência, ou seja,
possibilita uma compreensão da totalidade do Dasein. Ao realizarmos a
discussão dos modos de ser do Dasein no contexto da temporalidade
imprópria, intratemporal e própria, segundo Heidegger, demonstramos a
pertinência do Dasein ao fenômeno do tempo.
A temporalidade própria, segundo Heidegger, constitui o modo de
ser do Dasein, ou seja, é a condição fundamental de cada existir. Assim,
a explicitação da temporalidade nos oferece os elementos para
compreender o sentido temporal do Dasein. E o sentido temporal se
mostra, conforme dito, na projeção em direção ao futuro, na resolução
precursora da morte. Pretendemos, agora, elucidar o caráter histórico
do Dasein baseados na demonstração fenomenal do tempo próprio.
Fundamentada na temporalidade própria que descobre o Dasein
como ente temporal, explicitaremos a historicidade que, conforme
escreve Heidegger, é desentranhada como concretização da
temporalidade: “a interpretação da historicidade do Dasein se revela,
90
em última instância, como uma elaboração mais concreta da
temporalidade”. (HEIDEGGER, 2005, p.398)96.
96“la interpretación de la historicidad del Dasein se revela, en última instancia, como una elaboración más concreta de la temporeidad” (HEIDEGGER, 2005, p. 398).
91
Capítulo 5
A explicitação da historicidade como possibilidade de
compreensão do modo temporal do Dasein
Consideramos relevante desenvolver nos capítulos anteriores uma
explicitação geral da discussão acerca da História, assim como, uma
discussão dos fenômenos da compreensão da morte e da temporalidade
em sentido próprio, que são aspectos fundamentais e imprescindíveis
para a discussão da historicidade como o caráter do ser do Dasein.
Com a elucidação da temporalidade própria, ou seja, do precursar
da morte, descobrimos o fundamento temporal do Dasein. No precursar
da morte, o Dasein compreende seu projeto existencial finito e assume
seu desdobrar-se temporal, isto é, entende-se como duração e retorna
para si mesmo para empreender sua história. Sua condição existencial
inacabada e lançada no mundo com a responsabilidade de ter que ‘ser’
solicita o cuidado como modo próprio de ser desse ente.
Compreendemos o sentido temporal do Dasein pela explicitação da
morte em sentido próprio, da temporalidade própria, da temporalidade
no cotidiano e da intratemporalidade e, com isso, descrevemos o fim do
Dasein. Para completarmos a análise do sentido temporal, precisamos
considerar, com base na compreensão do tempo explicitado segundo
Heidegger, o começo, ou seja, o nascimento como um fenômeno
92
pertencente à existência, que, junto com a morte, constituem a
totalidade desse ente. O desdobramento entre nascimento e morte diz
respeito ao modo de acontecer do Dasein na existência.
5.1 Apresentação dos caminhos para compreender a história em
Ser e Tempo
A história constituiu um foco de interesse nos estudos de
Heidegger, não do ponto de vista epistemológico, conforme as
discussões presentes na Alemanha do século XIX, mas assumiu um
interesse ontológico em resposta ao debate vigente. No entanto,
Heidegger acompanhou e sofreu grande influência, observa Kisiel
(1993), com as correspondências e escritos de Dilthey e Yorck acerca da
historicidade. Heidegger salientou que o interesse comum entre ele e os
dois autores citados girava em torno da compreensão da historicidade, e
“Historicidade não é ‘história do mundo’, mas antes, ser-
histórico”(KISIEL, 1993, p.323).
Dilthey entende que a história deveria se tornar o centro
fundamental da compreensão. Ele buscava estruturar uma ciência,
elaborando uma teoria do ser humano através da história concreta do
espírito; tentava trazer “a vida para uma compreensão filosófica”
(HEIDEGGER, 2005, P.413). Procurava diferenciar o ser da natureza e o
ser da história, mas Yorck apontou, na ocasião, a pouca diferença entre
93
a compreensão ôntica e histórica no trabalho de Dilthey, que Heidegger
entendeu ser o ponto fundamental para consolidar a filosofia da vida
elaborada por Dilthey (tema discutido no § 77de ST97).
Apesar das críticas esboçadas por Heidegger ao projeto de Dilthey,
o autor homenageia-o como o grande pensador que perguntou acerca
da vida. Heidegger considerou que as idéias de Dilthey e Yorck foram
fundamentais, segundo ele, para avistar o problema enfrentado, nessa
filosofia. Ou seja, Heidegger localizou o problema no modo de
questionar o ser, ainda, nas bases da ontologia tradicional, e assim,
pôde buscar um outro caminho na ontologia fundamental que
possibilitou estabelecer a diferença entre ser e ente e, com isso,
descrever a historicidade do Dasein. Para Heidegger, outros dois
aspectos relevantes, da filosofia de Dilthey, conforme mencionado,
foram: compreender o sentido da história e da vida (do ser humano).
Acerca do sentido da vida, Heidegger oferece sua própria contribuição,
discutindo a tensão entre o cotidiano do Dasein e o seu modo próprio —
ontológico.
Alguns aspectos da discussão da História foram rechaçados por
Heidegger como, por exemplo, compreendê-la como uma disciplina que
97
A discussão presente no § 77 de ST, segundo Kisiel, foi escrita por Heidegger em 1924, que tentou publicá-la em 1926, “mas o co-editor Paul Kluckhohn expressou algumas reservas sobre a publicação do artigo pela linguagem e pelo estilo ‘ponderous’”. Heidegger conseguiu publicar o artigo no Husserl’s Jahrbuch, ou seja, a publicação conhecida de ST (KISIEL, 1993, p.322).
94
carecia de estabelecer objeto e método em contraposição às ciências
naturais, ou uma ciência que precisava construir um sistema próprio
para justificá-la e defini-la no cenário científico. Essas considerações
sobre a delimitação e construção de método e objeto mantinham
encoberto, segundo o autor, o sentido propriamente dito da história.
Assim, ele entendia que precisava elaborar uma outra compreensão
diferente daquelas propostas pela Escola Histórica.
Heidegger considerava haver uma confluência entre história e
ontologia. Segundo o autor, já em 1925, o que tornava acessível o
modo de ser histórico era a explicitação dos fenômenos pela
compreensão da fenomenologia ontológica. Este foi o recurso
encontrado para o problema da história. Heidegger salientou que a
questão central, então, seria perguntar pelo modo de ser da história,
visto ser uma questão anterior a qualquer epistemologia. Tratava-se,
para ele, de uma investigação originária, ou seja, de uma investigação
ontológica. Na investigação ontológica, a pergunta busca o sentido
primordial acerca da história, isto é, procura revelar a condição de
possibilidade do acontecer da história.
Portanto, para fundamentar a investigação, o autor explicitou,
com base na vida concreta, as estruturas fundamentais do Dasein que
constituem uma compreensão ontológica do sentido do ser, assim como
95
retornou à História da Filosofia para recuperar os aspectos originais e
fecundos dos conceitos da tradição. Nesse movimento de construção e
destruição do método fenomenológico, o autor afastou-se da
perspectiva epistemológica presente nas discussões da Escola Histórica
e propôs uma possibilidade de compreensão fundamental da história,
isto é, perguntar pelo modo de ser da história.
Então, para diferenciar seus interesses e manter seus propósitos
ontológicos perante as discussões da questão da História em sua época,
o autor propôs inicialmente uma distinção de seu significado. Na língua
alemã são utilizadas duas palavras para designar história, Geschichte98 e
Historie99. A designação Geschichte “significa a história que acontece”100
. Quando usa essa terminologia Heidegger se refere à historicidade do
Dasein. Historie “significa o estudo sistemático de acontecimentos do
passado, historiografia”101, isto é, a ciência histórica, a realidade
histórica e a historiografia.
Com essa designação o autor delimitou sua investigação da
compreensão de história como Geschichte. No entanto, Heidegger não
abandonou o entendimento da História como Historie, mas recolocou
98 A palavra Geschichte “relaciona-se, para Heidegger, aos acontecimentos”. A palavra Geschichte vem de geschehen - ‘acontecer’ (INWOOD, 2002, p.85). 99 A palavra Historie “vem do grego historien, ‘inquirir’” (INWOOD, 2002, p.85). 100 Inwood, 2002, p.83-84. 101 Inwood, 2002, p.83-85.
96
esse entendimento a partir da compreensão da historicidade ontológica
do Dasein, pois é pelo próprio caráter histórico do Dasein que a ciência
histórica e a historiografia podem ser tematizadas, conforme escreve o
autor.
Se o ser do Dasein é fundamentalmente histórico, resulta evidente que toda ciência fáctica se verá envolvida nesse acontecer [histórico]. Mas o saber histórico pressupõe de um modo próprio e especial a historicidade do Dasein (HEIDEGGER, 2005, p.407)102.
Em Ser e Tempo, a história foi tratada como acontecer do Dasein,
isto é, como constituição própria do modo de ser desse ente. A história
incorpora como fundamento o tempo em sua ‘tríplice dimensão’103
circular e simultaneamente, para designar o fenômeno do que seja
propriamente histórico. A consideração acerca da temporalidade nos
mostra que, a partir do futuro, Dasein compreende o seu poder-ser
próprio como um ente histórico.
Portanto, a história que vamos explicitar “não é mais a do
conhecimento histórico como método”104, mas o modo constitutivo em
que Dasein continuamente acontece na existência consigo e com os
outros, isto é, no modo da historicidade [Geschichtlichkeit]. A
102“Si el ser del Dasein es fundamentalmente histórico, resulta evidente que toda ciencia fáctica se verá envuelta en este acontecer [histórico]. Pero el saber histórico presupone de un modo propio y especial la historicidad del Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.407). 103 A tríplice dimensão do tempo é composta pelo futuro, ter sido e presente. As dimensões do tempo referidas estão presentes na obra Ser e Tempo, de Heidegger. 104 Stein, 2002, p.45.
97
historicidade é o modo pelo qual o Dasein viabiliza sua existência no
mundo, e como um ente histórico, não se separa da história de seu
povo e de seu destino [Schicksal].
A elaboração proposta para o presente capítulo compreende a
elucidação da historicidade própria e imprópria do Dasein. Entretanto,
para chegarmos a tal elaboração, julgamos importante considerar as
estruturas fundamentais do Dasein, essenciais para compreender a
historicidade. As estruturas essenciais que, juntas, formam o sentido
ontológico da história — historicidade são: o círculo hermenêutico ou da
compreensão, o ser com, o cuidado, morte e tempo (morte e tempo
descritos nos capítulos 3 e 4 respectivamente).
Realizadas essas considerações iniciais, passaremos a discutir as
estruturas fundamentais que, juntas, representam uma nova proposta
para uma compreensão da história na filosofia hedeggeriana.
5.2 A discussão dos elementos fundamentais para a exposição da
historicidade do Dasein
A compreensão da historicidade está diretamente vinculada à
explicitação das estruturas fundamentais da compreensão, do ser-com,
do cuidado, da morte e do tempo, pois percebemos uma relação de
98
pertinência entre tais estruturas na exposição de Heidegger, em Ser e
Tempo; isto é, há uma relação remissiva de uma estrutura a outra, cada
estrutura relacionando-se co-originariamente a outra. Logo, a
historicidade deve ser esclarecida juntamente com essas estruturas que
formam a circularidade e a unidade do fenômeno.
O primeiro elemento inegavelmente percebido em Ser e Tempo é
a circularidade própria do método fenomenológico hermenêutico, ou
seja, a explicitação de cada estrutura na analítica existencial está
remetida a uma outra estrutura, numa relação de estreito
pertencimento, lançando-nos em direção a um fenômeno que acontece
na totalidade — o Dasein como ser-no-mundo. A circularidade funciona
como a armação que dispõe toda possibilidade de aproximação e
compreensão dos fenômenos do tempo, da história, do mundo, da
morte (entre outros fenômenos explicitados em ST).
A circularidade da compreensão, deste modo, é um aspecto
presente na analítica existencial e, segundo o autor, não é um fenômeno
que deve ser evitado, mas ao contrário, deve ser positivamente
considerado.
Os esforços deverão dirigir-se, também, a saltar de um modo originário e pleno dentro do ‘círculo’, para assegurar, desde o
99
começo da análise do Dasein, a plena visão do caráter ‘circular’ deste (HEIDEGGER, 2005, p.334)105.
O movimento circular do pensamento heideggeriano, aspecto
peculiar do método, consiste em uma explicitação cuidadosa do caminho
utilizado para indagar as questões pretendidas. O autor parte das
noções cotidianas e procura voltar às origens, a proveniência da
questão, para resgatá-las sem as distorções possíveis ao longo das
épocas. Nesse resgate dos conceitos, aspecto da destruição do método
fenomenológico, o Dasein descobre a tradição, pois a retomada do
passado que ainda vigora é o modo constitutivo em que ele apreende o
seu próprio acontecer.
Em seu ser fáctico, o Dasein é sempre como e ‘o que’ já tem sido. Expressa ou tacitamente, ele é o seu passado. E isto não somente no sentido de que seu passado se descuide, por assim dizer, ‘detrás’ dele e que o Dasein possua o passado como uma propriedade que está ainda aí e que de vez em quando volta a atuar sobre ele (HEIDEGGER, 2005, p.43-44)106.
O movimento circular não é linear, não é dedutivo e nem pretende
explicar as questões que elege para investigar (conforme discussão do
capítulo 2). Mas a circularidade do método fenomenológico
hermenêutico possibilita reconhecer o movimento remissivo das
105
“Los esfuerzos debieran dirigirse, más bien, a saltar de un modo originario y pleno dentro de este ‘círculo’, para asegurarse, desde el comienzo del análisis del Dasein, la plena visión del caráter circular de éste” (HEIDEGGER, 2005, p.334). 106
“En su ser fáctico, el Dasein es siempre como y ‘lo que’ ya ha sido. Expresa o tácitamente, él es su pasado.Y esto no sólo en el sentido de que su pasado se deslice, por así decirlo, ‘detrás’ de él y que el Dasein posea lo pasado como una propiedad que esté todavía ahí y que de vez en cuando vuelva a actuar sobre él” (HEIDEGGER, 2005, p.43-44).
100
estruturas, ou seja, um fenômeno que se mostra como uma espiral;
como também o próprio modo de o Dasein acontecer na existência
(conforme veremos adiante). E a estrutura que articula essa
remissividade é a compreensão, pois a compreensão é a própria
projeção das possibilidades, é o poder-ser pelo qual o Dasein torna-se
acessível para si mesmo e descobre o mundo. A elucidação do fenômeno
da compreensão esclarece a importância do círculo hermenêutico no
pensamento de Heidegger.
Com o existencial da compreensão, aspecto fundamental na
discussão e elaboração do método fenomenológico hermenêutico,
Heidegger demonstra, segundo Gadamer107, com a explicitação do
círculo hermenêutico ou da compreensão, a indissolubilidade de objeto e
método, sujeito e objeto, assim como explicita a importância da
recuperação da tradição108, tanto para a compreensão das raízes e
107 Gadamer, em seu livro Verdade e Método (2003, 5ª edição), descreve a importância do método fenomenológico hermenêutico de Heidegger tanto para um novo caminho para a Fenomenologia quanto para o estudo da hermenêutica. O existencial da compreensão oferece uma nova perspectiva de entendimento para a construção do método e do objeto na Analítica do Ser em Ser e Tempo. 108 Importante ressaltar que o termo tradição é utilizado em Ser e Tempo como “Tradition (que vem do latim traditio) entrega, transmissão; que tende a ser obscura e está associada com Destruktion”. A desconstrução compreende um aspecto do método hermenêutico elaborado por Heidegger para constituir o que chamou de ontologia fenomenológica. E utiliza o termo como “Tradere transmitir a posse, ceder, no alemão Überlieferung tende a promover possibilidades e está associada com a reiteração. DasÜberlieferte, ‘o que nos é transmitido’, é um dos significados de geschichtlich, ‘histórico’. Também utiliza Erbe e Erbschaft, ‘herança’” (INWOOD, 2002, p.189). Nesse contexto, tradição significa: “Herança cultural, transmissão de crenças ou técnicas de uma geração para outra. No domínio da filosofia, o recurso à Tradição implica o reconhecimento da verdade da Tradição, que, desse ponto de vista, torna-se garantia de verdade e, às vezes, a única possível” (ABBAGNANO, 2000, p.966).
101
origens dos conceitos discutidos na metafísica, quanto para a
transmissão dos costumes e crenças do Dasein.
Através da interpretação transcendental da compreensão feita por Heidegger, o problema da hermenêutica ganha uma abrangência universal, e até se enriquece com o surgimento de uma nova dimensão. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora um sentido que pode ser demonstrado concretamente (GADAMER, 2003, p.353).
Assim sendo, a compreensão hermenêutica presente na analítica
heideggeriana contribuiu para a consolidação da hermenêutica de um
modo geral, como escreve Gadamer, como também para a elaboração
do método fenomenológico hermenêutico e para a explicitação da
questão do ser em Ser e Tempo.
A compreensão como modo constitutivo do Dasein descrito por
Heidegger pretendeu superar a dicotomia presente entre os
procedimentos explicativos das ciências naturais e os procedimentos das
ciências históricas, que assumiram o modelo compreensivo para definir
seu campo de atuação. O autor estabeleceu a noção de compreensão
como abertura originária do Dasein. A partir dessa abertura
compreensiva constitutiva o Dasein descobre o mundo, a si mesmo, os
outros e as coisas em uma conjuntura significativa. O Dasein
compreende-se como um projeto de possibilidades, como um modo de
encontro com os entes.
102
O elemento da compreensão demonstra a totalidade que perfaz as
estruturas fundamentais do Dasein. Portanto, o círculo da compreensão
ou hermenêutico deve ser entendido como uma estrutura fundamental
na análise heideggeriana que salienta a unidade das estruturas do
Dasein.
O Dasein, por sua constituição fundamental, como ser-no-mundo,
encontra-se desde sempre implicado no mundo, em uma pertinência
indissolúvel com o mundo, logo, esse ente não fala fora da história, mas
se encontra na história implicado em responder e acolher a sua
existência, como também o seu legado. A noção de compreensão
demonstra o modo como Dasein em seu poder-ser, projeta, significa e,
assim, pode abrir sua destinação.
O existir do Dasein não se dá por acréscimo, mas pela sua
pertinência com o mundo em que já se encontra lançado desde o
momento em que existe. É importante apontar essa unidade do
fenômeno da existência, uma vez que a discussão da historicidade em
Ser e Tempo é realizada considerando essa tríplice unidade (ser-com-
os-outros, junto às coisas, em um mundo).
A historicidade do Dasein é delineada nos § 72 a 77 de ST como o
acontecer do ser-com; não há nenhuma referência da história individual
do Dasein, mas da história da co-existência do Dasein. A existência do
103
Dasein pertence a uma comunidade, a um povo, pois sua condição
fundamental pressupõe a co-existência, o ser-com-os-outros. A partir
das considerações de Heidegger, a história não pode ser vista como a
somatória de experiências de vários sujeitos num dado período
temporal, visto que o existir como ser-com já pressupõe que o Dasein
sempre compreende os outros no mundo. Assim como a compreensão
abre o mundo dos utensílios na estrutura de significância, abre
conjuntamente os outros no modo da convivência, no modo da
solicitude [Fürsorge]109.
A abertura — implicada no ser-com [mitsein] — da coexistência de outros [mitdaseins], significa: na compreensão do ser do Dasein já está dada, posto que seu ser é ser-com, já subsiste à compreensão de outros (HEIDEGGER, 2005, p.148)110.
No modo de ser da co-existência o Dasein compreende os outros a
partir desse cuidado, disposto na solicitude, que ele mesmo possui. O
Dasein como ser-no-mundo é cuidador de sua existência e isto implica
dizer que em sua totalidade estrutural ele é compreendido como cuidado
[Sorge], isto é, ele compreende todas as possibilidades da existência
que diz respeito a si mesmo, aos outros e às coisas no mundo.
109 O modo da Fürsorge (no alemão) no castelhano solicitude significa “preocupación-por (los demás)”, nota da tradução chilena de Ser e Tempo, 2005. Fürsorge (preocupação ou solicitude) é descrito por Heidegger “como o modo básico de ser do Dasein como ser-um-com-o-outro” (INWOOD, 2002, p.26). 110“La apertura — implicada en el coestar — de la coexistência de otros, significa: en la comprensión de ser del Dasein ya está dada, puesto que su ser es coestar, la comprensión de otros” (HEIDEGGER, 2005, p.148).
104
O cuidado é o existencial que sustenta o Dasein como ser-no-
mundo, é o modo pelo qual ele instala sentido para habitar o mundo,
visto que sua condição de estar lançado no mundo para o seu poder-ser
mais próprio — a morte, angustia o Dasein, pois aberto para as
possibilidades na existência, defronta-se com a precariedade de sua
condição, que entregue a sua própria responsabilidade é convocado para
cuidar e acolher a sua existência. No poder-ser mais próprio, cada
Dasein encontra a própria morte; a possibilidade da impossibilidade
diante de todas as possibilidades abertas na existência.
A morte remete o Dasein em direção ao seu fim. É por meio do
precursar da morte, ou seja, a partir do adiantar-se à morte que o
Dasein apreende a sua possibilidade mais própria, qual seja, a morte.
No precursar da morte Dasein projeta-se para as possibilidades futuras
da existência; nesse projetar-se, Dasein se dá conta de sua totalidade e
do tempo. É diante das possibilidades do futuro, de ser-para-a-morte
autêntico, que Dasein decide assumir a si mesmo, apropriar-se de sua
condição finita. Assim, volta-se para o passado, retorna às
possibilidades já descobertas e providencia111 sua existência. O
movimento de apropriação da morte revela o modo próprio pelo qual
Dasein dispõe do tempo. No entanto, a maneira cotidiana de lidar com o
111 Providenciar: prover, atender.
105
tempo é no modo da impropriedade, desencontrado de si mesmo,
Dasein conta o tempo, vê seus dias passar — no cotidiano, o tempo
originário escapa.
O Dasein compreende seu projeto existencial como algo finito,
instável e inacabado. Logo, quando se apropria da possibilidade de sua
impossibilidade, apropria-se do tempo que ele mesmo é. A duração que
pertence a cada Dasein é indeterminada; o que podemos dizer é que
cada ente possui um tempo para realizar-se entre nascimento e morte.
Em cada passo da analítica amplia-se a constituição ontológica do
Dasein, no mesmo instante que revela a remissividade de uma estrutura
à outra. A morte é a constituição fundamental que aponta a finitude do
ente e a abertura ao tempo, e, deste modo, alcançamos o todo do
Dasein, ou seja, descrevemos o fundamento temporal do ente em sua
unidade estrutural temporalizada.
Temos, portanto, os elementos da analítica existencial que
formam os nexos essenciais para explicitar o acontecer do Dasein.
5.3 A elucidação da historicidade
Segundo as considerações de Heidegger em ST, para
completarmos a análise do todo do Dasein é preciso descrever o seu
acontecer na existência – a historicidade.
106
O ser do Dasein foi definido como cuidado. O cuidado se funda na temporalidade. Por conseguinte, devemos buscar dentro do âmbito desta um acontecer que determine a existência como histórica. Desta maneira, a interpretação, a historicidade do Dasein se revela, em última instância, como uma elaboração mais concreta da temporalidade (HEIDEGGER, 2005, p.398)112.
Então trataremos de explicitar o modo concreto do acontecer do
Dasein. Em toda analítica fenomenológica, Heidegger demonstrou a
constituição fundamental do Dasein com base em três âmbitos: o
âmbito mais distante em que o ente se encontra – o ontológico; o
âmbito em que Dasein não é estranho a si mesmo – o pré-ontológico, e
o âmbito mais próximo e familiar – o ôntico. Para elaborar a questão do
modo de ser da história, o autor parte do âmbito ôntico onde Dasein se
encontra mais familiarizado para desdobrar a sua existência e, a partir
daí, explicita os demais âmbitos.
A história, conforme mencionado, é uma concretização da
temporalidade, ou seja, também é uma constituição fundamental do
Dasein. Portanto, podemos dizer que o Dasein é um ente histórico, à
medida que se compreende como um ente temporal a partir do
fenômeno da morte e, assim, revela a finitude de sua condição
existencial. No entanto, é necessário explicitar um outro aspecto,
conforme nos apresentou Heidegger no § 72, que compõe a unidade do
112
“El ser del Dasein ha sido definido como cuidado. El cuidado se funda en la temporeidad. Por consiguiente, debemos buscar dentro del ámbito de ésta un acontecer que determine a la existencia como histórica. De esta manera, la interpretación de la historicidad del Dasein se revela, en última instancia, como una elaboración más concreta de la temporeidad” (HEIDEGGER, 2005, p.398).
107
fenômeno — o nascimento. A morte e o nascimento conjuntamente
constituem o acontecer existencial e temporal do Dasein.
O acontecer entre nascimento e morte é o modo concreto como
Dasein se desdobra na existência. Quando Heidegger tratou desses
elementos, tratou-os como a totalidade de um fenômeno existencial. A
discussão acerca do nascimento e da morte não surgiu como um fato
histórico, mas como um fenômeno, e podemos recuperar essa questão
na nota do tradutor113 de Ser e Tempo: o Dasein compreende
(apreende, “experimenta”) a existência como uma unidade de nascer e
morrer. Em sua condição existencial e temporal, o Dasein existe lançado
e já se dirige para o fim; a extensão entre nascimento e morte
corresponde à duração, ao tempo que o Dasein dispõe para realizar-se
na existência.
Na unidade do estar lançado e do estar em fuga [flüchtigem] ou precursantemente ser-para-a-morte [sein zum tode], nascimento e morte se conectam na forma característica do Dasein (HEIDEGGER, 2005, p.391)114.
113 Nota do tradutor (referente à p.391) “(....)existe nativamente [gebürtig]...’. Como se vê, Heidegger emplea aquí la palabra gebürtig en um sentido adverbial. Gebürtig, proveniente de Geburt, que significa nacimiento, se traduce habitualmente por ‘natural de’ (....) Que el Dasein exista nativamente quiere aquí que su nacimiento no es un mero hecho ‘ histórico’, es decir, algo del pasado, sino más bien algo que afecta a su existencia en todo momento: la existência humana es vivida siempre como uma ‘existencia nacida’, es decir, como uma existencia que tiene detrás de ella, sosteniéndola, su próprio nacimento. No se trata de que ‘sepamos’ de esto porque otros nos dicen que algún día nacimos, sino que experimentamos la existência como ‘nascida’ y como ‘muriente” Nota de Rivera acerca de (HEIDEGGER, 2005, p.496). 114“En la unidad del estar arrojado y del estar vuelto rehuyente o precursantemente hacia la muerte, nacimiento y muerte se conectan en la forma característica del Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.391).
108
Enquanto unidades existenciais e temporais, o nascimento e a
morte singularizam o acontecer do Dasein como ente histórico, pois
pertence ao Dasein esse modo de existir lançado no mundo em direção
ao seu fim. A movimentação do Dasein entre nascimento e morte no
mundo é entendida como historicidade, ou seja, o modo de ser da
história.
Heidegger apontou em sua investigação ontológica o modo de ser
da história, demonstrando que o ser do Dasein se constitui pela história
e, portanto, a compreensão da existência é histórica. A compreensão do
que é propriamente histórico não se encontra em uma narração de fatos
passados, em vivências individuais num período temporal ou na
construção de um saber histórico. Mas a compreensão histórica se abre
na tríplice unidade do ser-no-mundo co-originariamente com a
temporalidade própria.
O Dasein, como ser-no-mundo, abre uma cena originária, isto é,
existindo já é lançado no mundo, junto às coisas que vêm ao seu
encontro no modo da co-existência. A abertura compreensiva que
constitui o próprio Dasein conjuntamente com a resolução precursora da
morte abrem o sentido histórico do mundo, das coisas, do si mesmo no
modo da convivência. A história do Dasein é a história do ser-com-os-
109
outros que acontece no mundo. O mundo e os entes presentes nesse
contexto significativo juntamente com o Dasein também são históricos.
Nesta perspectiva ontológica, a história assume uma compreensão
singular, pois ela pertence ao Dasein assim como o Dasein pertence à
história. A compreensão da história não se separa do Dasein e vice-
versa na discussão presente em Ser e Tempo. A relação de
reciprocidade constituinte do Dasein, como ser-no-mundo, traz à tona a
compreensão da historicidade.
A historicidade como acontecer do Dasein pode se dar de modo
impróprio, isto é, quando o Dasein está mais próximo e familiarizado
com o seu mundo cotidiano, mas também a historicidade pode se dar de
modo próprio, quando Dasein pode assumir sua destinação. Vamos
descrever o acontecer tanto no modo impróprio quanto no modo
próprio.
5.4 Historicidade Imprópria do Dasein
Segundo Heidegger, o Dasein em seu cotidiano conhece o tempo a
partir do seu envolvimento, de suas tarefas, portanto se mantém
entregue às solicitações do imediato, do que surge no presente.
Envolvido com seus afazeres, com as coisas que precisa comprar, com
as pessoas que precisa encontrar, permanece disperso de si mesmo e,
deste modo, entende a história como uma seqüência de vivências, fatos
110
e acontecimentos que transcorrem no dia-a-dia: “O Dasein cotidiano
está disperso na multiplicidade do que se passa diariamente”
(HEIDEGGER, 2005, p.405)115.
Contudo, a história fica caracterizada como uma percepção de algo
que passou ou de antiguidades conservadas. A compreensão da história,
desse modo, se dá justamente pela imersão do Dasein no dia-a-dia,
escreve o autor, preocupa-se com o hoje, em dar conta do que é
imediato, e o antigo passou “perdido no presente do hoje, compreende
o ‘passado’ a partir do ‘presente’” (HEIDEGGER, 2000, p.422). Quando o
Dasein se encontra imerso no cotidiano ele esquece de si, conhece a
história a partir das inúmeras circunstâncias em que vive no presente,
vê seus dias passarem e o seu destino escapa; esse modo de
compreensão Heidegger denomina de historicidade imprópria
[uneigentliche Geschichtlichkeit]: “O Dasein impropriamente existente
somente contabiliza sua história a partir do que é objeto de ocupação”
(HEIDEGGER, 2005, p.405)116.
Entregue às solicitações do presente, o Dasein não reconhece sua
condição finita, logo, não assume a finitude de sua existência e, com
isso, não retorna a si mesmo; ao contrário, mantém-se entregue nas
115“El Dasein cotidiano está disperso en la multiplicidad de lo que ‘pasa’ diariamente” (HEIDEGGER, 2005, p.405). 116
“ El Dasein impropiamente existente sólo contabiliza su historia a partir de lo que es objeto de ocupación” (HEIDEGGER, 2005, p.405).
111
várias possibilidades que circulam no dia-a-dia, encobrindo sua história
e seu destino, isto é, o seu acontecer histórico se mantém no modo da
impropriedade.
5.5 Historicidade Própria
Contudo, o Dasein pode retirar-se da dispersão cotidiana e das
interpretações casuais e transitórias, quando se apropria da
temporalidade própria. Na temporalidade própria escolhe a si mesmo,
ou seja, assume sua condição de ser-para-a-morte e de estar lançado
no mundo no modo do poder-ser. O Dasein assume que dispõe de um
tempo para realizar-se, para ser em possibilidades e não para esta ou
aquela possibilidade disponíveis no cotidiano, mas para retornar à sua
possibilidade finita projetada na existência. As possibilidades, referidas
segundo Heidegger, não são retiradas da morte; elas são oriundas da
herança, do legado que advém do mundo e são transmitidas na
resolução precursora. O Dasein é poder-ser sempre diante de um
legado.
A resolução, em que o Dasein retorna a si mesmo, abre as possibilidades fácticas do existr próprio a partir do legado que esse existir assume enquanto lançado (HEIDEGGER, 2005, p.399)117.
117
“La resolución, en la que el Dasein retorna a sí mismo, abre las possibilidades fácticas del existir propio a partir del legado que ese existir asume en cuanto arrojado” (HEIDEGGER, 2005, p.399).
112
Ao assumir o legado de modo autêntico, na resolução precursora,
o Dasein retira-se do cotidiano, do provisório e passa a ter um destino
[Schicksal], pois assume sua liberdade finita e escolhe à luz do possível.
O Dasein assume seu destino junto com os outros no modo da co-
existência, logo, o seu acontecer se dá em conjunto; esse fenômeno
Heidegger chamou de destino comum [Geschick]. Importante salientar
que o autor não entende destino comum como a somatória de destinos
individuais, mas como o “acontecer pleno e próprio do Dasein e sua
geração” (HEIDEGGER 2005, p.400).
A noção de destino designa a resolução autêntica do Dasein, é o
que possibilita transmitir-se a si mesmo e assumir a herança das
possibilidades passadas. Criando uma destinação, o Dasein se apropria
do tempo e acontece como um ente histórico. Portanto, a historicidade
própria [eigentliche Geschichtlichkeit] deve ser compreendida a partir do
futuro, do poder-ser finito de cada Dasein que, a partir da resolução
precursora da morte, reitera as suas possibilidades já descobertas na
existência, advindas do legado, modo próprio em que esse ente
transmite seu acontecer.
(....) o acontecer que tem lugar na resolução precursora, temos definido como historicidade, chamamos mais
113
precisamente, o modo próprio da historicidade do Dasein (HEIDEGGER, 2005, p.402)118.
A historicidade própria é o modo ontológico pelo qual podemos
compreender o modo de ser histórico do Dasein, enquanto no cotidiano
encontramos encoberta sua destinação, em virtude de sua dispersão e
interpretação que, baseadas nos acontecimentos imediatos, mantêm
sua historicidade impropriamente. O Dasein é histórico, pois seu modo
de ser é destino. Compreende a sua história e do mundo, por ser um
ente histórico, ou seja, a sua constituição fundamental é temporal.
O Dasein, quando se encontra no mundo comprometido com sua
condição finita, temporal, reitera suas possibilidades abertas na
existência; assim sendo, ele transmite e, portanto, faz a história. Na
compreensão da história ontológica, o Dasein não pode ser entendido
como um mero observador dos acontecimentos ou um sujeito com um
transcurso de vivências; isto, mesmo quando se mantém na
impropriedade histórica, pois o ente que se encontra em uma
pertinência com o mundo, junto às coisas e com os outros, não se
separa do mundo e da própria compreensão de si e do mundo para
constituir a história. Não podemos, nem para efeito didático, efetuar tal
118
“(....) al acontecer que tiene lugar en la resolución precursora, hemos definido como historicidad, lo llamamos, más precisamente, el modo propio de la historicidad del Dasein” (HEIDEGGER, 2005, p.402).
114
consideração, pois esta seria uma construção artificial, considerando-se
a ontologia heideggeriana.
A compreensão da historicidade nos mostra o acontecer concreto
do Dasein, o modo como realiza a sua existência no tempo que lhe é
concedido. O projeto existencial do Dasein é finito e inacabado e
constantemente solicita cuidado não para uma tarefa específica, mas
para cuidar e ser responsável pela própria existência.
O sentido temporal da historicidade revela o si mesmo do Dasein,
ou seja, revela a entrega de si mesmo a si mesmo. Isto é, a partir da
apropriação da finitude, o Dasein apreende a sua existência não mais
como um tempo infinito e homogêneo, ao contrário, como um tempo
finito que advém do futuro. Assumir sua condição de ser e estar lançado
para a morte traz de volta o si mesmo do Dasein para ele mesmo, ou
seja, reitera119 [Wiederholung] suas possibilidades de já ter sido lançado
no mundo. O modo da reiteração traz um aspecto novo e fundamental
na compreensão da história desenvolvida em ST, muito embora a noção
de reiteração [Wiederholung] não tenha sido introduzida por Heidegger,
mas por Kierkegaard. Segundo Abbagnano, Kierkegaard utilizou esse
conceito para descrever a natureza da vida ética em contraposição à
vida estética; a vida ética “baseia-se na continuidade, na escolha
119 Na tradução chilena de ST, para Widerholung o autor utilizou repetição; no texto utilizo o termo reiteração como sinônimo de repetição.
115
repetida que o indivíduo faz de si mesmo e de sua tarefa” (ABBAGNANO,
2003, p.853). E Heidegger utiliza o conceito para explicitar, conforme
exposto, a historicidade própria a partir do momento da resolução
precursora, a reiteração é a transmissão, ou melhor, é o retorno às
possibilidades do que o Dasein já tem sido.
Definiremos a reiteração como modo da resolução que se entrega a si mesma [uma possibilidade herdada] e mediante a qual o Dasein existe explicitamente como destino (HEIDEGGER, 2005, p.401)120.
Esse modo de retornar a si mesmo, advindo da resolução
precursora da morte, escreve Heidegger, abre as possibilidades do
existir a partir do legado disposto no mundo.
O legado ou herança é o modo de o Dasein acontecer no mundo.
O legado diz respeito às possibilidades fácticas do existir próprio e
impróprio do Dasein encontradas no mundo. Essas possibilidades são
transmitidas pelas gerações em cada época no modo da co-existência
que é o modo peculiar da constituição do Dasein. No entanto, o legado
como possibilidade fáctica do existir pode, por um lado, gerar um
encobrimento e retirar o Dasein da orientação de sua existência no
momento em que ele se envolve nos costumes, crenças e nas regras da
convivência cotidiana, mas, por outro lado, permite que o Dasein
120
“Definiremos la repetición como el modo de la resolución que se entrega a sí misma [una posibilidad heredada] y mediante el cual el dasein existe explícitamente como destino” (HEIDEGGER, 2005, p.401).
116
aproprie-se de si quando se compreende a partir da projeção de
possibilidades futuras, assumindo as possibilidades passadas (o seu
existir como lançado). Assim sendo, o Dasein transmite uma herança
originária no momento da resolução precursora da morte, que reitera o
seu estar lançado e compreende sua existência como destino. Há,
portanto, um modo de, na transmissão do legado, o Dasein recuperar-se
das possibilidades do encobrimento.
As considerações acerca da transmissão do legado ou herança,
que Heidegger propôs na discussão da historicidade do Dasein,
salientaram um retorno positivo ao passado, pois retomar as
possibilidades passadas na existência propicia ao Dasein dissolver os
encobrimentos enraizados na herança e trazer as possibilidades
originárias sem distorções. O passado, conforme apontou Heidegger121,
não é o que passou, o que não vigora ou o passado que faz parte da
história, tampouco, o que determina o que seja propriamente histórico.
Mas o passado significa o legado que o Dasein recebe do mundo sem
nenhuma primazia de caráter histórico. Retornar ao passado devolve ao
Dasein a sua condição originária de já ser lançado no mundo. Cada vez
que volta a si mesmo, realiza a reiteração que revela para o Dasein,
segundo o autor, a sua própria história. O passado e o presente não têm
primazia na existência — ambos são modificados pela abertura do 121 Considerações de Heidegger no § 73 de Ser e Tempo.
117
futuro. “A reiteração revela ao Dasein pela primeira vez sua própria
história” (HEIDEGGER, 2005, p.402)122.
A exposição da história realizada em ST, como o acontecer do
Dasein, demonstra, conforme as colocações acima, vários aspectos
novos para compreendê-la. O autor faz um esforço analítico para
apresentar a totalidade dos fenômenos que se propôs explicitar pelo
modo como questionou o sentido do ser, das reflexões da vida concreta,
constituindo as estruturas do Dasein e a recuperação da tradição como
aspecto da destruição do método. Mas, mesmo entendendo a articulação
fenomênica proposta por Heidegger, é necessário recortar a discussão
da compreensão temporal, (obviamente constituída a partir das
considerações acima mencionadas), como um dos aspectos relevantes
na analítica do Dasein, que propiciou uma elaboração significativa e
diferenciada que sustenta a mudança de foco da história.
A abordagem do fenômeno do tempo como temporalidade extática
possibilitou uma mudança radical no entendimento da história. A
descrição da temporalidade como um movimento circular e simultâneo,
no qual as dimensões do tempo (as êxtases) tornam-se temporais e co-
originárias, inviabilizou o entendimento do tempo como seqüência
temporal de passado, presente e futuro encerradas em si mesmas,
122“La repetición le revela al Dasein por primera vez su propia historia” (HEIDEGGER, 2005, p.402).
118
como também quebrou a primazia do passado, quando incorporou a
noção de possibilidade ao tempo que acontece a partir do futuro.
A primazia do passado como um caráter essencial para definir o
que é histórico ruiu, pois a dimensão temporal do passado, por si
mesma, não define o que é histórico. A rigor, isoladamente, na ontologia
heideggeriana, nenhuma das dimensões temporais representa algo; no
entanto, juntas, a cada vez há a primazia de uma das dimensões em
cada modo temporal (conforme capítulo 4). A dimensão do passado
adquire uma nova interpretação em ST, o passado não é o que passou
nem para os instrumentos nem para o Dasein, mas, aponta Heidegger,
o passado é “o que vigora por ter sido presente” (HEIDEGGER, 2005,
p.397). O passado [Gewesenheit] (sido) e o presente são liberados pela
dimensão do futuro (porvir). O passado liberado pelo futuro autêntico
significa de volta a, isto é, de volta às possibilidades que já sempre
foram (refere ao estado lançado no mundo) e podem ser reiteradas pelo
Dasein na resolução precursora. O Dasein tem a possibilidade de sair do
esquecimento de si e retomar a sua condição de já ser lançado no
mundo, abrindo sua destinação e, assim, tornar-se histórico. A
compreensão do passado como Gewesenheit propicia ao Dasein um
contato vivo com a herança deixada pela tradição, ou seja, o Dasein não
esquece, mas mantém vivo o que vigorou.
119
A explicitação da historicidade própria e imprópria revelou o modo
radical e fundamental de demonstrar o modo de ser da história à luz da
temporalidade própria como possibilidade de abrir a destinação do
Dasein.
120
Considerações Finais
Iniciamos o presente estudo para compreender a discussão acerca
da história, realizada por Heidegger na sua obra Ser e Tempo. A
estrutura do estudo descreve os caminhos que demonstram o
entendimento da história como modo de ser do Dasein. A partir deste
estudo podemos reunir algumas considerações decorrentes dessa
exposição.
Conforme observamos, Heidegger, em Ser e Tempo, apresenta o
sentido do ser como um problema de investigação. O autor aponta para
uma vinculação próxima entre o homem e o problema do ser; o homem
é o ente privilegiado, segundo ele, que compreende o ser, pois está
aberto para o ser e, deste modo, deve guiar tal questão. A proposta de
investigação em ST afasta o pensamento da subjetividade e de uma
antropologia, entretanto, pretende explicitar a questão do ponto de vista
mais profundo e originário, isto é, o homem na sua relação com o ser
(seu pertencimento com o ser).
O aspecto inicial, no entanto, primordial para sustentar a questão
do sentido do ser, é buscar para a filosofia a compreensão da vida.
Heidegger vislumbra uma conexão entre vida e filosofia, inspirado nos
escritos de Dilthey. A filosofia, segundo ele, emerge da vida,
preocupação já presente nas suas preleções dos anos 1920, e não de
121
um problema epistemológico ou de questões éticas. A vida [Leben] é
igualada a Dasein, pois Heidegger pretende retirar o aspecto meramente
biológico, para mostrar que o Dasein transmite mais precisamente a
nossa relação com o ser. A partir de encontrar e fundamentar a noção
do Dasein como o “lugar” da manifestação do ser, o autor explicita os
modos de ser, seja no cotidiano no qual acontece impropriamente ou
seu acontecer próprio, demonstrando uma tensão do próprio Dasein, de
existir na dispersão de si mesmo ou escolher a si mesmo. Com a
explicitação dos modos de ser, o Dasein é caracterizado como cuidado,
cujo sentido é constituído pela temporalidade extática. Desvelar o
sentido temporal do Dasein é compreendê-lo como um ente finito que
possui sua morte, isto é, o Dasein no sentido originário é um ser-para-
a-morte que descobre sua existência finita e, portanto, dispõe de um
tempo para acontecer.
Por meio da Analítica do Dasein, Heidegger expõe os fundamentos
do Dasein primeiramente e, em seguida, interpreta-os pela
temporalidade e, assim, explicita o tempo como horizonte para
compreender a questão do ser. Essa é uma das tarefas esboçadas em
Ser e Tempo para elaborar a questão do ser; a outra tarefa, que ocorreu
simultaneamente, foi a elucidação do método fenomenológico
hermenêutico, que resgata a história da ontologia e já aponta,
juntamente com a explicitação dos existenciais, a mudança da
122
compreensão da história, de epistemológica para ontológica-
hermenêutica.
O método fenomenológico hermenêutico foi fundamental, pois
permitiu, pela destruição, desvelar o sentido do ser e, com esse resgate,
elaborar as estruturas do Dasein (aspecto positivo do método). O
método conduziu à interpretação da facticidade, ou seja, a interpretação
que o Dasein faz de si mesmo de modo próprio e impróprio.
A destruição da ontologia tradicional é um aspecto muito relevante
na discussão da história em Ser e Tempo, já que conduz à preparação
para a explicitação da história do ser na ‘virada’ [kehre]. A destruição
empreendida na Analítica do Dasein buscou perguntar outra vez pelo ser
a partir do Dasein. O questionamento não é novo, mas nova é a
possibilidade de revelar algo não pensado e inaudito acerca do ser. Na
busca pela tradição, Heidegger inaugura um outro caminho: ele não
conversa com as opiniões passadas, mas dialoga com os problemas
filosóficos. A reflexão se dá sobre as preocupações da filosofia e sobre a
própria filosofia.
Portanto, a história elucidada em Ser e Tempo é a história do
acontecer do Dasein, o modo como o Dasein se vincula com o ser. O
acontecer desse ente sempre pertence a uma tradição e, a cada época,
segundo esta visão, haverá uma discussão com a tradição. A tradição
123
não representa o passado acabado, mas o ‘acontecido’, isto é, algo que
ainda vigora e pode ser recuperado. E devemos considerar uma
similaridade na noção de destruição e de Wiederholung, pois elas
significam a volta, a reiteração das possibilidades descobertas que
podem retornar ao Dasein na escolha resoluta de si e abrir sua
destinação. Quando Dasein descobre e não decai na tradição, aponta o
autor, ele pode investigar e questionar sua historicidade. Neste sentido,
o Dasein autêntico prepara a historicidade do Dasein como condição
ôntica da possibilidade da história [Historie]; caso contrário, fica oculta
para ele mesmo a possibilidade de questionar e descobrir a história.
A história em Ser e Tempo prepara e abre caminho para a
radicalização que Heidegger propõe a partir de 1930, ou seja, o acesso
ao ser por meio da Analítica do Dasein é superado quando o autor se
propõe a pensar o ser como história. O sentido do ser não se revela na
estreita vinculação com o homem, mas na verdade do ser (no
ocultamento e desvelamento – Alethéia, já tematizada em ST).
Heidegger observa que na metafísica o ser123 foi esquecido, isto é,
o seu ocultamento foi esquecido e a lembrança é apenas da
possibilidade do desvelamento. Depois de ST o autor entendia que era
preciso ir além da historicidade do Dasein para compreender a dimensão
123
Acerca do esquecimento do ser podemos verificar os primeiros esboços nos parágrafos iniciais de ST.
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histórica do ser; o acontecer histórico do Dasein não capta o tempo
unido ao ser, mas o que possibilitava tal captação foi aproximar-se da
história do esquecimento do ser. Ao voltar para a história do
esquecimento do ser, Heidegger não realiza uma reflexão histórica, mas
uma profunda desconstrução na história da filosofia para pensar o
impensado que se vela em todo pensamento do ocidente.
Heidegger, em Ser e Tempo, inicia uma proposta para superar a
compreensão de história epistemológica presente no Historicismo,
explicitando a história como acontecer do Dasein; na ‘virada’, ele leva às
últimas conseqüências a sua própria visão anti-historicista de história ao
compreendê-la como o desvelamento do ocultamento do ser. O
pensamento heideggeriano pode ser entendido como uma
desconstrução da História da Filosofia, sobretudo, acentuadamente
nesse segundo momento de seu pensamento.
Entendemos as considerações esboçadas neste estudo como um
primeiro exercício acadêmico de compreender e aproximar o sentido da
história como modo de ser do Dasein, conforme explicitada em Ser e
Tempo.
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