A influência da escrita de Helena Antipoff na formação docente, a partir da análise de
textos do gênero carta
Maria Perpétua dos Reis1 (UEMG)
Eliane Geralda da Silva Fonseca2 (UEMG)
Resumo: Ao visitar o CDPHA (Centro Documental Professora Helena Antipoff) é impossível
não perceber que Dona Helena Antipoff se valeu do gênero carta para se comunicar e, por esse
motivo, entre os documentos arquivados no Memorial, tais cartas ocupam um lugar de
destaque. Dona Helena Antipoff escreveu e recebeu muitas cartas. Diante de tamanho acervo
e, como não poderia deixar de ser, nosso olhar de professoras do Curso de Letras, nos levou
aos seguintes questionamentos: Que tipo de escrita poderíamos identificar nas referidas cartas?
Teria ela (Helena Antipoff) uma escrita que contribuiria para a formação docente? Para
responder a essas indagações utilizaremos como suporte para nossa investigação obras de Luiz
Antônio Marchuschi, Mikhail Bakthin, Vygotsky, Freire e Michel Foucault, teóricos que
tratam dos diversos gêneros, incluindo as cartas, a estética da escrita em si mesma e da
linguagem, além da formação docente, dentre outros. Conforme Bakhtin (1992), a utilização
da língua se dá em forma de enunciados concretos (orais ou escritos) proferidos por sujeitos
concretos em situações específicas. Já Freire (1997), afirma que a leitura do mundo antecede
a leitura da palavra. Segundo o autor, “linguagem e realidade se prendem dinamicamente”. A
compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações
entre o texto e o contexto no qual se insere. Dessa forma, pretendemos focar nossos esforços
em algumas cartas pesquisadas nas quais identificamos traços marcantes que podem contribuir
para a formação docente. Como a pesquisa ainda está em fase de levantamento de dados através
de pesquisa documental, desejamos apresentar os resultados obtidos até agora, bem como as
possíveis conclusões as quais poderemos chegar.
Palavras-chave: Helena Antipoff; Cartas; Formação docente.
Introdução
José Carlos Libâneo (2015) em seu artigo Formação de Professores e Didática para
Desenvolvimento Humano declara que “Nas três últimas décadas ganharam destaque no Brasil
1 Maria Perpétua dos Reis é Mestre em Literaturas de Expressão Inglesa pela Universidade do Estado de Minas
Gerais – UFMG (2001). Possui Graduação em Letras, Inglês (1995) e Espanhol (1999), ambas em Licenciatura,
também pela UFMG. Atualmente é professora universitária do quadro efetivo da Universidade do Estado de Minas
Gerais UEMG, no Curso de Letras e ministra as disciplinas de Língua Inglesa III, Metodologia do Ensino de
Inglês IV e Literatura Norte Americana II. 2 Eliane G. S. Fonseca é Doutoranda em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais -
PUC-MG. Mestre em Educação Tecnológica pelo CEFET - MG ( 2011) . Possui Graduação em Letras e Pós -
Graduação em Docência do Ensino Superior. Atualmente é professora universitária do quadro efetivo da UEMG,
onde ministra as disciplinas de Produção de texto, Morfossintaxe, Metodologia Científica e Fundamentos da
Linguística. Docente da Faculdade Minas Gerais - FAMIG nos cursos de Direito e Administração de Empresas,
ministrando as disciplinas Língua Portuguesa I e Comunicação Empresarial.
estudos sobre a formação de professores acompanhando uma tendência mundial”. (LIBÂNEO,
2015 p. 2). O autor prossegue afirmando que tais estudos foram influenciados pelas reformas
educacionais em voga em países europeus e da América Latina, introduzindo as seguintes
concepções de professores: “Professor Investigador, Professor Reflexivo, Professor Intelectual
Crítico” (LIBÂNEO, 2015 p. 2), visando promover a formação continuada, influenciar
políticas públicas, dentre outras questões ligadas à formação docente.
Citar tais fatos é relevante em se tratando de Helena Antipoff, por que ao chegar ao
Brasil, no início do século XX, mais exatamente no ano de 1929, ela se estabelece aqui,
demonstrando nitidamente sua preocupação com o tema. Apesar de ser psicóloga, muitos são
os estudos que a revelam como educadora e as obras por ela instituídas são notadamente
desenvolvidas no âmbito educacional.
Como o objetivo desta pesquisa é investigar as cartas de Helena Antipoff e descobrir
como este gênero pode influenciar na formação docente, surge uma dúvida se os jovens em
tempos de tecnologia digital saberiam definir a palavra carta.
Dentre os significados apresentados por Francisco S. Borba (Org. 2012) o que mais se
relaciona à pesquisa é a seguinte definição: “comunicação manuscrita ou impressa devidamente
acondicionada e endereçada; missiva; epístola”. As cartas utilizadas nesta pesquisa são
algumas manuscritas e outras datilografadas, e, devido à ação do tempo, de difícil manuseio.
Percebe-se que foram destinadas para comunicações formais e informais, meio visivelmente
útil para encurtar distâncias, solucionar problemas, matar saudades e outros motivos que
surgirão ao longo da pesquisa.
Segundo Luiz Antônio Marcuschi (2005), a humanidade passou por fases de
desenvolvimento que definidas como primeira fase, a oral, em que toda comunicação se fazia
pela via oral e todo o conhecimento era transmitido dessa forma. A segunda, a da escrita. O
autor salienta que: “Após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII A. C.,
multiplicaram-se os gêneros, os tipos de escrita.” (MARCUSCHI. 2005, p. 19), é a ela (a
escrita), que a humanidade deve todos os avanços posteriores, por possibilitar todas as outras
fases. Já a terceira, a da cultura impressa, floresce no século XV e os gêneros se expandem,
sendo a carta já conhecida então. A quarta fase é a intermediária de industrialização, no século
XVIII, quando se ampliam grandemente e, por último, a quinta e atual fase, nomeada como
cultura eletrônica, iniciada com o telefone, o rádio, a TV, o gravador e o computador pessoal
(MARCUSCHI, 2015, p. 19). Esta, segundo Marcuschi (2005, p. 19), não só trouxe “uma
explosão de novos gêneros”, como também, “novas formas de comunicação, tanto na oralidade
como na escrita”, tudo graças ao advento da Internet que, a cada dia, vai transformando
equipamentos de ponta em obsoletos com uma rapidez cada vez maior.
Com isso, os e-mails e aplicativos substituem as cartas comerciais, pessoais, os bilhetes,
dentre outros, criando outros gêneros que vão se construindo na mídia digital. Contudo, não se
pode esquecer que muito dos fenômenos que presenciamos, se deve aos gêneros textuais
antigos, que certamente, contribuíram para que os avanços tecnológicos vivenciados pudessem
chegar ao ponto que temos hoje.
A velha carta, manuscrita ou datilografada, continua sendo a referência para que se
escrevam os diversos tipos de e-mails, ofícios e outras comunicações, realizadas, atualmente,
de forma digital. Marcuschi (2005, p.21) afirma que “as cartas eletrônicas são gêneros novos
com identidades próprias”. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o que existe hoje seria a
velha carta modificada ou revisitada e, portanto, perfeitamente detectável como influenciadora
na formação de docentes, oriundos desse tipo de comunicação, largamente utilizado por Dona
Helena.
Para falar das cartas escritas por Helena Antipoff é preciso ressaltar que as que
selecionamos para compor este artigo são do tipo pessoal, pois apesar de transitarem em
domínios institucionais, tratarem de assuntos referentes a ocorrências em âmbitos formais, suas
epístolas trazem, na maioria das vezes, um caráter informal. Assim, a carta em seu formato
inicial traz em si algumas marcas ou características que a identificam como tal. Por exemplo:
é dirigida a um destinatário, muitas vezes chamado de interlocutor e um remetente ou locutor,
a linguagem apresentada pode ser formal ou informal e sentimental, subjetiva, tratar de tema
livre, assuntos do cotidiano ou algum acontecimento ou fato específico; geralmente é breve e
escrita em primeira pessoa do singular.
Jane Quintiliano Guimarães Silva (2002, p. 132) apresenta, em forma de quadro, a
estrutura da carta composta pelos seguintes elementos: abertura do evento, corpo do texto,
encerramento do evento e post scriptum, esse último como elemento facultativo.
Seguindo a estrutura apresentada por Silva (2002), Helena Antipoff abre as cartas
selecionadas, aqui nomeadas (Anexo 01, 02 e 03 respectivamente) falando de uma forma
bastante informal e carinhosa: “Boa Olga e Caríssimos amigos...”. Em outra carta, ela escreve:
“Minha boa Dona Fernandina,...” e fecha essas mesmas cartas, da seguinte maneira: “Meus
agradecimentos e abraço maternal. Fazenda do Rosário, 28 de março de 1958. Na assinatura,
utiliza apenas as iniciais “ HA”. Em outro trecho, “Com meu afetuoso abraço e pedindo sua
interferência junto aos céus, aqui fico esperançosa. Dna Helena Antipoff”.
Aqui temos o exemplo de duas cartas de Dona Helena. Ela abre e fecha de maneira
muito pessoal e carinhosa, mas no corpo das cartas ela trata de assuntos ora institucionais, ora
pessoais, mas quase sempre de maneira bastante pessoal.
Boa Dona Fernandina, compreendo a senhora e peço a Deus dar-nos
forças para vencer a jornada e levar esta Escola, seus professores e
adolescentes e a própria Olga, se possível, para uma obra de Educação
sem sombras, num esforço supremo de inteligência e de vontade para
seus verdadeiros objetivos: formação da juventude zona rural, ao
serviço da criança do campo, para um Brasil melhor, mais próspero e
feliz. (Carta de 22 de março de 1955).
Como se pode perceber, Helena Antipoff menciona as duas amigas, Fernandina e Olga
como aliadas no trabalho educacional que desenvolve e demonstra grande preocupação com a
escola, professores e alunos. Fica claro ainda que seu objetivo principal é a formação de jovens
professores para trabalharem com as crianças do meio rural, visando à prosperidade e felicidade
do Brasil. Como se pode verificar pela data da carta, nesse período Helena Antipoff já estava
atuando há bastante tempo na educação em Minas Gerais , pois sua chegada data de 1929.
Na sequência, a educadora escreve apelando para a religiosidade da amiga, deixando
claro que precisavam de sua ajuda para concretizar o sonho de formação das “meninas que se
acham no Rosário, boas professoras…”, enfatizando que as moças recebidas na Fazenda do
Rosário não só estudavam ali, mas estavam sendo preparadas para se tornarem professoras e
não apenas isso: elas já eram consideradas por sua mentora como “boas professoras”.
Fica óbvio na referida carta que há dificuldades para conseguir pessoas para trabalhar
na Escola Rural. Dessa forma, Dona Helena se esforça ao máximo para lograr êxito em sua
tarefa e, depois de falar de algumas advertências recebidas sobre a situação educacional, que
parecem ser de cunho político, desabafa: “A quem apelar? quais as pessoas capazes de assumir
a responsabilidade e melhorar o sistema, afastando os males com firmeza e brandura a uma
vez?”
Nessa parte da carta, Helena não é muito específica, mas é possível entender que a
interlocutora conhece os meandros da situação, não necessitando de explicação detalhada. O
tom íntimo com que ela se expressa, lhe permite mesmo, refletir e vaguear, o que se pode
perceber pelas perguntas retóricas com as quais ela interpela a amiga, mas que mesmo sem
esperar resposta, despede-se de forma carinhosa e esperançosa, paradoxalmente em meio a um
aparente desalento.
Ainda assim prossegue: “Os trabalhos exigem que termine esta carta. Espero sua, que
deve ajudar-me e ajudar a outros.” O desfecho vem escrito a mão, talvez pela urgência em
cumprir as tarefas e, como a carta está datilografada, ela pode ter se esquecido de encerrá-la
antes de puxar o papel da máquina. Recolocá-lo seria muito demorado e quem já utilizou
máquina de escrever sabe que é muito difícil voltar ao lugar exato de onde parou. Enfim,
terminar de escrever a mão seria bem mais rápido e ela o faz retomando da seguinte forma:
“Cordialmente, Helena Antipoff”.
Atualmente, na Fazenda do Rosário funciona o Instituto Pestalozzi, que atende a
crianças com dificuldades de aprendizagem e a Escola de Formação de Professores está
localizada em outro espaço que passou a ser chamado de ISEAT - Instituto Superior de
Educação Anísio Teixeira, como parte da Fundação Helena Antipoff, encampado pela UEMG
- Universidade do Estado de Minas Gerais, em 2012 e onde até hoje, permanece com a oferta
de cinco cursos de licenciatura, com o propósito de formar professores que serão absorvidos
pela educação básica de Ibirité e região; além de oportunizar o prosseguimento nos estudos na
formação de professores do ensino superior. Com isso, amplia o alcance do legado deixado por
Helena Antipoff.
Na carta, cuja abertura e fechamento se encontram nos anexos 02 e 03, sendo opção
não colocar toda ela, por ser uma carta bem longa, pode ser identificada pelo cabeçalho que
aparece como: “ISER - 13/XII/59” e logo é endereçada à “Minha boa Dona Fernandina…”
Nessa carta, a educadora cita vários nomes de pessoas a quem ela chama de colaboradores e
manifesta seus desejos de felicidades em relação às festas natalinas. Nessa forma de tratamento
é possível identificar o apreço e amizade que Dona Helena tinha por seus prestadores de
serviço.
Ainda, na mesma carta, Dona Helena tem um olhar muito particular sobre o ambiente
que, segundo ela, encontra-se “deserto”, deixando transparecer que a viagem das alunas e
colaboradores fazia parte da rotina de final de ano, quando muitos ou quase todos deveriam se
afastar para passar as festas de final de ano e férias com os familiares. “O ISER está silencioso
e deserto”. Ela prossegue deixando claro que os residentes, que ficaram na fazenda estavam na
capela e só duas empregadas estavam com ela. Há uma expectativa da chegada do ônibus que
trará alguém a quem ela poderá receber, mas ao mesmo tempo, um temor de que o veículo não
venha, pois o tempo está chuvoso. Desabafa que,
(...) a vinda do ônibus provavelmente trará alguma pessoa que deverei
receber. Pode também não vir, o tempo é chuvoso e bastante frio, razão
suficiente para Áurea não vir, pois ela, definitivamente, não viaja por
uma temporada “molhada” receando a derrapagem do carro, ficando
por isso em BH. (Carta de 13/XII/59).
Neste excerto da carta há uma preocupação com a possibilidade da vinda de uma de
suas colaboradoras ser frustrada por causa das condições meteorológicas. O interessante é que,
até hoje, no entorno da Fundação Helena Antipoff, existe uma pequena estação de medição do
clima, o que pode ser um legado das atenções dadas por Dona Helena a essa questão tão
importante em sua época, pois o excesso de chuvas poderia representar certo isolamento por
falta de segurança nas estradas que, segundo o trecho, eram escorregadias, fazendo derrapar os
carros, ao ponto de impedir a vinda de Olga, citada na carta, e provavelmente de outros
visitantes.
A descrição do tempo é uma marca que pode ser encontrada também nos diários escritos
pelas alunas da escola rural e que, certamente, influenciou na formação docente daquelas
meninas. A própria Helena Antipoff, afirma que o diário dos alunos da Escola Rural consiste
em “Uma narração que reflete o passatempo de um grupo de alunos e professores que ali
estudam, pesquisam a natureza e seus segredos, aprendem coisas úteis ao homem do campo,
pelejam e se divertem, formando hábitos sadios de trabalho e de vida em comum.”
(ANTIPOFF, 1992, p. 53). Ou seja, Dona Helena ao estimular a escrita dos diários se preocupa
com a formação integral de seus alunos e futuros professores.
Pode-se pontuar algumas práticas importantes para a formação docente nas palavras
usadas por Antipoff (1992) para descrever o diário: 1. “narração”. Ao escrever os diários,
alunos e professores se desenvolviam habilidades na escrita descritiva e reflexiva, ao mesmo
tempo em que se divertiam e passam o tempo. Da forma como ela fala, parece que escrever, na
escola rural, se constituía em uma das ferramentas de formação. 2. “pesquisam a natureza e
seus segredos”. A pesquisa é outra prática importante na formação docente. Inclusive, a UEMG
– Universidade Estadual de Minas Gerais, instituição em que trabalhamos, funciona visando
ao tripé: “Ensino, Pesquisa e Extensão”, o que se encontra em perfeita harmonia com os dizeres
anteriores, pois ao escrever os diários na escola rural, todos registravam nele suas observações,
pesquisas e descobertas, bem como suas reflexões e fatos do dia-a-dia.
Como já mencionado, muitas informações eram colhidas pelos alunos e registradas nos
diários acerca do clima. Dessa forma, Helena Antipoff estimulava a pesquisa da natureza, pois
sabia que esta esconde segredos, que se desvendados, podem favorecer ao homem do campo.
A terceira e última prática a ser ressaltada é 3. “formando hábitos sadios de trabalho e de vida
em comum”. Depois de mencionar que ao pesquisar a natureza e seus segredos, as pessoas que
viviam na escola rural e que lá estudavam, trabalhavam e moravam aprendiam técnicas úteis
ao homem do campo e, ainda, formavam hábitos sadios, não só de trabalho, mas também de
vida em comum, já que ali a vida era compartilhada por todos.
Zabalza afirma, metodologicamente, a importância desses diários, como instrumento
de pesquisa. Segundo ele, “Os “diários” fazem parte de enfoques ou linhas de pesquisa,
baseados em “documentos pessoais” ou narrações autobiográficas. Essa corrente, de
orientação, basicamente qualitativa, foi adquirindo um grande relevo na pesquisa educativa dos
últimos anos.” (ZABALZA, 2004, p. 14).
Isso posto, é possível inferir que os diários funcionavam como importantes ferramentas
de formação intelectual, já que eram fruto de observação, pesquisa, trabalho e reflexão, uma
vez que é quase impossível escrever sem meditar. A partir da escrita dos diários, alunos e
professores tinham neles também uma forma de interação, uma vez que sua escrita era pessoal,
mas a leitura era compartilhada e acontecia no refeitório à hora do jantar, quando todos se
reuniam e compartilhavam o que de melhor tinha a vida em comum. Não é à toa, que os
formandos dessa escola rural, que em princípio, estavam sendo formados para atuarem como
professores no campo, acabaram sendo contratados pelas escolas renomadas da capital mineira
e região metropolitana, pois eram disputados, devido ao nível de formação alcançado naquela,
então, Escola Rural. Como consequência, o curso da escola rural obteve resultados positivos
na medida em que os alunos aprendiam os conteúdos teóricos e práticos e, com isso, eles
adquiriam gradativamente os conhecimentos sobre a terra, a agricultura a ciência, os cálculos
entre outros, ampliando assim os horizontes de um ensino baseado na observação e na
experimentação, o que confirma ser um método influenciador para as futuras práticas docentes.
Zabalza (2004) afirma que os diários permitem aos professores revisar elementos de
seu mundo pessoal que frequentemente permanecem ocultos à sua própria percepção enquanto
está envolvido nas ações cotidianas de trabalho.
Para confirmar ainda que os diários podem ser relevantes para a formação docente, vale
frisar mais uma vez, nas palavras de Helena Antipoff, que como idealizadora da escola sabia o
que buscava ao instituir tal escrita para seus alunos que se preparavam para se tornarem
professores diferenciados. Segundo ela,
[...] os diários refletem os ‘diaristas’, com a cultura e preparo escolar que cada
um recebeu anteriormente. Que sejam eles de grau primário, secundário ou
superior isso pouco importa [...]. O que vale muito mais para a coletividade é
que dentro de nível de preparo, haja progresso e capacidade de aumentar dia
a dia o cabedal de bons hábitos no pensar, no sentir e no agir. (Educação
Rural, 1992, p.45).
Como se pode averiguar, nas palavras dessa importante educadora, assim como “os
diários refletem os ‘diaristas’”, da forma como chegavam à Escola Rural, refletem alguém
preocupado com o ser humano e com a formação que ele deveria receber, independente do
patamar em que se encontrasse. O alvo era o crescimento e pode-se reiterar sua preocupação
com a formação integral das pessoas sob seus cuidados quando ela enfatiza que o importante é
progredir na aquisição de “bons hábitos no pensar, no sentir e no agir”. Pensar, sentir e agir,
são palavras que expressam a grandeza do ser humano em sua totalidade e quem é afetado em
seus hábitos nessas três áreas, pode considerar-se transformado. Pode-se também inferir que a
transformação de lugares, através de transformação de pessoas era o alvo de Dona Helena,
quando se estabeleceu, não apenas no Brasil, mas escolheu a cidade de Ibirité para construir o
seu legado.
Para confirmar a importância dos diários na formação das alunas e na interação
promovida através da leitura deles, vale transcrever trechos desses documentos, ou seja, dar
voz àquelas a quem Helena Antipoff dedicou seus talentos de educadora, que se mostraram
fundamentais na formação de pessoas que a ajudaram a construir o legado que se tem hoje.
Quando aqui chegamos, reunimos na sala e tivemos uma reunião com a D.
Helena, a qual nos disse os valores dos diários. A Zenita leu o seu diário, o
qual foi apreciado e comentado por todas nós. Depois a Arlete leu o seu.
(Extraído do diário de Alfredina D. M., 09/04/1950).
Confirmando que os diários eram lidos e que eram ferramentas de interação, pode ser
verificada no trecho transcrito do diário de outra aluna, cujo nome é Arlete Araújo, datado de
19/06/1950. Ela relata que,
Um alegre murmúrio de vozes alegrava a sala. D. Helena então pediu a
todos um pouco de atenção e a seu pedido foi lido o diário de 5 de julho.
Em seguida a coleguinha Zenita declamou a bela poesia “Exortação”. Seu
modo galante para [...]
Esta aluna registra que mais do que momentos de simples leitura dos diários, as reuniões
eram utilizadas para expressão cultural e demonstrações de alegria, beleza, elegância e
demonstrações de talentos.
Tal fato, corriqueiro, nas práticas educativas da Escola Rural, nos remete a Escolano
(1998), ao afirmar que,
O espaço-escola não é apenas um “continente” em que se acha a educação
institucional, isso é, um cenário planificado, a partir de pressupostos
exclusivamente formais, no qual se situam os atores que intervêm no processo
de ensino e aprendizagem para executar um repertório de ações. [...] o espaço
escolar tem de ser analisado como um constructo cultural que expressa e
reflete, para além de sua materialidade, determinados discursos.
(ESCOLANO, 1998, p. 26).
Desse modo, acredita-se que o estudo sobre as instituições educacionais, destinadas à formação
de professores para o meio rural, possa proporcionar compreensão e conhecimento mais denso sobre as
experiências pedagógicas, vivenciadas pelos alunos e ampliar as reflexões e a análises acerca dos
espaços de convivência, saberes produzidos e significados pedagógicos, social e cultural, registrados
nas fontes e dispositivos escriturais disponíveis nos diários e demais registros documentais.
Dessa forma, a escolha dos diários se fez necessária, por serem estes reveladores de
experiências e informações privilegiadas e, também, por reconhecer neles um recurso auxiliar
no processo de ensino-aprendizagem, utilizado na formação dos alunos da Escola Rural.
Para Helena Antipoff, a escola tem um papel extremamente importante na formação do
aluno e podemos observar isso na seguinte passagem:
A escola civiliza o homem, oferecendo-lhe ambientes novos e nele
novos hábitos de vida em sociedade. A escola humaniza despertando
a consciência e leva o homem a formas superiores e de sentimentos.
Como instrumento de nacionalização, a escola pública delineia a área
física e moral de sua pátria e, unindo os indivíduos em grupos cada vez
maiores, dita ao povo seus direitos e deveres de cidadãos. (Helena
Antipoff, apud JINZENJI, 2014, p. 875).
Como podemos notar nas palavras de Helena Antipoff, ela descreve a escola como a
responsável para formar cidadãos conscientes, com pensamentos críticos e bons hábitos
compartilhados em sociedade. O ensino, segundo Dona Helena, abrange a experiência, a troca
de informação, ou seja, para constituir o saber, deve internalizá-lo, colocando-o em exercício,
para que a transformação aconteça de forma natural, levando o aluno a refletir e se questionar
sempre que tiver dúvidas.
Sabemos que o professor deve ser mais do que um mediador de conhecimento, ele deve
oferecer para seus alunos meios práticos para aprender, desafiando-os em cada atividade
sugerida, por que não é somente lendo que se aprende; é preciso colocar em prática o que se
leu. É com esse aprender fazendo que se constitui o raciocínio e o pensamento crítico aflora
nos alunos, de modo que, através da observação, eles constroem suas percepções de mundo,
que com o tempo se fundem com os princípios e valores que cada um possui, tornando-os,
dessa forma, agentes transformadores. O docente então, busca nas relações entre professor e
aluno descritos por Helena em suas cartas e diários, melhorias para poder se aperfeiçoar e
aplicá-las em suas aulas.
E, com a intenção de adquirir maior conhecimento, o educador ao ter contato com os
escritos de Helena Antipoff, estabelece meios para ampliar seus estudos e assimilar novos
saberes para colocá-los em prática, oferecendo uma experiência construtiva para o aluno,
proporcionando-lhe assim, novos estímulos no processo de ensino e encorajando-o a aprender
significativamente com a prática. Roman Jakobson em (Bakhtin, 2006. p. 12) falando sobre a
admiração deste por Dostoievski, cita que Bakhtin declara: “Nada lhe parece acabado; todo
problema permanece aberto, sem fornecer a mínima alusão a uma solução definitiva.” Tal
comentário teve lugar pelo fato de que Dostoievski inovou nos romances, dando voz aos
personagens de forma autônoma, tornando assim sua obra instigante e imprevisível. Fazendo
uma analogia à obra de Helena Antipoff, ela morreu lamentando não ter forças para fazer mais,
pois sua obra não estava acabada.
Fato é que, em se tratando de educação, dificilmente uma obra estará acabada. Em
tempos que se buscam soluções para os problemas relativos ao ensino aprendizado, não se vê
uma luz no fim do túnel, nem tão pouco “uma solução definitiva”, mas olhar para o passado,
para o trabalho, para as cartas de Dona Helena e diários de suas alunas (os) e “boas
professoras”, nos faz lançar um olhar de esperança para o futuro, pois ao influenciar os alunos
e colaboradores, a educadora guerreira introduziu atores nesse teatro da educação que
influenciou, influencia e continuará a influenciar a formação de docentes por muitos e muitos
anos.
Antes, porém, de passar ao presente, é bom citar um pequeno excerto de um diário do
passado: “A nossa bondosa D. Helena jantou conosco. Após o jantar ouvimos leitura de 2 diários estes
foram comentados por D. Helena. (Maria Helena Roberto - 17/06/1950)”. (Anexo 04 - seguido de
desenho feito pela aluna). É nítida a influência da escrita de Antipoff, quando ela se refere à educadora,
de forma muito semelhante à que essa se dirigia a elas. Sem contar que nesse como nos outros trechos
transcritos há uma desenvoltura no uso das palavras, demonstrando que a prática de registrar sempre
suas experiências e observações nos diários se mostrava eficaz como estratégia de formação de
professores.
Vale ressaltar que uma das alunas, bolsista de iniciação científica que nos auxilia nesta
pesquisa atualmente, não só tem feito recortes incríveis nos diários, aos quais pretendemos
publicar posteriormente, como ao participar de uma de nossas palestras em que
compartilhávamos a respeito da pesquisa, ela declarou ser de um estado bem distante de Minas
Gerais, para ser mais exata, ela vem do extremo Norte do Brasil. Naquele evento, pedimos à
plateia, composta de alunos da UEMG – Unidade Ibirité, que escrevesse uma carta a Dona
Helena.
Não sabíamos o que estávamos pedindo, pois no momento que eles foram compartilhar
seus escritos, a emoção era visível, tamanha a gratidão daqueles alunos por ter Helena Antipoff,
vindo de tão longe, gastar sua vida e deixar aqui tal legado. A aluna acima mencionada acima,
que acabou recrutada como bolsista, disse que sua intenção é se formar e prosseguir em seus
estudos até que se sinta preparada, para voltar à sua pequena cidade imitar o trabalho de
Antipoff, pois seu “povo precisa de oportunidades como as que ela vem tendo ao vem tendo ao
estudar em lugar com tanta história” (procurei reproduzir as palavras dela). É dela também a
carta escrita naquele dia:
“Cara Senhora Helena Antipoff,
Penso tanto em um futuro lecionando em minha
pequena cidade no interior de [Achamos melhor omitir lugar
exato], que busco através de seus conselhos, me empenhar
em ser melhor a cada dia na prática de minha
docência. Sei que buscar a perfeição é um ato de
coragem e isso no contexto atual, se torna quase
impossível, mas mesmo não alcançando a perfeição eu
não irei desistir de por em prática meus anseios que me
trouxeram até aqui na Fazenda do Rosário [sentido
metafórico, lugar onde tudo começou em Ibirité, ou
seja, a escola rural] para obter os conhecimentos
através dos professores e continuar na minha jornada,
perpassando para os futuros alunos da melhor maneira
os conteúdos didáticos sem perder a essência que eu
encontrei em sua carta.
26 de abril de 2017,
Abraços calorosos,
__________________________”.
(Assinatura foi omitida. A escolha da fonte foi para ressaltar que a carta fora manuscrita e o Grifo
da palavra ‘perpassando’ é nosso)
Talvez não tenha ficado bem claro acima, reiteramos que ao terminar de apresentar a
pesquisa, desfiamos os assistentes a escreverem uma carta a Dona Helena. Ao ler a carta
transcrita, a aluna se emocionou ao ponto de chegar às lágrimas, o que criou uma comoção no
ambiente, deixando cada um lutando contra o choro coletivo, pois todos foram envolvidos
naquela atmosfera. Um dos alunos presentes, que inclusive hoje estuda e trabalha na Fundação
Helena Antipoff, se recusou a falar e a escrever, pois se encontrava com a voz embargada e
totalmente tomado pela emoção. Foi algo lindo de se ver.
Há ainda muito a se compartilhar, mas o espaço do artigo não permite, porém, ao
encerrá-lo com uma carta atual e como essa, confirma a influência da escrita de Helena Antipoff
na formação docente, tendo a análise sido iniciada a partir do gênero carta. No referido evento,
apresentamos nossos achados em apenas uma carta, a qual foi analisada de uma perspectiva
literária e fomos brindadas com uma reação tão peculiar da plateia e embora, naquele dia não
tenhamos colocado a ênfase na formação docente propriamente dita, essa aluna sem saber, nos
deu uma das confirmações que estávamos buscando.
Ao grifar a palavra ‘perpassar’, usada pela aluna, futura professora, vale dizer que ela
parecesse tê-la escolhido como sinônimo de ‘repassar’. Porém, ousamos pensar que ela foi
além, pois perpassar significa: “Passar além de; ultrapassar: a vontade perpassa.” Assim como
a obra de Helena Antipoff vai além, no tempo e no espaço, a vontade que essa menina tem de
vencer vem perpassando suas limitações para ancorar-se em um legado de alguém que
acreditou e venceu. Perpassar ainda pode ser definido como “exceder ou aumentar o limite;
manter-se do início ao fim; durar; (...)”.
Esses significados tão pertinentes e profundos fazem pensar que a aluna usou a palavra
propositalmente, por intentar ir além, aumentando o alcance e os limites do legado de Dona
Helena, mantendo-se firme do início ao fim, em um firme propósito de fazer durar essa obra,
como tantos vêm fazendo até aqui. Até quando?... ‘perpassa’ a nossa de saber, mas no que
depender de nós, Helena Antipoff continuará a influenciar, inspirar, motivar novos professores,
alunos e a quem se dispuser a conhecer. Quanto se tempo seguirá pesquisando, também
‘perpassa’ a capacidade de prever, mas uma coisa é certa, muito há que se pesquisar, que
venham novos, que sigam os que já pesquisam e que do ponto em pararmos alguém perpasse
esse legado e o faça durar. Até quando? ‘Perpassa’ a capacidade de qualquer um prever.
Referências bibliográficas
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ANEXOS
Anexo 01.
Anexo 02. (Abertura da carta)
Anexo 03. (Fechamento da mesma carta)
Anexo 04.
“A nossa bondosa D. Helena jantou conosco. Após o jantar ouvimos leitura de 2 diários estes foram
comentados por D. Helena”. Maria Helena Roberto - 17/06/1950. (Desenho de abertura do diário, feito
pela aluna)
Com um desenho de dois coqueiros, Maria relaciona essa imagem à beleza natural que está o tempo
todo presente na Fazenda do Rosário. Ao contemplar a paisagem à sua volta, destaca a sua sutileza ao
se prender nesse mundo onde ela aprecia a simplicidade nas coisas ao seu redor. Parece gostar de dar
vida a objetos inanimados e, com isso, demonstra muita criatividade ao dar asas à imaginação.
“Levantamos às seis e meia quando o despertador gritou.”(Ela usou uma figura de linguagem para falar
que o despertador tocou).