PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito Público
A Jurisdicionalização e seus Impactos para a
Unidade do Ordenamento Jurídico Internacional
Délber Andrade Lage
Belo Horizonte
2008
2
Délber Andrade Lage
A Jurisdicionalização e seus Impactos para a
Unidade do Ordenamento Jurídico Internacional
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito Público da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito principal para a obtenção do título de
Mestre em Direito Público.
Orientador: Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da
Silva.
Belo Horizonte
2008
3
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Lage, Delber Andrade
L174j A Jurisdicionalização e seus Impactos para a Unidade do
Ordenamento Jurídico Internacional / Délber Andrade Lage. Belo Horizonte,
2008, 173f.
Orientador: Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da Silva
Dissertação (mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito.
1. Direito Internacional. 2. Legislação 3. Tribunais Internacionais. I. Silva,
Carlos Augusto Canêdo Gonçalves. II. Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título
CDU: 341
4
Délber Andrade Lage
A Jurisdicionalização e seus Impactos para a Unidade do Ordenamento
Jurídico Internacional
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Público da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito principal para
a obtenção do título de Mestre em Direito Público.
Belo Horizonte, 2008.
____________________________________________________________
Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da Silva
____________________________________________________________
Leonardo Nemer Caldeira Brant
______________________________________________________________________
Ricardo Ubiraci Sennes – PUC/SP
6
AGRADECIMENTOS
Esse trabalho realmente não teria sido possível sem a ajuda de meus amigos. Meus Pais e meu
irmão, simplesmente por serem a essência...
À Mônica, Marcos, Paula e Bruno pelo apoio e carinho.
Ao Léo, por ser, além de fonte de inspiração, um verdadeiro mestre.
Ao Canêdo, pelo apoio, atenção e confiança.
Aos Meus amigos do CEDIN, Lu, Nana, Karina, Larissa, Demian, Bruno.
Ao Pepeu, pelo apoio acadêmico e pela mais sincera amizade.
Ao Leandro, companheiro de jornada; a saga continua!
À Gabi, pelo carinho, amor, atenção e apoio incondicional.
7
RESUMO
O recente movimento de expansão não uniforme do Direito Internacional (DI) é caracterizado
por um lado, pela especialização de regimes e, por outro, pelo aumento do número de cortes e
tribunais internacionais. O problema que se coloca, no âmbito desse trabalho, refere-se à
análise das implicações da jurisdicionalização do DI para a noção de unidade de seu
ordenamento jurídico. O primeiro capítulo, visa, nesse sentido, estabelecer quais são os
termos deste debate. Discute-se, assim, de onde as teorias tradicionais retiram a noção de
fragmentação, e propõe-se a tese de que elas partem de um pressuposto equivocado acerca da
natureza do DI, que impede que tenham uma real compreensão das peculiaridades do
ordenamento jurídico internacional o que, conseqüentemente, compromete a validade das
proposições desses teóricos. Uma vez enunciada a questão da unidade e as limitações das
teorias que tratam da matéria, faz-se necessária a propositura de um novo arcabouço
conceitual, com base no qual será enfrentado o problema. O segundo capítulo trata, dessa
forma, da estreita relação entre o Direito e a Política na esfera internacional, e propõe que a
regulamentação das relações pela via jurídica é apenas uma dentre várias opções que se
colocam aos atores. A formação do Direito Internacional é, portanto, a resultante de demandas
sociais tanto domésticas quanto internacionais. O último capítulo se volta, assim, para o
estudo da proliferação de cortes e tribunais internacionais à luz do arcabouço teórico proposto
no capítulo precedente. Discute-se, em um primeiro momento, o que caracteriza esse
movimento, bem como são identificas suas tendências conjunturais. A partir disso, há uma a
colocação e análise da tese de acordo com a qual o aumento de órgãos judiciais internacionais
é, ao mesmo tempo, um reflexo e um reforço do movimento de expansão não uniforme do
Direito Internacional, e, dentro das alternativas desenhadas pela necessidade política, atua de
forma decisiva para a consolidação do sistema normativo internacional.
Palavras-chave: Jurisdicionalização; legalização; cortes e tribunais internacionais;
fragmentação.
8
ABSTRACT
The recent movement of uneven expansion of International Law is characterized in one hand,
for the specialization of regimes and, on the other hand, for the increase in the number of
international courts and tribunals. This paper examines the implications of the judicialization
of the International Law to the notion of unity of its legal order. The first chapter seeks to
establish the terms of this debate. Therefore, discusses where do traditional theories extract
the notion of fragmentation, and proposes the argument that they are base on misleading
assumptions regarding the nature of International Law which disables a real comprehension of
the peculiar international order compromising the validity of these authors’ propositions.
Once announced the unity debate and the limitation of the theories dealing with the matter, a
proposal of a new conceptual framework is needed, on the basis of which the problem will be
faced. Hence, Chapter tow deals with the strict relation between the Law and the Politics in
the international arena and proposes that the regulation of relations through the legal approach
is only one among several others options available to the actors. The formation of the
International Law is, therefore, a result of domestic as well as international social demands.
The last Chapter focuses on the study of the proliferation of international courts and tribunals
through the premises of the theoretical framework presented in the previous chapter. Firstly, it
is argued what characterizes this movement, as well as how its conjunctural tendencies are
identified. On that account, it is defined and analyzed the argument which considers that the
increase of international legal organs is, at the same time, a reflex and a strengthen of the
movement of uneven expansion of the International Law, and between the alternatives
designed by the political needs, acts in a decisive way in the consolidation of the international
normative system.
Key-words: Judicialization; legalization; international courts and tribunals; fragmentation.
9
LISTA DE TABELAS
TABELA 2.1. FORMAS DE LEGALIZAÇÃO INTERNACIONAL
TABELA 2.2 INDICADORES DE OBRIGAÇÃO
TABELA 2.3 INDICADORES DE PRECISÃO
TABELA 2.4. INDICADORES DE DELEGAÇÃO
TABELA 3.1 – UNIVERSO DE CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS
TABELA 3.2 – ACESSO AOS PRINCIPAIS TRIBUNAIS INTERNACIONAIS
TABELA 3.3 – CEDH E CIADH – CASOS, 1997-2003
TABELA 3.4 - INDICADORES DE ACESSO
TABELA 3.5 – FUNÇÕES JUDICIAIS DAS CORTES INTERNACIONAIS
TABELA 3.6 – INDEPENDÊNCIA: IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES
TABELA 3.7 – INDICADORES DE INDEPENDÊNCIA
TABELA 3.8 – ARRANJOS INSTITUCIONAIS DOS TRIBUNAIS
INTERNACIONAIS
TABELA 3.9 – NÚMERO DE DEMANDAS E CUMPRIMENTO DAS SENTENÇAS
10
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
A.G. - Assembléia Geral das Nações Unidas
A.F.D.I. - Annuaire Français de Droit International
A.J.I.L. - American Journal of International Law
A.S.D.I. - Annuaire Suisse de Droit International
A.U.L.R. - American University Law Review
A.Y.I.L. - Australian Yearbook of International Law
B.Y.I.L. - British Yearbook of International Law
C.D.D.H. - Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento
do Direito Internacional Humanitário Aplicável nos Conflitos Armados
C.I.C.R. - v. C.IC.V.
C.I.C.V. - Comitê Internacional da Cruz Vermelha
C.I.J. - Corte Internacional de Justiça
C.P.J.I. - Corte Permanente de Justiça Internacional
C.U.P. - Cambridge University Press
E.J.I.L. - European Journal of International Law
E.P.I.L. - Encyclopedia of Public International Law
F.Y.I.L. - Finish Yearbook of International Law
G.Y.I.L. - German Yearbook of International Law
I.C.C. - International Criminal Court
I.C.T.R. - International Criminal Tribunal for Rwanda
I.C.T.Y. - International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia
I.C.J. - v. C.I.J.
I.C.L.Q. - International and Comparative Law Quarterly
I.C.R.C. - V. C.I.C.V.
I.J.I.L. - Indian Journal of International Law
I.L.A. - International Law Association
I.R.R.C. - International Review of the Red Cross
I.Y.H.R. - Israel Yearbook on Human Rights
J.I.L.P. - Journal of International Law & Politics – New York University
L.J.I.L. - Leiden Journal of International Law
M.L.R. - Military Law Review
11
N.U. - v. O.N.U.
O.N.U. - Organização das Nações Unidas
O.T.A.N. - Organização do Tratado do Atlântico Norte (N.A.T.O.)
P.U.F. - Presses universitaires de France
P.Y.I.L. - Polish Yearbook of International Law
R.B.D.I. - Revue Belge de Droit International
R.C.A.D.I. - Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye
R.D.M.D.G. - Revue de Droit Militaire et de Droit de la Guerre
Rec. - Recueil des arrêts de la C.I.J.
R.G.D.I.P. - Revue Générale de Droit International Public
R.I.C.R. - Revue Internationale de la Croix-Rouge
R.I.D.P. - Revue Internationale de Droit Pénal
R.Q.D.I. - Revue Québécoise de Droit International
S.d.N. - Sociedade das Nações
T.P.I. - Tribunal Penal Internacional
T.P.I.R. - Tribunal Penal Internacional para Ruanda
T.P.I.Y. - Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia
U.N.E.S.C.O. - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
Z.a.ö.R.V. - Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht
12
SUMÁRIO
CAPÍTULO I - O MOVIMENTO DE EXPANSÃO NÃO UNIFORME E A TENSÃO
ENTRE UNIDADE E FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL ................... 15
PARTE I – A ABORDAGEM TRADICIONAL E SUAS LIMITAÇÕES ......................... 16
Seção I – A tensão entre unidade e fragmentação na perspectiva tradicional .................. 16
1- A fragmentação do Direito Internacional ................................................................. 16
2- A noção de unidade e a analogia com o Direito Interno .......................................... 17
Seção II – Os problemas estruturais da abordagem tradicional........................................ 20
1- O postulado liberal: Concretude e normatividade .................................................... 20
2- A teoria voluntarista e seus limites .......................................................................... 23
A) Instrumentalismo e Formalismo .......................................................................... 23
B) O Alcance explicativo limitado do voluntarismo ................................................ 25
PARTE II – ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL E ESPECIFICIDADE
NORMATIVA EM FUNÇÃO DA AGENDA COMO ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
DA UNIDADE DO DI ......................................................................................................... 28
Seção I: A constituição de uma ordem jurídica internacional .......................................... 29
1- A emergência de valores comuns à Sociedade Internacional .................................. 30
2- A dimensão normativa ............................................................................................. 32
A) A Ordem Internacional e a convivência de várias Estruturas Normativas .......... 32
B) O alargamento do rol dos sujeitos do Direito Internacional ................................ 34
C) A formação das normas jurídicas internacionais ................................................. 35
D) A aplicação das normas jurídicas internacionais ................................................. 40
Seção II: Especificidade Normativa em Função da Agenda ............................................ 41
1- A expansão não uniforme do Direito Internacional ................................................. 42
2- A Especificidade Normativa em Função da Agenda e a Unidade do Direito
Internacional ................................................................................................................. 42
CAPÍTULO II – O DIREITO INTERNACIONAL COMO A RESULTANTE DA
INTERAÇÃO ENTRE AS DEMANDAS DAS ESFERAS POLÍTICAS DOMÉSTICA E
INTERNACIONAL ................................................................................................................. 46
PARTE I- LEGALIZAÇÃO: ALCANCE E LIMITES ....................................................... 47
Seção I: Legalização enquanto Dimensão de Análise ...................................................... 47
1- O conceito de legalização ......................................................................................... 51
2- As dimensões da Legalização .................................................................................. 53
Seção II- Legalização e política internacional .................................................................. 60
1- Hard Law: vantagens e desvantagens ...................................................................... 61
2- Soft law: vantagens e limitações .............................................................................. 66
PARTE II: BARGANHA DOMÉSTICA E DIREITO INTERNACIONAL ....................... 70
Seção I: A Colocação do Problema .................................................................................. 71
1- Identificação dos Atores .......................................................................................... 75
2- A Classificação dos Atores ...................................................................................... 77
A) Atores Políticos ................................................................................................... 77
B) Atores Sociais ...................................................................................................... 82
13
Seção II: O Modelo de Análise......................................................................................... 83
TÍTULO 1: AS VARIÁVEIS DO MODELO .............................................................. 83
1- A Estrutura Doméstica de Preferências ............................................................... 83
2- Instituições .......................................................................................................... 87
3- Informação ........................................................................................................... 94
4- Os Constrangimentos de Ordem Internacional .................................................... 95
TÍTULO 2: BARGANHA DOMÉSTICA E POLÍTICA INTERNACIONAL ............. 100
CAPÍTULO III – O AUMENTO DO NÚMERO DE ÓRGÃOS JUDICIAIS
INTERNACIONAIS E SUAS REPERCUSSÕES PARA A SOCIEDADE
INTERNACIONAL ............................................................................................................... 105
PARTE I – A ―PROLIFERAÇÃO‖ DE CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS 106
Seção 1- A caracterização do movimento: Expansão e especificidade Institucional ..... 106
Seção 2- As condicionantes sistêmicas do movimento de jurisdicionalização do Direito
Internacional ................................................................................................................... 112
Título 1 - Tendências conjunturais ................................................................................. 112
1- Adoção do paradigma compulsório.................................................................... 112
2- Participação de Atores Não-Estatais .................................................................. 117
3- A diversidade e maleabilidade funcional dos órgãos judiciais internacionais ... 124
4- Os Estados ainda são os atores com maior influência no comportamento das
Cortes e Tribunais Internacionais ........................................................................... 128
A) Constrangimentos de ordem institucional ......................................................... 129
B) Constrangimentos de ordem pessoal: a independência dos juízes .................... 132
Título 2 – Os Alcances do movimento de juridicização do DI ...................................... 134
1- A jurisdicionalização enquanto variável interveniente no processo de expansão
não uniforme (legalização) do Direito Internacional .............................................. 135
2- A jurisdicionalização não necessariamente implica adoção de padrões mais
rígidos para aplicação e implementação das normas internacionais ...................... 136
PARTE II – JURISDICIONALIZAÇÃO E ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL ... 139
Seção I – O aumento no número de cortes e tribunais internacionais e o problema da
unidade do Direito Internacional .................................................................................... 139
1- A natureza do movimento de jurisdicionalização e sua potencial ameaça à
unidade do Direito Internacional ............................................................................ 140
2- A jurisdicionalização e a dinâmica entre os valores fundamentais e a
especificidade normativa em função da agenda ..................................................... 143
SEÇÃO II – Jurisdicionalização e Direito Internacional: uma análise jurídico-política 144
Título 1 – Órgãos judiciais internacionais como variáveis intervenientes no jogo político
internacional ................................................................................................................... 144
1- As implicações políticas de um tribunal internacional não são apenas explicados
pela dimensão da efetividade de suas decisões ...................................................... 144
2- Jurisdição e política: os poderes dos tribunais internacionais ........................... 147
Titulo 2 – Órgãos Judiciais Internacionais como agentes de produção normativa ........ 149
1- Interesse particular na resolução de controvérsias como fundamento imediato da
atuação jurisdicional ............................................................................................... 150
2- O interesse comunitário como fundamento mediato da atuação jurisdicional ... 152
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 154
14
INTRODUÇÃO
O recente movimento de expansão não uniforme do Direito Internacional (DI)1 tem
despertado calorosos debates acerca de sua possível fragmentação. O argumento daqueles que
defendem essa tese é o de que a esse movimento implicou a formação de regimes autônomos,
que acabam por produzir um sistema normativo desconexo e com interpretações conflitantes
acerca dos mesmos princípios jurídicos. O primeiro capítulo desse trabalho tem como
objetivo analisar essa tendência expansionista à luz da tensão entre unidade e fragmentação do
DI. Argumentar-se-á, nesse sentido, que a tese da fragmentação se fundamenta em um
pressuposto distorcido acerca da natureza da noção de ordenamento jurídico internacional, o
que cria a necessidade de se rediscutir seus fundamentos e sua dinâmica. Afirma-se, nesse
sentido, que a idéia da unidade deve ser compreendida à luz de duas variáveis: o ordenamento
jurídico internacional e a especificidade normativa em função da agenda.
A redefinição dos termos do debate acerca da unidade do Direito Internacional cria a
necessidade de um arcabouço teórico que seja capaz de explicar a tendência de sua
legalização, bem como sua repercussão para a dinâmica da sociedade internacional. A tese
central do segundo capítulo é a de que a formação da norma jurídica internacional é a
resultante de um jogo político de dois níveis. Por um lado, tem-se considerações e
constrangimentos de ordem internacional, que são discutidos na sua primeira parte. Por outro,
a opção dos governantes também leva em conta os interesses e condicionantes da arena
doméstica. Constrói-se, portanto, na segunda parte do capítulo, um modelo teórico que
identifica quais são as principais categorias de atores domésticos envolvidos no processo, bem
como quais são as variáveis que afetam a escolha do representante estatal na esfera
internacional.
Uma vez definida a noção de unidade do ordenamento internacional, e colocado o
arcabouço teórico que abarque o movimento de expansão não uniforme do Direito
Internacional, tem-se elementos suficientes para discutir de que forma o aumento do número
de órgãos judiciais internacionais interfere na dinâmica do sistema, e em que medida ele
compromete ou reforça a supracitada noção de unida. A hipótese formulada é que a tendência
à adjudicação das controvérsias internacionais reflete o atual estado de maturidade da
sociedade internacional, na medida em que é condicionada pela tensão entre voluntarismo e
interdependência.
1 No âmbito desse trabalho, utilizar-se-á as expressões ―legalização‖ e ―juridicização‖ quando da discussão
acerca da opção pela regulamentação jurídica de determinadas áreas da agenda internacional.
15
CAPÍTULO I - O MOVIMENTO DE EXPANSÃO NÃO UNIFORME E A
TENSÃO ENTRE UNIDADE E FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO
INTERNACIONAL
O Direito Internacional (DI) passa por um delicado momento: por um lado, assiste-
se a um crescimento notável de áreas da agenda internacional que têm sido regulamentadas
por normas jurídicas; por outro, raras vezes ele fora tão desafiado. Muitos têm apontado seu
crescimento desordenado como causa de sua fragmentação, que teria levado a inconsistências
de tal magnitude que ele não seria capaz de exercer influência concreta na atuação dos atores
que atuam no contexto internacional.
Esse capítulo se volta, portanto, para a análise do movimento de expansão não
uniforme do Direito Internacional, e visa estabelecer em que medida esse crescimento pode
contribuir para seu colapso ou para sua consolidação. Ao analisar esse contexto, a doutrina
tradicional tem sido taxativa ao afirmar sua fragmentação, que seria decorrente da
consolidação de sistemas normativos autônomos – e muitas vezes contraditórios – que
comprometeriam a unidade da ordem jurídica internacional.
Conforme se argumentará, essa corrente parte de pressupostos teóricos equivocados,
que decorrem da analogia do cenário internacional com o doméstico. Nesse sentido, objetiva-
se redefinir os termos do debate, indicando um arcabouço teórico formulado com premissas
mais adequadas a seu objeto de estudo. Com isso, tem-se elementos novos para se abordar a
questão, com base nos quais se formulará uma hipótese distinta daquela colocada
tradicionalmente.
O trabalho será, portanto, dividido em duas partes. A primeira se destina à análise
crítica dos postulados teóricos da corrente clássica de interpretação do Direito Internacional, a
partir da qual se indicará suas principais limitações explicativas. Ela é subdividida em duas
seções, sendo o primeiro reservado para a colocação da questão da fragmentação a partir da
perspectiva tradicional. A segunda seção tem como objetivo a avaliação de seus problemas
estruturais, que ensejariam conclusões precipitadas acerca dos efeitos da expansão do DI.
A segunda parte tem como objetivo central a redefinição do debate acerca da
unidade do Direito Internacional. Para tanto, também se subdivide em duas seções, nas quais
se analisa a formação e as características do ordenamento jurídico internacional (seção I); bem
como as causas e efeitos da criação de sistemas normativos especializados (seção II). Será
com base na relação dessas duas dimensões que será formulada uma nova hipótese, pela qual
se afirma que o DI está inserido em um contexto em que se sinaliza para uma forte tendência
16
de sua afirmação, e que a consolidação de regimes e o crescimento do número de Cortes e
Tribunais Internacionais servem como indicadores de um gradativo movimento de
juridicização das relações internacionais.
PARTE I – A ABORDAGEM TRADICIONAL E SUAS LIMITAÇÕES
Seção I – A tensão entre unidade e fragmentação na perspectiva tradicional
1- A fragmentação do Direito Internacional
A recente expansão do Direito Internacional tem sido objeto de ampla discussão
entre os estudiosos tanto do Direito quanto das Relações Internacionais (RI)2. Tal movimento
deve ser compreendido a partir de uma dupla perspectiva, na medida em que se caracteriza
tanto pelo aumento do número de instrumentos normativos utilizados internacionalmente3
quanto pelo surgimento de vários órgãos de solução de controvérsias internacionais4. É com
base na análise desses elementos que se coloca a discussão acerca da ―fragmentação‖ do
Direito Internacional.
De acordo com os defensores dessa tese, a regulamentação de áreas específicas da
agenda internacional teria criado um ambiente de certa autonomia e insulamento de seus
ramos. A justificativa para tal posicionamento residiria no fato de que a essa tendência à
juridicização não se daria de forma uniforme, na medida em que cada uma dessas matérias
estaria submetida a um conjunto de princípios próprios, o que seria reforçado pela existência
de um desenho institucional específico para cada um desses casos. A simples comparação, por
2 Nesse sentido, trabalhos acerca da correlação entre essas duas áreas têm sido constantemente publicados. Ver,
por exemplo, BYERS, Michael (ed.), The Role of Law in International Politics, 2000, e International
Organization, 54, 3, Summer 2000. 3 Ver, nesse sentido, SHELTON, Dinah. International Law and “Relative Normativity”, 2003, p.149 e
GOLDSTEIN, Judith et al. Introduction: Legalization and World Politics., pp.385-386. 4 É para o que nos adverte Romano: “Quando os futuros estudiosos do Direito Internacional se voltarem para a
análise do Direito e das Organizações Internacionais no fim do século XX, eles provavelmente farão referência
à enorme expansão e transformação do judiciário internacional como o mais importante desenvolvimento do
período posterior à Guerra Fria.” (ROMANO, Cesare. 1999. The Proliferation of International Judicial
Bodies: The Pieces of the Puzzle p.709, tradução do autor). Ver também KEOHANE, Robert O., et al, Legalized
Dispute Resolution: Interstate and Transnational, 2000, p. 457-488; DUPUY, Pierre Marie, The Danger of
Fragmentation or Unification of the International Legal System and the International Court of Justice, 1999;
CHARNEY, Jonathan I., The Impact on the International Legal System of the Growth of International Courts
and Tribunals, 1999, pp.697-708; e ABI-SAAB, Georges, Fragmentation or Unification: Some Concluding
Remarks, 1999, pp.919-933, dentre outros.
17
exemplo, entre as normas relativas ao Comércio e ao Meio Ambiente seriam elucidativas a
esse respeito5. De acordo com o argumento, é com base nessa observação que se tem o
primeiro indicador da fragmentação: a existência de ramos especializados (regimes) criaria
um cenário de convivência de sistemas normativos autônomos, o que exponenciaria a
possibilidade de conflitos entre normas. Ademais, a situação se mostraria ainda mais
problemática a partir do momento em que se percebe que não há nenhum mecanismo
preestabelecido para sua solução6.
Esse argumento seria reforçado, igualmente, quando se analisa o aumento do
número de Cortes e Tribunais Internacionais, que tem sido caracterizado justamente pela
especificidade de sua competência e pela diferenciação de seu desenho institucional7. Assim,
a idéia de independência entre esses ―sistemas legais‖, associada à ausência de hierarquia
entre eles implicaria a concreta possibilidade de conflito de jurisdição e de jurisprudência
entre esses órgãos8. Por fim, em caso de continuidade dessa situação, poderia haver casos em
que os órgãos consolidassem interpretações diferentes de princípios basilares do Direito
Internacional, o que reforçaria a idéia de sua fragmentação.
2- A noção de unidade e a analogia com o Direito Interno
Entretanto, a tese da fragmentação se mostra ―uma resposta ruim a uma pergunta
ruim‖. Conforme se argumentará, essa noção decorre de uma concepção inadequada do deve
ser compreendido como ―unidade‖ do sistema normativo internacional. Como destaca Dupuy,
discutir a fragmentação “nos traz a questão de compreender o que, em termos legais,
5 Ao analisarem esse fenômeno, os teóricos de Relações Internacionais costumam se valer do conjunto de
Regimes Internacionais, que, em sua definição clássica seriam caracterizados por um conjunto de “princípios,
normas, regras e procedimentos decisórios em torno dos quais convergem expectativas em uma dada matéria.”
(KRASNER, Stephen. Structural Causes and Regime Consequences: Regimes as Intervening Variables, 1993,
p.2, tradução do autor). O que se percebe é que cada um desses regimes tem características peculiares, que se
traduzem em mecanismos mais ou menos rígidos para garantir o cumprimento dos acordos internacionais: o
regime de comércio internacional, por exemplo, é, nesse sentido, mais rígido do que o ambiental, na medida em
que não há no segundo nenhuma organização semelhante à OMC. 6 Para uma discussão mais detida acerca dessa matéria, ver SHELTON e KOSKENNIEMI cdi.
7 Ver, igualmente, ROMANO, Cesare, The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of the
Puzzle, 1999, pp.709-751; KEOHANE, Robert O., et al, Legalized Dispute Resolution: Interstate and
Transnational, 2000, p. 457-488; e CHARNEY, Jonathan I., The Impact on the International Legal System of
the Growth of International Courts and Tribunals, 1999, pp.697-708. O que se pode perceber é que cada um
desses órgãos possui regras próprias para delimitar sua competência, legitimidade para proposição de demandas
e mecanismos para aplicação das decisões. 8 DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of the International Legal System and the
International Court of Justice, 1999, pp. 792-795.
18
significa essa unidade, se é que ela existe9”. Dessa forma, faz-se necessária uma discussão
preliminar acerca do caráter do sistema internacional, para que então se possa ter os elementos
fundamentais para a análise consistente acerca dos efeitos da expansão do Direito
Internacional.
Ao se analisar os termos em que é colocada a discussão, pode-se perceber que o
―problema da unidade‖ tem sido compreendido com base em uma concepção equivocada
acerca da natureza do sistema internacional. De acordo com o argumento de Koskenniemi,
essa noção se funda em uma analogia com o contexto doméstico, pela qual se assume um
nível tal de convergência de interesses que acaba por afastar a necessidade de discutir a
legitimidade das leis produzidas internamente. Nesse sentido, a norma seria aceita como um
bem público a priori, cujo ideal é “praticamente auto-evidente10
”.
Nesse sentido, a noção de unidade é duplamente questionada: por um lado, critica-se
a ausência, no plano internacional, de uma instituição capaz de estabelecer e interpretar as
normas; por outro lado, se houver um órgão (ou Estado) que exerça esse papel, ele criará uma
ordem internacional imperial, dada a heterogeneidade de interesses existente nesse cenário11
.
Tendo como referência essa perspectiva, é sintomática a constatação de que a
discussão acerca da fragmentação toma força justamente no momento em que ocorre o
movimento de expansão não uniforme da regulamentação jurídica internacional, uma vez que
esta se dá de forma específica em relação à agenda que é objeto de regulação. O que se pode
perceber, portanto, é que o debate tem como ponto central a discussão envolvendo instituições
que representariam uma idéia generalista do sistema normativo internacional (notadamente a
Corte Internacional de Justiça)12
.
Do que fora exposto, pode-se concluir, finalmente, que o debate acerca da ―unidade‖
do DI se pauta em uma concepção do contexto internacional como algo análogo ao contexto
doméstico. Dessa forma, aqueles que defendem a tese de sua fragmentação o fazem com base
na ausência de uma instituição de caráter geral, que tenha a competência para estabelecer e
9 DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of the International Legal System and the
International Court of Justice, 1999, p. 792, tradução do autor; grifo no original. 10
KOSKENNIEMI, Martti, International Legislation: Today‟s Limits and Possibilities, p.21, tradução do autor.
O mesmo autor nos atenta, em outro trabalho, para o fato de que essa concepção surge juntamente com o ideal
do Estado Moderno, alicerçada nos pressupostos liberais da liberdade, igualdade e legalidade (KOSKENNIEMI,
Martti. The Politics of International Law, p.1). 11
KOSKENNIEMI, Martti, International Legislation: Today‟s Limits and Possiblities, p.33. 12
Ver, por exemplo, DUPUY, Pierre Marie, L‟Unité de l‟ordre juridique international. Cours général de droit
international public, Académie de droit international de la Haye, Recueil des Cours, Nijhoff, 2003; CHARNEY,
Jonathan I., The Impact on the International Legal System of the Growth of International Courts and Tribunals,
1999, pp.697-708; ABI-SAAB, Georges, Fragmentation or Unification: Some Concluding Remarks, 1999,
pp.919-933.
19
determinar a aplicação das normas internacionais. Nessa perspectiva, os recentes movimentos
apresentados anteriormente – quais sejam, o de expansão não uniforme (caracterizado por
diferenças substanciais nas agendas reguladas) e o de aumento do número de Cortes e
Tribunais Internacionais – são utilizados por esses autores como indicadores da diminuição da
unidade do sistema normativo internacional.
A idéia da fragmentação seria formulada, portanto, com base na tese de que o
Direito Internacional não constituiria um ―sistema jurídico‖, de acordo com o conceito de
Hart. De acordo com esse autor, um sistema legal existiria a partir do momento em que esse
se fundasse na convivência harmônica entre ―normas primárias‖ e normas ―secundárias‖. As
primeiras seriam caracterizadas por prescrever comandos diretos de conduta aos sujeitos.
Normas secundárias, por sua vez, teriam como objetivo principal o estabelecimento de
procedimentos pelos quais as primárias poderiam ser identificadas, modificadas e
promulgadas13
- regras de reconhecimento (recognition), de mudança (change) e de
julgamento (adjudication), respectivamente. Foi com base nesse argumento que o próprio
autor concluiu que, apesar de ser Direito, o DI não seria um ―sistema jurídico‖14
.
Essas questões, envolvendo a existência e a unidade de um eventual ―sistema
normativo internacional‖, foram também abordadas pela Comissão de Direito Internacional da
ONU. De acordo com ela, a fragmentação deve ser analisada com base em três situações
distintas, a saber: (i) interpretações distintas, oriundas de órgãos diferentes, acerca de normas
gerais; (ii) emergência de exceções institucionalizadas por regimes específicos, que
implicariam um conflito entre normas de caráter geral e especial; e (iii) o conflito entre
normas especiais15
. Como se pode perceber, todos esses casos guardam íntima relação com os
movimentos de expansão não uniforme do DI e o de proliferação de Cortes e Tribunais
Internacionais.
O que se tem, portanto, é que qualquer tentativa de contestar essa noção deve
rediscutir as bases sobre as quais fora construído o problema, o que implica problematizar o
postulado básico da necessidade de similaridade entre as estruturas normativas doméstica e
internacional. Para tanto, faz-se necessária uma discussão teórica inicial, para que então se
possa redefinir a questão à luz de novas premissas. Conforme se argumentará, a idéia de
ordenamento jurídico internacional deve ser fundada em um arcabouço teórico próprio do
13
HART, H. L. A., The Concept of Law, 1994. 14
Para discussão acerca do conceito sistema jurídico (legal system) em Hart, ver, igualmente, STEPHENS, Tim,
Multiple International Courts and the „Fragmentation‟ of International Environmental Law, (2006), 25, Aust
YBIL, pp.230-231. 15
INTERNATIONAL LAW COMISSION, Study Group on Fragmentation report, 2002.
20
Direito Internacional, que seja capaz de compreender as vicissitudes do grupo social que é
objeto de sua regulamentação.
Seção II – Os problemas estruturais da abordagem tradicional
1- O postulado liberal: Concretude e normatividade
De acordo com a tese colocada anteriormente, o problema da fragmentação tem sido
abordado com base em um arcabouço teórico inadequado, na medida em que as principais
análises feitas a esse respeito assumem premissas de validade contestável. Nesse sentido, faz-
se necessária uma discussão mais detida, cujos objetivos são, além de identificar as limitações
daí decorrentes, construir um arcabouço teórico alternativo, fundado em postulados distintos
daqueles que têm sido utilizados. A importância desse tipo de discussão para a elaboração de
uma pesquisa consistente é destacada por Scobbie:
“Dessa forma, uma vez que autores partem de premissas diferentes (e muitas vezes
desarticuladas) acerca da natureza e função do Direito Internacional, não é
surpreendente que a adesão a diferentes pressupostos teóricos resulte em diferentes
conclusões sobre o que realmente identifica o Direito Internacional.”
“Pressupostos como esses são, entretanto, freqüentemente inarticulados, se não
invisíveis, em trabalhos de exposição substantiva, e ainda moldam entendimentos e
abordagens para as regras de Direito Internacional e seu conteúdo. Identificar as
premissas autorais é fator crucial para se avaliar o valor a ser dado a um
determinado argumento16
.”
Como destaca Kratochwil, critérios positivistas ainda são amplamente aceitos no
âmbito das Ciências Sociais17
. Contudo, destaca ele, a noção de causalidade, largamente
utilizada nesse tipo de análise, implica problemas metodológicos graves. Isso porque a
complexidade das relações sociais torna extremamente limitado seu alcance explicativo: dizer
que alguém tomou alguma atitude em virtude da ameaça feita por outra não implica afirmar
que, repetidas as circunstâncias, a mesma ação se seguiria18
. Dessa forma, a principal função
metodológica dessa noção se mostra comprometida, uma vez que a generalização do resultado
se torna algo inviável. Nesse sentido, ―testar‖ os resultados obtidos se mostra algo inútil, já
16
SCOBBIE, Iain. Some Common Heresies About International Law: Sundry Theoretical Perspectives, 2003,
p.64-65, tradução do autor. 17
KRATOCHWIL, Friedrich V., How do Norms Matter?, 2000, p.62. 18
KRATOCHWIL, Friedrich V., How do Norms Matter?, 2000, p.63. Tal situação se mostra ainda mais
complicada quando se altera o sujeito passivo da ação: afirmar que duas pessoas irão necessariamente se
comportar da mesma forma diante de uma mesma ameaça é algo extremamente problemático.
21
que normas sociais situam-se na ordem do ―dever ser‖ – pelo que se pode concluir que um
caso individual de desconformidade com o preceito legal não compromete sua existência19
.
O autor argumenta, igualmente, que os problemas enfrentados pelas concepções
clássicas de Direito e Relações Internacionais se exponenciam pelo fato de que partem de
concepções equivocadas tanto de Política quanto de Direito20
. De acordo com ele, a
tradicional idéia de que a Política Internacional é o espaço do conflito de interesses nacionais
- medidos em termos de poder – é forjada para que ela preserve sua autonomia, não se
confundindo com motivações de outra ordem. Da mesma forma, afirma que as concepções
―normativistas puras‖ também almejam se desvencilhar de contingências de ordem moral ou
social, a partir do momento em que identificam o fundamento de obrigatoriedade da norma
em seu processo formal de criação e com a observação de uma estrutura predeterminada.
É nesse ponto do argumento que o tradicional postulado da necessidade de unidade
do sistema normativo internacional – compreendida nos termos daquela que ocorre no Direito
Interno – manifesta suas maiores contradições. Conforme discutido anteriormente, tal
premissa tem como fundamento básico os valores do liberalismo (igualdade, liberdade e
legalidade), de acordo com os quais se formula a tese de que uma sociedade pode ser
constituída e organizada por regras jurídicas, oriundas de instituições políticas que em alguma
medida são capazes de absorver as demandas fundamentais do grupo social em questão.
Assumir a premissa da legalidade significa, igualmente, admitir que as normas
devem se revestir de duas dimensões bem definidas, quais sejam, a da concretude
(concreteness) e a da normatividade (normativity)21
. De acordo com o postulado da
concretude, há a necessidade de que a norma consagre uma situação objetiva, que traduza as
expectativas e interesses exatos dos membros de uma determinada sociedade. O comando
legal, quando construído dessa forma, evitaria o subjetivismo político – e, consequentemente,
um constrangimento ilegítimo. Em virtude de seu fundamento na demandas sociais, afastaria
definitivamente a vaga noção das teorias de ―Direito Natural‖. Por outro lado, o postulado da
19
Além disso, Kratochwil (idem, p.64) coloca outro relevante argumento para contestar o poder explicativo da
idéia de causalidade, quando se vale do seguinte exemplo: considere que algumas casas de um bairro desabem
durante um terremoto, mas que outras continuem com suas estruturas inabaladas. Em um primeiro momento, a
conclusão de que o terremoto fora a causa do desabamento parece inquestionável. Entretanto, a situação se
complica quando se percebe que todas as casas que desabaram foram construídas antes da entrada em vigor das
especificações de segurança para construção de prédios, e que aquelas que não ruíram foram construídas
atendendo-se a essas normas. A análise se mostraria ainda mais problemática se houvesse a constatação de que
um túnel havia sido construído na mesma região em que ocorreram os desabamentos, e que ele provavelmente
teria comprometido em algum grau a estrutura das casas. Conclui o autor, portanto, que esse tipo de abordagem é
insuficiente para abarcar a complexidade envolvida em no procedimento de tomada de decisão de um agente
social. 20
KRATOCHWIL, Friedrich V., How do Norms Matter?, 2000, p.38. 21
Ver, a esse respeito, KOSKENNIEMI, Martti. The Politics of International Law, p.4.
22
normatividade se consubstanciaria no caráter prescritivo da norma, na medida em que seu
comando de conduta (dever ser) deveria ser aplicado e obedecido independentemente de
qualquer interesse ou vontade dos sujeitos envolvidos22
. Se observados, portanto, esses
requisitos, o Direito conseguiria total independência em relação à política.
Entretanto, como bem observa Koskenniemi, concretude e normatividade são duas
dimensões contraditórias, cuja prevalência de uma delas se dará em detrimento da outra. O
que se pode perceber, portanto, é que em cada um dos casos se justificarão tendências
doutrinárias de matrizes antagônicas, ora realistas (por priorizarem o contexto material das
relações sociais na formação da norma), ora idealistas (que se caracterizam pela escolha
abstrata dos valores que devem orientar os sujeitos)23
. Em suas palavras:
“A doutrina predominante se refugia em assertivas gerais sobre a necessidade de
combinar concretude e normatividade, realismo e idealismo, o que não implica
nenhuma conseqüência para sua conclusão normativa. E então avança, enfatizando
a contextualização de cada decisão – indeterminando, assim, sua própria ênfase no
caráter geral e imparcial de seu sistema.”
“As contradições da própria doutrina forçam um pragmatismo empobrecido. Por
um lado, a ilusão “idealista” de que o Direito pode e efetivamente exerce um papel
na vida social entre Estados é preservada. Por outro, as críticas realistas foram
aceitas e é visto distintamente como algo secundário ao poder e à política. (...) O
estilo sobrevive porque nele reconhecemos a doutrina liberal à qual estamos
acostumados a depositar nossos argumentos políticos.”24
É com base nesse panorama que se encontram os argumentos para a justificativa de
duas abordagens distintas de explicação do fenômeno normativo. Na primeira delas, que se
baseia na dimensão da concretude, a explicação para o conteúdo das normas está na soberania
estatal. De acordo com ela, cada Estado, por ser soberano – e conseqüentemente autônomo –
tem a liberdade para fazer a opção pela submissão (ou não) a determinada norma25
. A
segunda abordagem se funda no procedimento de criação de uma norma como o elemento
que distinguiria o Direito de outras esferas da vida social. Nessa perspectiva, qualquer
comando de conduta que almeje o status de norma jurídica deve ter sido submetido a um
procedimento preestabelecido para sua elaboração26
.
22
Esses postulados garantiriam, assim, a neutralidade na aplicação da norma (normatividade), que refletiria os
anseios exatos da sociedade (concretude) à qual se destina. 23
Contudo, o próprio Koskenniemi nos adverte para o fato de que essa distinção tem uma importância
meramente heurística, uma vez que se mostram intimamente dependentes umas das outras. KOSKENNIEMI,
Martti. What´s International Law For?, pp.92-93. 24
KOSKENNIEMI, Martti. The Politics of International Law, p.8. 25
É sobre essa perspectiva que se funda a concepção voluntarista clássica, cuja consagração se dera na decisão
do ―Caso Lotus‖ da Corte Permanente de Justiça Internacional, em 7 de setembro de 1927. 26
Koskenniemi nos adverte para algo importante: a força que essas abordagens assumiram no meio acadêmico é
de tal magnitude que a maioria dos ―manuais‖ de Direito Internacional tem sua estrutura definida com base em
23
Tais correntes oscilam entre o que Koskenniemi chamou de apologia (valorização
excessiva da soberania como variável de análise do comportamento dos Estados) e utopia
(corrente que superestima o alcance explicativo da norma enquanto forma de conformação do
comportamento dos sujeitos)27
. O argumento exposto a seguir discute os fundamentos
teóricos que são utilizados como justificativa para cada uma delas. Com base nele, pode-se
inferir que elas são resultado da tensão entre instrumentalismo e formalismo, duas dimensões
comuns a essas abordagens e que carregam uma contradição intrínseca – equivocadamente
negligenciada por esses autores.
2- A teoria voluntarista e seus limites
A) Instrumentalismo e Formalismo
O Direito Internacional moderno tem como marco inicial o tratado de paz de
Westfalia (1648), no qual se teve a consagração do conceito de soberania, que se tornou a
base de todo ordenamento jurídico internacional calcado nas concepções clássicas28
. Nesse
sentido, cada Estado era um ente autônomo e independente, que não sofreria qualquer tipo de
constrição em seu processo de tomada de decisões. Dessa forma, não estaria submetido a
qualquer norma de caráter geral que conformasse seu comportamento29
. Nos dizeres de
Koskenniemi:
De acordo com o mito fundação do sistema, a Paz de Westfalia de 1648 criou as
bases para um Direito Internacional agnóstico e procedimental, cujo mérito
consistia em sua recusa em impor qualquer ideal normativo externo na sociedade
internacional. Os objetivos dessa sociedade emergiriam em decorrência de sua
própria criação: não havia qualquer noção religiosa ou transcendental sobre o
„bem‟ que o Direito Internacional deveria promover. Se existe uma „comunidade
internacional‟, essa é uma associação prática, nunca teleológica, um sistema que
uma ou em outra. Em alguns casos, eles têm sua primeira parte destinada aos ―fundamentos políticos‖ da ordem
internacional. Em outros, os textos se iniciam com uma exposição das fontes do DI, das quais se infere o
conteúdo de suas normas (KOSKENNIEMI, Martti. The Politics of International Law, p.11). 27
KOSKENNIEMI, Martti, From Apology to Utopia. The Structure of International Legal Argument, 1989. 28
O conceito de soberania consagrado nesse tratado passa a ser também a base das relações internacionais até a
Primeira Guerra Mundial; para uma discussão mais detalhada acerca da evolução histórica do conceito, ver
PEREIRA, Antônio Celso A. Soberania e Pós Modernidade, 2004. p. 619-661; ARRIGHI, Giovanni; SILVER,
Beverly J. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 334p;
Krasner, Stephen D. Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1999;
WENDT, Alexander. Anarchy is What States Make of It: The Social Construction of Power Politics, 1992,
pp.391-425, e KEOHANE, Robert O.; NYE, Joseph S. Power and Interdependence: World Politics in
Transition. Boston: Little, Brown, 1977, ao criarem o conceito de interdependência complexa, também discutem
as modificações nessa concepção e suas repercussões para as relações internacionais. 29
Ver PELLET, Alain. As Novas Tendências do Direito Internacional: Aspectos “Macrojurídicos”, 2004, pp.2-
9; CAMPOS et al, Curso Derecho Internacional Publico, 1998, pp.64-66; e SHAW, International Law, 1991,
p.9.
24
fora desenhado não para promover valores pré-estabelecidos, mas para ordenar
ações práticas no sentido de se atingir objetivos das comunidades existentes30
.
Corolário. Dessa característica pode-se inferir que as relações entre os Estados,
considerados como os únicos atores do cenário internacional, não eram condicionadas por
qualquer valor comum que orientasse seu comportamento31
. É a partir desse panorama que
surge a concepção voluntarista clássica do DI: qualquer limitação normativa a atuação de um
determinado Estado somente poderia ocorrer na medida em que este consentisse com ela, já
que, pelo princípio da soberania, tinha autonomia para tomar suas decisões da forma que
julgasse melhor.
Descentralização Normativa. Na medida em que as normas de DI passam a existir
a partir do expresso consentimento dos Estados envolvidos, pode-se inferir que essas não têm
nenhum alcance para terceiros. Nesse sentido, o sistema normativo é relacional, ou seja,
decorre da interação direta entre os atores que concorreram para a sua formação. Assim, há a
exata coincidência entre seu autor e destinatário. Pelo fato de não haver qualquer poder
central (anarquia) ou valor que agregue essa sociedade, pode-se afirmar que esta é
descentralizada, o que significa dizer que são os próprios Estados os que formulam e aplicam
as normas32
. Não há, portanto, qualquer hierarquia entre elas, e o Direito Internacional é um
reflexo da relação de coexistência que rege o sistema.
Estrutura. Nas estruturas normativas internas o sistema legal é hierárquico, com um
poder central que detém o uso legítimo da força e exerce sua autoridade verticalmente33
. No
âmbito internacional, contudo, todos são formalmente iguais (já que todos detêm soberania),
motivo pelo qual as relações se dão horizontalmente, com um caráter de coordenação34
.
O DI teria, nesse sentido, a função de consagrar os objetivos dos atores políticos
que o criaram. Essa interpretação instrumentalista acerca de seu papel na Sociedade
30
KOSKENNIEMI, Martti. What´s International Law For?, p.90, tradução do autor. 31
Por esse motivo, muitos autores afirmam que nesse período existia uma Sociedade Internacional. Ver, a esse
respeito, MELLO, Celso, Direito Internacional Público, 2004, pp.51-76. A Sociedade Internacional se
distinguiria da Comunidade Internacional na medida em que a segunda se caracteriza pela existência um valor
comum que agrega e orienta a atuação dos atores nela inseridos. 32
Ver SHAW, International Law, 1991, p.6. 33
De acordo com a teoria kelseniana, cada norma retira seu fundamento de validade em uma norma superior, até
que se chegue ao nível constitucional, que se fundamenta em uma norma fundamental pressuposta logicamente
(KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 1991). 34
Nesse sentido, afirma Waltz: “As partes dos sistemas políticos domésticos mantêm relações de superioridade
e subordinação. Alguns têm o condão do comando, outros devem apenas obedecer. Sistemas domésticos são
centralizados e hierárquicos. As partes do sistema político internacional mantêm relações de coordenação.
Formalmente, todos são iguais. Nenhum tem o condão do comando, ninguém deve obedecer. Sistemas
internacionais são descentralizados e anárquicos”. WALTZ, Kenneth N. Theory of International Politics,
1979, p.88, tradução do autor.
25
Internacional conviveria, por outro lado, com uma lógica formalista, pela qual os padrões de
comportamentos desejados seriam decorrentes justamente de normas cuja criação observou a
um processo legislativo específico35
.
Essa perspectiva formalista – ao relacionar o caráter jurídico de uma regra a seu
procedimento de elaboração – expurga qualquer critério axiológico da dimensão normativa.
Ao invés de serem encarados como ―ferramentas sociais‖, os diplomas normativos passam a
ser vistos como fins em si mesmos. Dessa forma, as dimensões de validade e legitimidade
existem a partir do momento em que os requisitos formais para sua elaboração sejam
atendidos. Nos dizeres de Pellet:
“Não importa qual o conteúdo das regras, ou a ratione legis, o único objeto digno
de estudo é a maneira pela qual as normas são formadas. E elas são formadas
exclusivamente pela vontade dos Estados, ou, mais exatamente, elas têm sido
criadas, uma vez e para sempre, pela vontade de certos Estados. Ademais, elas não
podem ser modificadas – exceto pelos mesmos métodos.”36
A convivência entre a lógica instrumental e a formal consagrariam, portanto, a
noção de que uma norma jurídica internacional somente teria existência na medida em que
coincidisse com a vontade do Estado que a criou. Haveria, assim, a exata correspondência
entre a norma, seu conteúdo e a manifestação volitiva emitida quando de sua formulação.
B) O Alcance explicativo limitado do voluntarismo
A abordagem voluntarista implica, contudo, problemas tanto de ordem formal
quanto de ordem material. No primeiro caso, o que se percebe é que o consentimento é
elemento insuficiente para a compreensão do caráter jurídico do DI. Ademais, essa
perspectiva parte do pressuposto de que a manifestação volitiva dos Estados ocorre de forma
livre de quaisquer constrangimentos o que, como será argumentado, compromete o alcance
explicativo dessa teoria.
a) Problemas de ordem formal.
A afirmação de que o consentimento é que confere caráter jurídico a uma norma se
mostra algo contraditório do ponto de vista lógico. Esse tipo de concepção se fundamenta,
como discutido, na óptica legalista, oriunda de ideais liberais37
. De sua análise pode-se
perceber, assim, uma excessiva valorização da dimensão da concretude, na medida em que
35
Ver, nesse sentido, KOSKENNIEMI, Martti. What´s International Law For?, p.104. 36
PELLET, Alain. The normative dilemma: Will and consent in International law-making, 1992, p.24, tradução
do autor. 37
Ver ―O postulado liberal: Concretude e normatividade‖, supra.
26
seria a demanda estatal (manifesta a partir do consentimento) a responsável pela juridicidade
do comando normativo. Diante disso, forçosa é a inferência de que uma mudança nas
condições sociais implicaria a modificação da própria natureza da demanda dos Estados.
Nesse caso, a norma formulada anteriormente não mais atenderia aos interesses das partes que
a criaram, o que comprometeria, destarte, seu caráter vinculante, na medida em que não mais
se verifica a correspondência entre a sua vontade e a resposta dada pelo diploma normativo38
.
Além disso, assumir como verdadeira essa colocação significa negligenciar a
dimensão da normatividade39
, na medida em que o comando legal deve corresponder à
necessidade material daqueles que estão a ele submetidos. Resta caracterizada, dessa forma,
uma incompatibilidade dessa situação com o pressuposto básico da teoria, qual seja o da
legalidade (que, como visto, se fundamenta nas dimensões da concretude e da
normatividade)40
.
Neste contexto, o que se pode concluir é que o postulado do consentimento se
mostra insuficiente para explicar tanto a natureza quanto o fundamento de validade do Direito
Internacional, na medida em que a vontade não é uma explicação suficiente, ou melhor, nem
sequer uma explicação, para seu caráter vinculante. Em posicionamento semelhante, conclui
Pellet que “a vontade dos Estados não só não é a base do Direito Internacional, como
também é uma enganadora explicação de como o Direito Internacional realmente funciona41
.
Questionar o papel do consentimento para a explicação da juridicidade das normas
do Direito Internacional não significa, contudo, desconsiderar sua pertinência para a
compreensão do fenômeno. A observação ora feita objetiva, frise-se, apontar a inviabilidade
de uma teoria que o consagre como a variável explicativa do modelo.
b) Problemas de ordem material.
A partir da análise da teoria voluntarista, é interessante, por fim, que se faça a
indagação acerca da viabilidade fática da noção de consentimento utilizada como sua
premissa. O que se percebe, nesse sentido, é que não há, na prática, nenhuma manifestação
volitiva que se dê de forma ―livre‖ ou independente, na medida em que há fortes
constrangimentos à atuação dos Estados decorrente do contexto no qual se desenvolvem suas
relações.
38
Para uma discussão mais específica sobre as limitações da doutrina voluntarista, ver PELLET, Alain. The
normative dilemma: Will and consent in International law-making, 1992. 39
É importante destacar que, “de acordo com o requisito da normatividade, o Direito deve ser aplicado
independentemente das preferências políticas dos sujeitos legais”. (KOSKENNIEMI, Martti, The Politics of
International Law, p3, tradução do autor). 40
Ver, igualmente, ―O postulado liberal: Concretude e normatividade‖, supra. 41
PELLET, Alain. The normative dilemma: Will and consent in International law-making, 1992, p.25, tradução
do autor. Ver, também nesse sentido, SHAW, International Law, 1991, p.9.
27
O que se tem, portanto, é que os pressupostos da igualdade e da liberdade de tomada
de decisões, corolários da noção clássica de soberania, se mostram algo meramente abstrato,
que não encontram guarita na realidade social.
Nas palavras de Pellet:
“Isso, de fato, é pura hipocrisia. Não basta desejar; é também necessário ser capaz
de desejar. E está muito claro que, na sociedade internacional, se os Estados são
iguais, alguns são „mais iguais‟ que os outros.
(...) É óbvio que o desejo de um Estado pequeno e fraco é „menos livre‟ que o
daqueles maiores e mais poderosos.
(...) Se os Estados são soberanos, por que eles celebram tratados que na realidade
não desejam? A resposta é porque eles precisam. Não apenas em virtude da
necessidade de dinheiro, assistência técnica, urgência de ajuda alimentar, etc. Mas
também porque sentem a absoluta necessidade de „participar‟. E isso é verdade não
só para os tratados, mas, de uma forma geral, para o Direito Internacional,
qualquer que seja sua forma.”42
Assim, deve-se ressaltar que o fato de que Estados mais poderosos têm condições de
fazer valer seus interesses em maior medida não quer dizer que o consentimento dos outros
seja, por essa razão, inválido. Dada a variedade de interesses envolvidos no Cenário
Internacional, aspirar que o DI consagre todos eles é algo, além de utópico, inútil, na medida
em que as normas não teriam a menor influência sobre este contexto43
.
Por fim, ao se atentar para a dinâmica atual das relações internacionais, pode-se
notar que do adensamento das teias de relacionamento emergem novas instituições jurídicas44
,
com características marcadamente distintas daquelas construídas sob a égide da concepção
westfaliana clássica. O voluntarismo se vê, portanto, diante de um problema de ordem
pragmática, qual seja, o de explicar esse fenômeno:
“Essa teoria também falha por não fornecer uma adequada explicação do sistema
legal internacional, na medida em que não leva em consideração o dramático
crescimento nas instituições internacionais e a rede de regras e regulamentações
que delas foi decorrente na última geração.
(...) Ela tenta colocar em foco a mudança de ênfase da exclusiva concentração no
Estado-Nação para a consideração de emergentes formas de cooperação nas quais
conceitos como consentimento e sanção são inadequados para explicar o que está
acontecendo.”45
42
PELLET, Alain. The normative dilemma: Will and consent in International law-making, 1992, pp.42-43,
tradução do autor. 43
Novamente se mostra a contradição entre os postulados da concretude e da normatividade. Nesse caso, a total
observância dos interesses estatais na produção normativa (dimensão da concretude) criaria um cenário em que o
sistema normativo daí decorrente seria um reflexo exato do cenário que regulamenta. Dessa forma, a dimensão
da normatividade estaria completamente comprometida. 44
Como nos sugere o movimento de expansão do Direito Internacional, apresentado anteriormente. 45
SHAW, International Law, 1991, p.10, tradução do autor.
28
Colocadas as limitações das teorias tradicionais de abordagem do Direito
Internacional, resta a necessidade de discussão e construção de um arcabouço teórico
alternativo, para que se possa, então, restabelecer as bases da discussão em torno do problema
da fragmentação. Conforme se argumentará, não se pode negligenciar o papel que o contexto
social exerce tanto no momento de criação quanto no momento de aplicação da norma.
PARTE II – ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL E ESPECIFICIDADE
NORMATIVA EM FUNÇÃO DA AGENDA COMO ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
UNIDADE DO DI
As seções anteriores desse trabalho abrigam uma discussão crítica acerca dos termos
nos quais é colocada a questão da ―fragmentação‖ do Direito Internacional. Conforme
argumentado, as tradicionais abordagens a esse respeito se baseiam em uma analogia com o
cenário doméstico que se mostra problemática (ver ―A noção de unidade e a analogia com o
Direito Interno‖, supra). Por essa razão, assumem pressupostos liberais que acabam por minar
sua teoria com uma contradição intrínseca (concretude X normatividade), traduzida na
inconsistente tensão entre instrumentalismo e formalismo (ver ―Instrumentalismo e
Formalismo‖, supra).
Conforme tese apresentada anteriormente, a redefinição do debate enseja uma
interpretação diversa do fenômeno da ―expansão do Direito Internacional‖46
. Esse ―rearranjo
conceitual‖ será feito com base na análise de duas tendências do atual cenário internacional: a
formação de um ordenamento jurídico internacional47
e a especificidade normativa em função
da agenda48
.
A noção de ordem jurídica internacional deve ser compreendida à luz das
peculiaridades do grupo social que é objeto de sua regulação. Nesse sentido, o que se deve
46
Nesse caso, a expressão abarca os dois movimentos indicados, na primeira seção desse trabalho, como causas
imediatas da ―fragmentação‖: a juridicização de novas áreas e o aumento do número de Cortes e Tribunais
Internacionais. 47
A expressão Ordenamento Jurídico Internacional é utilizada, nesse caso, em um sentido semelhante ao
conceito de ―sistema jurídico‖ (legal system) na obra de Hart (ver nota 13, supra). Ambas implicam a existência
de um conjunto normativo organizado a partir de certo grau de unidade e hierarquia, em que não haja a
convivência de normas ou princípios excludentes. 48
Por especificidade normativa em função da agenda deve-se compreender a diferenciação do desenho jurídico-
institucional em função das áreas que são objeto de regulamentação. Como se sabe, as normas de Direitos
Humanos, por exemplo, constituem um regime claramente distinto daquele construído pelas normas de
Comércio Internacional.
29
ressaltar é o fato de que esse sua existência não poder ser discutida com base em uma analogia
pura em relação à ordem jurídica interna de cada Estado. Sua consolidação decorre do
alargamento do número de sujeitos na esfera internacional (i); bem como da modificação dos
padrões de formação (ii) e aplicação (iii) do Direito Internacional.
A especificidade normativa em função da agenda é a base do argumento a favor da
fragmentação, uma vez que ela favoreceria a criação de sistemas normativos autônomos, com
princípios próprios e contraditórios. Contudo, quando se confronta esse movimento com a
noção de ordem jurídica internacional, pode-se tecer algumas considerações em sentido
diverso. O argumento central é o de que essa especialização ocorre não em virtude da
existência de princípios diversos que orientariam a formação de regimes mutuamente
excludentes, mas que ela se dá com vistas às necessidades políticas que são enfrentadas em
cada uma dessas áreas. O que se tem, portanto, é que desenhos institucionais diferentes
surgem em razão de demandas específicas, o que não significa, a princípio, que se
fundamentam em princípios incompatíveis.
Seção I: A constituição de uma ordem jurídica internacional
O surgimento do ordenamento jurídico internacional deve ser analisado com base na
convergência de duas dimensões distintas. A primeira delas é a dimensão axiológica, pela
qual se verifica a existência de valores comuns capazes de orientar o comportamento dos
sujeitos da Sociedade Internacional. A segunda é a dimensão normativa, na qual esses valores
– considerados como universalmente aceitos – passam a ser consagrados por normas
juridicamente vinculantes.
O que se pode perceber, portanto, é que antes que se faça uma discussão mais
precisa dos elementos normativos constitutivos da ordem jurídica internacional, faz-se
necessária uma análise de quais são seus fundamentos, que despertam em seus sujeitos a
noção de ―ordem pública‖. Nesse sentido, destaca Allott:
“O gerenciamento da ordem pública de uma sociedade reflete suas teorias, valores e
propósitos, dado que ele é parte integral não apenas de sua auto-constituição real
(material) e legal, mas também do ideal de sua auto-constituição. (...) Elas são
idéias que alteram e são alteradas pela auto-constituição social nacional, de forma
30
que começam a ser apropriadas como um emergente processo ideal de auto-
constituição mesmo no nível global49
.”
1- A emergência de valores comuns à Sociedade Internacional
.
A modificação dos padrões de relacionamento da Sociedade Internacional do
período Pós-II Guerra Mundial são acompanhados pelo reconhecimento de valores
considerados de importância fundamental. Tal fenômeno é amplamente reconhecido pela
doutrina, que indica, por exemplo, valores como a manutenção da paz e da segurança
internacionais, proteção dos Direitos Humanos e do Meio-Ambiente, proibição do
Genocídio50
, etc. Além disso, instrumentos normativos internacionais fazem referência à
existência de ―interesses comuns da humanidade‖51
, ou ainda à ―Comunidade Internacional‖52
como uma entidade dotada de autoridade para regular a ação coletiva53
. A própria Carta da
Organização das Nações Unidas tem uma listagem de princípios fundamentais, e cria a
obrigação, oponível erga omnes, de manutenção da paz e da segurança internacionais54
.
O que se deve destacar, contudo, é que os valores têm um alcance limitado no que
diz respeito à sua capacidade de conformar o comportamento dos sujeitos55
. Nesse sentido, o
relacionamento entre valor e norma é de primordial importância para a compreensão da noção
de ordem jurídica internacional. Conforme ressaltado anteriormente, os valores atuam na
dimensão da constituição ideal da Sociedade Internacional, indicando quais são os bens que
devem ser por ela protegidos. Dessa forma, atuam como elementos de legitimação de suas
normas constitutivas56
.
Os valores exercem sua influência, assim, a partir de uma perspectiva informativa,
pela qual moldam o conteúdo das normas, cujo objetivo é consagrar os anseios comuns de um
determinado grupo social. É nesse sentido que Martha Finnemore e Stephen Toope afirmam
49
ALLOTT, Philip, The Concept of International Law, 2000, p.79, tradução e grifo do autor. 50
Ver, dentre outros, CAMPOS et al, Curso Derecho Internacional Publico, 1998, p.79; CASSESE,
International Law, 2001, p.16, BROTÓNS, Antonio Remiro, et al, Derecho Internacional, 1997, pp.22-30; Ver
PELLET, Alain. As Novas Tendências do Direito Internacional: Aspectos “Macrojurídicos”, 2004, pp. 18-19. 51
Ver Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, art. 137(2); Tratado sobre os Princípios Reguladores
das Atividades dos Estados na Exploração e no Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos
Celestes (1967), preâmbulo, parágrafo 2. 52
Ver, por exemplo, art. 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969); e arts. 136-137 da
Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar. 53
Nesse sentido, SHELTON, Dinah, International Law and Relative Normativity, 2003, p.152. 54
Ver artigo 2 (6) da Carta. 55
KRATOCHWIL, Friedrich V., How do Norms Matter?, 2000, pp.57-63. 56
FRANCK, Thomas M. Fairness in International Law and Institutions, 1995, pp.26-46.
31
que o Direito deve ser compreendido como um processo57
social, e não apenas a partir de uma
perspectiva estática, na qual as normas seriam estabelecidas com base em um único
procedimento de tomada de decisão durante o momento de sua criação:
“O Direito, e consequentemente a juridicização (legalization), referem-se muito
mais a processo do que a forma ou produto. Muito do que legitima o Direito e o
distingue de outras formas de normalização são os processos pelos quais ele é
criado e aplicado – aderência a valores legais processuais, a habilidade dos atores
em participar e ser sensíveis à sua influência, e o uso de formas legais de
raciocínio.”58
O que se tem, portanto, é que a dimensão axiológica não é suficiente para a
explicação da formação de uma ordem jurídica internacional. Sua compreensão deve também
abarcar, como visto, a dimensão normativa, a qual é resultante do processo de
consubstanciação desses valores fundamentais em instituições e desenhos normativos
minimamente definidos59
.
57
O que se percebe, portanto, é que a perspectiva adotada nesse trabalho se coaduna com o que a doutrina chama
de matriz sociológica de interpretação do Direito Internacional, na qual o processo legal é interpretado com
vistas aos elementos sociais que concorreram para sua formação. Conforme se argumentará essa perspectiva
rompe com os postulados das tradicionais teorias discutidas na anteriormente (ver ―Os problemas estruturais da
abordagem tradicional‖, supra). 58
FINNEMORE, Martha & TOOPE, Stephen; Alternatives to “Legalization”: Richer Views of Law and Politics,
2001, p.750. 59
Para uma visão mais detalhada acerca do processo social de formação de uma norma, ver os argumentos com
Kowert & Legro, de acordo com os quais o processo de constituição normativa internacional pode ser analisado à
luz de três variáveis básicas: processo ecológico (ecological process) (i); processo social (ii); processo interno
(iii).
A primeira delas refere-se ao ―ambiente‖ em que se desenvolvem as relações entre os atores. Os autores
colocam três exemplos de situações que podem interferir na produção normativa (KOWERT & LEGRO, Norms,
Identity, and Their Limits: A Theoretical Reprise, 1996, p.470). Em uma situação pode ser ter uma dramática
mudança no ambiente; em outra pode se ter uma continuidade e estabilidade nos valores consagrados; e, por fim,
pode se ter uma situação de ambigüidade e incerteza com relação aos padrões de relacionamento social.
Certamente as normas produzidas em cada um desses contextos terão caráter diverso, por refletirem
preocupações distintas de seus formuladores.
Os processos sociais, por sua vez, se referem à maneira pela qual os agentes do sistema interagem
(KOWERT & LEGRO, Norms, Identity, and Their Limits: A Theoretical Reprise, 1996, p.474). A maior ou
menor capacidade de interação entre esses agentes seria responsável por uma proporcional capacidade de difusão
e solidificação de valores, com conseqüente repercussão no conteúdo dessas normas. Um exemplo dessa interferência é fornecido por Martha Finnemore e Michael Barnett (FINNEMORE &
BARNETT, The Politics, Power and Pathologies of Internarional Organizations, 1999). De acordo com esses
autores, as Organizações Internacionais teriam poder para modificar a atuação dos atores no sistema na medida
em que conseguem classificar fenômenos, fixar significados e difundir normas. Como exemplo disso, citam a
diferença de perspectiva com a qual se tratou os países do ―terceiro mundo‖, quando, na década de 70, eram
classificados como ―subdesenvolvidos‖; e na década de 80, quando passaram a ser vistos como ―em
desenvolvimento‖. O que importa, nesse caso, é ressaltar como um determinado padrão de interação entre os
atores (nesse caso via Organizações Internacionais) tem o condão de modificar seu comportamento, alterar suas
preferências e conseqüentemente influenciar a produção normativa.
32
2- A dimensão normativa
A discussão da forma pela qual a dimensão normativa constitui e define a
configuração da ordem jurídica internacional terá como base, em um primeiro momento,
compreensão dos padrões normativos verificados em seu seio (i.e., a partir da idéia de
estruturas normativas). Isto feito, analisar-se-á os fatores que determinam a convivência
desses padrões à luz de três relevantes dimensões do DI: seus sujeitos, a sua formação e sua
aplicação.
A) A Ordem Internacional e a convivência de várias Estruturas Normativas
Ao analisar o cenário em transição, González Campos identificou a convivência de
três estruturas jurídicas dentro do ordenamento jurídico internacional60
. De acordo com o
argumento exposto, o referido cenário, pela convivência simultânea de instituições novas e
clássicas, apresenta demandas de natureza diversa. Dessa forma, cada uma dessas estruturas
implicaria um núcleo de normas distinto, que emergiria justamente para dar conta dessa
diversidade existente no sistema internacional.
A última variável capaz de interferir na produção normativa seria o processo interno. Muitos autores têm
destacado a importância do jogo político interno na atuação dos Estados enquanto atores internacionais. Assim,
uma alteração da conjuntura política interna pode significar uma alteração da atuação internacional desse Estado,
repercutindo no processo de criação de normas (ver, por exemplo, PUTNAM, Diplomacy and Domestic Politics:
The Logic of Two-Level Games 1988; PUTNAM, EVANS & JACOBSON, Double-Edged Diplomacy:
International Bargaining and Domestic Politics, 1993; MILNER, Interests, Institutions and Information:
Domestic Politics and International Relations, 1997; MARTIN, Democratic Commitments: Legislatures and
International Cooperation, 2000.
Em argumento semelhante, Finnemore e Sikking afirmam que as normas passam por três estágios
básicos: (i) emergência; (ii) difusão e (iii) internalização (FINNEMORE E SIKKING, International Norm
Dynamics and Political Change, 1998, p.258).
A emergência de uma norma seria proveniente da atuação do ―empreendedor‖, que, por algum motivo
(ideais políticos, altruísmo, compromissos políticos, etc) resolve se valer do mecanismo de persuasão para lançar
a discussão acerca de uma determinada regra na Sociedade Internacional.
A difusão dessa norma ficaria a cargo dos atores que agem nesse cenário, da maneira pela qual o fazem
(Estados, Organizações, etc) que, para conseguir legitimidade para suas ações nesse cenário, ou até mesmo para
manter sua ―reputação‖, decidem assumir o discurso axiológico por elas proposto. Isso pode ser concretizado por
mecanismos de socialização, institucionalização ou demonstração.
Uma vez difundida uma determinada norma, ela definitivamente interfere nas relações internacionais a
partir do momento em que se encontram ―internalizadas‖ no corpo de seus atores, se manifestando em suas leis,
profissionais e burocracia. Dessa forma, passam a ser institucionalizadas (inclusive do ponto de vista do direito
interno), e se tornam ―habituais‖.
Argumentam ainda que esse processo não se dá de maneira uniforme com todas as normas. Seu
desenvolvimento dependerá da ―pertinência e relevância‖ do que fora proposto face as vicissitudes das relações
que visam regular. Assim, somente serão adotadas se em conformidade com as preferências dos atores. Nesse
ponto o argumento desses autores vai ao encontro daquele adotado por Kowert & Legro. 60
CAMPOS et al, Curso de Derecho Internacional Publico, 1998, pp.76-82.
33
O primeiro desses núcleos normativos se fundamenta nos princípios consagrados a
partir do Tratado de Westfalia, que consolidam as noções de soberania e autonomia como
pressupostos balizadores do relacionamento inter-estatal. Como já discutido, tem-se, nesse
caso, relações horizontalizadas, cujo objetivo maior é propiciar a coexistência entre os atores.
Nesse sentido, seu conteúdo é eminentemente procedimental, na medida em que visa à
regulação do exercício do poder estatal. A atuação de outros atores não é, portanto, uma
questão abarcada por essa estrutura relacional, pelo que se constata que indivíduos somente
são considerados enquanto sujeitos do ordenamento interno, e os povos são apenas simples
componentes dos Estados.
No final do século XIX, percebe-se, contudo, a emergência de um conjunto
normativo com características distintas, que se desenvolveu de forma mais consistente no
início do século XX. Ele é resultado de ações conjuntas dos Estados no sentido de se
promover a cooperação como forma de solucionar questões ―isoladas‖, em distintas esferas de
interesse. São, portanto, esforços em certa medida desconexos e irregulares, na medida em
que não objetivam a universalização de qualquer prática ou valor. Sua operacionalização se
faz a partir de tratados multilaterais e reuniões periódicas em conferências internacionais. A
constituição desse núcleo foi o primeiro passo para que a sociedade internacional conseguisse
ultrapassar o frágil e instável arranjo de equilíbrio de poder representado pelo concerto
europeu. A periodicização desses encontros multilaterais lançou o germe das atuais
Organizações Internacionais, a partir da criação, por exemplo, de Comissões e Uniões
internacionais61
.
A partir desse momento, assistiu-se a um movimento de crescente
institucionalização, que conferiu um certo caráter de verticalização ao sistema. Assim, com o
fortalecimento da cooperação internacional, foi possível que um novo grupo de normas
emergisse com o intuito de promover e consagrar valores e princípios relevantes para a
―comunidade internacional‖ como um todo. Essa tendência universalizante tem como
indicador, por exemplo, a criação da ONU, que tem sua atuação voltada para a promoção da
paz e dos direitos humanos, por exemplo. Surge, portanto, a noção de obrigações jurídicas
internacionais oponíveis erga omnes. Os indivíduos assumem um status de sujeitos dessas
normas, podendo ser inclusive responsabilizados por sua transgressão.
61
CAMPOS et al, Curso de Derecho Internacional Publico, 1998, pp.78-79; TRINDADE, Antônio A. Cançado,
Direito das Organizações Internacionais, 2002, 77-121; CAMPOS, João Mota de (coord.), Organizações
Internacionais, pp. 27-33.
34
Deve-se ressaltar, contudo, que essas três esferas estão em constante interação,
sendo muito difícil identificar seus limites na realidade social. Mas, ao se considerá-las,
levando em conta suas diferenças e efeitos sobre o comportamento dos atores, pode-se
compreender mais facilmente como se manifesta a dinâmica de relacionamentos dentro do
atual Cenário Internacional.
Conforme enunciado anteriormente, a análise acerca de como ocorre a interação
entre elas deve ser feita com vistas aos sujeitos que criam as normas, a seu processo de
formação e à sua aplicação.
B) O alargamento do rol dos sujeitos do Direito Internacional
No momento de criação do Estado Moderno, tem-se a formação da primeira
estrutura normativa internacional, caracterizada pela única existência dos Estados como
sujeitos do DI. Nesse sentido, admitia-se que normas com caráter jurídico somente poderiam
ser estabelecidas, nesse cenário, por atores dotados de soberania, na medida em que esses
teriam, por essa razão, autonomia62
para decidir acerca de sua (não) submissão a determinados
compromissos internacionais63
.
Com a modificação da Sociedade Internacional, notadamente após o período das
duas Guerras Mundiais, pode-se perceber o surgimento e consolidação de mais um grupo de
sujeitos de Direito Internacional, representado pelas Organizações Internacionais
(Intergovernamentais – OI’s)64
. Elas vão, paulatinamente, adquirindo status cada vez mais
relevante nesse Cenário65
, tese reforçada pela tendência de universalização de instituições
como a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Além disso, a consolidação da proteção internacional dos Direitos Humanos chamou
a atenção para a emergência do indivíduo como outro sujeito do DI66
. Se a personalidade
jurídica dos mesmos fora adquirida, em um primeiro momento, na perspectiva passiva, o que
62
A autonomia é decorrência, portanto, de não haver nesse cenário nenhum poder superior com legitimidade
para criar e aplicar normas. 63
Ver, por exemplo, CASSESE, International Law, 2001, p.22. 64
O reconhecimento de sua personalidade jurídica tem seu marco em 1949, com o Parecer Consultivo da Corte
Internacional de Justiça no caso da Reparação de danos sofridos a serviço das Nações Unidas (11 de abril de
1949, Rec. 1949, p.174). 65
Fato reconhecido com a elaboração da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e
Organizações Internacionais ou entre OI’s de 1986, que consagra definitivamente a capacidade ativa dessas
instituições para celebração de acordos internacionais com esse caráter. 66
Ver, nesse sentido, TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, Direitos Humanos: personalidade e capacidade
jurídica internacional do indivíduo, 2004.
35
se pode perceber é que eles podem exercer direitos de forma ativa tanto no campo dos
Direitos Humanos67
quanto no campo da proteção aos investimentos e em casos excepcionais
em relação à proteção do Meio-Ambiente68
.
Por fim, deve-se ressaltar a situação de atores do Cenário Internacional que ainda
não se consolidaram enquanto sujeitos, mas que colocam consistentes demandas por maior
participação nesse contexto. Têm-se como exemplos, nesse caso, a atuação de vários grupos
paraestatais, tais como: entes federados69
, organizações não-governamentais70
, e facções
terroristas71
.
Por fim, deve-se fazer duas importantes observações. A primeira delas refere-se ao
fato de que a emergência desses novos atores não implica a superação da noção de Estado.
Sua figura continua sendo, em última análise, a base de sustentação do Direito Internacional.
A segunda observação deve ser feita para que se ressalte que esse aumento no número de
sujeitos terá repercussões importantes tanto para a formação quanto para a aplicação das
normas internacionais. As discussões que se seguem trarão importantes elementos para a
compreensão dos alcances e limites dessa interferência.
C) A formação das normas jurídicas internacionais
Os padrões de criação de normas no atual Cenário Internacional devem ser
analisados à luz de dois movimentos convergentes: (i) o de normatividade relativa (relative
normativity); e o de (ii) codificação e juridicização de novas áreas da agenda. O argumento
básico construído a partir dessas idéias é o de que elas contribuem para a afirmação do
ordenamento jurídico internacional na medida em que permitem que esse se molde às
necessidades específicas vivenciadas pelos atores em cada uma das áreas que são objeto de
sua regulamentação72
.
67
No qual o caso da Corte Européia de Direitos Humanos é paradigmático, na medida em que permite que o
próprio indivíduo proponha perante a mesma uma demanda. 68
Ver, nesse sentido, PELLET, Alain, As Novas Tendências do Direito Internacional: Aspectos
“Macrojurídicos”, 2004, p.6. Mas, como destaca o autor, a consolidação do indivíduo como sujeito do DI ainda
carece de avanços institucionais que permitam com que ele tenha maior capacidade de atuação na esfera
internacional. 69
Ver, a esse respeito, VIGEVANI, Tullo (org.), et al, A Dimensão Subnacional e as Relações Internacionais,
2004. 70
Ver, sobre a criação de canais de comunicação entre a sociedade civil organizada e as OI’s, TUSSIE, Novos
Procedimentos e Velhos Mecanismos: a governança global e a sociedade civil, 2003. 71
Ver resoluções 1368 (2001) e 1373 (2001) do Conselho de Segurança das Nações Unidas. 72
Como se verá a seguir, esse é o ponto central da tese contrária à noção de Fragmentação do Direito
Internacional.
36
a) A questão da normatividade relativa
Conforme destaca Dinah Shelton, a questão da normatividade relativa “refere-se à
natureza e à estrutura do Direito Internacional. Ela envolve questões de hierarquia entre
fontes e normas e abarca as regras de reconhecimento pelas quais o Direito se distingue de
outras normas que não são juridicamente vinculantes73
”.
O que se tem, portanto, é que o entendimento da normatividade relativa do Direito
Internacional requer a análise dos vários níveis de obrigatoriedade dos quais suas normas
podem se revestir. Eles variam, dessa forma, em função da matéria que regulam, dos sujeitos
a que são oponíveis e dos mecanismos disponíveis para sua aplicação e implementação. Pode-
se, nesse sentido, indicar duas matrizes antagônicas, que determinarão os limites de um amplo
espectro ao longo do qual esses diferentes níveis de vinculação podem ser estabelecidos. A
primeira delas é constituída pelas normas imperativas (jus cogens), ao passo que a segunda
abarca as chamadas ―soft laws‖.
i) O surgimento de normas imperativas
A existência de normas imperativas (jus cogens) é reconhecida no artigo 53 da
Convenção de Viena de Direito dos Tratados de 1969 (CVDT), que dispõe que essas são
normas das quais nenhuma derrogação é possível, e que somente podem ser modificadas por
norma de Direito Internacional de igual valor.
Como se pode perceber, essas normas compõem uma matriz normativa cujo nível de
obrigatoriedade é, a princípio, máximo, na medida em que nenhum sujeito pode se furtar a seu
cumprimento. Contudo, não há, em nenhum instrumento normativo, uma definição que
forneça elementos concretos para sua identificação. Não há, tampouco nas decisões de órgãos
internacionais, nenhum consenso a esse respeito74
: em alguns casos, ela se mostra reticente ao
enfrentar a questão75
, e em outros ela o faz de forma bastante específica, para atribuir a certas
normas esse caráter76
.
Dessa forma, é a doutrina que promove esforços mais concretos no sentido de
estabelecer sua definição e alcances. De acordo com Antonio Cassese77
, uma ―obrigação
73
SHELTON, Dinah, International Law and “Relative Normativity”, 2003, p.145. 74
Ver, nesse sentido, SHELTON, Dinah, International Law and “Relative Normativity”, 2003, pp. 152-158. 75
Ver, por exemplo, o caso do Arrest warrant de 11 de abril de 2000, (República Democrática do Congo X
Bélgica), ICJ reports, 2002, no qual a República Democrática do Congo argüiu o caráter de imperatividade do
costume internacional que conferia a ministros das relações exteriores imunidade absoluta em casos de eventuais
processos criminais. A Corte decidiu o caso sem discutir o possível status de jus cogens da referida norma. 76
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, declarou, por exemplo, o direito à vida como uma norma de
jus cogens (ver Rep No. 47/96, OR OEA/Ser.L/V/II.95/Doc.7, ver (1997), pp. 146-147. 77
CASSESE, Antonio, International Law, 2001, pp.15-16.
37
comunitária‖ pode ser identificada pela existência de cinco características: (i) proteção de
valores fundamentais (paz, direitos humanos, autodeterminação dos povos, proteção ao Meio-
Ambiente); (ii) oponibilidade a todos os membros da comunidade (obrigações erga omnes) –
ou pelo menos a todos os Estados parte de tratados multilaterais78
; (iii) existência correlata de
um direito a qualquer desses membros; (iv) que pode ser exercido mesmo não tendo sido o
sujeito diretamente (materialmente ou moralmente) atingido por sua violação; (v) o que é
feito em nome de toda a comunidade internacional (o dano representado pela violação da
obrigação em questão representa, nesse sentido, uma afronta a todos os Estados, uma vez que
decorre da inobservância de valores fundamentais da mesma)79
.
De se destacar, contudo, que os avanços representados por essa noção, que remete à
uma concepção ―comunitarista‖ do Direito Internacional, são contrabalançados pela
indefinição acerca do conceito de normas imperativas, bem como pela inexistência de
previsão das conseqüências de sua violação:
“Conceitualmente, trata-se de um passo à frente em direção à comunitarização do
Direito Internacional; mas, concretamente, a idéia segundo a qual a violação do
direito por um Estado pode trazer reações por parte da comunidade internacional
em seu conjunto só tem – e sem dúvida está destinada a só ter durante muito tempo –
conseqüências bastante limitadas: de um lado, as próprias regras de „jus cogens‟
são necessariamente muito pouco numerosas em uma sociedade internacional ainda
muito pouco integrada e solidária; por outro, as conseqüências concretas das
„violações graves‟, enumeradas de maneira incompleta no artigo 41 do projeto da
CDI, permanecem incertas e indiscutidas80
.”
ii) As normas brandas - ―Soft Law‖
A noção de normas brandas (soft law) toma força justamente em decorrência da
dificuldade para se estabelecer normas imperativas, bem como dos ―custos de soberania‖81
a
que os Estados se submeteriam caso fizessem dessas últimas a base de regulamentação das
78
Muitos teóricos de Relações Internacionais (MARTIN, Lisa L. Interests, Power and Multilateralism, 1992, pp.
765-792; RUGGIE, John Gerard. Multilateralism: The Anatomy of an Institution 1993, pp. 3-47) apontam, nesse
sentido, o surgimento do multilateralismo como resultado do que chamam de reciprocidade difusa de princípios,
que nada mais é do que a oponibilidade erga omnes das obrigações internacionais. 79
Ver, por exemplo, artigo 40 do Projeto (de 2001) da Comissão de Direito Internacional da ONU (CDI) sobre
fato intencionalmente ilícito, que dispõe que a violação grave de uma obrigação decorrente de uma norma de
imperativa de Direito Internacional implica a responsabilização do Estado independentemente da comprovação
da existência do dano. 80
PELLET, Alain, As Novas Tendências do Direito Internacional: Aspectos “Macrojurídicos”, 2003, p.19. 81
A expressão ―custos de soberania‖, nesse caso, refere-se aos problemas enfrentados por um Estado quando
este perde o controle (autonomia) do processo de tomada de decisão.
38
relações internacionais. Assim, são utilizadas com o intuito de se reduzir os custos de
contratação, monitoramento e de efetivação de seus comandos82
.
O conceito de normas brandas também é algo controverso entre os estudiosos do
assunto, uma vez que alguns as admitem em casos que o vínculo jurídico existe (apesar de
fraco)83
e que outros atestam sua existência em casos nos quais não há vinculação jurídica
entre os envolvidos84
. O que interessa para o argumento aqui desenvolvido é que esse tipo de
normas constitui o outro extremo da matriz da normatividade relativa, cujo objetivo principal
é atuar em uma dimensão muito mais informativa (programática) da ação dos Estados do que
necessariamente vinculante.
Como destaca Dinah Shelton, essas normas têm um crescente papel no atual
contexto das relações internacionais e do desenvolvimento do Direito Internacional, já que
podem: (i) preceder e ensejar a criação de costumes e tratados internacionais; (ii) atuar em
uma dimensão ―supletiva‖, preenchendo lacunas principalmente no momento da interpretação
de outras normas internacionais; (iii) substituir obrigações legais quando as necessidades
contextuais fazem da elaboração de um tratado algo muito custoso e que dispendioso de
tempo85
. Pode-se concluir, a partir desse breve estudo, que sua existência e crescimento, ao
invés de representarem uma ameaça ao DI podem indicar um momento de maturidade do
ordenamento jurídico internacional86
.
b) Os movimentos de codificação e expansão do Direito Internacional
A noção de ordem jurídica internacional deve ser igualmente analisada à luz de duas
tendências verificadas em seu seio: os movimentos de codificação (i) e de juridicização de
novas áreas da agenda internacional (ii).
A codificação do Direito Internacional ocorre quando são criados Tratados
Internacionais cujo objeto é a regulamentação de áreas normalizadas por costumes
internacionais. Não há, a rigor técnico, inovação em relação às matérias alcançadas pelo DI,
uma vez que seu objetivo é apenas o de fixar com mais clareza os parâmetros das obrigações
82
Ver, nesse sentido, ABBOTT & SNIDAL, Hard and soft law in the International Governance, 2000, pp.433-
435. 83
ABBOTT & SNIDAL, Hard and soft law in the International Governance, 2000. 84
SHELTON, Dinah, International Law and “Relative Normativity”, 2003, p. 168. 85
SHELTON, Dinah, International Law and “Relative Normativity”, 2003, p. 169. 86
Vale lembrar que muitas vezes a escolha que se coloca é entre a regulamentação via normas brandas ou
nenhum tipo de regulação.
39
ora assumidas87
. O movimento de expansão, por sua vez, é caracterizado pela criação de
normas jurídicas em relação à áreas que ainda não eram regulamentadas pelo DI88
.
O que se pode perceber, portanto, é que os Tratados Internacionais se mostram um
elemento essencial para a consolidação de ambos os movimentos. É interessante se destacar,
nesse caso, a existência de um aparente paradoxo: em sua natureza, o tratado nada mais é do
que um instrumento particular do qual os Estados se valem para regulamentar situações
específicas. A pergunta que se coloca, dessa forma, refere-se a explicação de como ele
consegue se desprender da óptica privada para se tornar um claro meio de se criar e consagrar
obrigações de ordem pública.
Os primeiros indícios dessa tendência surgem juntamente com a emergência dos
primeiros tratados multilaterais (marcados pela reciprocidade difusa de seus princípios)89
, que
primam por consagrar valores aceitos por todos aqueles que são parte dos mesmos. Nesse
sentido, destaca Philip Allott:
“Na legislação, a dialética das idéias domina a dialética da prática. A dialética das
idéias, que é dissimulada na dialética da prática dos costumes jurídicos se torna a
forma dominante de dialética da prática, no sentido de que o ato legislativo reflete
uma proposital escolha específica de uma possibilidade futura para a sociedade em
questão, de acordo com as teorias e na implementação de valores e propósitos dessa
sociedade. Mas o Direito legislado é estruturalmente o mesmo do direito
consuetudinário, no sentido de que ele consiste em relações jurídicas, nas quais o
comportamento em conformidade com o Direito legislado é também
necessariamente comportamento que serve o interesse comum da sociedade90
.”
Diante desse contexto, podem ser indicados quatro efeitos básicos da tendência à
crescente utilização dos tratados internacionais no cenário internacional: (i) a criação de
costumes jurídicos que atinjam a partes que não são vinculadas a um tratado, em decorrência
da generalização de práticas dele resultantes91
; (ii) a criação de situações objetivas que devem
87
Ver, nesse sentido, CAMPOS, Curso de Derecho Internacional, 1998, pp. 109-111. 88
É nesse sentido que o artigo 13, parágrafo 1º, a, da Carta da ONU estabelece que é função da Assembléia
Geral a de promover estudos e fazer recomendações com fins de impulsionar o progressivo desenvolvimento do
Direito Internacional e sua codificação (o que são, destarte, os objetivos precípuos da CDI). 89
Ver, nesse sentido, CAMPOS, p.78; KOSKENNIEMI, Martti, International Legislation: Today‟s Limits and
Possiblities, pp.9-14. 90
ALLOTT, Philip, The Concept of International Law, 2000 p.81. 91
A CVDT de 1969 contém, por exemplo, uma série de dispositivos que são considerados como costume
jurídico internacional, e por isso vinculam Estados que não são parte da mesma.
40
ser respeitadas por terceiros Estados92
; (iii) a criação de Organizações Internacionais, cujo
objetivo principal é servir como forma de garantir a efetividade das normas de determinado
tratado93
; (iv) a transferência, para a esfera internacional, de disputas políticas de ordem
doméstica94
.
D) A aplicação das normas jurídicas internacionais
Quando se discute a aplicação das normas jurídicas internacionais, não se pode
negligenciar o substancial aumento do número de Cortes e Tribunais Internacionais
verificado nos últimos anos. Essa tendência é marcada pela (i) crescente especialização da
competência desses órgãos em razão da matéria e (ii) por casos de alargamento de sua
competência em função da pessoa (nos quais indivíduos e cortes nacionais passam a ter
legitimidade para propor demandas).
Diante desse contexto, a discussão acerca do papel da Corte Internacional de Justiça
(dotada de competência universal em razão da matéria) vis-à-vis à atuação de Órgãos de
Solução de Controvérsias internacionais com competência específica e desenhos
institucionais variados é algo comumente encontrado na doutrina95
. Como ressaltado
anteriormente, em alguns casos a unidade do DI é colocada em questão pela possibilidade de
conflito de interpretações e de decisões envolvendo os tribunais internacionais – o que
poderia, em casos extremos, levar à existência paralela de sistemas normativos autônomos e
independentes.
Por outro lado, a legitimidade (ativa e passiva) de sujeitos do Direito Internacional
que não Estados perante essas Cortes e Tribunais internacionais contribui para uma maior
demanda pela observação e aplicação de suas normas. Ao analisar as diferentes estruturas
92
Ver, nesse sentido, ALLOTT, Philip, The Concept of International Law, 2000, p.82, PELLET, Direito
Internacional Público, pp. 255-256. 93
É o caso, e.g., da Organização Mundial do Comércio (OMC). 94
Ver, nesse sentido, PUTNAM, Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games 1988;
PUTNAM, EVANS & JACOBSON, Double-Edged Diplomacy: International Bargaining and Domestic
Politics, 1993; MILNER, Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997; MARTIN, Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000. A elaboração de
um tratado internacional implica o compartilhamento da competência para formular políticas acerca de
determinada matéria. Nos casos em que a questão é muito controversa domesticamente (ex.: Direitos Humanos),
o chefe de Estado pode optar pela negociação internacional como forma de inserir ou excluir do processo
determinados grupos políticos. 95
Ver DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of the International Legal System
and the International Court of Justice, 1999; CHARNEY, Jonathan I., The Impact on the International Legal
System of the Growth of International Courts and Tribunals, 1999, pp.697-708; e ABI-SAAB, Georges,
Fragmentation or Unification: Some Concluding Remarks, 1999, pp.919-933, dentre outros.
41
organizacionais e institucionais desses órgãos, alguns autores96
propuseram uma distinção
entre tribunais de cunho interestatal e os de cunho transnacional. De acordo com eles, os
primeiros representariam a visão clássica acerca do DI, de acordo com a qual Estados são seus
únicos sujeitos, concebidos como atores unitários97
. Os últimos, por sua vez, seriam
resultantes das recentes modificações ocorridas na Sociedade Internacional, a partir das quais
são inseridos novos sujeitos e atores nas relações internacionais. Assim, as cortes têm
competência para atuar e implementar suas decisões com certa autonomia em relação ao
desejo dos Estados. São casos, por exemplo, em que indivíduos têm legitimidade para propor
demandas98
. A discussão acerca do crescente movimento de adjudicação das disputas
internacionais, bem como sua repercussão para a unidade do ordenamento internacional será
feita, de forma mais detida, no terceiro capítulo.
Seção II: Especificidade Normativa em Função da Agenda
A partir das discussões envolvendo a idéia de ordem jurídica internacional, podem
ser feitas duas inferências se mostram primordiais para a corroboração da hipótese colocada
nesse trabalho. A primeira delas refere-se à existência, ainda que primária, de valores e
obrigações considerados como fundamentais à Sociedade Internacional. A segunda decorre
da constatação de que dentro desse ordenamento convivem estruturas normativas distintas,
que implicam a formação de regras e instituições (tais quais cortes e tribunais internacionais)
com arranjos específicos e variáveis em função da matéria que é objeto de sua
regulamentação. Conforme argumento que se segue, elas são fundamentais para que se
compreenda o fenômeno da especificidade normativa em função da agenda, bem como suas
repercussões para a noção de unidade do Direito Internacional.
96
KEOHANE, Robert O., et al, Legalized Dispute Resolution: Interstate and Transnational, 2000, p. 457-459. 97
Isso implica que as decisões tanto acerca da possibilidade de apreciação da demanda pelo tribunal quanto da
maneira pela qual esta será implementada ficam a cargo dos próprios Estados, a partir de decisões tomadas no
âmbito da administração pública. 98
Nesse sentido, a partir do momento em que um Estado pode ser demandado
independentemente de sua vontade, e que eventualmente a execução da sentença também pode
ocorrer dessa forma, pode-se inferir que os entes estatais perdem a capacidade de controle
sobre a agenda dessas cortes. Tem-se, assim, um mecanismo de empoderamento
―empowerment‖ de um ou outro grupo social de acordo com as especificidades de cada caso (Ver
GOLDSTEIN, Judith & MARTIN, Lisa. Legalization, trade liberalization, and domestic politics: a cautionary
note, 2000b).
42
1- A expansão não uniforme do Direito Internacional
A noção de especificidade normativa em função da agenda é construída com base na
idéia da normatividade relativa, característica que confere às regras jurídicas internacionais
maior ou menor grau de obrigatoriedade em seus comandos legais. O que se pode perceber,
nesse caso, é que a variação desse nível de vinculação por parte dos sujeitos ocorre em
função da matéria da agenda internacional que é regulamentada. É essa diferenciação que
permite a observação de padrões entre as normas que regulamentam determinadas áreas – e
que são, portanto, os elementos basilares dos diversos regimes internacionais.
Nesse sentido, pode-se tecer a hipótese de que esse movimento de expansão não
uniforme – o qual implica a existência de desenhos normativos distintos – do Direito
Internacional ocorre em virtude das necessidades específicas (demandas políticas e sociais)
de cada um dos pontos da agenda política internacional. É afastado, assim, qualquer
argumento que verse sobre uma eventual ―desordem‖ no recente crescimento do número de
normas jurídicas internacionais.
O que se pode afirmar, portanto, é que a diferenciação do caráter das normas de
Direito Internacional para os Direitos Humanos e para o Comércio Internacional, por
exemplo, acontece devido às demandas criadas politicamente em cada uma dessas áreas.
Apenas atestar uma eventual inconsistência do ordenamento jurídico internacional
(decorrente dessa normatividade relativa), sem analisar suas causas e efeitos nas relações
internacionais é algo que se mostra teoricamente limitado e com pouca relevância prática.
2- A Especificidade Normativa em Função da Agenda e a Unidade do Direito
Internacional
Se a discussão acerca da unidade do Direito Internacional for colocada com base
nos termos tradicionais – ainda ligada à concepção de Hart sobre sistema jurídico99
- os quais
se fundam em uma concepção liberal (da mesma forma que ocorre no Direito Interno), a
conclusão que se chega, quando da análise da relatividade normativa, é a de que a ordem
jurídica internacional (se é que ela existe) está sendo gradativamente fragmentada por seu
crescimento não uniforme.
99
Ver ―A noção de unidade e a analogia com o Direito Interno‖, supra.
43
Contudo, conforme argumento exposto anteriormente, os postulados básicos
adotados pela teoria clássica se mostram inconsistentes, o que cria a necessidade de se
redefinir a questão com base em um arcabouço teórico mais adequado. Nesse sentido, a tese
adotada nesse trabalho é a de que a noção de unidade do ordenamento jurídico internacional
deve ser compreendida com vistas às especificidades do grupo social que é por ela
regulamentado, qual seja, a Sociedade Internacional.
De acordo com essa perspectiva, a ordem jurídica internacional ainda é uma
instituição cujos limites não estão claramente delineados, mas que sinaliza para um cenário
de crescente utilização e afirmação do Direito como forma de regulação das relações
internacionais. Dupuy destaca, em posicionamento semelhante que a unidade do Direito
Internacional deve ser compreendida a partir de uma dupla perspectiva, sendo a primeira
delas formal, definida nos mesmos termos colocados por Hart100
. Além disso, afirma que há
uma dimensão material de constituição dessa unidade, que não pode ser negligenciada. De
acordo com ele, essa última seria composta por normas que consagram os anseios
fundamentais da Sociedade Internacional, tais quais: proibição do uso da força;
criminalização do Genocídio e Direitos Humanos, por exemplo101
.
O que se tem, portanto, é que a dimensão material do sistema legal internacional
(decorrente da consagração de seus valores fundamentais) seria a responsável, em última
instância, por conferir a ele coesão e legitimidade. A especificidade normativa em função da
agenda seria, portanto, uma forma de efetivação desses valores fundamentais, na medida em
que as normas são desenhadas com vistas às demandas sociais de seus sujeitos. Ao avaliar
esse movimento, Koskenniemi afirma:
“Essas diferenças são como diferenças entre Estados: o que está em questão é uma
batalha hegemônica na qual cada instituição, apesar de parcial, tenta ocupar o
espaço de todas. Longe de ser um problema a ser resolvido, a proliferação de
regimes normativos autônomos ou semi-autônomos é um inevitável reflexo de uma
condição social pós-moderna e um prólogo benéfico para uma comunidade
100
Seria, portanto, decorrente da coerente relação entre as normas primárias e as secundárias. Ver ―A noção de
unidade e a analogia com o direito interno‖, supra. 101
Ele argumenta ainda que as normas secundárias, ao contrário do que afirmava Hart, estão consolidadas no
plano internacional, e ―encarnam‖ a óptica voluntarista clássica do ―Direito Internacional da Coexistência‖.
Destaca, nesse sentido, que essas normas conferem apenas uma unidade formal ao sistema, insuficiente para
representar qualquer avanço prático relevante, ou para influenciar de forma decisiva no comportamento dos
sujeitos. Conclui, portanto, que a dimensão material é de suma importância para a constituição de uma
verdadeira ordem jurídica internacional (DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of
the International Legal System and the International Court of Justice, 1999, pp. 793-795.
44
pluralista na qual os níveis de homogeneidade e fragmentação refletem preferências
políticas e o instável sucesso de desejos hegemônicos.”102
Diante deste contexto, o que se pode afirmar é que a noção de ordem jurídica
internacional não deve ser concebida com base em postulados relativos ao Direito Interno.
Ela deve, assim, ser analisada com vistas à especificidade do grupo social que regula. Nessa
perspectiva, a unidade desse sistema normativo deve ser compreendida a partir da relação
entre seus valores fundamentais e as demandas específicas existentes em cada uma de suas
áreas – que devem, naturalmente, ser respondidas por instrumentos normativos de
características distintas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A recente tendência de expansão não uniforme das normas jurídicas internacionais,
bem como do número de Cortes e Tribunais Internacionais, tem despertado especial interesse
entre os teóricos do Direito Internacional. Aqueles vinculados a uma matriz teórica clássica
tendem a defender a tese da fragmentação, cuja análise é o objetivo principal desse trabalho.
Conforme argumento apresentado, essa corrente inicia seu estudo a partir de uma
premissa teórica inválida acerca da unidade do DI, resultante de uma equivocada analogia do
contexto internacional com o cenário doméstico. Dessa forma, o esforço inicial é para se
contestar esse postulado, e, consequentemente, justificar a necessidade de redefinição do
debate em torno da questão.
A hipótese de trabalho é, portanto, a de que a unidade da ordem internacional é
constituída pela interação entre duas dimensões com tendências distintas: uma delas referente
aos valores fundamentais consagrados por normas de alcance geral; e outra composta por
núcleos normativos cujas características foram determinadas em função das demandas
específicas da agenda que regulamentam. A primeira seria, portanto, a dimensão responsável
pela coerência e legitimidade do sistema normativo, ao passo que a última conferiria a este
maior nível de efetividade e concretude.
Nesse sentido, o movimento de expansão do Direito Internacional reflete, por um
lado, uma tendência à ―comunitarização‖103
, a partir do momento em que consolida a
102
KOSKENNIEMI, Martti, What´s International Law For?, 2003, p.110. 103
Ver PELLET , Alain, As Novas Tendências do Direito Internacional: Aspectos “Macrojurídicos”, 2003,
pp.14-25..
45
superioridade de alguns valores em torno dos quais se organiza a Sociedade Internacional104
.
Por outro, é reflexo de necessidades sociais específicas, que criam regimes com
características distintas, e que contribuem, como visto, conferir efetividade ao sistema
normativo.
A jurisdição concorrente de vários órgãos de solução de controvérsias internacionais
deve, mais do que ser encarada como uma potencial causa de interpretações contraditórias
acerca da mesma matéria, ser compreendida como um importante aspecto desse movimento
de afirmação do Direito Internacional. Como bem nos mostra Cesare Romano, o papel dessas
instituições não se restringe à composição de conflitos específicos: elas acabam – ao
transformar comandos abstratos em dispositivos concretos e cogentes – por se tornar
ferramentas essenciais na construção do sistema normativo internacional e na afirmação da
necessidade de sua observação105
.
Dessa forma, ambos os movimentos que são apresentados pela doutrina tradicional
como as causas para a suposta ―fragmentação‖ do Direito Internacional podem ser entendidos
como fatores de reafirmação desse mesmo Direito, na medida em que ensejam a juridicização
das questões internacionais, fazendo com que essas sejam analisadas com base na linguagem
e métodos próprios. Isso contribui, por fim, para sua consolidação enquanto instrumento de
regulamentação das relações sociais que se desenvolvem no seio da Sociedade Internacional.
104
Nessa perspectiva, pode-se perceber que por vezes o Direito Internacional funciona como uma instância de
discussões que envolve atores (sociais e políticos) distintos daqueles que seriam envolvidos se a discussão se
ativesse à esfera doméstica. Dessa forma, ele funciona como um mecanismo de ―empoderamento‖ de certos
grupos sociais, na medida em que esses passam a ter suas reivindicações colocadas de forma muito mais ampla,
o que pode contribuir para sua legitimidade e, no longo prazo, reforçar a formação de identidades anti-sistêmicas
(KOSKENNIEMI, Martti, What´s International Law For?, 2003, pp.110-111). 105
ROMANO, Cesare, The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of the Puzzle, 1999, p.750.
Ver, igualmente, DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of the International Legal
System and the International Court of Justice, 1999, p.802.
46
CAPÍTULO II – O DIREITO INTERNACIONAL COMO A
RESULTANTE DA INTERAÇÃO ENTRE AS DEMANDAS DAS
ESFERAS POLÍTICAS DOMÉSTICA E INTERNACIONAL
Como discutido anteriormente, o movimento de expansão não uniforme do Direito
Internacional tem sido amplamente analisado pela doutrina, na medida em que tem alterado
significativamente os padrões de relacionamento na esfera internacional. A partir desse
panorama, fora analisada, no primeiro capítulo, a questão da tensão entre unidade e
fragmentação do DI. Conforme argumentado, os teóricos tradicionais tendem a partir de uma
premissa equivocada, de acordo com a qual a dinâmica do Direito Internacional seria fundada
na mesma matriz que aquela dos ordenamentos nacionais. Uma vez contestado esse
postulado, fora colocada uma outra concepção acerca da natureza do ordenamento jurídico
internacional, pela qual se propôs uma interpretação alternativa para o referido movimento.
Considerando-se que o problema central desse trabalho refere-se à
jurisdicionalização do Direito Internacional, e de seus impactos sobre a noção de seu
ordenamento jurídico, faz-se necessária a colocação de um arcabouço teórico que seja a base
para o argumento que será defendido. Esse será, portanto, o objeto desse segundo capítulo,
para que se possa, no terceiro, analisar de forma mais detida a problemática ora enunciada.
A primeira parte desse capítulo traz uma discussão sobre a lógica Legalização106
.
Seu objetivo central é avaliar como se dá a opção dos Estados no sentido de regulamentar
suas relações pela via jurídica. De acordo com o argumento, essa avaliação deve ser feita com
base em três dimensões normativas distintas, a saber: obrigação, precisão e delegação. A tese
colocada é a de que a norma internacional será desenhada de acordo com as demandas
políticas específicas de um determinado ponto da agenda. É com base nisso que será
explicado, por exemplo, o movimento de especificidade normativa em função da agenda,
caracterizado no primeiro capítulo.
As análises das tradicionais teorias do Direito e das Relações Internacionais, por sua
vez, partem da premissa de que os Estados são atores unitários, e que suas decisões são
motivadas pelo chamado ―interesse nacional‖. A segunda parte do capítulo visa problematizar
justamente esse postulado. De acordo com o a tese que será exposta, a inserção do jogo
político doméstico como variável explicativa do comportamento dos Estados na esfera
internacional poderá fornecer valiosas inferências acerca da maneira pela qual as normas
106
Nos âmbitos desse trabalho, os termos legalização e juridicização serão utilizados como sinônimos.
47
jurídicas são criadas. Será, portanto, com base nesse arcabouço teórico que se desenvolverá a
discussão do terceiro capítulo.
PARTE I- LEGALIZAÇÃO: ALCANCE E LIMITES
Seção I: Legalização enquanto Dimensão de Análise
O primeiro aspecto a ser ressaltado é o seguinte: as relações internacionais se
pautam em uma série de instituições e práticas sociais, dentre as quais o Direito é apenas uma.
Shaw, por exemplo, coloca que as normas jurídicas devem se distinguir de meros
compromissos, que não têm caráter (juridicamente) vinculante, e são decorrentes da cortesia
ou da moralidade107
. Várias outras formas de padronização de comportamento têm
repercussões políticas consideráveis, sem, no entanto, serem consideradas Direito
Internacional. Nos dizeres de Shelton:
Por certo, esforços para resolver problemas sociais não estão invariavelmente na
forma de lei em qualquer comunidade. Sociedades se empenham em manter a ordem,
prevenir e resolver conflitos, e assegurar a justiça na distribuição e uso de recursos
não apenas através da lei, mas através de outros meios de ação. Questões como
justiça podem ser tratadas através de mecanismos de mercado e caridade privada,
enquanto a resolução de conflitos pode ser feita através da educação e informação,
ou ainda a partir de negociações alheias às instituições legais. A manutenção da
ordem e de valores sociais pode ocorrer a partir de sanções morais, exclusão,
concessão de benefícios, bem como pelo uso de penalidades legais e incentivos. Na
arena internacional, tal qual em outros níveis de governança, o Direito é uma forma
de controle social ou afirmação normativa, mas prescrições de comportamento
também se originam da moralidade, cortesia, e costumes sociais que refletem os
valores da sociedade. Eles são parte das expectativas do discurso social, e o
cumprimento dessas normas é esperado, enquanto sua violação sancionada108
.
Entretanto, continua a autora, a regulamentação legal, em virtude de suas
peculiaridades, assumiu o papel de principal instrumento de resposta a problemas sociais no
último século. Isso porque ela representa as necessidades e consagra os valores de uma
determinada sociedade. Além disso, o tipo de linguagem do Direito, especialmente a escrita,
tem um grau de precisão maior, o que eleva as expectativas em relação à ação futura dos
107
SHAW, Malcon N., International Law, 1991, p.2. 108
SHELTON Dinah. International Law and “Relative Normativity”, 2003, p.147, tradução do autor.
48
agentes e provê maior nível de confiança entre eles109
. O que se argumentará é que a escolha
por essa forma de regulamentação representa uma série de custos e vantagens para os atores
internacionais, e que será a partir dessa estrutura de custos que eles optarão por se valer (ou
não) dela. Nesse sentido, a própria criação do DI está intimamente ligada à dimensão política,
uma vez que é significativamente afetada por interesses políticos, poder e instituições. O
relacionamento entre Direito e Política é recíproco: a legalização (criação de normas de DI)
também atua sobre os processos políticos e seus resultados110
. A heterogeneidade presente nas
normas jurídicas internacionais deve, assim, ser analisada à luz dessa relação. A relatividade
normativa111
se coloca, nesse sentido, como uma variável explicativa de suma importância
para a compreensão do fenômeno da legalização, na medida em que esta é reflexo do atual
cenário das relações internacionais.
O que se propõe, destarte, é a compreensão do DI a partir de um contexto social
amplo, que é ao mesmo tempo condicionante e condicionado pela emergência de normas com
essa natureza. A legalização seria, portanto, uma particular forma de instituição internacional,
resultante de decisões sobre assuntos específicos da agenda internacional, que objetiva a
imposição de constrangimentos legais a governos. A idéia central é a de que a escolha por
esse tipo específico de forma de regulação de comportamento implica uma alteração na
estrutura de custos políticos112
de cada um dos envolvidos.
A relação entre relatividade normativa e legalização será feita a partir do próprio
conceito de legalização, que será dividido em três dimensões de análise: o nível de obrigação
estabelecido pelas normas internacionais, seu grau de precisão e o nível de delegação
existente em relação a funções de interpretação, monitoramento e implementação das
decisões. A partir delas, poder-se-á criar uma tipologia em que cada um desses níveis será
classificado entre alto e baixo; quanto maior o grau de obrigação, precisão, ou delegação,
mais legalizada será uma determinada norma113
. Essa classificação será feita
independentemente com relação a cada um das dimensões de análise, o que fortalecerá o
potencial explicativo do conceito.
109
SHELTON Dinah. International Law and “Relative Normativity”.2003 In.: EVANS, Malcolm D.
International Law, pp.147-148. 110
GOLDSTEIN, Judith et all Introduction: Legalization and World Politics et all 2000, p.387. 111
Ver discussão a esse respeito no primeiro capítulo. 112
GOLDSTEIN, Judith et all Introduction: Legalization and World Politics et all 2000, p.386. 113
Há uma edição especial da Revista International Organization que é justamente dedicada à análise do
conceito de legalização e seu impacto (político) em diversas áreas da agenda internacional (IO, 54, 3, Summer
2000). Os principais conceitos e inferências dessa parte do capítulo foram feitos com base nos artigos dessa
revista.
49
É importante se destacar que em nenhum momento há a afirmação de que a
legalização representa uma forma superior de institucionalização. Como dito, ela é apenas o
resultado de uma escolha racional dos atores, que dado um determinado contexto de interação
social optam por estabelecer constrangimentos legais. Entretanto, a explicação de como e
porque eles resolvem alterar o nível de legalização de uma norma é de suma importância.
Como ressalta Goldstein:
Esses movimentos incluem a formalização de práticas costumeiras ou entendimentos
informais, a adoção de regras sistemáticas para cristalizar e codificar práticas, na
medida de sua evolução, e o reforço da delegação para aumentar o nível de poder e
independência de um tribunal formado por terceiros114
.
Dessa forma, o nível de relatividade de uma determinada norma corresponderá a seu
grau de legalização. Através da contraposição entre a relatividade da norma e as vicissitudes
de um determinado assunto da agenda internacional é que se procederá a análise do objeto
desse trabalho. Antes de discutir mais detidamente o conceito de legalização a partir de cada
uma de suas dimensões, mister se faz a exposição de alguns pressupostos e hipóteses que se
assume ao escolhê-lo como instrumento de análise115
.
a) A legalização é uma forma específica de institucionalização.
Como dito anteriormente, a decisão de se criar normas jurídicas internacionais é
tomada levando-se em conta uma vasta gama de outros padrões de relacionamento possíveis
no cenário mundial, ou seja, a opção de se criar constrangimentos legais é feita levando-se em
consideração os custos e vantagens resultantes desse tipo de regulamentação.
b) Instituições legalizadas podem ser explicadas a partir de seu valor
funcional, das preferências e incentivos aos atores políticos internos e do reforço de
normas internacionais específicas.
O valor funcional da legalização está intimamente ligado às características de uma
norma: ela possibilita uma maior previsibilidade do comportamento dos atores, e permite que
se estabeleça ex ante qual serão as conseqüências de sua implementação para cada um dos
atores. Elas implicam, portanto, em maior grau de confiança com relação ao que fora
pactuado, além de significarem uma redução dos custos transacionais.
114
GOLDSTEIN, Judith et all Introduction: Legalization and World Politics, 2000, p.388, tradução do autor. 115
Ver GOLDSTEIN, Judith et all Introduction: Legalization and World Politics, 2000, p.396-399.
50
Como normas de DI identificam com mais clareza os resultados de sua
implementação, sabe-se, internamente, quais são os grupos que terão benefícios ou custos
com sua adoção. Elas têm, portanto, o condão de influir na arena política doméstica, que passa
a ser variável indispensável para a análise desse fenômeno.
O reforço de algumas normas internacionais também é elemento chave para se
explicar a legalização. O fato de determinados atores acreditarem que determinada norma
deve ser cumprida em virtude de conter dispositivos que devem ser observados e consagrados
pela sociedade internacional, tem o condão de elevar seu nível observância. Ou seja, a partir
do momento em que uma norma atinge um patamar de legitimidade alto, isso afeta a própria
estrutura de custos que se coloca durante a tomada de decisões de um determinado ator, na
medida em que pode alterar suas preferências116
.
c) O cumprimento de obrigações, a efetividade de uma instituição e o
aumento da cooperação internacional podem não coincidir, em parte devido efeitos
domésticos da legalização.
Como ressaltado anteriormente, a escolha pela legalização implica em uma série de
custos e constrangimentos a determinados atores, que poderiam não existir ou não serem
previsíveis por outra forma de regulação. Portanto, a previsibilidade que essas normas
provêem ao sistema pode ensejar seu descumprimento e sua inefetividade caso despertem
pressões de importantes grupos domésticos nesse sentido.
d) Os efeitos da legalização na política mundial no longo prazo dependerão
de sua heterogênea disseminação, que dependerá da evolução das normas
internacionais, suas conseqüências para a política doméstica e transnacional, e os
benefícios auferidos por atores chave.
Novamente deve-se ressaltar que não se argumenta, nesse trabalho, que há uma
tendência indiscutível no sentido da legalização, ou que essa seja uma forma superior de
regulação de comportamento. O que se pode afirmar, entretanto, é que sua expansão ou
retração, e o nível de homogeneidade com que isso ocorrerá nas diversas áreas da agenda
dependerá de seus efeitos sobre atores domésticos e transnacionais, que em última análise são
os responsáveis pela escolha do modo de regulamentação de seu comportamento.
Por fim, cabe destacar que a escolha, em um determinado momento, por um baixo
nível de legalização, pode levar, no longo prazo, a um grau maior de institucionalização. Isso
116
Ver, nesse sentido, MARTIN, Lisa L., & Beth A. Simmons. Theories and Empirical Studies of International
Institutions, 1998; SHELTON, Dinah. International Law and “Relative Normativity”, 2003, p. 148.
51
vai depender de como ela afetará os ganhos dos atores. É assim que normas pouco legalizadas
(soft law) podem dar ensejo a criação de regimes mais legalizados. Exemplo disso se dá no
caso do regime ambiental, que iniciou com normas meramente programáticas (como as da
Convenção de Estocolmo) e hoje já assiste a esforços de produção de hard laws (como no
caso do Protocolo de Kyoto).
1- O conceito de legalização
Legalização refere-se a um arranjo específico de características que instituições
podem (ou não) possuir.117
Essas características serão analisadas a partir de três dimensões.
A primeira delas é a da obrigação, e se relaciona ao fato de estarem os atores obrigados por
uma série de normas e compromissos. Obrigação, nesse caso, somente ocorre na medida em
que há vinculação jurídica entre as partes, ou seja, seu comportamento está submetido a
regras, procedimentos e ao discurso do Direito Internacional, e muitas vezes da também lei
doméstica.118
A dimensão da precisão está ligada à existência de ambigüidades na definição
das condutas que regulamentam. Por fim, a delegação se refere à competência que é dada a
uma terceira parte para implementar, interpretar e aplicar as normas, resolvendo conflitos e
até mesmo criando novas obrigações às partes119
.
O que se deve destacar é que a análise desses fatores será feita com vistas às
características das normas e procedimentos, e não com relação a seus efeitos. Não se discute,
portanto, o nível de efetividade dessas normas, se são ou não implementadas pelos Estados.
Isso ocorre em virtude do próprio objeto dessa pesquisa, qual seja, o de se compreender o
motivo pelo qual atores optam por se submeter a um determinado tipo de normas, criando
ainda um órgão específico para sua apreciação. A questão da efetividade não é relevante,
portanto, para o tipo de análise aqui proposta. Outra observação que merece ser feita é a de
que esse conceito ultrapassa a reducionista idéia de que a lei pressupõe a existência de um
ente soberano com poder coercitivo120
.
117
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, p.401, 2000, tradução do autor. 118
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, p.401, 2000, tradução do autor. 119
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, p.401, 2000. 120
Como uma situação como essa é no mínimo improvável no cenário internacional, esse tipo de perspectiva
pode explicar o motivo da tradicional desconfiança que se tem em relação ao papel do DI. A idéia, entretanto,
não é propor uma definição do que ―realmente‖ venha a ser uma norma de Direito Internacional; a
instrumentalidade do conceito está muito mais relacionada com a análise das características do compromisso que
se criou e com os fatores que levaram a essa escolha. ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization,
2000, pp. 402-403.
52
Como dito anteriormente, os elementos que compõem o conceito são independentes,
e variam do grau mais ―fraco‖ ao mais ―forte‖. Dessa forma, conceitualmente a escolha que se
coloca para os autores de uma norma se refere à combinação de qualquer nível de obrigação,
precisão e delegação para produzir uma instituição adequada a suas necessidades
específicas.121
Pode-se, então, propor a classificação das normas em tipos ideais, que variam
da forma mais forte (hard law) à mais fraca (soft law).
TABELA 2.1. Formas de legalização internacional
Tipo Obrigação Precisão Delegação Exemplos
Tipo ideal:
hard law
I Alta Alta Alta Corte Européia, Acordo TRIPs da OMC,
Convenção Européia de Direitos Humanos, TPI
II Alta Baixa Alta OMC – tratamento nacional, leis antitruste da
Comunidade Econômica Européia
III Alta Alta Baixa Tr. de controle de armas entre EUA e Rússia,
Protocolo de Montreal
IV Baixa Alta Moderada Comitê para o Desenvolvimento Sustentável da
ONU (Agenda 21)
V Alta Baixa Baixa Convenção de Viena para proteção da Camada de
Ozônio, Convenção Européia Minorias Nacionais
VI Baixa Baixa Moderada Agencias especializadas da ONU, Banco Mundial
VII Baixa Alta Baixa Ato final de Helsinki, princípios florestais não
vinculantes, padrões técnicos
VIII Baixa Baixa Baixa G7, esferas de influência, balança de poder
Tipo ideal:
anarquia
Fonte: ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.406.
A tabela 2.1 expõe uma relação de tipos ideais a partir de uma classificação binária
(alta/baixa) de cada uma das dimensões da legalização. Eles estão organizados de ordem
decrescente, sendo que o tipo I tem características de hard law ao passo que o VIII se
aproxima da ausência de qualquer estrutura normativa, aqui denominada anarquia.
No tipo I pode ser classificada a maioria das normas da EU, como também algumas
das normas comerciais do sistema OMC. Os tipos II e III representam situações em que se
121
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.404, tradução do autor.
53
tem um caráter relativamente alto de legalização. De se destacar que as normas classificadas
como II podem atingir o mesmo nível de legalização percebido no tipo I, na medida em que a
delegação a uma terceira parte pode suprir sua imprecisão. No tipo III, por exemplo, temos o
Protocolo de Montreal sobre a degradação da camada de ozônio (1987), que, apesar de definir
com precisão as obrigações ali consagradas, não delega a uma terceira parte a competência
para apreciá-las. Como esse é um elemento central para a legalização, deve-se concluir que
esse tipo normativo é menos legalizado que os outros dois.
Na medida em que se procede a análise dos outros tipos ideais, às vezes se complica
a tarefa de determinação dos níveis de legalização: é difícil de se afirmar, por exemplo, que
em todos os casos do tipo IV as normas serão mais legalizadas que as do tipo V. Muitas vezes
sutis diferenças somente são percebidas caso a caso. Também não é comum se perceber
delegação a terceiros quando se tem um nível baixo de obrigação; normalmente o que se tem
nesses casos são organismos quasi-jurisdicionais de cunho administrativo (daí o uso da
classificação ―moderada‖). Muitos desses arranjos intermediários acontecem em casos nos
quais a soberania e autonomia dos atores são muito importantes, pelo que altos níveis de
legalização seriam inaceitáveis.
Nos níveis VI e VII temos casos em que as normas não criam vínculos jurídicos,
mas nos quais as partes se submetem a um alto nível de obrigação ou admitem a delegação de
autoridade a terceiros para que esses implementem princípios gerais. Normalmente esses são
casos em que a cooperação é algo benéfico para os atores, ou seja, eles tendem a cumprir o
combinado porque as expectativas de que o outro também o faça é grande. Assim, a criação
de obrigações jurídicas seria inócua.
O tipo VIII quase se aproxima da ausência de padronização de comportamento. Não
há semelhanças com instituições legais sobre qualquer aspecto. O concerto europeu, por
exemplo, representava um instável equilíbrio de poder de cunho pragmático e permeado por
relações diplomáticas. As esferas de influência da URSS e dos EUA durante a Guerra Fria
também eram muito imprecisas, as obrigações eram em sua maioria tácitas e pouco padrão
institucional existia para abarcá-las.122
2- As dimensões da Legalização
Obrigação
122
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.405-407.
54
De acordo com o que vem sendo discutido, normas legais são aquelas que vinculam
juridicamente o comportamento dos sujeitos. Elas se diferenciam de obrigações resultantes
apenas da coerção, moralidade, compromisso.123
É a partir da dimensão da obrigação que se
pode perceber a intenção (ou não) dos atores de se submeterem a normas de Direito
Internacional. Ela reflete, portanto, os efeitos causados pela escolha de um nível maior ou
menor de vinculação.
Ao criarem normas de DI os atores devem observar um conjunto normativo muito
mais abrangente do que aquela simples regra comportamental que acabaram de estabelecer: o
vínculo jurídico implica, como vem sendo discutido, em uma série de princípios e valores
universais que balizam tanto a criação quanto a interpretação e aplicação de seus institutos.124
Por terem características peculiares, as normas legais internacionais possuem, por
exemplo, um conjunto próprio de fontes, ou seja, há a delimitação de regras procedimentais
para sua criação. Há, inclusive, a determinação de meios de integração de eventuais lacunas
no ordenamento internacional, como a equidade e a aplicação de fontes subsidiárias.125
Quanto aos requisitos de validade e vigência, há ainda o princípio da relatividade126
, da
irretroatividade e uma série de regras técnicas de caráter procedimental para que sejam
reconhecidas. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT) de 1969, por
exemplo, consagra normas relativas ao procedimento de conclusão de tratados127
, reservas128
e
emendas129
.
O sistema legal internacional possui ainda um tratamento especial para os casos de
descumprimento. Nesses casos, via de regra, somente o Estado afetado tem legitimidade para
reclamá-lo. A Carta da ONU prevê uma série de meios pacíficos de solução de controvérsias
dos quais as partes litigantes devem se valer.130
Há também uma série de previsões que
isentam o Estado de responsabilidade em caso de descumprimento, como o Estado de
Necessidade e a cláusula rebus sic standibus.131
Esses institutos, apesar de aparentemente
implicarem certa flexibilidade nos compromissos legais, acabam por reforçá-los, na medida
123
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.408. 124
Ver KOSKENNIEMI, Martti. What is International Law for?, 2003. 125
Ver, por exemplo, art.38 do Estatuto da CIJ. 126
Via de regra uma norma só vincula o Sujeito que participou de sua elaboração ou manifestou posterior
consentimento nesse sentido. 127
CVDT, art.6º a art.18. 128
CVDT, art.19 a art.23. 129
CVDT, art.39 a art.41. 130
Ver art.33 da Carta. 131
CVDT, arts. 61 e 62.
55
em que conferem um caráter específico a esse conjunto de normas. Para os casos de danos
oriundos de violação de regras de DI, há a responsabilização internacional de seus sujeitos132
,
que enseja a obrigação de reparação e abre até mesmo a possibilidade de retaliação133
por
parte dos afetados (como por exemplo no caso de violações a normas do âmbito da OMC).
Como se pode perceber, a utilização de normas de Direito Internacional implica na
adoção de um discurso peculiar, a partir do qual se tem uma regulamentação especial para
uma série de fatos relativos ao estabelecimento e (não) cumprimento dos acordos.134
TABELA 2.2 Indicadores de obrigação
Alta
Obrigação incondicional; linguagem jurídica e outros indícios de que a norma é juridicamente vinculante
Tratado político: condições implícitas na obrigação
Reservas nacionais em obrigações específicas; ―escape clauses‖
Hortatory obligations
Normas adotadas sem carta de plenos poderes; recomendações e guias
Explicitação da intenção de não haver vínculo jurídico
Baixa
Fonte: ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.410.
A tabela 2.2 traz alguns indicadores a partir dos quais pode-se identificar o nível de
obrigação de uma determinada norma. Como exemplo de diplomas com alto grau de
obrigação, tem-se o artigo 24 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, que
dispõe que os arquivos e documentos da Missão são invioláveis, em qualquer momento e
onde quer que se encontrem”. Essa convenção, como um todo, obedece às regras
internacionais para a celebração de tratados, é redigida a partir de uma linguagem jurídica, é
intitulada ―Convenção‖ e está de acordo com normas costumeiras internacionais. No outro
extremo da tabela tem-se acordos como os celebrados pelo FMI quando da liberação de
empréstimos, que prevêem expressamente que não são juridicamente vinculantes.135
132
Apesar de incontestável, há muitas controvérsias a respeito do alcance desse conceito, que vem sendo
modificado e ampliado principalmente em virtude dos trabalhos da Comissão de Direito Internacional da ONU.
Ver, a esse respeito, PELLET, Alain; et al. Direito Internacional Público, 2004; SHAW, Malcon N.
International Law, 1991; SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emergência,
obrigações e responsabilidades, 2003. 133
De se destacar que essa possibilidade também se sujeita a uma série de princípios, como o da
proporcionalidade e limitações ao uso unilateral da força. 134
Para discussão mais detida acerca dos princípios do DI, ver BROWNLIE, Ian. Princípios de direito
internacional público, 1997. 135
Para discussão mais detida do caráter desses acordos, ver MAZZUOLI, Valério de O. Direito Internacional:
Tratados e Direitos Humanos Fundamentais na Ordem Jurídica Brasileira, 2001
56
Nesse sentido, atores utilizam muitas técnicas para variar a obrigação legal entre
esses dois extremos, criando constantemente surpreendentes contrastes entre forma e
substância.136
Estados podem, por exemplo, se valer de ―escape clauses‖, pelas quais se
eximem do cumprimento de determinadas normas com base em expressões vagas e que dão
ampla margem para interpretação (ex.: ―interesse nacional‖, ―ameaça à soberania‖, etc).
A definição do arranjo normativo em uma ou outra direção vai depender dos
interesses dos atores. Deve-se destacar, ainda, que as três dimensões, apesar de poderem ser
analisadas independentemente, têm interferências umas sobre as outras, de forma que pode ser
difícil identificar a diferença no grau de obrigação de uma norma nos casos em que não há
delegação, por exemplo.137
As repercussões da escolha por níveis mais altos ou baixos de
obrigação vão depender das necessidades que visam suprir; há casos em que soft laws
emergiram em cenários nos quais um nível mais alto de legalização era inicialmente
inconcebível e acabaram por ser a tônica do relacionamento dos atores a partir de então. Esses
efeitos serão discutidos na próxima seção do capítulo.
Precisão
Uma regra precisa especifica claramente e sem ambigüidades o que é esperado de
um Estado ou outro ator (tanto em termos de objetivos quanto dos meios para atingi-lo) em
uma determinada circunstância.138
A precisão delimita, portanto, os limites de uma
interpretação razoável.Além disso, quando inserida em um conjunto normativo maior, essa
norma deve guardar conformidade com as outras com as quais se relaciona, de modo a prover
coerência ao ordenamento.
A escolha por um maior ou menor nível de precisão implica em uma maior ou
menor delimitação dos comportamentos aceitáveis. Mais do que isso: normas precisas trazem
ex ante essa previsão, ao passo que normas menos precisas, mais programáticas, permitem
que essa identificação seja feita ex post, seja a partir da prática reiterada de certos atos, seja
pela decisão de um órgão jurisdicional ao qual é delegada a competência para sua
interpretação e aplicação.
É importante destacar que na maioria das áreas das relações internacionais corpos
jurisdicionais ou quase-jurisdicionais não existem ou são pouco utilizados. Isso implica que
136
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.411. 137
Isso porque, mesmo no caso de ser a norma juridicamente vinculante, sua observação dependerá da
apreciação individual do sujeito atingido pela por ela. 138
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.412, tradução do autor.
57
quem interpretará e aplicará a norma serão os próprios atores que a criaram, e que são ao
mesmo tempo seus destinatários. Dessa forma, a dimensão da precisão será de suma
importância, na medida em que delimita o escopo plausível de interpretações e
comportamentos por parte de seus sujeitos.
Muitas das regras de DI têm elevado grau de precisão, e seu número vem
aumentando gradativamente nos últimos anos. Exemplos disso são os acordos celebrados no
âmbito da OMC, acordos ambientais como os Protocolos de Kyoto e Montreal. Outros
diplomas são esforços explícitos de codificar e promover o desenvolvimento progressivo do
costume internacional: As Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados e Relações
Diplomáticas, e partes importantes da Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar são
decorrentes justamente dessa tendência. Há ainda um outro movimento que merece destaque:
vários instrumentos com baixo nível de obrigação se mostram significativamente precisos e
densos, como a Declaração para o Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Agenda 21, ambas
celebradas no Rio de Janeiro (1992). Eles podem ser explicados pela crença no fato de que
elevados níveis de precisão reforça seu valor político e normativo.139
Não se pode negligenciar, contudo, o fato de que vários outros diplomas normativos
ainda são vagos e gerais. O acordo acerca da regulamentação trabalhista, no âmbito do
NAFTA dispõe, por exemplo, que as partes devem prover altos padrões de trabalho. O artigo
VI do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, por sua vez, afirma que as partes
devem entabular, de boa-fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data
próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear. Outros tratados
dispõem que os Estados devem ―negociar‖ ou ―consultar‖, sem, no entanto, especificar os
procedimentos pelos quais isso deve ser feito. Nesses casos aos atores é permitido um alto
grau de discricionariedade, não sendo possível, muitas vezes, estabelecer nem um conjunto
mínimo de interpretações aceitáveis. Como se argumentará na próxima seção do capítulo, isso
acontece muito menos em virtude de falhas ou erros, mas muito mais por escolhas
condicionadas pela conjuntura doméstica e internacional.140
TABELA 2.3 Indicadores de Precisão
139
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.414. 140
Ver também ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International
Governance, 2000.
58
Alta
Regras determinadas; pouca margem à interpretação
Número significativo (mas limitado) de interpretações
Ampla margem de discricionariedade
―Padrões‖: normas programáticas cujo significado somente se completa em situações específicas
Impossibilidade de se determinar a conduta apropriada
Baixa
Fonte: ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.415
A partir dos indicadores propostos na tabela 2.3 pode-se auferir o grau de precisão
de uma determinada norma. Cabe, por fim, uma observação: como dito anteriormente, um
baixo nível de precisão não necessariamente implica em alto nível de discricionariedade, na
medida em que ele pode ser compensado pela atuação de um órgão (quasi) jurisdicional que
fixe, a posteriori, o seu significado.
Delegação
A última dimensão da legalização refere-se ao grau de competência e autoridade que
é dado a uma terceira parte – seja ela uma corte, um tribunal arbitral ou administrativo – para
que essa possa interpretar, aplicar e implementar determinados acordos. O nível de
legalização, quanto a essa esfera, pode variar de acordo com a forma de submissão de
demandas a esses órgãos, a forma de sua implementação, a abrangência de sua competência,
etc.141
Essa dimensão não deve, contudo, se limitar à análise da delegação de competência
apenas para a solução de conflitos. Não se pode negligenciar a existência de órgãos aos quais
é delegada a autoridade para elaborar normas (mesmo que imprecisas), implementar outras já
estabelecidas e facilitar o cumprimento de outras.142
TABELA 2.4. Indicadores de Delegação
a. Resolução de Conflitos
Alta
Cortes: decisões vinculantes; jurisdição geral; acesso privado direto; competência para interpretação e
integração
Cortes: jurisdição, acesso ou autoridade normativa limitada ou consensual
Arbitragem obrigatória
141
Essa é a dimensão mais importante para a compreensão do objeto dessa pesquisa, e será detalhadamente
discutida na última seção desse capítulo. 142
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.417.
59
Arbitragem não obrigatória
Conciliação, mediação
Barganha institucionalizada
Barganha puramente política
Baixa
b. Capacidade de criar e implementar normas
Alta
Regulamentações vinculantes, execução centralizada
Regulamentações vinculantes com consentimento
Políticas internas vinculantes, legitimação para execução descentralizada
Padrões de coordenação
―Draft Conventions‖, monitoramento e publicidade dos atos
Recomendações, monitoramento confidencial
―Declarações normativas‖ (Normative statements)
Fórum para negociações
Baixa
Fonte: ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p. 416.
Como refletido pela tabela 2.4a, o nível de delegação para a resolução de conflitos
pode variar entre nenhuma delegação (como nos modos políticos de solução de
controvérsias), passando por modos institucionalizados de barganha (como mediação e
conciliação, disponíveis na OMC e a partir da Convenção sobre Lei do Mar) e pela arbitragem
não obrigatória (como era o caso do antigo GATT). No outro extremo, temos órgãos
jurisdicionais como a Corte Européia de Justiça e a Corte Européia de Direitos Humanos.
Deve-se observar, destarte, que quanto maior o grau de delegação maior a
necessidade de que as decisões tomadas por esse corpo independente sejam condicionadas por
regras determinadas anteriormente pelos atores. Isso porque eles não abririam mão de sua
autonomia e soberania para que se subjugassem à decisão de um órgão que agisse sem
nenhum tipo de controle. O terceiro atua, portanto, na medida da competência e de acordo
com o procedimento decisório preestabelecido.
Alguns órgãos internacionais têm competência para criar normas. É o caso da
Comissão da EU e de algumas Agências Especializadas da ONU, por exemplo. Elas
normalmente produzem regras que têm sua obrigatoriedade condicionada ao consentimento
dos Estados, ou que definitivamente não têm esse caráter. Em níveis mais baixos de
delegação, há ainda órgãos como a OIT e a OMPI, que têm competência para criar ―Draft
Conventions‖ e regras não obrigatórias, que alcançam inclusive atores privados. Outros
órgãos, como o Conselho de Segurança, têm competência para criar medidas obrigatórias para
todos os Estados.143
143
Mas não se pode negar que muitos órgãos, apesar de não terem competência legal para criar normas
vinculantes conseguem com elas sejam cumpridas devido à sua capacidade de oferecer benefícios a Estados ou
até mesmo a atores privados. Isso é o que ocorre muitas vezes com o FMI e o Banco Mundial, por exemplo.
60
Há ainda órgãos e agências que têm a incumbência de implementar diretivas
normativas previamente estabelecidas. Como exemplo desses casos pode-se citar o Programa
Ambiental das Nações Unidas, a OMS e o Banco Mundial. Esse último atua de forma a
disseminar políticas de impacto ambiental e tratamento de indígenas, dentre outros.144
O nível de delegação pode implicar na inserção de novos atores no cenário político,
alterações nos padrões de comportamento dos Estados e até mesmo ―empoderamento‖ de
atores privados. Esses efeitos serão analisados na última seção desse capítulo. Cabe destacar,
por fim, que resolução de disputas, adaptação ou desenvolvimento de novas regras,
implementação de acordos anteriores e respostas à violação têm, cada uma delas,
repercussões políticas próprias, que ajudam a reestruturar a tradicional política
interestatal.145
O argumento que vem sendo exposto é, portanto, o de que instituições legais se
diferem de outras formas de regulamentação de comportamento. Elas têm características
próprias, identificáveis a partir das três dimensões propostas, que implicam em diferenças
metodológicas, procedimentais, e até mesmo discursivas. Dessa forma:
Diferentes atores têm acesso ao processo, e devem se valer de argumentos diferentes
daqueles que utilizariam em um contexto não legal. Decisões legais, por sua vez,
devem ser baseadas em fundamentos aplicáveis a todos os litigantes em situação
semelhante, e não apenas às partes de uma determinada disputa.146
Diante de determinadas circunstâncias, aos atores cabe a escolha entre se submeter
ou não a normas com esse caráter. Deve-se atentar para o fato de que a realidade é muito mais
complexa do que qualquer simplificação analítica, pelo que muitas vezes o que se percebe na
prática são institutos que têm apenas algumas características da legalização.
Seção II- Legalização e política internacional
O conceito de legalização e suas dimensões de análise foram expostos na seção
anterior. A primeira parte do capítulo foi dedicada ao estudo do atual contexto no qual se
desenvolvem as relações internacionais (cenário em transição). Como visto, o Direito
144
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.417. 145
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.418, tradução do autor. 146
ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000, p.419, tradução do autor.
61
Internacional atravessa um momento de expansão não uniforme, no qual assistimos
instituições com alto nível de legalização convivendo com outras pouco ou nada legalizadas.
A presente seção tem como objetivo analisar essa expansão das normas jurídicas
internacionais à luz do conceito de legalização proposto anteriormente. O intuito é, portanto,
oferecer uma explicação para a legalização, que possa inclusive abarcar o porque esse
movimento ocorre de forma não uniforme em cada área da agenda internacional. Para tanto,
segue uma análise do tipo normativo mais legalizado, a hard law. O que se perceberá é que
essas normas reduzem os custos de transação, reforçam a credibilidade de seus compromissos
conseguem instrumentos que dão menor margem para comportamentos desertores. Ao mesmo
tempo, elas implicam em custos de soberania, de monitoramento, dentre outros.147
Ao optarem por arranjos em que uma ou mais dimensões apresentam nível mais
baixo, os atores criam normas menos legalizadas, as soft laws. 148
Elas são mais fáceis de
serem criadas do que as hard laws, porque implicam em menores custos de contratação,
monitoramento e há menor constrangimento em relação ao comportamento dos atores. São,
portanto, uma alternativa viável para os casos em que a soberania é elemento crítico. Além
disso, as soft laws podem iniciar um processo de aprendizagem e conscientização, que a partir
do empoderamento de alguns grupos pode levar a mudança de práticas sociais. Nesses casos,
essas normas podem inclusive ser modificadas para arranjos mais legalizados ou se
transformarem em costume internacional.149
1- Hard Law: vantagens e desvantagens
a) Credibilidade dos Compromissos
A falta de uma instituição internacional centralizadora, que detenha o uso legitimo
da força para forçar o cumprimento de suas normas é apontada como principal fator
impeditivo da construção de acordos sólidos no cenário internacional. Os diplomas
147
Ver ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.422. 148
Como destacado anteriormente, a escolha entre hard e soft law não é binária. Atores podem criar vários
arranjos diferentes, em que se tem uma maior ou menor variação em cada uma das dimensões. Os efeitos da
escolha por um maior ou menor nível de legalização é que serão objeto dessa seção. 149
Ver, por exemplo, o caso de várias normas de direito ambiental, em que várias convenções de caráter geral
como a de Estocolmo acabaram por desenvolver costumes a alterar práticas, levando à criação de diplomas mais
legalizados como o Protocolo de Kyoto. A esse respeito, SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional
do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades, 2003, e SANDS, Philippe. Principles of
International Environmental Law, 2003.
62
normativos do ordenamento interno têm maior credibilidade porque seus sujeitos podem se
valer do poder estatal para exigir seu cumprimento. Por certo que nem mesmo as hard laws
têm essa característica. Entretanto, a conclusão de que elas são por esse motivo inócuas não é
verdadeira: a legalização é um dos principais métodos pelos quais os Estados podem
aumentar a credibilidade de seus pactos.150
A partir das dimensões de precisão e delegação as normas legalizadas diminuem
dramaticamente a possibilidade de auto-interpretação por parte dos atores. A precisão, além
de oferecer um limite objetivo a comportamentos oportunistas ainda deve ser analisada à luz
de todos os princípios do ordenamento jurídico internacional, o que condiciona ainda mais o
escopo de ações plausíveis.
Além disso, normas de DI, por muitas vezes, não são tomadas isoladamente: elas se
integram em regimes que regulamentam determinados assuntos. Assim, a violação de regras
específicas pode repercutir de forma negativa, podendo, em último caso, comprometer todo o
regime. Isso eleva enormemente os custos de um comportamento desertor. Um
comportamento como esse pode implicar, ainda, danos à reputação do ator que viola as
normas, fazendo com que ele tenha problemas em todos os outros acordos jurídicos que
celebrou (que representam quase a totalidade dos acordos internacionais). Dessa forma, esse
agente pode comprometer sua capacidade de pactuar, na medida em que perde a credibilidade
frente aos outros. 151
Se considerarmos que é no DI que estão os princípios basilares do
relacionamento interestatal152
, o custo de violação de determinadas normas pode se
exponenciar, na medida em que ela enfraquece o sistema legal internacional153
, e pode
comprometer, no longo prazo, todo o padrão de relacionamento da sociedade internacional.
A dimensão da delegação pode ainda oferecer alternativas, mesmo que precárias,
que permitem certa centralização coercitiva, que pode legitimar uma ação que de outra forma
não seria viabilizada154
. No âmbito do órgão de solução de controvérsias da OMC, por
exemplo, um Estado prejudicado pode conseguir autorização legal para impor ao outro
150
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.426, tradução do autor. 151
Ver, a esse respeito, KEOHANE, Robert O. After Hegemony. Cooperation and Discord in the World Political
Economy, 1984. 152
Como, por exemplo, o princípio da soberania, do reconhecimento de Estados, da jurisdição sobre o próprio
território, não intervenção, proibição do uso da força nas relações internacionais, etc. 153
Com a expansão do processo de legalização, mesmo que de forma não uniforme, esse sistema fica ainda mais
consistente e integrado, fato que aumenta ainda mais os custos de reputação resultantes da violação de uma
norma específica. 154
O conceito de responsabilidade internacional é, nesse caso, crucial. Ele acaba por legitimar a reclamação do
Estado que se diz afetado, impondo ao violador o dever de reparar o dano por ele causado. Esse conceito vem
passando por drásticas modificações, que fazem com que seu alcance fique cada vez mais abrangente. Ver nota
de rodapé número 84, nesse capítulo.
63
medidas compensatórias.155
Pode-se criar, ainda, órgãos que tenham competência para
determinarem por si só sanções a comportamentos ilícitos, desde que observados os limites de
seus acordos constitutivos, como é o caso do Conselho de Segurança e de algumas
instituições financeiras.
O nível de credibilidade de determinados acordos pode se elevar consideravelmente
na medida em que eles passam a ser incorporados pelo ordenamento interno. Quando isso
ocorre, uma violação de suas normas passa a ser também violação de uma norma interna.
Assim, os órgãos jurisdicionais internos também ficam legitimados para apreciar a demanda,
e sua implementação pode contar com instrumentos coercitivos domésticos,
independentemente da vontade do executivo.156
Isso também eleva os custos de uma ação que
viole as regras em questão, reforçando a confiança no que fora avençado.
Um exemplo desse efeito pode ser visto no caso da quebra das patentes de remédios
para a AIDS, conseguida pelo Brasil. Os Estados Unidos estavam obtendo sucesso no âmbito
da OMC alegando que a conduta brasileira violava as normas comerciais relativas à
propriedade intelectual. O governo nacional conseguiu reverter a situação, mas não com
discussões nessa arena. O Brasil conseguiu aprovar, no âmbito da OMS, uma resolução que
reconhecia o direito a tratamento da AIDS como um Direito Humano. Assim, a conduta norte-
americana passou a ser vista como uma conduta contrária a preceitos fundamentais do
ordenamento jurídico internacional. Além disso, a opinião pública dos EUA, que
tradicionalmente se mostra sensível a esse tipo de questões, se manifestou contrariamente à
postura inicial do governo, elevando ainda mais os custos de sua atuação. Dessa forma, o
governo norte-americano retirou a demanda que movia contra os brasileiros no âmbito da
OMC.157
Como argumentado anteriormente, a escolha pela legalização implica a adoção de
um determinado discurso, que torna necessária a observação de um determinado conjunto de
princípios e normas procedimentais que limitam o escopo de atuação dos agentes. Nesse
155
Os custos de se promover a mesma ação sem uma legitimação legal para isso seriam muito maiores, ou seja,
medidas de auto-ajuda, quando tomadas de acordo com o ordenamento jurídico internacional, adquirem uma
dimensão de legitimidade que de outra forma não teriam. Além disso, uma condenação em um órgão como esse
pode implicar custos políticos (de reputação) aos quais um país não se sujeitaria caso o conflito não houvesse
sido apreciado por um órgão alheio as partes litigantes. 156
Com isso, agentes privados aumentam enormemente sua capacidade de interferir na agenda, na medida em
que eles próprios passam a ser legitimados para propor demandas perante as cortes domésticas. Uma discussão
mais detida desses efeitos terá lugar na última seção desse capítulo. Ver, também nesse sentido, MARTIN, Lisa
L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, e KEOHANE, Robert O.;
MORAVCSIK, Andrew & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute Resolution: Interstate and
Transnational, 2000. 157
Esse exemplo reforça a supracitada idéia de ―canais normativos‖, na qual se admite que violações de uma
determinada norma poder ter repercussões (de reputação) negativas por todo o sistema.
64
sentido, uma vez que determinada matéria se encontra regulada por normas de direito
internacional, uma atuação de um determinado ator por meios que não legais a torna
carecedora de legitimidade, ou seja, argumentos calcados em preferências e interesses são
inócuos. Ao agir sem sustentação oriunda do sistema normativo o agente estará, portanto, se
submetendo a custos de reputação muito mais altos do que se tomassem a mesma decisão em
um contexto de não legalização.158
O caso da intervenção dos EUA no Iraque reforça essa tese. Apesar de terem agido à
revelia do sistema normativo internacional ao invadirem o referido país, os norte-americanos
se apressaram em justificar juridicamente sua ação, em um esforço de legitimação a posteriori
que se mostrou, em última análise, pouco efetivo. Essa atitude demonstra os limites do
ordenamento jurídico internacional. Ele, por si só, não foi capaz de impedir uma ação em
desconformidade com seus preceitos, mas, ao mesmo tempo, se mostrou variável importante
no cenário internacional na medida em que seu violador tenta legitimar sua ação sob o ponto
de vista legal. Sob essa perspectiva, pode-se argumentar que o Direito Internacional saiu
fortalecido do episódio.
Outro elemento que merece destaque nesse episódio é o de como a classificação159
de uma determinada ação pode ensejar conseqüências jurídicas distintas, e modificar o custo
dela para o ator. Ao mesmo tempo em que os EUA tentavam legitimar sua atuação do ponto
de vista jurídico, afirmavam também que aquilo se tratava de um caso de intervenção, e não
de Guerra. Isso porque se a ação fosse classificada da última forma, os norte-americanos
estariam violando uma série de princípios referentes ao ius in bellum e ao ius ad bellum, o que
representaria custos ainda maiores, na medida em que o valor paz é parte fundamental da
estrutura normativa pós II Guerra Mundial, e se sujeita a uma disciplina especialmente mais
severa.
De acordo com essa análise, pode-se elencar alguns casos em que altos níveis de
legalização são desejáveis. Em situações de cooperação, nas quais o ganho com a deserção
pode ser alto, uma hard law pode elevar os custos do oportunismo, minimizando a
possibilidade de que isso aconteça. Em situações de coordenação, por sua vez, os incentivos
de violação são baixos, e arranjos como esse podem se mostrar por demais custosos.160
Além
disso, em situações nas quais a violação a normas é difícil de se detectar, como nos casos de
158
Ver ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.429. 159
Essa classificação deve ser feita de acordo com o discurso e método que são peculiares a ordenamentos
legais, como já discutido previamente. 160
Para discussão detalhada sobre instituições internacionais e teoria dos jogos, ver MARTIN, Lisa L., & Beth
A. Simmons. Theories and Empirical Studies of International Institutions, 1998.
65
controle de armas, altos níveis de legalização podem vir acompanhados de provisões
centralizadas (ou não) de monitoramento, organizadas a partir da dimensão da delegação. Por
fim, instrumentos como esse podem ocorrer nos casos de blocos de países que desejam se
associar de forma bastante significativa, como acontece na OTAN e na UE. Nessas situações,
a hard law pode emergir por fatores relativos à própria formação do bloco: o desejo de se
submeter a estruturas bastante legalizadas pode, ex ante, prover credibilidade ao discurso do
agente, na medida em que implicam em baixa propensão para a defecção.161
b) Redução de Custos Transacionais
As já (amplamente) discutidas especificidades do sistema legal internacional têm
especial relevância nesse caso. Como normas jurídicas devem ser elaboradas com base em
técnicas e metodologia próprias, elas facilitam sua interpretação, aplicação e elaboração na
medida em que fixam claras balizas e procedimentos que devem ser observados.162
Novos
arranjos normativos devem, portanto, ser coerentes com uma estrutura legal pré-existente.
Dessa forma, a observação ou não de determinados valores não mais é discutida, na medida
em que a escolha pela legalização necessariamente implica em sua incidência. A delimitação
de seu conteúdo passa a ser mais fácil já que, frise-se, determinados valores devem ser
observados. Isso diminui, portanto, os custos de se atingir um consenso a seu respeito.
Ademais, procedimentos de negociação e resolução de conflitos ficam subjugados a
determinados princípios concernentes a sua interpretação e devem ser feitos por determinados
profissionais através de uma forma específica (técnica) de discurso. Assim, a existência de
órgãos (quasi) jurisdicionais de solução de controvérsias diminui os custos transacionais uma
vez que provê previsibilidade ao sistema (já que determinadas normas procedimentais deverão
ser seguidas). É nesse sentido que se pode interpretar a exigência, quando da criação da OMC,
que disputas comerciais deveriam ser resolvidas dentro da própria organização, sendo vedadas
ações unilaterais de Estados que não autorizadas por ele.
161
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
pp.429-430. 162
O papel de regimes (estruturas normativas de padronização de comportamento) na redução dos custos
transacionais – via provisão de informação, aumento da previsibilidade e dos custos de defecção – já foi
amplamente discutida doutrinariamente, especialmente nos casos de modificação desses acordos. Ver, por
exemplo, KEOHANE, Robert O. After Hegemony. Cooperation and Discord in the World Political Economy,
1984. Entretanto, essas discussões não cuidaram de tratar das especificidades do processo de legalização, tal qual
será feito nessa seção, a partir do argumento exposto por ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and
soft law in the International Governance, 2000, pp.430-431.
66
c) Mitigação de problemas de contratação incompleta
Dois fatores se mostram importantes para essa análise: o primeiro deles se refere ao
fato de que, por mais que se tente criar acordos precisos, algum grau de discricionariedade
haverá, e ele não conseguira abarcar toda a gama de possibilidades que se verificam na
realidade social. Dessa forma, esses instrumentos são, por definição, imperfeitos; pelo que
dão azo a comportamentos oportunistas. Além disso, altos níveis de precisão podem, em um
primeiro momento, se mostrar indesejáveis, na medida em que podem significar acordos
inócuos ou ainda os enrijecer sem que haja razões para tanto.163
A melhor forma de lidar com esses problemas é a delegação, pela qual se confere a
um terceiro a competência para dirimir conflitos resultantes da imperfeição originada no
momento de criação do acordo. Cabe à Corte Européia de Justiça, por exemplo, avaliar
conceitos relativos a normas de direito da concorrência, como ―práticas combinadas‖ e
―distorção da competição‖.164
Na medida em que essa interpretação é feita por um terceiro a
parir de regras claras e preestabelecidas, diminui-se enormemente o espaço para
interpretações individuais e independentes por parte dos atores, o que aumenta a
previsibilidade e confiabilidade do sistema, diminuindo os custos transacionais.
2- Soft law: vantagens e limitações
a) Redução dos custos de contratação
Apesar dos significativos efeitos de um alto nível de legalização com relação ao
incentivo para que os atores cumpram o que foi determinado, esse tipo de diploma pode
oferecer, como discutido, altos custos de manutenção de estrutura de monitoramento, por
exemplo. Ademais, custos de outra natureza podem contribuir de forma decisiva para que uma
hard law se torne inviável: os custos de contratação. Às vezes determinadas questões exigem
que os agentes estudem a respeito de seu objeto, além de serem necessárias várias reuniões
163
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.433. 164
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.433.
67
entre os representantes, etc. Esses custos são especialmente majorados no caso da legalização,
uma vez que a violação desses acordos tem repercussões mais severas para os atores; uma
concessão mal feita em uma dessas negociações será, provavelmente, muito mais difícil de ser
revertida do que em casos de acordos não legalizados.165
As diferenças entre tradições legais
internas também podem complicar o processo.166
Portanto, em casos em que acordos legalizados implicarem em grande incerteza com
relação aos efeitos de seu resultado, ou em casos em que significarem grande perda de
soberania, por exemplo, um alto nível de legalização pode se mostrar inviável. A negociação
acerca de determinadas questões pode se complicar inclusive em relação à definição de qual
será o regime de regulação a que ela se submetera: a liberalização do comércio de livros e
revistas é uma questão cultural ou econômica?167
Uma legalização mais branda (soft law) pode, destarte, emergir como a solução mais
benéfica aos atores: ela reduz muitos desses custos, e ainda oferece algumas das vantagens da
legalização. O nível em que essa vai ocorrer dependerá, assim, do contexto e da natureza da
questão que está sendo discutida. Em casos que a incerteza em relação aos efeitos do acordo é
grande, formas mais brandas podem oferecer a oportunidade para que os agentes os analisem,
possibilitando previsões acerca dos resultados de ações no sentido de aumentar o nível de
legalização.
Alguns casos são bastante elucidativos a esse respeito. Nos últimos anos, as
convenções da OIT se viram cada vez mais ignoradas pelos Estados. Diante disso, ela mudou
seu foco de atuação, que agora se concentra em instrumentos que não vinculam juridicamente,
como recomendações e códigos de conduta.168
Logo após a II Guerra, fora proposta uma
estrutura organizacional que deveria ser a base da governança global do sistema que se
desenhava. Foram criados, a partir dessa idéia, organismos como o FMI e o Banco Mundial.
Havia ainda a previsão de que fosse criada a Organização Internacional do Comércio.
Entretanto, os altos custos de contratação, decorrentes da delicadeza e centralidade da agenda
comercial impediram a adoção de um diploma muito legalizado, pelo que se adotou uma
165
A adoção de institutos legalizados não implica em custos de contratação existente apenas na esfera
internacional: processos internos de ratificação e incorporação desses diplomas podem tornar sua adoção ainda
mais custosa para um determinado Estado e podem, como também já discutido, inserir atores internos (com
demandas próprias) no processo político. 166
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.434. 167
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.435. 168
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.434.
68
forma mais branda e menos abrangente, qual seja, o GATT.169
Com o passar dos anos, os
Estados se deram conta da importância e dos efeitos benéficos de uma regulamentação mais
significativa, o que possibilitou a criação da OMC170
.
b) Redução dos ―custos de soberania‖
O conceito de soberania é bastante controverso e tem sido constantemente
desafiado.171
Essa discussão, entretanto, não se mostra relevante para o que se quer
argumentar na presente seção. Dizer que a adoção de determinado diploma implica em custos
de soberania significa apenas afirmar que de alguma forma o ator perderá a capacidade de
controle ou autoridade sobre determinadas questões, como capacidade normativa sobre
determinado assunto, controle sobre decisões (quando há delegação a terceiros), etc.
Alguns acordos, por sua especificidade, implicam em custos de soberania muito
baixos, pois constrangem o comportamento dos atores em situações determinadas, e resultam
em efeitos positivos. Entretanto, a adoção de alguns institutos pode significar perda de
capacidade de controle sobre suas fronteiras (por exemplo no caso de livre circulação de
pessoas, bens ou capital), ou limitações quanto a implementação de políticas públicas
(questões de condições de trabalho e ambientais, dentre outras). 172
Nesse sentido, Estados podem perder controle sobre uma vasta gama de questões,
como subsídios e política industrial; ainda podem ser obrigados a modificar leis ou sua
estrutura governamental. Em alguns casos haverá inclusive a ingerência de atores
internacionais (em cujo processo de escolha o Estado pode não ter nem participado) em
assuntos domésticos, como as visitas de comissões de direitos humanos ou inspeções de
apuração de existência de armas proibidas.
A incerteza quanto aos resultados futuros de um acordo também se estende aos
custos de soberania, notadamente quando os níveis de delegação são altos. Nesses casos,
169
No caso da OIC fica claro o fato de que efeitos internos de acordos internacionais podem dificultar sua
adoção: os EUA não conseguiram, por exemplo, que o projeto fosse aprovado justamente porque não convenceu
seu congresso das vantagens dessa organização. 170
Não está se afirmando que após a criação da OMC a questão comercial se tornou incontroversa ou menos
central. Apenas coloca-se a idéia de que o GATT surgiu como uma forma mais branda de legalização em um
contexto em que uma forma mais severa seria inviável, e que ele possibilitou esforços posteriores de aumento do
grau de legalização de questões comerciais. 171
Ver, por exemplo, PEREIRA, Antônio Celso A. Soberania e Pós Modernidade, 2004 e KRASNER, Stephen
D., Sovereignty: Organized Hypocrisy, 1999, que chega a propor quatro tipos de soberania. 172
ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
p.437.
69
quando se atribui a um terceiro a competência para interpretar, aplicar, implementar e até
mesmo criar normas, a capacidade de previsão dos efeitos que elas terão sobre a atuação do
ator fica ainda menor, na medida em que não é o próprio ator quem determinará os alcances
concretos que esses diplomas terão.173
Entretanto, estes custos podem ser minimizados quando são criados diplomas com
menores níveis de obrigação, precisão ou delegação. Há varias formas pelas quais se pode
criar normas mais brandas, permitam o equilíbrio ideal entre a perda de soberania e os
benefícios auferidos com o acordo. Disso decorre uma última inferência: os custos de
soberania irão variar de acordo com o assunto que está sendo discutido. Questões de
segurança nacional são mais problemáticas do que a padronização de terminadas normas ISO,
por exemplo. Além disso, acordos oferecem diferentes retornos em cada uma das áreas.
Assim, diplomas mais ou menos brandos serão criados de formas diversas em cada uma delas.
É por esse motivo que se consegue explicar a regulamentação relativamente severa que vem
sendo adotada no âmbito da OMC, já que questões comerciais implicam em custos de
soberania bastante significativos.
Redução dos custos de contratação e redução dos custos de soberania são as duas
principais vantagens das formas mais brandas de legalização, motivo pelo qual mereceram
uma análise mais detida. Mas as soft laws trazem em seu bojo uma série de outras vantagens e
efeitos, tais quais a redução da incerteza com relação a situações futuras, criação de espaço
para adoção de formas mais severas, etc.174
O que se deve destacar, portanto, é a utilidade dessa forma de institucionalização
como forma de regulamentação de comportamentos no cenário internacional, na medida em
que oferece uma série de alternativas para situações nas quais uma legalização mais severa se
mostraria inviável em virtude dos custos que lhe são intrínsecos. Elas não são, contudo, uma
forma ideal ou menos problemática de regulamentação de comportamento.
A operacionalização desse arcabouço teórico nos permite, destarte, uma
compreensão bastante funcional acerca da opção pela juridicização (legalização) de
determinadas áreas da agenda internacional, bem como fornece valiosas inferências para que
se possa compreender as razões pelas quais esse movimento se dá a partir de desenhos
173
Essa incerteza também pode ser elevada internamente, quando se admite que cortes ou agências autônomas
em relação ao governo tomem ou implementem decisões sem que ele interfira no processo. No caso da
legislação comunitária européia, por exemplo, as cortes nacionais podem aplicar a legislação supranacional e
inclusive demandar unilateralmente a atuação da Corte Européia de Justiça para que esta interprete as normas
envolvidas em um determinado caso concreto. 174
Ver ABBOTT, Kenneth W. & SNIDAL, Duncan. Hard and soft law in the International Governance, 2000,
pp.441 a 448.
70
institucionais tão distintos (especificidade normativa em função da agenda). O que não se
pode negligenciar, contudo, é a pressão exercida pelo contexto político doméstico tem
repercussões significativas na conduta do negociador das normas internacionais. O objetivo
da segunda parte desse capítulo é justamente o de se complementar o arcabouço teórico já
colocado, para que se possa incorporar a ele o constrangimento doméstico como variável
explicativa da escolha estatal na esfera internacional.
PARTE II: BARGANHA DOMÉSTICA E DIREITO INTERNACIONAL
A inserção da política doméstica como variável de análise do Direito Internacional
não tem sido, via de regra, considerada como uma dimensão de análise pelos teóricos do
Direito e das Relações Internacionais (RI). Contudo, de acordo com o argumento que será
exposto a seguir, o jogo de poder doméstico pode fornecer valiosas inferências acerca da
existência e dos termos de acordos celebrados internacionalmente. Nesse sentido, a discussão
acerca da influência da arena doméstica sobre a formulação de política internacional não pode
ser feita sem que se problematize algumas das principais premissas tradicionais, para que se
possa, a partir disso, estabelecer um arcabouço teórico que assuma a política doméstica como
uma das variáveis do modelo.
A primeira seção se destina, portanto, à colocação do problema, quando ocorrerá a
discussão acerca das premissas normalmente adotadas e de suas implicações teóricas. A partir
da problematização da premissa da unitariedade do Estado, argumentar-se-á que a unidade de
análise do modelo deverá ser novamente identificada, para que consiga abarcar os novos
atores nele inseridos. Dessa forma, essa parte do capítulo se encerra com a colocação e
caracterização dos atores que serão considerados.
Uma vez postas as unidades de análise, deve ser feita uma exposição do modelo
dentro do qual atuarão. Esse é o objetivo da segunda seção. Por motivos didáticos, ela foi
dividida em dois títulos. O primeiro delas colocará as variáveis de análise do modelo, quais
sejam: (1) a estrutura doméstica de preferências; (2) as instituições domésticas; (3) a
informação; e (4) os constrangimentos de ordem internacional. Expostas as variáveis, deve-se
discutir suas repercussões teóricas e a sua capacidade explicativa. Esse é o objetivo do
segundo título do capítulo que, à luz do argumento exposto, discute a relação entre as esferas
doméstica e internacional, bem como suas implicações para a compreensão de processos de
formulação de normas internacionais.
71
Seção I: A Colocação do Problema
O debate acerca da cooperação tem, indubitavelmente, posição destacada no âmbito
das teorias de Relações Internacionais. A influência da esfera doméstica na formulação de
políticas internacionais é, contudo, pouco explorada. Como ressaltam alguns autores, as
teorias de Direito e RI se pautam em modelos nos quais constrangimentos que não sejam
oriundos do cenário internacional são desconsiderados175
. O objeto desse trabalho visa
justamente discutir esse ponto, a partir da elaboração de um arcabouço teórico que abarque
ambas as dimensões como variáveis de análise176
. Segue, portanto, uma exposição das
principais premissas dessas teorias, bem como das implicações que a relativização dessas
terão para o modelo que será proposto.
O principal pressuposto dessas teorias é o de que o cenário internacional é
Anárquico. Além disso, tanto neo-realistas quanto neo-institucionalistas assumem que os
Estados são os principais atores das relações internacionais, e que se caracterizam pelo fato de
serem unitários e racionais177
. Considerar que os Estados agem a partir de uma perspectiva
unitarista significa afirmar que o sistema doméstico é, por sua vez, hierárquico, na medida em
que o ―tomador de decisões‖ (decision maker) se situa no topo de uma estrutura de
subordinação na qual esse tem independência para agir. De acordo com Waltz:
“As partes dos sistemas políticos domésticos mantêm relações de superioridade e
subordinação. Alguns têm o condão do comando, outros devem apenas obedecer. Sistemas
domésticos são centralizados e hierárquicos. As partes do sistema político internacional
mantêm relações de coordenação. Formalmente, todos são iguais. Nenhum tem o condão do
comando, ninguém deve obedecer. Sistemas internacionais são descentralizados e
anárquicos178
”.
Dessa premissa pode-se inferir, como destaca Moravcsik, que os atributos internos
são considerados mais como dados do que como variáveis. Os Estados teriam, portanto, igual
habilidade de extrair recursos domésticos, na medida em que seus procedimentos de tomada
175
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, pp.430-433;
MORAVCSIK, Andrew., Integrating International and Domestic Theories of International Bargaining, 1993,
pp.6-17; MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.3-7. 176
Nesse sentido, PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games,
1988, p. 427, chega a afirmar que não se deve perguntar ―se‖ a política interna tem interferência nas relações
internacionais, mas sim ―como‖ e ―quando‖ isso ocorre. 177
A esse respeito, ver GRIECO, Joseph M., Anarchy and the limits of cooperation: a realist critique of the
newest liberal institucionalism, 1995. 178
WALTZ, Kenneth N., Theory of International Politics, 1979, p.88, tradução do autor.
72
de decisão se equivaleriam179
. Nesse sentido, teriam eles preferências estáveis sobre os
resultados (outcomes) de uma negociação internacional, sendo esses determinados
estritamente por constrangimentos externos. Isso implica afirmar, destarte, que fariam
escolhas similares caso se deparassem com as mesmas condições externas180
.
Entretanto, a adoção dessa perspectiva pode ensejar equívocos, na medida em que se
pode atribuir a fatores externos a causa de comportamentos que na verdade ocorrem em
função de aspectos domésticos181
. A relativização da premissa da unitariedade, portanto, tem
permite com que se coloquem novas variáveis para a análise de fenômenos internacionais.
Como coloca Lisa Marin:
“As tentativas estatais de cooperação, e nossas tentativas de explicar sucessos e
fracassos da cooperação internacional, são complicados pelo fato de que
Estados não são atores unitários. O Estado não é um indivíduo que planeja e
implementa suas próprias decisões. É uma estrutura organizacional e social
bastante complexa. A estrutura interna pode interferir nos padrões de
cooperação para além daqueles definidos por „constrangimentos‟ do sistema
internacional. (...) Nós ainda prescindimos de um entendimento sistemático
acerca de como esses fatores domésticos importam, ou até mesmo quais
estruturas domésticas merecem nossa atenção182
”.
Uma vez problematizada a premissa de que Estados são atores unitários, resta
prejudicada a inferência de que eles têm igual habilidade de mobilizar recursos internos, bem
como não se pode afirmar que teriam procedimentos decisórios idênticos. A relativização
desse pressuposto permite, assim, a afirmação de que variações no contexto doméstico se
tornam importantes para se estabelecer o poder de barganha de um determinado ator183
.
Assim, diferenças nas instituições políticas internas, bem como nas preferências de seus
grupos têm repercussões consideráveis na esfera internacional184
.
Isto posto, faz-se necessária a criação de um modelo de análise que seja capaz de
incorporar essas variáveis. Putnam destaca o fato de que o chefe de governo é a figura que
age em ambas as dimensões, pelo que busca uma opção que seja aceitável em cada uma delas:
179
MORAVCSIK, Andrew., Integrating International and Domestic Theories of International Bargaining,
1993, p.5. 180
Uma vez que a capacidade de mobilização de recursos internos é a mesma, a decisão do agente se pauta nos
fatores externos, pelo que, em cada situação na qual esteja envolvido, pode-se estabelecer qual seria o ―interesse
nacional‖ daquele Estado. 181
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.4. 182
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.4,
tradução do autor. 183
MORAVCSIK, Andrew., Integrating International and Domestic Theories of International Bargaining,
1993, p.10. 184
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.10.
73
“As políticas de muitas negociações internacionais podem ser concebidas como um
jogo em duas arenas. Ao nível nacional, grupos domésticos perseguem seus
objetivos pressionando o governo a adotar políticas favoráveis, e os políticos visam
poder através da construção de coalizões entre esses grupos. Ao nível internacional,
governos nacionais visam maximizar sua própria habilidade de satisfazer pressões
internas, e ainda minimizar as conseqüências adversas de desenvolvimentos
externos. Nenhum dos dois jogos pode ser ignorado pelos tomadores de decisões
centrais, na medida em que seus países restam interdependentes, mas ainda
soberanos185
”.
Antes da exposição do arcabouço que será proposto nesse trabalho, mister se faz a
colocação dos pressupostos teóricos nos quais ele se fundamentará. Nesse sentido, o primeiro
aspecto a ser ressaltado é o seguinte: a premissa de que o cenário internacional é anárquico
não implica nenhum problema ao modelo, e possibilita que se façam importantes inferências
acerca da influência das condicionantes externas no processo de criação de políticas
internacionais.
Entretanto, a partir do momento em que os Estados não mais são considerados como
sendo unitários, não se pode assumir que o sistema interno seja estruturado de forma
hierárquica. Isso porque, como destaca Milner, não se pode estabelecer, a priori, nenhum
grupo político que se coloque no topo da estrutura interna de tomada de decisões, na medida
em que poder e autoridade sobre ela são compartilhados – mesmo que desproporcionalmente
– notadamente em governos democráticos186
. Em decorrência disso, pode-se afirmar as
preferências dos grupos dominantes serão condicionantes do comportamento do Estado no
cenário internacional, e que o poder de cada um desses grupos é também resultante das
peculiaridades do contexto institucional no qual se inserem187
. Nesse sentido, a arena
doméstica deverá ser compreendida como poliárquica188
.
Na medida em que não se assume o pressuposto da unitariedade dos Estados, há a
clara necessidade de se estabelecer quais serão os atores envolvidos no processo de
formulação de políticas internacionais. Cabe, entretanto, destacar que esses novos atores
185
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, p.434,
tradução do autor. 186
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.11. 187
Dessa forma, não mais se admite que Estados terão comportamentos similares, dada uma estrutura de custos
internacionais. Isso porque suas preferências poderão variar em função dos grupos internos e de seu respectivo
arcabouço institucional. Nesse sentido, o ―interesse nacional‖ não é mais inferido apenas das condicionantes
externas, como ocorre no âmbito das tradicionais teorias de RI. 188
O termo poliarquia é, nesse caso, utilizado com o mesmo sentido que lhe fora atribuído por MILNER, Helen.
Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations, 1997, p. 11), qual seja, o
de que ela é decorrente da divisão de poder entre os grupos internos. DAHL, Robert. Modern Political Anaysis,
1984, pp. 75-93, se vale do mesmo termo para fazer referência ao grau de democracia presente em um
determinado país.
74
continuarão sendo considerados como unitários e racionais. Frise-se: o modelo não assume o
fato de que ESTADOS são unitários, mas admite que seus ATORES o são189
.
Milner justifica a premissa de que os atores são racionais com os seguintes
argumentos: sua utilização permite o estabelecimento de hipóteses teóricas que serão objeto
de testes a partir de casos empíricos. Essas seriam decorrentes das inferências possibilitadas
pelo fato de que os pressupostos teóricos são utilizados explicitamente. Nesse sentido, sua
utilização permite com que estudos posteriores produzam novas hipóteses (com maior
potencial explicativo) a partir da relativização desses pressupostos. Além disso, um segundo
motivo seria relevante: essa premissa permite que haja a previsão de qual será o
comportamento de cada um dos atores190
, o que viabiliza várias inferências do modelo.
Por fim, uma última observação deve ser feita: é com base nas premissas
supracitadas que se busca evitar o perigo para o qual adverte Waltz. De acordo com ele, se a
dimensão doméstica assumir caráter central na análise, o que se teria era a necessidade de se
―voltar‖ ao nível descritivo. Assim, explicações com esse caráter implicariam em uma infinita
proliferação de variáveis, porque nesse nível nenhuma delas é suficiente para explicar o
resultado observado. A compreensão do que seria relevante para o nexo de causalidade
restaria, destarte, comprometida, de forma que as variáveis seriam estabelecidas ad hoc191
, o
que retiraria qualquer potencial explicativo do modelo192
.
Para combater essa colocação, Milner argumenta que a premissa da poliarquia
permite com que se identifique um sistema que não fora considerado: o sistema doméstico.
Para a autora, portanto, a associação entre poliarquia e a manutenção da idéia de que seus
atores são unitários impede a infinita proliferação de variáveis prevista por Waltz. Isso porque
a única modificação decorrente desse fato seria a nova identificação da unidade de análise do
modelo, que agora leva em conta não só o sistema internacional, mas também o sistema
interno193
.
Nesse sentido, faz-se necessária, assim, a identificação de quais são as unidades de
análise do modelo que será proposto. Feito isso, haverá a exposição de suas variáveis, para
189
Nesse sentido, MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International
Relations, 1997, p.12. 190
Como exemplo disso, pode-se citar o fato da consideração de que o legislativo pode influenciar o executivo
pelo mecanismo de antecipação de reações, que será mais bem examinado a seguir. 191
Essa é, por exemplo, a crítica feita por MORAVCSIK, Andrew., Integrating International and Domestic
Theories of International Bargaining, 1993, pp. 9-15 ao argumento da ―variância residual‖ (residual variance);
pelo qual a dimensão doméstica seria uma variável interveniente que explicaria algumas variações nas previsões
da teoria sistêmica. 192
WALTZ, Kenneth N., Theory of International Politics, 1979, p.65. 193
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.254-255.
75
que posteriormente se explicite qual será sua dinâmica e suas implicações para a análise das
relações internacionais.
1- Identificação dos Atores
Como ressaltado anteriormente, a flexibilização da premissa de que Estados são
atores unitários implica admitir que a formulação de política internacional ocorre com base
em dois sistemas distintos. Além disso, dela nasce a imediata necessidade de se estabelecer
quais serão as unidades de análise desse processo.
Não obstante o fato de ser um dos precursores da discussão acerca dessa matéria,
Putnam, no modelo que propõe, não chega a identificar a natureza dos atores envolvidos nessa
negociação. Como dito, seu argumento central é o de que o chefe de governo atua sempre
buscando a consecução de um acordo que satisfaça às demandas internas e que seja aceitável
internacionalmente. A instrumentalização dessa barganha se daria pelo que chamou de
procedimento de ratificação, pelo qual os grupos internos manifestariam sua aprovação (ou
não) ao acordo negociado na esfera internacional. Sua discussão concentra-se na influência
que esse processo exerce nas ações do chefe de governo194
.
Em discussão de natureza semelhante, Martin tem por objeto estabelecer qual a
influência do legislativo no processo de cooperação internacional, bem como nas repercussões
que ela tem na credibilidade dos acordos daí resultantes. Nesse sentido, ela propõe um modelo
voltado pela interação entre legislativo e executivo, no qual grupos internos participariam de
forma subsidiária, em decorrência de um poder que lhes é atribuído pelo legislativo195
.
Diante da impossibilidade de se especificar, a priori, quais os atores que estão
envolvidos na arena política doméstica – uma vez que irão variar em função da matéria (issue
area) que está sendo discutida – Milner opta por estabelecer uma classificação dessas figuras,
que se diferenciariam em função da natureza de seus interesses. Dessa forma, ela afirma a
existência de duas categorias de atores: os políticos e os sociais. Os primeiros teriam por
194
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, pp.435-460.
O autor, entretanto, admite que preferências e coalizões no nível interno são fatores que determinam o conteúdo
do acordo que será aprovado (win-set). ). De se destacar ainda que o autor ressalta que, por essas razões, seu
modelo se restringe à análise do procedimento de criação de políticas, pelo que não abarca as ações que serão
adotadas após sua adoção. Não se discute, assim, a fase de implementação das mesmas. Ao colocar o argumento,
chega a citar grupos que eventualmente poderiam atuar no processo (agências burocráticas, grupos de interesse,
classes sociais e ―até mesmo a opinião pública‖), sem, no entanto, estabelecer quaisquer afirmações sobre sua
natureza ou sobre as formas pelas quais poderiam interferir no processo (1988:436). 195
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.23-36.
76
objetivo a sua manutenção no poder196
, ou seja, agem com vistas diretas aos interesses
daqueles grupos que lhes dão suporte eleitoral. Eles se dividiriam entre executivo e
legislativo. Os atores sociais, por sua vez, buscam a maximização de seus rendimentos
(incomes). Dessa forma, serão mais favoráveis àquelas políticas que lhe forem mais
rentáveis197
.
Será utilizada, no âmbito desse trabalho, a classificação proposta por Milner, uma
vez que ela tem maior potencial explicativo e se coaduna com a dinâmica do modelo que será
proposto. Antes de se fazer uma análise mais detida de cada uma dessas categorias, devem ser
feitas duas observações.
A primeira delas é colocada tanto por Martin que destaca que qualquer análise de
um processo de formulação de políticas pode ser prejudicada se houver a confusão entre os
conceitos de ação e influência. De acordo com a autora, eles não significam a mesma coisa,
tampouco se pode inferir um a partir da observação do outro. Muitas vezes um ator pode ter
um grande poder de interferir na formulação de uma determinada política sem
necessariamente agir diretamente no processo, através da conformação da ação dos atores
diretamente envolvidos. Essa é a razão apontada por ela como sendo a principal causa de
muitas análises teóricas que afirmam que o Congresso tem pouca influência na formulação da
política externa dos EUA:
“Equacionar falta de ação legislativa na política externa com falta de influência
pode nos levar a uma falácia lógica similar, fazendo-nos compreender mal como e
quando a política externa reflete a preferência dos legisladores198
”.
Assim, de acordo com seu argumento, estudar os resultados (outcomes) de uma
determinada política externa pode ser muito mais esclarecedor do que estudar apenas o seu
processo de formulação. Dessa forma, poderá haver a contraposição entre os efeitos da adoção
dessa política e os anseios dos diversos grupos internos afetados por ela. A consideração de
mecanismos ―indiretos‖ de conformação de ação de atores é, portanto, elemento chave em
qualquer análise desse cunho. Nesse sentido, Putnam afirma que a expectativa de rejeição no
196
Optou-se pela utilização da expressão ―manutenção no poder‖ em detrimento de se usar ―reeleição‖, pelo fato
de que a primeira é mais abrangente que a segunda. Mesmo nos casos em que não é possível a reeleição, os
atores desejam que seus aliados sejam eleitos, motivo pelo qual observarão os anseios dos grupos de suporte. 197
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.14-17. 198
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.8,
tradução do autor.
77
nível doméstico pode frustrar negociações no nível internacional sem que nenhuma ação
formal na arena interna199
.
A segunda observação que deve ser feita é a de que interesse não se confunde com
preferência. Interesse se caracteriza por ser a representação dos ―objetivos fundamentais‖ de
um determinado ator. No caso de atores políticos, por exemplo, seu interesse é se manter no
poder (reeleição). No caso de atores econômicos, seu interesse é com a maximização dos
rendimentos (incomes). Assim, em qualquer assunto (issue), esses interesses genéricos não
variam entre a mesma espécie de atores (políticos, econômicos, etc). O que os diferencia são
suas preferências, que são condicionadas pelas características do contexto em que esses atores
estão inseridos. Dessa forma, as preferências se relacionam à escolha da política específica
pela qual os atores julgam que será atingido seu objetivo (manutenção do poder no caso dos
políticos e maximização dos rendimentos no caso dos econômicos, por exemplo). Preferências
são variáveis de acordo com a situação, ao passo que interesses são menos suscetíveis de
modificação.200
É essa diferenciação que permite, por exemplo, que se compreendam as diferenças
de posicionamento entre executivo e legislativo em face de uma determinada política. Isso
porque, não obstante o fato de terem o mesmo interesse (manutenção no poder), sua adoção
pode representar impactos distintos sobre seus grupos de suporte, pelo que, dado um certo
contexto, suas preferências irão variar no sentido de se proteger os interesses dos grupos
supracitados, já que esses são sua base de sustentação eleitoral. Feitas essas observações,
deve-se proceder à análise de cada um dos tipos de atores que estarão envolvidos no processo.
2- A Classificação dos Atores
A) Atores Políticos
a) Executivo
Como destacado anteriormente, os atores políticos se caracterizam pelo fato de que
suas ações têm como objetivo último a sua manutenção no poder. No caso do executivo, deve-
se fazer um esclarecimento: o termo abarca tanto os Chefes de Governo e Estado quanto o
199
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, p.436. 200
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.15, nota de rodapé n.4.
78
aparato burocrático a eles vinculado. Certamente há a possibilidade de que haja discrepância
de preferências dentro desse próprio corpo201
. Contudo, por motivos heurísticos, e pelo fato de
que via de regra cabe ao chefe do executivo a decisão final acerca de seu posicionamento,
considerar-se-á que esse é um ator unitário.
O executivo tem, em relação aos demais atores elencados, uma função peculiar: ele é,
via de regra, o único que se insere diretamente tanto na barganha internacional quanto no jogo
de preferências interno202
. Suas ações são, portanto, diretamente afetadas pelos
constrangimentos oriundos de ambas as arenas. Essa posição lhe oferece, todavia, algumas
prerrogativas, que podem se consubstanciar em importantes elementos de barganha nessas
negociações.
A capacidade de colocar (ou não) um tema em discussão na agenda internacional
pode ser crucial para a consecução de seus interesses. Ele pode, por exemplo, se empenhar
mais na negociação de temas cujos acordos terão repercussões eleitorais que lhe serão
favoráveis. Além disso, tem, em virtude da negociação internacional, um poder de veto ex
ante, na medida em que pode barrar, ainda nessa esfera, uma solução que lhe seja desfavorável
internamente (sem que para isso tenha que submeter seu posicionamento ao crivo das
instituições internas).
A colocação de um determinado tema na agenda internacional pode ser ainda mais
benéfica ao executivo: há casos em que esse fato permite com que ele atue diretamente na
formulação de uma política em relação à qual não poderia se manifestar, caso a discussão fosse
feita estritamente na dimensão doméstica203
.
Entretanto, não se pode afirmar que por essas razões tenha o executivo um alto grau
de discricionariedade204
. Acontece que, como já destacado, ele atua em duas arenas distintas,
pelo que enfrenta constrangimentos decorrentes de ambas. Nesse sentido, seu anseio de
manutenção no poder deve ser conjugado à necessidade de credibilidade na mesa de
negociações internacionais.
201
É para o que nos adverte PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level
Games, 1988, p. 432 e MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and
International Relations, 1997, p.34. 202
Como coloca PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988,
p.456, ele é o único elo formal entre o nível doméstico e o internacional. 203
Ver, a esse respeito, DAVIS, Christina, Linkage and Legalism in Institutions: evidence from agricultural
trade negotiations, 2001, p.9; PAARLBERG, Don. Obituary for a Farm Program, 1996, p.6. 204
Como destaca MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation,
2000, pp. 21-23, nem mesmo quando o legislativo delega expressamente suas funções ao executivo esse tem uma
margem de ação completamente discricionária. Isso porque ele continua sofrendo influências indiretas oriundas
do legislativo, porquanto continua sendo condicionado pelas preferências deste.
79
Dessa forma, é crucial que ele tenha em mente, quando da negociação internacional,
as preferências do legislativo, na medida em que deverá submeter o acordo ao procedimento de
ratificação205
. Isso porque uma rejeição interna de um acordo celebrado internacionalmente
pode gerar custos altíssimos de credibilidade do governo frente aos outros Estados. É o que
Putnam chamou de defecção involuntária206
. O negociador deve, portanto, antecipar as reações
dos grupos internos em face de determinado acordo, de forma que consiga evitar problemas
decorrentes de sua rejeição posterior à manifestação do consentimento na mesa de negociações
internacionais.
Além disso, como ressalta Milner, o fato de estar o executivo preocupado em manter-
se no poder ainda coloca a ele dois outros desafios: o primeiro deles refere-se à necessidade de
que seu governo obtenha um bom desempenho no campo econômico – que é apontado como
principal fator de persuasão sobre a opinião pública. Além disso, o executivo não pode
contrariar aqueles grupos que são sua base de sustentação eleitoral, seja por sua influência
direta sobre os eleitores, seja por suas contribuições financeiras que dão sustentação às
campanhas eleitorais207
.
a) Legislativo
A importância do legislativo como um agente na formulação da política
internacional vem sendo, como visto, reafirmada e discutida por autores de Relações
Internacionais. A obra de Lisa Martin, por exemplo, destaca-se por ter como objetivos
específicos justamente a discussão acerca do nível de influência exercida pelo legislativo na
formulação de políticas com esse caráter, bem como o de saber quais são suas implicações
para a cooperação internacional208
. A análise desse ator torna-se, assim, essencial para o
objetivo desse trabalho. Deve-se, destarte, indicar sua natureza, suas prerrogativas, e as
formas pelas quais podem atuar nesse processo.
205
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, p. 436, define
ratificação como qualquer processo decisório pelo qual os atores domésticos devem manifestar seu
consentimento em relação ao acordo celebrado no nível internacional, seja esse processo formal ou informal.
Essa ampla definição de ratificação permite que se considere até mesmo a fase de implementação dos acordos. A
contrariedade em relação a adoção de determinada política pode se manifestar, por exemplo, pela não
disponibilização dos fundos necessários para sua efetivação. 206
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, pp.438-440. 207
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.34-35. 208
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.5-6.
80
A natureza política desse ator faz com que seu interesse se assemelhe ao do
executivo, na medida em que também estão envolvidos, em última instância, com sua própria
manutenção no poder209
. Cabe relembrar que é também considerado como sendo unitário e
racional. Como discute Milner, a premissa da unitariedade não deixa de ser problemática,
principalmente em casos em que o legislativo é organizado a partir de uma estrutura
bicameral. Entretanto, essa ―simplificação‖ é aceitável do ponto de vista do modelo proposto,
na medida em que a influência legislativa será auferida a partir do posicionamento ―final‖
desse corpo face à formulação de determinada política210
.
No que se refere à identificação desse tipo de ator, uma observação deve ser feita:
atores com natureza legislativa não se confundem com atores que participam do processo de
produção legislativa (i.e. de políticas). Esse processo é determinado pelas instituições internas
e até mesmo internacionais (quando a discussão ocorre nessa dimensão); e são justamente
essas instituições que determinarão quais serão os atores que poderão atuar diretamente na
formulação das políticas, podendo esses ser inclusive o executivo ou grupos sociais. O
―legislativo‖ será identificado, portanto, a partir da clássica distinção decorrente da divisão de
poderes proposta por Montesquieu.
Por suas características, e tal como ocorre no caso do executivo, há a constante
preocupação com a opinião pública em geral e principalmente com as preferências dos grupos
específicos que lhe dão suporte211
. A peculiaridade de suas funções confere ao legislativo
algumas prerrogativas no jogo de interesses doméstico212
. Mesmo que não atue diretamente
na formulação de políticas, ele tem alguns mecanismos de controle dessas, pelo que sua
capacidade de influenciar seu resultado é considerável.
209
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp. 35-36. 210
A consideração será, portanto, se o legislativo é ou não favorável a determinada política. O processo de
determinação desse posicionamento será mais bem discutido quando da exposição acerca da estrutura doméstica
de preferências. Cabe destacar ainda que esse posicionamento encontra guarita também no modelo proposto por
Lisa Martin (Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000). PUTNAM, Robert
R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, apesar de não discutir diretamente a
existência e influência de nenhum ator específico, destaca a importância do que chamou de procedimento de
ratificação, pelo qual um acordo negociado internacionalmente seria aprovado ou rechaçado internamente. O que
se pode inferir é que mesmo no âmbito desse modelo a premissa de que o legislativo é um ator unitário se mostra
válida, na medida em que o posicionamento dos atores internos também é vislumbrado a partir de seu
posicionamento ―final‖ perante um determinado acordo. 211
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.36. 212
A esse respeito, uma observação merece destaque: assim como ocorreu quando da análise do executivo, são
elencadas algumas prerrogativas dos atores. Essas são decorrentes da especificidade de suas funções, e não se
confundem com os poderes delegados a eles (pelas instituições) em cada caso concreto. Esses ―poderes
legislativos‖, imanentes às instituições, serão estudados em tópico próprio.
81
Essa capacidade se concretiza a partir de mecanismos de controle indiretos, para os
quais nos adverte Martin213
. Durante a fase de implementação, o legislativo pode, por
exemplo, dificultar a mobilização de recursos para a efetivação da política – a autora cita o
caso do fim das atividades militares no Vietnam, que teriam sido enormemente dificultadas
pela diminuição dos fundos destinados a esse fim. Além disso, esse ator pode optar por
dificultar a operacionalização das políticas se negando a tomar medidas (de cunho
eminentemente interno) que seriam necessárias para sua implementação214
.
Em decorrência disso, o legislativo pode exercer sua influência através de um
mecanismo ainda mais sutil: durante a fase de negociação, o executivo, ao vislumbrar a
possibilidade de que haja rejeição interna do acordo, pode modificar seu posicionamento no
sentido de atender às demandas de cunho doméstico. É o que os autores chamam de
antecipação de reações (anticipated reactions)215
.
A análise desses meios indiretos de controle das ações de outros atores permite que
uma última observação seja feita: sua existência possibilita que o legislativo delegue
competências que lhe seriam próprias, sem que isso signifique que suas preferências serão
desconsideradas por aqueles que foram contemplados pela delegação. Há, portanto, como nos
mostra Martin, uma lógica para a utilização desse instrumento, que se coloca como a melhor
forma de resolver certos tipos de dilemas216
.
A autora argumenta que se podem identificar certos padrões para seu uso, que
decorrem de problemas de complexidade e incerteza217
. Os primeiros seriam decorrentes do
fato de que é muito difícil que o legislativo consiga vislumbrar e controlar os impactos de
todas as questões que lhe são colocadas. Dessa forma, pode-se fazer a opção de delegar a
corpos especializados tarefas das mais distintas, que podem ser desde provisão de
informações (como nos casos de audiências públicas) à competência negociadora (ao
executivo, no caso de questões comerciais, por exemplo).
Os problemas de incerteza estão diretamente relacionados à questão da
credibilidade. Muitas vezes a adoção de um comportamento por parte do legislativo pode se
mostrar ineficiente, na medida em que esse fora adotado sem que houvesse a devida avaliação
213
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.27-29. 214
A autora nos adverte ainda para o fato de que mesmo acordos que têm caráter auto-executório (self-executing)
por vezes necessitam de pequenas alterações na legislação interna (MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments:
Legislatures and International Cooperation, 2000, p. 28). 215
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.6; MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000,
p.41-46. 216
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.29. 217
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.29-36.
82
de seus impactos. Para evitar situações como essas, os atores podem se valer de mecanismos
de delegação pelos quais se institucionaliza a participação de outros grupos, que deverão
manifestar seu posicionamento perante as demandas colocadas.
Esse instrumento pode ser também utilizado nos casos de formulação de políticas
centrais para o desenvolvimento do Estado, e para os quais não há como assegurar que os
interesses daquele grupo que se encontra eleito serão observados no longo prazo. Nesses
casos, a opção que se coloca é a da criação de um órgão independente ao qual será delegada a
competência para formular essas políticas. Assegura-se, assim, que esse tenha autonomia para
tomar suas decisões sem que haja interferência do grupo político dominante em um
determinado período. Como exemplo disso pode-se citar o caso de criação de Agências
Reguladoras e os casos em que o Banco Central deixa de se submeter às políticas
governamentais.
B) Atores Sociais
Grupos de interesse
Ao contrário do que ocorre com os atores de natureza política, os atores sociais não
têm preocupações de se manterem (diretamente) no poder. Dessa forma, seus objetivos
decorrem da necessidade de maximização de rendimentos, seja de qual natureza eles forem
(lucros, incentivos fiscais, etc)218
. A adoção da premissa de que são unitários, como ressalta
Milner, não é problemática219
, e, como nos casos anteriores, será central para as inferências
que serão feitas.
Isso não significa dizer, contudo, que não tenham interesse no resultado dos
processos eleitorais. Não se pode negar o fato de que a promoção de políticas que lhes
favoreçam depende em larga medida da capacidade que têm de influenciar os atores políticos,
que têm a competência para sua formulação. Assim, a capacidade de fazer alianças com
grupos políticos é um elemento chave para sua atuação. Como já discutido anteriormente, o
fato de se constituírem como a base de financiamento de campanhas eleitorais faz com que os
218
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.36-37. 219
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.37.
83
grupos políticos passem a considerar suas preferências quando do cálculo acerca da adoção de
determinado curso de ação.
Além disso, sua posição peculiar no jogo político doméstico lhes confere outra
prerrogativa: como discutido no tópico anterior, por vezes os atores políticos não têm
condições de obterem informações precisas e confiáveis sobre os impactos de determinadas
políticas. Nesses casos, podem optar por abrir espaço para que grupos de pressão atuem como
provedores de informação, pelo que esses passam a ter influência direta no resultado desse
processo220
.
O que se pode afirmar, portanto, é que a atuação desses atores será função do
impacto que a adoção de políticas terá sobre cada um deles. Assim, se colocarão como
promotores para os casos em que seus rendimentos forem exponenciados, e como opositores
nos casos em que sofram prejuízo.
Esta seção do capítulo destinou-se à identificação dos atores envolvidos modelo,
pela qual se buscou estabelecer quais seriam a natureza, a prerrogativa, e as formas de atuação
de cada um deles. Essas informações se mostrar importantes no seguinte sentido: é a partir
delas que podem ser inferidas as preferências de cada um dos agentes envolvidos na
formulação de uma determinada política.
Como se discutirá a seguir, as preferências dos atores será central para a análise do
objeto desse trabalho, na medida em que elas constituirão a primeira variável de análise do
modelo: a estrutura doméstica de preferências.
Seção II: O Modelo de Análise
TÍTULO 1: AS VARIÁVEIS DO MODELO
1- A Estrutura Doméstica de Preferências
220
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp. 92-98, analisa os impactos da presença de grupos como provedores de informação, afirmando seus
impactos sobre o processo de formulação de políticas internacionais, seja sobre o enfoque da possibilidade de
celebração do acordo, seja sobre a possibilidade de sobreposição de interesses entre legislativo e executivo.
84
Um dos argumentos defendidos nesse trabalho é o de que acordos internacionais têm
repercussão direta, via efeitos distributivos, no jogo político interno. Dessa forma, como
ressalta Milner, eles “criam ganhadores e perdedores domesticamente, pelo que geram
defensores e opositores221
”. A resultante desse embate de forças domésticas tem, portanto,
efeitos consideráveis sobre a possibilidade e a natureza do acordo. É justamente desse fato
que surge a necessidade de se identificar a preferência dos atores envolvidos: é a partir dela
que se pode inferir seu posicionamento, i.e., se contrário ou favorável à adoção de
determinada norma.
Isto posto, segue uma exposição de como se configuram as preferências dos agentes
envolvidos no processo. Em decorrência do que fora discutido na seção anterior, essa
exposição se dará com base na classificação ali proposta: primeiro se fará a discussão acerca
dos atores políticos, ocorrendo, em seguida, o mesmo com os de natureza social.
a) A preferência dos atores políticos
Da classificação proposta anteriormente, o que se pode inferir é que a conformação
das preferências dos atores políticos será sempre balizada por seu interesse, qual seja, o anseio
de manutenção no poder. Dessa forma, as preocupações com as repercussões eleitorais de um
determinado acordo serão a base do posicionamento de um agente com esse caráter. A
discussão que se segue, portanto, não tem por objetivo indicar a prevalência da preferência
desses atores por políticas exclusivamente domésticas (unilaterais) ou internacionais. O
argumento será justamente o de que a opção será pelo tipo que for mais útil ante as
preferências de cada um deles. Nesse sentido, importante citar a observação feita por Milner:
“Uma política que envolva cooperação com outros países não necessariamente
precisa ser a opção mais eficiente economicamente; uma política doméstica
unilateral poderia ser mais eficiente, mas menos benéfica eleitoralmente para os
líderes políticos222
”.
A autora coloca, ainda, que são dois os fatores que ensejariam a opção por uma
política de cunho internacional: o grau de abertura da economia de um país, e o tipo de
221
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.9; tradução do autor. 222
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.43; tradução do autor.
85
externalidades geradas por uma determinada escolha política223
. Nesse sentido, o grau de
abertura estaria intimamente ligado à criação de situações nas quais opções políticas de outros
Estados têm consideráveis repercussões domésticas. Esses fatores podem, como se discutirá a
seguir, criar (ou não) uma demanda por cooperação.
Ao se fazer esse tipo de análise, o que se deve ter em mente é o seguinte: a opção
pela discussão de uma determinada política no nível internacional implica na escolha de uma
certa estrutura de custos, na medida em que se trata de um aparato institucional (tanto interno
quanto internacionalmente) distinto224
, que insere atores outros que não aqueles que se
colocam quando a discussão ocorre exclusivamente no âmbito doméstico. Uma política
negociada internacionalmente tem, portanto, custos distintos (tanto de adoção quanto de
modificação ou revogação) daqueles de uma política de cunho unilateral. Nesse sentido, os
atores irão optar pela via que lhes traga menores custos225
. Milner coloca uma importante
implicação dessa diferenciação:
“Líderes podem buscar a cooperação internacional também para evitar problemas
políticos domésticos. Políticas têm diferentes efeitos internamente; alguns grupos
ganham e outros perdem em decorrência de uma escolha política. Líderes políticos,
como argumentei anteriormente, preocupam-se tanto com o bem estar geral quanto
com interesses específicos. Grupos poderosos em um certo país podem ser capazes de
impedir a adoção de políticas que não concordam em uma discussão unilateral,
mesmo que os líderes políticos os favoreçam. A coordenação internacional pode
permitir que atores políticos se sobreponham a essa oposição e que adotem políticas
que de outra forma não poderiam.226
”
Para efeitos analíticos, como percebe Milner, duas ordens de custos são suscitadas
quando da opção pela discussão internacional de uma determinada política: uma oriunda das
223
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.43. De acordo com ela, o grau de abertura seria auferível pelo nível de integração de sua economia com
o resto do mundo. No caso do comércio, por exemplo, poderia ser medida com base na porcentagem de
importações e exportações face ao PIB. O conceito de externalidades é o mesmo utilizado na economia: ele faz
referência aos impactos que a ação de um agente externo têm sobre o ambiente doméstico, sendo que esses
efeitos não são transmitidos via mecanismos de preço (ver p.43, nota de rodapé 1). 224
O procedimento de adoção de uma determinada política domesticamente pode ser distinto, por exemplo, do
que aquele adotado para a ratificação de um tratado. Além disso, a discussão no âmbito internacional envolve
instituições decorrentes desse sistema – uma lei adotada internamente pode, via de regra, ser revogada com base
no mesmo procedimento. Entretanto, se essa lei é decorrente de um tratado internacional, sua revogação implica
em uma rediscussão dos termos do tratado internacionalmente, sob a égide da Convenção de Viena do Direito
dos Tratados (Ver, a esse respeito, PELLET, Alain; et al. Direito Internacional Público, 2004). 225
O caso da posição norte-americana na Rodada do Uruguai, por exemplo, é bastante claro a esse respeito: a
discussão, por parte do governo dos EUA, de subsídios agrícolas se mostrou muito menos custosa se feita
internacionalmente, inserida em uma agenda de negociações consideravelmente mais abrangente, que envolvia
assuntos como propriedade intelectual e compras governamentais. 226
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.45; tradução do autor.
86
conseqüências distributivas da escolha, e outra decorrente da perda do controle unilateral
sobre um instrumento de política227
.
A conclusão a que se chega, portanto, é que a opção dos atores irá variar em função
do problema (issue area) que está sendo discutido. Pode haver casos em que esses custos
gerados pela discussão não unilateral da formulação de políticas se mostrem muito altos, pelo
que não haverá demanda por cooperação228
. O cálculo feito pelos atores deverá levar em
conta os seguintes aspectos: os benefícios que ele tem ao utilizar-se unilateralmente de uma
política; os custos decorrentes de seu uso unilateral por outro Estado e ainda eventuais
retaliações que possa sofrer em virtude desse uso unilateral.
Milner se vale dentre outros, do exemplo da política comercial, para afirmar que, em
virtude dos graves efeitos de suas externalidades (uso unilateral da política por outros
Estados), a cooperação, nessa área, seria uma opção razoável. Entretanto, afirma que, uma
vez que os ganhos internos por seu uso unilateral também são altos, somente nos casos em
que haja grande possibilidade de retaliação é que a discussão internacional dessa política se
mostra razoável229
.
b) A preferência dos atores sociais
Como os atores políticos, os atores sociais buscam maximizar seus rendimentos. A
pergunta que se coloca, portanto, é como se manifestarão as preferências desses diante de
uma determinada política. Conforme o argumento de que a opção por políticas negociadas
internacionalmente tem efeitos distributivos internos, forçosa é a conclusão de que os grupos
de interesse irão favorecer a adoção daquelas que representem maiores benefícios, ao passo
que se posicionarão contrariamente àquelas que implicarem em maiores custos.
Nesse sentido, não se pode duvidar que aqueles grupos mais afetados por uma
determinada política (positiva ou negativamente) serão os mais engajados em sua discussão.
227
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.46. Novamente, o exemplo da Rodada do Uruguai é bastante elucidativo: a opção por determinar a
redução de barreiras agrícolas gerou oposição por parte dos fazendeiros norte-americanos, que por diversas
oportunidades manifestaram seu descontento com a situação. Além disso, uma nova discussão acerca desses
níveis tarifários somente seria possível, pelo menos em tese, no âmbito da OMC. A dificuldade de novas
discussões acerca de normas adotadas internacionalmente pode, portanto, funcionar como um mecanismo de
―blindagem‖, do qual se valem os atores políticos, para que se protejam de pressões de grupos internos para sua
alteração. 228
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.47-59. 229
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.55-56.
87
Dessa forma, discussões sobre política comercial podem suscitar a participação de atores que
não se envolveriam caso a discussão fosse sobre matéria monetária, por exemplo230
.
Novamente, portanto, procede o argumento de que a preferência e atuação de cada um dos
grupos de interesse irá variar de acordo com o problema (issue area) colocado na agenda.
O argumento se completa com a exposição das formas pelas quais essas preferências
podem se traduzir em influência no resultado de um determinado acordo: como destacado
anteriormente, a atuação dos grupos de pressão ocorre de duas formas. Uma delas se refere ao
financiamento de campanhas, ao passo que a segunda se dá pela provisão de informação aos
atores políticos durante a formulação de políticas. O que acontece é que, quando da discussão
de um determinado acordo, os atores políticos passam a ter em mente quais são aqueles
grupos que o sustentam no poder, e, ao obterem deles informações sobre os impactos da
política adotada, começam a agir, via mecanismo de antecipação de reações, no sentido de se
evitar problemas eleitorais futuros231
.
Isto posto, pode-se chegar à seguinte conclusão: a estrutura doméstica de
preferências é conformada pela barganha de interesses dos atores sociais e políticos. Dessa
forma, se suas preferências irão variar em função do assunto que está sendo discutido, pode-
se inferir que essa estrutura será específica para cada política que está sendo negociada. É,
assim, a resultante do jogo de interesses interno, e condicionará tanto a possibilidade quanto
os termos de um acordo negociado internacionalmente. Nesse sentido, essa estrutura será, no
âmbito do modelo construído, uma variável independente, da qual dependem a cooperação e
os termos do acordo232
.
Se considerarmos, contudo, que um dos grupos envolvidos no processo de
formulação de políticas tenha mais poder que os outros, a definição acerca dos termos do
acordo irá variar em função desse fator. A questão que se coloca, portanto, refere-se à
identificação da maneira pela qual um ator pode ter mais ou menos poder no processo de
formulação de políticas. Essa atribuição será, como argumento que se segue, decorrente das
instituições envolvidas nesse jogo.
2- Instituições
230
Ver, nesse sentido, MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and
International Relations, 1997, pp.50-56. 231
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp.60-61. 232
Nesse sentido, MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International
Relations, 1997, p.23.
88
Na seção anterior fora exposto o conceito de estrutura de preferências que, de
acordo com o argumento aqui defendido, se mostra como um fator determinante na
possibilidade e nos termos de um acordo internacional. Isso porque a decisão do negociador
seria balizada justamente pela resultante dessa estrutura. O que se deve ressaltar, contudo, é
que as instituições políticas, pelo fato de implicarem em constrangimentos na arena na qual se
desenvolve o jogo doméstico233
, são capazes de modificar o cálculo dos atores, bem como de
dar mais ou menos poder a cada um deles.
Nesse sentido, é importante que se compreenda a forma pela qual instituições
domésticas podem interferir na arena política interna, bem como as repercussões que
representam para a cooperação internacional234
. Para que isso seja possível, segue uma análise
dos mecanismos de influência das mesmas, além da discussão acerca dos poderes dela
decorrentes.
Como ressalta Milner, instituições se caracterizam por serem “constrangimentos ou
regras socialmente aceitas que moldam as interações humanas235
”. Dessa forma, sejam ou
não de natureza formal, reproduzem determinados padrões de conduta. Isso decorre do fato de
que atuam como um instrumento de mobilização de bias em favor de certos atores, a partir do
momento em que “determinam como o poder sobre o processo de tomada de decisões é
alocado entre os atores nacionais236
”. O que se pode afirmar, portanto, é que o desenho
institucional de ordem interna é capaz de indicar quais preferências devem predominar no
processo de formulação de uma política. A implicação disso é a de que variações ou
mudanças nesse desenho influenciam a probabilidade e os termos dos acordos
internacionais237
.
O argumento aqui colocado é o de que elas podem interferir no processo na medida
em que alteram a estrutura doméstica de preferências, o que pode se dar de duas formas. Uma
delas é decorrente do fato de que, ao conferirem poder decisório a determinados atores,
podem inserir ou privilegiar determinadas preferências no processo. Assim, o fato de se dar
233
MARCH, James, & OLSON, Johan, Rediscovering Institutions, 1989, p.18. 234
A análise feita nessa seção é voltada para a interferência das instituições domésticas no processo de
formulação de normas internacionais. A influência das instituições de cunho internacional é analisada em tópico
posterior (ver tópico acerca dos constrangimentos de ordem internacional, nesse trabalho). 235
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.18; tradução do autor. 236
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p. 99; tradução do autor. 237
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.99.
89
ao executivo, por exemplo, poder de ação na formulação de uma política da qual ele não
participava significa ter que considerar tanto suas preferências quanto aquelas dos grupos de
pressão que lhe dão suporte eleitoral (em decorrência do mecanismo de antecipação de
reações).
Esse desenho institucional é, no mais das vezes, determinado pelo ordenamento
jurídico interno de cada um dos Estados, e determina os parâmetros da interação entre os
atores políticos. Milner afirma que se pode identificar 5 poderes dele decorrentes, cuja
distribuição influenciaria o resultado final do processo238
. Eles seriam: capacidade de
controlar a agenda, de propor emendas, de ratificação ou veto, de proposição de referendos e
de oferecer pagamentos paralelos (side payments). Segue a análise de cada um deles.
Controle da agenda. Este poder está relacionado com a capacidade de escolha dos
assuntos (issues) que serão discutidos. É fato que os resultados (outcomes) de um
determinado processo podem não corresponder com as preferências daquele que o colocou
em pauta. Entretanto, o controle da agenda permite com que o agente privilegie alguns temas
em detrimento de outros, o que funciona como um poder de veto ex ante239
.
Além disso, aquele que define a agenda tem a prerrogativa de definir e classificar o
problema que será debatido, pelo que determina os próprios termos do debate240
. Assim,
classificar determinada matéria como de direitos humanos ou relativa a bens culturais pode
ensejar a incidência de um arcabouço institucional distinto do que aquele que seria
movimentado caso a mesma questão fosse classificada como comercial. O controlador pode
por fim, definir a ordem de consideração das opções de tratamento de uma determinada
questão. Essa capacidade de colocar em pauta, definir, classificar o problema e propor
soluções confere ao agente um poder considerável241
.
Proposição de emendas. A capacidade de proposição de emendas é um importante
mecanismo de conformação dos termos do acordo às preferências do agente que tem esse
poder. Dessa forma, pode modificar suas disposições de forma a aumentar seus benefícios.
Nos casos em que a iniciativa da proposição cabe ao executivo, o legislativo tende a desejar o
238
De acordo com ela, quanto mais concentrados eles estejam nas mãos do agente à favor da cooperação
internacional, maior a possibilidade do acordo (MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information:
Domestic Politics and International Relations, 1997, p. 100). 239
PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, p. 457,
argumenta nesse sentido, a partir do momento em que admite que o chefe negociador pode escolher quais temas
serão debatidos, e que isso influencia decisivamente no resultado das negociações. 240
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.102. 241
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.102.
90
controle sobre esse tipo de mecanismo. O que se deve ressaltar, contudo, é que, quando se
trata de acordos celebrados internacionalmente, modificações posteriores resultantes de
procedimentos internos implicam na rediscussão do acordo internacionalmente, o que pode
comprometer a cooperação ou tornar as modificações muito custosas242
. Nesses casos a
possibilidade de sua utilização tende, portanto, a ser restringida. Cabe ao legislativo, portanto,
a escolha de outras formas de interferência sobre o acordo que não essa (como por exemplo,
no caso da antecipação de reações por parte do executivo).
Ratificação ou veto. O poder de ratificação ou de veto de um determinado acordo é
compreendido, nesse trabalho, a partir de uma perspectiva abrangente: ele se refere a qualquer
procedimento, seja ele de ordem formal ou informal, pelo qual os agentes internos
manifestam sua aprovação ou rejeição em relação à adoção de uma política243
. No caso de
acordos internacionais, ele normalmente é atribuído ao legislativo. Mesmo nos casos em que
formalmente isso não ocorre, haverá a necessidade de manifestação do parlamento, na medida
em que tais acordos têm repercussões sobre o ordenamento jurídico interno.
Esse se coloca como um importante poder de conformação de políticas
principalmente a partir do mecanismo de antecipação de reações. Não se pode negar, por
exemplo, que o executivo atua sempre com vistas a possibilidade de rejeição de um acordo
por parte do legislativo, o que, como visto quando da discussão acerca da defecção
involuntária, pode implicar em custos de credibilidade consideráveis. Nesse sentido, como
ressalta Milner:
“Não são apenas os termos do acordo que são afetados pelo poder de ratificação,
mas a decisão de iniciar negociações internacionais também depende das chances de
ratificação do acordo no cenário doméstico. O executivo decide se e como negociar
internacionalmente sempre se lembrando do processo de ratificação244
”.
O que se percebe, portanto, é que o poder de emenda é mais significante do que o de
ratificação, na medida em que no primeiro há a possibilidade de se modificar o acordo de
forma que se atenda melhor às expectativas do ator, ao passo que no segundo a única opção
242
Nesse sentido, PUTNAM, Robert R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games,
1988, p.437; MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International
Relations, 1997, p.105. 243
Esse tipo de abordagem consegue dar conta de conceitos importantes para o argumento dessa obra, tais quais
a diferenciação entre ação e influência, por exemplo. É também o posicionamento de PUTNAM, Robert R.
Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, p.436 e MILNER, Helen. Interests,
Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations, 1997, p.106. 244
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.107; tradução do autor.
91
que se coloca é a da sua rejeição, sendo que sua influência sobre seus termos se dá de forma
indireta (via antecipação de reações). Entretanto, já fora destacado o fato de que, em
negociações, o poder de emendas pode se mostrar muito custoso.
Isto posto, forçosa é a conclusão de que o procedimento de ratificação identifica as
preferências que devem ser consideradas pelo negociador. É por meio desse mecanismo que
ele irá influenciar o resultado da negociação. É por isso que muitas vezes a discussão acerca
da classificação de um problema (poder de controlar a agenda) se mostra importante: ela pode
modificar o procedimento que será utilizado, e conseqüentemente, as preferências que
determinarão a política a ser adotada.
Isso permite a inferência de que a cooperação estaria prejudicada quando houvesse
uma alteração desse procedimento posteriormente à celebração do acordo, uma vez que as
preferências contempladas podem não mais corresponder àquelas dos atores que detêm o
poder de veto, pelo que aumentariam suas chances de rejeição interna245
.
Proposição de referendos. Esse poder funciona como um meio de se persuadir
atores que se mostram hesitosos em relação à aprovação de um determinado acordo. Isso
porque contrariar a posição da opinião pública é algo muito custoso para os atores políticos.
Nesse sentido, aquele que detém seu poder de proposição optará por utilizá-lo nos casos em
que as chances de uma resposta positiva da opinião pública sejam consideráveis246
. Eles se
mostram pouco custosos na medida em que a população pode apenas se manifestar de forma
positiva ou negativa em relação a determinado tema, o que implica que não podem modificar
as disposições daquilo que lhes é submetido. A possibilidade de que o agente propositor seja
surpreendido com algum custo que não tenha sido previamente considerado é, portanto,
pequena. A proposição de referendos pode ter um efeito adicional: ela pode aumentar o nível
de influência indireta de atores sociais, na medida em que esses poderão atuar decisivamente
junto à formação da opinião pública, seja através da provisão de informações, seja por meio
do financiamento de campanhas.
Proposição de ganhos secundários (side payments). Como destaca Milner, esse tipo
de artifício deve ser compreendido a partir de uma ampla perspectiva247
. Nesse sentido,
podem ser legais ou ilegais; implícitos ou explícitos. Podem, por exemplo, ocorrer pela
245
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.124. 246
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p. 109. 247
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p. 109.
92
promessa de troca de apoio em votações sobre temas distintos, pelo oferecimento de propina,
ou até mesmo por meio de ameaça de represálias.
Eles são, portanto, uma barganha entre atores que se dá no sentido de que um deles
cede em uma determinada circunstância para que receba algum benefício proposto pelo outro
ator. Assim, pode-se afirmar que a condição de existência de um artifício como esse é o de
que os agentes têm preferências individuais distintas sobre diferentes assuntos248
.
Como destaca Milner, sua existência sempre fora discutida pelos teóricos de Relações
Internacionais249
. Contudo, a problematização da premissa de que o Estado é um ator unitário
permitiu com que o arcabouço aqui desenvolvido abarcasse a possibilidade de que eles
ocorressem tanto entre grupos internos, quanto em relação a atores de Estados distintos que
participam da negociação internacional250
. O que se buscou com a análise desses poderes foi,
portanto, mostrar que sua utilização tem o poder de modificar a estrutura doméstica de
preferências e, conseqüentemente, a possibilidade e os termos do acordo internacional.
Nesse ponto do argumento, duas observações se mostram pertinentes. A primeira
delas se refere a uma questão colocada por Milner251
: a diferenciação entre regimes
presidencialistas e parlamentaristas pode representar algum problema ao modelo? O que se
deve observar, a esse respeito, é o seguinte: regimes parlamentaristas e presidencialistas são
constituídos a partir de instituições diferentes. Nesse sentido, em cada um desses casos a
distribuição de poderes legislativos será feita de uma forma diferente, pelo que as preferências
envolvidas também irão variar. Entretanto, digno de nota é o fato de que o que importa não é
a natureza do regime, mas sim a distribuição de poderes resultante de suas instituições. Dessa
forma, essa diferenciação não se mostra problemática diante do modelo proposto. Nas
palavras de Milner:
“Para nossos propósitos, a distribuição desses poderes entre o executivo e o
legislativo na questão em tela terá mais efeitos na maneira pela qual o jogo
doméstico se desenvolve do que terá a natureza parlamentar ou presidencial do
regime252
”.
248
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p. 110. 249
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p. 112. 250
Ver, a esse respeito, a discussão acerca de constrangimentos internacionais de ordem relacional, nesse
capítulo. 251
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp. 117-122. 252
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.122.
93
A segunda observação é decorrente do fato de que instituições têm o condão de
afetar a participação de determinados atores no processo, seja via exclusão/inclusão ou a
partir da determinação da intensidade de sua participação. Nesse sentido, um determinado
desenho institucional pode fazer com que determinados atores (sejam eles políticos ou
sociais) não tenham influência no processo, ou que essa seja exercida de forma secundária.
Nesse sentido, discrepâncias em relação a análises feitas por outros autores, como por
exemplo, Milner253
– que considera os grupos de pressão como agentes de seu modelo – e
Martin254
– que afirma que grupos de pressão têm participação subsidiária no processo – não
se mostram problemáticas diante do argumento aqui defendido.
Pode-se concluir, do que fora exposto, que as instituições determinam o resultado do
processo de formulação de políticas uma vez que atuam sobre a estrutura de preferências,
privilegiando alguns atores em detrimento de outros. Diante disso, uma última inferência
pode ser feita: se instituições alteram o poder de interferência de atores, esses terão
preferências também por instituições255
. Nesse sentido, o agente que detém o poder de
escolhê-las ou modificá-las terá o ―maior‖ dos poderes, na medida em que poderá se valer do
procedimento que seja mais favorável às suas expectativas256
.
A afirmativa de que as instituições são, no âmbito desse trabalho, consideradas
como variáveis intervenientes se coaduna com a análise feita nessa seção. Nesse sentido,
pode-se afirmar que elas têm relevância para a compreensão do resultado do processo, mas
apenas se estudadas conjuntamente com as preferências, na medida em que essas últimas
condicionam o nível de alterações que podem ser promovidas pelas primeiras257
. Nas palavras
de Milner:
“As preferências dos atores determinam o conjunto no qual se inserem os resultados
(outcomes) viáveis; as instituições determinam onde nesse conjunto a política
realmente estará. Portanto preferências e instituições são críticas, mas têm diferentes
papéis na composição de resultados de políticas258
”.
253
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, pp. 14-17. 254
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.23-36. 255
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.19. 256
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.100. 257
Nesse sentido, MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International
Relations, 1997, p.19. 258
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations ,
1997, p.242; tradução do autor.
94
3- Informação
Pelo que fora até aqui exposto, a conjugação das variáveis indicadas permite traçar o
seguinte panorama: diante da discussão de uma determinada política, atores políticos irão
perseguir resultados que lhe garantam apoio eleitoral. Atores sociais, por sua vez, irão apoiar
aquelas que lhe propiciarem aumento nos rendimentos. Essa é, pois, a base de constituição da
estrutura de preferências que, de acordo com o argumento aqui defendido, condiciona a
probabilidade e os termos de um eventual acordo internacional. Deve-se ressaltar, contudo,
que o arcabouço institucional no qual ocorram as negociações pode favorecer alguns desses
grupos envolvidos, pelo que o acordo (ou defecção) resultante das negociações tenderá a ser
influenciado, em maior medida, por suas preferências.
Acontece que outra variável tem repercussões consideráveis nesse processo: a
informação259
. Do que já fora exposto, fica claro o fato de que os atores políticos decidem-se
por um determinado curso de ação com base em suas repercussões sobre os grupos que
formam sua base eleitoral. Dessa forma, conhecer os impactos que a adoção de uma
determinada política terá sobre eles é essencial para que tanto o executivo quanto o legislativo
optem por apoiar ou rechaçar tal acordo.
Nesse sentido, pode-se argumentar que a quantidade e a qualidade das informações
disponíveis interferirá diretamente no comportamento dos atores. O executivo, por exemplo,
pode mudar seu curso de ação ao ser informado que o principal grupo integrante de sua base
eleitoral será prejudicado com um acordo (ao contrário do que achava anteriormente). Atores
sociais poderão se manifestar de forma mais incisiva a partir do momento em que saibam
exatamente qual será o custo ou benefício ao qual estará submetido pela adoção de uma
determinada política. Como argumenta Martin, a institucionalização da participação de
grupos de pressão como provedores de informação eleva a credibilidade dos
comprometimentos acertados internacionalmente, na medida em que dá aos negociadores
maior convicção acerca da aceitação interna do que fora negociado260
. A conclusão a que se
chega, nesse sentido, é que a influência dessa variável ocorre, em grande parte, por meio do
259
Ver, a esse respeito, MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and
International Relations , 1997, pp.83-95; MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and
International Cooperation, 2000, pp.41-46. Como ressaltado anteriormente, o objeto do trabalho desenvolvido
por Martin é o de se estabelecer qual a influência do legislativo sobre os acordos internacionais. Dessa forma, a
informação não á tratada explicitamente como uma variável. Entretanto, na supracitada passagem a autora coloca
quais são os efeitos da provisão de informação sobre a atuação do legislativo e do executivo, mostrando,
conseqüentemente, sua influência em um determinado acordo. 260
MARTIN, Lisa L. Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.43.
95
mecanismo de antecipação de reações: ao identificarem os anseios dos grupos que lhe dão
suporte, os atores políticos buscarão acordos que favoreçam a seus aliados.
A variação na quantidade de informação disponível afetará, portanto, o cálculo de
todos os atores envolvidos no processo: no que se refere aos políticos, determinará seu
posicionamento via antecipação de reações. Já no que se refere aos atores sociais, ela
condicionará o seu grau de envolvimento em cada uma das discussões. Nesse sentido, a
informação se coloca como uma variável interveniente no processo261
.
O objeto desse trabalho é, como vem sendo destacado, a discussão acerca da
influência da esfera doméstica na produção de normas internacionais. A criação de um
modelo que consiga dar conta do jogo de forças que se passa nessas duas arenas não pode,
portanto, negligenciar os constrangimentos de ordem internacional que atuam sobre os atores.
A próxima seção do capítulo objetiva, assim, inseri-los como variável do modelo de análise.
4- Os Constrangimentos de Ordem Internacional
Ao longo dessa parte do capítulo, toda a discussão voltou-se para a análise da
influência da política doméstica na formulação de políticas internacionais, bem como nas
formas pelas quais essa é exercida. Não se pode negligenciar, contudo, que a criação de
políticas com esse caráter se dá em um ambiente institucional peculiar, com atuação de atores
que não aqueles envolvidos apenas no jogo interno. Dessa forma, forçosa é a conclusão de
que constrangimentos de ordem internacional também atuam como fator interveniente nos
acordos celebrados nesse âmbito.
Esses constrangimentos se manifestam em dois momentos distintos, quais sejam,
durante a fase de negociação e durante a fase de execução (implementação) dos acordos. A
compreensão acerca da possibilidade e termos da cooperação internacional não pode, destarte,
ocorrer sem que se considerem esses aspectos. Por motivos analíticos, eles serão estudados a
partir de uma classificação que os dividem entre constrangimentos de ordem institucional –
decorrentes do ambiente no qual o processo se desenvolve – e os de ordem relacional – que
são oriundos da relação direta entre os agentes dos Estados envolvidos e das estratégia de
atuação por eles adotada.
261
Como citado anteriormente, MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and
International Relations, 1997, p.23 afirma que tanto a informação quanto as instituições são variáveis
independentes do modelo. Entretanto, diante do argumento desenvolvido nesse trabalho, parece mais persistente
a afirmativa de que ambas são variáveis intervenientes.
96
a) O ambiente institucional internacional
Dentre os teóricos de Relações Internacionais, o debate acerca da importância das
instituições para análise do cenário internacional se estende por décadas262
. Todavia, foge ao
objetivo desse trabalho uma exposição mais detida sobre o tema. Como ressaltado
anteriormente, o foco da discussão aqui desenvolvida se refere à influência que um dado
ambiente institucional exerce sobre a formulação de políticas. Nesse sentido, o argumento que
se coloca é o de que instituições criam padrões de comportamento que acabam por
condicionar a atuação dos atores envolvidos via alteração na estrutura de custos com a qual se
deparam. Essa influência ocorre, como destacado a seguir, tanto na fase de negociação quanto
na de execução dos acordos celebrados internacionalmente.
Ao se comparar as esferas doméstica e internacional, pode-se diferenciar entre duas
ordens distintas, referentes aos padrões de relacionamento que se desenvolvem em cada uma
delas. Isto posto, pode-se afirmar que a atuação internacional de um ator estará inserida em
um conjunto institucional distinto daquele que se colocaria caso atuasse apenas na dimensão
doméstica.
Durante o processo de negociação de uma norma no âmbito internacional,
necessariamente estarão envolvidos representantes dos Estados negociadores, que
provavelmente não se manifestariam sobre o assunto se este fosse discutido apenas no âmbito
doméstico. As negociações no nível internacional obedecem, portanto, a um conjunto
normativo próprio, dotado de procedimentos e sanções que lhe são peculiares. A interferência
desse arcabouço normativo nos termos do acordo não pode ser negada, na medida em que
pode privilegiar atores que não teriam tal poder caso as discussões ocorressem em outra arena.
Como exemplo disso, pode-se citar um caso hipotético no qual a discussão interna
de uma política envolve apenas o legislativo e os grupos de pressão. Contudo, quando
discutida na esfera internacional, é o executivo quem tem a competência para deliberar sobre
a matéria263
. Nesse sentido, preferências que antes não eram assumem papel diferente na
estrutura que é formada; nesse caso a inserção do executivo como agente formulador pode
fazer com que grupos de pressão que eram negligenciados pelo legislativo tenham suas
demandas consideradas. O que se tem, portanto, é uma modificação tanto dos atores inseridos
262
Ver, a esse respeito, KEOHANE, Robert O., MARTIN, Lisa, The promise of institutionalist theory, 2000. 263
Claro que, do ponto de vista aqui defendido, isso não significa que os outros atores não exercerão influência
na ação do executivo.
97
no processo quanto da estrutura de custos que lhes é colocada. Se, quando da discussão
doméstica o executivo não seria contestado – por sua base eleitoral – pela adoção de uma
política que lhes seria desfavorável (na medida em que ele não atuava diretamente em sua
formulação), um acordo internacional com esse caráter – do qual participasse o executivo –
teria repercussões eleitorais consideravelmente mais dramáticas para esse ator.
Outra forma pela qual essa influência pode se manifestar é quanto aos
procedimentos internos para a adoção da política. Pode acontecer que seja exigido um
determinado quorum legislativo para sua adoção internamente, e um outro distinto para a
ratificação de acordos internacionais. Certamente que essa distinção implica em custos
distintos para a atuação dos atores. Além disso, como já destacado, a discussão internacional
pode abarcar vários problemas distintos, pelo que os grupos de interesse que serão
considerados no processo se alteram, modificando a estrutura de preferência doméstica e
conseqüentemente os termos do acordo.
Na fase de execução das políticas, a dinâmica não se dá de forma diferente. A
adoção de um acordo internacional movimenta uma ordem jurídica distinta daquela envolvida
internamente. Dessa forma, o descumprimento do que fora proposto dá legitimidade para que
atores diversos responsabilizem o Estado violador. Um governo que descumpra uma política
de subsídios celebrada no âmbito da OMC sofrerá uma responsabilização que se distingue
daquela que seria desencadeada caso sua política houvesse sido estabelecida de forma
unilateral. Ademais, uma política formulada internacionalmente se submete a procedimentos
de modificação e extinção distintos daqueles que incidiriam caso fosse criada unilateralmente.
Isso traz, portanto, repercussões que se referem ao número de atores envolvidos, a estrutura
doméstica de preferências e a plausibilidade de negociação e implementação do acordo. O
objetivo dessa seção foi, portanto, o de argumentar que a inserção de uma política na agenda
internacional implica necessariamente em um conjunto institucional peculiar, que, coloca no
processo atores singulares, alterando a estrutura de custos que conforma a ação de cada um
deles, pelo que modifica a estrutura de preferências e os termos do acordo.
b) Os constrangimentos internacionais de ordem relacional
De acordo com o argumento que vem sendo defendido nesse trabalho, a opção pela
discussão internacional da formulação de uma política implica em custos específicos, na
medida em que essa ocorrerá em um ambiente institucional peculiar, com atores distintos
98
daqueles envolvidos em processo meramente doméstico. Para tanto, fez-se a exposição acerca
da influência dos atores domésticos e seu ambiente institucional nesse processo, bem como
das repercussões das instituições internacionais sobre ele. É para o que nos adverte Evans:
“acordos no nível internacional modificam o caráter dos constrangimentos domésticos,
enquanto o movimento político doméstico abre novas possibilidades para acordos
internacionais264
”. Falta, portanto, analisar a interferência que constrangimentos oriundos do
próprio relacionamento entre os Estados negociadores tem sobre os acordos daí resultantes.
A flexibilização da premissa de que Estados são atores unitários terá
desdobramentos importantes na discussão que se segue. Os representantes estatais nas
negociações internacionais têm competência para celebrarem acordos. Entretanto, isso não
significa que podem negligenciar interesses de outros atores domésticos. Dessa forma, a
poliarquia do cenário doméstico dos negociadores terá repercussões para sua estratégia de
ação. Dessa forma, pode-se perceber que os constrangimentos oriundos do relacionamento
entre eles podem ser classificados de duas formas: intergovernamentais e
transgovernamentais.
Os constrangimentos de ordem intergovernamental aproximam-se da visão dos
Estados como atores unitários. Dizem respeito, portanto, ao relacionamento direto entre os
negociadores, e são decorrentes dos recursos de poder que cada um deles detém. Nessa
categoria estariam inseridos, assim, artifícios como ganhos secundários (side payments)
oferecidos ao negociador. Um deles pode oferecer concessões em outra matéria, ou ainda
ameaçar retaliações. A idéia básica é a de que os Estados negociadores podem se valer de seus
recursos de poder para modificar a estrutura de custos da outra parte, fazendo com que ela
opte por um curso de ação que, caso contrário, não lhe seria aprazível. Ações com esse caráter
podem ser utilizadas tanto durante a fase de negociação – para que se consiga alguma
concessão – quanto durante a fase de execução – seja para garantir seu cumprimento, seja
para rediscutir os termos do acordo.
Nada impede, contudo, que as ações de um negociador sejam dirigidas a um ator que
não o negociador da outra parte. Podem ocorrer ainda ações que não sejam oriundas de
nenhuma das partes negociadoras, mas que digam respeito exclusivamente aos outros atores
envolvidos no processo. Esse tipo de constrangimento é, nesse trabalho, classificado como
transgovernamental.
264
EVANS, Peter B, Double-Edged Diplomacy: International Bargaining and Domestic Politics 1993, p.397;
tradução do autor.
99
A dinâmica da interferência dessas ações nos resultados (outcomes) do processo não
oferece maiores problemas: uma ação orientada para um dos atores envolvidos pode alterar
sua estrutura de custos, modificando sua preferência em relação ao acordo. Dessa forma, tem-
se uma alteração da estrutura de preferências e, a partir dos mecanismos já expostos, há uma
conseqüente alteração no cálculo do agente negociador.
Assim, se um negociador tem por objetivo obter uma concessão da outra parte, pode
se mostrar mais eficiente uma ação voltada diretamente para o grupo interno ao qual está
relacionada (ação transgovernamental) do que propriamente ao negociador da outra parte265
.
Ainda nesse sentido, um grupo de pressão que deseje uma opção de acordo que não seja aceita
pelo negociador da outra parte pode buscar alianças ou infringir constrangimentos a grupos
internos dessa parte, para que consiga que esse grupo exerça influência maior sobre seu
negociador.
Esse tipo de atuação pode se dar pelas mais variadas vias. Uma opção é a provisão
de informação266
a grupos internos que não as tinha, por exemplo, para que esses se engajem
com mais vigor no processo. A ação pode se dar ainda via proposição de ganhos secundários
(side payments)267
, para que se mude a estrutura de custos desse ator e conseqüentemente seu
posicionamento sobre a matéria. Assim, oferecimento de concessões em outras matérias,
financiamento de projetos e até mesmo ameaças de retaliações estariam inseridas nessa
classificação. Tal como nos casos de constrangimentos intergovernamentais, esses artifícios
podem ser utilizados tanto na fase de negociação quanto na fase de execução dos acordos.
Neste título do capítulo, o que se buscou foi a exposição da maneira pela qual os
constrangimentos de ordem internacional podem interferir no resultado de um determinado
acordo. Pela dinâmica exposta, forçosa é a conclusão de que esses constrangimentos atuam
como variável interveniente no modelo.
Como visto, a problematização da premissa de que o Estado é um ator unitário
permitiu que várias inferências fossem feitas, de forma que a dimensão doméstica passou a ser
importante para a determinação dos resultados de uma política internacional. Para que isso
265
Nesse sentido, MORAVCSIK, Andrew, Integrating International and Domestic Theories of International
Bargaining, 1993, pp.31-32. O autor chama esse tipo de interação de alianças transnacionais (transnational
alliances). No mesmo sentido, EVANS, Peter B, JACOBSON, Harold K., PUTNAM, Robert D., Double-Edged
Diplomacy: International Bargaining and Domestic Politics, pp.418-423. 266
A importância desse mecanismo fez com que PUTNAM, R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of
Two-Level Games, 1988, pp. 454-456 a inserisse como variável interveniente no modelo, a partir de um
mecanismo que chamou de reverberação (reverberation); pelo qual admitia que opções de grupos internos
poderiam ser modificadas, durante o processo de negociação, por ações tanto dos negociadores quanto dos
grupos internos. 267
Ver PUTNAM, R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, 1988, p.450.
100
fosse possível, fez-se uma exposição das unidades de análise que seriam utilizadas no modelo
proposto. Em seguida, foram propostas as variáveis que determinariam a influência de cada
um deles no resultado nas negociações. A estrutura doméstica de preferências fora colocada
como variável independente, ao passo que instituições, informação e constrangimentos de
ordem internacional são variáveis intervenientes do modelo. A tomada de decisões do ponto
de vista do ator que atua internacionalmente será, portanto, a variável dependente do modelo.
Tabela 2.5 Variáveis do Modelo
Variáveis Independentes Variáveis Intervenientes Variável Dependente
Estrutura de preferências
(preferências dos atores
políticos e sociais)
1) Instituições Decisão
2) Informação
3) Constrangimentos de
ordem internacional
Uma vez desenvolvido o arcabouço de análise, faz-se necessária uma exposição de sua
dinâmica, para que se explicite como o resultado final é condicionado pela interação entre os
elementos propostos.
TÍTULO 2: BARGANHA DOMÉSTICA E POLÍTICA INTERNACIONAL
O objetivo desse título é discutir como o modelo proposto é capaz de explicar a
interação entre as esferas doméstica e internacional durante a formulação de uma determinada
política. Para tanto, preciso é que haja a explicitação da dinâmica do arcabouço aqui
desenvolvido. Antes disso, porém, é conveniente rever a perspectiva de outros autores acerca
do tema. Milner explica a interação entre as duas esferas a partir de um arcabouço muito
semelhante ao que é aqui exposto, do qual interesse, instituições e informação são variáveis
independentes, sendo a cooperação internacional e seus termos as variáveis dependentes268
.
Para a autora, a dinâmica das interações poderia ser representada com base nos
seguintes atores: o executivo, o legislativo e os grupos de interesses – todos de cunho
268
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations ,
1997, p.23.
101
doméstico – além do país estrangeiro – que, de acordo com ela, é um ator unitário, sendo que
sua preferência política se equivale à do ―eleitor médio‖ (median voter)269
.
Seu argumento é o de que a presença de atores domésticos na discussão
internacional faz da cooperação algo ainda mais improvável do que normalmente prevêem as
teorias de relações internacionais270
. Seu argumento sustenta-se em duas questões: qual o
impacto de preferências distintas entre legislativo e executivo para a cooperação internacional
e qual o papel da distribuição de informação nesse processo271
.
A comparação entre o que a autora propõe e o modelo colocado nesse trabalho exige
que seja feita uma observação: o fato de considerar o país estrangeiro como um ator unitário
traz uma limitação a seu argumento. Isso porque esse pressuposto acaba por negligenciar o
papel dos constrangimentos de natureza internacional no resultado final do processo, na
medida em que o posicionamento da outra parte é trabalhado como um fator exógeno ao
modelo. Nesse sentido, seu arcabouço não consegue explicar a interferência de ações de
cunho transnacional, sejam elas referentes à interação entre governos e grupos de interesse ou
mesmo referentes à interação apenas entre grupos sociais de Estados diferentes. Seu cálculo
acerca da probabilidade do acordo resta, portanto, prejudicado.
Martin, por sua vez, insere a dimensão doméstica na análise da política internacional
para identificar a influência da ação legislativa sobre os processos de cooperação
internacional em democracias e suas conseqüências para a credibilidade dos
comprometimentos assumidos nessa esfera272
. Ela argumenta que a atuação do legislativo é
primordial para a compreensão dos termos da cooperação internacional. Contesta, portanto, a
afirmativa, feita por vários teóricos, de que a formulação de política externa é dominada pelo
executivo. Além disso, afirma que a influência da atuação de atores domésticos eleva a
credibilidade dos acordos (através de mecanismos indiretos), pelo que não é pertinente a
discussão acerca de qual ator é o ―mais influente‖. De acordo com suas palavras:
“Mais do que focar nossa análise em estabelecer qual parte do governo tem „a maior
influência‟ ou ganha as batalhas por poder, devemos pensar as ações entre executivo
e legislativo como um relacionamento de troca, no qual elementos distributivos e
269
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations ,
1997, p.71. 270
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations ,
1997, pp.76-94. 271
MILNER, Helen. Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations ,
1997, p.75. 272
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.3.
102
competitivos coexistem com o potencial para que ambas as partes ganhem com
instituições bem desenhadas273
”.
De acordo com ela, o principal mecanismo de atuação do legislativo seria o de
antecipação de reações, na medida em que afirma que sua atuação se dá muito mais através de
influência do que sobre ações diretas no processo de negociação274
. Os efeitos desse
mecanismo se manifestariam tanto na natureza do acordo – na medida em que o executivo
toma suas decisões com base também nas preferências do legislativo275
– quanto na eficiência
da cooperação internacional – uma vez que a participação legislativa aumenta a credibilidade
daquilo que está sendo acordado276
.
Nesse sentido, as instituições seriam as maiores fontes de credibilidade, na medida
em que demonstrariam claramente aos outros atores qual o posicionamento e o grau de
participação dos atores internos no processo. O que se pode inferir, portanto, é que, de acordo
com esse argumento, o mecanismo de influência é central para a análise, sendo a variação
institucional uma variável chave no processo e a credibilidade o principal problema
envolvendo a cooperação277
.
Propõe, assim, três conjuntos de variáveis que seriam capazes de explicar a
interação entre as esferas. O primeiro deles seria referente à influência legislativa. De acordo
com ela, pode-se afirmar que: quanto maior o nível de conflito de interesses, mais
institucionalizada a ação legislativa nos esforços cooperativos; e que o executivo não
consegue manipular as instituições de forma que consiga atuar independentemente dos
anseios do legislativo. No que se refere à credibilidade do comprometimento, afirma a autora
que quanto maior a institucionalização da participação legislativa, maior a credibilidade do
comprometimento278
, na medida em que diminui as chances de defecção involuntária.
Formula, por fim, a hipótese de que quanto maior a institucionalização da
participação legislativa, maior a possibilidade de cooperação – uma vez que o principal
problema a ela concernente – qual seja, o da credibilidade – estaria resolvido. Para comprovar
suas hipóteses, a autora faz uma discussão acerca da celebração de acordos por duas formas
distintas nos EUA: a partir do procedimento de acordos executivos e da celebração de
273
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.19. 274
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.23-36. 275
É nesse ponto do argumento que a autora discute a dimensão informacional, inserindo, como já discutido, os
atores sociais como secundários no processo. 276
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.43. 277
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.46-47. 278
Repare que, ao contrário do que ocorre com Milner, Martin afirma que a discrepância de preferências entre os
atores políticos, desde que balizada por instituições fortes, não se coloca como empecilho à cooperação.
103
tratados279
. De acordo com ela, a opção entre a utilização desses dois instrumentos – que têm
repercussões institucionais distintas – por parte do executivo, não ocorre como forma de
diminuir ou extinguir a influência do legislativo sobre o acordo. Para ela, a opção entre uma
forma mais rápida, na qual a influência do legislativo é menos institucionalizada (acordos
executivos) está muito mais ligada à complexidade da matéria discutida e à questão do
comprometimento. Cita como exemplo vários acordos envolvendo atividades militares, que
foram celebrados via acordos executivos. Isso somente teria sido possível porque em acordos
dessa natureza há outras formas de se assegurar o comprometimento (tais quais permissão
para instalação de bases militares, por exemplo)280
.
Pelo exposto, pode-se perceber que as autoras citadas têm uma visão aparentemente
conflitante acerca das repercussões da dimensão interna para a cooperação internacional. Uma
análise mais detida, contudo, leva a conclusão de que elas tecem seus argumentos com base
em aspectos distintos de um mesmo objeto. Milner está mais preocupada com as dificuldades
que a discrepância de preferências pode impor para que o acordo seja aceito internamente.
Martin já observa os efeitos da participação doméstica por uma outra óptica: uma vez que,
mesmo com discrepâncias internas um Estado conseguiu celebrar determinado acordo, isso
quer dizer que todos as partes envolvidas foram ouvidas e que se chegou a uma opção
razoável para todas elas, pelo que se mitiga o problema da credibilidade do comprometimento
e se viabiliza o processo de cooperação.
O objetivo desse trabalho, tal como ocorre com as duas autoras supracitadas, é
desenvolver um arcabouço que seja capaz de explicar os termos de um determinado acordo
internacional. Entretanto, ele não tem por objetivo discutir se a inserção de atores internos
dificulta ou facilita o processo de cooperação. De acordo com o argumento aqui defendido,
essa é uma questão que deve ser analisada caso a caso, na medida em que será dependente da
configuração das variáveis aqui expostas. Há a necessidade de se discutir, portanto, como essa
influência se concretizaria em cada caso concreto. A discussão que se segue é justamente
nesse sentido.
Do ponto de vista do modelo desenvolvido no âmbito desse trabalho, o primeiro
fator que deve ser considerado é a estrutura doméstica de preferências. Ela é a resultante do
jogo de interesses interno, e representa a opção política dos atores em cada problema (issue
área). É ela que irá, a rigor, determinar os termos do acordo aceitável pela parte.
279
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, pp.53-80. 280
MARTIN, Lisa L., Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation, 2000, p.79.
104
O desenho institucional no qual se desenvolvem as negociações não pode ser
negligenciado. Ele altera a estrutura de custos que se coloca aos atores, condicionando seu
comportamento em um determinado sentido. Dessa forma, ele pode inclusive inserir ou retirar
do processo alguns deles. Isso não significa que, como discutido, seja capaz de impedir sua
influência, em virtude do mecanismo de reações antecipadas. Contudo, a discussão de
políticas no nível internacional , como visto, tem repercussões institucionais tanto na fase de
negociação quanto durante a execução dos acordos internacionais, sejam elas de ordem
interna ou internacional.
Além disso, uma outra variável pode interferir na estrutura de preferências: a
informação. Isso porque, como visto, ela tem o condão de mobilizar em maior ou menor grau
certos grupos sociais e ao mesmo tempo pode modificar as preferências de grupos políticos,
na medida em que alteram a percepção que esses têm em relação aos objetivos dos grupos que
lhe dão suporte eleitoral.
Por fim, uma última variável é capaz de alterar a estrutura de preferências: os
constrangimentos de ordem internacional. As instituições internacionais podem modificar o
jogo político se comparado ao procedimento que seria adotado quando de uma discussão de
cunho eminentemente interno. Ademais, qualquer um dos atores relativos à outra parte da
negociação pode agir, como discutido, de forma a modificar a estrutura de custos que se
coloca aos atores domésticos ou ao negociador de um determinado Estado. Assim, diante de
cada caso concreto devem ser examinados esses aspectos, a fim de que se possam identificar
quais são as preferências que terão mais importância naquele determinado contexto. Elas
serão aquelas que condicionarão os termos do acordo internacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão acerca da criação de normas internacionais como uma escolha política
dos Estados, bem como a justificativa da importância da política doméstica na discussão do
direito internacional e as formas pelas quais ela afeta seus resultados são os dois principais
objetivos desse capítulo. Por essa razão, fez-se uma discussão acerca do conceito de
legalização, bem como uma consistente avaliação dos atores e variáveis envolvidas nas arenas
doméstica e internacional. Isso somente foi possível em decorrência da relativização da
premissa da unitariedade dos Estados, que permitiu que se fossem inseridas novas unidades de
análise – e conseqüentemente novas variáveis – do processo. Assim, o argumento fora
105
construído a partir da identificação dos atores e exposição dos níveis de análise, para que ao
final pudessem ser feitas inferências acerca da dinâmica do processo.
A conclusão a que se chegou é a de que esse tipo de abordagem pode explicar não só
a existência de um acordo internacional, mas também seus termos. A afirmativa de que
cenários domésticos são poliárquicos permitiu que se demonstrasse a relação entre o jogo de
preferências internas e a atuação dos negociadores na esfera internacional281
. Nesse sentido,
valiosa a colocação de Milner, que afirma que um acordo dessa ordem somente será viável se
os requisitos domésticos forem observados, mesmo que todas as considerações de ordem
internacional sobre defecção e ganhos relativos tenham sido ultrapassadas282
.
CAPÍTULO III – O AUMENTO DO NÚMERO DE ÓRGÃOS JUDICIAIS
INTERNACIONAIS E SUAS REPERCUSSÕES PARA A SOCIEDADE
INTERNACIONAL
281
Nesse sentido, a inferência da poliarquia se aplica não só a regimes democráticos, mas a qualquer outra forma
de organização estatal. Como destacado, o que interessa para o modelo é a divisão de poderes entre os atores
domésticos, pelo que a natureza dos regimes não se coloca como uma variável de análise. 282
MILNER. Helen, Interests, Institutions and Information: Domestic Politics and International Relations,
1997, p.253.
106
A recente tendência de adjudicação dos conflitos internacionais, caracterizada por
uma significativa especialização dos órgãos jurisdicionais internacionais e de suas
competências tem acirrado o debate acerca da fragmentação do DI. Uma vez que essa última
noção fora discutida no primeiro capítulo, e que houve a proposição de um arcabouço teórico
que relaciona os contextos políticos doméstico e internacional como condicionantes das
dimensões da ordem jurídica (segundo capítulo), deve-se, primeiramente, analisar o real
alcance da proliferação de cortes tribunais internacionais (parte I), para que então se possa
discutir de que forma essa tendência interfere na dinâmica do ordenamento jurídico
internacional. A hipótese defendida é a de que ela reflete a tensão existente na sociedade
internacional entre a existência de valores comuns e os ideais voluntaristas decorrente do
corolário da soberania dos Estados e conseqüente anarquia do sistema internacional.
PARTE I – A “PROLIFERAÇÃO” DE CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS
Seção 1- A caracterização do movimento: Expansão e especificidade Institucional
O significativo aumento do número de cortes e tribunais internacionais, ocorrido nos
últimos quinze anos, é provavelmente o indicador mais latente do movimento de expansão
não uniforme do Direito Internacional. A magnitude desse fenômeno é atestada, por exemplo,
quando se percebe que, apesar de existirem há mais de um século, sessenta e três por cento de
toda a atividade das cortes internacionais ocorreu nos últimos doze anos283
. Ele não se
caracteriza, contudo, apenas por seu aspecto quantitativo, uma vez que é acompanhado por
uma tendência de expansão e transformação da natureza e competência desses órgãos
judiciais284
. Para que se possa analisar de que forma a jurisdicionalização repercute na a
unidade do ordenamento internacional, faz-se necessária a compreensão do contexto no qual
essas mudanças ocorreram285
. Faz-se necessária, igualmente, a discussão de suas implicações
283
ALTER, Karen J., International Legal Systems, Regime Design and the Shadow of International Law in
International Relations. Paper presented at the American Political Science Association Conference, Boston, MA,
2002. 284
ROMANO, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle; 1999,
p.710. 285
Nesse sentido, relevantes colocações são feitas por Romano, que argumenta que essa ―proliferação‖ fora
resultado dos seguintes fatores estruturais: Fim da Guerra Fria e conseqüente abandono das concepções de
Marxistas e Leninistas acerca das RI (i); substantiva expansão do Direito Internacional, capitaneada pela
consolidação de novos regimes (ii); grande número de acordos comerciais regionais – os quais normalmente
trazem provisões acerca da solução de controvérsias (iii); e a emergência de atores de natureza não estatal na
Sociedade Internacional – tais quais Organizações Internacionais, indivíduos e cortes nacionais – cujas
107
no padrão normativo tradicional, a partir de questões relativas à possibilidade de conflito de
decisões, a ―constitucionalização‖ do sistema normativo internacional, a comunicação
transjudicial, e a ―possibilidade do fórum shopping‖286
.
Conforme será argumentado, a criação de cortes e tribunais internacionais é marcada
por sua diversidade funcional287
e institucional288
. Por essa razão, muito tem sido discutido
sobre uma pretensa fragmentação do DI, causada pela desmedida ―proliferação‖ desses
órgãos289
. Esse é, repita-se, justamente o foco desse trabalho. Faz-se necessária, portanto, uma
observação preliminar a esse respeito: em virtude desse recorte epistemológico, a avaliação
acerca das razões pelas quais os Estados têm optado por delegar a avaliação das questões
normativas a terceiros290
é algo que se coloca apenas de forma incidental. O que se quer frisar,
com isso, é que o foco desse estudo privilegia os impactos desse movimento para a Sociedade
Internacional. Isso significa que, do ponto de vista teórico, a jurisdicionalização será colocada
como uma variável independente.
Face à incipiência desse cenário, bem como aos problemas relativos à dificuldade de
uniformização conceitual acerca do tema, a determinação do que será considerado como
Cortes e Tribunais internacionais no âmbito desse trabalho é algo de suma importância.
Alguns autores optam por trabalhar com a noção cunhada por Martin Shapiro, de acordo com
a qual há quatro elementos envolvidos: (1) juízes independentes; (2) normas relativamente
precisas e preexistentes; (3) procedimento que consagre o contraditório; e (4) decisão de
acordo com a qual uma parte necessariamente vença291
. Essa, contudo, se mostra limitada por
pressupor uma correspondência entre os órgãos judiciais domésticos e internacionais. Não se
demandas criaram a necessidade de novas instituições internacionais (iv). (ROMANO, Cesare P.R., The
Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle; 1999, pp. 729-748). 286
Ver, por exemplo, The Proliferation of International Tribunals: Piecing Together the Puzzle, 31 New York
Journal of International Law and Politics, 1999. 287
Especialização da competência, regime legal aplicável, acesso, dentre outros. 288
Medidas provisionais, procedimentos internos, mecanismos de monitoramento e implementação das decisões,
por exemplo. 289
Ver, por exemplo, KINGSBURY, Benedict, Foreword: Is the Proliferation of International Courts and
Tribunals a Systemic Problem?, pp.680-688; BURGENTHAL, Thomas, Proliferation of International Courts
and Tribunals: Is it Good or Bad?, 2001. Para uma exaustiva análise a esse respeito, inclusive sobre a existência
real de eventuais conflitos de decisões, ver CHARNEY, Jonathan I., Is International Law Threatened by
Multiple International Tribunals?, RECUEIL DES COURS 101, 1998 (No qual o autor argumenta que, até
aquele momento, não havia nenhum indício de fragmentação). 290
Para uma discussão sobre as razões políticas que envolvem o processo de delegação, ver ALTER, Karen,
International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their Implications for State-IC relations,
2005. 291
SHAPIRO, Martin, Courts, a Comparative and Political Analysis, 1981, p.1. Ver, igualmente, MERRILS,
International Dispute Settlement, 1998, pp. 293-296; ALVAREZ, José E., New Dispute Settlers: (Half) Truths
and consequences, 2003, p.407; CARON, David, Towards a Political Theory of International Courts and
Tribunals, 2006, p.406.
108
pode negligenciar o fato de que a adjudicação, na esfera internacional, assume dinâmica
própria, notadamente distinta daquela dos ordenamentos nacionais.
Nesse último caso, o acesso às cortes é, normalmente, um direito inerente ao sujeito,
e se insere dentro de um sistema judicial hierarquizado e cujo mecanismo de implementação
das sanções é eficaz. Nas relações internacionais, por sua vez, a presença de Estados
Soberanos como os principais agentes do Direito Internacional implica especificidades para a
própria idéia do exercício da jurisdição, dramaticamente ligado ao consentimento desses292
.
Ademais, as vicissitudes desse contexto impedem que haja um sistema judicial análogo aquele
existente na esfera doméstica. Os mecanismos de implementação das sanções, por exemplo,
são especialmente inconsistentes, normalmente de ordem bilateral (à cargo dos próprios
Estados envolvidos na lide)293
. No seio da própria ONU, por exemplo, a única frágil provisão
de ordem institucional relativa à garantia das decisões da CIJ é aquela do artigo 94, parágrafo
2º da Carta, de acordo com a qual o Conselho de Segurança pode ser acionado nos casos de
seu descumprimento294
. Se por um lado os Estados têm gradativamente optado por se
submeter à jurisdição de Cortes e Tribunais Internacionais, por outro sua postura em relação à
autoridade de suas decisões ainda é ambígua, na medida em que reflete a tensão entre
soberania e comunitarismo colocada no primeiro capítulo desse trabalho. Nesse sentido,
destaca Leonardo Nemer C. Brant:
“A aplicação do princípio da autoridade da coisa julgada demonstra, assim, o estado
de maturidade do direito internacional na atualidade. Este princípio reflete a
contradição dialética entre a afirmação da soberania (voluntarismo expresso na
necessidade absoluta do consentimento) e a interdependência da comunidade
internacional (expressa na possibilidade de autoridade da decisão de um terceiro
jurisdicional). Esta contradição se expressa, em última análise, uma vez que
enquanto, por um lado, é amplamente admitido que a solução obtida através da
aplicação do direito por uma corte imparcial é aquela mais propícia de ser
respeitada e a durar; ou seja, enquanto por um lado o princípio da autoridade da
coisa julgada se consagra como corolário da manutenção da paz por intermédio do
direito, por outro, os Estados evitam engajar-se numa aventura em que um terceiro
imparcial poderá estabelecer uma obrigação normativa de natureza definitiva e
obrigatória para ele.”295
292
Ver, a esse respeito, ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in
International Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007. 293
Ver, nesse sentido, BRANT, Leonardo Nemer C., A autoridade da Coisa Julgada no Direito Internacional
Público, 2002, pp.227-233. 294
A única vez que esse dispositivo fora invocado foi em 1986, quando a Nicarágua alegou o descumprimento
de uma decisão da CIJ pelos EUA. Entretanto, nenhuma medida fora adotada, vez que esses últimos exerceram
seu poder de veto (S/PV 2700-2704 e 2718). 295
BRANT, Leonardo Nemer C., A autoridade da Coisa Julgada no Direito Internacional Público, 2002, p. 369,
notas de rodapé omitidas.
109
O que se deve fazer, portanto, é a articulação de um conceito que seja capaz de
abarcar essas especificidades relativas à adjudicação na esfera internacional. A opção, no caso
desse estudo, foi pelos critérios estabelecidos pelos pesquisadores do ―Project on International
Courts and Tribunals‖296
(PICT). De acordo com eles, uma Corte Internacional é aquela que é
(1) permanente; (2) composta de juízes independentes; (3) que decide controvérsias de duas
ou mais partes, sendo pelo menos uma delas Estado ou Organização Internacional; (4)
trabalha de acordo com regras e procedimentos preestabelecidos; e (5) cujas decisões são
vinculantes297
. Ao aplicar essa noção aos órgãos cujo objetivo precípuo é a solução de
controvérsias internacionais, pode-se claramente perceber o recente aumento de seu número,
bem como o considerável impulso em sua atividade nos últimos anos. Karen Alter nos
fornece, a partir de uma tabela, evidências bastante elucidativas a esse respeito. Ela relacionou
os principais tribunais internacionais em atividade (por ordem de criação), o total de casos
julgados, e a atividade de cada um deles desde o ano de 1990. Mais informações podem ser
encontradas também no portal do PICT298
.
TABELA 3.1 – UNIVERSO DE CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS299
Cortes Internacionais Data de
Estabelecimento/
Operacional
Total de Casos (ano passado
incluído)
Número de casos
1990-2003
Corte Internacional de Justiça
(ICJ)
1945/1946 104 casos contenciosos
arquivados, 80
30 julgamentos, 45 novos
casos arquivados, 3
julgamentos, 23 opiniões
consultivas (2003)
opiniões consultivas (2003)
Corte de Justiça Européia
(ECJ)
1952/1952 2304 casos infringentes pela
Comissão,
1580 casos infringentes pela
Comissão,
(Estrutura alterada desde
1989)
5044 casos remetidos por
cortes nacionais
3048 casos remetidos por
296
http://www.pict-pcti.org; último acesso em 08/02/2008. 297
http://pict-pcti.org/publications/synoptic_chart/synop_C4.pdf; último acesso em 08/02/2008. Essa definição
tem, por certo, algumas limitações de ordem material, razão pela qual é contestada por alguns autores. O critério
da permanência, por exemplo, exclui o sistema do NAFTA, que desempenha as mesmas funções de órgãos que
se enquadram nessa definição. Apesar disso, ela se mostra relativamente precisa, e sua aplicação nos fornece
uma visão segura do movimento que é objeto desse trabalho. Os próprios pesquisadores do PICT reconhecem a
existência de órgãos com funções semelhantes que não contemplam todos os critérios (na extensiva carta
sinóptica disponível no site, que elenca os principais tribunais internacionais – passados, presentes e aqueles
ainda não implementados -, eles diferenciam entre cortes (tribunais) internacionais e outras instituições de
solução de controvérsias). Por ser muito completa e didática, ela será reproduzida no ANEXO I desse trabalho,
para que o leitor possa a ela se remeter sempre que julgar conveniente. 298
http://pict-pcti.org/publications/synoptic_chart/synop_C4.pdf 299
Fonte: ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their
Implications for State-IC relations; 2005, p.8.
110
(2003) cortes nacionais (2003)
Corte Européia de Direitos
Humanos (ECHR) (Estrutura
alterada 1998)
1950/1959 8810 casos considerados
admissíveis, 4145 julgamentos
(2003)
8140 casos considerados
admissíveis, 3940
julgamentos (2003)
Corte do Benelux (BCJ) 1965/1974 * *
Corte Interamericana de
Direitos Humanos
1969/1979 104 julgamentos, 18 opiniões
consultivas,
95 julgamentos, 8 opiniões
consultivas,
(IACHR) 148 ordens para medidas
provisórias
146 ordens para medidas
provisórias
(2003) (2003)
Tribunal de Justiça do Acordo
de Cartagena
1979/1984 32 nulificações, 96 casos
infringentes,
29 nulificações, 94 casos
infringentes,
(Pacto Andino) (ACJ) 563 decisões judiciais
referentes à
550 decisões judiciais
referentes à
questões interpretativas (2003) questões interpretativas
(2003)
Tribunal de Justiça para a
Organização dos Países
1980/1980 2 casos (1999) *
Árabes Exportadores de
Petróleo. (OAPEC)
Tribunal Internacional sobre
Direito do Mar (ITLOS)
1982/1996 12 casos, 11 julgamentos
(2003)
12 casos, 11 julgamentos
(2003)
Corte Européia de Primeira
Instância (CFI)
1988/1988 1823 decisões de 2507 casos
arquivados (excluindo casos
da equipe) (2003)
1823 decisões de 2507
casos arquivados (2003)
Corte de Justiça da União do
Magreb Árabe (AMU)
1989/* * *
Corte de Justiça da América
Central
1991/1992 49 decisões judiciais (2003) 49 decisões judiciais (2003)
(CACJ)
Corte da Área de Livre
Comércio Européia (EFTAC)
1992/1995 59 opiniões (2003) 59 opiniões (2003)
Corte Econômica para o Bem-
Estar dos Estados
Independentes (ECCIS)
1993 47 casos, não é claro se estão
em andamento(2000)
47 casos, não é claro se
estão em andamento (2000)
Corte de Justiça para o
Mercado
1993/1998 * *
Comum da África
Austral e Oriental (COMESA)
Organização para a
harmonização
1993/1997 4 opiniões, 27 decisões
judiciais (2002)
4 opiniões, 27 decisões
judiciais (2002)
do direito de negócios
na África (OHADA)
Tribunal Penal Internacional
para a
1993/1993 75 acusações públicas, 18
casos concluídos,
75 acusações públicas, 18
casos concluídos,
Ex- Iugoslávia (ICTY) 11 julgamentos em vários
estágios de
julgamentos em vários
estágios de
apelação (2003) apelação (2003)
Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio
1953 229 casos, 98 decisões
judiciais
29 decisões judiciais (1989-
1993)
(GATT) sistema de solução de
controvérsias – não
possui corte permanente
Organização Mundial do
Comércio
Órgão Permanente de
Apelação (WTO)
1994/1995 304 disputas formalmente
iniciadas, 59 decisões judiciais
apeladas, 115 relatórios
painéis (2003)
304 disputas formalmente
iniciadas, 59 decisões
judiciais apeladas, 115
relatórios painéis (2003)
111
Tribunal Penal Internacional
para a
1994/1995 58 casos em andamento, 17
casos concluídos
58 casos em andamento, 17
casos concluídos
Ruanda (ICTR) (2003) (2003)
Tribunal Penal Internacional
(ICC)
1998/2002 * *
Corte Africana dos Direitos
Humanos e
1998/* * *
dos Povos (ACHR)
Tribunal Penal Internacional
para a Serra Leoa (ICTSL)
2002/2002 11 procedimentos de
acusação, 2 retirados devido à
morte (2003)
11 procedimentos de
acusação, 2 retirados devido
à morte (2003)
Atividade Judicial Total 20584 casos admitidos
arquivados ou
16908 casos admitidos
arquivados ou
sem decisão judicial sem decisão judicial
Somente Casos Concluídos 14886 decisões concluídas,
opiniões ou decisões judiciais
12736 decisões concluídas,
opiniões ou decisões
judiciais
O que se pode perceber, a partir da análise desses dados, é que a jurisdicionalização
do Direito Internacional ocorreu de forma heterogênea, tendo efeitos desproporcionais sobre
as diversas áreas do direito e das relações internacionais. Ao se comparar o arranjo
institucional de cada um desses órgãos, resta evidente que não há nenhuma relação
(institucional) direta entre elas, que suas ações não são sincronizadas, e que há dramáticas
diferenças nas regras de acesso aos mesmos300
. Pode-se indicar, a título exemplificativo, que o
Direito do Comércio Internacional tem sido um campo particularmente fértil para essas
instituições, o que também ocorre com os Direitos Humanos e com o Direito Internacional
Penal. O mesmo movimento não é percebido, contudo, em relação à área financeira e
monetária, às questões envolvendo segurança, fluxos de migração, dentre outros.
Diante desse contexto, a inferência de que o crescimento do número de cortes e
tribunais internacionais reflete a dinâmica da legalização – discutida nos dois primeiros
capítulos – se mostra bastante razoável. Argumenta-se, nesse sentido, que ele irá, por um lado,
ser balizado pela formação de uma incipiente ordem normativa internacional – à qual ele
acabará por reforçar. Por outro, ele responderá às demandas políticas específicas de cada uma
das áreas do direito e das relações internacionais – de acordo com a já discutida noção de
especificidade normativa em função da agenda301
. Nesse sentido, destaca Cesare Romano:
“A jurisdicionalização não uniforme das relações internacionais é inevitável, dado o
fato de que a comunidade internacional é composta por entes soberanos que não
300
Ver, a esse respeito, a robusta matriz comparativa dos principais órgãos judiciais internacionais,
disponibilizada pelo PICT (http://www.pict-pcti.org/matrix/matrixhome.html, último acesso em 08/02/2008), e
que consta no ANEXO II desse trabalho. 301
Ver capítulo 1, supra.
112
reconhecem autoridades superiores ipso facto. (...) O Direito Internacional sempre
manterá um nível considerável de unidade no nível normativo, mas será sempre
fracionado no que se refere às suas instituições de governança, uma vez que poder e
legitimidade no nível internacional são fragmentados e distribuídos em meio a um
grande número de Estados e, mais recentemente, entidades supra-nacionais. Se não
há, portanto, nenhuma forma de evitar o pluralismo e a fragmentação, então surge a
questão se esse „não sistema‟ judicial pode continuar na fronteira entre a utopia de
um „estado universal‟ e a auto-destruição sob o peso de suas próprias
contradições”.302
Seção 2- As condicionantes sistêmicas do movimento de jurisdicionalização do
Direito Internacional
Título 1 - Tendências conjunturais
1- Adoção do paradigma compulsório.
Como qualquer outro arranjo normativo desenvolvido no seio da Sociedade
Internacional, a criação de Cortes e Tribunais internacionais é condicionada pela ação e
vontade dos Estados. Conforme ressaltado anteriormente, a adjudicação é uma opção que
esses fazem por delegar autoridade para que um terceiro resolva seus conflitos303
. Há vários
Estados que relutam a se vincular a cortes ou tribunais nos quais ele poderá ser julgado
independentemente de uma manifestação volitiva específica para um determinado caso304
. A
título exemplificativo, basta lembrar que apenas 24 dos membros da OEA (de um total de 35)
aceitam a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIADH)305
; que noventa
membros da ONU ainda não ratificaram o estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI)306
; e
que não há nenhuma corte internacional na Ásia307
. O consentimento é, portanto, elemento
essencial para que se compreenda a dinâmica da jurisdicionalização.
O que se pode afirmar, contudo, é que a exigência relativa à manifestação volitiva
dos Estados para o exercício da jurisdição dos órgãos internacionais tem se modificado
302
ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International
Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, p. 797, nota de rodapé 19, tradução do autor. 303
Isso é, como dito, notadamente diferente da esfera doméstica, na qual todo sujeito que se sinta lesado tem o
direito de acesso ao judiciário independentemente da vontade da outra parte envolvida na controvérsia. 304
Pode-se citar, por exemplo, Irã, Coréia do Norte, Vietnam, Azerbaijão, dentre outros. 305
http://www.oas.org/juridico/english/sigs/b-32.html (última visita em 02/02/2008). 306
http://www.untreaty.un.org/ENGLISH/bible/engishinternetbible/partI/chapterXVIII/treaty11.asp (última
visita em 02/02/2008). 307
Para um chinês, por exemplo, a proteção dos Direitos Humanos por um tribunal internacional é uma opção
que não se coloca.
113
substancialmente nos últimos anos, caracterizando uma mudança de um paradigma
consensual308
para um eminentemente compulsório. Se, nas décadas de 50 e 60 os Estados
rejeitavam a idéia de se obrigar à submissão de suas controvérsias a cortes309
, o que se assiste,
a partir da década de 90, é a uma inversão dessa tendência310
. Quando se analisa o universo
dos Tribunais Internacionais atualmente, constata-se que apenas a Corte Internacional de
Justiça, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e algumas matérias relativas ao Tribunal
da Lei do Mar ainda funcionam com base no modelo consensual311
. Os exemplos daqueles
que assumem o paradigma compulsório, por sua vez, são abundantes: Corte Européia de
Direitos Humanos (CEDH), Corte Européia de Justiça, Órgão de Solução de Controvérsias da
OMC, Tribunal Penal Internacional, dentre outros312
.
Como destaca Cesare Romano, mesmo nos casos da Corte Internacional de Justiça e
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas jurisdições são consensuais, há uma forte
tendência à adoção do paradigma compulsório313
. O que se deve destacar, em ambos os casos,
é que o princípio da Competência da Competência assume papel central nesse contexto314
.
A CIJ é, provavelmente, o tribunal internacional mais próximo da raiz voluntarista
clássica do DI – talvez pelo fato de seu estatuto ser idêntico ao da Corte Permanente de
Justiça Internacional (CPJI), criada na década de 20, ainda no âmbito da Liga das Nações.
Interessante notar, igualmente, que sua jurisdição ratione materiae é ampla o suficiente para
abarcar qualquer controvérsia entre Estados relativa a qualquer questão de Direito
Internacional315
. A cláusula facultativa de jurisdição obrigatória, por sua vez, não produz
efeitos práticos significativos, uma vez que o número de Estados da ONU que a ratificaram é
308
Como destacou a Corte Permanente de Justiça Internacional, “nenhum Estado pode, sem seu consentimento,
ser obrigado a submeter suas disputas (...) à arbitragem ou qualquer outro tipo de resolução pacífica de
controvérsias (Status Of Eastern Carelia, Advisory Opinion, 1923, no.5, p.19). 309
Ver a Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados de 1969; As conferências sobre relações
diplomáticas e consulares de 1961 e 1963; dentre outros. 310
Ver POSNER, Eric A; e YOO, John C., Judicial Independence in International Tribunals, 2005, p.11;
ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their Implications for
State-IC relations; 2005, pp.10-11. Para um denso histórico acerca da tendência à adoção do paradigma
compulsório, ver ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in
International Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, pp. 803-816. 311
Duas observações são, nesse caso, relevantes. A primeira delas é a de que tanto a CIJ quanto a CIADH trazem
a previsão de protocolos adicionais para o reconhecimento de sua jurisdição compulsória. A outra se refere ao
Tribunal da Lei do Mar, que têm o caráter consensual para algumas matérias e compulsório para outras. Esse
fato é um indicador relevante para a tese de que o desenho institucional desses órgãos é feito com base nas
demandas políticas que a eles se colocam. 312
Uma lista completa desses tribunais pode ser obtida na Matriz do PICT, anexo II desse trabalho, disponível
em http://www.pict-pcti.org/matrix/matrixhome.html, último acesso em 08/02/2008. 313
ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International
Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, pp.816-831. 314
Para uma análise da extensão do controle dos Estados no estabelecimento da jurisdição da CIJ, ver BRANT,
Leonardo Nemer C., A Autoridade da Coisa Julgada no Direito Internacional Púbico, 2002, pp. 294-300. 315
Ver artigos 34 e 36 do Estatuto da CIJ.
114
de 66 (em um universo de 191)316
. Cabe lembrar que ela somente pode ser invocada quando
há reciprocidade na sua aceitação pelas partes envolvidas no conflito, o que diminui ainda
mais a possibilidade de sua utilização.
É interessante notar, contudo, que apesar de ter seu funcionamento balizado pelo
paradigma consensual, apenas 15 dos 105 casos submetidos à CIJ foram fundados em acordos
ad hoc. Os outros foram submetidos unilateralmente; com base em uma cláusula
compromissória de tratado internacional (bilateral ou multilateral); por meio de uma
declaração opcional ou pelo forum prorogatum317
. Como observa Romano, a Corte
dificilmente nega sua jurisdição, o fazendo apenas nos casos em que ela flagrantemente não
existe318
. Exemplos célebres de casos nos quais houve atenuação do princípio do
consentimento não faltam: Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua (EUA v.
Nicarágua), no qual a Corte, por maioria aceitou a declaração de reconhecimento da jurisdição
da CPJI, mesmo essa não tendo sido ratificada por seu legislativo319
; Border and Transborder
armed actions (Nicarágua v. Honduras)320
; dentre outros.
No que se refere à competência consultiva, merece destaque o caso das
Conseqüências Legais da Construção do Muro no Território Ocupado Palestino, opinião
solicitada pela Assembléia Geral da ONU321
. Quando a Corte requisitou informações a Israel,
esse, que não aceitava a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória desde 1985, argüiu que a
matéria não poderia ser apreciada por aquela jurisdição. Isso porque se tratava de um caso que
envolvia diretamente os interesses do Estado de Israel, não podendo, portanto, a questão ser
avaliada em sede consultiva. A CIJ, entretanto, afirmou que o parecer não sobrepujava o
princípio do consentimento, e que nenhum Estado pode barrar uma ação que a ONU, por meio
da Assembléia Geral, julga necessária. É interessante notar que, em um caso semelhante, a
CPJI decidiu de forma diversa. Em 1923 o Conselho da Liga das Nações solicitou à Corte
Permanente de Justiça Internacional um parecer acerca de um acordo entre Finlândia e URSS
316
O único membro permanente do Conselho de Segurança que a reconhece atualmente é, note-se, o Reino
Unido. Ver http://www.icj-cji.org/jurisdiction/index.php?p1=5&p2=1&p3=3, último acesso em 08/02/2008. 317
Ver ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International
Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, p.818, http://www.icj-
cji.org/docket/index.php?p1=3&p2=2, último acesso em 08/02/2008. 318
Desde 1990, dos 38 casos a ela unilateralmente submetidos, em apenas 11 a jurisdição da CIJ fora por ela
negada. Para a listagem completa desses casos, ver ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the
Compulsory Paradigm in International Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, p.818, nota de
rodapé 98. 319
1986, I.C.J, 27 de junho, p.14. De se destacar a veemente opinião dissidente do juiz norte-americano. 320
1988, I.C.J., 20 de dezembro, p.69. 321
Parecer Consultivo, 2004, I.C.J., 9 de julho.
115
sobre a região da Eastern Carelia322
. A Corte se recusou a dar o parecer alegando que ele
versaria sobre uma controvérsia já estabelecida entre os dois Estados. Destaca-se, contudo,
que a URSS não era membro da Liga em 1923323
, ao contrário do que acontece com Israel,
que é um membro da ONU.
A jurisdição contenciosa da CIADH – sobre controvérsias que envolvam a
Convenção Americana de Direitos Humanos – depende da ação da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos ou de um dos Estados parte da referida Convenção324
. De acordo com
seus dispositivos, portanto, o consentimento para sua jurisdição deve acontecer duas vezes:
quando da ratificação da Convenção; e por meio de uma declaração opcional. Concebido na
década de 60, esse sistema tinha, certamente, o propósito de ser claramente consensual. A
forte influência da Corte Européia de Direitos Humanos – na qual uma recente reforma
consagrou o paradigma compulsório325
– associada ao robusto trabalho jurisprudencial, tem
implicado em significativos avanços em relação à necessidade do consentimento. Alguns
autores apontam que a CIADH adota uma verdadeira ―doutrina compulsória‖326
.
Dos setenta e um casos da Corte, objeções preliminares foram suscitadas em
trinta327
, sendo que o tribunal encerrou o processo em apenas dois deles328
. Como destaca
Cesare Romano, cinco casos encarnam a orientação da Corte em relação à doutrina
compulsória: Ivcher-Bronstein (1999) e Constitutional Court (1999), ambos contra o Peru; e
Hilaire (2001), Benjamin (2001), e Constantine (2001) contra Trinidad e Tobago329
.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos iniciou os procedimentos contra o
Peru em maio e junho de 1999, respectivamente. Contudo, o Peru, em julho, notificou à Corte
e ao Secretário Geral da OEA, que o Congresso daquele país tinha aprovado, com efeito
imediato, a retirada do reconhecimento peruano à jurisdição da Corte. O Tribunal
prontamente rechaçou, por unanimidade, esse argumento, afirmando que não há na
Convenção nenhum dispositivo que permita a retirada do reconhecimento da jurisdição da
322
Status da Eastern Carelia, Parecer Consultivo, 1923. C.P.J.I., 23 de julho. 323
Sua adesão somente ocorreu em 1934. 324
Convenção Americana de Direitos Humanos, arts. 61 e 62. 325
O Protocolo 11, de 1994, à Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais determinou que a filiação ao Conselho da Europa é condicionada à ratificação da Convenção
Européia, o que implica o automático reconhecimento da jurisdição da CEDH (ver artigo 65 da Convenção
Européia e Estatuto do Conselho da Europa, T.S. no. 001). 326
ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International
Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, p.821. 327
http://corteidh.or.cr/casos.cfm, última visita outubro de 2007. 328
Ver Alfonso Martin del Campo-Dodd v. México, 2004, no.113 (no qual a jurisdição ratione temporis não
existia); e Cayara v. Peru, 1993, no. 114. 329
ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International
Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, pp.821-824.
116
Corte, e que tampouco a declaração feita pelo Governo Peruano tinha qualquer previsão nesse
sentido. Dessa forma, a CIADH não poderia ficar a mercê de alegações feitas pelas partes
baseadas em razões domésticas. Esclareceu, ainda, que a única forma pela qual poderia o Peru
se furtar à jurisdição da Corte seria pela denúncia à própria Convenção.
A contestação feita por Trinidad e Tobago, em seus casos, fora baseada em uma
reserva feita pelo país à sua declaração de reconhecimento da jurisdição da Corte, de acordo
com a qual essa existiria apenas se consistente com as seções relevantes da Constituição
daquele Estado, e desde que a decisão proveniente não infringisse, criasse ou abolisse
qualquer direito ou dever de seus cidadãos330
. O tribunal prontamente declarou que a reserva
alegada era contra o objeto e propósito da Convenção, sendo, por essa razão, inválida. A
invalidação da reserva, contudo, não implicou a invalidade da própria declaração de
reconhecimento da jurisdição. A Corte, portanto, com base nela, se julgou competente para
apreciar a demanda.
Cesare Romano destaca, igualmente, dois casos consultivos que reforçam a tese de
que a CIADH tem assumido o paradigma compulsório. Tanto na opinião consultiva relativa
ao Right to Information on Consular Assistance331
quanto no Undocumented Migrants332
, o
México colocou, de forma geral, questões a serem respondidas pela Corte. Contudo, elas
claramente se referiam aos Estados Unidos. Por essa razão, eles, que não ratificaram a
Convenção Americana de Direitos Humanos, argüiram a falta de jurisdição do tribunal, uma
vez que seu consentimento para tanto era inexistente. Em ambos os casos, a CIADH superou
os argumentos norte-americanos. Seus argumentos eram baseados no fato de que as opiniões
consultivas não têm caráter vinculante; que a existência de uma dúvida no que diz respeito à
interpretação de um dispositivo legal não constitui um impedimento ao exercício da função
consultiva; e que a questão colocada era de natureza geral.
O que se pode perceber, diante do exposto, é que o aumento do número de tribunais
internacionais fora, nos últimos anos, acompanhado por uma forte tendência à consagração de
um paradigma compulsório (em detrimento do consensual). Tal fato reforça a tese de que os
Estados têm promovido esforços no sentido de que suas controvérsias sejam resolvidas por
um terceiro independente. Não é seguro se afirmar, contudo, que esse é um movimento
definitivo, nem tampouco que ele tenha repercussões homogêneas sobre todas as áreas do DI.
Seu efeito certamente varia de acordo com o arranjo institucional de cada um desses órgãos de
330
Hilaire v. Trinidad e Tobago, 2001, CIDH, no.80, prelimiray objections, p.43. 331
The Right to information on Consular Assistance in the Framework of the Guarantees of The Due Process of
Law, Advisory Opinion, 1999, CIADH , no. 16. 332
Juridical Condition and Rights of the Undocumented Migrants, Advisory Opinion, 2003, CIADH, no.18.
117
solução de controvérsias. Por esse motivo, a análise desse fenômeno deve ser feita à luz das
outras condicionantes estruturais que podem ser identificadas na esfera internacional, que
serão expostas a seguir.
2- Participação de Atores Não-Estatais
Ao se observar com alguma atenção à jurisdicionalização do Direito Internacional,
resta cristalino o fato de que vários órgãos judiciais internacionais permitem, de alguma
forma, a participação de atores não estatais em seu processo. Esse movimento tem, por certo,
relevantes repercussões para a dinâmica da adjudicação, tanto no que se refere ao número de
casos submetidos aos tribunais internacionais, quanto nas questões relativas à implementação
de suas decisões. Com o objetivo de permitir uma análise mais detida dessas implicações,
segue uma tabela com as regras de acesso relativas às principais cortes internacionais.
TABELA 3.2 – ACESSO AOS PRINCIPAIS TRIBUNAIS
INTERNACIONAIS333
.
Corte Legitimados Consentimento Fonte casos Interv. 3os Amic.Curiae
CIJ Estados, órgãos
e OIs
Deve ser dado Exógena Sim Sim
Trib. Mar Est., indivíduos,
órgãos e OIs
Deve ser dado Exógena Sim Sim
OMC Estados Implícito Exógena Sim Sim
TPI Indivíuos,
Prosecutor
Implícito Endógena e
exógena
Sim ------------
ICTY;ICTR Indivíuos,
Prosecutor
Implícito Endógena Não Sim
CEDH Est., indivíduos,
órgãos, OIs,
ONGs
Implícito Exógena Sim Sim
CIADH Estados, órgãos
e OIs
Deve ser dado Exógena Não Sim
CADH Est., indivíduos,
órgãos, OIs,
ONGs
Implícito (só para
disputas entre Est.)
Exógena Sim
-----------
CEJ Est., indivíduos,
órgãos, OIs,
cortes nacionais
Implícito Exógena Sim Não
A) Organizações Internacionais (OIs)
333
Fonte: Matriz PICT. Para quadro completo de tribunais, ver Anexo II desse trabalho, disponível em
http://www.pict-pcti.org/matrix/matrixhome.html, último acesso em 08/02/2008.
118
As Organizações Internacionais têm canais de comunicação com praticamente todos
os órgãos de solução de controvérsias internacionais. Seu nível de envolvimento varia,
contudo, de acordo com o desenho institucional de cada um deles. A razão para sua efetiva
participação nos procedimentos de adjudicação não é difícil de figurar: sua criação
normalmente é motivada pelo fato de que sua existência diminui os custos da ação Estatal em
uma determinada área sobre a qual elas atuam334
. Muitos de seus órgãos são desenhados
justamente com o papel de monitorar e zelar pelo cumprimento dos acordos. Nesses casos,
limitar a ação dos tribunais somente à atuação dos Estados seria condicionar a própria
atuação desses órgãos.
É por essa razão que, em alguns casos, essas Organizações têm o poder de solicitar
opiniões jurídicas (de caráter não vinculante) aos órgãos judiciais internacionais. É o que
acontece com o Conselho de Segurança, com a Assembléia Geral da ONU – ou qualquer
outra agência especializada por ela autorizada – em relação à CIJ335
; com o Comitê de
Ministros em relação à Corte Européia de Direitos Humanos336
; com o Conselho e a
Comissão das Comunidades Européias em relação à Corte Européia de Justiça337
; com os
órgãos da OEA em relação à Corte Interamericana de Direitos Humanos338
; com a Assembléia
Geral ou com o Conselho da Autoridade da Lei do Mar em relação ao Tribunal da Lei do
Mar339
; dentre vários outros casos.
As OIs ou seus órgãos, em outras situações, podem funcionar como intermediadores
de interesses de outros grupos sociais junto aos tribunais internacionais; como é o caso da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que avalia denúncias individuas de violações
a seus direitos e tem o poder de submetê-las à apreciação da Corte Interamericana de Direitos
Humanos340
. Em outros casos, elas podem ser partes de um contencioso. É o que ocorre, por
exemplo, com a ―International Sea-bed Authority‖ perante a ―Sea-bed Dispute Chamber‖ do
Tribunal da Lei do Mar341
; e com o órgão de acusação (Prosecutor) dos Tribunais Penais
Internacionais342
.
334
Ver capítulo 2, desse trabalho. 335
Carta da ONU, art. 96; Estatuto da CIJ, arts. 65-68. 336
Protocolo 11 Adicional à Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais, art. 47. 337
Tratado Constitutivo da Comunidade Econômica Européia, art.300. 338
Carta da OEA, art. 51; Estatuto da CIADH, arts. 19, 64. 339
Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar, arts. 159.10, 191. 340
Convenção Americana de Direitos Humanos, art.61.1. 341
Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar, art. 187; e Estatuto do Tribunal da Lei do Mar, art.37. 342
Ver, por exemplo, Estatuto do TPI, arts. 13, 34.c; Estatuto do Tribunal Penal para a Ex-Iugoslávia, arts. 11.b,
18; e Estatuto do Tribunal Penal para Ruanda, arts. 10.b, 17.
119
B) Indivíduos
Por ainda não terem uma personalidade jurídica plenamente reconhecida – tanto nos
órgãos internacionais quanto na doutrina343
– o acesso dos indivíduos aos tribunais
internacionais ainda é incipiente, e muito menos uniforme do que o das OIs. Ademais, parece
haver uma relação inversa entre a generalidade da jurisdição dos tribunais e a abertura para
participação dos indivíduos. Quanto maior a competência e o âmbito temporal e espacial de
abrangência das Cortes, menor é o espaço para os últimos344
.
Dessa forma, sua atuação direta em instituições como a Corte Internacional de
Justiça e o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC ainda não é institucionalizada345
. Em
sistemas regionais, contudo, há vários exemplos nos quais há mecanismos de ação destinados
às pessoas (sejam naturais ou jurídicas): Comunidades Européias346
; Comunidade Andina347
;
Sistema de Integração Centro-Americano348
, dentre outros.
Ao se analisar o número de casos submetidos às Cortes e Tribunais Internacionais, à
luz de suas regras de acesso, o que se pode inferir é que a efetiva participação de indivíduos
tende a implicar um aumento significativo no número de demandas a eles levadas349
. Isso
acontece pelo fato de que quanto maior a gama de habilitados para propor uma ação, menos o
custo do recurso ao tribunal recai sobre um determinado Estado350
. Merece destaque, nesse
sentido, a comparação entre a Corte Européia de Direitos Humanos e a Corte Interamericana
de Direitos Humanos. No primeiro caso, desde a entrada em vigor do Protocolo 11, os
indivíduos podem recorrer a ela diretamente; enquanto que no último há uma intermediação
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É interessante notar que o número de
343
Ver, nesse sentido, TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, Direitos Humanos: personalidade e capacidade
jurídica internacional do indivíduo, 2004; e PELLET, Alain, As Novas Tendências do Direito Internacional:
Aspectos “Macrojurídicos”, 2004, p.6. Mas, como destaca o autor, a consolidação do indivíduo como sujeito do
DI ainda carece de avanços institucionais que permitam com que ele tenha maior capacidade de atuação na
esfera internacional. 344
Ver, nesse sentido, ROMANO, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of
The Puzzle; 1999, pp. 743-746. 345
A defesa dos seus interesses, nesses casos, deve ser exercida pelos próprios Estados aos quais pertecem. 346
Tratado Constitutivo da Comunidade Econômica Européia, arts. 229, 230, 232, 235, 236, 238, e 241, que
incluem ações de anulação, ações por danos, ações contra aplicabilidade de regulamentos da CE, dentre outras. 347
Tratado de Criação da Corte de Justiça de Cartagena, art. 19. 348
Estatuto da Corte de Justiça Centro Americana, art.22. 349
Em relação a essa inferência, Karen Alter coloca uma relevante questão. De acordo com ela, não há,
necessariamente, uma relação direta entre acesso de indivíduos (ou atores não estatais) e o número de casos
levados a um Tribunal Internacional. Tal situação será igualmente condicionada por outras variáveis, e deve ser
mais bem compreendida à luz do escopo e objetivos de cada um desses órgãos judiciais. ver ALTER, Karen,
International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their Implications for State-IC relations,
2005, pp. 11-14. 350
Ver, nesse sentido, GOLDSTEIN, Judith & MARTIN, Lisa. Legalization, trade liberalization, and domestic
politics: a cautionary note, 2000.
120
casos e procedimentos perante a CEDH aumentou dramaticamente após a modificação de
suas regras de acesso.
TABELA 3.3 – CEDH E CIADH – CASOS, 1997-2003351
.
CEDH 1990-1998 CEDH 1999-2003 CIADH 1990-2003
Litigantes privados sem direito de Litigantes privados sem
Acesso Direito de acesso
Número de 632 3307 249
Procedimentos Casos por ano 70.2 661.4 17.78
Apesar de ser um processo ainda incipiente e fracionado, deve-se destacar, por fim,
que a possibilidade de acesso direto a tribunais internacionais, como destaca Cesare Romano,
pode implicar a modificação do instituto da proteção diplomática352
; cuja definição clássica
fora consagrada pela Corte Permanente de Justiça Internacional. De acordo com ela, a
proteção diplomática ocorre quando:
“ao tomar para si um caso de um de seus nacionais, por meio de ação diplomática
ou procedimentos judiciais internacionais em sua representação, um Estado está,
na realidade, assegurando seu próprio direito, o de garantir na pessoa de seus
próprios nacionais o respeito pelas regras de Direito Internacional.‖353
C) Cortes e Tribunais Nacionais
O acesso de Cortes e Tribunais nacionais a órgãos internacionais ocorre
notadamente quando esses últimos têm um caráter regional, frequentemente quando há uma
ordem normativa supranacional estabelecida. É o caso, por exemplo, das Comunidades
Européias354
; da Comunidade Andina355
; e do Sistema de Integração Centro-Americano356
.
O recurso a esse tipo de ação é feito, normalmente, para assegurar uma interpretação
uniforme da norma supranacional, bem como prover meios eficazes para sua implementação
na esfera doméstica. Os tribunais domésticos passam a atuar, assim, como guardiões daquele
351
Fonte: ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their
Implications for State-IC relations, 2005, p.14. 352
Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle; 1999, p.746. 353
Panevezys-Saldutiskis Railway, CPJI, ser. A/B, no.76, 1939, tradução do autor. 354
Tratado Constitutivo da Comunidade Econômica Européia, art. 234. 355
Tratado de Criação da Corte de Justiça de Cartagena, art. 29. 356
Estatuto da Corte de Justiça Centro Americana, art. 22.k.
121
determinado regime. Nesse sentido, todo o aparato normativo nacional, relativo à execução
das normas nacionais passa a ser utilizado também em prol das normas internacionais, sem
que, para isso, haja a necessidade de nenhum procedimento especial na esfera legislativa357
. O
que se deve destacar, contudo, é que essa relação é dificultada por dois fatores: (i) em virtude
da heterogeneidade do próprio aumento de cortes e tribunais internacionais, são poucos os
casos nos quais isso ocorre, e não há um padrão indicativo de quais devem ser seus termos;
ademais, (ii) os diferentes procedimentos internos e regimes jurídicos distintos de cada um
dos Estados podem, de alguma forma, criar entraves políticos e normativos tanto no
desenvolvimento das demandas quanto na implementação de suas decisões358
.
D) Organizações Não-Governamentais (ONGs)
A atuação das Organizações Não-Governamentais é apontada como principal
indicador da crescente participação da Sociedade Civil no procedimento de formulação e
implementação de políticas – sejam elas de caráter nacional ou internacional. Variadas são as
abordagens que se ocupam dos novos mecanismos de governança, cujo foco tem sido a
possível modificação do papel do Estado Soberano na determinação das diretrizes das mais
relevantes questões da Agenda Internacional359
. Há, nesse sentido, significativos movimentos
que afirmam a necessidade de maior participação das ONGs na esfera normativa
internacional. A abertura de canais de comunicação entre essas organizações e os tribunais
internacionais é, de fato, um tema recorrente na agenda internacional.
Neste contexto, sintomática é a afirmativa do Secretário Geral das Nações Unidas,
na Assembléia Geral de 1999, de acordo com a qual “Estados devem servir seus povos. Se
eles fracassarem em fazê-lo e permitirem sérios abusos de Direitos Humanos, eles se abrem à
intervenção justificada da comunidade internacional, na forma da própria ONU360
”. O que
se pode observar é que a percepção, pela sociedade civil, da necessidade de controle das ações
estatais, acompanhada da demanda por sua efetiva participação no processo de tomada de
decisões. Esse movimento é refletido na Agenda 21, na qual se afirma que os governos devem
357
Para uma avaliação do papel desse mecanismo na construção do sistema legal europeu, ver, ALTER, Karen J.
The European Union´s Legal System and Domestic Policy: Spillover or Blacklash?, 2000. 358
Ver, nesse sentido, Foreword: Is the Proliferation of International Courts and Tribunals a Systemic
Problem?, pp. 694-695. 359
Ver, por exemplo, ROSENAU, James. Toward an Ontology for Global Governance. In.: Approaches to
Global Governance Theory, HEWSON and TIMOTHY (eds) 1999; ROSENAU, James, Governance in a New
Global Order, 2002; HELD, David, and McGREW, Anthony (eds.) Governing Globalization, London: Polity
Press, 2002. 360
Financial Times. People First. Sept. 22th, 1999, p.13.
122
adotar “quaisquer medidas legislativas necessárias para permitir o estabelecimento de
grupos consultivos de organizações não-governamentais, e para garantir a elas o direito de
proteger o interesse público por meio de ação legal361
”.
Tem-se, assim, uma significativa pressão para a criação de canais de comunicação
entre o Estado e a Sociedade Civil, que se traduzirão (i) em um ambiente propício para a
atuação das ONGs; e (ii) na problematização dos padrões clássicos de produção normativa
internacional, na medida em que a legalidade (baseada no consentimento) não mais será
suficiente como fundamento de validade de seus diplomas. O Estado assiste, portanto, a um
movimento de questionamento de sua legitimidade, que resulta em uma firme demanda pela
participação do terceiro setor tanto na elaboração quanto na implementação de suas decisões.
As ONGs assumem, destarte, ainda que de maneira incipiente e pouco regulamentada, as
seguintes funções: (i) a de definição da agenda de políticas a ser discutida e votada; (ii) do
acompanhamento dos processos decisórios, de forma que fique garantida a transparência dos
mesmos; (iii) de prestação de serviços técnicos – tanto no momento da criação quanto no da
implementação normativa; e (iv) de fiscalização da execução das políticas adotadas362
.
A possibilidade de atuação dessas organizações está, contudo, condicionada por um
lado, pelo debate acerca de sua legitimidade para desempenhar determinadas funções363
, e,
por outro, pela relativa fragilidade com que o ordenamento internacional regulamenta a
matéria364
. Importante destacar, nesse sentido, que a legitimidade das ações das ONGs está
intimamente ligada à dimensão axiológica, na medida em que quanto maior for a
homogeneidade em torno de certos valores, maior será o reconhecimento das atividades que
visem à sua consagração.
Não por acaso o regime internacional de proteção aos direitos humanos é aquele que
permite significativa participação de organizações com esse caráter. Tanto a Corte Européia
de Direitos Humanos365
como a Corte Africana de Direitos Humanos366
permitem que elas
361
Agenda 21, paras. 27.10 e 27.13, tradução do autor. 362
Ver, nesse sentido, o trabalho do “Panel of Eminent Persons on United Nations – Civil Society Relations”,
presidido por Fernando Henrique Cardoso (Ex-Presidente do Brasil), que deu origem ao relatório “We the
peoples: Civil Society, the United Nations and Global Governance” (UN Doc. A/58/817), de 11 de junho de
2004. 363
Ver, nesse sentido, BUCHANAN and KEOHANE, The Legitimacy of Global Governance Institutions, 2006. 364
Ver, igualmente, BODANSKY, Daniel, The Legitimacy of International Governance: A Coming Challenge
for International Environmental Law?, American Journal of International Law, 1999. 365
Estão legitimados a submeter questões à apreciação da CEDH, “qualquer pessoa singular, organização não-
governamental ou grupo de particulares, que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte
Contratante, dos Direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos”.(Estatuto da CEDH, art.34). 366
Desde que o Estado a ser demandado tenha feito, de acordo com o artigo 34.6 do Protocolo à Carta Africana,
uma declaração aceitando a competência da Corte para demandas individuais. Para que nesses casos figurem as
123
figurem como partes em seus procedimentos. Apesar de não permitir o acesso direto de
indivíduos ou ONGs à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Sistema Interamericano
tem relevantes mecanismos que permitem sua atuação.
No âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as ONGs têm duas
funções relevantes: atuar no momento das visitas in loco367
; e peticionar quando há
desrespeito aos direitos garantidos pela Convenção Interamericana368
. Na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, as ONGs agem tanto no âmbito consultivo
quanto no contencioso. Em ambos, a atuação ocorre por meio do instituto do amicus
curiae369
. No que concerne à competência consultiva, ele é o único meio de participação370
.
No que se refere à competência contenciosa371
há, além dele, a possibilidade de que atuem
como testemunhas e com auxílio à vítima, na qualidade de seus representantes legais372
.
Diante desse contexto, forçosa é a conclusão de que a atuação das ONGs, apesar de
ser uma realidade na esfera internacional, ainda carece de instrumentos legais apropriados,
ONGs como parte do processo, elas devem ainda ter o status de observadores perante a Comissão Africana
(artigo 5,3 do protocolo). 367
As ONGs, nesses casos, atuam como importantes provedores de informação. Neste sentido, são realizados
encontros entre a Comissão e as organizações da sociedade civil envolvidas com a proteção aos Direitos
Humanos, como se deu, por exemplo, nas visitas in loco feitas ao Brasil em 1995, Bolívia e Colômbia em 1997,
Guatemala em 1998, Argentina, Haiti e México em 2002 368
São diversos os casos que demonstram a significância da atuação das ONGs como peticionárias na Comissão,
ao auxiliarem que as pretensões das vítimas sejam alcançadas sem necessidade de se recorrer à Corte
Interamericana. Neste sentido, podem ser citados o caso Meninos Capados do Maranhão contra o Brasil (Casos
12.426 e 12.427, Solução Amistosa, 15 de março de 2006), caso Sergio Schiavini y María Teresa Schnack de
Schiavini contra a Argentina (Caso 12.080, Solução Amistosa, 27 de outubro de 2005), caso Paulina del Carmen
Ramírez Jacinto contra o México (Petição 161-02, Solução Amistosa, 9 de Março de 2007) e caso Alejandra
Marcela Matus Acuña e outros contra o Chile (Caso 12.142, Mérito, 24 de outubro de 2005). Merecem destaque
as seguintes organizações: Global Rights, CEJIL, Lawyers Committee for Human Rights, Casa Alianza,
Guatemalan Association of Missing Detainee Next-Of-Kin (FAMDEGUA). 369
Pôde-se observar a participação como amicus curiae da Anistia Internacional e da Rights International no Caso Benavides Cevallos Vs. Equador; ainda, a International Human Rights Law no Caso
Gangaram Panday Vs. Suriname e no Caso Barrios Altos Vs. Peru. 370
Nas Opiniões Consultivas, as cartas de amicus curiae estiveram presentes desde o primeiro caso levado à Corte, quando da OC-1/82, solicitada pelo Peru, a qual discute acerca da interpretação do artigo 64
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Na oportunidade, diversas ONGs ofereceram seus pontos de
vista como amigos da Corte, tais quais International Human Rights Law Group, International League for Human
Rights e Lawyers Committee for International Human Rights o que levou ao estabelecimento de um importante
precedente. 371
Desde o primeiro caso contencioso (Velazquez Rodriguez), a Corte recebeu várias cartas amicus curiae de ONGs como Amnesty International e a Lawyers Committee for Human Rights. Entretanto, a menção à atuação das ONGs, enquanto amicus curiae é limitada somente ao registro, no corpo da decisão, do recebimento de tais cartas, sem maiores análises ou referências ao texto particular de cada uma. Como verdadeiras peças processuais, as cartas são submetidas a um juízo de admissibilidade. 372
Ver, por exemplo, o caso Penal Miguel Castro vs. Peru em 2006, no qual a sentença considerou a tese da impetrante, mudando o rumo do julgamento. Em casos brasileiros, a atuação das ONGs também se mostra relevante. Ver Ximenes Lopes (2003) e Gilson Nogueira de Carvalho (2005), no qual não houve, contudo, condenação do Brasil.
124
que sejam capazes tanto de permitir ações efetivas quanto de limitar e controlar o exercício
das atividades das mesas373
.
Como visto, a tendência de incorporação de atores não-estatais no processo de
adjudicação internacional não pode ser questionada. É, nesse sentido, suficiente a constatação
de que o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC é, de acordo com a doutrina, o único
com caráter exclusivamente inter-estatal. Deve-se ressaltar que, à rigor técnico, ele admite a
ação de um ator com características distintas, uma vez que a Comunidade Européia participa
efetivamente de seus procedimentos374
. Esse movimento não se desenvolve, no entanto, de
forma linear, e sua sorte futura depende de uma conjuntura política ainda incerta.
Como visto, o desenho institucional das Cortes Internacionais varia de forma
dramática, notadamente no que se refere àqueles atores com capacidade de participar, como
partes ou não, de seus respectivos procedimentos. Segue, portanto, uma tabela com
indicadores de acesso aos tribunais internacionais; cujo objetivo é permitir que se possa
avaliar minimamente os vários níveis de abertura consagrados por cada um deles375
.
TABELA 3.4 - INDICADORES DE ACESSO376
.
Nível de Acesso Legitimação para demanda Corte Internacional ou tribunal
Baixo Todos os Estados devem consentir Corte Permanente de Arbitragem,
CIJ
Moderado Um Estado pode demandar*
Acesso através de Cortes
Nacionais
GATT, OMC
Corte Européia de Justiça
Alto Acesso individual direto se
instâncias domésticas esgotadas
Cortes Européia e Interamericana
de Direitos Humanos
* Inclusive influenciado por atores sociais domésticos377
3- A diversidade e maleabilidade funcional dos órgãos judiciais internacionais
373
Ver, nesse sentido, COLLINGWOOD, Vivien; LOGISTER, Louis. State of the Art: Addressing the INGO
„Legitimacy Deficit‟, 2005. 374
Ver, nesse sentido, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle;
1999, p.739. 375
É importante frisar que, de acordo com o argumento defendido nesse trabalho, a opção por um determinado
nível de abertura será feita em decorrência das demandas políticas colocadas pela área da agenda internacional
sobre a qual o tribunal exercerá sua jurisdição. 376
KEOHANE, Robert O.; MORAVCSIK, Andrew; & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute
Resolution: Interstate and Transnational, p.464. 377
Ver, nesse sentido, LAGE, Délber A., Barganha Doméstica e Política Internacional: A Política Agrícola dos
EUA e sua Atuação em Fóruns Multilaterais, 2005.
125
Tradicionalmente, o tema da adjudicação tem sido estudado dentro da disciplina da
chamada ―resolução pacífica de controvérsias internacionais‖378
. No entanto, classificar os
órgãos judiciais internacionais juntamente com os procedimentos políticos de resolução de
controvérsias (negociação, inquérito, bons ofícios, mediação, conciliação)379
e arbitragem ad
hoc é tecnicamente impróprio e pode comprometer a análise de seu real efeito na sociedade
internacional380
. Tal afirmativa se justifica, basicamente, por duas razões: (i) pela participação
de atores não estatais em seus procedimentos (muitas vezes associada à adoção do paradigma
compulsório)381
; e (ii) pela variedade funcional resultante do aumento do número de cortes e
tribunais internacionais. No primeiro caso, o que se pode constatar é que a abertura à atuação
de atores não estatais nesses órgãos retirou dos Estados o controle que tinham sobre suas
atividades e a exclusividade de participação em seus procedimentos. O que se pode afirmar,
nesse sentido, é que as Cortes Internacionais deixam de ser um instrumento dos Estados, cuja
utilização se dá apenas para a resolução de seus conflitos.
As repercussões decorrentes do acesso de atores não estatais aos órgãos judiciais
internacionais já foram discutidas no tópico anterior. É necessário que se compreenda,
portanto, qual a relação de sua diversidade funcional com a afirmação de que o estudo da
adjudicação internacional deve ser feito a partir de um arcabouço teórico peculiar. Como
ressalta Karen Alter, os diferentes papéis exercidos por esses órgãos mostram que por vezes
seu maior objetivo é o respeito às normas do Direito Internacional, o que não necessariamente
se resume à solução de controvérsias (muitas vezes com alcance bilateral) entre Estados. Ao
analisá-los, a autora identificou quatro padrões funcionais, os quais podem inclusive conviver
em um mesmo tribunal382
. Uma discussão mais detida acerca de cada um deles será
importante para corroborar a tese de que as cortes internacionais ultrapassam a noção de
meros instrumentos de resolução de controvérsias inter-estatais.
Karen Alter coloca, portanto, que os padrões funcionais assumidos pelos tribunais
internacionais são os seguintes: (i) administrativo, cuja principal função refere-se à
fiscalização dos atores públicos que aplicam ou implementam determinada norma; (ii)
Criminal, responsável por avaliar a legitimidade do emprego da força pelos agentes
governamentais; (iii) de resolução de disputas, que refere-se à determinação do dispositivo
378
Ver, nesse sentido, MERRILS, International Dispute Settlement, 1998. 379
Ver artigo 33.1 da Carta da ONU. 380
ROMANO, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle; 1999,
p.749. 381
Ver tabela relativa ao acesso aos principais tribunais internacionais, supra. 382
ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their Implications
for State-IC relations, 2005, pp. 16-39.
126
legal aplicável a uma determinada controvérsia; e (iv) constitucional, de acordo com o qual
se avalia a coerência e adequabilidade de diplomas normativos produzidos por atores
legislativos. A autora afirma, igualmente, que seu entendimento deve se dar a partir de três
dimensões distintas: jurisdição, que inclui a competência em razão da matéria e se o
paradigma é ou não compulsório; regras de acesso; e remédios legais que podem ser por eles
utilizados383
.
Quando os juízes internacionais se revestem de uma função de cunho administrativo,
eles devem se preocupar em avaliar as decisões dos administradores públicos, de forma a
garantir que elas foram tomadas de acordo com o procedimento adequado. Nesses casos, a
competência da corte deve abarcar a legalidade de quaisquer de seus atos (regulamentos,
diretivas, etc), bem como sua omissão quando tinham o dever de fazer algo. Por se tratar de
uma situação em que o próprio agente estatal será julgado, o ideal é que a jurisdição seja
compulsória. Pela mesma razão, as regras de acesso devem permitir atores não estatais. Os
remédios legais devem, por fim, serem capazes de anular o ato viciado, e, igualmente, de
impor ação para o restabelecimento da situação de acordo com os ditames legais384
.
Um tribunal que assuma a função Criminal, por sua vez, deve apreciar demandas
relativas à legalidade do uso da força pela autoridade estatal. O ideal é que a jurisdição seja,
nesse caso, compulsória. As regras de acesso podem se restringir a Estados, ou se estenderem
a procuradores institucionais ou outros atores não estatais. Os remédios podem variar desde
prisão dos responsáveis, medidas legislativas internas, a compensação por danos ilegalmente
causados à vítima385
.
O objetivo da atuação jurisdicional pode ser, igualmente, a solução de controvérsias
de caráter particular, normalmente relativas à aplicação de determinados dispositivos
normativos específicos ou ao (des)cumprimento de alguma regra juridicamente vinculante.
Nessas situações, a jurisdição da Corte varia entre os paradigmas consensual e compulsório. O
acesso normalmente é de exclusividade estatal. Os remédios legais normalmente se limitam
ao caráter vinculante da decisão (que versa sobre a aplicabilidade de determinada norma ou
383
ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their Implications
for State-IC relations, 2005, p. 22, e 25. 384
Esse tipo de função pode ser identificado, por exemplo, na Corte de Justiça de Cartagena, relativa a uma
decisão da Comissão Andina; e no Tribunal Internacional da Lei do Mar, em virtude de determinada ação da
“Seabed Authority”. 385
Exemplos dessa função podem ser encontrados nos Tribunais Penais Internacionais e nas Cortes de Direitos
Humanos.
127
impõe um dever de fazer ou não fazer); em alguns casos pode haver a possibilidade de
retaliação (bilateral) quando persistir a violação386
.
Os órgãos judiciais internacionais podem, por fim, assumir uma função
constitucional. Seu objetivo é o de controlar a produção de diplomas normativos,
normalmente à luz de alguns valores que se consagraram como hierarquicamente superiores.
Por vezes, esse tipo de atuação visa a uniformização da interpretação e aplicação de normas
com status supra-nacional. A jurisdição deve ser compulsória, e abarcar atos estatais e de
Organizações Internacionais. As regras de acesso normalmente incluem entes não estatais. Os
remédios podem anular os atos em desconformidade com diplomas de hierarquia superior e
até mesmo impor determinado dever de fazer à autoridade legislativa387
.
TABELA 3.5 – FUNÇÕES JUDICIAIS DAS CORTES INTERNACIONAIS388
Revisões Resoluções de Sanção Revisão
Administrativas Disputa Criminal Constitucional
Revisão de ações das
OIs * ITLOS (Autoridade do solo
oceânico),
*EFTAC, *CFI,
*ECJ, *TJAC,
*CACJ
*ECJ, *TJAC
Revisão de Ações
Estatais *ECJ,
ICJ, ITLOS, ECJ, CACJ, ECJ
*COMESA, *CCJ,
* ITLOS (re:
somente medição de
embarcações)
WTO, ECJ, EFTA,
OAPEC, CCJ,
ECCIS, CACJ,
OHADA,
*ECHR, IAHCR,
COMESA, ACHR
(Comissões & outros
estados
expressamente
autorizados)
COMESA,
AMU,TJAC
Litigância privada é
um
papel modificado)
Revisão de *TJAC.
Cortes Nacionais *COMESA,
Decisões *ECCIS,
*OHADA,
*CJAC, *BCJ,
*CCJ
Revisões privadas Disputas *ICC, *ICTY,
Comportamento do
Ator
Particulares *ICTR, *ICTSL
OI: *ECJ, *TJAC
386
Os exemplos mais latentes desse tipo de função podem ser encontrados na CIJ, na OMC e no Tribunal da Lei
do Mar. 387
Exemplos: Corte Européia de Justiça, Corte Européia de Direitos Humanos, OMC, Corte de Justiça de
Cartagena, dentre outros. 388
Fonte: ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their
Implications for State-IC relations, 2005, p.41.
128
* Acesso não estatal / Cortes marcadas em Itálico: jurisdição compulsória.
A tabela 3.5 traz alguns exemplos dos principais tribunais internacionais, associados
às funções que podem exercer. O que se pode notar, dessa forma, é que um mesmo órgão
pode assumir mais de uma função diferente, dependendo da natureza da demanda com a qual
se depara. A possibilidade ou não de exercício da mesma, de acordo com as normas
previamente fixadas pelos Estados (em seu acordo constitutivo), irá variar em função das
demandas políticas envolvidas389
.
Diante do exposto, pertinente se mostra a tese de os órgãos judiciais internacionais
têm assumido um papel muito mais abrangente do que aquele identificado no início do século
XX, qual seja, o de resolução de controvérsias inter-estatais390
. A tendência, portanto,
resultante do aumento do número de órgãos judiciais internacionais é que o efeito de suas
decisões alcance tanto aos Estados quanto a outros atores; e que, em alguns desses casos,
obrigue não apenas as partes envolvidas no litígio, mas sim a todos aqueles submetidos à sua
respectiva jurisdição391
. Ademais, deve-se frisar que o nível de maleabilidade funcional de
cada uma das cortes será definido de acordo com o interesse dos Estados quando da
elaboração de seus acordos constitutivos. Há, contudo, o risco que o desenvolvimento de suas
atividades crie situações que não foram previstas pelos Estados, nas quais os tribunais se
comportariam de uma forma que não era a princípio desejada392
.
4- Os Estados ainda são os atores com maior influência no comportamento das
Cortes e Tribunais Internacionais
Nas seções anteriores, foram discutidas algumas tendências decorrentes da
―proliferação‖ de cortes e tribunais internacionais. De acordo com o exposto, se mostra
razoável a afirmativa de que, na última década, houve um significativo aumento do número de
casos apresentados a esses órgãos, bem como uma diminuição do controle dos Estados no
389
Karen Alter argumenta, nesse sentido, que a utilização desses quatro padrões funcionais como variáveis de
análise fornece importantes inferências para a compreensão da relação Estado-Cortes Internacionais; ALTER,
Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their Implications for State-IC
relations, 2005. 390
Para uma abordagem histórica dos principais desenvolvimentos do escopo dos tribunais internacionais, ver,
igualmente, ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in
International Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, especialmente pp. 804-816. 391
Ver, no mesmo sentido, ROMANO, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The
Pieces of The Puzzle; 1999, p.737. 392
Ver ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and Their
Implications for State-IC relations, 2005, pp. 54-63.
129
estabelecimento dessas demandas – principalmente em decorrência da mudança para o
paradigma compulsório e da abertura dos órgãos à participação não estatal. Isso não implica,
contudo, que os Estados deixaram de exercer influência determinante no seu estabelecimento
e funcionamento393
. São eles os responsáveis tanto pela determinação das normas
constitutivas dos tribunais, quanto pelo suporte (inclusive financeiro) a suas atividades, bem
como, na maioria das vezes, pela implementação de suas decisões. Como destacam alguns
autores: “Claramente o poder e preferências dos Estados influenciam o comportamento tanto
do governo quanto dos tribunais de solução de controvérsias: o direito internacional opera à
sombra do poder”394
.
Uma discussão mais detida acerca das formas de controle do Estado sobre os órgãos
judiciais internacionais é de suma importância para a compreensão do problema enfrentado
nesse trabalho. No âmbito desse trabalho, essa relação será avaliada a partir de uma variável
que tem como objetivo determinar o nível de independência de um tribunal vis-à-vis aos
Estados que são submetidos à sua jurisdição. Ela deve ser compreendida à luz dos
mecanismos de controle utilizados pelos segundos, que podem ser, conforme argumento que
se segue, de duas ordens: jurídicos; ou políticos. Ademais, eles devem ser igualmente
analisados a partir de uma dupla perspectiva: uma institucional, relativa ao funcionamento do
próprio órgão; e outra pessoal, relacionada ao nível de independência dos juízes.
A) Constrangimentos de ordem institucional
Os Estados têm uma série de instrumentos para condicionar e avaliar a atuação dos
órgãos judiciais internacionais, que podem ser utilizados tanto no momento de sua criação
quanto durante o exercício de suas atividades. Para que essa dinâmica seja mais bem
compreendida, essa seção abarcará os constrangimentos (a) de ordem jurídica (formal); e (b)
os de ordem política (informal)395
.
a) Os mecanismos formais de controle estatal
393
Ver, nesse sentido, CARON, David, Towards a Political Theory of International Courts and Tribunals, 2006,
pp.405-410. 394
KEOHANE, Robert O.; MORAVCSIK, Andrew; & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute
Resolution: Interstate and Transnational, p.458, tradução do autor. 395
Para uma discussão ampla desses mecanismos, mas a partir de uma perspectiva um pouco diferente, ver
HELFER, Laurence R.; & SLAUGHTER, Anne-Marie, Why States Create International Tribunals: A Response
to Professors Posner and Yoo, 2005, pp.42-56. Alguns dos mecanismos discutidos nesse trabalho foram
identificados a partir do argumento defendido por elas; ver especialmente quadro sinóptico da página 46.
130
É no momento da negociação dos acordos constitutivos que os Estados têm a
oportunidade para fixar a competência, o procedimento, e os instrumentos para aplicação
normativa dos tribunais internacionais. Por essa razão, essa é uma fase crítica para a
determinação do nível de independência de um determinado órgão.
O primeiro instrumento de controle refere-se ao nível de precisão das normas
substantivas, que constituirão a competência ratione materiae do tribunal. Conforme
discutido no segundo capítulo, quanto maior o nível de precisão de uma regra, menor o espaço
para interpretação, e consequentemente, menor a possibilidade de uma interpretação diversa
daquela desejada pelo Estado396
. Igualmente relevante, pelas mesmas razões, é o nível de
precisão das normas procedimentais que serão seguidas no âmbito do órgão. Merecem
destaque, nesse sentido, as regras relativas ao acesso397
. Os Estados podem ainda se valer de
reservas tanto às normas substantivas que podem ser aplicadas quanto ao reconhecimento da
jurisdição dos tribunais398
.
Mesmo após o estabelecimento de uma corte internacional, os Estados ainda se
valem de instrumentos formais de controle sobre sua atividade. Eles podem, por exemplo,
reinterpretar uma norma substantiva, cuja aplicação da maneira pela qual fora concebida passe
a contrariar seus interesses399
. Se o funcionamento da corte implicar divergências
significativas em relação aos anseios iniciais que ensejaram sua criação, um Estado ainda
pode: (i) renegociar as normas relativas à sua jurisdição, acesso e procedimento400
; (ii) retirar
a declaração pela qual reconhece sua competência ou denunciar ao tratado ao qual sua
jurisdição se vincula401
. Em uma medida mais unilateral, ele pode optar por retardar a
implementação da sentença aplicada.
A forma de implementação da sentença é, no que se refere ao nível de independência
de um tribunal, um indicador muito significativo. Uma decisão que seja, por exemplo, auto-
396
Ver, igualmente, ABBOTT, Kenneth W. et al. The concept of legalization, 2000. 397
Ver seção Participação de atores não estatais, supra. 398
O alcance dessas últimas reservas é, contudo, bastante limitado pela tendência atual de adoção do paradigma
compulsório, mesmo por aqueles tribunais cuja jurisdição ainda é consensual – notadamente a CIJ e a CIADH.
Ver seção Adoção do Paradigma Compulsório, supra. 399
O alcance desse mecanismo é, certamente, limitado, na medida em que ele somente terá o efeito desejado se
também for aplicado pelos outros Estados envolvidos ou se a interpretação for reconhecida como legítima pelo
próprio tribunal. 400
A mesma limitação se aplica a esse caso, na medida em que esse instrumento somente poderá ser exercido se
houver certa ―homogeneidade‖ em relação às insatisfações dos Estados. 401
Como destaca Cesare Romano, esse é um instrumento que, em virtude da adoção do paradigma compulsório,
pode se fortalecer decisivamente no atual cenário internacional. Ver ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the
Consensual to the Compulsory Paradigm in International Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007,
pp. 857-865.
131
aplicável na esfera doméstica do Estado (como ocorre com a Corte Européia de Justiça)
permite que atores domésticos controlem seu cumprimento. Caso um Estado se recuse a fazê-
lo, esses atores podem inclusive recorrer aos instrumentos jurídicos nacionais para garantir
sua efetividade. Segue tabela indicativa do nível de independência em relação a essa questão.
TABELA 3.6 – INDEPENDÊNCIA: IMPLEMENTAÇÃO DAS DECISÕES402
.
Nível de Independência Quem impõe cumprimento Corte Internacional ou Tribunal
Baixo Governos individuais podem vetar
implementação da decisão
GATT
Moderado Não há veto, mas não há
mecanismos legais de imposição
de cumprimento
OMC, CIJ403
Alto Normas Internacionais aplicadas
por Cortes Nacionais
Normas de direitos humanos
incorporadas e relativas à CEDH,
sistemas nacionais em que
tratados são auto-executávies
b) Os Mecanismos Informais de Controle Estatal
Os Estados mais poderosos podem, nesse caso, se valer de seu prestígio político para
evitar que um estado mais fraco opte por levar a controvérsia a um tribunal, ou para que este
não exerça o direito de retaliação eventualmente decorrente da inexecução de uma de suas
sentenças404
. Os Estados podem, tanto no momento da criação quanto posteriormente, prover
fundos insuficientes405
para que as atividades sejam desenvolvidas da forma adequada406
. Em
caso de insatisfação com uma decisão, pode-se, igualmente, optar pela submissão do mesmo
caso a um outro tribunal com jurisdição concorrente, prática que é conhecida como fórum
402
Fonte: KEOHANE, Robert O.; MORAVCSIK, Andrew; & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute
Resolution: Interstate and Transnational, p.467. 403
No caso da CIJ, há a previsão de que o Conselho pode ser acionado para fazer valer uma decisão sua.
Entretanto, diante da própria estrutura e natureza política do Conselho, essa possibilidade é muito remota, não
tendo sido registrado nenhum caso até o presente momento. 404
É o que acontece, por vezes, em relação ao direito de retaliação decorrente da inexecução de uma decisão da
OMC. Em vários casos os Estados ganhadores acabam por não se valer dele. 405
HELFER, Laurence R.; & SLAUGHTER, Anne-Marie, Why States Create International Tribunals: A
Response to Professors Posner and Yoo, 2005, p. 50. 406
Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Tribunal Penal de Ruanda, que enfrenta sérias dificuldades
decorrentes da escassez de seus recursos. É interessante notar que o Tribunal Penal para Ex-Iugoslávia , que fora
criado por razões semelhantes, recebera um aporte dramaticamente maior de recursos. Ver, nesse sentido,
CARON, David, Towards a Political Theory of International Courts and Tribunals, 2006, p.410.
132
shopping407
. Se desejar agir de forma claramente unilateral, basta ignorar a sentença ou
cumpri-la parcialmente408
.
B) Constrangimentos de ordem pessoal: a independência dos juízes
A independência dos juízes internacionais, como discutido anteriormente, é
elemento essencial do próprio conceito de órgão judicial internacional409
. Conforme destaca
Pasquale Pasquino, ela é essencial para a consagração da estrutura tripartite de resolução de
conflitos410
. Os Estados podem, por meio da indicação dos juízes, controle financeiro e outros
artifícios, influenciar decisivamente a atuação de um determinado juiz411
. É interessante se
notar que há instrumentos não obrigatórios que tratam da questão da independência tanto do
ponto de vista nacional412
quanto internacional413
. Os próprios tribunais, em seus estatutos ou
regulamentos internos, consagram dispositivos nesse sentido414
. Alguns autores afirmam,
nesse sentido, a necessidade de padronização dessas regras, para que se evite uma situação na
qual uma corte interna se recuse a aplicar uma decisão internacional alegando que ela não
esteja de acordo com os padrões legais de seu Estado, por exemplo415
.
A determinação das normas de seleção, reeleição, tempo de mandato, número de
juizes, é, portanto, essencial para se estabelecer o nível de controle sobre os mesmos. Os
Estados ainda podem criar mecanismos de controle (implícitos ou explícitos) dentro da
407
O Brasil, por exemplo, ao perder uma demanda no Tribunal de Arbitragem do MERCOSUL (Brasil v.
Argentina, 21/V/01, 2001), recorreu à OMC, onde conseguiu uma decisão favorável (WT/DS241/R abril de
2003). 408
Para uma análise do grau de cumprimento das decisões dos principais tribunais internacionais, ver POSNER,
Eric A; e YOO, John C., Judicial Independence in International Tribunals, 2005, pp. 29-54. 409
Ele aparece em ambas as definições analisadas nesse trabalho, quais sejam, a de Martin Shapiro e a do PICT.
Ver seção A Caracterização do Movimento: Expansão e Especificidade Institucional, nesse capítulo. 410
PASQUINO, Pasquale, Prolegomena to a Theory of Judicial Power: the Concept of Judicial Independence in
Theory and History, 2003, p.14. 411
Ver, nesse sentido, MILLER, Nathan J., Independence in the International Judiciary: General Overview of
the Issues, 2002, p.2. 412
United Nations Basic Principles on the Independence of the Judiciary, UN Doc. A/RES/40/146 (13
December 1985). 413
International Bar Association Code of Minimum Standards of Judicial Independence, aprovada em Nova
Delhi, 1982; Montreal Universal Declaration on the Independence of Justice (1983); Beijing Statement of
Principles of the Independence of the Judiciary in the LAWASIA Region (1995); Syracuse Principles (1981). 414
Estatuto da CIJ, art.2, bem como Practice Directions VII e VIII (7 de fev. 2002, disponível em http://www.icj-
cji.org/icjwww/ibasicdocuments.htm, último acesso em 30/01/2008); art. 17 DSU (OMC); Estatuto do TPI,
artigo 36; dentre outros. 415
MACKENZIE, Ruth; & SANDS, Phillippe, International Courts and Tribunals and the Independence of the
International Judge, 2003, p.275.
133
própria organização da qual o tribunal faz parte416
. Além disso, o controle pode ser feito pela
via (informal) de pressões políticas. Como destacam Sands e Mackenzie, a reputação é algo
bastante valorizado no meio jurídico internacional417
, fato que pode ser explorado tanto a
favor quanto contra a independência dos juízes. Nesse sentido, destaca Gilbert Guillaume, ex-
Presidente da CIJ: “Ultimamente, como mostrado por vários exemplos nacionais,
independência é, acima de tudo, uma questão de caráter. Os únicos juízes sobre pressão são
aqueles que são suscetíveis a ela. Um juiz que deseja ser independente o é”418
.
Segue tabela que traz indicadores para análise.
TABELA 3.7 – INDICADORES DE INDEPENDÊNCIA419
.
Nível de independência Seleção e Mandato Corte Internacional ou Tribunal
Baixo Representantes diretos, talvez com
veto individual
Conselho de Segurança da ONU
Moderado Litigantes controlam seleção ad
hoc de juízes
Grupos de Estados controlam
seleção de juízes
Corte Permanente de Arbitragem
CIJ, GATT, OMC
Alto Governos individuais apontam
juízes com mandato longo
Grupos de Estados selecionam
juízes com mandato longo
Corte Européia de Justiça
Cortes Européia e Interamericana
de Direitos Humanos
Foram expostas, até agora, quatro tendências conjunturais, que, conforme
argumentado, são a base para o entendimento do aumento do número de órgãos judiciais
internacionais, quais sejam: (1) adoção do paradigma compulsório; (2) abertura a atores não
estatais; (3) diversidade e maleabilidade funcional; e (4) significativa dependência do Estado.
Feito isso, deve-se proceder à análise das limitações enfrentadas por esse movimento, para
que então se possa discutir com mais fundamento as principais correntes teóricas que visam
explicá-lo (Parte II do Capítulo).
416
Apesar de não haver nenhum mecanismo expresso no seio da ONU, muito se discute sobre uma eventual
hierarquia entre a CIJ e o Conselho de Segurança (Ver caso Lockerbie). Países que são membros permanentes do
C.S., por exemplo, tendem a ter um controle muito maior das decisões deste órgão, e teoricamente poderiam se
utilizar desse expediente caso para exercer algum tipo de pressão informal sobre os juízes da Corte. 417
MACKENZIE, Ruth; & SANDS, Phillippe, International Courts and Tribunals and the Independence of the
International Judge, 2003, p.280. 418
GUILLAUME, Gilbert, Some Thoughts on the Independence of International Judges vis-à-vis States, 2003,
p.168. 419
Fonte: KEOHANE, Robert O.; MORAVCSIK, Andrew; & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute
Resolution: Interstate and Transnational, p.461.
134
Antes, porém, uma última observação se mostra necessária: conforme discutido, o
grande número de tribunais internacionais, associado a seus diferentes arranjos institucionais,
impede a identificação de um padrão singular de funcionamento desses órgãos, bem como
inviabiliza a formação de um sistema judicial unitário. Pode-se, contudo, formular um quadro
comparativo, cujo objetivo é captar as principais características desses órgãos, e que será de
grande utilidade para o debate que se segue.
TABELA 3.8 – ARRANJOS INSTITUCIONAIS DOS TRIBUNAIS
INTERNACIONAIS420
.
Espectro do “legalismo”
Provisão do
tratado Mais diplomático ———————————— Mais legalizado
Revisão de
Terceiros Nenhuma Acesso controlado pelo Direto automático de revisão
corpo político
Decisões judiciais
de terceiros
Recomendações Vinculante se aprovado
pelo
Obrigação diretamente
vinculante
corpo político
Juízes Arbitragens Ad hoc Painéis Ad hoc baseado Tribunal de Justiça
com
represen-
tação das
partes
em listas
Partes Somente Estados Estados e organismos
acordados
Estados, organismos acordados,
e
indivíduos
Reparação Nenhuma Sanções de retaliação Efeito direto no direito
doméstico
Título 2 – Os Alcances do movimento de juridicização do DI
Feitas as considerações acerca do caráter do movimento de proliferação de cortes e
tribunais internacionais, tem-se elementos suficientes para a compreensão do debate relativo
às suas repercussões sobre o ordenamento jurídico internacional. Deve-se evitar, contudo,
algumas impropriedades de ordem teórico-conceitual – normalmente presentes nas discussões
a respeito do tema – que acabam por superestimar o alcance desse movimento; o que,
certamente, prejudica a avaliação de suas causas e efeitos. Duas advertências serão, nesse
420
Fonte: SMITH, James McCall, The Politics of Dispute Settelment Design: Explaining Legalism in Regional
Trade Pacts, 2000, p.143.
135
sentido, enunciadas a seguir: a primeira é relativa à confusão que normalmente é feita entre os
fenômenos da jurisdicionalização e o da juridicização da sociedade internacional; ao passo
que a segunda refere-se à idéia de que a adjudicação internacional necessariamente implica a
adoção de padrões mais rígidos para garantir o cumprimento das normas internacionais.
1- A jurisdicionalização enquanto variável interveniente no processo de expansão
não uniforme (legalização) do Direito Internacional
Quando do estudo do fenômeno da jurisdicionalização, o primeiro perigo a ser
evitado é o de que ele seja confundido com o movimento de expansão não uniforme do
Direito Internacional. Conforme discutido no capítulo inaugural desse trabalho, a
juridicização (ou legalização) é uma tendência recente da Sociedade Internacional, pela qual
os sujeitos têm optado por regulamentar suas relações a partir de normas jurídicas. Não há, à
rigor técnico, uma correspondência exata entre as duas tendências. Assumir, portanto, que o
aumento do número de cortes internacionais é uma decorrência imediata da criação de normas
jurídicas, e que o primeiro fenômeno se desenvolverá em função dos avanços e retrocessos do
segundo é algo temerário, que carece de comprovação fática. Como colocado no capítulo
inicial, a jurisdicionalização, ao lado do crescente número de regimes internacionais, é um
seguro indicador da juridicização. Mas, por se tratarem de movimentos distintos, com causas
e repercussões peculiares, não devem, frise-se, ser analisados como se constituíssem um único
objeto de estudo.
Como destacado nesse capítulo421
, a criação de cortes e tribunais internacionais não
obedece a um padrão preestabelecido, nem tampouco ocorre da mesma maneira nas diversas
áreas do DI. Isso implica, por exemplo, a existência de áreas que foram objeto de significativa
regulamentação legal, mas sobre as quais ainda não nenhum órgão judicial com jurisdição
específica para apreciar suas demandas422
. Ademais, a simples criação de uma Corte não
significa que as controvérsias relativas àquelas matérias serão necessariamente submetidas a
ela. Assumir, portanto, que sua existência implica o abandono dos meios políticos de solução
de controvérsias é algo que não encontra nenhuma fundamentação fática423
, e, certamente,
compromete decisivamente qualquer análise a esse respeito. Há, igualmente, vários exemplos
de cortes que ainda não exercem efetivamente suas atividades, seja por problemas estruturais
421
Ver Expansão e Especificidade Institucional, supra. 422
Pode-se citar, e.g,, as áreas da Segurança Internacional, dos Fluxos Monetários e Investimentos, do Meio
Ambiente, dentre outras. 423
Ver, nesse sentido, ALVAREZ, José E., New Dispute Settlers: (Half) Truths and consequences, 2003, p.411.
136
decorrentes de pouco suporte estatal, seja pela falta de demandas a elas submetidas424
. É
importante ressaltar, nesse sentido, que a opção pela adjudicação não é aquela inicialmente
preferida pelos Estados, uma vez que perderão a capacidade de decidir sobre como se
comportarão em uma determinada situação. A delegação parece ser, dessa forma, o curso de
ação viável quando todo o espectro de opções políticas já se mostra esgotado425
.
Faz-se necessária, igualmente, uma observação acerca do acesso a esses tribunais.
Apesar de muitos órgãos permitirem a participação de atores não estatais, sabe-se que ela
ainda é incipiente, e, em alguns casos, pouco significativa426
. Ademais, não se pode afirmar,
como colocado anteriormente, que a abertura a participação desses atores é uma tendência
irreversível, ou que ela caminha de forma homogênea no sentido de uma
―transnacionalização‖ de seu acesso. Isso porque uma opção com esse caráter implica custos
diferenciados aos Estados, na medida em que aumentar o número de legitimados para agir
significa diminuir o controle político sobre o estabelecimento das próprias demandas. Além
disso, o custo pecuniário de manutenção de uma estrutura judicial internacional com acesso
universal seria infinitamente maior do que aqueles que os Estados estão dispostos a suportar.
Diante desse contexto, associar o aumento de tribunais internacionais ao movimento
de juridicização, assumindo que seguem a mesma dinâmica, é algo que se mostra equivocado,
tanto a partir de uma perspectiva teórica quanto fática. Grande parte das relações
internacionais, bem como de seus atores, ainda não são, por certo, passíveis de avaliação por
um tribunal internacional. Não se pode negar, contudo, que há uma relação de
interdependência entre eles, e que o primeiro tem significativas repercussões sobre o segundo.
É por essa razão que a jurisdicionalização fora colocada, no primeiro capítulo, como uma
variável interveniente no processo de legalização.
2- A jurisdicionalização não necessariamente implica adoção de padrões mais
rígidos para aplicação e implementação das normas internacionais
424
Corte Africana de Direitos Humanos, Tribunal Europeu de Energia Nuclear (OCDE, 1957), Tribunal Europeu
sobre Imunidade Estatal (Conselho da Europa, 1972), Corte de Justiça da Comunidade Econômica Africana
(1991), Corte de Justiça do MERCOSUL, dentre outros. Para uma lista completa, ver Carta Sinóptica no
ANEXO I desse trabalho. 425
Ver, nesse sentido, HOPMANN, P. Terrence, The Negotiation Process and the Resolution of International
Conflicts, 1996, p.221; e KOREMENOS, et al, The Rational Design of International Institutions, International
Organization, no.55, 2001. 426
Ver Participação de atores não estatais, supra.
137
A segunda advertência enunciada anteriormente refere-se a uma premissa
normalmente assumida pelos autores, de acordo com a qual os órgãos judiciais internacionais
tendem a (i) aplicar instrumentos normativos rígidos (hard law); a (ii) conferir precisão e
algum poder vinculante a normas brandas (soft law); e a (iii) consagrar instrumentos eficazes
(remédios legais) para a aplicação e implementação das normas e decisões juridicamente
vinculantes. Uma vez que se percebe, no entanto, que o desenho institucional desses órgãos é
variado, e que cada um deles adota procedimentos e medidas provisionais distintas, essa
premissa cai por terra. O que se afirma, nesse sentido, é que a efetivação ou não de cada uma
dessas ―expectativas‖ deverá ser avaliada no caso concreto.
Como discutido no primeiro capítulo desse trabalho, os tribunais internacionais
normalmente são relutantes no que se refere tanto à aplicação de normas imperativas quanto à
utilização de normas brandas em suas decisões. Elas são, via de regra, em ambos os casos,
imprecisas427
. Dada a falta de unidade e hierarquia entre os órgãos judiciais internacionais,
isso quer dizer que, mesmo quando utilizadas, a questão de sua precisão não restará
definitivamente superada. Por um lado, nenhuma dessas instituições conta com autoridade de
criação normativa, motivo pelo qual sua decisão terá alcance restrito, normalmente inter-
partes. Por outro, a interpretação dessas normas será feita de acordo com o caso concreto, sem
que se tenha em mente todas as possibilidades de sua aplicação. Isso implica que, caso um
outro caso seja submetido a essa ou outra instituição, haverá, certamente, dificuldades para a
aplicação do padrão adotado na decisão anterior428
.
O risco de interpretações fragmentadas e inconsistentes é agravado, igualmente, pela
relutância dos Estados em permitir que os órgãos judiciais assumam um papel efetivo nesse
sentido, na medida em que visualizam a situação como uma ameaça potencial a sua soberania.
Conforme destaca Prosper Weil, a hierarquia normativa internacional pode retirar do Estado o
controle sobre a criação normativa, bem como relativizar de forma perigosa a fronteira entre
direito e política429
. Em uma situação extrema, uma ampla difusão e aplicação de uma norma
branda criada por atores não estatais poderia gerar efeitos significativos sobre a sociedade
internacional, hipótese que, de fato, se coloca contra os interesses dos Estados.
Afirmar que a jurisdicionalização do DI necessariamente consagra instrumentos
eficazes para a aplicação e implementação das normas juridicamente vinculantes é algo
igualmente problemático. A delegação da capacidade decisória a um terceiro independente
427
Ver discussão acerca de normas rígidas e brandas, no segundo capítulo. 428
ALVAREZ, José E., New Dispute Settlers: (Half) Truths and consequences, 2003, p.426. 429
WEIL, Prosper, Towards a Relative Normativity in International Law, 1983.
138
não deve, nesse caso, ser confundida com a dimensão da garantia do cumprimento dessas
decisões. É para o que nos adverte Cesare Romano:
“A questão da natureza vinculante dos julgamentos dos órgãos judiciais
internacionais, contudo, não deve ser confundida com a da garantia do cumprimento
dessas decisões. A função de garantia das decisões dos órgãos judiciais é de natureza
executiva, e como tal é normalmente confiada a órgãos investidos de poderes
executivos. É, em outras palavras, uma matéria mais política que jurídica”430
.
A percepção dessa questão é um fator relevante para a compreensão da razão para a
existência de órgãos com remédios legais tão distintos, e por vezes ineficientes. O caso da
Corte Internacional de Justiça, por exemplo, cujo cumprimento da decisão deverá ser feito
pelo Conselho de Segurança431
, é emblemático nesse sentido. De acordo com o que se pode
inferir dos artigos 24 e 39 da Carta da ONU, as decisões do CS são de caráter eminentemente
político, e seu procedimento decisório é claramente dependente dos cinco países com poder
de veto. Em última análise, se o Estado vencedor da demanda na CIJ optar por pedir ao
Conselho para garantir o cumprimento da mesma, o mecanismo somente será efetivamente
utilizado após considerações de ordem política. A mesma situação é verificada na Corte
Européia de Direitos Humanos, cuja garantia das decisões é confiada ao Conselho de
Ministros432
.
Em outros casos, como o das decisões do órgão de apelação da OMC, o
descumprimento dá ao ganhador da demanda o direito de retaliar a outra parte. Interessante
notar, nesse caso, que apesar da decisão ser proveniente de um mecanismo multilateral de
solução de controvérsias, sua garantia é feita de forma bilateral. Essa, apesar de não ser a
ideal, é a opção viável nesse caso, uma vez que dificilmente um Estado alheio à demanda iria
se dispor a arcar com os custos políticos de impor uma sanção a outro, que poderia ser
inclusive um significativo parceiro comercial433
. Os Estados têm a opção de consagrar
arranjos genéricos e pouco precisos, que sejam, por essa razão, difíceis de ser aplicados. É o
que caso, por exemplo, com o artigo 39 do Estatuto da Corte Centro Americana de Justiça, o
qual determina que a Corte, em caso de descumprimento, deve submeter a questão aos
430
ROMANO, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle; 1999,
p.714, nota no.25, tradução do autor. 431
Ver A Caracterização do Movimento: Expansão e Especificidade Institucional, supra. 432
Ver art.46.2 do Protocolo 11. 433
Para uma compreensão das considerações políticas envolvendo os diferentes desenhos para os procedimentos
decisórios na esfera internacional, ver KAHLER, Miles, Multilateralism with Smal and Large Numbers,
International Organization, 46, 3, 1992, pp.681-708.
139
Estados Membro, que deverão, pelos meios ―pertinentes‖, garantir sua execução. Em
situações mais extremas, o custo pelo descumprimento da decisão será meramente político,
simplesmente em razão da ausência de um dispositivo que crie um mecanismo para sua
garantia, como ocorre com a Corte Interamericana de Direitos Humanos434
.
O que se percebe, portanto, é que a delegação da capacidade decisória acerca de
determinadas controvérsias não necessariamente significará que serão criados mecanismos
para garantir sua execução. Não se sustenta, dessa forma, a crença de que a
jurisdicionalização do Direito Internacional é condição suficiente para uma melhoria nos
meios de aplicação e implementação das normas jurídicas internacionais.
Uma vez caracterizado o recente aumento do número de cortes e tribunais
internacionais, bem como discutidas suas tendências (Título 1º) e alcances (Título 2º), pode-se
colocar com mais precisão o problema que é enfrentado nesse capítulo. Dessa forma,
considerando-se que (i) o movimento de jurisdicionalização se dá de maneira não uniforme,
tendo diferentes repercussões em cada uma das áreas do direito e das relações internacionais;
(ii) que essa expansão é marcada por uma transformação na natureza e competência das cortes
e tribunais internacionais; (iii) que os diferentes arranjos institucionais visam a solução de
problemas políticos específicos colocados nas diferentes áreas (especificidade normativa em
função da agenda); (iv) e que esses órgãos não formam um sistema judicial unitário; o
problema que se coloca é o de se estabelecer de que forma sua existência pode influenciar no
debate acerca da tensão entre unidade e fragmentação do próprio Direito Internacional. A
segunda parte do capítulo tem por objetivo a análise dessas questões.
PARTE II – JURISDICIONALIZAÇÃO E ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL
Seção I – O aumento no número de cortes e tribunais internacionais e o problema
da unidade do Direito Internacional
O objetivo dessa seção é, à luz das características do movimento de
jurisdicionalização, colocado na primeira parte desse capítulo, compreender suas repercussões
434
Quando do descumprimento de suas decisões, cujo caráter obrigatório é consagrado no art. 68.1 da
Convenção Americana de Direitos Humanos, deve a Corte indicá-lo, em seus informes anuais, à Assembléia
Geral da OEA, que não tem, contudo, competência para tomar medidas vinculantes a esse respeito. A única
provisão de algum meio de garantia das determinações das sentenças refere-se ao caso de pagamento de
indenizações compensatórias, quando ela poderá ser executada de acordo com as normas internas do Estado
condenado (art. 68.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
140
sobre a problemática acerca da unidade do Direito Internacional, discutida no primeiro
capítulo. O argumento será construído no sentido de se identificar, dentre as peculiaridades
decorrentes do aumento do número órgãos judiciais (não unitariedade, especialização
funcional e forte influência estatal), as causas para as principais ameaças à noção de unidade
do ordenamento jurídico internacional (possibilidade de conflito de jurisdições; conflito de
jurisprudência; e o fórum shopping). A partir desse panorama, será enunciada a tese de que
esse fenômeno segue a lógica proposta no primeiro capítulo – relativa à formação do
ordenamento jurídico internacional com base em um núcleo duro de valores fundamentais
associado à especificidade normativa em função da agenda. Por essa razão, argumentar-se-á
que a jurisdicionalização acaba por reforçar a aplicação e a unidade do DI.
1- A natureza do movimento de jurisdicionalização e sua potencial ameaça à
unidade do Direito Internacional
Conforme argumento exposto no primeiro capítulo, os teóricos que advogam a tese
da fragmentação do Direito Internacional pressupõem uma analogia entre as esferas
internacional e interna. É com base, portanto, nessa noção de unidade que afirmam que a
criação de cortes e tribunais internacionais contribui ainda mais para sua fragmentação. De
acordo com eles, a existência de órgãos judiciais internacionais com competências e
procedimentos específicos contribuiria decisivamente para a consolidação de regimes
autônomos (self-contained regimes)435
. Na medida em que eles consagrariam princípios e
dinâmicas próprias, funcionariam de forma independente, pelo que restaria comprometida a
unidade do DI436
.
Ao se analisar de forma mais detida cada um dos argumentos que defendem a tese
da fragmentação, o que se pode perceber é que retiram seu fundamento de três características
específicas do aumento do número de órgãos judiciais internacionais, discutidas na primeira
parte desse capítulo, a saber: (i) existência de um sistema judicial não unitário; (ii)
especialização funcional desses órgãos; e (iii) forte influência dos Estados em sua dinâmica.
O objetivo dessa discussão é, contudo, o de afirmar que esses argumentos abarcam apenas
parcialmente a dinâmica do movimento. Há, de acordo com a tese construída a seguir,
condicionantes estruturais que condicionam a dinâmica da jurisdicionalização a partir da
435
Para um profundo estudo da questão dos self-contained regimes, ver SIMMA, Bruno; PULKOWSKI, Dirk.
Of planets and the universe: self-contained regimes in International Law, 2006. 436
Ver, nesse sentido WEIL, Prosper. Towards relative normativity in International Law?, 1983; SHELTON,
Dinah. Centennial Essay - Normative hierarchy in international law, 2006.
141
tensão entre valores fundamentais e especificidade normativa em função da agenda. A partir
dessa constatação poder-se-á compreender onde se situa o ―equívoco‖ da abordagem
tradicional.
A peculiaridade do ordenamento jurídico internacional437
, que estabelece um sistema
normativo com padrões incipientes de hierarquização normativa, é um fator determinante para
inexistência de um sistema judicial internacional unitário438
. O aumento do número de órgãos
judiciais implica, dessa forma, uma estrutura de justaposição de jurisdições, cada uma das
quais consagrando arranjos normativos e institucionais específicos para as áreas sobre as
quais exercerão seu poder. Esse panorama, associado ao fato de que há vários pontos de
entrelaçamento entre as diferentes matérias da agenda internacional (como, por exemplo,
entre comércio, integração, e direitos humanos), cria um ambiente em que há a concreta
possibilidade de conflito entre a jurisdição desses órgãos439
. Esse seria é o primeiro pilar no
qual se fundam os defensores da tese da fragmentação.
O segundo elemento que dá sustentação a essa linha de argumentação decorre
justamente da diversidade e especificidade funcional das cortes e tribunais internacionais. Na
medida em que elas atuam a partir de um arcabouço normativo e institucional próprio, há o
risco de que cada um deles consagrem interpretações divergentes acerca de princípios gerais
do direito internacional. A possibilidade desse tipo de conflito de jurisprudência
comprometeria, no longo prazo, a frágil homogeneidade axiológica que mantém algum nível
de inter-relação entre as diversas áreas do DI440
.
O terceiro alicerce dessa abordagem está intimamente relacionado aos supracitados
mecanismos de controle estatal sobre a atuação desses órgãos441
. A existência desses
instrumentos criaria, no longo prazo, uma situação de dependência pragmática dos tribunais
em relação aos Estados; e esses apenas se utilizariam dos primeiros quando atendessem de
forma precisa a seus interesses. Nas palavras dos professores Posner e Yoo:
“Nós concebemos os tribunais internacionais como artifícios criados com o único
objetivo de resolver problemas („problem solving devices‟). Eles não transformam os
437
Ver A Constituição da Ordem Jurídica Internacional, no primeiro capítulo. 438
Ver Tendências Conjunturais, supra. 439
DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of the International Legal System and
the International Court of Justice, 1999, p.797. 440
KINGSBURY, Benedict, Foreword: Is the Proliferation of International Courts and Tribunals a Systemic
Problem?, p 690. 441
Ver, Os Estados ainda são os atores com $maior influência no comportamento das Cortes e Tribunais
Internacionais, supra.
142
interesses dos Estados, nem fazem com que os Estados os ignorem para o bem de um
ideal transnacional”442
.
É por essa razão que esses autores argumentam que tribunais internacionais
dependentes são mais eficazes quando comparados àqueles que guardam algum nível de
independência em relação aos Estados. Defendem, portanto, a tese de acordo com a qual
possibilidade de decisões contra os interesses estatais compromete seu próprio
funcionamento, na medida em que não há ―nada‖ na esfera internacional (ao contrário do que
ocorre na arena doméstica) que impeça os Estados de ignorarem a jurisdição desses
tribunais443
. De acordo com essa linha argumentativa, estaria consolidado, portanto, um
cenário no qual os Estados optam por submeter suas demandas àqueles órgãos que atendam a
suas necessidades (fórum shopping); o que criaria um círculo vicioso no qual ou os tribunais
se renderiam ao controle estatal ou estariam fadados ao fracasso444
.
Esses são, portanto, os três principais pilares dos argumentos daqueles que defendem
a tese de acordo com a qual o aumento dos órgãos judiciais internacionais reforça a
fragmentação do DI. O que se pode argumentar, de forma diversa, é que eles traduzem uma
visão parcial do movimento, que falha ao interpretar a própria dinâmica do sistema normativo
internacional. Como destaca Dupuy, parece perfeitamente normal a criação de instituições
cujo objetivo é controlar a aplicação e obediência dos novos conjuntos normativos
decorrentes do movimento de expansão do DI. A criação desses órgãos não pode ser analisada
como prejudicial ao sistema internacional. Deve, de uma forma diversa, ser compreendida
como a consolidação de um estágio de sua maturidade445
. A interpretação distinta de
princípios internacionais não é, igualmente, uma ameaça tão robusta quanto a enunciada por
esses autores. Como se sabe, a convivência de princípios contraditórios é inerente à própria
noção de ordem jurídica, e esses devem ser, no momento da aplicação, equalizados de acordo
com as vicissitudes do caso concreto.
442
Ver POSNER, Eric A; e YOO, John C., Judicial Independence in International Tribunals, 2005, pp. 6-7,
tradução do autor. 443
Ver POSNER, Eric A; e YOO, John C., Judicial Independence in International Tribunals, 2005, p. 13. 444
Helfer e Slaughter, em ensaio específico, criticam fortemente essa linha de argumentação, HELFER,
Laurence R.; & SLAUGHTER, Anne-Marie, Why States Create International Tribunals: A Response to
Professors Posner and Yoo, 2005. Cesare Romano, por sua vez, afirma que esses argumentos não têm nenhum
alcance significativo quando se analisa tribunais com jurisdição compulsória. Ver ROMANO, ROMANO,
Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International Adjudication:
Elements for a Theory of consent, 2007, pp.802-803. 445
DUPUY, Pierre Marie, The Danger of Fragmentation or Unification of the International Legal System and
the International Court of Justice, 1999, p.795.
143
2- A jurisdicionalização e a dinâmica entre os valores fundamentais e a
especificidade normativa em função da agenda
Como destacado anteriormente, a crescente tendência de adjudicação das
controvérsias internacionais deve ser compreendida a partir de um contexto normativo amplo,
que abarque tanto considerações de ordem política quanto de ordem jurídica. Os postulados
da abordagem da fragmentação podem ser, nesse sentido, contestados a partir de uma dupla
perspectiva. Por um lado, o anseio por uma plena uniformidade na interpretação
jurisprudencial é algo se mostra inviável inclusive para o Direito Interno. A situação é
certamente exponenciada na esfera internacional, na medida em que não há uniformidade nem
mesmo em relação ao padrão de criação de suas normas jurídicas446
. O que se deve ter em
mente, neste contexto, é a avaliação acerca da existência de um padrão valorativo que oriente
as decisões em torno de um objetivo social minimamente estabelecido. A corrente tradicional
(da fragmentação) falha na medida em que não faz considerações estruturais que dêem conta
dessa dimensão axiológica.
Por outro lado, como destaca Abi-Saab, “é claro que especialização significa
regimes específicos. Mas apesar de seu nível de particularidade e autonomia, não pode haver
um regime completamente independente dentro de uma ordem legal”447
. Essa observação se
aplica, continua a ele, não só às normas, mas também às instituições de um dado
ordenamento. A complexidade da ordem internacional gera, nesse sentido, uma demanda por
organismos especializados, capazes de responder de forma dinâmica e eficiente às
necessidades políticas de uma determinada área da agenda internacional. O que os teóricos
tradicionais não percebem é que esse sistema especializado, para que possa funcionar de
forma correta, carece de fundamentos comuns capazes de impedir seu desmoronamento,
ruindo-se em um amontoado de partículas pequenas e sem nenhuma finalidade quando
consideradas isoladamente448
. Afirma-se, nesse caso, que a especificidade funcional desses
órgãos só é viável em virtude da existência de um arcabouço normativo que lhe confira
objetivo e dinamicidade.
A ação das cortes e tribunais internacionais criaria, assim, um ―processo
acumulativo‖, que progressivamente condensaria e cristalizaria as distintas partículas desse
446
CHARNEY, Jonathan I., The Impact on the International Legal System of the Growth of International Courts
and Tribunals, 1999, p. 699-705. 447
ABI-SAAB, Georges, Fragmentation or Unification: Some Concluding Remarks, 1999, p. 926, tradução do
autor. 448
Ver a discussão sobre normas primárias (regulatórias) e secundárias (constitutivas) na ordem jurídica
internacional, no primeiro capítulo.
144
modelo jurisdicional consensual em uma estrutura449
, que reforçaria os fundamentos
axiológicos da sociedade internacional e conferiria mais legitimidade ao próprio ordenamento
jurídico internacional. Há, nesse sentido, vários trabalhos que discutem a formação de uma
incipiente ―comunidade global de cortes‖ que, a partir de um diálogo transnacional,
contribuiria decisivamente para a internalização de uma cultura judicial na sociedade
internacional450
.
Pode-se inferir, diante do exposto, que a análise da dinâmica entre a constituição
axiológica do ordenamento jurídico internacional e sua especificidade normativa em função
da agenda é essencial para a avaliação dos impactos do aumento de cortes e tribunais
internacionais sobre esse sistema normativo. Há a necessidade, portanto, de se estudar de
forma mais precisa qual a inter-relação entre a jurisdicionalização e as duas dimensões ora
colocadas. O objetivo da seção que se segue é justamente o de dar conta deste debate. Ele será
feito a partir de considerações de ordem (i) política e (ii) normativa.
SEÇÃO II – Jurisdicionalização e Direito Internacional: uma análise jurídico-
política
A inserção do movimento de jurisdicionalização do Direito Internacional dentro de
um contexto estrutural é, como visto, essencial para a compreensão de seus reais efeitos sobre
o ordenamento internacional. Isso será feito, por um lado, a partir de considerações de ordem
política, cujo objetivo será o de estabelecer qual o papel dos órgãos judiciais nas relações
entre os Estados. Por outro, serão debatidas as repercussões normativas desse movimento,
para que então se possa refutar a tese da fragmentação e tecer algumas considerações finais a
respeito do problema.
Título 1 – Órgãos judiciais internacionais como variáveis intervenientes no jogo
político internacional
1- As implicações políticas de um tribunal internacional não são apenas explicados
pela dimensão da efetividade de suas decisões
449
ABI-SAAB, Georges, Fragmentation or Unification: Some Concluding Remarks, 1999, p. 927. 450
Ver, nesse sentido, SLAUGHTER, Anne-Marie, A typology of transjudicial Communication, 1995; e A
Global Community of Courts, 2003.
145
Na esfera internacional, a delegação da autoridade decisória a um terceiro
independente é uma escolha política dos Estados. Conforme a discussão do segundo capítulo,
a legalização é uma das opções que se colocam aos Estados como forma de regulação de seu
comportamento, como forma de resposta a uma demanda específica dele decorrente, que
envolve, igualmente, interesses de atores domésticos. É importante que se faça, assim, uma
análise dos tribunais internacionais enquanto instrumentos de ação política, ou seja,
instituições capazes de condicionar e modificar o comportamento dos atores.
Quando um problema dessa ordem é colocado, é natural que se tome o cumprimento
das decisões proferidas por esses órgãos como o principal indicador de sua efetividade. Vários
argumentos se baseiam, nesse sentido, em dados dessa ordem. Muitos autores estabelecem,
assim, uma relação direta entre (des)cumprimento de sentenças e (in)efetividade do DI. A
validade de um indicador como esse não pode, certamente, ser desconsiderada. Mas seu
alcance explicativo não deve ser, contudo superestimado. O que se argumenta, no âmbito
desse trabalho, é que o estudo acerca dessa questão precisa ser qualificado, para que se avalie
de forma menos pontual o papel das cortes e tribunais internacionais. Para que se inicie a
discussão, será útil um levantamento estatístico feito pelos professores Posner e Yoo, o qual
se reproduz a seguir.
TABELA 3.9 – NÚMERO DE DEMANDAS E CUMPRIMENTO DAS
SENTENÇAS451
Corte Anos
de
Casos Estados
Sujeitos
Casos Casos/ Conseti- Taxa
Completa
Opera- Arquivados /Ano Estado- mento de
ção Anos
*** Reputa-
ção
Consenti-
mento
Arbi- — — — 0,15 0,007 Bom 44-94%
tragem
PCA 104 33 88 0,32 0,004 — —
PCIJ 26 36 63 1,38 0,022 Ruim/misto —
ICJ- 57 30 62 0,53 0,008 Ruim 40%
Compul.
ICJ- 57 62 187 1,09 0,017 — 72%
outros
GATT 48 298 128* 6,21 0,05 Misto 38%
ECJ 51 12,800 15 251 17 Bom 82%
451
Fonte POSNER, Eric A; e YOO, John C., Judicial Independence in International Tribunals, 2005, p53.
146
ECHR
IACHR 44 24 1000s 32 44 21
—
1,33 — 0,06 Bom/Ruim 80% 4%
WTO 9 313 146 34,7 0,28 Misto 66%*
ITLOS 9 10 145 1,11 0,008 — —
ICC 1 0 92 — — — —
Afirmar, com base nos dados acerca do cumprimento das decisões, se o aumento do
número de cortes e tribunais internacionais implica (ou não) um reforço do Direito
Internacional, é algo bastante comum na doutrina. Esse tipo de abordagem desconsidera,
contudo, outros fatores e variáveis envolvidos nesse processo. A natureza da demanda é uma
das variáveis que exerce significativa influência na opção do Estado. Basta comparar, por
exemplo, uma decisão relativa a Direitos Humanos com uma sobre Comércio Internacional.
No primeiro caso, normalmente o benefício de sua implementação é concentrado, ou ao
menos se pode identificar um indivíduo (ou um determinado grupo social) que será
imediatamente atingido. Seus custos, por sua vez, tendem a ser difusos. Por outro lado,
quando se trata de uma relação comercial, os benefícios tendem a ser difusos e os custos
concentrados. Imagine uma situação na qual um Estado deva retirar tarifas abusivas que
impõe a um determinado produto. Os benefícios internos dessa ação atingirão aos
consumidores do mercado interno (preço menor do produto, decorrente do aumento da oferta
resultante de importações), ao passo que os custos se restringirão aos produtores domésticos
daquele bem. Considerando que em ambos os casos haja grupos de pressão domésticos
relevantes (ativistas de direitos humanos e sindicato de produtores, por exemplo), capazes de
influenciar na dinâmica eleitoral interna, pode-se afirmar, com alguma segurança, que a
implementação da decisão acerca dos Direitos Humanos tende a ser menos custosa452
.
Esse é apenas um exemplo do tipo de distorção que uma análise semiótica do
papel das cortes e tribunais internacionais pode causar. A simples criação de um órgão
judicial internacional pode ter repercussões relevantes nas arenas doméstica e internacional.
Ao resolver ingressar na OMC, por exemplo, um governo pode mitigar os custos de uma
redução de tarifas para determinado bem, a qual ele desejava fazer mas que se mostrava
inviável do ponto de vista estritamente doméstico. Isso porque a decisão de integrar a referida
organização teria também efeitos positivos sobre produtores de vários outros bens, e, o apoio
452
Essa argumentação se coaduna com a exposição feita na segunda parte do segundo capítulo, a partir da qual
pode-se compreender como grupos sociais domésticos exercem influência na opção política internacional de um
determinado Estado. Para um argumento semelhante, ver, GOLDSTEIN, Judith & MARTIN, Lisa. Legalization,
trade liberalization, and domestic politics: a cautionary note, 2000.
147
deles diminuiria o impacto da oposição do grupo defensor da política tarifária. Ademais, ao
fazê-lo o governo desse Estado ―terceiriza‖ o custo da decisão de retirar as tarifas, na medida
em que fora imposta por uma OI (e não por uma decisão unilateral do governo). Mesmo que
posteriormente esse governo opte por descumprir as normas e decisões da OMC em casos
específicos, não se pode negar que elas modificam os custos políticos (internos e
internacionais) da ação desse Estado453
.
2- Jurisdição e política: os poderes dos tribunais internacionais
Com base nessa constatação, faz-se necessária uma discussão mais detida acerca dos
poderes e implicações políticas que envolvem a criação de uma corte internacional. De uma
forma geral, a criação de organizações internacionais cria um arcabouço normativo
minimamente rígido, o qual definirá de forma clara os procedimentos de tomada de decisão
acerca de uma determinada matéria454
. O que se tem, portanto, é a definição prévia dos
interesses políticos que influenciarão decisivamente nas escolhas que serão feitas. Isso cria,
portanto, uma situação de estabilização do locus deliberativo, e permite o acesso a grupos que
de outra forma talvez não participariam da escolha política455
. Organizações Internacionais
têm o potencial de assumir, igualmente, um relevante papel para a formação das normas
jurídicas internacionais, na medida em que podem constituir um foro específico para a
discussão de tratados internacionais456
, ou como um eficaz instrumento de fixação de
significados e difusão e consolidação de princípios457
.
Essas considerações teóricas são aplicáveis, certamente, às cortes e tribunais
internacionais. Alvarez destaca, por exemplo, que esses órgãos reduzem custos
453
Ver, nesse sentido, LAGE, Délber A., Barganha Doméstica e Política Internacional: A Política Agrícola dos
EUA e sua Atuação em Fóruns Multilaterais, 2005. 454
O estabelecimento do processo de tomada de decisões é particularmente importante na medida em que ele irá
inserir ou excluir determinados grupos na estrutura de custos políticos. Ver, nesse sentido, discussão acerca de
instituições como variáveis do modelo de análise, na segunda parte do segundo capítulo. Mesmo que um Estado
não tenha, por exemplo, grupos de Direitos Humanos capazes de influenciar a opinião pública, quando ele opta
por ratificar, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos ele reconhece a competência da
Comissão e da Corte. Ele abre espaço, nesse caso, para a participação inclusive de ONGs transnacionais cujo
objetivo é trabalhar junto a essas instituições para monitorar o comportamento dos Estados em relação à matéria. 455
Ver, nesse sentido, PROST, Mario; CLARK, Paul K.. Unity, diversity and the fragmentation of international
law: how much does the multiplication of international organizations really matter?, 2006, pp.348-354. 456
Ver, por exemplo, acerca do trabalho da CDI: FRANCK, Thomas M.; ELBARADEI, Mohamed. The
codification and progressive development of international law: a unitar study of the role and use of the
international la commission, 1982; MATHERSON, Michael J. The fifty-eighth session of the International Law
Commission. American Journal of International Law 98, 2007. 457
Ver, nesse sentido, ALVAREZ, José E.. International Organizations: then and now, 2006; BARNETT,
Michael N.; FINNEMORE, Martha. The Politics, Power and Pathologies of Internarional Organizations.
International Organization, 1999.
148
transnacionais, servem para legitimar determinados interesses estatais, ―aumentam a sombra
do futuro‖, facilitam comunicação entre os Estados, coletam e difundem informação458
.
Ademais, eles têm repercussões importantes para a reputação de seus integrantes, na medida
em que provêem credibilidade e legitimidade das ações desenvolvidas de acordo com suas
determinações459
, além de reduzirem os custos de monitoramento pelo descumprimento dos
compromissos assumidos, podendo, inclusive, aumentar o custo doméstico decorrente desse
curso de ação460
.
O que se pode concluir, por fim, é que eles definirão, a priori, os limites jurídicos a
partir dos quais se desenvolverá o jogo político. Não se trata, nesse caso, de uma exclusão da
política em detrimento do direito, mas sim da utilização deste como forma de incentivar um
determinado tipo de comportamento461
. Helfer e Slaughter destacam, nesse sentido, que a
participação dos Estados será incentivada se os custos imediatos de uma eventual condenação
forem superados pelos benefícios de longo prazo decorrentes da consolidação de um
determinado regime462
. Fica corroborada, nesse sentido, a tese anteriormente exposta que
afirma que a diferenciação funcional dos órgãos judiciais internacionais não só é uma
constante do movimento de jurisdicionalização do Direito Internacional, mas também uma
condição necessária para que eles sejam eficazes na consecução de seus objetivos.
Quando se opta pela criação de um mecanismo de solução de controvérsias relativo
a matérias comerciais, por exemplo, não se pode negligenciar o fato de que a liberalização
normalmente implica custos concentrados (para aqueles grupos que perderão a proteção das
políticas governamentais) e benefícios difusos (para todos aqueles que exportam produtos,
para os consumidores nacionais que têm acesso a mais bens por um preço menor). Entende-
se, a partir dessas considerações, a razão pela qual a OMC produz suas normas
multilateralmente mas consagra um mecanismo de garantia das decisões de seu órgão de
solução de controvérsias que é bilateral463
. Os mecanismos criados por esses órgãos, nesse
sentido, “alteram os cálculos de custo-benefício da defecção por aumentarem a possibilidade
458
ALVAREZ, José E., New Dispute Settlers: (Half) Truths and consequences, 2003, p.407. 459
Ver, nesse sentido, CARON, David, Towards a Political Theory of International Courts and Tribunals, 2006,
p.410. 460
Ver, igualmente, ALTER, Karen, International Courts in International Politics: Four Judicial Roles and
Their Implications for State-IC relations, 2005, p.39. 461
Ver, BRANT, Leonardo Nemer C., A autoridade da Coisa Julgada no Direito Internacional Público, 2002, p.
371; e CARON, David, Towards a Political Theory of International Courts and Tribunals, 2006, pp. 411-422,
quando o autor define um modelo para se analisar os tribunais internacionais como instrumentos estratégicos de
limitação de interesses políticos (theory of bounded strategic space). 462
HELFER, Laurence R.; & SLAUGHTER, Anne-Marie, Why States Create International Tribunals: A
Response to Professors Posner and Yoo, 2005, p 35. 463 Ver discussão do tópico A jurisdicionalização não necessariamente implica adoção de padrões mais rígidos
para aplicação e implementação das normas internacionais, supra.
149
de detecção [desse comportamento], resolver problemas de interpretação, e garantir as
sanções impostas ou criar regras diretamente aplicáveis no direito doméstico464
”.
A dinâmica entre normas jurídicas e política é, portanto, elemento indispensável
para a compreensão do papel dos órgãos judiciais internacionais. Charney nos atenta, por
exemplo, para a grande discrepância entre o orçamento da Corte Internacional de Justiça (US$
11 milhões) e do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (US$ 70 milhões465
), o que
indicaria, em sua visão, a falta de interesse da comunidade internacional em reforçar o papel
da CIJ como uma ―Corte Internacional Suprema‖466
. Fora reforçada, anteriormente, a estreita
relação entre a dimensão de acesso e a quantidade de casos em um determinado tribunal, bem
como da relação entre a utilização de remédios domésticos e o cumprimento das decisões.
Deve-se, por fim, destacar o papel da própria jurisprudência na construção de uma imagem
sólida do tribunal junto à comunidade internacional. Como ressaltam Keohane, Moravicsik e
Slaughter, a decisão da CIJ no caso das Atividades e Paramilitares na Nicarágua, quando a
Corte adotou uma posição extremamente extensiva para julgar sua competência em relação ao
caso (contra os interesses dos EUA), ensejou um substancial aumento nas demandas
propostas por países em desenvolvimento467
. Concluem, portanto, os autores que é a
interação entre direito e política, e não a ação isolada de cada um deles, que gera decisões e
determina sua efetividade468
”.
Titulo 2 – Órgãos Judiciais Internacionais como agentes de produção normativa
Ao se conferir a competência para que um tribunal resolva controvérsias
internacionais de acordo com um conjunto normativo preexistente, automaticamente se
confere a ele um mandato implícito para que preencha lacunas e amenize suas ambigüidades.
464
SMITH, James McCall, The Politics of Dispute Settelment Design: Explaining Legalism in Regional Trade
Pacts, 2000, p.143, pp. 138-139, tradução do autor. 465
Valores de 1998. 466
CHARNEY, Jonathan I., The Impact on the International Legal System of the Growth of International Courts
and Tribunals, 1999, p. 703. 467
KEOHANE, Robert O.; MORAVCSIK, Andrew; & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute
Resolution: Interstate and Transnational, p.480. Para uma consistente análise da ação dos países em
desenvolvimento em relação aos tribunais internacionais, ver ROMANO, Cesare P.R.. International justice and
developing countries: a quantitative analysis; e International justice and developing countries (continued): a
qualitative analysis, 2002. 468
KEOHANE, Robert O.; MORAVCSIK, Andrew; & SLAUGHTER, Anne-Marie. Legalized Dispute
Resolution: Interstate and Transnational, p.488, tradução do autor.
150
Como destacam Helfer e Slaughter, isso dá a esses órgãos ao menos uma mínima capacidade
de produção normativa469
. Cesare Romano, nesse sentido, afirma que:
“Juízes internacionais estão bem advertidos para o fato de que, ao proferir
julgamentos, estão de fato, senão de direito, contribuindo para o desenvolvimento de
da ordem legal. Fazendo isso os juízes internacionais afetam uma comunidade que é
realmente muito maior do que as partes envolvidas na ação470
”.
Diante dessa constatação, pode-se formular a tese de que é da tensão entre os
interesses particulares envolvidos numa lide e o interesse da comunidade (em se garantir pelo
cumprimento do Direito Internacional um nível de estabilidade e segurança nas relações
internacionais) que se consolida o papel das cortes e tribunais internacionais enquanto agentes
normativos. Para que se possa mostrar sua viabilidade teórica, segue análise tanto do interesse
particular na resolução de conflitos (1) quanto do alcance comunitário de uma decisão judicial
internacional (2).
1- Interesse particular na resolução de controvérsias como fundamento imediato da
atuação jurisdicional
Ao se analisar a dinâmica da delegação na esfera internacional, não se pode
negligenciar o fato de que o fundamento primeiro (imediato) para a atuação de cortes e
tribunais internacionais é a necessidade que os Estados demandantes têm de resolver suas
controvérsias. A jurisdição desses órgãos se justifica, nesse sentido, na medida em que
responde aos anseios manifestos pelo consentimento dos Estados. Como destaca Leonardo
Brant, a autoridade positiva da coisa julgada internacional é claramente consensual471
. O
argumento, nesse sentido, se coaduna com as idéias expostas anteriormente, quando se
argumentou que o desenho institucional dos tribunais deve, necessariamente, responder às
necessidades e particularidades de cada uma das áreas sobre as quais têm jurisdição.
469
HELFER, Laurence R.; & SLAUGHTER, Anne-Marie, Why States Create International Tribunals: A
Response to Professors Posner and Yoo, 2005, p. 39. 470
ROMANO, Cesare P.R., The Proliferation of International Judicial Bodies: The Pieces of The Puzzle; 1999,
p. 751, tradução do autor. 471
O autor distingue, nesse caso, duas dimensões distintas da coisa julgada. Em sua dimensão negativa, ela se
traduz a obrigatoriedade da decisão em virtude do caráter jurisdicional da atuação dos tribunais internacionais
(perspectiva formal). Em sua dimensão positiva, avalia-se a eficácia da sentença a partir da adequação do
comportamento das partes ao que fora por ela determinado. BRANT, Leonardo Nemer C., A autoridade da
Coisa Julgada no Direito Internacional Público, 2002, p. 255.
151
A estreita relação entre o consentimento estatal (enquanto manifestação particular de
seu interesse) e o exercício da jurisdição internacional levanta, contudo, uma questão
significativamente complexa para o atual sistema judicial internacional. Considerando-se que
(i) esse sistema não é unitário, motivo pelo qual há a concreta possibilidade de conflito de
jurisdições472
; que (ii) o fundamento imediato da atuação jurisdicional é a composição de um
determinado conflito; e que (iii) o exercício dessa jurisdição é altamente dependente da
vontade estatal; o problema que se coloca é o de se determinar qual deve ser o curso de ação
caso aconteça, em virtude da provocação de um Estado, um conflito entre decisões de
tribunais diversos sobre um mesmo caso concreto.
Uma análise mais detida sobre as situações nas quais pode ocorrer esse conflito
extrapola o objetivo desse trabalho. Entretanto, é interessante notar que há três casos em que
ele pode ocorrer: (i) conflito entre duas jurisdições compulsórias; (ii) conflito entre duas
jurisdições consensuais e (iii) conflito entre uma jurisdição consensual e outra compulsória473
.
A solução desses casos perpassa pela equalização entre o consentimento dos Estados para a
atuação desses órgãos (e a conseqüente externalização do desejo de ver a controvérsia
definitivamente decidida) e a indagação se deve ou não ser permitido que os próprios Estados
se valham desse tipo de artifício para criar uma espécie de mecanismo informal de revisão de
sentenças. O dilema se coloca, então, a partir da dificuldade de se perceber se um conflito
como esse gera um reforço da noção de jurisdição internacional (na medida em que os
Estados reiteradamente se manifestam no sentido de solucionar a controvérsia) ou se, por
outro lado, há um desafio à sua autoridade (uma vez que a constante possibilidade de ―revisão
informal‖ de uma decisão internacional pode gerar nos Estados um sentimento de insegurança
jurídica).
Quando se tratar de duas jurisdições consensuais, talvez esse dilema seja
solucionado de forma mais simples, na medida em que os interesses envolvidos são quase que
circunscritos às duas partes, e, na medida em que ambos optaram por submeter a controvérsia
a outro órgão não há, pelo menos a princípio, nenhuma ameaça à segurança jurídica. A
situação se mostra mais complexa, contudo, nas situações em que houver conflitos
envolvendo pelo menos uma jurisdição compulsória. Duas considerações são, nesses casos,
relevantes: a primeira refere-se ao fato de que a segunda demanda pode ser iniciada sem o
472
Ver A natureza do movimento de jurisdicionalização e sua potencial ameaça à unidade do Direito
Internacional, supra. 473
Para uma análise robusta das hipóteses de conflito envolvendo essas situações, ver ROMANO, Cesare P.R.,
The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International Adjudication: Elements for a
Theory of consent, 2007, pp. 834-844.
152
consentimento específico de uma das partes; e a outra é relativa ao fato de que uma jurisdição
compulsória certamente é imbuída de um forte apelo comunitário. Como dito, a solução desse
tipo de conflito envolve uma série de considerações de ordem estrutural, e não se pode, pelo
menos no atual contexto, se estabelecer uma regra geral que consiga dar conta dos problemas
daí resultantes474
.
2- O interesse comunitário como fundamento mediato da atuação jurisdicional
A problemática do alcance normativo de uma decisão judicial internacional não
pode, contudo ater-se apenas à dimensão particular da resolução de um dado conflito.
Conforme se argumentará, ela deve ser compreendida à luz da necessidade social de
estabilidade e convivência harmônica dos integrantes da sociedade internacional, que,
ultimamente, é condicionada pela observação de valores que assumiram status
diferenciado475
. A transposição da dimensão inter-partes de uma decisão fora, com precisão,
colocada por Hersch Lauterpacht:
“Como cortes nacionais, também os tribunais internacionais, pela própria natureza
da função judicial, não estão confinados a uma aplicação puramente mecânica da lei.
Ao aplicar a regra legal necessária ao caso concreto, eles criam a norma para o caso
individual que lhes fora submetido. A real operação do direito em uma sociedade é
um processo de cristalização gradual da norma abstrata
No direito internacional o escopo desse aspecto da atividade judicial é muito mais
amplo; a consciente criação normativa pela legislação, na sociedade internacional,
está em um estágio rudimentar, a criação de normas costumeiras é lenta e de difícil
identificação, e o precedente judicial é relativamente raro e de autoridade
controversa. (...) Dessa forma, o alcance normativo das decisões judiciais é de
especial importância para o propósito de solucionar as disputas pelo
desenvolvimento e adaptação da lei das nações, dentro da órbita do direito existente,
para as novas condições da vida internacional por meio de um processo de
interpretação judicial equânime e plausível476
”.
474
Cesare Romano chega a propor a interação entre três tipos de abordagens: a tecnocrática/legalista; a
sociológica/jurisprudencial e a do não-engajamento/defecção. Essa solução não se mostra, contudo, definitiva, na
medida em que não há como se estabelecer um padrão para determinar em que medida será cada um deles
aplicado. ROMANO, Cesare P.R., The Shift from the Consensual to the Compulsory Paradigm in International
Adjudication: Elements for a Theory of consent, 2007, p 867. Leonardo Brant, ao analisar a possibilidade de
flexibilização do princípio da autoridade da coisa julgada no DI constata, igualmente, a tensão entre a
necessidade social de solução de conflitos e a demanda por segurança, além de enunciar o caráter ainda
―rudimentar‖ dos instrumentos disponíveis para tratar da questão. BRANT, Leonardo Nemer C., A autoridade
da Coisa Julgada no Direito Internacional Público, 2002, pp. 379-440. 475
Ver discussão sobre ordenamento jurídico internacional, no primeiro capítulo. 476
LAUTERPACHT, Hersch, The Function of Law in the International Community, 1933, pp.255-256, tradução
do autor. Para uma discussão do pensamento de Lauterpacht, ver KOSKENNIEMI, Martti, Lauterpacht: The
Victorian Tradition in International Law, 1997.
153
A discussão do alcance normativo das decisões dos órgãos judiciais internacionais
remete, portanto, à equalização entre a função jurisdicional, o interesse das partes envolvidas
(fundamento imediato) e o interesse social de estabilidade e segurança envolvido nessa
relação (fundamento mediato). Nas palavras de Leonardo Brant:
“(...) é claro que o caráter obrigatório e definitivo da sentença internacional
encoraja o estabelecimento e a coexistência de um direito internacional híbrido, a
meio caminho entre o voluntarismo contratual e a autoridade hierárquica de um
terceiro. Ele reflete assim a contradição atual do direito internacional que aparece
em seu conjunto como o resultado da dialética entre o movimento que leva os Estados
a afirmar sua soberania, e o que os obriga a reconhecer sua necessária
interdependência. Isto significa que o princípio da autoridade da coisa julgada
registra a ambigüidade que leva os Estados a se ater a sua independência,
registrando sua interdependência477
”.
A dinâmica entre essas três dimensões se mostra particularmente caracterizada nas
discussões acerca do alcance de uma decisão jurisdicional que consagre uma norma de jus
cogens ou uma obrigação erga omnes. Por um lado, o postulado do consentimento estatal para
o exercício da jurisdição (interesse imediato) é garantido pelo efeito apenas inter-partes das
sentenças. Por outro, a necessidade de observância das normas que consagrem valores
fundamentais da sociedade internacional para que suas relações se desenvolvam de forma
estável e segura se exponencia no caráter mediato das provisões judiciais.
Do ponto de vista prático, apesar da limitação da obrigatoriedade das decisões
apenas para as partes – o que faz com que esse reconhecimento não alcance, a princípio os
outros Estados – o reconhecimento de uma obrigação erga omnes tem uma implicação
material significativa. Afinal de contas, trata-se de uma situação na qual um órgão judicial
com expertise e legitimidade afirma ser latente a existência de uma norma que, por definição
todos devem obedecer. Outros Estados não são, frise-se, obrigados pela sentença. Deve-se
salientar, contudo, que a ação de acordo com a norma (cuja existência fora declarada pelo
tribunal) é imperativa. A repercussão de uma decisão como essa na sociedade internacional é
de tal ordem que os principais órgãos judiciais internacionais se mostram reticentes ao tratar
do assunto, e não há nenhum sinal de homogeneidade nas opiniões doutrinárias a esse
respeito478
.
477
BRANT, Leonardo Nemer C., A autoridade da Coisa Julgada no Direito Internacional Público, 2002, p. 275,
notas de rodapé omitidas. 478
Ver, por exemplo, WEIL, Prosper. Towards relative normativity in International Law?, 1983; e SHELTON,
Dinah. Centennial Essay - Normative hierarchy in international law, 2006.
154
CONCLUSÃO
Ao se analisar a dinâmica de jurisdicionalização do Direito Internacional, pode-se
perceber que ela acompanha o atual estado de maturidade da sociedade internacional –
claramente marcado por uma tensão entre o voluntarismo inerente ao atributo da soberania e a
formação de um núcleo duro de valores comunitários que orientam o desenvolvimento das
relações na esfera internacional. Por um lado, os Estados ainda mantêm um alto nível de
controle sobre a atuação das cortes e tribunais internacionais, e não houve nenhum esforço
para a construção de um sistema judicial unitário. Por outro, assiste-se a uma tendência de
delegação em várias áreas da agenda internacional, que implica a proliferação de corpos com
jurisdição e estrutura funcional diferenciada. Seus efeitos são exponenciados pela adoção do
paradigma compulsório e abertura dos procedimentos à participação de atores não estatais.
Quando estudado à luz de considerações de ordem política, esse contexto permite a
inferência de que as cortes e tribunais internacionais reforçam a instrumentalidade do Direito
como uma forma de composição e regulação das relações na esfera internacional. Do ponto de
vista jurídico, por sua vez, o que se pode perceber é que a atuação jurisdicional tem sua
dinâmica condicionada por um movimento pendular, ora dominado pelo interesse particular,
ora impulsionado pelos anseios comunitários. Os tribunais assumem, nesse contexto, um
papel cada vez mais significativo, e seus impulsos pela observância das normas e princípios
internacionais vão sendo consubstanciados na crescente afirmação do direito enquanto
condicionante estrutural do comportamento na sociedade internacional.
155
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