“A Mesa considera o câncer problema de saúde pública”? A introdução do câncer na agenda científica do Ceará a partir do periódico Ceará Médico (1940 – 1960)
LUIZ ALVES ARAÚJO NETO1
1 – Introdução.
Em 1947, foi publicada, no periódico Ceará Médico, a ata de uma mesa redonda
realizada nas dependências do Centro Médico Cearense, intitulada Os Grandes Problemas
Sanitários do Ceará. Ao longo da atividade, foram discutidos entre os médicos presentes no
recinto os tópicos de maior interesse no que dizia respeito à saúde pública do estado,
“moldando” um quadro geral dos principais problemas e das possíveis soluções a serem
encaradas pela comunidade médica local. Na resposta à primeira pergunta do mediador da
mesa, o médico Waldemar Alcântara listou aqueles que deveriam ser, em sua interpretação, os
principais tópicos da discussão: eram eles, nesta ordem, a tuberculose, a saúde infantil, as
doenças venéreas, as endemias rurais (tracoma, bouba, malária e helmintoses), as doenças
infecciosas agudas, os problemas de saneamento e, “’last but not least’ a questão do
charlatanismo e curandeirismo”2.
Nessa enumeração aparentemente calculada e meticulosa, o médico sequer cita o
câncer como um problema de saúde pública para a realidade do estado, o que levou ao
questionamento de outro médico, Haroldo Juaçaba, em certo momento da reunião: “Pergunto
à Mesa se considera o câncer Problema de Saúde Pública [...].”3. De saída, é fundamental
situar a importância do posicionamento desses médicos acerca da saúde pública no Ceará, e,
principalmente, da ausência do câncer em praticamente toda a reunião realizada em meados
de 1947. O Ceará Médico era a revista produzida pelo Centro Médico Cearense (CMC),
agremiação que aglutinava em si profissionais com bastante influência no cenário da saúde e
da medicina no estado, constituindo um grupo particular em meio à comunidade médica,
sendo, no limite, uma “elite médica”4. Valdemar Alcântara, o mesmo a listar os “principais
1 Mestrando em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, na linha de pesquisa História das Ciências Biomédicas. Membro do projeto de pesquisa História do Câncer: Atores, Instituições e Políticas Públicas, fruto da parceria entre a Fiocruz e o Instituto Nacional de Câncer (INCA), e do grupo de pesquisa História do Controle do Câncer no Brasil, cadastrado na plataforma do CNPq.2 Os Grandes Problemas Sanitários do Ceará. Ceará Médico. Setembro – Dezembro, 1947: Ano XXVI, nº 9-12. Pp. 26.3 Idem. pp. 34.4 O uso do termo entre aspas refere-se ao fato de que a ideia de uma elite na área médica pode caracterizar um cenário no qual médicos/cientistas possam compor quase que uma sociedade à parte do restante do estrato social. Sobre o uso do termo “elite médica” para caracterizar o CMC, ver Gadelha, 2012. Sobre a compreensão da relação entre ciência e sociedade para este trabalho, ver Gavroglu, 2007.
problemas sanitários do Ceará”, era o diretor do Departamento de Saúde Pública do estado,
representando, em parte, a visão do poder público mediante a situação do câncer na região.
O que chama atenção, finalmente, não é necessariamente a ausência da enfermidade na
lista de principais inquietações dos médicos cearenses, e sim, o fato de, na década de 1950,
notar-se um considerável aumento nos textos publicados no periódico referentes à temática do
câncer, além de uma mudança fundamental de abordagem: se, nos anos 1940, a doença era
analisada apenas em âmbitos episódicos, com avaliações de casos específicos e discussões
sobre as ações dos médicos em cada situação; na década de 1950, ganharam espaço trabalhos
que analisaram os impactos do câncer em nível populacional, além de ter início a um debate
sobre a sistematização de certas práticas anticâncer no estado. Nesse sentido, é possível
perceber, no intervalo que marca os anos de 1940 e 1960, a construção da doença como um
fato científico e um objeto de saúde pública no Ceará, levando ao questionamento sobre as
mudanças as quais levaram um grupo de médicos a se mobilizarem para o controle do câncer.
O objetivo deste trabalho é analisar as mudanças referentes à abordagem científica dos
médicos cearenses quanto ao tema do câncer, a partir das publicações do já mencionado
Ceará Médico, principal meio de circulação de ideias e práticas entre os profissionais da
medicina no estado. Para tanto, serão observados artigos, discursos, relatórios de serviços de
saúde, comunicações e informes relacionados à enfermidade no intervalo em que se acredita
ter ocorrido a mudança de abordagem pelos médicos. Tenta-se argumentar aqui que o fator
principal para a inserção do câncer na agenda científica da medicina cearense foi a tentativa
dos profissionais praticantes da cancerologia5 de se situarem no desenvolvimento da área
científica, parte importante de um empreendimento que era alavancado para além dos limites
territoriais estaduais, dialogando com outras experiências voltadas para o controle do câncer
no Brasil (Teixeira e Fonseca, 2007).
É necessário, entretanto, um esclarecimento teórico antes de se penetrar nas críticas de
fontes propriamente ditas. O argumento proposto aqui parte de duas perspectivas
fundamentais na História das Ciências, as quais permeiam considerável produção na
historiografia brasileira contemporânea dedicada ao estudo das ciências, dos cientistas e das
instituições científicas. A primeira noção é a de que a ciência é um fenômeno social e
cultural, ou seja, a atividade científica resulta
5 É importante situar ao leitor que será utilizado aqui o termo cancerologia para definir a área de atuação dos profissionais da medicina que trabalharam para o controle do câncer, não implicando, para o período estudado, uma formação específica em cancerologia. Sobre a história da cancerologia no Brasil, os trabalhos de Teixeira (2007; 2009; 2010) apontam diversos aspectos importantes.
“de diversas interações, não só intelectuais, mas também sociais, nas quais participaram todos quantos contribuíram para a sua formação. É hoje um fato adquirido que as orientações ideológicas das ciências, o seu ambiente cultural, as suas convicções filosóficas, mas também os seus compromissos ontológicos, influenciaram a formação das características desse fenômeno que é a ciência” (Gavroglu, 2007: 20).
A ideia, então, é olhar para cada elemento da evidência histórica como algo
socialmente construído, inclusive e principalmente, o conteúdo da ciência médica, situando
cada argumento técnico em uma conjuntura mais ampla que fundamentou a ação de cada
sujeito falante nas fontes. Os estudos populacionais apontam, por exemplo, uma afirmação da
“necessidade” de haver profissionais e espaços qualificados para o cuidado dos enfermos, um
posicionamento ao mesmo tempo técnico e profissional.
Outra noção importante, bastante próxima da primeira apresentada, é a de que os fatos
científicos são produtos das motivações e ações dos cientistas. Em seu trabalho Gênese e
desenvolvimento de um fato científico (2010), o médico alemão Ludwik Fleck aponta como os
cientistas constroem os seus objetos de estudo a partir dos seus interesses pessoais e
profissionais. A ciência, segundo Fleck, é fruto do cotidiano dos cientistas, das formas
segundo as quais cada grupo lida com o seu ofício, e dos objetivos que os homens de ciência
pretendem alcançar a partir de seus esforços de pesquisa e de intervenção. Portanto, a gênese
de um fato científico não é o mero aparecimento dele à comunidade científica, como uma
demanda clara e evidente a ser resolvida pelos cientistas, e sim, o resultado de um diálogo
entre o praticante da ciência e seus pares, a partir da realidade que os cerca.
A partir dessas noções pretende-se analisar os interesses envolvidos nos trabalhos
produzidos pelos médicos e publicados no Ceará Médico, entendendo a importância da
circulação das ideias e das práticas entre os pares para a consolidação de uma área científica e
de um objeto de estudo da ciência médica. Sendo assim, divide-se o trabalho em dois
momentos: no primeiro, serão analisadas as publicações do intervalo de 1940 a 1960,
debruçando-se sobre o texto em si, em especial nas mudanças argumentativas, tanto de
conteúdo quanto de forma (a estrutura dos estudos desenvolvidos, os tópicos abordados, as
ênfases dadas a cada tema e as ausências referentes a outros); no segundo momento, serão
ultrapassados os limites do texto, levando a reflexão ao nível conjuntural, relacionando os
pontos abordados no primeiro momento com aspectos da história da cancerologia em nível
local, nacional e global.
2 – “Não mencionei, mas considera”: ausências e presenças.
Para iniciar esta seção, é importante retomar o episódio narrado no início do texto: a
publicação do conteúdo da mesa redonda “Os Grandes Problemas Sanitários do Ceará”.
Como foi apresentado, a resposta do diretor do Departamento de Saúde Pública do Ceará,
Waldemar Alcântara, listou uma série de tópicos a serem discutidos ao longo da reunião do
CMC, entre os quais, a tuberculose e os problemas de saneamento ganharam atenção
redobrada dos médicos presentes na seção. Na sequência da publicação, somente na página 34
aparece a primeira, e única, menção ao câncer, a partir do questionamento feito pelo médico
Haroldo Juaçaba, membro diretor do Instituto do Câncer do Ceará, criado em 1944:
“DR. HAROLDO JUAÇABA: Pergunto à Mesa se considera o câncer problema de Saúde Pública, e se neste caso apresentado pelo Dr. Hider há alguma indicação útil a este respeito.DR. HIDER CORREIA DE LIMA: A mortalidade pelo câncer, em 1946, foi de 59 em 16.000.O MODERADOR: O dr. Haroldo Juaçaba perguntou se a mesa considera o câncer como problema de Saúde Pública.DR. WALDEMAR ALCÂNTARA: Não mencionei, mas considera. O MODERADOR: O dr. Haroldo não perguntou e eu pergunto se a mortalidade por câncer no Ceará justifica a criação de um serviço especializado de combate ao câncer entre nós. DR. WALDEMAR ALCÂNTARA: A própria população comporta um Centro de Pesquisas [Instituto do Câncer do Ceará]”.6
A passagem breve em que se inseriu o tema do câncer nas discussões realizadas pela
mesa redonda revela aspectos interessantes acerca do estatuto da doença perante a
comunidade médica cearense. Primeiramente, é interessante observar a taxa de mortalidade
indicada pelo médico Hider Correia de Lima, de 0,36%, um número bastante inferior ao de
outras doenças no período, como a tuberculose e a lepra, por exemplo. O segundo ponto a se
observar desenrola-se do primeiro, no questionamento do moderador da mesa, o médico
Newton Teófilo Gonçalves, relacionando a taxa de mortalidade com a relevância da criação
de um centro específico para o controle da doença, que, por sinal, já existia. Essa relação
mortalidade/relevância é recorrente nas análises históricas acerca das medidas de saúde
pública para o controle do câncer, uma vez que tal associação não se faz clara como em
doenças infectocontagiosas. No Rio de Janeiro, por exemplo, a criação do Serviço Nacional
de Câncer, nos anos 1940, esteve muito mais relacionada à iniciativa de nomes específicos e
do enquadramento desse grupo de profissionais ao projeto nacional de saúde da Era Vargas
(Teixeira e Fonseca, 2007; Teixeira, 2009; Schwartzman, 1986) do que a uma “epidemia de
câncer” ocorrendo em algum lugar do país.
6 Os Grandes Problemas Sanitários do Ceará. Ceará Médico. Setembro – Dezembro, 1947: Ano XXVI, nº 9-12. pp. 34.
Esse aspecto da mortalidade é um dos fortes indícios que explicam o baixo índice de
produções sobre o câncer no Ceará Médico na década de 1940. A partir da investigação
realizada, apenas cinco artigos relacionados à temática do câncer foram publicados no
periódico entre os anos de 1940 e 1947 (ano da realização da mesa redonda). Além disso, a
maneira pela qual é apresentada a doença nos textos possui uma característica muito
diferenciada das décadas posteriores: o câncer aparece em quatro dos cinco textos como um
objeto secundário da investigação realizada pelos autores dos textos, muito mais na condição
de um desenrolar do ponto central da análise do que uma pauta de discussão propriamente
dita.
Em Ação terapêutica dos Raios X em Dermatologia, o médico J. Pestana aponta, entre
as inúmeras possibilidades de se utilizar a radiação, o uso no tratamento do Linfoma de
Hodgkin, um tipo específico de câncer que atinge o sistema linfático. Em sua argumentação, o
autor afirma haver inúmeros benefícios com o uso dos raios-X, sendo atingidos “resultados
assombrosos. Enormes massas ganglionares desaparecem em pouco tempo”7. Todavia,
Pestana também argumenta sobre o fato de que a adoção da radiação como uma ferramenta
terapêutica ainda consistia uma etapa em desenvolvimento, requerendo ainda muita pesquisa a
ser desenvolvida para sua utilização de forma mais ampla.
Das demais publicações, somente o trabalho Diagnóstico precoce e tratamento do
câncer gástrico, também de 1940, de Deoclécio Dantas de Araújo, aborda diretamente a
enfermidade, em um texto com o objetivo de defender a funcionalidade do diagnóstico
precoce do câncer gástrico, a fim de tê-lo em condição operável, a partir do método cirúrgico
radical. Nesse texto, em especial, é possível observar pela primeira vez um dos argumentos
principais do controle do câncer: a detecção precoce da doença, o que leva à criação de uma
estrutura profissional e institucional que permita a realização de exames, de acompanhamento
médico e, finalmente, de tratamento (Cantor, 2008). Esse argumento, como será observado
mais adiante, é um dos pontos principais para a estruturação da cancerologia, uma vez que
legitima a construção de um campo de atuação para os cancerologistas, garantindo-lhes
relevância em termos científicos e de saúde pública. O controle do câncer, como aponta o
historiador David Cantor, requer uma estrutura mais complexa e mais persistente do que nos
casos das doenças infectocontagiosas, porque o processo de adoecimento ocorre de forma
mais lenta, na mesma medida em que seus impactos na vida cotidiana do paciente se
prolongam por muito mais tempo.
7 Ver PESTANA, J. Ação terapêutica dos Raios X em Dermatologia. Ceará Médico. Agosto – 1940: Ano XX. pp. 11 – 14.
Essas observações permitem a formulação de uma constatação: que, no limite, o
câncer não constituía um objeto científico para a medicina no Ceará, tampouco um real
problema de saúde pública. Ou seja, apesar de responder “não mencionei, mas considera”, o
diretor do Departamento de Saúde Pública do Ceará esclareceu um posicionamento mediante
a doença, em uma preferência8 aos problemas de ampla incidência populacional que não cabe
ao historiador julgar. O que cabe, aqui, certamente, é analisar como esse cenário mudou a
partir de 1948, com uma nova abordagem para a enfermidade e, principalmente, um aumento
nas produções tratando especificamente do “problema do câncer no Ceará”.
Na 2ª Reunião Anual do Centro Médico Cearense, organizada no começo de 1948, a
enfermidade foi discutida pelos membros da agremiação de forma mais aprofundada, embora
nem todas as comunicações apresentadas tratassem especificamente dos tumores malignos.
Somente na publicação referente aos trabalhos apresentados na reunião, oito trabalhos
discutiram (diretamente ou tangencialmente) a detecção e o tratamento de alguns tipos de
câncer. Dois trabalhos mostraram-se mais substanciais, com mais pontos a serem debatidos
acerca das terapias a serem oferecidas para os pacientes: Carcinoma de Êsofago, de Philip
Torek, pesquisador vindo de Chicago; e Problemas de Cirurgia Gástrica, de Haroldo
Juaçaba, médico do Instituto do Câncer do Ceará.
Uma diferença fundamental desses dois trabalhos para aqueles produzidos no intervalo
de 1940 – 1947 diz respeito à forma de estruturar a discussão proposta. No primeiro
momento, os textos procuravam relatar atividades realizadas pelos seus autores no sentido de
lidar com episódios particulares de ocorrência da doença em sua experiência clínica; enquanto
no segundo momento, partia-se de um estudo de casos para discutir-se a prática médico-
científica. No caso do texto de Juaçaba, percebe-se uma preocupação com a maneira de
praticar a cirurgia para o tratamento do câncer de estômago, principalmente quanto à
gastrectomia total, método cujo princípio é a retirada total do estômago, ligando o esôfago ao
duodeno. Apesar disso, o autor defende o uso do método cirúrgico para o tratamento dessa
modalidade de tumor, afirmando que “a cirurgia gástrica deve ser praticada mais largamente
no Ceará”9. A defesa feita por Juaçaba à cirurgia explica-se, em certa medida, pelo fato de o
médico ser um cirurgião de formação, ou seja, defender esse tipo de terapia para a doença é
defender, também, a legitimação de sua prática médica perante a comunidade médica e, no
limite, à sociedade como um todo.8 Fala-se em preferência, em vez de descaso, uma vez que o médico Waldemar Alcântara estava envolvido com a estrutura do controle do câncer no estado, vide sua participação na criação do Instituto do Câncer do Ceará. Ver Instituto do Câncer do Ceará, 2004.9 Juaçaba, Haroldo Gondim. Problemas de Cirurgia Gástrica. Ceará Médico. Setembro – Dezembro, 1948: Ano XXVII, nºs 9 – 12, pp. 63.
Outro tipo de estudo interessante publicado no Ceará Médico dizia respeito a análises
estatísticas da incidência da doença e da sua mortalidade, principalmente na população urbana
da capital, Fortaleza. Em 1951, Eduardo Alencar publicou o texto Mortalidade pelo Câncer
em Fortaleza, em que lançava mão de alguns dados para basear seu argumento favorável ao
aumento da estrutura de tratamento dos enfermos na cidade, da “urgência” em se ampliar os
investimentos em pesquisa, e na afirmação do princípio já comentado da detecção precoce.
Para tanto, Alencar apresenta algumas tabelas, uma delas seguindo logo abaixo:
Grupos de
Idade
Homens Mulheres Total Percentual
Homens
Percentual
Mulheres
Percentual
Total
0 – 19 23 25 48 1,7 1,8 3,5
20 – 39 63 153 216 4,7 11,4 16,1
40 – 59 146 382 528 10,9 28,5 39,4
60 – 79 162 311 473 12,1 23,2 35,3
80 - + 19 58 77 1,4 4,3 5,7
Total 412 929 1.342 30,8 69,2 100
Tabela de percentual de mortalidade por sexo e por idade. In: ALENCAR, 1951.
Nesse artigo, Eduardo Alencar traça alguns “perfis da doença” na cidade, apontando
para aspectos como a maior incidência entre mulheres e a relação disso com a ocorrência de
casos de câncer de mama e de colo do útero. Como é possível observar na tabela apresentada
acima, o número de óbitos entre as mulheres era o dobro em relação aos homens, levando ao
argumento do médico de que campanhas de educação em saúde deveriam ser promovidas para
auxiliar na detecção precoce da enfermidade pelas mulheres. Outras estatísticas levantadas no
artigo são importantes, tendo, por exemplo, a que indica os tipos de tumores mais recorrentes
na cidade; porém, não será possível analisá-las todas neste momento.
O ponto fundamental retirado dessa publicação de 1951 diz respeito à abordagem do
autor, que foge dos estudos de caso para um modelo mais preocupado com a saúde da
população. Esse tipo de trabalho, além de fornecer outra visão sobre o cenário da doença na
região, marca uma forma diferente de tratar o objeto de análise: o câncer, nesse, e em outros
trabalhos de perfil igual ou similar publicados entre 1948 e 1960, aparece como um problema
de saúde pública e, principalmente, como um objeto de investigação científica. Ampliava-se o
perfil de produções dos relatórios de atividades praticadas por médicos em casos específicos
para relatórios de instituições, discussões sobre procedimentos terapêuticos, análises sobre
tipologias específicas de câncer e proposições de estratégias de controle da doença no estado.
A mudança anunciada no início deste texto estava consolidada: o câncer era um
problema de saúde pública e objeto de investigação científica. Isso ficou claro na escrita dos
médicos, mas há ainda lacunas a serem preenchidas nesse processo de construção do fato
científico. Uma mudança de abordagem sobre uma enfermidade não ocorre de forma pura e
espontânea, está ligada a transformações nos fatores que constroem a significação social da
doença. No caso das epidemias, como aponta Rosenberg (1995), existe uma súbita aparição
de um problema o qual precisa ser resolvido de imediato, demandando ações da comunidade
médica e de outras esferas da sociedade. Mas e no caso de doenças crônico-degenerativas,
como o câncer? Não houve no Ceará, e, provavelmente, em outras partes do país, uma
epidemia de câncer, com inúmeras pessoas morrendo da noite para o dia devido algum tipo de
tumor. De fato, como já mencionado, outras enfermidades alarmaram muito mais o poder
público e a comunidade médica entre os anos 1940 e 1960. O que motivou, então, essa
mudança de abordagem?
Nesse ponto, é fundamental a percepção de que a ciência é um fenômeno social e
cultural, na medida em que se devem analisar elementos fora do universo da atividade
científica os quais acabaram por definir a prática e o discurso dos cientistas. Assim, na
próxima seção deste texto analisa-se o mesmo processo desta, mas sob outro olhar. Tomando
como base o processo histórico da mudança nos conteúdos e na estrutura da produção
científica observados nesta seção, parte-se para uma análise de caráter mais conjuntural,
procurando entender os elementos formadores da atividade científica dos médicos membros
do Centro Médico Cearense e participantes do circuito de publicações do Ceará Médico.
Serão postos também em perspectiva os cenários do câncer e da cancerologia na
experiência norte-americana e do Rio de Janeiro, buscando traçar algumas aproximações entre
a história da consolidação da área científica nas três localidades, com base na ideia da
circulação das práticas e das ideias científicas. Por questões de método, será utilizada a
terminologia central de cálculo para definir o posicionamento de cada região em relação à
produção do conhecimento10.
3 – O controle do câncer e a cancerologia no Ceará
10 O uso do termo central de cálculo (Latour, 2000), tem a ver com a percepção de que o fator geográfico (centro-periferia) não é o definidor das relações de circulação do conhecimento e das práticas científicas, havendo uma complexidade no sistema de trocas entre as localidades que problematiza a definição do modelo de difusão do saber do “centro” para a “periferia”.
A conformação do câncer como um fato científico e problema de saúde pública no
Ceará está diretamente ligado a um movimento pela estruturação da prática da cancerologia
desenrolado na década de 1940, a partir da iniciativa de um grupo restrito de médicos os quais
voltaram as suas atenções para a sistematização de estratégias para o controle do câncer no
estado.
Até 1944, nenhum espaço específico para o diagnóstico, o tratamento e a prevenção da
doença existia no estado, havendo apenas uma seção da Santa Casa de Misericórdia destinada
à atenção da população mais carente que sofria de câncer, o Serviço de Câncer Fernando
Pinto, onde era detectada a existência do tumor e aplicava-se o método terapêutico
convencional, a cirurgia. Iniciativa particular do empresário Fernando Pinto, o serviço chegou
até a receber alguns profissionais que, mais tarde, se especializaram em cancerologia em
outros centros, mas não constituiu um espaço propriamente dito para o desenvolvimento da
prática científica e, muito menos, de uma área especializada na profissão médica. É
importante, entretanto, situar que, mesmo após a criação do Instituto do Câncer do Ceará, em
1944, o Serviço de Câncer Fernando Pinto seguiu sendo um dos principais espaços de
cuidados com os pacientes de câncer no estado, principalmente daqueles vindos das cidades
do interior, como aponta o relatório de 195111.
Essas evidências mostram que, mesmo não sendo um problema de saúde pública nem
um objeto de pesquisa científica, o câncer aparecia nas preocupações de alguns nomes da
medicina local, em associação direta com casos específicos de prática filantrópica, como o
caso de Fernando Pinto. Por sinal, ao longo da década de 1950, a filantropia seguiu sendo um
elemento importante para o controle do câncer, principalmente para o desenvolvimento da
prática científica, a partir da arrecadação de fundos, bem como para a organização das
campanhas de educação em saúde, com destaque especial para, no caso cearense, a Rede
Feminina do ICC, criada dentro do Instituto em 1954, com o objetivo de angariar “recursos
via ‘contribuintes’ mensais e através de movimentos e campanhas com finalidades
específicas, principalmente de ampliação de seus serviços, destinados à melhoria do
atendimento à população carente, não somente da capital, mas, principalmente, a do interior”
(JUAÇABA, 1994).
Essas ações filantrópicas fizeram parte do processo de estruturação da cancerologia no
Ceará, um campo de atuação médica que se desenvolveu, como foi visto na seção anterior, no
ensejo de uma agremiação de caráter científico, o Centro Médico Cearense, mas precisou de
11 Ver GONÇALVES, Newton e JUAÇABA, Haroldo. Relatório do Serviço de Cancerologia Fernando Pinto. Ceará Médico. Outubro – Dezembro: 1951, Ano XXIX, nºs 10 – 12, pp. 61 – 63.
uma união de fatores políticos e sociais para se consolidar. A conformação do câncer como
um fato científico ocorreu como uma das formas de legitimar e consolidar a prática científica,
na medida em que é necessário o reconhecimento do objeto de estudo de uma área pela
comunidade científica para que a atuação do cientista ganhe validade social e cultural
(Shapin, 1994).
Evidentemente, a construção do câncer como um problema de saúde pública e objeto
de pesquisa científica não ocorreu somente nos limites da comunidade médica, havendo ações
voltadas para a divulgação da enfermidade e para a “conscientização” da população sobre
como detectar precocemente a existência de um determinado tumor. Por exemplo, em 1950, o
Instituto lançou ao público um panfleto denominado A Verdade Sobre o Câncer, cujo objetivo
era divulgar à população em geral as características gerais da enfermidade e as formas pelas
quais a comunidade médica promovia o seu controle. Em um texto direto e simples, voltado
para um público amplo, chama atenção a centralidade dada para o médico cancerologista no
processo de controle da doença, como na passagem em que se enumeram os “sinais” para
suspeitar da existência de um tumor e o texto encerra o tópico dizendo: “Ao verificar qualquer
desses sinais, não procure conselho de visinho (sic) ou aceite remédio de quem diz ter sofrido
de idêntico mal; nem tão pouco espere que apareça a dor: Vá imediatamente ao médico”12.
Não cabe ao historiador julgar ou avaliar se a centralidade do médico no processo
saúde-doença é correta ou errada, o que importa à interpretação aqui proposta é identificar
como esse argumento foi essencial ao desenvolvimento da cancerologia, pois afirmou o
interesse em se promover a prática médica especializada, com espaço institucional específico
e, anos mais tarde, a construção de uma carreira médica voltada para o controle do câncer. Ou
seja, a mudança epistemológica ocorrida nas produções do Ceará Médico, analisadas na seção
anterior deste trabalho, foram motivadas, em parte, pelo movimento de legitimação e
consolidação de uma prática e, principalmente, dos seus praticantes. Não à toa muitos dos
autores dos trabalhos investigados foram médicos bastante ativos no Instituto do Câncer do
Ceará, no Serviço de Câncer Fernando Pinto, e até mesmo, nas décadas posteriores, em outros
espaços os quais ofereceram serviços de cancerologia em Fortaleza.
Uma interpretação mais extrema apontaria que o câncer foi uma doença criada pela
cancerologia, mas certamente incorreria em um profundo anacronismo. O câncer, a patologia,
existia com suas próprias identificações sociais, culturais e biológicas antes do aparecimento
de uma área especializada no seu controle. Até mesmo a terapia para a doença já era
conhecida e praticada amplamente pelos cirurgiões, especialmente no Brasil, onde a cirurgia
12 A Verdade Sobre o Câncer. Ceará Médico. Outubro – Dezembro: 1950, Ano XXIX, nºs 10 – 12.
marcou uma tradição forte no campo médico (Teixeira e Edler, 2012). O mais sensato a se
argumentar é que a cancerologia criou uma forma de se compreender a doença, transformando
suas significações sociais, culturais e biológicas a partir da pesquisa científica, da prática
clínica e da divulgação, seja na área da educação em saúde, seja nos periódicos
especializados. A ideia de um enquadramento (framing) da doença, como propõe Rosenberg
(1997), parece uma aproximação muito mais coerente a se fazer do que a ideia de uma
“invenção” do objeto científico pela ciência.
Importante, também, é inserir o processo de conformação do câncer como fato
científico e problema de saúde pública em um dinâmica de circulação de saberes e de práticas
que envolve inúmeros agentes e instituições, marcando uma aproximação entre os processos
históricos ocorridos em várias localidades. O desenvolvimento da cancerologia no Ceará não
ocorreu isolado dos debates existentes de outras centrais de cálculo, como o Rio de Janeiro e
os Estados Unidos, por exemplo. A produção da ciência nesses lugares se conectou de várias
formas, com a circulação de pessoas para formação e divulgação científica (alguns médicos
cearenses tiveram formação na Universidade do Brasil e no Kentucky, por exemplo); o
estabelecimento de sistemas de referências científicas (trabalhos produzidos, publicados e
citados entre periódicos dos três espaços); pelo envio de tecnologia, como aparelhos de
diagnóstico e de tratamento; e, ainda, a circulação de ações públicas de controle, como o
estabelecimento de políticas anticâncer e campanhas de educação em saúde similares entre os
diversos espaços.
É certo que, nessa dinâmica de circulação, há as incongruências, as diferenças nos
vetores de poder, evidenciando contrastes econômicos, políticos e sociais. Por exemplo, no
que diz respeito à tecnologia obtida para o tratamento utilizando o radium, a roentgenterapia,
todo o material terapêutico era importado da Europa, ou até mesmo dos Estados Unidos, não
havendo tecnologia similar no Brasil. Essas desigualdades de forças fazem com que, mesmo
estando inseridas em um mesmo processo histórico, regiões diferentes desenvolvam cenários
e áreas de atuação científicas diversas. Outro exemplo pode ser visto a partir do trabalho de
David Cantor (2008b), cujo ponto central é compreender o papel do cinema nas estratégias de
controle do câncer nos Estados Unidos, abordando a discussão no campo da medicina sobre o
uso desse tipo de ferramenta. No caso do Ceará, tal reflexão torna-se praticamente
impensável, na proporção que o cinema era um espaço muito circunscrito à elite urbana de
Fortaleza (Silva, 2007), havendo regras de comportamento e de vestimenta impossibilitando a
simples entrada de imensa parcela da população nas salas de exibição, tornando a estratégia
inviável.
Percebe-se, portanto, que mesmo fazendo parte de um circuito maior de
movimentações ligadas ao desenvolvimento da cancerologia13, a história dessa área científica
no Ceará desenrolou-se de formas diferentes, relacionando-se com as especificidades locais e
com os interesses dos médicos envolvidos na sua estruturação. Mesmo partindo de uma
perspectiva de trabalho que considera toda atividade científica um fenômeno social e cultural,
é essencial explorar as relações estabelecidas pelos cientistas com o seu ambiente cultural e
social, pois esse é o fator diferenciador dos processos históricos: a experiência.
Assim, a mudança epistemológica na produção científica sobre o câncer no Ceará
Médico foi motivada pelos interesses dos médicos envolvidos com o desenvolvimento da
cancerologia em “promover” a doença no campo da medicina como um objeto científico e um
problema de saúde pública, resultando na legitimação e consolidação da prática desses
profissionais e de um maior incentivo no âmbito público e privado para a formulação de ações
de controle do câncer no estado. Se a ausência, meticulosa ou não, do câncer entre “os
grandes problemas sanitários do Ceará” não surpreende devido ao cenário científico da
medicina nos anos 1940, também não pode ser inesperada a recorrência de trabalhos tomando
a enfermidade como objeto central nos anos 1950 (1960 e 1970, apesar de não estar inserido
no recorte deste texto), considerando a consolidação da cancerologia no estado. Finalmente,
não é possível afirmar categoricamente que a medicina “criou” o câncer, mas pode-se sim
afirmar que foi fundamental para a construção de seu significado social, cultural e biológico.
4 – Considerações finais
Este trabalho discutiu o processo de inserção do câncer na agenda científica do Ceará,
argumentando que tal fenômeno ocorreu devido a uma série de fatores sociais, culturais,
políticos e epistemológicos, sendo o principal deles, com base na investigação realizada, o
interesse de um grupo de médicos em estruturar uma área científica própria para a promoção
de estratégias de controle do câncer no estado, a cancerologia.
Em um intervalo de aproximadamente vinte anos, a ausência de produções científicas
e ações de saúde pública deu lugar a uma variedade de trabalhos escritos pelos médicos
cancerologistas e à construção de uma instituição específica para a pesquisa, o tratamento e a
prevenção da doença, o Instituto do Câncer do Ceará. Observou-se, então, a relação intrínseca
entre a mobilização de um grupo de cientistas para a construção de um significado biológico, 13 Em 1943, o Serviço Nacional de Câncer propôs, na figura de Mário Kroeff, um projeto nacional de controle do câncer. “Sua proposta, apresentada ao diretor do Departamento Nacional de Saúde, em 5 de janeiro de 1943, tinha como foco a utilização imediata de instituições de combate ao câncer já existentes em São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e, também, as que estavam em vias de serem inauguradas em Pernambuco e no Ceará” (Teixeira e Fonseca, 2007: 78).
social e cultural do seu objeto de estudos, visando à legitimação de uma prática e a
consolidação de um campo profissional.
Atualmente, o Instituto do Câncer do Ceará figura no cenário nacional entre as grandes
instituições de tratamento e de pesquisa sobre a doença, com uma estrutura bastante
complexa, contendo hospital, escola de oncologia, serviço de atenção ao paciente, serviço de
voluntariado, entre outros. Como um problema contemporâneo, fenômeno evidenciado com
maior destaque no século XX, o câncer e sua história suscitam reflexões que levam à
compreensão de como se organiza o serviço médico no país, uma vez que a construção de
serviços e instituições para o controle do câncer se enquadram na história do Brasil
republicano, e ajudam a revelar a formação do Estado Nacional, do conceito de cidadania e da
ideia de saúde pública.
É possível que resida aí a importância de estudar a ciência em perspectiva histórica
como um fenômeno social e cultural, pois será possível revelar aspectos formadores da
sociedade brasileira. A história do câncer (e da cancerologia) é, por excelência, uma história
do tempo presente, pois seus desenrolares se arrastam até o presente de quem a escreve e a lê.
Fundamental, ainda, nessa história das ciências em perspectiva cultural e social, a operação
com os conteúdos das ciências, o que tentou ser feito neste trabalho, acreditando ser possível,
a partir das discussões e das argumentações científicas, além das organizações
epistemológicas dos cientistas, identificar diversos aspectos de formação da atividade
científica em meio à vida social.
A ciência, e mais especificamente a medicina, aparece nesse cenário não como um
microcosmo separado do todo da sociedade, e sim, inserido diretamente nela, mas atribuindo
peculiaridades a si mesma, hierarquias próprias, formas de se comportar específicas, no
sentido de legitimar a sua atuação profissional e a sua colocação social, tanto no sentido
coletivo (a comunidade médica) quanto no sentido individual (o médico).
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