EDUARDO GOMES SILVA
A REDE DA DEMOCRACIA E O
GOLPE DE 1964
Niteri
Agosto de 2008
ii
REA DE HISTRIA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
A REDE DA DEMOCRACIA E O GOLPE DE 1964
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria. rea de Concentrao: Poder e Sociedade. Orientadora: Prof Dr Adriana Facina Gurgel do Amaral.
Niteri
Agosto de 2008
iii
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
S586 Silva, Eduardo Gomes.
A Rede da Democracia e o golpe de 1964 / Eduardo Gomes Silva. 2008. 154 f. Orientador: Adriana Facina Gurgel do Amaral.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2008. Bibliografia: f. 132-141.
1. Golpe de 1964. 2. Mdia. 3. Historiografia. I. Amaral, Adriana Facina Gurgel do. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 981.062
iv
Ao meu querido Flavinho, pela pacincia [quase sempre] demonstrada nesses
ltimos dois anos.
v
O dom de despertar no passado as centelhas da esperana privilgio do historiador convencido de que tambm os mortos no estaro em segurana se o inimigo vencer. E esse inimigo no tem cessado de vencer.
Walter Benjamim
vi
RESUMO
SILVA, Eduardo Gomes. A Rede da Democracia e o golpe de 1964. Dissertao (Mestrado
em Histria) Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal Fluminense,
Niteri/Rio de Janeiro, 2008, 154 f.
Atravs da presente dissertao, procuramos analisar o papel desempenhado pela Rede da
Democracia no processo de disputa pelo controle do Estado do qual o golpe de 1964
representou decisiva etapa. Arranjo miditico formado pelas emissoras de rdio e pelos
jornais das empresas Globo, Jornal do Brasil e Dirios Associados, acreditamos que a Rede
da Democracia atuou entre outubro de 1963 e abril de 1964 como um importante locus de
fomentao e doutrinao ideolgica em prol da destituio do Governo Goulart, do
estancamento do processo de expanso democrtica experimentada naquele perodo e de
promoo de um projeto moderno-conservador para o Pas de fato implementado pelos
governos ditatoriais iniciados em abril de 1964. Almejamos, tambm, trazer tona a relao
entre este arranjo miditico e a historiografia revisionista sobre o Golpe, sobretudo no que
tange ao exacerbado e anacrnico peso conferido democracia por parte desta tendncia
historiogrfica.
Palavras-chave: Rede da Democracia; Golpe de 1964; Revisionismo historiogrfico.
vii
ABSTRACT
SILVA, Eduardo Gomes. The Rede da Democracia and the Brazilian 1964s coup d'tat.
M.A. Dissertation. Graduate Program in History Universidade Federal Fluminense,
Niteri/Rio de Janeiro, Brazil, 2008, 154 f.
This dissertation intends to analyze the role played by the Rede da Democracia in the dispute
process for control of the Brazilian State, in which the 1964's coup d'tat represented a central
step. A midiatic network formed by radio broadcastings and newspapers held by O Globo
Corporation, Jornal do Brasil and Dirios Associados, the Rede da Democracia operated,
between October 1963 and April 1964, as a major locus of fomentation and ideological
indoctrination in favor of the destitution of President Joo Goulart government. It has further
contributed to the restraint of the democratic growth experienced at that period, as well as
fostered the promotion of a conservative-modernizing project for the country in fact
implemented by the dictatorship governments from April 1964 on. Additionally, this
dissertation aims to look at the relationship between this midiatic network and current
Revisionist Historiography on the 1964's coup d'tat, particularly on the exacerbated and
anachronic weight conferred to "democracy" by this Historiographic tendency.
Keywords: Rede da Democracia; Brazilian 1964s coup d'tat; Historiographic Revisionism.
viii
AGRADECIMENTOS
No seria possvel mesurar o nmero e a importncia das pessoas que passam pelo
nosso caminho em um espao de dois anos. Tampouco classific-las quanto a sua maior ou
menor insero em um nunca-solitrio processo de elaborao de trabalho acadmico.
Dito isto, peo desculpas e licena aos familiares, amigos e amigas com os quais tive o
privilgio de contar nestes ltimos anos para, nas prximas linhas, somente mencionar e
agradecer aquelas pessoas e/ou instituies sem as quais estas poucas folhas digitadas
simplesmente no existiriam enquanto uma dissertao de mestrado. Desta forma, tenho o
prazer de deixar registrado que sou imensamente grato:
Aos funcionrios da Secretaria do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFF,
nas pessoas de Stela, Ins, Silvana, Devid e Salvador. A Comisso de Planejamento daquele
Programa. E aos professores Marcelo Badar, Mrcia Motta, Snia Mendona, Tho Pieiro e
Fernando Faria, tambm do PPGH/UFF.
Eliane Peres, ao Oscar Gonalves e ao Jorge Luiz dos Santos responsveis,
respectivamente, pela coordenadoria de pesquisa, pela coordenadoria de editorao e pelo
setor de peridicos da Fundao Biblioteca Nacional.
Aos professores Marialva Barbosa (Programa de Ps-Graduao em
Comunicao/UFF) e Renato Lemos (Programa de Ps-Graduao em Histria Social/UFRJ).
Aos membros do LEMP Laboratrio de Estudos sobre Militares na Poltica; e secretria
do PPGHIS/UFRJ, Gleidis Corra.
E tambm Pmella Deusdar, ao Nilton Arajo, ao Cadu Marconi e ao Renato
Lattanzi.
ix
Por ltimo, gostaria de registrar que sou especialmente grato professora Laura
Maciel sobretudo pelas suas incisivas palavras quando do Exame de Qualificao. E
professora Adriana Facina, que to corajosamente e em meio a inmeras adversidades aceitou
orientar este trabalho e assumir a rdua tarefa de faz-lo subsistir!
Lista de siglas e abreviaes
ADP Ao Democrtica Parlamentar
ADEP Ao Democrtica Popular
AP Ao Popular
BNH Banco Nacional de Habitao
CAMDE Campanha da Mulher Democrtica CASES Campanha de Assistncia ao Estudante CBP Consrcio Brasileiro de Produtividade CIA Central Intelligence Agency
CIESP Centro de Indstrias do Estado de So Paulo CGT Comando Geral dos Trabalhadores
CNA Confederao Nacional da Agricultura CNBB Confederao Nacional dos Bispos do Brasil CPC Centro Popular de Cultura
CPI Comisso Parlamentar de Inqurito
CRB Confederao Rural Brasileira
DSN Doutrina de Segurana Nacional
EMFA Estado Maior das Foras Armadas ESG Escola Superior de Guerra
EUA Estados Unidos da Amrica
FEB Fora Expedicionria Brasileria
FFAA Foras Armadas
FIESP Federao das Indstrias do Estado de So Paulo FJD Frente de Juventude Democrtica
FMP Frente de Mobilizao Popular
GAP Grupo de Ao Patritica
GEA Grupo de Estudos e Ao
GOP Grupo de Opinio Pblica
GPE Grupo de Publicaes/Editorial
GR Guerra Revolucionria
IPEA Instituto de Planejamento Econmico e Social Aplicado IPM Inqurito Policial Militar
INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
xi
IAPI Inter American Press Association
IBAD Instituto Brasileiro de Ao Democrtica IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros JB Jornal do Brasil JK presidente Juscelino Kubitschek
JEC Juventude Estudantil Catlica
JUC Juventude Universitria Catlica
MEB Movimento de Educao de Base
MEC Ministrio da Educao e Cultura
MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetizao NI Nota de Instruo
NSAM National Security Action Memorandums PAEG Plano de Ao Econmica e Social PCB Partido Comunista Brasileiro
PDC Partido Democrata Cristo
PL Partido Libertador
PSD Partido Social Democrtico
PSP Partido Social Progressista
PTB Partido Trabalhista
PTN Partido Trabalhista Nacional
PUA Pacto de Unidade e Ao
PUC Pontfica Universidade Catlica
RD Rede da Democracia
SIP Sociedade Interamericana de Imprensa SRB Sociedade Rural Brasileira
SUPRA Superintendncia da Reforma Agrria UBES Unio Brasileira dos Estudantes Secundaristas UH jornal ltima Hora
UME Unio Metropolitana de Estudantes UNE Unio dos Estudantes Universitrios UDN Unio Democrtica Nacional
URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas
SUMRIO
Introduo____________________________________________________________ 01
1 As Redes e o golpe de 1964____________________________________________ 09
1.1 A imprensa e o Golpe 1964 e quarenta anos depois_________________ 14
1.2 Mapeando o revisionismo acadmico e a relao imprensa-golpe
de 1964____________________________________________________ 19
1.3 Basta de Monlogo! O papel da imprensa em uma disputa
Hegemnica________________________________________________ 33
2 Elementos constitutivos e legitimidade de ao___________________________ 39
2.1 Estrutura e abrangncia_________________________________________ 45
2.2 Legitimidade ou o papel mediador da imprensa brasileira___________ 52
2.3 O programa de estria__________________________________________ 63
3 Consenso para a coero______________________________________________ 70
3.1 Os orados da Rede da Democracia________________________________ 81
3.2 Pronunciamentos______________________________________________ 92
3.3 Consenso para a coero_______________________________________ 113
Consideraes Finais___________________________________________________ 125
Fontes e Referncia Bibliogrficas________________________________________ 132
1
Introduo
A origem deste trabalho pode ser datada em maro de 2004, quando ainda cursava os
primeiros semestres da graduao em Histria da Universidade Federal de Santa Catarina. Em
meio ao vultoso nmero de publicaes sobre o golpe de Estado de 1964 e sobre o regime
ditatorial que o seguira fomentadas, muitas delas, pela efemride que 2004 representava ao
tema uma em especial despertou-me a ateno: A Imprensa golpista O papel dos jornais
cariocas da Rede da Democracia na queda de Jango.1 Artigo de apenas quatro pginas,
publicado em um semanrio de circulao nacional e de autoria do historiador Aloysio de
Carvalho, A Imprensa Golpista... pareceu-me significativo naquele momento por diversos
fatores, dentre eles: i) por tratar de um tema indito enquanto objeto historiogrfico; e ii) por
trazer tona a histria de um arranjo miditico cuja formao, per se, contradizia um dos
pilares que sustentam a legitimidade da imprensa nas sociedades modernas: a independncia
jornalstica.
Arranjo formado pelas empresas jornalsticas O Globo, Jornal do Brasil e Dirios
Associados, a Rede da Democracia surgiu em outubro de 1963 como um programa
radiofnico, dirio, encabeado pelas respectivas emissoras daquelas empresas Rdio
Globo, Rdio JB e Rdio Tupi e retransmitido por centenas de emissoras Pas afora, sempre
no horrio compreendido entre as 22h e 30min e meia-noite. Tambm de forma padronizada,
uma considervel parte daqueles programas chegavam mdia impressa graas ao espao que
O Globo, Jornal do Brasil e O Jornal passaram a reservar transcrio de seus contedos;
complementando, ao mesmo tempo que destoavam, da campanha anti-Goulart que esses
1 CARVALHO, A.H.C. A imprensa golpista o papel dos jornais cariocas da Rede da Democracia na queda de Jango. In: Carta Capital, 31/03/2004, p. 72-75.
2
mesmos dirios implementavam atravs de editoriais, colunas assinadas e demais reportagens
de cunho oposicionista. Seu perodo de atuao estendeu-se at abril de 1964, dias antes do
general Castelo Branco ser empossado presidente da Repblica.
Tornada tema de minha pesquisa e objeto principal de meu trabalho de concluso de
curso, tentei reconstruir o papel que a Rede da Democracia exercera em relao aos marcos
que norteiam grande parte da produo acadmica sobre o Golpe; tanto aqueles que
antecederam a sua criao como a Revolta dos Sargentos, de setembro de 1963 e o pedido
de Estado de Stio por parte de Joo Goulart, datado em outubro do mesmo ano ; como
aqueles posteriores a criao do arranjo como o Comcio das Reformas de Base, a
Marcha da Famlia com Deus, pela Liberdade, a Revolta dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais e a participao de Goulart na reunio de sargentos e subtenentes da Polcia Militar
ocorrida no Automvel Clube do Rio de Janeiro, todos datados em maro de 1964.2
Com a possibilidade de aprofundar tais pesquisas atravs do Programa de Ps-
Graduao em Histria da UFF; com o acesso aos arquivos sistematizados dos jornais que
compuseram a Rede; e, principalmente, com o contato profcua discusso e produo
acadmica sobre aquele perodo histrico, percebi que precisaria ir alm da mera descrio
dos pronunciamentos e mensagens emitidas pelos microfones daquele arranjo para aproximar-
me de sua importncia histrica sobretudo enquanto locus de fomentao e doutrinao
ideolgica em prol da destituio do Governo Goulart e de promoo de um projeto
hegemnico de carter antipopular e antidemocrtico.
Isto porque, para alm da importncia que se presume em relao ao papel
desempenhado pela Rede da Democracia naquele perodo a qual tentaremos provar ao
longo do presente estudo , este objeto suscita questes relacionadas prpria historiografia
sobre o Golpe; mais precisamente, em relao tendncia historiogrfica que aqui estamos
entendendo com revisionistas.
Com o aumento do nmero de eventos,3 obras4 e artigos5 dedicados ao balano
historiogrfico sobre o Golpe e sobre o ltimo regime ditatorial do Pas, o debate em torno
2 Voltaremos a esses marcos histricos no decorrer desta dissertao, quando teremos oportunidade de explicit-los e relacion-los ao nosso objeto de anlise. 3 guisa de ilustrao e citando somente aqueles que sero objetos de nossa anlise: Seminrio 1964-2004: 40 anos do Golpe. Ditadura militar e resistncia no Brasil (Niteri/Rio de Janeiro 2004); e Olhares sobre 1964: o golpe que calou o Brasil (Rio de Janeiro 2004). 4Como, por exemplo: TOLEDO, C.N. (org) 1964: Vises crticas do golpe: Democracia e reformas no populismo. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997; Revista Brasileira de Histria. So Paulo: ANPUH, vol. 24, n 47, jan-jun, 2004; 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistncia no Brasil Anais do Seminrio (UFRJ, UFF, CPDOC, APERJ). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004; Revista Histria & Luta de Classes. Rio de
3
deste revisionismo ganhou corpo e visibilidade. No sentido de contribuir e nos posicionar
frente a este debate, estamos entendendo como revisionistas aquelas abordagens sobre o golpe
de 1964 que, ao privilegiar uma anlise factual, personalista e/ou anacrnica daquele
processo, acabam por ratificar os argumentos de seus verdadeiros golpistas.
No caso especfico de nosso objeto de investigao, tal debate torna-se premente pela
confluncia entre vrios aspectos que passa por uma errnea caracterizao da Rede da
Democracia presente em uma dessas abordagens,6 e culmina na proximidade entre aquilo que
denominamos de defesa da democracia como estratgia golpista (perpretada pela Rede no
perodo de sua atuao ideolgica), e o exacerbado e anacrnico peso conferido ao regime
democrtico por parte de tais abordagens revisionistas.
Embora a caracterizao da Rede da Democracia pelo artigo A imprensa golpista...
no compartilhe de tais imprecises localizando-a, inclusive, como um brao ideolgico da
burguesia em associao ntima com o capital internacional [...] atuante na construo de um
consenso para a interveno militar 7 consideramos que sua anlise exacerba o aspecto
miditico daquele empreendimento, em detrimento dos demais aspectos presentes inclusive
em seus estratgico momento de criao. Isto porque, mesmo reconhecendo a importncia
quanto abrangncia e legitimidade que um arranjo miditico como a Rede e a grande
imprensa, de um modo geral 8 pudesse ter desempenhado naquele contexto, percebemos
que sua constituio deveu-se, sobretudo, expanso de uma disputa que j havia
ultrapassado os muros do Parlamento e ganho as ruas das principais cidades e os campos do
Pas sendo a imprensa uma importante, mas no a nica, frente desta disputa.
Janeiro: ADIA, ano 1, n 1, 2005; MELO, D.B. A misria da historiografia: o revisionismo historiogrfico 40 anos depois do golpe de 1964. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ. Monografia de Bacharelado em Histria, 2005; dentre outras. 5 Tambm guisa de ilustrao: FICO, C. Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar. In: Revista Brasileira de Histria. So Paulo: ANPUH, vol. 24, n 47, jan-jun, 2004, p. 29-60; MATTOS, M.B. Os trabalhadores e o golpe de 1964: um balano da historiografia. In: Revista Histria & Luta de Classes. Rio de Janeiro: ADIA, ano 1, n 1, 2005, p. 07-18; TOLEDO, C.N. 1964: Golpismo e democracia. As falcias do revisionismo. In: Crtica marxista, n 19. So Paulo: Boitempo, 2004, p. 27-48. 6 Presente no artigo A estratgia do confronto: A Frente de Mobilizao Popular, o qual teremos oportunidade de analisar no primeiro captulo. Cf.: FERREIRA, J. A estratgia do confronto: a Frente de Mobilizao Popular. In: Revista Brasileira de Histria. So Paulo: Anpuh, vol. 24, n47, jan-jun, 2004, p. 181-212. 7 CARVALO, A.H.C. A imprensa Golpista.... Op.cit., p. 72. 8 Consideramos grande imprensa aquelas empresas jornalsticas que dispunham de uma considervel estrutura tcnica (representada, por exemplo, pela existncia de um parque grfico prprio) e/ou de um notrio poder de interveno no cenrio poltico nacional. Por no ser um termo suficientemente preciso para, por exemplo, mesurar as diferenas entre um legtimo conglomerado miditico, como os Dirios Associados, e uma pequena mas poderosa publicao daquele perodo, como o vespertino Tribuna da Imprensa, o manteremos encerrados entre aspas ao longo desta dissertao. Cf.: SODR, N.W. Histria da imprensa no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1977; e SMITH, A.M. Um acordo forado: o consentimento da imprensa censura no Brasil. Trad.: Waldvia M. Portinho. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000.
4
Outrossim, a composio de seus oradores e as mensagens veiculadas pelos
microfones da Rede entre outubro de 1963 e abril de 1964 no difeririam das outras frentes de
atuao da elite orgnica representante dos interesses multinacionais e associado atuao
intensificada no chamado perodo de ao implementado por esta elite orgnica entre 1962
e 1964. Como ficar patente ao longo desta dissertao, partimos das anlises de Ren
Armand Dreifuss e, de forma indireta, de alguns conceitos desenvolvidos pelo pensador
Antonio Gramsci, para localizar a tomada de poder em abril de 1964 como um dos marcos da
disputa pela hegemonia poltica do Pas, dada a importncia que a insero e controle do
Estado representavam a esta disputa.
Neste sentido, embora nosso objeto de anlise tenha sido criado e atuado poucos
meses antes do golpe de 1964, acreditamos no ser possvel apreender a complexidade
inerente quele processo sem considerar a historicidade daquela disputa, sua relao com as
profundas mudanas sofridas pela estrutura scio-econmica do Pas aps o fim da Segunda
Guerra Mundial e, no mbito internacional, pelas reestruturaes impostas ao mundo pela
Guerra Fria.
Em 1964: A conquista do Estado Ao poltica, poder e golpe de classe,9 Dreifuss
localiza o golpe de 1964 como um ataque bifrontal s classes populistas no poder e a forma
populista de domnio,10 proveniente de duas foras sociais fundamentais daquele contexto:
os interesses multinacionais e associados e as classes trabalhadoras industriais.11 Segundo
suas anlises, esse ataque bifrontal reporta ao processo de internacionalizao sofrido pela
burguesia nacional durante os governos Dutra (1946-1950), Vargas (1951-1954) e,
principalmente, durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) em que as
condies criadas pela poltica desenvolvimentista baseada na fomentao industrial-
tecnolgica e no afluxo de capital estrangeiro estabeleceram as condies para a proeminncia
econmica do capital oligopolista multinacional e associado.12
Considerado o momento em que as contradies entre o pacto populista e o
desenvolvimento deste capital oligopolista atingiram seu momento mais crtico,13 o Governo
JK marcou tambm a estruturao de um novo bloco histrico, justamente aquele denominado
9DREIFUSS, R.A. 1964: A conquista do Estado. Ao poltica, poder e golpe de classe. 3 ed. Trad.: Laboratrio de Traduo da UFGM. Petrpolis: Ed. Vozes, 1986. 10 Grosso modo, a forma de domnio pelo qual o Estado ocultava seu papel de classe em prol do acomodamento entre a hegemonia burguesa e os interesses das classes trabalhadoras. Cf.: Idem, p. 27. 11 Idem, p. 37. 12 Idem, p. 34. 13 Cf.: Idem, ibidem. Tambm: IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1994.
5
por Dreifuss como bloco multinacional e associado. Resultante daquilo que Gramsci
denominou de correlao de foras (o processo de hegemonia de um grupo social
fundamental sobre uma srie de grupos subordinados, atravs dos aspectos estruturais,
polticos e militares14), o ascendente bloco histrico multinacional e associado
implementaria uma incisiva campanha ideolgica e poltico-militar nos anos 1960 para que
sua j conquistada primazia econmica se tornasse tambm poltica. Campanha que seria
aprofundada aps este bloco ver a excelente chance de impor suas diretrizes poltico-
econmicas atravs do controle do Estado malograr com a renncia de Jnio Quadros
presidncia da Repblica. 15
Data, tambm deste momento, a formao por parte daquele bloco multinacional e
associado de um centro poltico estratgico capaz de organizar e dirigir a supracitada
campanha poltico-ideolgica; qual seja: o complexo IPES/IBAD.16 A compreenso dos
conceitos gramscianos de partido, elite orgnica e intelectual orgnico tambm se faz
necessria para a localizao das anlises presentes em 1964: A conquista do Estado... e
teremos oportunidade de aprofund-los ao longo desta dissertao. Por ora, basta mencionar
que a forma como Dreifuss pontuar a evoluo do complexo IPES/IBAD (de um limitado
grupo de presso para uma organizao de classe capaz de uma ao poltica sofisticada17)
coaduna com as tarefas descritas por Gramsci em relao ao partido desejoso em tornar
universal o projeto de classe da qual representante.18
Como teremos oportunidade de aprofundar nas pginas subseqentes, a importncia da
imprensa (e de outros canais de produo e difuso de consensos) no processo de hegemnica
relaciona-se sofisticao analtica dos escritos gramscianos em conceber o Estado de forma
ampliada e a partir do prisma de interao entre a sociedade poltica e a sociedade civil.
Desta forma, e segundo Gramsci:
14 No caso especfico do bloco multinacional e associado, a subordinao da burguesia nacional frente ao capital estrangeiro e a congruncia entre os interesses dos representantes deste capital aos valores modernizantes defendidos por parte da oficialidade militar brasileira (sobretudo quela a frente da Escola Superior de Guerra ESG). Cf.: GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. V. 3: Maquiavel notas sobre o Estado e a poltica. Edio de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 40 e ss.; DREIFUSS, R.A. Op.cit. 15 Renncia datada em 25 de agosto de 1961. 16 Respectivamente, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (criado em 1961) e Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (criado em 1959). Teremos oportunidade de aprofundar a caracterizao desses institutos no decorrer da presente dissertao. 17 DREIFUSS, R.A. Op.cit., p. 161. 18 Nunca demais lembrar que o significado atribudo por Gramsci a partido vai alm da mera caracterizao poltico-partidria, alcanando todo e qualquer aparelho privado de hegemonia que organize um grupo e atue no sentido de construir a chamada vontade coletiva. Cf.: GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. V. 3: Maquiavel.... Op.cit., p. 16-19. Sobre aparelhos privados de hegemonia, ainda no primeiro captulo veremos a caracterizao gramsciana de imprensa segundo esse conceito.
6
A imposio de um projeto hegemnico exige, dentre outros fatores, a luta pelo monoplio dos
rgos formadores de opinio pblica [...] e aquilo a que se chama de opinio pblica est
estreitamente ligado hegemonia poltica, ou seja, o ponto de contato entre a sociedade civil e
a sociedade poltica, entre o consenso e a fora.19
Voltando a Dreifuss, este localiza no momento da renncia de Jnio Quadros a
ascenso do bloco nacional-reformista ao poder, representado pelo comando de Joo Goulart
no Executivo e pela sustentao de seu governo tanto por setores que historicamente haviam
chancelado o pacto populista (tais quais: a oligarquia tradicional e parte da oficialidade
militar), quanto pelos movimentos sociais organizados e energicamente atuantes do perodo
(como as entidades sindicais paralelas, as Ligas Camponesas e a Frente de Mobilizao
Popular).20
Caracterizando-o como um governo comprometido com reformas sociais e com o
protagonismo estatal no desenvolvimento interno do Pas sustentado por setores favorveis
manuteno do pacto de classes e por setores que desafiavam e combatiam aquele pacto
Dreifuss vai alm das anlises acadmicas sobre o populismo21 para localizar, naquelas
entidades sindicais autnomas, a outra fora fundamental responsvel pela crise do sistema
populista de governo fora representada, por exemplo, pela ascendncia quantitativa e
qualitativa das greves no perodo. 22
As relaes entre estas aquelas foras fundamentais (classe trabalhadora organizada e
bloco multinacional e associado) e entre elas e o bloco nacional reformista esto no cerne da
disputa pela hegemonia poltica do qual o golpe de 1964 representou importante etapa. A
expanso dessa disputa ao campo miditico, de um modo geral; e Rede da Democracia,
especificamente; um dos aspectos que procuraremos demonstrar ao longo desta dissertao.
Em face a tais pressupostos e na tentativa de aprofund-los a presente dissertao
est estruturada em trs captulos. No primeiro, intitulado As Redes e o golpe de 1964,
19 Idem, p. 16. 20 Como teremos oportunidade de aprofundar, no por acaso a chamada Campanha da Legalidade (responsvel pela garantia de posse de Joo Goulart, aps a renncia de Jnio Quadros) contou com a decisiva participao dos setores legalistas das Foras Armadas e dos movimentos sindicais autnomos; dois setores que aprofundariam seus antagonismos durante o Governo Goulart (1961-1964). 21 Por exemplo, segundo Francisco Weffort, tanto o sindicalismo oficial quanto as organizaes sindicais paralelas ratificavam o pacto populista. Cf.: WEFFORT, F.C. Os sindicatos na poltica (Brasil: 1954-1964). In: Ensaios de Opinio, 1978, p. 18-27. 22 No terceiro captulo, teremos oportunidade de caracterizar os aspectos qualitativos das greves comandadas pelas entidades sindicais paralelas; que tentavam ultrapassar a etapa corporativista-econmica de reivindicao de classe.
7
procuramos apresentar as vrias frentes da relao imprensa-golpe de 1964: a suscitada pela
grande imprensa no perodo imediatamente posterior ao Golpe; a presente na historiografia
sobre o tema; e tambm a rememorada e reconstruda pela prpria imprensa dos dias atuais.
Tambm neste captulo, apresentamos o que chamamos de mapeamento do revisionismo
acadmico sobre aquele perodo, contrastando suas teses e pressupostos maneira como
enxergamos o papel da Rede da Democracia no processo de disputa hegemnica cujo Golpe
representou importante etapa.
No segundo captulo Elementos constitutivos e legitimidade de ao
tencionamos descrever as bases materiais e retricas pelas quais buscou-se atrelar abrangncia
e legitimidade atuao da Rede da Democracia. Esse captulo tambm comporta uma breve
descrio daquele que foi o programa oficial de estria do arranjo de suma importncia no
s para apreendermos as estratgias e objetivos daquele empreendimento segundo seus
prprios fautores, como tambm para ratificar os limites e imprecises da caracterizao da
Rede pela historiografia revisionista sobre o perodo.
J em Consenso para a coero terceiro e ltimo captulo procuramos dar corpo a
esta rica dade gramsciana atravs da descrio e anlise dos principais oradores, de seus
respectivos pronunciamentos e das formas de atuao presentes nos meses em que a Rede da
Democracia esteve no ar. Tambm est contemplada neste captulo a anlise em torno
daquele que consideramos o principal elemento discursivo implementado pelo arranjo no
contexto do pr-Golpe: a defesa da democracia como estratgia golpista.
Antes de adentrarmos dissertao propriamente dita, faz-se necessrio alguns
esclarecimentos quanto a sua pesquisa e elaborao. O primeiro diz respeito s fontes-base:
em face inexistncia de arquivos sonoros daquele programa radiofnico, a pesquisa em
torno da Rede da Democracia foi realizada atravs das transcries de seus contedos
presentes nos jornais O Globo, Jornal do Brasil e O Jornal cujos microfilmes encontram-se
sistematizados e disponveis para consulta no setor de peridicos da Biblioteca Nacional (Rio
de Janeiro).
Dada a recorrncia de uma coluna especfica para aquele arranjo intitulada Rede da
Democracia ; ao fato de que tais transcries no distinguiam, significativamente, um das
outras; e percepo de que, no decorrer nos meses de existncia do arranjo, O Jornal foi
aquele que mantivera a melhor regularidade quanto ao processo de transcrio dos programas
radiofnicos, optamos por considerar o principal jornal dos Dirios Associados como base
para a coleta dos dados aqui analisados.
8
Tambm preferimos sublimar as menes relativas ao nmero e ano de edio dos
jornais pesquisados, bem como imprimir a atualizao ortogrfica em relao s transcries
dos pronunciamentos Rede entendendo que, desta forma, proporcionaremos uma leitura
mais fluda e prazerosa das inmeras referncias impressas no presente estudo.
Explicitadas tais consideraes, esperamos que o resultado da extenuante, porm
gratificante pesquisa da qual esta dissertao fruto contribua, no s para a caracterizao de
seu objeto principal, como tambm para o debate em torno do Golpe e do ltimo regime
ditatorial do Pas.
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1 AS REDES E O GOLPE DE 1964
Decorridos alguns dias do golpe de Estado que depusera o Governo Goulart e iniciara
a mais longa ditadura militar de nossa histria, a chamada grande imprensa brasileira era
amplamente saudada pelo papel que cumprira no referido processo. Para alm de
congratulaes prestadas por empresas miditicas internacionais, este bloco aparentemente
compacto, denominado por estas empresas como Imprensa brasileira foi posto sob os
holofotes da comunidade jornalstica americana ao tornar-se forte candidata Medalha ao
Heri da Liberdade de Imprensa naquela poca, concedida anualmente pela Sociedade
Interamericana de Imprensa23
Em discurso reproduzido pelo matutino carioca O Jornal, de 23 de abril de 1964, o
redator de assuntos latino-americanos do peridico estadunidense Chicago Tribune, Jules
Dubois, justificou sua campanha em prol da Imprensa brasileira quela deferncia
descrevendo o papel estelar que esta Imprensa teve na revoluo que deps o Sr. Joo
Goulart [...] respondendo patritica e valentemente ao desafio comunista.24 Impressionado
com o exemplo mpar de unidade de opinio e de propsito, e com o papel de liderana e
dirigncia [sic] de nossa imprensa, o redator e tambm membro do Conselho Executivo da
SIP sublinhou, ainda, a existncia de uma organizao de estaes de rdio denominada Rede
da Democracia, e o papel que esta desempenhou no sentido de complementar as campanhas
e revelaes comprometedoras de seus [respectivos] jornais [...] examinando cuidadosamente
23 No original, IAPI Inter American Press Association , organizao sem fins lucrativos fundada em 1948, com sede em Miami/EUA e representaes nos principais pases do continente Americano. Segundo sua pgina digital, dedicada a defender a liberdade de expresso e de imprensa em todas as Amricas. Cf.: , acessado em 28/04/2007. 24 O Jornal, Rio de Janeiro, 23/04/64, p. 07.
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os atos do governo e dirigindo o povo que, liderados por ela, se organizaram para a defesa
vocal de sua Ptria.25
Por seu turno, grande parte das empresas jornalsticas brasileiras tomou para si o
excelso reconhecimento que suas homnimas internacionais atribuam ao bloco Imprensa
brasileira. Neste sentido, jornais e revistas de grande circulao do Pas veicularam, ao lado
de notcias sobre as Marchas da Vitria,26 sobre o fechamento de sucursais do jornal ltima
Hora27, sobre o incndio do prdio da UNE e demais aes revolucionrias do novo regime,
a memria de seus prprios atos no processo que culminaria na deposio do governo
Goulart. No demoraria muito para que estas memrias alcanassem o mercado editorial
brasileiro, como prova a existncia das obras Duas invases Invaso Vermelha e Duas
Invases Invaso Branca, de autoria do jornalista e ento Deputado Federal, Joo Calmon.
Cronologicamente concentrada no perodo que antecede o Golpe, ...Invaso
Vermelha28 reconstitui as aes daquele deputado pessebista durante o processo de
desestabilizao do Governo Goulart; perodo em que harmonizava suas atividades
parlamentares com a de diretor geral dos Dirios e Emissoras Associadas dirigindo, dentre
outros veculos, uma das mais importantes publicaes do grupo de Assis Chateaubriand
poca, justamente O Jornal. Em consonncia com a auto-afirmao da imprensa e dos
chamados homens da imprensa em relao vitria da Revoluo de 1964, Joo Calmon
aproveitaria tal obra memoralstica para transcrever algo que certamente lhe era motivo de
orgulho. Trata-se de excerto do depoimento prestado pelo General Assis Brasil junto ao
Inqurito Policial Militar que este respondera meses depois do Golpe. Segundo Calmon, o
ltimo chefe da Casa Militar do governo Goulart teria honestamente confessado que a
colocao de um poderoso dispositivo de propaganda emissoras de rdio e televiso,
mobilizados pela Rede da Democracia , a servio dos adversrios do Sr. Joo Goulart
25 Idem, Ibidem. 26 Anteriormente denominadas Marcha da Famlia com Deus pela Liberdade, e com o objetivo primordial de concentrar os estratos conservadores nacionais em prol da destituio do Governo Goulart como a precursora paulista de 19/03/1064 , tais passeatas eclodiram pelas principais cidades brasileiras aps o golpe de 31/03/1964, passando a ser denominadas de Marchas da Vitria. 27 Para maiores detalhes, Cf.: WAINER, S. Minha razo de viver. Memrias de um reprter. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1987; sobretudo, pginas 261 e ss. 28 CALMON, J. Duas invases Invaso vermelha. Rio de Janeiro: Edies Cruzeiro, 1966. J a outra edio, ... Invaso branca, fazia referncia a uma invaso sustentada por milhes de dlares, com o objetivo de dominar os rgos de divulgao deste pas, em aluso ao contrato ento recm firmado entre a empresa estadunidense Time-Life e a brasileira Globo.
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contribuiu, de maneira decisiva, para o pronto desmoronamento de seu plano de poder.29
Mais a frente, cioso de seu papel frente da criao desta Rede, Calmon pontuaria:
Como se v, muitas e boas razes tinha eu ao insistir, naquele fim de 1963, para que os
democratas organizassem, tambm, a sua rede de rdios e tevs. Felizmente, a 25 de outubro
desse mesmo ano, o meu desejo se transformava em realidade, a palavra se convertia em ao.
A Rede da Democracia, contando com as mais prestigiosas estaes deste pas, fazia a sua
primeira transmisso. 30
A despeito da tentativa exacerbada de atrelar o seu nome criao da Rede, Joo
Calmon acertara em dar proeminncia quela rede miditica que se formara nos ltimos
meses de 1963, com o retrico intuito de levar a todo Pas mensagem de esperana e de
esclarecimento da opinio pblica.31 Ratificada pelo depoimento de um eminente
personagem daquele processo, como o General Assis Brasil, acreditamos que tal
proeminncia em relao aos demais veculos da imprensa brasileira fundamenta-se tanto
pelas caractersticas estruturais, quanto pelas caractersticas programticas da Rede da
Democracia.
Inspirada, segundo os seus fautores, nos mais puros sentimentos de patriotismo,32 a
Rede da Democracia pode ser caracterizada como um indito arranjo miditico encabeado e
posto em prtica por trs das maiores empresas jornalsticas daquele perodo Dirios
Associados, Globo e Jornal do Brasil , responsvel por uma campanha incisiva e conjunta
em favor da destituio do Governo Goulart. Alm de uma significativa abrangncia
proporcionada pela transmisso em rede de seus programas, pela retransmisso destes em
estaes radiofnicas do interior do Pas e pela transcrio integral de seus contedos nos
jornais que a compunham , a Rede da Democracia tambm se distinguia das demais
campanhas oposicionistas no campo da imprensa pela preocupao de seus idealizadores em
no torn-la somente um locus a mais da campanha anti-Goulart, mas sim como um espao
onde representantes de um novo programa poltico para o Pas pudessem ser ouvidos e, desta
forma, tivessem suas propostas difundidas.
Alm da natureza e contedo dos pronunciamentos veiculados no programa, podemos
aferir tal estratgia pela composio e dinmica caractersticas da Rede nos meses em que
29 Idem, p. 93. Grifos nossos. 30 Idem, Ibidem. 31 O Jornal, Rio de Janeiro, 25/10/1963, p. 03. 32Palavras de Roberto Marinho, na alocuo de estria da Rede. In: O Jornal, Rio de Janeiro, 25/10/1963, p. 03.
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esteve no ar. Seus idealizadores se preocuparam em afast-la de posies que caracterizaram
as atuaes das prprias empresas Globo, Dirios Associados e Jornal do Brasil nas dcadas
anteriores abertamente partidrias, apoiadoras deste ou daquele candidato, opositora deste
ou daquele governo.33 Divergia, por exemplo, do papel historicamente desempenhado pelo
jornal O Globo ou pela emissora de rdio daquela empresa cujos microfones estavam
sempre abertos s campanhas poltico-partidrias da UDN; ou mesmo daquele que sempre
marcou a atuao dos Dirios Associados que, a despeito de sua poltica situacionista e
pragmtica frente a diferentes governos federais, sempre sustentou suas oposies atravs do
personalismo de seu proprietrio, Chateaubriand, ou de um ex-funcionrio da casa, Carlos
Lacerda. A ausncia destas duas, ento, importantes figuras polticas frente da Rede da
Democracia Joo Calmon substituiu Chateaubriand como representante dos Dirios
Associados, e Lacerda ocupou os microfones da Rede pouqussimas vezes , assim como a
ausncia de empresas jornalsticas de carter oposicionista mais extremados em sua
composio, como o dirio carioca Tribuna da Imprensa, evidenciam a estratgia contrastiva,
de no-polmica, com a qual a Rede da Democracia fora constituda.
No por acaso, em um dos primeiros pronunciamentos daquele programa, o
proprietrio e diretor-chefe das Organizaes Globo clamava: Os homens de todos os
partidos, sem exceo de um s, sero bem vindos [ao] movimento, desde que integrados nos
princpios que nos orientam, da defesa da democracia em nossa terra.34 Na seqncia deste
pronunciamento, Roberto Marinho sublinharia o carter apartidrio e no-polmico com o
qual a Rede pretendia atuar:
A Rede da Democracia, que vai ao ar hoje, pela primeira vez, no ter colorido poltico-
partidrio. Inspira-se nos mais puros sentimentos de patriotismo e na preocupao com os
destinos nacionais em to grave momento da vida brasileira. (...) H certos homens hoje, no
Brasil, dentro e fora do governo, que no desejam outra coisa que ver [sic] os seus nomes
propagados por esta enorme Rede da Democracia. A meu ver, esses nomes deviam ser
completamente omitidos, porque entendo que este movimento no deve ter carter
polmicos.35
33 Os exemplos so inmeros e o tema rico em bibliografia. Afora os exemplos que listamos a seguir, podemos citar: LATTANZI, J.R. Imprensa, partidos e democracia: A experincia brasileira (1945-46). Niteri: PPGH/UFF. Dissertao de Mestrado, 2005; CARVALHO, A.H.C. A opinio pblica e a CPI da ltima Hora o Governo Vargas (1951-54). So Paulo: FFLCH/USP. Tese de Doutorado, 2000; dentre outros. 34 O Globo, Rio de Janeiro, 26/10/1963, p. 06. 35 Idem, ibidem.
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Em notrio contraste ao carter personalista com o qual Joo Calmon quisera
caracterizar a Rede da Democracia o que renderia vultuosos dividendos polticos ao
deputado pessedista, antes mesmo do golpe de 196436 , o pronunciamento de Roberto
Marinho explicita a estratgia de apresentar a Rede como um locus capaz de aglutinar foras
dspares do cenrio poltico daquela poca, para alm das velhas foras oposicionistas. Desta
forma, os programas radiofnicos levados ao ar a partir de outubro de 1963 contaram,
preponderantemente, com a colaborao de um grande nmero de representantes de
instituies civis, parlamentares e militares que, por suas filiaes no-jornalsticas, rompiam
com o carter meramente redacional de oposio do qual, porventura, a Rede da Democracia
pudesse ser associada.
A despeito dos pronunciamentos dos representantes dos Dirios Associados, Jornal
do Brasil e Organizaes Globo nos primeiros programas (ou de um ou outro
pronunciamento destes ao longo dos meses em que a Rede esteve no ar), os microfones deste
arranjo estavam voltados, sobretudo, a parlamentares, empresrios, dirigentes sindicais,
oficiais militares, dirigentes sindicais, porta-vozes de entidades patronais, estudantis,
eclesisticas, e a toda gama de setores cujos valores e projetos defendidos no eram outros
seno aqueles implementados pelos Governos Militares a partir de 1964.
Concomitantemente, os jornais e emissoras radiofnicas que compunham a Rede
exploravam as caractersticas programticas com as quais esta era retoricamente apresentada
sobretudo os carter apartidrio e propositivo a ela atribudos , ratificando-se como espaos
privilegiados de defesa e esclarecimento da opinio pblica. Portanto, a despeito de seus
editoriais e matrias de natureza exaltada, e mesmo virulenta, contra o Governo Goulart,
jornais como O Jornal, Jornal do Brasil e O Globo solidificavam uma imagem de oposio
construtiva cujo reconhecimento e importncia podem ser medidos pela participao, cada
vez maior, de representantes dos mais diversos setores da sociedade brasileira junto aos
microfones da Rede.
36 Joo Calmon iniciara, j em meados de 1963, uma incisiva corrida em favor de sua candidatura vice-presidncia da Repblica, visando as eleies majoritrias previstas para 1965. Campanha que logrou xito em fevereiro de 1964, quando uma conveno do PSP (Partido Social Progressista) ratificou a coligao com o PSD (Partido Social Democrtico) de Calmon e lanou o seu nome e o de Ademar de Barros como candidatos vice-presidncia e a presidncia, respectivamente, para as eleies que se avizinhava. Tendo O Jornal e os demais veculos dos Dirios Associados como verdadeiras vitrines s suas iniciativas de oposio ao Governo Goulart, Calmon ter seu nome atrelado defesa do regime democrtico e prpria criao da Rede da Democracia. Cf., dentre outras fontes, O Jornal, Rio de Janeiro, 24/02/1964, p. 04.
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Dadas estas caractersticas, a atuao mpar que manteve durante os ltimos meses do
Governo Goulart, o reconhecimento interno e internacional desta atuao quando da
efetivao do Golpe e os dividendos polticos que grande parte de seus colaboradores
gozaram durante o regime ditatorial, no seria absurdo supormos que a Rede da Democracia
estivesse devidamente registrada nos anais histricos referente quele processo; ou ao menos
que fosse recobrada pelas reconstituies histricas que a imprensa brasileira,
invariavelmente, faz do perodo. Entretanto, afora menes de sua existncia em passagens
factuais de algumas obras sobre o tema,37 pouco ou quase nada fora escrito sobre a Rede da
Democracia o que confere papel aqum daquele que acreditamos ter sido exercido por este
importante instrumento, no sentido de elaborar e difundir consensos em torno das propostas
dos fautores do golpe de 1964.
Acreditamos que, com a minuciosa descrio deste arranjo editorial, de seus elementos
constitutivos e de sua abrangncia naquele perodo; com a anlise atenciosa de seu programa
poltico e do modus operandi exercido para p-lo em prtica; e com a reconstituio das redes
que o atrelava s demais instituies de notria participao no Golpe de 1964, poderemos
preencher algumas lacunas que ainda caracterizam a produo acadmica acerca daquele
processo; sobretudo em relao ao papel desempenhado pela Rede da Democracia nele.
1.1 A imprensa e o Golpe 1964 e quarenta anos depois
Trazer tona a histria da Rede poderia ser feito de vrias formas, e isto pode ser
constatado pelos trabalhos acadmicos que elegeram a relao imprensa-Golpe como foco de
anlise.38 Para alm de uma descrio metodolgica, entretanto, descrever os caminhos
percorridos pelo presente estudo se ancora no entendimento de que tais procedimentos no
esto isolados dos pressupostos tericos compartilhados pelo seu executor. Igual raciocnio
fora aplicado quando da anlise de publicaes no-acadmicas sobre o tema sobretudo as
da chamada grande imprensa tambm responsveis pela construo da memria acerca do
golpe de 1964 e, por isso, importantes objetos neste estudo.
37 Por exemplo, em SILVA, H. Golpe ou contra-golpe. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1975, p. 258. 38 Neste primeiro momento, e guisa de ilustrao, podemos citar: DIAS, L.A. A Folha de S.Paulo e o golpe de 1964. So Paulo: UNESP/Assis. Dissertao de Mestrado, 1993; FRANCO, G.C. O papel da grande imprensa na preparao dos golpes militares Estudo comparativo entre Brasil, 1964 e a Argentina, 1976. So Paulo: FFLCH/USP. Dissertao de Mestrado, 1997; ABREU, A.A. A participao da imprensa na queda o Governo Goulart. In: 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistncia no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 15-25; SILVA, C.L. Imprensa e ditadura militar: padres de qualidade e construo de memria. In: Revista Histria & Luta de Classes. Ano 1, n 1. Rio de Janeiro: ADIA, 2005, p. 43-54.
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Sob este pressuposto, torna-se compreensvel a inexistncia de uma caracterizao da
Rede da Democracia pelos rgos miditicos que a compuseram, mesmo em momentos em
que tais rgos lanaram mo de seus arquivos para reconstiturem a memria sobre 1964. Foi
assim, por exemplo, em 2004, ano de intensa cobertura miditica sobre o golpe de 1964 e de
destaque, por parte dos principais peridicos do Pas, a determinados pressupostos tericos
acerca daquele perodo. Igualmente importante para o debate historiogrfico sobre o Golpe e
sobre o regime ditatorial que o seguiu, 2004 tambm merece nossa ateno pela profuso de
encontros, seminrios, debates e publicaes cujos objetivos estavam voltados para os
chamados balanos histricos acerca do tema.
Data deste ano, por exemplo, um primeiro esforo em destacar e sistematizar a atuao
da Rede da Democracia junto ao processo que levaria ao golpe de 1964 produto do artigo
A imprensa Golpista o papel dos jornais cariocas da Rede da Democracia na queda de
Jango, assinado pelo historiador Aloysio Castelo de Carvalho e publicado no semanrio
Carta Capital.39 Tambm em 2004, uma outra caracterizao da Rede (mencionada no artigo
A estratgia do confronto: a Frente de Mobilizao Popular40, do historiador Jorge
Ferreira) pautar nossa discusso no que tange s dspares interpretaes que a historiografia
sobre o Golpe e sobre a ditadura militar tm apresentado sobre aquele processo.
Fruto desta profuso de trabalhos sobre o Golpe embora de natureza reflexiva sobre
tal profuso destacamos o trabalho acadmico do historiador Demian Bezerra de Melo
intitulado A misria da historiografia: o revisionismo historiogrfico 40 anos depois do
golpe de 1964,41 justamente pela feliz abordagem que apresenta do comportamento das
grandes empresas jornalsticas frente construo da memria sobre o Golpe de 1964, e por
uma fecunda descrio de um determinado revisionismo historiogrfico sobre aquele
processo. Ainda neste captulo, teremos oportunidade de comprovar que esses elementos
possuem naturezas complementares entre si, e no podem ser desassociados de uma anlise
crtica acerca da Rede da Democracia o que mais uma vez confere importncia e destaque
para o trabalho de Melo.
Com o objetivo principal de entender o sentido do revisionismo historiogrfico sobre
o golpe civil-militar de 1964,42 Melo percorrer as publicaes acadmicas sobre o tema a
fim de mapear os caminhos percorridos por esta tendncia cuja maior caracterizao pode ser
39 CARVALO, A.H.C. A imprensa golpista.... Op.cit. 40 FERREIRA, J. A estratgia do confronto.... Op.cit. 41 MELO, D.B. A misria da historiografia.... Op.cit. 42 Idem, p. 07.
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dada pela relativizao que atribui ao papel dos responsveis histricos pelo Golpe e pelo
regime ditatorial que o seguiu. Para tanto, Melo concentrar-se- nas produes acadmicas e
no-acadmicas de dois momentos as datadas at os 30 anos do Golpe, e as publicadas na
dcada seguinte, j em 2004 ; alm de dar destaque aos encontros, palestras e seminrios que
ocorreram, principalmente, nesta ltima data.
Neste sentido, o sub-captulo O Seminrio dos 40 Anos e a Imprensa43 de extrema
monta por descrever a ateno que os jornais de grande circulao do Pas, como O Globo,
Jornal do Brasil, Folha de So Paulo e O Estado de So Paulo deram aos seminrios,
encontros e demais eventos que se organizaram em funo da efemride dos 40 anos do
Golpe. Sublinhando a importncia atribuda pela chamada grande imprensa ao tema, Melo
nos aponta, inclusive, a existncia de conferncias organizadas pelos prprios peridicos,
como Olhares sobre 1964: o golpe que calou o Brasil promovida pelo Jornal do Brasil
em maro daquele ano,
Realizada de diferentes formas por meio de matrias extensas ou mesmo cadernos
especiais sobre esses eventos;44 de entrevistas com especialistas sobre o tema; de anlises em
espaos nobres dos jornais, como os editoriais e as colunas assinadas ; a cobertura
implementada por estes dirios em 2004 ilustra uma considervel mudana de comportamento
no seio da prpria imprensa, no que tange sua relao com a memria sobre o ltimo regime
ditatorial do Pas. A despeito da existncia de publicaes que atestam a cumplicidade de
diversas empresas jornalsticas durante e para com o regime ditatorial,45 h muito a imprensa
brasileira vinha construindo sua imagem vinculada to somente censura sofrida durante
aquele regime, com pouco ou nenhum espao atribudo ao seu papel no perodo
imediatamente anterior ao Golpe. At ento concentrando suas anlises e memrias nos
aspectos autoritrios da ditadura cujo chamado golpe dentro do golpe o grande
paradigma jornais como os citados anteriormente puderam, com a cobertura dos eventos de
43 O evento que d ttulo ao sub-captulo o Seminrio 1964-2004: 40 anos do Golpe. Ditadura militar e resistncia no Brasil, promovido pelo Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ; pelo Programa de Ps-graduao em Histria da UFF; pelo Centro de Pesquisa e Documentao em Histria Contempornea do Brasil da FGV; e pelo Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro. Realizado entre os dias 22 e 26 de maro de 2004, na cidade do Rio de Janeiro, este Seminrio ganhar destaque nas anlises de Melo justamente pela predominncia da viso revisionista sobre o Golpe da maioria de seus participantes. Cf.: Idem, p. 70. 44 So exemplos de Cadernos Especiais: 40 anos esta noite. In: O Estado de So Paulo, So Paulo, 31/03/2004; Olhares sobre 1964: o golpe que calou o Brasil. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11/04/2004; 45 Dentre as mais significativas, podemos citar: GOLDESTEIN, G.T. Folhas ao vento: Contribuio ao estudo da indstria cultural. So Paulo: FFLCH/USP. Tese de Doutorado, 1986; AQUINO, M.A. Censura, imprensa, Estado autoritrio (1968-1978): o exerccio cotidiano da dominao e da resistncia - O Estado de S. Paulo e Movimento. 1 ed. Bauru: EDUSC, 1999; SMITH, A.M. Um acordo forado.... Op.cit.; KUSHNIR, B. Ces de guarda: Jornalistas e censores do AI-5 constituio de 1988. So Paulo: Boitempo editorial, 2004; BRITTOS, V.C. e BOLAO, C.R.S. Rede Globo, 40 anos de poder e hegemonia. So Paulo: Paulus, 2005.
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2004, enfrentar com menor receio o perodo em que clamaram pela interveno militar e
chamaram de Revoluo aquilo que desde sempre fora um golpe de Estado.46 Isto porque no
s refletiram, mas ampliaram e destacaram algumas das teses parcialmente defendidas nestes
eventos, cujo carter revisionista corrobora com o seu prprio papel durante a derrocada do
Governo Goulart.
O trabalho de Demian de Melo preciso ao descrever a forma deliberada com que a
Folha de So Paulo, por exemplo, apresentara as chamadas novas abordagens sobre o tema,
sobretudo as teses de golpismo generalizado; o tambm generalizado desprezo pela
democracia; e responsabilidade universal sobre o Golpe e a ditadura militar. Alm de
cobrir um dos principais eventos daquele ano o Seminrio 1964-2004: 40 anos do Golpe,47
em que tais teses ganharam maior visibilidade , o dirio paulista j havia aberto caminho a
apresentao dessas novas abordagens atravs da publicao de uma srie de matrias e
entrevistas com as chamadas autoridades sobre o tema. Dentre elas, Melo destaca a
entrevista concedida pelo historiador Marcos Antonio Villa apresentado pelo jornal como
autor de perfil indito de Jango48 , em que este defende a idia do golpismo generalizado
como caracterstica do cenrio poltico brasileiro no pr-Golpe. Segundo o historiador: O que
une ambos os lados que todos querem chegar ao poder por golpe, seja os militares, seja
Brizola e mesmo Jango, no caso para continuar no poder. Tanto assim que o golpe veio.49
Desdobramento desta tese, a idia de desprezo que os atores envolvidos naquele processo
nutriam pela democracia, tambm abordada por Villa: ... Se Jango tivesse buscado a
hegemonia no Congresso (...) era possvel chegar a um acordo que viabilizasse por exemplo a
reforma agrria. (...) Mas em 1964 a democracia tinha muitos inimigos.50
Tambm em relao cobertura do Seminrio... 40 anos do Golpe, a Folha de So
Paulo dera amplo destaque tese do golpismo generalizado sugerido por diversos
46 As publicaes acima citadas provam que no h anacronismo quando tratamos com pouqussimas diferenas as aes das grandes empresas jornalsticas no perodo imediatamente anterior ao Golpe de 1964 e s implementadas durante a ditadura que o seguiu. Se, por um lado, a histria das Organizaes Globo e do Grupo Folhas provam que estes veculos lucraram muito mais do que perderam durante o regime ditatorial; por outro, o exemplo do matutino carioca Correio da Manh sintomtico ao provar que um jornal consolidado e de circulao no centro poltico do Pas, como o prprio, poderia se opor ditadura militar j nos primeiros dias aps o Golpe de 1964, inclusive questionando o carter revolucionrio deste. Como conseqncia a essa precursora atitude, o Correio da Manh seria perseguido e finalmente fechado no incio da dcada de 1970. Cf.: CONY, C.H. O ato e o fato Crnicas polticas. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Brasileira, 1964. 47 Vide nota 22. 48 Trata-se da obra Jango, um perfil..., que seria lanada pelo historiador da UFSCar em abril daquele ano. Cf.: VILLA, M.A. Jango, um perfil (1945-1960). So Paulo: Editora Globo, 2004. 49 Folha de So Paulo, So Paulo, 13/03/2004, Folha Brasil. Apud: MELO, D.B. Idem, Ibidem. 50 Folha de So Paulo, So Paulo, 13/03/2004, , acessado em 23/09/2007.
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participantes daquele evento, embora admitindo a existncia do debate e a polmica em torno
desta tese. O mesmo exemplo no fora seguido pelo jornal O Globo outro veculo muito
interessado na divulgao e promoo das novas abordagens sobre o Golpe e a ditadura
militar brasileira. A despeito das idias divergentes em torno do tema luta armada que
ocupou uma mesa neste mesmo Seminrio e contou com a participaes dos historiadores
Jacob Gorender, Daniel Aaro Reis Filho, Marcelo Ridenti e Joo Quartim de Moraes Neto
a tese apresentada com destaque e que posteriormente subsidiou uma matria prpria dO
Globo fora justamente a que procurava desqualificar a atuao das esquerdas durante a
ditadura milita e ratificar o chamado desprezo que esta nutria pela democracia.51
A outra maneira que a imprensa nacional buscou legitimar, ou ao menos justificar, o
papel que desempenhara no Golpe de 1964 foi corroborando com a tambm revisionista tese
da responsabilidade compartilhada em relao ao Golpe e aos governos ditatoriais que o
seguiram. Trata-se de uma outra forma de negar a complexidade inerente quele processo e
atribuir toda sociedade brasileira, o seu quinho de culpa na promoo e legitimidade da
ditadura militar. Foi esta a tese preponderante do j citado evento promovido pelo Jornal do
Brasil em maro de 2004 ratificada pela centralidade com que seria abordada pelo prprio
dirio em uma publicao sobre o evento, tambm intitulada Olhares sobre 1964: o golpe
que calou o Brasil. Baseado nesta nova viso, alm dos militares, tambm o Congresso
Nacional e a sociedade foram responsveis pela deposio de Goulart. O Congresso, por
declarar vaga a presidncia da Repblica, enquanto Joo Goulart ainda se encontrava em
territrio nacional; a sociedade, pelo apoio ao Golpe e aos governos ditatoriais que o
seguiram. O oportunismo que este tipo de tese representa a uma empresa jornalstica que
esteve frente de uma rede miditica em prol da interveno militar notrio, sendo assim
definido por Melo: Se a sociedade apoiou o golpe, o jornal nada mais fez do que representar
esta vontade geral.52
Visualizamos, assim, uma importante interseco para o presente trabalho provando
que percurso acima no fora em vo: se verdade que hoje exista uma espcie de
retroprojeo das teses acadmicas revisionistas sobre o golpe de 1964 pelos grandes
conglomerados miditicos do Pas sobretudo atravs do argumento de autoridade, o
51 Trata-se da tese de Daniel Aaro Reis Filho, segundo a qual as esquerdas teriam feito parte de uma ofensiva revolucionria, e no uma resistncia ou resistncia democrtica como defenderam os demais participantes daquela mesa. Tese que subsidiaria a matria Resistncia democrtica, dogma que desaba, publicada pelo O Globo em 29/03/2004. Cf.: MELO, D.B. Idem, p. 77-79. Ver, tambm, REIS FILHO, D.A. Ditadura militar esquerdas e sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 2002. 52 MELO, D.B. Idem, p. 80.
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chamado ad verecundiam, direta ou indiretamente invocado por estes veculos quando da
apresentao e defesa de tais teses , este apenas um dos aspectos da relao revisionismo-
imprensa. De forma complementar, passam pela imprensa grande parte dos argumentos e de
algumas provas pelas quais se baseiam as teses revisionistas; mais precisamente, pelo que fora
produzido e publicado pelos jornais, revistas, programas radiofnicos e televisivos no perodo
imediatamente anterior ao Golpe.
Geralmente considerada por esta tendncia como mera refletidora daquele perodo e
no como locus primordial na disputa pelo consenso entre projetos distintos de hegemonia a
imprensa desempenha papel de destaque no revisionismo historiogrfico sobre o Golpe e
sobre a ditadura iniciada em 1964. De forma paradoxal, tambm representa os limites deste
revisionismo, na medida em que, ao menos implicitamente, ratifica a expanso de uma
disputa hegemnica para alm dos limites dados pelo campo poltico-partidrio stricto senso.
Outrossim, entendemos que no h como desconsiderar o debate historiogrfico em
torno do golpe de 1964, principalmente o aspecto revisionista deste debate, quando se tem
como objeto principal de estudo uma cadeia miditica capaz de ser instrumentalizada de
maneiras muito prximas e em diferentes ocasies no obstante as quatro dcadas que
separam esses dois momentos como a Rede da Democracia. Ao longo do presente estudo,
teremos oportunidade de nos debruar sobre o papel que a Rede desempenhou no processo de
conquista e dominao do Estado brasileiro a partir de 1964 do qual o Golpe fora
importante etapa. Neste momento, porm, trataremos como o revisionismo historiogrfico
sobre o tema relaciona-se com aquela cadeia miditica; faz remoar os seus argumentos do
pr-Golpe e, de um modo mais amplo, relativiza sua inequvoca atuao golpista.
1.2 Mapeando o revisionismo acadmico e a relao imprensa-golpe de 1964
Embora no sejam homogneas, as novas abordagens que vimos ser propagadas
com destaque pela imprensa em 2004 compartilham de alguns elementos que as tornam
passveis da caracterizao revisionista empregado pelo presente trabalho,53 cujo principal
53 Que, por sua vez, compartilha da j citada caracterizao de Melo e de Caio Navarro de Toledo sobre o tema. Autor de 1964: Golpismo e democracia. As falcias do revisionismo..., Toledo vem desempenhando um importante papel de deflagrao e crtica deste tipo de revisionismo. Cf.: TOLEDO, C.N. 1964: Golpismo e democracia.... Op.cit. Grosso modo, estamos entendendo como revisionistas determinadas abordagens sobre o Golpe que, ao privilegiar uma anlise baseada nos atos dos principais indivduos envolvidos naquele processo e/ou no exacerbado, limitado e anacrnico peso conferido idia de democracia, acabam por ratificar o
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deles a negao da complexidade inerente ao processo que levaria ao Golpe e aos governos
ditatoriais em 1964 golpes recorrentes nas dcadas de 1960 e 1970 e em sociedades de
capitalismo perifrico, altamente influenciadas pela bipolaridade mundial do perodo e com
instituies scio-polticas igualmente complexas, como a brasileira. Tal negao d-se
mediante a restrio dos focos e mtodos de anlise esferas isoladas da sociedade, ou pela
concepo sistmica atribuda a esta; em suma, pela negao da possibilidade de se entender o
processo pelo seu vis integral.
Podendo ser apontado como um dos marcos importantes desta tendncia revisionista, a
tese de paralisia decisria desenvolvida pelo cientista poltico Wanderley Guilherme dos
Santos a que melhor ilustra tal caracterstica, j que ela fruto de uma super-valorizao dos
aspectos poltico-partidrios no que tange caracterizao do golpe de 1964. Tese central de
The calculus of conflit: impasse in Brazilian politics and crisis of 1964,54 a noo de
paralisia decisria como resultado provvel do confronto poltico entre atores radicalizados
e como resultante da crise brasileira de 196455 fora constituda justamente em oposio quilo
que o autor denomina de explicaes macro-histricas56 sobre o Golpe. Em outras palavras,
e ainda segundo o autor, por no lograrem fornecer uma compreenso mais especfica da crise
em si, estas explicaes macro-histricas57 s estariam completas se combinadas com
variveis polticas especficas, tais como: i) panorama da fragmentao dos recursos de poder,
acompanhadas do referente radicalizao ideolgica; ii) fragilidades e inconstncias das
coalizes parlamentares; iii) instabilidade governamental, definida como rotatividade dos
titulares de pastas ministeriais e de agncias estatais.58
Embora admitindo a existncia e o impacto de conflitos scio-econmicos nas
estruturas polticas ento existentes, Santos trabalha com a premissa de que a estrutura do
conflito poltico, em si, [ o] que importa para o resultado de qualquer outro conflito na
sociedade como um todo.59 No por acaso, ser justamente a esta premissa que os autores
argumento de que tal evento fora um contra-golpe, um golpe preventivo contra o provvel golpe anarco-sindicalista no por acaso, o argumento dos verdadeiros golpistas de 1964. 54 Tese de doutoramento defendida pelo cientista poltico em 1979, pela Universidade de Stanford (EUA). 55 SANTOS, W.G. Sessenta e quatro: Anatomia da crise. So Paulo: Ed. Vrtice, 1986, p. 10. 56 Idem, p. 16. 57 Sobretudo aquelas que apontam o Golpe como resultado de uma mudana no padro de relacionamento entre militares e poltica (como The military in politics Changing patterns in Brazil, de A. Stepan e assim citado por Santos); ou aquelas que vem o episdio como uma crucial etapa na mudana que j vinha se operando em um Pas de capitalismo perifrico e dependente. Cf.: Idem, p. 16 e ss. Quanto obra de Stepan, foi traduzida no Brasil como: STEPAN, A. Os militares na poltica As mudanas de padres na vida brasileira. Trad.: talo Tronca. Rio de Janeiro: editora artenova s.a., 1975. 58 Idem, p. 10. 59 Idem, p. 23.
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das demais teses revisionistas recorrero ao justificar a super-valorizao do chamado
perodo de crise (1961-1964) e do campo de conflito (esfera poltico-partidria) presentes
em suas anlises sobre o Golpe.
Apresentada por Santos de maneira normativa, a poltica deixa de ser caracterizada
pela disputa de projetos antitticos (inerentes a uma sociedade cindida em classes), e passa a
ser a capacidade de se implementar acordos.60 o que lhe permite, por exemplo, caracterizar
o Governo de Juscelino Kubitschek como um dos perodos presidenciais mais estveis [do]
ps-1946, a despeito das inmeras disputas extra-parlamentares que marcaram um governo
de notrio fortalecimento de foras sociais divergentes da forma populista de domnio, como
o JK.61 Subsidiada por esta viso normativa, o papel da radicalizao poltica-ideolgica
torna-se uma varivel importante da tese de paralisia decisria, sobretudo em um sistema
poltica cuja capacidade operacional medida por sua habilidade em escolher e/ou
implementar decises entre diversas alternativas polticas.62
Se estas restries impedem que analisemos o golpe de 1964 sob a complexidade que
lhe inerente, o que dizer da perspectiva segundo a qual a escolha dos atores polticos
relevantes daquele perodo impossibilitou uma possvel combinao entre reformas sociais e
manuteno do regime democrtico? o que defende Argelina Figueiredo em Democracia
ou Reformas? Alternativas democrticas crise poltica: 1961-1964,63 outra obra
fundamental para se perceber os caminhos tericos-metodolgicos pelos quais passaram o
revisionismo sobre aquele tema.
Assim como Santos, Argelina Figueiredo concebe uma viso unilateral de poltica,
elegendo o Parlamento como o nico local possvel e legtimo para o fazer poltico.
Partindo dessa premissa, a autora de debruar sobre as possibilidades que os atores
relevantes atuantes no Congresso Nacional do Governo Goulart obtiveram para combinar as
prementes reformas daquele perodo com a manuteno da democracia. Aps descrever tais
possibilidades, concluir que: ou o Poder Executivo agira de forma desinteressada ou inbil
frente a esse compromisso que Figueiredo ilustra com a deciso governamental de investir
60 Cf.: MELO, Idem, p. 16. 61 O prprio autor arrola estas disputas durante o Governo JK como o aumento do nmero de greves, os conflitos sociais advindos do surto inflacionrio e da pauperizao da populao rural e urbana etc. , mas no as considera como caractersticas capazes de macular a imagem de estabilidade daquele governo. Idem, p. 37-39. Quanto s foras sociais divergentes entre si, e divergentes da forma populista de domnio, teremos oportunidade de aprofundar nossa anlise adiante. Por ora, Cf.: DREIFUSS, R.A. Op.cit., p. 37. 62 Idem, p. 30. 63 FIGUEIREDO, A.M.C. Democracia ou reformas? Alternativas democrticas crise poltica: 1961-1964. So Paulo: Paz e Terra, 1992.
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na volta do regime presidencialista, ou com o fracasso do Plano Trienal , ou que o chamado
consenso negativo em relao democracia prevalecera entre as negociaes ofensivas
dos setores progressistas do Congresso e o recuo assustado dos setores conservadores
daquelas Casas.
Como a caracterizao dos aspectos scio-econmicos e dos conflitos polticos no seio
do regime populista daquele perodo no pertence ao seu campo de anlise, Figueiredo
cobrar dos grupos pr-reformas ento atuantes no Congresso Nacional uma maior
responsabilidade pelo fracasso da possvel conciliao, segundo seu entendimento, entre um
programa razovel de reformas sociais e a manuteno do regime democrtico. Segundo
Figueiredo,64 a estratgia maximalista destes grupos, somada prtica de um radicalismo
poltico subsidiado pelo senso irrealista de poder,65 exclua as possibilidades de acordo com
as alas conservadoras do Congresso Nacional. Teria sido assim, por exemplo, com a proposta
de reforma agrria apresentada pelo PTB no Congresso, por esta ser condicionada a uma
emenda constitucional que permitiria a Unio desapropriar as terras devolutas mediante a
indenizao com ttulos da dvida pblica, e no em espcie, como rezava a Carta de 1946.
Ainda segundo a autora, por representar um projeto inaceitvel para os grupos
conservadores do Congresso, e pela atitude de intransigncia daquele partido em no aceitar
qualquer soluo subtima para o imbrglio, aquela disputa fora ilustrativa do que
Figueiredo denominou de prtica de um tipo de radicalismo [por parte dos grupos pr-
reformas] que consiste em explorar maximamente as possibilidades do momento s expensas
da criao tima de novas possibilidades.66
Por no tratar o Parlamento como um dos inmeros espaos em que as disputas entre
interesses divergentes so exercidas (entendendo que tais disputas transcendem e so
transcendidas por aquele locus), Figueiredo enxergar neste e em outros exemplos a
confirmao do que chama de fraco compromisso com a manuteno das regras
democrticas67 por parte dos atores envolvidos naquele perodo; seja por no
reconhecerem ou respeitarem os limites das instituies democrticas sobretudo a Carta
64 Viso que Figueiredo mantm ao longo de todas suas publicaes sobre o tema. Dentre as mais significativas: Idem, ibidem; FIGUEIREDO, A.M.C. Democracia & reformas: a conciliao frustrada. In: TOLEDO, C.N. (org) 1964: Vises crticas do golpe: Democracia e reformas no populismo. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997, p. 47-53; FIGUEIREDO, A.M.C. Estrutura e escolhas: era o golpe de 1964 inevitvel? In: 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistncia no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 26-35. 65FIGUEIREDO, A.M.C., Democracia & reformas.... Op.cit., p. 52. 66 Idem, p. 52. 67 Idem, p. 53.
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Constitucional ; seja pela incapacidade de perpetrarem acordos, mediante a uma agenda
poltica moderada e a aceitvel.
O resultado deste raciocnio um silogismo muito caracterstico nas anlises
revisionistas sobre o Golpe, sintetizado assim por Caio Navarro de Toledo:
Se os movimentos sociais, liderados pelas esquerdas, fossem menos maximalistas e aceitassem
reformas mais moderada que, para esses autores [revisionistas] certamente seriam aprovadas
pelos setores no-reacionrios do Congresso a direita no teria perpetrado o golpe. A
sociedade brasileira, concluem [esses autores], teria se livrado da amarga experincia da
ditadura militar.68
So teses como estas que confirmam a importncia, e mesmo a necessidade, em
darmos prosseguimento a um debate cujo objeto de crtica seja o revisionismo historiogrfico
sobre o Golpe de 1964. Embora apresente divergncias pontuais entre si, os pressupostos
lanados por Wanderley Guilherme dos Santos e Argelina Figueiredo sero implcita ou
explicitamente compartilhados pelos demais trabalhos revisionistas sobre o perodo,
sobretudo no que se refere concepo institucional de democracia.
o que podemos verificar pelos escritos do historiador Jorge Ferreira sobre o tema,
sobretudo pela centralidade que concebe ao radicalismo por meta desempenhado pelas
esquerdas no pr-Golpe contribuio com a qual Ferreira almeja recuperar as estratgias de
diversos grupos esquerdistas que atuaram no governo de Joo Goulart, no sentido de
considerar suas participaes no processo de radicalizao poltica culminada com o golpe
civil-militar de 1964.69
Seguindo os caminhos abertos por Figueiredo quanto a uma sobrevalorizao da
importncia de determinados grupos ou atores, e de suas capacidades de escolha, no cenrio
que antecedeu ao Golpe, Ferreira buscar nas chamadas estratgias de confronto perpetradas
pelas esquerdas a prova de que estas, a exemplo do espectro conservador da sociedade,
tambm no valorizavam o regime institudo pela Carta de 1946.70 Este detalhe semntico
, alis, sintomtico de uma viso estritamente formalista de democracia, responsvel
inclusive por aproximar as anlises do historiador quelas dos setores responsveis pelo
Golpe: democracia como regime poltico institudo e limitado por uma Constituio
68 TOLEDO, C.N. 1964: Golpismo e democracia.... Op.cit., p. 45. 69 FERREIRA, J. A estratgia do confronto.... Op.cit., p. 181. 70 Idem, p. 209.
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inviolvel. Viso que pode ser confirmada pela maneira como o autor abordar as atuaes
dos chamados setores mais radicalizados daquelas esquerdas sobretudo aqueles
envolvidos na Frente de Mobilizao Parlamentar,71 capitaneada, segundo Ferreira, por
Leonel Brizola.
exemplo de Figueiredo, Jorge Ferreira atribuir papel demeritrio a toda ao que
julgara radicalizada naquele perodo, sobretudo s que ocorreram ao largo do Congresso
Nacional. sob este prisma que o ex-governador do Rio Grande do Sul e ento deputado
federal pelo PTB, Leonel Brizola, ganhar destaque nas anlises do historiador. Por
considerar Brizola como o lder e representante das esquerdas radicais daquele perodo,
Ferreira o conceber com um dos principais atores do processo igualmente marcado por um
clima de radicalizao crescente, cujo produto fora o golpe civil-militar:
Ora, analisando os componentes da FMP, ali estavam presentes lderes sindicais, camponeses,
estudantis, e dos subalternos das Foras Armadas, grupos marxistas-leninistas, polticos
nacionalistas. Essa era a esquerda da poca que reconheceu em Leonel Brizola a liderana do
movimento. (...) Se ele era radical, tinha pregaes revolucionrias e defendia a ruptura
institucional, era porque as esquerdas igualmente eram radicais, pregavam a revoluo e
defendiam o rompimento com as instituies.72
O que poderia ser considerado como uma mera diferena de objetos de estudos entre
Figueiredo e Ferreira a primeira, como vimos, aborda predominantemente as aes dos
principais atores no Congresso; o segundo concentra suas anlises naqueles que atuaram em
outros canais de disputa , de fato ilustra o aprofundamento que as teses revisionistas sobre o
Golpe de 1964 alcanaram com os escritos de Ferreira. Isto porque, embora no negue que a
direita sempre esteve disposta a romper com as regras democrticas,73 Ferreira no considera
este fator como o primordial para o entendimento do Golpe, e ilustra as malogradas tentativas
de golpe dos grupos conservados em 1954, em 1955 e em 196174 como prova deste
raciocnio. Para o autor, naqueles anos no se encontravam uma ampla base social para levar a
71 A Frente de Mobilizao Popular foi formada em 1962, com o fito de promover o programa de Reformas de Base. Contava com representantes das entidades sindicais paralelas (como CGT e PUA), com membros da Frente Parlamentar Nacionalista, da UNE, da UBES, dentre outras entidades. Cf.: LAMARO, S. Frente de Mobilizao Popular (FMP). In: DHBB/FGV, Cd-Rom. 72 Idem, p. 190-191; mas tambm em FERREIRA, J. O trabalhismo radical e o colapso da democracia no Brasil. In: 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistncia no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 44. 73 FERREIRA, J. A estratgia do confronto.... Op.cit., p. 209. 74 1954: suicdio de Getlio Vargas aps forte oposio ao seu Governo; 1955: tentativa de veto posse de Juscelino Kubtischek; 1961: veto da Junta militar posse de Joo Goulart, seguido por um golpe branco representado pela instituio do regime parlamentarista como fator condicional para posse deste.
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conspirao adiante, finalmente conquistada com a radicalizao das esquerdas no perodo
iminentemente anterior ao golpe de 1964.75
De acordo com este raciocnio, foram as esquerdas que propiciaram o xito da
conspirao golpista, confirmando um movimento que, segundo o autor, vinha se repetindo e
se aprofundando naquele perodo de um lado, a ao ofensiva das esquerdas e, de outro, a
reao dos grupos conservadores. Movimento que Ferreira sintetiza assim:
No incio de 1964, a conspirao das direitas avanava de maneira acelerada. Aos empresrios,
irritava o poder de deciso exercido pelo CGT nas polticas governamentais; aos militares,
assustava a participao dos comunistas em cargos federais; aos polticos do PSD,
amedrontavam as greves de trabalhadores e, em particular, as invases de terras no interior do
pas; aos conservadores, sobretudo parlamentares da UDN, havia o temor de uma derrota nas
eleies presidenciais de 1965.76
Tal definio nos permite traar mais uma caracterstica comum aos escritos
revisionistas: a centralidade que atribuem aos episdios factuais do perodo pr-Golpe e,
conseqentemente, a aproximao de suas anlises aos argumentos daqueles que, de fato, o
perpetraram. Subsidiadas por um recorto cronolgico que exclu a historicidade das
instituies civis, militares, clrigas, dos partidos polticos e demais setores envolvidos
naquele processo, as anlises revisionistas estabelecem uma espcie de tbula rasa da
sociedade brasileira daquele perodo, igualando e comparando os atores nele envolvidos
quanto aos seus respectivos papis nos chamados momentos de crise que antecederam a
deposio do Governo Goulart.
Assim, episdios que pertencem aos marcos oficiais dos que tomaram o poder em
1964 so tratados como representativos da mudana de mos que a bandeira da legalidade
sofrera entre 1961 e 1964 o perodo que separa o veto dos ministros militares posse de
Joo Goulart da iminncia de um golpe comunista. Analisados de forma isolada e tendo os
seus aspectos ideolgicos ignorados ou omitidos, episdios tais como: i) a denominada
Revolta dos Sargentos, de setembro de 1963; ii) o envio ao Congresso e posterior retirada
do pedido, pelo Executivo, de estado de stio, em outubro daquele mesmo ano; iii) o Comcio
da Central do Brasil, j em maro de 1964; iv) a chamada Revolta dos Marinheiros e o v)
comparecimento de Goulart na reunio dos sargentos e subtenentes no Automvel Clube do
75 FERREIRA, J. A estratgia do confronto.... Op.cit., p. 183. 76 Idem, p. 200. Grifos nossos.
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Rio de Janeiro tambm datados em maro de 1964 ganham dimenses incongruentes
quanto aos seus verdadeiros significados, tornando-se aptos a ilustrar e ratificar a tese de
contragolpe com a qual os arquitetos da Revoluo de 1964 a tentaram impingir. Neste
sentido, Ferreira considerar o Comcio da Central do Brasil como o momento de inflexo do
presidente Joo Goulart em direo poltica de radicalizao pregada pelas esquerdas77
dado importante, se considerarmos o peso das aes individuais para as anlises que
descartam a totalidade como forma de interpretar o real.78
A exemplo de Ferreira, Alzira Alves de Abreu tambm se norteou pelos momentos de
inflexo ao registrar a participao da imprensa na queda do Governo Goulart79 no seu
caso, em relao ao papel da imprensa no perodo iminente ao Golpe.
Embora reconhecendo que a fora da imprensa advm, dentre outros fatores, de sua
autonomia, de sua capacidade de encaminhar o debate sobre determinados temas, de formular
e impor uma agenda, e dessa forma interferir no rumo dos acontecimentos,80 o artigo de
Abreu acabar por imprimir uma anlise de carter reflexiva quanto a participao desta no
golpe de 1964; anlise em que a ao de empresas miditicas historicamente comprometidas
com os setores conservadores da sociedade brasileira so tomadas como mero reflexo dos
rumos polticos percorridos pelo Governo Goulart, a despeito da posio de organizadores e
fomentadores do intervencionismo militar que jornais como O Globo, Estado de S. Paulo, O
Jornal ou Jornal do Brasil, por exemplo, desempenharam naquele processo.
Desta forma, segundo Alzira Abreu:
Foi s medida que se intensificou a mobilizao ideolgica, quando o governo se aproximou
dos grupos radicais de esquerda e foi perdendo o apoio dos grupos de centro, quando a crise
poltico-ideolgica se aprofundou, que a imprensa foi mudando o seu discurso, formulando ou
acompanhando as orientaes dos grupos que desejavam a queda do governo.
77 Idem, p. 206. 78 paradoxal a crtica que Jorge Ferreira faz s certas interpretaes sobre o Golpe, sobretudo aquelas que, segundo o historiador, preferem personalizar grandes processos, reduzindo a Histria simples vontade, ou falta dela, dos grandes homens. Para tanto, cita como exemplo as interpretaes produzidas pela ortodoxia marxista-lenista, e outras de esquerda, de direita ou liberais que, ao tratar Joo Goulart como populista, se unem em uma explicao simplista e teoricamente inaceitvel: graas incompetncia de um nico indivduo, implantou-se uma ditadura que mudou a face do pas. No entanto, a nfase que Ferreira atribuir s competentes aes de Leonel Brizola e s do prprio Presidente quando este adere alternativa radical ; ou o descrdito que o historiador atribui quelas interpretaes por ele denominadas de Grande Conspirao possivelmente pelo carter de interdependncia dos fatores e dos atores envolvidos, pressuposto por elas o torna passvel de sua prpria crtica. Cf.: Idem, p. 183-184. 79 Justamente o ttulo do nico artigo dedicado ao tema imprensa-Golpe no j citado Seminrio ... 40 anos do Golpe. Cf.: ABREU, A.A Op.cit. 80 Idem, p. 15.
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A forma como Abreu atribuir substncia abrangente palavra imprensa ser
pontuando o papel deste ou daquele peridico nos trs atos que julga importantes para o
entendimento do processo: i) a tumultuada posse de Joo Goulart, em 1961; ii) o perodo da
aprovao do regime parlamentarista (tambm em 1961) at o plebiscito que devolveria os
plenos poderes presidenciais Goulart (j 1963); iii) o perodo que denominou de incio [do]
afastamento da imprensa do governo Goulart, marcado pela Revolta dos Sargentos.81 Em
relao a este ltimo, Abreu enftica: A Revolta dos Sargentos (2/09/1963) pode ser
considerada o momento de inflexo da posio da imprensa em relao ao governo Goulart: a
partir da comea realmente o afastamento e se aceleram as crticas ao presidente.82
Deste ltimo ato at o Eplogo,83 a autora descreve a repercusso que os jornais
daro aos j citados momentos de crise que antecederam a deposio de Goulart, finalmente
asseverando:
Mas foi a Revolta dos Marinheiros, liderados pelo Cabo Anselmo, em 26 de maro, que
precipitou os acontecimentos. Os jornais que at ento defendiam a manuteno do regime
constitucional comearam, agora claramente, a pedir a interveno das Foras Armadas para o
restabelecimento da hierarquia militar.84
Aqui, fecha-se um crculo que iniciamos com a repercusso das teses revisionistas
sobre o Golpe pelos grandes conglomerados miditicos do Pas, quatro dcadas depois dele.
Isto porque localizamos, como produto e como legitimador de tais teses, uma das poucas
caracterizaes existentes da Rede da Democracia aquela que aponta o nascimento do
arranjo miditico ao movimento de reao das foras conservadoras frente ofensiva das
esquerdas:
O clima era de radicalizao crescente. Brizola j contava, naquele momento, com um horrio
cativo na rdio Mayrink Veiga, de onde pregava as reformas imediatas. (...) A reao veio com
o acordo entre Roberto Marinho, Nascimento Brito e Joo Calmon. Unificando suas rdios, a
Globo, a Jornal do Brasil e a Tupi, eles criaram a Rede da Democracia.85
81 Idem, p. 17-19. 82 Idem, p. 19. 83 Idem, p. 21. 84 Idem, p. 23. 85 Idem, p. 197.
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Embora seja cronologicamente plausvel considerar que Rede da Democracia tenha
sido lanada como contraponto aos programas radiofnicos comandados por Brizola, tal
caracterizao no leva em conta as foras e os interesses por trs daquela Rede, os projetos
que ela representava, os grupos polticos pelos quais aquelas empresas miditicas estavam
historicamente envolvidas, ou mesmo suas aes nos processos de crises institucionais
para utilizar uma expresso cara ao revisionismo anteriores ao de 1964. Assim, por
caracterizar a Rede da Democracia exatamente do mesmo modo que os seus fautores
retoricamente o faziam apontando-a como uma criao saudada por parlamentares de
centro assustados com a escalada de radicalizao das esquerdas86 , o historiador Jorge
Ferreira acaba por elev-la a um patamar constitudo por aqueles que se empenharam em
defender o regime democrtico em um cenrio em que a democracia era a grande
ameaada.
A anlise do papel da Rede da Democracia como a acima descrita no est dissociada
da forma como a imprensa ainda tomada por algumas pesquisas acadmi