PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS
LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE LNGUA PORTUGUESA DO ENSINO FUNDAMENTAL - 3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
ADELMA DAS NEVES NUNES BARROS MENDES
SO PAULO 2005
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS
LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM
DOUTORADO
A Linguagem Oral nos Livros Didticos de Lngua Portuguesa do Ensino Fundamental - 3 e 4 ciclos: Algumas Reflexes
Adelma das Neves Nunes Barros Mendes
Tese apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, como exigncia parcial para a
obteno do ttulo de Doutor em Lingstica
Aplicada e Estudos da Linguagem, sob a
orientao da Prof.Dra. Roxane Helena
Rodrigues Rojo e Co-orientao do Prof. Dr.
Bernard Schneuwly.
SO PAULO -2005
BANCA EXAMINADORA
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Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos.
Agradeo
A Deus, Senhor de todas as horas; A Nossa Senhora Aparecida, pela f que me sustenta; minha orientadora, Professora Dra. Roxane Rojo, que mais que orientadora da Tese, foi orientadora de caminhos, abrindo-me as portas da pesquisa e do mundo, contribuindo para meu crescimento intelectual; Ao meu co-orientador no exterior, Professor Dr. Bernard Schneuwly, pela orientao sria e amiga e por sua to calorosa acolhida em seu grupo de pesquisa; Professora Dra. Glas Sales Cordeiro (UNIGE-Suia), minha gratido infinita por sua enorme colaborao, ateno e cuidado em minha estada em Genebra; equipe de professores do grupo de Pesquisa GRAF da Faculdade de Psicologia e Cincia da Educao (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE), Sua, em especial Sandrine Aeby, Joaquim Dolz, Terse Thvenaz e Simon Toulouse por nossas constantes trocas de idias sobre o ensino de lngua materna e, como no poderia deixar de ser, sobre a vida; Ao Professor Dr. Antnio Gomes Batista (FAE-CEALE-UFMG) por suas contribuies, sugestes de leitura no momento em que esse trabalho ainda era semente; Luza e ao Itamar (FAE-CEALE-UFMG), sempre prontos a auxiliar nas diversas coletas do material de pesquisa; Aos professores Doutores Beth Brait (PUC-SP), Manoel Corra (USP), Jacqueline Barbosa (PUC-SP) e Anna Bentes (UNICAMP) pelas sugestes e orientaes preciosas na tecitura desse trabalho nas diferentes fases de qualificao da tese; Maria Lcia, Mrcia e Rosngeles do LAEL/PUC-SP, sempre prontas a nos auxiliar; Ao Adail Sobral, amigo leal de todas as horas; Aos colegas do Colegiado do Curso de Letras da Universidade Federal do Amap, em especial Eduza, Regina, Rosilene, Martha e Maneca; Universidade Federal do Amap (UNIFAP) pela licena concedida; Ao Projeto de Pesquisa Integrada IEL-UNICAMP/CEALE-UFMG Livro Didtico de Lngua Portuguesa: Produo, Perfil e Circulao; Ao CEALE-UFMG /MEC/SEB/PNLD por ter permitido a coleta do material; Ao CNPq pela bolsa de estudos concedida; A CAPES pela bolsa de estudos de estgio no exterior.
Para:
Adilson, pela vida que, paradoxalmente,
dividimos e somamos.
Wagner, Marlia e Jlio,
por quem luto sempre.
Minha me, in memoriam.
Meu pai.
Meus irmos.
Andria, irm-amiga-filha por sua importncia
singular em minha vida.
Maria Clara, que plantou a semente e por seu
exemplo de fora e luta: meu afeto e gratido
eternos.
Josiara, pelo companheirismo. s minhas tias, Carmem e Esmeralda, pela educao que me deram. Simone Padilha (UFMT), pela amizade nascida e cultivada nesses anos de doutorado.
O caminho de Deus perfeito,
a palavra do Senhor provada,
um escudo para todos em que
nele confiam (Salmo, 18).
RESUMO
Este trabalho baseia-se na perspectiva scio-histrico-discursiva
bakhtiniana e em teorias advindas da didtica das lnguas, da histria da
educao e dos estudos sobre a linguagem de modo geral. A anlise dos dados
aqui exposta busca demonstrar que o novo lugar dado linguagem oral no
ensino-aprendizagem de lngua materna (PCN, 1998) e (PNLD, 2002, 2005)
suscitou mudanas e que os livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP) esto
tratando cada vez mais desse objeto em suas propostas de trabalho.
Nos livros aqui pesquisados, observou-se que entre um programa de avaliao
oficial e outro, PNLD/2002 e PNLD2005, a linguagem oral ultrapassou o total de 122
para 587 propostas. A linguagem oral nos LDP se apresenta concretizada tanto nos
Gneros orais formais e pblicos como nas atividades de linguagem (Dolz, Schneuwly e
Haller, 1998) e tratada sob dois grandes modos: como meio ou passarela de
explorao de objetos diversos e como objeto em que se visa o ensino dos gneros
orais da esfera pblica de comunicao.
O modo que trata a linguagem oral como meio explora essencialmente leitura,
compreenso e produo de textos escritos e conhecimentos lingsticos. O modo que
a trata como objeto com vistas ao ensino, mostra-se sob trs perspectivas: da imerso,
da transmisso e da reflexo (Rojo, 2005), mas somente essa ltima perspectiva
trabalha com saberes e capacidades de linguagem (Dolz e Schneuwly, 1998),
necessrios para compreenso, produo e gesto dos gneros de circulao pblica,
isto , promove o ensino-aprendizagem desses gneros como objeto autnomo de
ensino (PCN, 1998) e (Dolz e Schneuwly, 1998), abrindo possibilidades para uma
formao cidad.
Nesse trabalho desenvolvido, verifica-se que os livros didticos de lngua
Portuguesa no apresentam um discurso monolgico (Bakhtin, 1953/4/1979; 1929) de
seus autores, mas esto dialogando com os novos paradigmas de ensino da Lngua
Portuguesa, com os documentos oficiais (PCN) e com as orientaes das sucessivas
avaliaes (PNLD).
ABSTRACT
This thesis is based on the socio-historical-discursive perspective proposed by
Bakhtin as well as on theories developed in language teaching methodology, in
education and in language studies in general. The analysis of the data points to the
attention given to oral language in the teaching and learning of the mother tongue (PCN,
1998) and (PNLD/2002, 2005) that contributed to a change in focus of Portuguese
language textbooks used in schools
The research based on the examination of the classroom textbooks showed that
the emphasis on oral language increased from an original proposal of 122 to 587
proposals. In this study, the presence of oral language is apparent in formal and public
spoken discourses as scholastic activities (Dolz, Shneuwly & Haller, 1998). Oral
production is treated from two different standpoints: as a means of exploration of diverse
objects and as an object in which the focus is on the presentation of oral genres used in
public communication.
Oral language is thus treated as a means to explore essentially reading,
comprehension and production of written texts as well as linguistic knowledge. Following
(Rojo, 2005) spoken discourse is treated as a teaching objective from three different
perspectives: immersion, transmission and reflection. Only the perspective of reflection
deals with knowledge and language abilities (Dolz & Schneuwly, 1998) which are
necessary for the comprehension, production and management of genres employed in
the public sphere, promoting the teaching and learning of those genres as an
autonomous objective of instruction (PCN, 1998), (Dolz & Schneuwly, 1998), preparing
the groundwork for civic education.
The findings of this study show that the authors of Portuguese-language textbooks
do not present a monologic discourse (Bakhtin, 1953/1979, 1929) but engage the new
teaching paradigms and successive textbook evaluations presented respectively in both
the (PCN) and (PNLD) in dialogue.
SUMRIO
Introduo 1
Captulo 1. A disciplina Lngua Portuguesa e a transposio didtica 5
1.1. A lngua Portuguesa como entidade poltico-cultural 6
1.2. O processo de disciplinarizao da lngua portuguesa no Brasil 9
1.3. As transformaes dos saberes tericos, a didatizao e o livro didtico 18
1.4. A disciplina Lngua Portuguesa atualmente e o PNLD 29
Captulo 2. Compreender a linguagem oral para o ensino 41
2.1. As mltiplas dimenses da linguagem oral 43
2.2. Linguagem oral e linguagem escrita: relaes complexas 56
Captulo 3. Compreender a linguagem oral no ensino 76
3.1. Os orais no ensino de Lngua Portuguesa: perspectivas para didatizao 86
3.2. Duas correntes que definem o tratamento do ensino da linguagem oral 89
Captulo 4 Princpios de pesquisa 103
4.1. Questes de pesquisa 103
4.2. Dispositivos de pesquisa 106
4.2.1.Seleo e descrio do corpus 107
4.3. Procedimentos de anlise 116
Captulo 5 - A anlise dos dados 122
5.1.O primeiro momento de analise 122
5. 2 O segundo momento de anlise 130
5. 2. 1-Primeiro nvel: Os gneros e atividades presentes nos LDP 130
Captulo 6 - Os modos de tratamento da linguagem oral nos LDP 144
6.1. Segundo nvel de anlise: dois modos de tratamento da linguagem oral 144
6.1.1 Primeiro Modo: a linguagem oral como meio 145
6.1.2. Segundo Modo: a linguagem oral numa perspectiva de ensino 157
6.2. A relao entre linguagem oral e escrita nos dois modos de tratamento 176
6.2.1. As relaes entre linguagem oral e linguagem escrita no modo em que
a linguagem oral concebida como meio
177
6.2.2. As relaes entre linguagem oral e escrita no modo que visa ao ensino
dos gneros orais
179
Consideraes Finais 184
Bibliografia 192
Anexos
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
1
INTRODUO
As novas perspectivas para o ensino-aprendizagem da lngua materna
que surgiram nos ltimos anos vm favorecendo mudanas e reconhece-se
que tais mudanas no ocorreram de uma hora para outra, mas graas, por
um lado, aos grandes avanos das cincias da aprendizagem e das cincias
da linguagem, introduzidos nos currculos de formao de professores desde
a dcada de 60, e, por outro, s prprias exigncias sociais que impem a
reviso de paradigmas (Batista, 2003: 42).
Essas exigncias sociais encontram-se representadas principalmente, na
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Brasileira (LDB) e nas novas Diretrizes
para o Ensino Fundamental emanadas do Conselho Nacional de Educao (CNE).
Da mesma forma, essas demandas so contempladas pelos Parmetros
Curriculares Nacionais (PCN/1998) propostos pelo MEC para funcionarem como
elemento catalisador de aes, na busca de uma melhoria na qualidade da
Educao Brasileira (Batista, 2003: 42).
Pode-se dizer que, na dcada de 90, houve uma maior ebulio que
favoreceu a chamada mudana de paradigma e que vem refletindo uma
nova configurao da Lngua Portuguesa como disciplina, atualmente. Nessa
nova configurao, novos objetos de ensino e aprendizagem foram
reivindicados. Considerando a extrema variedade das prticas de linguagem,
so os gneros que passam a ser considerados para o ensino de lngua
materna.
A eleio dos gneros nasce de suas possibilidades de estabilizar os
elementos formais e rituais das prticas. Segundo Dolz & Schneuwly (1998),
o trabalho sobre os gneros dota os alunos de meios de anlise das
condies sociais efetivas de produo e de recepo dos textos e fornece
um quadro de anlise dos contedos, da organizao do conjunto do texto e
das seqncias que o compem, assim como das unidades lingsticas e das
caractersticas especficas da textualidade oral.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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A linguagem oral, que, historicamente, esteve presente nas salas de
aula (nos seminrios e apresentaes/exposies orais), concebida dentro
da perspectiva da tradio escolar como mediadora das interaes entre
professor/aluno/aluno, passa a ser mais um dentre os novos objetos de
ensino da lngua materna, especialmente os gneros orais da esfera pblica
de comunicao.
Talvez por conta da participao do Estado atravs do Programa
Nacional de Livros Didticos (PNLD), alguns dos objetos propostos passaram
a ser incorporados pelos livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP) e a
linguagem oral, conforme defendida tambm pelos PCN (1998), configura-se
como exemplo desses objetos. Inegavelmente interrelacionados a esse
objeto, outros contedos se apresentam, como a complexa relao entre
linguagem oral e escrita.
Entretanto, Rojo (2003: 87) julga que o trabalho com a linguagem oral
ainda se apresenta como um dos pontos de menor clareza para os autores e
editores de LDP: sobre como ensinar e sobre como aprender. Em funo
disso, procuramos, nesse trabalho, verificar se, nas propostas de ensino-
aprendizagem da linguagem oral, estabelecidas pelos livros didticos de
Lngua Portuguesa (LDP), os gneros orais formais e pblicos esto sendo
tomados como objeto de ensino e como esto sendo tratados. Para
desenvolv-lo, inserimo-nos numa perspectiva scio-histrico-discursiva
bakhtiniana e nos apoiamos em teorias advindas da didtica das lnguas, da
histria da educao e dos estudos sobre a linguagem de modo geral.
Nossas discusses no visam a questionar ou sancionar a avaliao
efetivada pelo PNLD, nem tampouco estabelecer crticas negativas com o intuito de
depreciar autores de LDP sobre quaisquer que sejam suas posies frente ao
trabalho com a linguagem oral. Nossa inteno dada a reconhecida importncia
e a necessidade do LDP nas nossas escolas fazer uma reflexo a partir dos
frutos dessa nova poltica de educao que vem desencadeando alguns
procedimentos de anlise e avaliao do ensino e, nesse contexto, se insere o
livro didtico de Lngua Portuguesa, que elegemos como foco deste trabalho.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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Assim, no Captulo 1, distinguimos a lngua portuguesa, como
identidade nacional, da disciplina Lngua Portuguesa (DLP), entendendo o
processo que a configurou como saber a ser ensinado. Alm disso, buscamos
compreender o processo de transposio didtica e sua relao com a
didatizao dos saberes de referncia. Estendemos tal compreenso s
perspectivas mais atuais sobre o ensino-aprendizagem da Lngua
Portuguesa, mostrando como os acontecimentos scio-poltico-econmicos
influenciaram as mudanas ocorridas nessa disciplina ao longo dos anos e,
conseqentemente, nos livros didticos. Por fim, tentamos compreender o
livro didtico de Lngua Portuguesa no como um suporte, mas como um
gnero do discurso complexo e mltiplo, scio-historicamente construdo e
situado na interseco das diferentes esferas de produo da vida social.
Isso nos ajudou a analis-lo como um enunciado que dialoga com os novos
paradigmas de ensino da Lngua Portuguesa, com os documentos oficiais
(PCN) e com as orientaes das sucessivas avaliaes do Programa
Nacional do Livro Didtico (PNLD).
No Captulo 2, apresentamos alguns traos do funcionamento da linguagem
oral em suas mltiplas dimenses, destacando as dimenses discursiva e material.
No Captulo 3, traamos um panorama geral do que se tem proposto para o
ensino da linguagem oral na sala de aula de lngua materna, destacando a
perspectiva que inspira as orientaes dos PCN (1998), ou seja, a abordagem que
prev a linguagem oral como objeto autnomo de ensino e aprendizagem. Alm
disso, fazemos uma sntese das vrias correntes que tratam da relao entre
linguagem oral e escrita, verificando a influncia forte de duas vertentes que
circulam atualmente. Entendendo que tais relaes ainda so sujeitas a controvrsia
e mal-entendidos, procuramos olh-las nas dimenses dos gneros em que oral e
escrita se interpenetram e se inter-relacionam de forma bastante complexa.
No Captulo 4, descrevemos os mecanismos de pesquisa (questes de
pesquisa; dispositivos de pesquisa; descrio do corpus; seleo dos dados;
procedimentos de anlise).
No Captulo 5, expomos a anlise dos dados, que se configurou em
dois momentos: o primeiro, constituiu-se numa anlise documental em que
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traamos um perfil geral sobre o trabalho com a linguagem oral nos LDP,
para que nos revelassem indcios que nos levassem s colees de livros
didticos que estariam tomando a linguagem oral como objeto de ensino.
Essa anlise se configurou como essencialmente descritiva dos fatos
observados, o que nos permite qualific-la como uma pr-anlise. O
segundo momento se constituiu pela anlise propriamente dita das colees
selecionadas, por meio dos indcios obtidos no primeiro momento. Nessa
anlise, que se subdividiu em dois nveis, incluiu-se a explorao do material
quanto s atividades propostas para a produo e compreenso dos gneros
orais formais e pblicos, onde fizemos um levantamento de todas essas
propostas presentes nas colees eleitas, no primeiro nvel.
No Captulo 6, no segundo nvel de anlise, verificou-se como eram
abordados os gneros propostos pelos LDP, olhando quais capacidades de
linguagem e saberes esto envolvidos. Discutimos os dois modos de
tratamento da linguagem oral e suas perspectivas diversas que se
apresentaram no decorrer dessas anlises e constatamos a presena de
traos de, pelo menos, trs abordagens que circulam no Brasil sobre a
linguagem oral que inspiraram decididamente os trabalhos desses LDP. Por
fim, traamos nossas consideraes finais onde sintetizamos algumas das
possibilidades e limites do trabalho com a linguagem oral em sala de aula
tomando os gneros orais formais e pblicos a partir do livro didtico de
Lngua Portuguesa.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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Captulo 1
A disciplina Lngua Portuguesa e a transposio didtica dos saberes
Extrair de uma rea de conhecimento uma disciplina curricular , fundamentalmente, escolarizar esse conhecimento (Soares, 1996: 9).
Considerando nosso objeto de pesquisa, a linguagem oral como objeto
de ensino na segunda metade do Ensino Fundamental, um dentre os diversos
que precisam ser postos na sala de aula de lngua materna, faz-se
necessria uma compreenso dos aspectos que nele esto implicados. Para
viabilizar uma aproximao desses aspectos, neste captulo, primeiramente
procuramos distinguir a lngua portuguesa (LP), como idioma fundante da
identidade nacional, da disciplina Lngua Portuguesa (DLP), no processo que
a configurou como saber a ser ensinado1. Em seguida, buscamos entender o
processo de transposio didtica e sua relao com a didatizao dos
saberes de referncia, para definir o livro didtico de Lngua Portuguesa
1 Embora no estejamos, para este captulo, privilegiando uma abordagem histrica ou adotando uma
cronologia exaustiva, em alguns pontos do texto se imps um tratamento apoiado em datas exatas, perodos
determinados e sculos, como recurso para melhor se compreender o longo processo de transformao da
lngua portuguesa em disciplina escolar.
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(LDP): como compreend-lo? Como um suporte de textos ou como um gnero
de discurso?
Veremos ainda que as alteraes efetivadas na disciplina Lngua
Portuguesa (DLP), a partir das aes e didatizaes dos saberes produzidos
pelos estudos sobre a lngua e a linguagem, de modo geral, so incorporados
tambm aos livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP), j que o que
determina a poltica da escolarizao do saber e, portanto, a poltica do livro
didtico , fundamentalmente, uma poltica da cultura, da cincia e das
prticas sociais, e que resultado de lutas e compromisso sociais e
econmicos um substrato ideolgico, portanto (Soares, 1996b: 5).
1.1. A lngua portuguesa como entidade poltico-cultural
Segundo Collinot et al. (1999: 10), por instituio de uma lngua se
compreende o fato histrico e poltico em que se coloca determinada lngua
como lngua nacional.
A lngua portuguesa do Brasil do sculo XVI, embora reconhecida como
lngua oficial, no era a mais utilizada pela populao. Era a lngua geral (que
recobria as lnguas indgenas faladas no territrio brasileiro, em sua maioria,
advindas de um nico tronco tupi), sistematizada pelos Jesutas, que servia
ao povo.
Essa lngua geral era utilizada entre os portugueses e os indgenas
para a evangelizao, a catequese e para a comunicao diria. Foi nela,
tambm, que se nomearam a fauna e a flora, acidentes geogrficos,
povoaes (Soares, 1996a). O latim se constitua na terceira lngua e nele se
fundavam os trabalhos de ensino secundrio e superior dos Jesutas.
O decreto institudo pelo Marqus de Pombal foi o fato histrico
principal que forou a instituio da lngua portuguesa como lngua nacional
no Brasil. Nessa reforma, chamada de Pombalina, determinava-se que, em
todas as povoaes do Brasil,
No seria consentido por modo algum que os meninos e meninas, que
pertencessem s escolas, e todos aqueles ndios, que fossem capazes de
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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instruo nesta matria, usassem da lngua prpria das suas naes ou da
chamada geral, mas deveriam utilizar-se unicamente da Lngua
Portuguesa [...] (Soares, 1996a: 13).
Esse contexto pode ser compreendido a partir do que Rey (2001: 118-
119) explica sobre a construo ideolgica da norma. Para esse autor, essa
construo repousa por inteiro no conceito habilmente manipulado de uso.
A noo de uso formada antes que a noo de sistema seja apreendida,
pois a histria das reflexes sobre a linguagem, principalmente a da
gramtica, reflete e ilustra um esforo constante para atingir o sistema,
atravs dos produtos do uso. Foram as condies scio-polticas de
unificao dos grandes Estados, sobretudo do sculo XVII (na Espanha,
Frana e Inglaterra) uma das principais responsveis pela introduo, no
quadro ainda impreciso do sistema recoberto pelas coeres sociais do uso e
produtor do discurso, de uma dimenso voluntarista e de um sistema de
valores predeterminados.
De acordo com o referido autor, o que se verifica, ento, que o
discurso avaliativo-prescritivo da classe dominante se abriga por trs da
constatao de uma lei abstrata. E a regra objetiva que os gramticos se
empenhavam em descobrir por trs dos usos assimilada a uma
pseudocoero da norma social (o uso geral) e recobre de fato uma inteno
unificadora. Isto talvez explique, segundo ele, porque a norma tem m
reputao entre os lingistas.
Rey (2001: 125) apresenta trs noes de norma. A norma objetiva
(variedades do uso), segundo a qual cada grupo social tem a sua prpria
norma e, conseqentemente, no se pode falar de norma, mas de normas no
plural, j que existiro tantas normas quantos grupos sociais houver. Com
isso, para ele, preciso se reconhecer e se voltar para a pluralidade das sub-
normas do domnio da estilstica, no sentido de Bally e da sociolingstica.
H ainda, a norma prescritiva e a norma subjetiva. A norma prescritiva
diz respeito ao uso extrado da lngua literria, dos grandes escritores
clssicos e, por ser codificada e concebida como detentora de maior prestgio
na comunidade lingstica, a nica que se presta realizao dos objetivos
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poltico-pedaggicos da escola. A norma subjetiva, que o ideal de lngua
aspirado por uma dada comunidade, um uso da lngua que representaria o
ideal de perfeio lingstica. Para o autor,
Somente uma lingstica da norma objetiva, de suas variaes e de seus
tipos, subjacentes s variaes dos usos, em um estudo sistemtico das
atitudes metalingsticas numa comunidade que usa o mesmo sistema
lingstico (lngua ou dialeto, segundo a definio do sistema) podero
fundar os estudos das normas subjetivas, dos juzos de valor sobre a
linguagem e de suas retroaes sobre o uso, estudo que poderia construir
uma cincia social aparentada s teorias dos valores. A tendncia
unificao manifestada pela norma prescritiva se dirige pluralidade das
normas objetivas, s quais os juzos de valor estruturados em uma norma
avaliativos do uma coerncia sociolgica (sistema hierarquizado, eixo
opositivo: prestgio X antiprestgio) [...] A presso social unificadora, que se
manifesta em outros planos pela estruturao de classes pela tendncia
hierarquizao, pelo estabelecimento de uma ideologia dominante, cria, no
plano da linguagem, uma tendncia unificao da norma subjetiva (Rey,
2001: 130).
Em linha semelhante, Along (2001: 153) explica que a lngua um
fato social e a sociedade, mais do que uma soma de indivduos organizada
de acordo com as regras que regulam e condicionam o comportamento
individual. H um conjunto de formas lingsticas que so objeto de uma
tradio de elaborao, de decodificao e de prescrio, isto , uma norma
que socialmente dominante, pelo fato de se impor como o ideal a ser
buscado nas circunstncias que exigem um uso refletido ou monitorado da
lngua, o que autor chama de norma explcita. Mas inegvel a existncia de
outra, a norma implcita que, embora se apresentando de maneira pouco
monitorada, nem por isso deixa de representar os usos concretos da
linguagem atravs dos quais o indivduo participa em sua sociedade (Along,
2001: 153).
O Portugus culto brasileiro (ligado norma e unificao), somente
vai se configurar na segunda metade do sculo XVIII em diante, graas,
segundo Mattos e Silva (2001: 278) poltica geral e lingstica estabelecida
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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pelo Marqus de Pombal, poca em que se inicia o incentivo ao seu ensino,
antes preterido pelos jesutas em funo da catequese e da colonizao.
Desse modo, a instruo escolar sistemtica o maior impulso
constituio do Portugus culto brasileiro, comprovando o que Collinot et al.
(1999: 3) expem sobre os espaos responsveis pela instituio de uma
lngua. Alm de alguns espaos que determinam a instituio da lngua e a
escola seria o primeiro , existem as prticas e discursos institucionalizantes,
tais como os exerccios escolares, os dicionrios e as gramticas (Collinot et
al., 1999: 3). A nosso ver, o livro didtico, abarcando objetos diversos dessas
prticas e discursos, constitui-se, tambm, como discurso institucionalizante.
1. 2. O processo de disciplinarizao da lngua portuguesa no Brasil
Collinot et al. (1999: 3) concebem disciplina como um conjunto de
discursos em constante transformao, na medida em que se atualizam os
domnios do conhecimento. Fazendo referncia a Michel Foucault (1971: 31-
38), explicam que esse autor apresenta disciplina como um dos princpios da
delimitao, do corte dos discursos admitidos como verdades, em um campo
determinado de conhecimento. Esses discursos admitidos como verdades
so validados em um dado momento e constituem os sistemas de formulao
e reformulao de regras, de definies, de instrumentos, de mtodos, de
objetos, em relao com as aquisies e os avanos dos saberes em
construo.
De acordo com Chervel (1988: 60-61), o termo disciplina, no sentido
voltado para o trabalho com os contedos de ensino, at o sculo XIX estava
ausente dos dicionrios. O sentido que se detinha era o da ordem, da
represso das condutas prejudiciais etc. O termo reaparece no incio do
sculo XX com sentido de matria de ensino, suscetvel de servir aos
exerccios intelectuais. A partir da, pde-se falar de disciplinas, no plural.
Entendendo disciplina como contedos de ensino, verifica-se que a
lngua portuguesa, no Brasil, instituiu-se como componente curricular
somente na segunda metade do sculo XVII, a partir das reformas
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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pombalinas. No entanto, ainda ao lado da gramtica latina, que se manteve
por longo tempo como componente do currculo.
A gramtica do portugus precedia a gramtica latina, com carter
quase instrumental, e, ao lado desse ensino, havia o da Retrica que
permaneceu no ensino do sculo XVI primeira metade do sculo XIX.
Assim, foi em 1837, na ento criao do Colgio D. Pedro II, que se incluiu o
estudo da Lngua Portuguesa no currculo, sob a forma das disciplinas
Retrica e Potica, mas foi somente em 1838 que a Gramtica Nacional
passou a objeto de ensino.
Desse modo, embora estivesse nas escolas, j que se constitua como
lngua oficial, at 1838, a lngua portuguesa no era tida como disciplina
escolar, ou seja, no era concebida como um legtimo objeto de ensino.
Prestava-se antes alfabetizao dos poucos que podiam freqentar a
escola naquela poca (a camada mais privilegiada economicamente). Por ser
considerada uma lngua significativamente vulgar, a lngua portuguesa
deveria ser instrumento para aprender a gramtica latina. Os alunos iam
aprender a ler e a escrever, depois seguiam estudando Retrica e Gramtica
da Lngua Latina.
Somente quando a lngua se torna objeto de instruo oficial, dos
programas, dos planos de estudos que ela adquire um status de disciplina
(Collinot, 1999). Quando a lngua erigida como disciplina de ensino, no
so somente questes lingsticas que se vo considerar: ela se coloca
tambm sob o controle poltico, na medida em que a escola mais um
aparelho poltico-ideolgico. Veremos que todo o percurso da disciplina
Lngua Portuguesa aqui no Brasil testemunha isso, pois no haver alterao
na situao scio-poltico-econmica e cultural que no seja, de alguma
forma, refletida nessa disciplina e, conseqentemente, nos livros didticos de
Lngua Portuguesa.
Interpretao semelhante dada por Cameron (1995: 11), que explica
que as convenes lingsticas so frutos de uma autoridade indiscutvel
para as pessoas educadas em uma sociedade secular. Por exemplo, segundo
a autora, se se disser s pessoas o que elas devem vestir, algumas, ao
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
11
menos, questionaro e podero at rejeitar e julgar absurda a campanha,
mas se se colocar que certa conveno lingstica deva ser mantida ou
rejeitada, elas humildemente obedecero; entretanto, tal regra to arbitrria
como seria a campanha sobre o modo de se vestir.
Nesse sentido, tanto Estado como poder so apresentados como
entidades superiores e neutras e da mesma forma ocorre com o cdigo
aceito oficialmente pelo poder: ele visto como neutro e superior e todos os
cidados precisam reproduzi-lo e entend-lo nas relaes com o poder.
Assim, tambm para Gnerre (1989) uma variedade lingstica vale o que
valem na sociedade os seus falantes, isto , vale como reflexo do poder e
da autoridade que eles tm nas relaes econmicas e sociais.
Pode-se dizer que, a partir da primeira reforma a reforma pombalina que reconfigurou o papel da lngua portuguesa, colocando-a como
disciplina a ser ensinada, os manuais didticos2 ficaram entrelaados na
longa histria da escola e do ensino dessa disciplina no Brasil.
Um primeiro reflexo nesse sentido so as publicaes dos Manuais de
Gramtica e Retrica dessa poca, que testemunham o que era considerado
no currculo escolar. Desse ponto de vista, conclui-se que os manuais
didticos utilizados nesse perodo3 j eram os livros feitos propositadamente
para aprender e ensinar 4.
2 Quando nos referirmos a livros didticos, estaremos mencionando a forma atual que os manuais escolares
assumiram. Quando nos referirmos a manuais ou livros escolares ou a manuais didticos, estaremos
mencionando um conjunto maior de obras que podem circular nas escolas, que abrange obras de referncia
(gramticas, dicionrios, atlas), livros didticos, antologias e livros paradidticos. Ver, a respeito, Choppin
(1992).
3 Para saber mais, a esse respeito, ver Pessanha, Daniel & Menegazzo (2003/2004) Histria da Lngua
Portuguesa no Brasil atravs dos livros didticos -1870 a 1950, pp. 31-36. Ver ainda Soares (1996a/2002
Portugus na escola: Histria de uma disciplina curricular.
4 Soares (1996b), como vimos, estabelece uma distino interessante entre os livros utilizados para ensinar e
aprender e os livros propositadamente feitos para ensinar e aprender. Os primeiros se constituem pelos livros
religiosos, antologias etc. Os segundos, seriam os manuais de retrica, os abecedrios, as gramticas
escolares (como por exemplo, a publicada em 1881, do ento professor do Colgio D. Pedro II, Jlio Ribeiro,
que teve presena marcante nas ltimas dcadas do sculo XIX e incio do XX). Atualmente, os livros que
circulam nas salas de aulas das escolas brasileiras so principalmente os propositadamente feitos para
ensinar e aprender.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
12
De acordo com Pessanha et al. (2003: 4), as disciplinas Retrica,
Potica e Gramtica fundiram-se em numa s disciplina somente no final do
Imprio e esta passou a ser denominada Portugus. Mas com o decreto
4.430, de 30 de outubro de 1869 (que entrou em vigor em 1870), que o
exame de Portugus foi includo nos exames de ingresso nas faculdades,
chamados de Exames Preparatrios. Os referidos autores inferem ainda
que foi pela a instituio desse exame a criao, por um decreto imperial, do
cargo de Professor de Portugus, em 1871.
A Lngua Portuguesa como disciplina do componente curricular das
escolas brasileira vai ganhando autonomia, graas, por um lado, aos vrios
manuais didticos escritos por professores brasileiros e, por outro, segundo
Soares (1996a: 15), pela progressiva constituio desse objeto como uma
rea de conhecimento, ou seja, a lngua concebida como sistema. Um
exemplo de obra didtica dessa poca a Antologia Nacional que, ao longo
de 75 anos, teve 43 edies, a ltima, em 1955.
A partir de Razzini (2000: 28-29) depreende-se que a Antologia
Nacional abarcava no s uma seleo de excertos de textos literrios
clssicos, mas tambm um estudo gramatical introdutrio sobre noes
elementares de sintaxe da proposio simples e da proposio composta.
Para a autora, esse perfil se aproxima do projeto pedaggico da tradio
escolar de ensino da lngua materna, onde o texto literrio intermedirio da
explorao dos conhecimentos lingsticos, e se constitui em um modelo de
currculo que vai basear o ensino de Lngua Portuguesa desse perodo at os
anos 50.
Com as transformaes das condies sociais e culturais, o final dos
anos 50 e a dcada de 60 do sculo XX vo testemunhar uma nova realidade
social, que obriga reformulaes das funes e dos objetivos da escola, o
que vai gerar mudanas nas disciplinas curriculares e, conseqentemente,
nos LDP.
Dos fatores que foraram tais mudanas pode ser apontada, em
primeiro lugar, a mudana no perfil do alunado que, antes constitudo
exclusivamente por uma clientela que tinha o conhecimento da variedade
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
13
padro da lngua portuguesa (j que os alunos vinham de famlias letradas,
onde testemunhavam e participavam de prticas de letramentos diversos e a
ida escola objetivava um aprimoramento do saber sobre a lngua). Na
segunda metade do sculo XX, com as mudanas scio-polticas e a
progressiva ampliao das redes pblicas de ensino, tem-se uma sala de
aula grandemente heterognea, composta por alunos com nveis culturais e
sociais e letramentos muito diferenciados. No so mais os filhos da
burguesia5, mas os filhos dos trabalhadores6 que, a partir de ento, esto nas
salas de aula das escolas brasileiras.
Em segundo lugar, em conseqncia do grande aumento do nmero de
alunos nas escolas, h necessidade de um nmero bem mais elevado de
professores, que tambm tm seu perfil alterado. Antes, provinham da elite,
eram usurios da variedade padro da lngua e tinham formao intelectual
de nvel elevado; partir dos anos 60, no mais pertencentes classe de
prestgio econmico e intelectual, muitas vezes no detm uma formao
ampla, nem tampouco o domnio profundo da variedade padro da lngua
portuguesa (embora se reconhea que alguns vinham das recm-criadas
Faculdades de Filosofia, formados em contedos de lngua, literatura,
pedagogia e didtica). Para reiterar essas informaes vejamos o que explica
Geraldi (1991) sobre essa realidade:
A democratizao, ainda que falsa, trouxe em seu bojo outra clientela. De repente, no damos aula s para aqueles que
pertencem a nosso grupo social. Representantes de outros grupos
esto sentados nos bancos escolares. Cresceu espantosamente,
de uns anos para c, a populao escolar brasileira. Antigamente
os professores eram da elite cultural e os alunos, da elite social;
os alunos aprendiam, apesar das evidentes falhas didticas;
aprendiam muito com professores altamente capazes por vocao
5 Que se deslocaram para a rede privada de Ensino Fundamental e Mdio.
6 Como conseqncia da crescente reivindicao pelas camadas populares do direito escolarizao,
democratiza-se a escola. Assim, nos anos 60, o nmero de alunos no Ensino Mdio quase triplicou e duplicou
no Ensino Primrio. Alunos com nenhuma prtica de letramento ou com prticas de letramento muito
diferenciadas daquela reconhecida e defendida pela escola adentram os muros escolares (Batista, 2003 e
Soares, 1996a).
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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e, sobretudo, pelas condies favorveis: sade, alimentao, farta
possibilidade de leitura [...] (Geraldi,1991:115-116)(nfase do
autor).
Mudam-se as condies histrico-sociais e as necessidades e
exigncias culturais, mudam-se os perfis de alunos e professores, as
condies escolares e pedaggicas tambm se alteram. Os manuais
didticos tambm se modificam como atesta Geraldi (1991):
Em relao ao trabalho do professor, a profecia de Comenius se
concretiza: tudo aquilo que dever ensinar e, bem assim, os modos como h de ensinar, o tem escrito como que em partituras (Geraldi, 1991: 93) (nfase do autor).
neste momento que se excluem as antologias e, nos livros didticos,
so includos exerccios de vocabulrio, de interpretao, de redao e de
gramtica. Para Geraldi (1991: 117) a soluo para o despreparo dos
professores pareceu ser colocar em suas mos um livro didtico que sozinho
ensinasse tudo o que fosse preciso aos alunos.
Batista (2003: 46) esclarece que, no Brasil, entre os anos de 1960 e
1970 um modelo de livro didtico se instituiu como forma de buscar assumir a
funo estruturadora do trabalho pedaggico. Esse livro didtico no se
caracteriza como um material de referncia, mas cadernos de atividades para
expor, desenvolver, fixar e, em alguns casos, avaliar o aprendizado.
Desse modo, o professor destitudo da tarefa de preparar sozinho
suas prprias aulas. Cabe, agora, aos autores de livros didticos grande
parte da responsabilidade de formular exerccios e questes, inclusive com a
orientao das respostas. A funo que resta a esse professor, segundo
Geraldi (1991:94), parece ser a de controlar o tempo de contato do aluno com
o material previamente selecionado, definir o tempo de exerccio e sua
quantidade, comparar as respostas do aluno com as respostas dadas pelo
manual do professor, marcar o dia da verificao e a prova.
Em linha semelhante, Soares (1996a) explica que tambm nessa
poca que se verifica o incio do processo de depreciao da funo docente.
Os salrios passam a ser reduzidos e as condies precrias de trabalho
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
15
obrigam os professores a buscarem estratgias que minimizem o trabalho na
atividade docente (j que precisam ocupar dois ou mais postos de trabalho
para ampliar a renda, por exemplo) e uma delas deixar nas mos do autor
do livro didtico a funo de organizar contedos e mtodos a serem
utilizados nas salas de aulas (Soares, 1996a: 24). Assim,
interessante verificar como, ao longo do tempo, os manuais didticos
vo progressivamente incluindo e ampliando o apoio ao professor para o
desenvolvimento das aulas [...] medida que mudam as condies sociais e econmicas dos professores, vo sendo acrescentados comentrios, notas, explicaes que orientam o trabalho do professor [...] (Soares, 1996a: 24) (nfase adicionada).
Embora tenham ocorrido mudanas nos livros didticos (que passam a
considerar, na disciplina Portugus, texto e gramtica organizados por
unidades, onde cada unidade se constitua de texto para interpretao e de
tpico gramatical)7, o estudo da. gramtica prevalece sobre o do texto.
Segundo ainda Soares (1996a), essa primazia (embora com certa
relativizao da gramtica no ensino da lngua materna) permanece ainda
hoje, nas escolas brasileiras, nas aulas de Lngua Portuguesa.
Uma outra mudana, radical nos termos de Soares (1996a: 18),
resultante da interveno poltica do perodo do governo militar, sobre a Lei
de Diretrizes e Bases da Educao nmero 5692/71, que reformulou o Ensino
Primrio, Ginasial e Mdio, segundo os objetivos e a ideologia desse governo
(a servio do desenvolvimento da industrializao). Nesse contexto, a lngua
passou a ser concebida como suporte para esse desenvolvimento e muitas
alteraes foram feitas, inclusive na prpria denominao da disciplina8.
7 Como exemplo de manuais com esse perfil, Soares cita um de sua prpria autoria: Portugus Atravs de
Textos, da dcada de 60.
8 Segundo Rojo (no prelo), a denominao Lngua Portuguesa, que recobria todos os nveis de ensino,
desdobrada em trs outras, a saber: Comunicao e Expresso, para as sries inicias do ento recm criado
1 Grau, em substituio dos antigos Primrio e Ginsio; Comunicao em Lngua Portuguesa, para as sries
finais desse Grau (antigo Ginasial) e, para o 2 Grau, antigo Cientfico/Clssico, a denominao de Lngua
Portuguesa e Literatura Brasileira.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
16
Para Clare (2002: 3), a proposta educacional passa, nesse momento
histrico, a ser condizente com a expectativa de se fornecer recursos
humanos que permitam ao Governo realizar a pretendida expanso industrial.
Neste mesmo perodo, aparece como referencial terico a Teoria da
Comunicao, advinda da rea dos meios eletrnicos. A concepo de lngua
como expresso esttica, prevalente inicialmente no ensino da Potica e,
posteriormente, no estudo de textos, substituda pela concepo da lngua
como Comunicao. Os objetivos passam a ser utilitrios: trata-se de se
desenvolver e aperfeioar os comportamentos do aluno como emissor e
recebedor de mensagens, atravs da utilizao e compreenso de cdigos
diversos verbais e no verbais.
Os livros didticos testemunham, mais uma vez, esse quadro de
alteraes na disciplina Lngua Portuguesa, devendo, no ensino de
Comunicao e Expresso, ser considerados os variados cdigos (verbal e
no verbal), ampliando-se, dessa forma, o conceito de leitura. Nesses livros,
ainda segundo Soares (1996a), os textos que circulam socialmente,
sobretudo os representantes da mdia, como textos de jornais e revistas,
publicidade, humor, histrias em quadrinhos, so os mais privilegiados,
embora no sejam desconsiderados os textos literrios.
Um ponto a ser destacado, nessa poca, a proposta de trabalho com
a linguagem oral em sala de aula, onde pela primeira vez, aparecem em
livros didticos de Lngua Portuguesa exerccios de desenvolvimento de
linguagem oral em seus usos cotidianos (Soares, 1996a: 19)9. Pode-se
exemplificar esse perfil de livro didtico a partir da apresentao de um LDP
de Magda Soares (1973), intitulado Comunicao em Lngua Portuguesa, em
que
A lngua vista, essencialmente, como instrumento de comunicao, meio
de emisso de mensagens pelo falar, pelo escrever; recepo de
9 Veremos adiante, no captulo que trata especificamente do ensino-aprendizagem da linguagem oral, que,
diferente dessa proposta que priorizava os gneros cotidianos, as propostas atuais visam, ao contrrio, ao
ensino-aprendizagem dos gneros orais formais e pblicos, ou seja, os gneros de menor conhecimento e
domnio por parte dos alunos e mais exigidos na atuao cidad.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
17
mensagens pelo ouvir e pelo ler. Vrias linguagens so estudadas: a
palavra, o desenho, o smbolo, a expresso facial, a mmica. A lngua
proposta ao aluno como um instrumento para conviver, para entrar em
contato com o outro, para formar-se, afirmar-se e acrescentar-se, em
inmeras atividades socializadas, como discusso dirigida, grupos de
discusso, painel, dramatizao, jogos, coro falado [...].Todas as
atividades so de comunicao ao. Por tudo isso, este livro, um livro de portugus, essencialmente um livro de comunicao. (Soares, 1973: 6-7) (nfase da autora).
Com o processo de redemocratizao do pas, a concepo de lngua
como instrumento de comunicao e meio de emisso e recepo de
mensagens j no encontra apoio, nem no contexto poltico e ideolgico, nem
nas novas teorias lingsticas. Assim, na segunda metade da dcada de 80, a
denominao da disciplina Comunicao e Expresso em Lngua Portuguesa
abandonada e retoma-se a antiga Portugus. Nesse contexto, os livros
didticos, que j tinham incorporado o texto para o ensino da lngua, vo
ampliar esse universo, principalmente sob influncia das teorias da lingstica
textual.
Segundo Geraldi, (1991:105) o texto sempre esteve presente nas salas
de aula, embora no com a relevncia adquirida a partir desse perodo. Essa
presena tinha uma forma de insero muito particular e, mesmo com a
predominncia do ensino gramatical, o texto era colocado como modelo em
vrios sentidos: Como objeto de leitura vozeada (leitura oralizada) onde a
leitura feita pelo professor servia de modelo para a leitura posterior dos
alunos; como objeto de imitao em que a leitura servia para o aprendizado
da produo de outros textos tanto escrito como orais, mas visando a um
modo de falar bem a lngua e como objeto de fixao de sentidos. Nesse
ltimo modelo havia um sentido autorizado, ora pela leitura feita pelo
professor ora pela leitura de algum crtico.
O texto ganha evidncia com a lingstica textual que se prope a
apresentar meios que permitam a representao dos mecanismos e
processos de tratamento do texto. Esses mecanismos e processos, quando
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
18
postos em ao pelos usurios da lngua, sofrem restries que obedecem a
determinaes psicolgicas e cognitivas, scio-culturais, pragmticas e
lingsticas10.
Entretanto, embora as perspectivas para o trabalho com o texto na sala
de aula sejam ampliadas com o advento da lingstica textual, exploram-se
especialmente suas propriedades estruturais, originando, segundo Rojo &
Cordeiro (2004: 9) a gramaticalizao dos eixos do uso, passando o texto a
ser pretexto tanto a para o ensino da gramtica normativa como para
gramtica textual, na crena de que quem sabe as regras sabe proceder11.
Dos fatos acima apresentados, compreende-se o processo de
transformao da lngua portuguesa (entidade poltico-cultural) na disciplina
Lngua Portuguesa (explorao dos objetos que a ela se relacionam) como
um processo mais amplo, em que a transposio didtica e a didatizao
(fortemente ligadas ao livro didtico) seriam dois dentre os seus vrios
aspectos. disso que trataremos a seguir.
1.3. As transformaes dos saberes tericos, a didatizao e o livro didtico
A transposio didtica
Os saberes tericos precisam ser transformados para entrar na sala de
aula e no simplesmente resumidos ou simplificados. Alm disso,
necessrio que sejam coerentes e estejam sustentados por fundamentos
epistemolgicos claros.
O termo transposio foi concebido por um socilogo, Verret (1975), e
desenvolvido por um didtico, Chevallard (1985). Para este autor, a
10 Para saber mais, entre outras obras desses autores, ler Kock, I. V. & Travaglia, L. C.(200 1) A coerncia
textual. 13 ed. So Paulo: Contexto; Kock, I. V. & Travaglia, L. C.(1997) O texto e a construo de sentidos.
So Paulo: Contexto; Fvero, L. L. (2001) Coeso e coerncia textuais. 9 ed. So Paulo: tica.
11 Essas crticas so retomadas mais adiante, quando se discute sobre o perfil da disciplina Lngua
Portuguesa atualmente.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
19
transposio didtica se define por um processo de passagem de um
contedo de saber preciso a uma verso didtica.
A anlise dessa passagem, ou seja, desse processo de transformao,
implica a compreenso de um esquema, a saber: objeto de saber objeto a ensinar objeto de ensino. A passagem do saber, atravs da constituio desses diferentes objetos, faz-se na transformao, na variao e, s vezes,
na substituio (Chevallard, 1985: 49).
Dessa forma, a cada momento, quando o objeto de saber se constitui
em objeto de ensino e, em seguida, em objeto ensinado, o contedo
trabalhado por adaptaes sucessivas, ou seja, o trabalho de transposio
um trabalho que continua aps a introduo didtica do objeto de saber.
Semelhantemente, para Schneuwly (1995a), a transposio didtica
ocorre quando se retira um objeto que funciona dentro de certo contexto
social, exterior ao sistema de ensino-aprendizagem, para torn-lo objeto de
ensino:
Este movimento de tirar o objeto de seu contexto para ser colocado dentro
de outro para ser ensinado, transforma fundamentalmente o sentido deste
objeto. Por exemplo, o fato de se tomar um gnero de discurso e coloc-lo
em contexto escolar, faz com que este gnero no tenha mais a mesma
funo, ele se transformou em um objeto de ensino. Para os alunos,
subsistem os traos de seu funcionamento anterior []. No se pode
ensinar sem que se faa a transposio (Schneuwly, 1995a: 14-15).
Esse mesmo autor ressalta que, para ensinar, necessrio que se
saiba o que se ensina; necessrio tomar o saber em dois sentidos: um
primeiro sentido seria o de ter um projeto de ensino, uma inteno, e o outro
sentido seria o de conhecer de forma consciente; ter uma conscincia
reflexiva do que ensinar. Portanto, sem o reconhecimento desses
sentidos, no existir ensino, mas imitao ou iniciao no nvel puramente
prtico (Schneuwly, 1995b: 48).
Ainda na esteira de Schneuwly (1995b), depreende-se que o saber,
ingrediente essencial do ensino, existe em princpio como saber til dentro
das situaes sociais diversas e no para ser ensinado. E, quando ele
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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transposto para a situao de ensino, transforma-se em saber a ser
ensinado, ou seja, passa a se constituir como um outro saber, modificado
pela fora mesma do objetivo de ensino.
Mas afinal, quais saberes so passveis de ser ensinados? Schneuwly
(1995b: 49) explica que, embora um saber se justifique por sua pertinncia
para a ao dentro de uma dada situao, diferencia-se quando se trata da
realidade de ensino, em que, segundo ele, o saber saber a ser ensinado;
saber a ser aprendido; saber ensinado no lugar de ser um saber que dever
apenas ser utilizado. Diante disso, a questo no a pertinncia do saber,
mas a sua legitimidade.
necessrio um reconhecimento social, uma legitimidade, para que o
saber possa vir a ser um saber a ser ensinado. Essa legitimidade lhe dada,
dentre outros, pelos saberes ditos tericos, ou seja,
Os saberes utilizados ao mesmo tempo para produzir um novo saber e
para estruturar o saber novamente construdo dentro de um conjunto
terico coerente. Um saber que, em um dado momento histrico,
considerado pela sociedade como um saber terico por suas
caractersticas visveis, notadamente acadmicas, segundo as instituies
que o gera (Schneuwly, 1995b: 49).
Barbosa (2001: 112-113) explica haver pelo menos duas maneiras de se
pensar a transposio didtica. A primeira seria refletir que ela poder implicar numa
simplificao dos objetos das cincias, para que os mesmos possam ser
compreendidos pelos alunos. Nesse sentido, pensar-se-ia numa adaptao para
facilitar a apreenso de certos contedos pelos alunos. Mas, para a autora, a
transposio didtica concebida dentro de tal perspectiva colocaria escola um
papel eminentemente reprodutor.
O segundo modo de compreender a transposio didtica seria antes, em
oposio adaptao e simplificao de objetos, pensar nas dimenses ensinveis
dos objetos que se pretende ensinar,
j que no se objetiva formar fsicos, gegrafos, lingistas, matemticos
etc. A partir dessa definio, os objetos teriam que ser decompostos,
recortados (e no simplificados), para que pudessem ser aprendidos. No
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caso especfico do ensino de lngua materna, preciso, ento, a partir de
definies curriculares mais gerais, definir que gneros seriam focados e
em que grau de aprofundamento (Barbosa, 2001: 113).
Em resumo, uma transposio no pode ser feita de forma direta e imediata,
o que significa dizer que os saberes ensinados na escola no podem ser simples
adaptaes ou decalques das teorias elaboradas por pesquisadores ou experts.
Os gneros orais formais e pblicos so exemplos desse processo. Pela urgncia
das transformaes da sociedade moderna, gneros como debate, seminrio,
apresentaes orais, necessrios ao funcionamento dessa sociedade por sua
pertinncia, passaram a ser considerados importantes para a formao escolar. Um
saber que precisa, portanto, ser ensinado e aprendido por sua legitimidade para a
ao dentro do contexto scio-histrico atual, que exige que os que sujeitos sejam
preparados para as situaes comunicativas diversas, da sua transformao em
objeto de ensino-aprendizagem. Esses gneros passam a ser, ao mesmo tempo,
instrumentos de comunicao e objetos de ensino, ou seja, saberes sociais que se
transformaram em objetos de ensino, pelo objetivo mesmo da transposio didtica.
A didatizao
Transformados em saberes a serem ensinados, os saberes precisaro
tambm ser didatizados e, embora fortemente relacionados entre si, os
processos de transposio didtica e de didatizao no so sinnimos.
Enquanto o processo de transposio se ocupa da transformao dos
saberes de referncia em saberes a serem ensinados, a didatizao seria a
maneira de organizar esses saberes para a compreenso do aluno.
De maneira simplificada, poderamos dizer que a didatizao o
como, por meio de exerccios e atividades, os saberes so expostos com a
finalidade de concretiz-los em saberes ensinados e aprendidos.
A importncia do livro didtico no processo de didatizao , sem
dvida, incontestvel, j que, como veremos no captulo que segue, o livro
didtico se transformou no responsvel (quase que nico) pelos
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procedimentos de organizao e elaborao de contedos, exerccios e
avaliao/correo dos saberes a serem ensinados12.
Vale lembrar que, no processo de didatizao, est implicada ainda a
questo da sistematizao desses saberes. Tal sistematizao no estaria
necessariamente vinculada a uma ordem, um passo a passo ou ao relevo
dados a esses saberes, mas sim a uma organizao do todo que componha
cada objeto, de forma que os saberes referentes a esses objetos possam vir
a ser apreendidos e aprendidos de fato, mas considerando a dinmica de
cada sujeito aprendiz.
A disciplina escolar, a transposio didtica, a didatizao e o livro
didtico se relacionam to fortemente que diramos se constiturem no
corao do currculo. Pois , basicamente, atravs deles que se coloca aos
jovens uma organizao, um recorte e uma hierarquia do campo de saber.
Diramos, ainda, que o livro didtico poderia at ser considerado como
ator da transposio didtica e da didatizao, pois ele materializa os
objetos e opera na construo e cristalizao mesmas desses objetos a
serem ensinados, para que passem a objetos realmente ensinados.
Aqui, particularmente tratando do livro didtico de Lngua Portuguesa,
reconhecemos ser ele que, ao longo dos anos, vem auxiliando o professor no
ensino da leitura, da escrita e, agora, da linguagem oral formal e pblica. Da
a necessidade de compreend-lo de forma mais ampla, no bastando a idia
de que seja, simplesmente, um suporte de textos e de atividades a serem
trabalhados pelos alunos. Disso que nos ocuparemos a seguir.
O livro didtico
Em 1979, Richadeau, em um trabalho para a UNESCO, j dizia que o
livro escolar representa o meio de ensino mais largamente utilizado no
12 Esclarecemos que no estamos, aqui, questionando a capacidade e o papel do professor em sala de aula,
mas h de se reconhecer os diversos fatores como, por exemplo, as longas jornadas de trabalho , que
foram o professor a contar com o livro didtico como um aliado forte na seleo de contedos e preparao
de suas aulas.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
23
mundo e para se definir o que vem a ser um livro escolar, deve-se evitar
qualquer qualificao formal ou restrita (Richadeau, 1979: 47).
Para esse autor, pela complexidade mesma do livro didtico, por sua
riqueza e diversidade, por sua importncia real ou potencial, esse se torna
um objeto privilegiado para a pesquisa.
Ainda segundo Richadeau, o livro escolar seria desde um atlas, um
dicionrio, uma enciclopdia, uma antologia, at um livro didtico
propriamente dito, quer se encarregue do aprendizado de leitura, de
literatura, de lngua materna, de gramtica ou de matemtica. No limite, todo
texto impresso (jornal, obra literria, tcnica, filosfica, cientfica) pode
exercer o papel de livro escolar, na medida em que seja integrado
sistematicamente a um processo de ensino e de aprendizagem.
Em funo do seu modo de integrao ao processo de ensino-
aprendizagem, pode-se colocar em duas grandes categorias os livros
escolares: de um lado, os que apresentam uma progresso sistemtica e, de
outro, as obras de consulta e de referncia (Richadeau, 1979: 51). Significa
dizer, nas palavras de Soares (1996b), que a primeira categoria seria a dos
livros feitos para ensinar e a segunda, a dos livros utilizados para ensinar 13.
Choppin (1980), tambm v o livro didtico como um objeto mltiplo e
complexo, que no se reduz a refletir mais ou menos os programas oficiais de
ensino, pois toca diversos domnios da sociedade, o que levaria a dizer que
se apresenta como uma sntese da sociedade que o produz. O livro didtico
seria, paradoxalmente: um objeto, um suporte, um refletor da sociedade, um
instrumento pedaggico e um veculo (Choppin, 1980: 1-3).
a) Como objeto: porque sua fabricao evolui, de acordo com o progresso
das tcnicas do livro; sua comercializao e sua distribuio evoluem,
com as transformaes do mundo editorial, dos contextos econmico,
poltico e legislativo;
13 Estamos, como vimos, privilegiando a terminologia livro didtico quando se tratar de livros que se
enquadram na categoria dos que so produzidos a partir de uma sntese dos conhecimentos e modos de
ensino exigidos para uma dada disciplina e que tm por objetivo auxiliar no ensino dessa disciplina.
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b) Como suporte, por muito tempo privilegiado, do contedo educativo,
como depositrio dos conhecimentos e das tcnicas cuja aquisio
julgada pela sociedade;
c) Como espelho da sociedade: embora deformado, incompleto, mas um
grande revelador do estado de conhecimento de uma poca e dos
principais aspectos e esteretipos de uma sociedade;
d) Como instrumento pedaggico: por ser inscrito em uma longa tradio
inseparvel, tanto na sua elaborao como em seu emprego, das
estruturas, mtodos e condies de ensino de seu tempo;
e) Como veculo: alm das prescries estreitas de um programa, de um
sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura; o livro didtico
participa, assim, do processo de socializao (Choppin, 1980: 1-3).
Batista & Rojo (2004: 2), tomando uma outra obra de Choppin (1992),
explicam que este terico distingue, ainda, quatro grandes tipos de livros
escolares, organizados de acordo com sua funo no processo de ensino-
aprendizagem. Segundo esses autores, o primeiro tipo seria os manuais ou
livros didticos qualificados como utilitrios da sala de aula. Nessa categoria
se enquadrariam:
Os livros produzidos com o objetivo de auxiliar no ensino de uma
determinada disciplina, onde seria apresentado um conjunto extenso de
contedos do currculo, de acordo com uma progresso, sob a forma de
unidades ou lies e por meio de uma organizao que favorece tanto
usos coletivos (em sala de aula), quanto individuais (em casa ou em sala
de aula).
No segundo tipo, estariam categorizados os livros paradidticos ou para-
escolares. Essas obras tm carter de complementaridade dos contedos
estudados em determinada disciplina; em outros termos, tm por funo resumir,
intensificar ou aprofundar contedos especficos do currculo de uma disciplina, seja
por meio de uma utilizao individual em casa, seja por meio de uma utilizao
orientada pelo professor, na escola (Batista & Rojo, 2004: 2).
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Como exemplo, explicam que o programa de aquisio e distribuio de livros
para o Ensino Fundamental do Estado de So Paulo oferece uma abertura ao
professor para que escolha livros didticos ou paradidticos e que, na maioria das
vezes, os paradidticos entram como auxilio complementar do trabalho pedaggico
estabelecido a partir de um livro didtico. Afirmam ainda que,
Na tradio brasileira, esse tipo de livro escolar abarca, prioritariamente,
obras que aprofundam ou enriquecem um contedo especfico de uma
disciplina (o tema da escravido ou da vida cotidiana no Brasil Colnia, por
exemplo) ou que se voltam para a formao do leitor (como os ttulos de
literatura infantil, em geral, apresentados nos catlogos de editoras como
obras paradidticas) (Batista & Rojo, 2004: 2).
Os dois ltimos tipos, ainda segundo Choppin (1992, apud Batista & Rojo,
2004: 3-4), seriam, respectivamente, os livros de referncia, como dicionrios, atlas
e gramticas, utilizados como apoio aos aprendizados, ao longo da escolarizao e
as edies escolares de clssicos, que renem, de modo integral ou sob a forma de
excertos, as edies de obras clssicas (gregas, latinas, estrangeiras ou em lngua
materna) abundantemente anotadas ou comentadas para o uso em sala de aula.
Puech (1999) no v de forma diferente dos outros autores; para ele, o
livro didtico tambm um complexo de representaes que busca refletir,
ao mesmo tempo, as necessidades dos alunos, as atividades a serem
desenvolvidas na sala de aula e responder aos documentos oficiais. E mais,
estes diferentes componentes so intrinsecamente indissociveis e
constituem o prisma dentro do qual se reflete uma representao de saberes
disciplinares, da disciplina enquanto matria de ensino e complexidade de
contedo.
Concordamos com esses autores que, em comum, vem o livro didtico
como complexo, mltiplo e paradoxal. Em face dessas caractersticas e
considerando toda a histria da construo do livro didtico no nosso pas14,
traamos uma hiptese, ancorada na concepo de gnero de discurso de
14 No se pode negar que o livro didtico de Lngua Portuguesa um produto scio-historicamente construdo
ao lado da disciplina Lngua Portuguesa e que inevitavelmente reflete, grosso modo, os contextos scio-
polticos e econmicos de cada momento.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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Bakhtin (1952-53/1979), de que o livro didtico de Lngua Portuguesa poder
ser compreendido no como um suporte de textos e atividades,
simplesmente, mas como um gnero do discurso15.
Conforme Bakhtin (1952-53/1979), uma carta lida em um romance no
mais a mesma carta, ela foi transformada pelo lugar, pelo novo contexto
social que agora ocupa no romance. O livro didtico, igualmente,
construdo a partir de um conglomerado de outros gneros que saem de um
determinado contexto social para entrar em outro, por meio da transposio
didtica: o contexto escolar. Por exemplo, um conto infantil, o extrato de uma
pea teatral de Shakespeare, uma notcia jornalstica ou um extrato filosfico
transpostos ao livro didtico de Portugus, embora guardem suas
caractersticas particulares, intercalam-se no texto no gnero livro didtico,
com suas funes alteradas pela didatizao.
Desse ponto de vista, no LDP incluem-se textos cujos gneros podem
ser considerados variantes dos gneros de referncia (Dolz, Scnhneuwly &
Haller, 1998: 179). O conto infantil, ao entrar no LDP, por exemplo, passa a
ser uma ferramenta, um instrumento que, embora possa tambm funcionar
como objeto de conhecimento, tem essencialmente a funo do ensino de uma variedade de contedos. O mesmo ocorre tambm com os demais
gneros de referncia.
Dessa forma, o livro didtico de Portugus apreende, em conjunto,
diferentes discursos e espaos discursivos imbricados em seus campos de
produo e de circulao. O livro didtico, concebido como um gnero,
concretiza um exemplo da dinmica viva dos gneros, pois,
Os gneros do discurso tal como compreendidos por Bakhtin, explicitam
uma gama pluralista de aspectos composicionais, que incluem desde
procedimentos construtivos, at cdigos culturais onde os desdobramentos
temporais se reportam ao grande tempo em que a variabilidade de usos da
15 A discusso aqui estabelecida objetivou, principalmente, uma melhor compreenso do corpus com que
estamos trabalhando, os livros didticos de Lngua Portuguesa (LDP). Tal discusso nos levou a considerar
esse objeto como um gnero de discurso, tal como defendem Bunzen (2004, 2005) e Bunzen & Rojo (no
prelo), e no como um suporte.
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lngua pode ser focalizada em sua dinmica criadora (Machado, 2003:
248).
Ou ainda, nas prprias afirmaes de Bakhtin (1986), em que se l
que a vida dos gneros eternamente viva, j que os gneros renascem e se
renovam em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada
obra individual de um dado gnero. O gnero vive no presente, mas recorda
seu passado, seu comeo. representante da memria criativa no processo
de desenvolvimento literrio. precisamente por isso que tem a capacidade
de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento (Bakhtin,
1986, apud Machado, 2003: 247). Conforme a conceituao de gnero do
discurso de Bakhtin (1952-53/1979), o livro didtico tambm organizado por
uma forma composicional (sumrio, instrues para o professor, captulos ou
unidades, sees etc.), estilo e tema(s)16, pois, embora cada autor organize
seu livro com certa particularidade (estilo de autor), na organizao mesma
da obra, em sua estruturao,, em sua seleo temtica ou, ainda, no uso de
um certo estilo verbal (estilo de gnero injuntivo), um livro didtico
imediatamente reconhecido como tal pelo conhecimento que os sujeitos tm
de suas caractersticas relativamente estveis.
Apoiando-se nas posies bakhtinianas, Canelas-Trevisi (1997)
concebe tambm o livro didtico como um gnero do discurso. Partindo do
princpio de que a variedade infinita dos gneros est ligada variedade dos
domnios das atividades humanas. Segundo essa autora, pode-se afirmar que
o texto reflete as condies especficas do domnio da atividade de que ele
emana e, embora ele seja incontestavelmente nico, divide com o conjunto
de outros textos a especificidade de uma dada esfera de trocas. Esta
especificidade se traduz pela forma de organizao de uma linguagem, de
certa maneira, convencionalizada: o gnero, o qual se ajusta ao querer
dizer do locutor.
Segue suas explicaes dizendo que, para identificar o gnero de um
dado texto emprico, o locutor se funda sobre certo grau de conhecimento do
contexto de onde o texto provm e opera, por meio de inferncias, a partir da 16 Ver Bunzen & Rojo (no prelo) a respeito.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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organizao e das unidades lingsticas reconhecidas no texto. Esclarece,
ainda, que, embora com aspectos formais bem conhecidos, os textos de um
gnero podem apresentar grandes diferenas e cita como exemplo o gnero
livro didtico. Segundo suas palavras:
Tomemos o gnero livro didtico. Produzido em um contexto
freqentemente identificvel, o livro didtico tem objetivo complexo de
fazer agir, informar, explicar etc. e essas finalidades mltiplas so
refletidas na organizao formal de sua estrutura geral (Canelas-Trevisi, 1997: 159) (nfase adicionada).
Semelhantemente, para Bunzen (2005), o livro didtico de Lngua
Portuguesa se configura como um enunciado em um gnero do discurso
secundrio, produzido por diversos agentes como os autores, editores,
ilustradores, numa instncia pblica, que seriam as editoras, e que procura
satisfazer as necessidades de ensino-aprendizagem formal da lngua
materna. Para efetivar tal objetivo, segundo o autor, o LDP seleciona
determinados objetos de ensino que comporiam seu(s) tema(s) que
recebero um tom valorativo, dependendo do ponto de vista
especificamente adotado.
Bunzen & Rojo (no prelo) entendem que a compreenso do LDP como
gnero escolar de discurso favorece uma maior visibilidade no somente na
sua apreciao ou na sua anlise, mas tambm em seu uso sobre as
apreciaes de valor sobre ensino de lngua presentes no projeto discursivo
do autor.
Os autores identificam certa regularidade na forma de composio e
estilo de gnero do livro didtico de Portugus, como, por exemplo,
y a intercalao de textos de gneros e esferas variados, regidos e articulados para certo efeito de sentido pelo projeto, pela voz e pelo
discurso autoral;
y a diviso do livro em captulo ou unidades, sees e subsees, onde os temas so selecionados a partir do projeto autoral.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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Segundo eles, essas escolhas refletem e refratam uma apreciao
valorativa do autor sobre o que e como se faz o ensino de lngua materna. Constatam tambm que, assumida a postura autoral no gnero (explicativa,
expositiva, injuntiva), diferentes autores, dialogando com interlocutores de
diferentes nveis de ensino, vo, conseqentemente, articular discursos
didticos tambm bastante diferenciados, sobretudo, pela maneira como
orquestram o coro de vozes presentes no LDP (Bunzen & Rojo, no prelo).
Em se tratando do uso do LDP, principalmente no momento da escolha feita
pelos professores, segundo esses autores, considerar o LDP como um enunciado
num gnero, portanto nico e irrepetvel, j que apresenta uma postura autoral e um
projeto discursivo singulares, facilitaria fazer escolhas mais bem embasadas em que
tais professores (e conseqentemente os alunos) podero se relacionar com o
discurso do autor de maneira respondente, por meio de rplica e compreenso ativa,
na medida em que podero compreender, criticar e responder postura e ao projeto
autoral. Talvez isso possa tambm contribuir para que o LDP deixe de ser
meramente consumido e passe a ser um elemento do dilogo plurivocal de sala de
aula (Bunzen & Rojo, no prelo).
Compreender o livro didtico de Portugus como um gnero de
discurso (complexo e mltiplo, scio-historicamente construdo e situado na
interseco das diferentes esferas de produo da vida social, ou seja,
imbricado nos diferentes campos ou esferas, como o religioso, o poltico, o
filosfico, o cientfico etc.), ajudar-nos- a analis-lo como um enunciado que
dialoga com os novos paradigmas de ensino da Lngua Portuguesa, com os
documentos oficiais (PCN) e com as orientaes das sucessivas avaliaes
(PNLD). Com isso, deixa de apresentar um discurso monolgico do autor, j
que, dentro da obra, estas outras vozes, num movimento dialgico crescente,
estaro presentes.
1.4. A disciplina Lngua Portuguesa atualmente e o PNLD
As pesquisas e a mudana de paradigmas
Apesar de se reconhecer que o ensino-aprendizagem da Lngua
Portuguesa conquistou grandes avanos com a proposio do texto como
objeto de ensino da lngua escrita e com as propostas da lingstica textual,
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
30
nas dcadas de oitenta e noventa do sculo passado, o texto era ainda
compreendido por muitos professores e autores de livros didticos como um
objeto neutro, visto apenas como artefato do qual o professor retira as
questes gramaticais.
Essas questes levaram a uma discusso sobre as mudanas nos
saberes de referncia (lingstica, anlises de discurso, teorias de
enunciao) que vm lentamente sendo incorporadas aos documentos
oficiais e s transposies e didatizaes, atingindo, assim, parcialmente, o
LDP.
Alguns pesquisadores, com destaque aqui para Rojo (2001b: 164)17,
vem um trabalho centrado na estrutura gramatical da lngua, com um fim em
si mesmo como muito limitador e insatisfatrio, pois o ensino-aprendizagem
de Lngua Portuguesa no Ensino Fundamental no se dedica a formar
analistas de textos ou revisores gramaticais, mas cidados capazes de
interagir criticamente com os discursos-alheios e com o prprio discurso.
De acordo com Rojo (2001b), para a construo de uma perspectiva
didtica para o ensino de lnguas, baseado dos estudos enunciativos
bakhtinianos, mais especificamente na Teoria dos Gneros do Discurso
(Volochnov, 1929; Bakhtin, 1953/1979), foram feitas discusses sobre as
resistncias, sobrevivncias e lacunas, no ensino-aprendizagem da Lngua
Portuguesa, que convivem com e traduzem certos saberes da lingstica
textual e das teorias cognitivas de processamento e memria como, por
exemplo, as noes de coeso e de coerncia textual. Em suas palavras,
Os processos discursivos (as situaes de produo dos discursos, a
interao entre os interlocutores, a subordinao das formas significao
e a marcao ideolgica dos textos) no eram considerados no trabalho de 17 Destacamos essa autora por entender que suas produes e pesquisas apresentam uma preocupao
bastante forte com a realidade das salas de aula de lngua materna no Brasil. Ser, portanto, a partir de seu
texto de 2001, intitulado A teoria dos gneros em Bakhtin: Construindo uma perspectiva enunciativa para o
ensino de compreenso e produo de textos na escola, em que expe a histria da construo de uma
perspectiva didtica para o ensino de lngua materna, elaborada a partir dos estudos enunciativos
bakhtinianos (mais especificamente, da Teoria dos Gneros do Discurso), que descreveremos, grosso modo, o
processo dessa construo. Lembramos, ainda, que a teoria bakhtiniana tambm inspira, em parte, os
Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa (Brasil/MEC, 1998).
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ensino-aprendizagem de lngua, j que, balizado pelos conhecimentos
pautados na viso cognitivista advinda das teorias psicolgicas que d
linguagem ela mesma um papel reduzido bem como pelo grau de
generalizao presentes nas descries de tipos de textos da Lingstica
Textual, o professor implementava um trabalho com o texto, mas a nfase
era dada ao ensino gramatical (inclusive gramtica de texto) (Rojo, 2001b:
164).
Uma outra lacuna apontada era a do tratamento das relaes entre a
linguagem oral e a linguagem escrita, ainda bastante marcada por uma viso
dicotmica. Em outros termos, prevalecia a viso de que a linguagem oral se
relacionava com a escrita pela ordem da interferncia negativa. Um
julgamento pautado por um critrio de pureza, a pureza projetada como
caracterstica ideal da escrita que no permite, pois, que se reconhea na
mesma a presena do oral no escrito, como um dado da constituio
heterognea da escrita (Corra, 2001: 146-147).
A linguagem oral, que ainda no era concebida como objeto de ensino,
tinha apenas a funo de mediar as interaes em sala de aula. Isso gerava
a compreenso de que o aluno, quando chegava escola, dominava a
linguagem oral18 e, portanto, no caberia ensin-la. Esta postura deixava de
fora, novamente, um campo fundamental para a constituio da cidadania,
que era o campo da construo do oral pblico (Rojo, 2001b: 164).
Alm dessas questes, havia a que Rojo (2001b) qualifica como de
primeira importncia do ponto de vista terico - a perspectiva scio-histrica
ou scio-cultural vygotskiana -, que, por muito tempo tomada como saber de
referncia, sustentava as investigaes dos pesquisadores, mas que, no
entanto, carregava alguns descompassos srios com as teorias cognitivas de
processamento e de memria e com as teorias lingsticas e textuais.
Na vontade de acertar os passos, de acordo com Rojo (2001b), as
discusses centraram-se, a partir da obra do Crculo de Bakhtin, em uma
releitura da noo de interao e em uma reviso das verses desta noo
18 O aluno poderia sim dominar alguns gneros orais, os de uso mais cotidianos, mas, mesmo assim, nada
garantia que dominasse os gneros formais e pblicos, que no so ensinados.
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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nos trabalhos de Vygotsky e dos vygotskianos. Essa discusso, segundo a
autora, tambm girava em torno das noes de internalizao/apropriao e
de ZPD (Zona Proximal de Desenvolvimento), de importncia crucial para a
lingstica aplicada ao ensino de lnguas.
Nesse caminho, ainda de acordo com a referida autora, os fenmenos
abrangidos pela noo de ZPD, tais como a interao e a internalizao, embora
nas duas ltimas dcadas do sculo passado tenham se apresentado como um rico
campo vygotskiano de investigao, mostrou-se tambm um controverso campo de
debates.
A autora concorda com Wertsch (1985) quando atribui a dois aspectos o
grande interesse de pesquisas e o nmero de trabalhos de enfoque diferenciado
dado noo de ZPD nessa poca. O primeiro diz respeito inteno vygotskiana
original de resolver problemas prticos de psicologia da educao, ligados
avaliao das capacidades intelectuais das crianas e s prticas de instruo e o
segundo remete formulao insuficientemente desenvolvida da noo na obra do
autor. Mas para Rojo (2001b: 168),
justamente esta elaborao insuficiente - que torna as noes ricas,
porque polissmicas que implicou que investigadores, interessados em
enfoques diversos da construo do conhecimento, atribussem aos
conceitos interpretaes e leituras muito diversificadas, a ponto de, s
vezes, encontrarmo-nos diante de um dilogo de surdos.
Seguindo ainda a exposio de Rojo, verifica-se que, nas diversas
discusses, pelo menos trs vertentes interpretativas foram vislumbradas. A
primeira a vertente centrada na perspectiva cognitivista que foca o aspecto
intrapessoal. A segunda, dentro de uma perspectiva interacionista,
centrada no aspecto interpessoal, ou seja, nas pautas de interao
presentes no desenvolvimento potencial e tidas como responsveis pela
internalizao e a terceira, a vertente que se insere dentro de uma
perspectiva discursiva e que tende a no dissociar interao, discurso e
conhecimento, cuja base de anlise essencialmente a linguagem (e no a
(inter)ao ou os conceitos). (Rojo, 2001b: 169).
A LINGUAGEM ORAL NOS LIVROS DIDTICOS DE PORTUGUS DO ENSINO FUNDAMENTAL-3 E 4 CICLOS: ALGUMAS REFLEXES
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Para a autora, as duas ltimas vertentes se aproximam, no que diz respeito
s abordagens mais propriamente lingsticas ou discursivas. A primeira se
aproximaria das abordagens mais pragmticas ou comunicativas (sociolingstica
interacional, etnografia e micro-etnografia da fala, anlise conversacional) e a ltima,
das abordagens discursivo-enunciativas (anlise de discurso de linha francesa ou
mesmo anlise crtica do discurso; teoria(s) da enunciao).
Nessa primeira abordagem, a interao vista, em alguns casos como ao
conjunta, interpessoal, entre indivduos enfocados de um ngulo estritamente
psicolgico e pragmtico. Alm disso, muitas vezes tambm, a perspectiva de
anlise micro (sociolgica ou psicolgica), envolvendo uma abordagem sociolgica
quase que durkheimiana. J na segunda abordagem, interao vai-se traduzir
quase que imediata e automaticamente seja em discurso (formaes discursivas e
ideolgicas), seja em enunciao, determinada pelas situaes socio-histricas de
produo dos enunciados e pelos gneros do discurso em circulao social (Rojo,
2001: 197).
Por fim, a autora sintetiza que foi justamente nessa ltima vertente e nessa
releitura da noo de interao que o grupo de pesquisadores a que se filia optou
por se aprofundar, trabalhando a partir da teoria enunciativa bakhtiniana e
objetivando sua transposio para o campo do ensino-aprendizagem de linguagem.
Como fruto dessas discusses tericas, foi proposta uma
ressignificao do processo de ensinoaprendizagem e a eleio de um novo
objeto de ensino da lngua materna. Dessa forma, o processo de ensino-
aprendizagem, sendo
Um processo social e histrico, culturalmente determinado e grandemente
dependente das prticas interacionais, e re-enfocada a interao como
circulao de discursos (enunciao) e a internalizao como apropriao
de discursos em circulao, o objeto prioritrio