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Aias Entre A Distopia E A Realidade – Analise Sobre O Simbolismo
Presente Na Série The Handmaid’s Tale1
Alusk Maciel SANTOS2
Gilmar SANTANA3
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN
Resumo
No ano de 2018, uma série de manifestações sobre as causas feministas tomaram conta do
cenário sociopolítico no Brasil, Argentina e Estados Unidos, utilizando principalmente a
causa da descriminalização do aborto. Os protestos chamaram a atenção dos portais de
notícia na internet devido ao fato de utilizarem a série americana 'The Handmaid's Tale',
inspirado na obra homônima de Margaret Atwood, para embasar os movimentos em
questão. Questionamentos sobre os aspectos que compõem a série, como o simbolismo e o
discurso, necessitam serem interpretados, para melhor compreender como estes elementos
são utilizados para prospectar os espaços midiáticos necessários na atualidade. O
simbolismo revela-se como um componente fundamental para a realização de uma
convergência diante da polifonia presente nas esferas sociais, utilizando a imagem da aia
como um objeto que visa romper com as ideologias já existentes e impostas pela sociedade
cristalizada. A compreensão dos resultados obtidos deram-se através de teorias que
dialogam sobre ideologia e semiótica, na perspectiva dos autores Terry Eagleton (1997) E
Roland Barthes (1984), respectivamente.
Palavras-chave: Sociologia da Imagem; Sociologia da cultura; Ideologia; Semiótica;
Feminismo
Introdução
Não é de hoje que a temática sobre o futuro e realidades alternativas, repletas de
medo e incertezas, permeiam o campo da literatura. Autores como Yevgeny Zamyatin,
George Orwell e Aldous Huxley detém obras consagradas que retratam entrave entre o
homem e a sociedade caótica. Surge então o gênero da ‘distopia’, que se contrapõe ao
idealismo proposto pela obra de Thomas More, A Utopia (1516), servido de campo para
diversos outros escritores utilizarem suas criatividades para imaginarem um futuro (ou
realidade alternativa) composto por medos e incertezas.
1 Trabalho apresentado no GT História da Mídia Visual integrante do XII Encontro Nacional de História da Mídia.
2 Mestrando do curso de Ciências Sociais pelo PPGCS/UFRN, email: [email protected]
3 Orie
ntador do trabalho. Professor Doutor do PPGCS/UFRN, email: [email protected]
2
A partir disso, as distopias adentraram novos espaços midiáticos, através das
adaptações das obras para o cinema, como no caso de ‘1984’ de Orwell, possuindo duas
adaptações, a primeira sendo de 1956, e a segunda no próprio ano de 1984. A produção de
filmes do gênero se acentua bastante a partir dos anos 80, contando com títulos como Mad
Max, Matrix, Robocop, O Exterminador do Futuro, Ghost In The Shell, dentre outros.
Recentemente, a partir da primeira década do século XXI, as adaptações dos livros
de Jogos Vorazes (Suzanne Collins), Divergente (Veronica Roth), Maze Runner (James
Dashner) reacenderam o interesse do público pelas distopias, principalmente pelo fato das
obras possuírem sequência de livros (as chamadas ‘sagas’ pelo público), o que implica
diretamente em uma produção cinematográfica maior, consequentemente gerando lucros
maiores às produtoras de filme4.
Diante disso, em 2017, a Hulu LLC estreou para os seus assinantes a adaptação do
romance literário ‘O Conto da Aia’ (The Handmaid’s Tale), obra escrita por Margaret
Atwood em 1985, tornando-se a segunda adaptação da obra – a primeira teve sua estreia nos
cinemas em fevereiro de 1990, pelo diretor Harold Pinter. A nova roupagem da obra chega
às telas através do formato de série televisiva, contando atualmente com duas temporadas5.
A série vem conquistando um grande público e tornando-se assunto devido a
intertextualidade presente, convergindo com o atual momento social vivenciado ao redor do
globo – como a constante ameaça de governos fascistas, crises políticas, divergências entre
nações, imigrações em massa (RAMOS, 1996). A polifonia presente no discurso da obra se
encarrega de causar uma ruptura no expectador, trazendo uma série de reflexões à tona
sobre a decorrência de fatos que se assemelham ao cenário distópico descrito.
A partir disso, a trama está conquistando espaço, e tornando-se aclamada6, por
retratar temas polêmicos e bastante atuais, como a luta feminista diante de uma sociedade
machista, a retomada de costumes de conservadoristas, além de críticas a métodos de
4 As sequências se tornaram uma tática mercadológica bastante promissora para a indústria cinematográfica,
efeito que ficou mais evidente após a saga Harry Potter, que contou com sete livros, oito filmes, e um
altíssimo retorno lucrativo à Warner Bros (que detém os direitos e produção da série). 5 Devido ao sucesso da série, uma nova temporada está prevista para meados de 2019. A estrutura da produção com
episódio de 55 minutos de duração em média, possuindo atualmente (2019) um total de 23 episódios, dez pertencentes a
primeira temporada, e os treze restantes a segunda. 6 Ganhadora de oito Emmy Awards no ano de 2018, incluindo os prêmios de ‘Melhor Série Dramática’, ‘Melhor Atriz em
Série Dramática’, ‘Melhor Direção em Série Dramática’ e outros. Em 2018, conquistou dois Globos de Ouro, sendo um
deles por ‘Melhor Série Dramática’ também.
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governança de extrema direita. O contexto abordado dialoga diretamente com o atual
momento vivenciado por nações como os EUA, Rússia e Brasil, com representantes e suas
formas de governos assumidamente conservadoras.
Nesse contexto, em meados de 2018, ocorreram uma série de protestos em países
como EUA, Argentina e Brasil, a respeito da legalização do aborto, bem como os direitos
das mulheres sobre os seus corpos. Os atos de protesto ganharam as mídias ao redor do
mundo, principalmente pelo uso da caracterização da personagem principal, como uma aia
(um capuz vermelho e uma touca branca), como forma simbólica de relacionar a repressão
vivenciada na série, com a realidade confrontada pelas protestantes.
Diante disso, o intuito deste estudo é analisar os elementos presentes na série,
fazendo-se necessário uma maior imersão nesta realidade distópica, buscando elementos
carregados de simbolismos ricos em significações. Além disso compreender como se
constrói a interação entre expectador e a obra, através das metodologias pautadas pelo viés
ideológico (EAGLETON, 1997), e pela semiótica (BARTHES, 1984), para fornecer uma
análise ética-social visando a união entre realidade e a distopia.
Contextualizando a série
O desenvolvimento da obra discorre a partir da narrativa em primeira pessoa da
personagem principal: uma mulher, pertencente a uma das diversas castas sociais femininas,
tendo como principal função a concepção de bebês para o povoamento da nação. A
protagonista recebe o nome Offred somente dentro da nova conjuntura social, no intuito de
indicar sua posse a uma família (no papel patriarcal do homem7).
As mulheres, dentro do contexto retratado, deixam de ocupar espaço na sociedade
ao lado dos homens, passando a lhes servir unicamente. Além disso, são segregadas em
castas hierárquicas e designadoras do papel que a mulher desempenhará na sociedade,
como: Marthas (serviçais da casa), Aias (mulheres reprodutoras), Tias (responsáveis por
treinar as Aias), Esposas (servir ao marido) e as trabalhadoras das colônias (refugiadas em
campos de concentração).
7 Neste caso, indica o pertencimento a família do comandante Fred Waterford, sendo literalmente a expressão ‘Of Fred’,
ou ‘Do Fred’ (em português).
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Todo este modelo de sociedade misógina e patriarcal entrou em vigor após um golpe
político, onde um grupo fundamentalista de reconstrução cristã, denominado ‘Filhos de
Jacó’, atacaram a Casa Branca Americana com a finalidade de restaurar a ordem perdida no
país, fundando a República de Gilead – referenciando uma região montanhosa presente na
Bíblia, que significa “monte de testemunho”, no livro de Gênesis (31:25) e Números (32:1).
O movimento conservador ganhou força a partir do caos que se encontrava a
situação no país, como: a poluição, devido à grande quantidade de materiais radioativos
presentes no ambiente; considerável diminuição de natalidade, com taxas quase nulas,
devido a problemas de fertilidade nas mulheres; guerras e conflitos de interesses políticos.
Diante destes aspectos, é importante citar, além do regime ditatorial, a distorção da
ética social, justificada através do resgate de antigos valores e reordenamento da sociedade.
Um exemplo disso é a realização de uma espécie de “rito”, onde as Aias são obrigadas a ter
relações sexuais com seus Comandantes, respaldados por uma passagem bíblica do livro de
Gênesis:
“Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó:
Dá-me filhos, se não morro. E ela disse: Eis aqui minha serva Bila, coabita com ela,
para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela” (Gênesis
30:1:3).
Esta situação é visivelmente um ato de estupro, já que as aias são forçadas a ter
relações sexuais e conceber filhos contra sua vontade, porém devido ao fator bíblico
adicionado a situação, o ethos social acaba sendo alterado para um “ato de fé”. Além disso,
a ciência torna-se, de certa forma, abolida dentro de Gilead, não havendo mais
possibilidade da realização de inseminação artificial. Este rito acaba consolidando-se como
um dos principais pilares dentro da sociedade, onde a preservação de novas vidas torna-se a
premissa mais importante.
Contudo, a obra literária e a série acabam se divergindo, devido ao conteúdo do
livro ser totalmente abordado dentro da primeira temporada. Desta forma, a produção
subsequente tornam-se um conteúdo autoral, elaborado pela equipe de criação, que inclui a
própria Margaret Atwood como consultora criativa.
A partir deste fato, os novos elementos que vão surgindo, ao decorrer da trama,
fazem diálogo diretamente com a atualidade vivenciada no mundo – contando com atore
5
sociais como Donald Trump, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e demais figuras políticas ditas
de ultradireita conservadorista. O estreitamento entre distopia e realidade ganhou destaque
no ano de 2018, quando protestos que referenciaram a obra de Margaret Atwood
repercutiram na mídia. A seguir serão apresentados os principais fatos e movimentos
políticos no Brasil e no mundo, embasados pelo discurso da série.
Discutindo os fatos
Em 03 de agosto de 2018, um grupo de mulheres caracterizadas como as aias da
série The Handmaid’s Tale, iniciaram protestos em frente ao prédio do Supremo Tribunal
Federal (STF), em Brasília8 (ver figura 1). O movimento demonstrou posicionamento a
respeito da audiência pública que discutiu a legalização da interrupção da gravidez até a 12ª
semana de gestação, ou seja, a legalização do aborto no país – o que atualmente é
caracterizado como crime, passível de detenção por até três anos.
Figura 1 – Mulheres em ato político em frente ao STF
Fonte: https://goo.gl/oiD9W5
Na Argentina, o ato de protesto antecedeu o movimento no Brasil, tendo sido
realizado em 25 de junho de 2018, em frente ao Congresso, em Buenos Aires9. O que estava
sendo reivindicado era o mesmo direito, a descriminalização do aborto até a 14ª semana de
gestação. A proposta havia sido aprovada na Câmara, porém foi reprovada no Senado. A
8https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2018/08/03/mulheres-usam-roupas-de-o-conto-da-aia-em-ato-pela-
descriminalizacao-do-aborto-em-brasilia.ghtml 9 https://veja.abril.com.br/mundo/argentinas-pro-aborto-protestam-com-trajes-de-o-conto-da-aia/
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autora da obra original, Margaret Atwood, enviou uma mensagem de apoio as mulheres
manifestantes, através de sua conta pessoal do microblog Twitter (ver figura 2).
Figura 2 – Mensagem de Atwood no Twitter
Fonte: https://goo.gl/GbYkwi
Outro protesto semelhante aconteceu nos Estados Unidos no dia 04 de setembro de
2018, onde outro grupo de mulheres vestidas como aias, adentraram ao senado americano
para demostrar seu posicionamento contra a indicação de Brett Kavanaugh para assumir a
suprema corte10. As mulheres clamavam pela democracia, temendo a ruptura perante a
ameaça conservadora, bem como a extinção de leis que garantem maior liberdade às
mulheres.
Todos os três atos de protestos foram extremamente semelhantes, a caracterização, o
silêncio e as cabeças baixas, seguindo exatamente a postura de uma aia na série. Os
interesses reivindicados eram praticamente os mesmos, o direito de a mulher decidir o que é
melhor para si e para o seu corpo – no caso da Argentina e do Brasil, a descriminalização
do aborto, enquanto nos EUA, o medo da perda de direitos, que incluem o funcionamento
de clínicas de aborto legalizadas no país.
No Brasil, ainda temos um cenário bastante caótico para as mulheres, onde apenas
em janeiro de 2019, tiveram mais de 100 casos registrados de feminicídio em todo o país11,
e segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil apresenta a quinta maior taxa de
feminicídios dentre os 84 países pesquisados. A situação mostra-se mais grave através dos
10 https://veja.abril.com.br/mundo/em-caos-senadores-sabatinam-indicado-de-trump-para-a-suprema-corte/ 11 https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-02-04/feminicidio-brasil-janeiro.html
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números referentes as situações de violência doméstica, sendo em 2017, uma média de 530
mulheres que acionam a Lei Maria da Penha por dia no país12.
Neste sentido, os dados dispostos acima servem para embasar o movimento
feminista, diante de uma realidade embaraçosa e desafiadora para as mulheres – além de
perseverarem na conquista por direitos iguais, devem lutar pela própria sobrevivência. É
exatamente neste ponto em que a realidade e a obra de Atwood se assemelham e geram
diálogo entre si.
A partir disso, podemos refletir mais sobre os questionamentos e dados investigados
até então a partir da conhecida citação de Oscar Wilde: “a vida imita a arte muito mais do
que a arte imita a vida”, visando a compreensão da produção de sentindo, significação,
simbolismo e ideologia presentes em The Handmaid’s Tale que serão apresentados a seguir.
Discussão
O ser humano destaca-se dos demais seres, por possuir além das características de
estimulo-resposta baseadas nos sentidos, merknetz e wirknetz13 (de maneira interligada, o
que geram um funktionskreis, ou seja, um ciclo funcional), um outro sistema denominado
por Ernest Cassirer como ‘sistema simbólico’, devido a capacidade de simbolizar a nossa
realidade, e fornecer uma percepção mais apurada do meio no qual estamos inseridos
(CASSIRER, 1994).
Diante disso, a cognição humana deriva de sua capacidade de simbolizar o ambiente
a sua volta, sem isto estaríamos condicionados a nos comportar de maneira instintiva, assim
como os demais animais, fadados a uma realidade meramente biológica, como ilustrado
pelo mito da Caverna de Platão:
Sem o simbolismo, a vida do homem seria como a dos prisioneiros na caverna do
famoso símile de Platão. A vida do homem ficaria confinada aos limites de suas
necessidades biológicas e seus interesses práticos; não teria acesso ao "mundo
ideal" que lhe é aberto em diferentes aspectos pela religião, pela arte, pela filosofia
e pela Ciência. (CASSIRER, 1994, p. 74).
12 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/brasil-registra-606-casos-de-violencia-domestica-e-164-estupros-por-
dia.shtml 13 “De acordo com sua estrutura anatômica, ele possui um certo Merknetz e um certo Wirknetz – um sistema receptor e um
sistema efetuador” (CASSIRER, 1994).
8
De acordo com Cassirer, o ser humano possui um aparato fisiológico necessário para
desenvolver as atividades psíquicas necessárias para uma ‘produção de sentido’, sendo esta
uma característica particular do ser humano. Isto representa um universo de possibilidades
que implicam nas faculdades cientificas desenvolvidas pelo homem, na forma de entender a
si mesmo, a natureza e a sociedade na qual construímos e habitamos.
Desta forma, cada ser humano é único, possuindo uma espécie de “universo
individual próprio”, determinado pelas experiências vivenciadas por cada indivíduo, o que
nos define como ‘seres monadários’ (únicos). Nessa ótica, o simbolismo desenvolvido e
interpretado pelos humanos, deixa de ser meramente simbólico, adentrando o espaço físico,
através da linguagem, mito, arte e religião (CASSIRER, 1994).
A partir disso, podemos correlacionar o pensamento de Cassirer sobre os sentidos
humanos, com os estudos sobre a ‘câmera obscura’ desenvolvidos por Karl Marx,
descrevendo a mente humana como uma câmera, que registra passivamente os objetos do
mundo externo, de modo funcionalmente igual ao de uma câmera fotográfica, os registros
não podem mentir. A única maneira de criar uma distorção é através da manipulação dos
objetos (EAGLETON, 1997).
Por esta perspectiva, o estudo de Karl Marx, complementa o pensamento
desenvolvido por Platão sobre o mito da caverna, em que o ser humano possui capacidade
cognitiva para compreensão da exterioridade a sua volta, não significando que haja uma
uniformidade na produção de sentido. Cada pessoa interage com o meio à sua forma, o que
acaba fazendo com que exista um viés ideológico presente nas interações sociais –
entendendo ideologia em Marx, como uma espécie de véu que impede de enxergar a
realidade social plenamente (EAGLETON, 1997, p85).
Este caráter está relacionado com uma visão de um mundo através das ideologias
presentes, através do que Marx denomina de superestrutura (EAGLETON, 1997) – sendo
uma espécie de estratégia dos pensamentos de grupos dominantes para a manutenção do seu
poder, através da estrutura presente na sociedade como política, leis, Estado, religião, artes,
meios de comunicação, etc. Isso nos leva a pensar a forma que ocorre a percepção/recepção
das informações que estamos constantemente recebendo do ambiente (externo a nossa
mente).
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Diante desses conceitos, pode-se ainda acrescentar a perspectiva do semioticista
Roland Barthes, na qual dialoga, a partir dos pensamentos sobre a obra ‘A câmara clara’,
sobre o sentido que um elemento fotográfico, produz numa pessoa, no qual Barthes
denomina como studium e o punctum – sendo este último o que irá mais causar maior
reflexão e interagir diferentemente com cada pessoa, devido a experiência única de vida de
cada um (BARTHES, 1984).
O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu
quem vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do
studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em
latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por
um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que
me remete também à idéia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato,
como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis;
essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. (BARTHES, 1984, p. 46)
A dualidade composta pelos elemento descritos por Barthes, corresponde as formas
de objetividade e subjetividade entre o indivíduo e a fotografia. O studium é a contemplação
da imagem guiado pela consciência, de modo que a leitura da imagem contempla
conhecimentos inerentes a sociedade e cotidiano. Porém o punctum infere no expectador
algo que chama sua atenção e leva produção de sentido de uma maneira particular, ou seja,
na sua subjetividade (BARTHES, 1984).
Diante desses fatos, a série The Handmaid’s Tale, busca causar justamente o efeito
do punctum, gerando uma inquietação/desconforto a partir das cenas de conteúdo explicito,
que mostram um pouco da perversidade humana dentro da distopia em questão. Isso rompe
justamente com a visão ideológica concebida por Marx, como a retirada do véu para
enxergar a realidade agressiva na qual o mundo está vivenciando atualmente.
Neste sentido, a obra buscou criar uma ponte entre a subjetividade de cada
expectador com o contexto real, através de elementos utilizados na construção do ethos da
série, sendo o recorrente uso de flashback na segunda temporada um espaço ideal para gerar
reflexões no público, a medida que muitos dos contextos abordados poderiam estar
facilmente sendo exibidos nos noticiários – como protestos pela reinvindicação dos direitos
das mulheres dentro da distopia, que passaram a ser privadas de exercer atividades dentro
da sociedade, sendo marginalizadas, assim como nos primórdios da história, em detrimento
da sociedade patriarcal que crescia fortemente antes do golpe que fundou Gilead.
10
Podemos observar os aspectos da dualidade entre o punctum e studium,
desenvolvidos por Barthes, sendo trabalhados a todo instante na série. O studium dialoga
com os aspectos recorrentes da nossa sociedade, como o fato do aborto ainda ser um ato
criminoso, ou como a crescente ameaça do fascismo se alastrando pelos países ao redor do
mundo. Já o punctum, compreende aspectos dentro da série pertinentes com a
individualidade monadária de cada pessoa, como uma mulher que se choca ao assistir a
cena do rito, onde há o estupro das aia, aflorando diversos sentimentos a partir de uma
empatia.
Além disso, a obra de Atwood traz elementos bastante marcantes, auxiliando ainda
mais na construção do simbolismo, como a caracterização das aia (túnica de tecido grosso
na cor vermelho sangue, presença de luvas da mesma cor, touca e chapéu branco que
remetem a uma estética camponesa de tempos medievais), bem como sua postura corporal
diante da sociedade opressora. A utilização da cor vermelha equivale a uma leitura
conotativa (BARTHES, 2006), contendo demais sentidos (entrelinhas), como o próprio
sangue, entraves políticos disputados ao longo da história (Inconfidência Mineira,
Construtivismo Russo, etc.), ou uma postura transgressora.
Além disso, as próprias passagens bíblicas, selecionadas dos livros pertencentes ao
antigo testamento, retratadas de uma maneira literal, ou seja, secularizada perante o atual
contexto social, nos confronta com visões acerca de uma ética muito peculiar presente na
Bíblia. Isso alimenta diálogos presentes na nossa sociedade sobre questões onde a religião
intervém de maneira a conter avanços ditos como “profanos”, indignos perante a proposta
divina.
Diante dos fatos abordados acima, podemos entendemos a série The Handmaid’s
Tale como um ponto de partida, servindo de embasamento para atos de protesto em três
países distintos, ganhando espaço na mídia através dos portais de notícia Veja, Ig, G1, BBC
Brasil e Folha de São Paulo. Isso nos mostra uma construção fortemente interligada entre
realidade e série, onde uma auxilia os passos da outra.
Nesse sentido, é possível concluir que o momento escolhido para a estreia da série
veio bastante a calhar por diversos conflitos políticos em âmbito global, indo além da
vitória de Donald Trump nos EUA em 2016, para os cenários políticos do Brasil e
Argentina (2018), bem como o constante crescimento do já antigo atrito entre Estados
11
Unidos e Rússia, através da disputa política vivenciada na Venezuela com o polêmico
governo de Nicolás Maduro14.
Um recente discussão envolvendo a série e seu simbolismo aconteceu no carnaval
brasileiro de 2019, onde homens e mulheres fantasiaram-se de acordo com a vestimenta das
aias, para curtir a festividade. Criou-se então uma polêmica sobre diversas questões, todas
com o intuito de questionar a utilização do simbolismo da série, se o ato seria um
desmerecimento à mensagem transmitida pela série (ver figura 3).
Figura 3 – Matéria questionando o uso da “fantasia de Aia” no carnaval
Fonte: https://bit.ly/2K9osPZ
Mesmo assim, independentemente do real intuito por trás da utilização da
vestimenta da aia (apenas uma fantasia, ou oportunidade de protesto), se desmerece a causa
ou não, o que importa é a discussão, entrelaçada à série e levada ao público. Nesse sentido,
geraram-se debates visando unir a perspectiva do enredo abordado com a atual conjuntura
sócio-política do país. Um exemplo disso é o surgimento de matérias retratando a série o
seu discurso em sites de notícias e entretenimento (ver figura 4).
14 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/russia-afirma-que-ajuda-dos-eua-a-venezuela-e-pretexto-para-acao-
militar.shtml
12
Figura 4 – Matéria debatendo o contexto entre a série e a realidade
Fonte: https://bit.ly/2OLZcOa
Diante disso, é importante compreender os elementos presentes na série que
corroboram uma imagem simbólica para seus expectadores. Nos atos de protesto
anteriormente citados, o elemento comum aos três é justamente a vestimenta das aias.
Devemos entender o contexto desta casta pertencente a sociedade distópica como o que
Giorgio Agamben (2010) definiu como homo sacer15 em sua obra que aborda o contexto
vivenciado pelos refugiados judeus nos campos de concentração de Auschwitz no período
do regime nazista alemão.
Deste modo, devemos dar um maior enfoque ao elemento corpóreo presente na série
(ver figura 5), como todo um contexto de informações consegue se transmitido por
vestimentas e gestos impressos na série? De acordo com Lucia Santaella (2008), o corpo é
um sintoma da cultura, justamente por ser um ‘corpo simbólico’, pela sua capacidade de ser
codificado em linguagem, e posteriormente descodificado, interpretado e recodificado pelo
expectador.
15 “Existem vidas humanas que perdem a tal ponto a qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto o portador
da vida como a sociedade, perdeu permanentemente todo o valor” (AGAMBEN, 2010, p. 133).
13
Figura 5 – Matéria abordando elementos presentes na série e realidade
Fonte: https://bit.ly/2KkT7bG
Conclusão
A série The Handmaid’s Tale vem desempenhando um importante papel em nossa
sociedade ultimamente, trazendo questões sobre visão política e ideológica para serem
debatidas juntamente ao seu público expectador, principalmente com a disposição de
aparatos tecnológicos e mídias sociais fortemente atuantes na construção de um debate
sobre os discursos presente na série.
Isto resulta numa produção de sentido a partir da subjetividade existente em cada
receptor, podendo haver dos mais diversos sentimentos atrelados a recepção da mensagem
apresentada (como no caso da empatia, anteriormente já citado). É neste ponto em que toda
a série consegue ser condensada, por mais polifonias de discursos que estejam presentes,
unicamente no elemento estético da Offred, como um símbolo transgressor, de luta e
resistência perante uma sociedade injusta, que não respeita a sua individualidade.
Neste sentido, os punctum da série volta para a representatividade da personagem
principal, como vemos, é ela quem irá desencadear as produções de sentido ulteriores. O
choque impresso visa romper com a ideologia existente, principalmente do governo norte-
americano, já que a produção da obra é americana. Sua aplicabilidade mesmo assim
consegue perpassar por demais países e continentes, justamente por conta da obra literária
que a originou ter bebido de diversas fontes de informação, um exemplo disso foram:
14
Código de Hamurabi, Revolução Iraniana de 1978, Segunda Guerra Mundial, Nazismo16 e
outros.
Esses aspectos que compõe a série mostram-se eficazes no quesito de ceder espaço
para discussões necessárias para a atualidade, os simbolismo servem como uma
convergência diante de uma polifonia presente nas esferas sociais, utilizando a imagem da
aia como um elemento que visa romper as ideologias já existentes e impostas pela
sociedade cristalizada.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1984.
________. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 2006.
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São
Paulo: Martins Fones, 1994.
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora UNESP: Editora Boitempo,
1997.
RAMOS, Jair de Souza. Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais e a categoria
do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20. In: MAIO, M. C.;
SANTOS, R. V, orgs. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1996.
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.
16 https://oglobo.globo.com/cultura/the-handmaids-tale-os-acontecimentos-reais-que-inspiraram-margaret-
atwood-23446498