DOCÊNCIA E FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
LINGUÍSTICA III:TEORIA DA ANÁLISE DO DISCURSO
MÓDULO 2 - VOLUME 1
Odilon Pinto
de Mesquita Filho
?!...
Letras VernáculasMÓDULO 3 - VOLUME 4
Universidade Estadualde Santa Cruz
ReitorProf. Antonio Joaquim da Silva Bastos
Vice-reitoraProfª. Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro
Pró-reitora de GraduaçãoProfª. Flávia Azevedo de Mattos Moura Costa
Diretor do Departamento de Letras e ArtesProf. Samuel Leandro Oliveira de Mattos
Ministério daEducação
Ficha Catalográfi ca
M582 Mesquita Filho, Odilon Pinto de. Lingüística III : teoria da análise do discurso - Letras Vernáculas - EAD, módulo 3, volume 4 / Odilon Pinto de Mesquita Filho. – [Ilhéus, BA] : UAB/ UESC, [2011]. 230p. : il.
Inclui referências. ISBN: 978-85-7455-221-7
1. Análise do discurso. 2. Lingüística. I. Título: Letras Vernáculas: módulo 3, volume 4.
CDD 401.41
Coordenação UAB – UESCProfª. Drª. Maridalva de Souza Penteado
Coordenação do Curso de Licenciatura em Letras Vernáculas (EAD)Prof. Dr. Rodrigo Aragão
Elaboração de ConteúdoProf. Dr. Odilon Pinto de Mesquita Filho
Instrucional DesignProfª. Msc. Marileide dos Santos de OliveraProfª. Drª. Gessilene Silveira Kanthack
RevisãoProfª. Msc. Sylvia Maria Campos Teixeira
Coordenação de DesignProfª. Msc. Julianna Nascimento Torezani
DiagramaçãoJamile A. de Mattos Chagouri OckéJoão Luiz Cardeal Craveiro
Capa Sheylla Tomás Silva
Letras VernáculasEAD . UAB|UESCEAD . UAB|UESC
Ao longo do texto você encontrará alguns boxes com orientações de estudo. A seguir descrevo o que cada uma signifi ca e como você deve proceder diante das orientações.
PARA REFLETIR
As pausas para refl exão são pequenas provocações feitas ao longo do texto para que você interrompa por alguns minutos a leitura e pense sobre o que está sendo estudado. Não é necessário escrever nem debater com seus colegas, mas é importante que você pare para refl etir sobre o que está sendo proposto antes de dar continuidade à leitura.
ATENÇÃO
Nos boxes em que há o pedido de atenção são apresentadas questões ou conceitos importantes para a elaboração de sua aprendizagem e continuidade dos estudos.
SAIBA MAIS
Aqui são apresentados trechos de textos que complementam e enriquecem o estudo que está sendo realizado.
EXERCÍCIOEXERCÍCIO
Momento de debates sobre questões específi cas. Cada exercício possui uma orientação específi ca sobre como deve ser realizado.
LEITURA RECOMENDADA/
NECESSÁRIA
São indicações de leituras que contribuem para a complementação e aprofun-damento dos estudos realizados.
ATIVIDADE
As atividades devem ser realizadas de acordo com as orientações específi cas de cada uma.
VOCÊ SABIA?
Esses são boxes que trazem curiosidades a respeito da temática abordada.
UM CONSELHO
Um conselho, uma orientação feita pelo professor a respeito de algo que foi dito, auxiliando assim, na construção do conhecimento.
PARA CONHECER
Indicação e referências de autores, fontes de pesquisa, livros, websites, fi lmes (curtas-metragens e/ou longas-metragens) etc.
Os desafi os auxiliarão na assimilação e aplicação dos conhecimetnos adquiridos. Cada um deles deve ser realizado de acordo com as orientações específi cas.
PARA ORIENTAR SEUS ESTUDOS
DESAFIOSDESAFIOS
Sumário
AULA 1: A QUESTÃO DO SENTIDO NA LINGUÍSTICA ESTRUTURAL DE SAUSSURE ..151 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 172 PROBLEMAS QUE DERAM ORIGEM À CIÊNCIA LINGUÍSTICA .................................... 18
2.1 O problema do objeto da ciência linguística ................................................. 182.2 O problema do signifi cado ou sentido ......................................................... 20 2.2.1 A arbitrariedade do signo ..................................................................... 21
RESUMINDO ..................................................................................................... 25REFERÊNCIAS ................................................................................................... 25
AULA 2: ENUNCIAÇÃO, IDEOLOGIA E SENTIDO .....................................................271 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 292 ENUNCIAÇÃO E ENUNCIADO ............................................................................... 303 IDEOLOGIA ....................................................................................................... 33
RESUMINDO ..................................................................................................... 36REFERÊNCIAS ................................................................................................... 37
AULA 3: O CONCEITO DE DISCURSO ......................................................................391 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 412 O DISCURSO ..................................................................................................... 42
RESUMINDO ..................................................................................................... 48REFERÊNCIAS ................................................................................................... 49
AULA 4: TEXTO E DISCURSO ..................................................................................511 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 532 TEXTO E DISCURSO ........................................................................................... 54
RESUMINDO ..................................................................................................... 60REFERÊNCIAS ................................................................................................... 60
UNIDADE I | O QUE É DISCURSO
UNIDADE II | CONCEITOS TEÓRICOS DA ANÁLISE DE DISCURSO
AULA 1: O SUJEITO ................................................................................................651 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 672 O SUJEITO ........................................................................................................ 68
2.1 Bom sujeito e mau sujeito ........................................................................ 712.2 Os esquecimentos .................................................................................... 722.3 O autor ................................................................................................. 742.4 Polifonia ................................................................................................. 75
RESUMINDO ..................................................................................................... 76REFERÊNCIAS ................................................................................................... 77
AULA 2: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS........................791 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 812 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS ...................................... 82
RESUMINDO ..................................................................................................... 87REFERÊNCIAS ................................................................................................... 88
AULA 3: PRÉ-CONSTRUÍDO E DISCURSO TRANSVERSO .........................................911 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 932 O PRÉ-CONSTRUÍDO .......................................................................................... 94
RESUMINDO .....................................................................................................99REFERÊNCIAS ................................................................................................. 100
AULA 4: HETEROGENEIDADE DISCURSIVA E POLIFONIA .....................................1031 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 1052 HETEROGENEIDADE DISCURSIVA ...................................................................... 1063 POLIFONIA ..................................................................................................... 110
RESUMINDO ................................................................................................... 113REFERÊNCIAS ................................................................................................. 114
UNIDADE III | METODOLOGIA E PRÁTICA EM ANÁLISE DE DISCURSO
AULA 1: METODOLOGIA EM ANÁLISE DE DISCURSO .........................................1191 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 1212 A METODOLOGIA EM ANÁLISE DE DISCURSO ...................................................... 122
2.1 O Recorte ......................................................................................... 125 2.2 O silêncio ......................................................................................... 126 2.3 O tipo de discurso ............................................................................. 127 2.4 Discurso e texto ................................................................................ 127 2.5 Propriedade e marca .......................................................................... 128
RESUMINDO ................................................................................................. 129REFERÊNCIAS ............................................................................................... 130
AULA 2: EXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO .............................................1331 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 1352 O DISCURSO DOS BRASILEIROS SOBRE O BRASIL ........................................... 136
2.1 Formação Ideológica ........................................................................... 1382.2 Formações Discursivas ........................................................................ 1392.3 A Formação Discursiva Negativa .......................................................... 1402.4 O Espaço Discursivo ............................................................................ 1422.5 Considerações fi nais ............................................................................ 146
RESUMINDO ................................................................................................ 147REFERÊNCIAS .............................................................................................. 148
UNIDADE IV | APLICAÇÃO DA ANÁLISE DE DISCURSO NO ENSINO ESCOLAR DE PORTUGUÊS, FUNDAMENTAL E MÉDIO
AULA 3: EXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO .........................................................1511 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1532 O DISCURSO SOBRE OS CIGANOS NA OBRA DE BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS ............. 154 RESUMINDO ............................................................................................................. 163 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 163
AULA 4: EXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO .......................................................................... 165
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1672 O DISCURSO DE GÊNERO NO EVANGELHO DE MARIA MADALENA .................................... 168
2.1 Análise dos dados ........................................................................................... 1692.2 Considerações fi nais ........................................................................................ 174
RESUMINDO ............................................................................................................. 176 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 176
AULA 1: ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA INTERPRETATIVA DE TEXTOS ...................1811 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1832 ANÁLISE DE DISCURSO E O ENSINO ESCOLAR DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO .. 184
2.1 O leitor é co-autor .......................................................................................... 1842.2 A incompletude .............................................................................................. 188
RESUMINDO ............................................................................................................. 190 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 190
AULA 2: ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA INTERPRETATIVA DE TEXTOS ...................1931 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1952 LEITURA .................................................................................................................. 196
2.1 Legibilidade ................................................................................................... 196 RESUMINDO ............................................................................................................. 202 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 202
AULA 3: ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA INTERPRETATIVA DE TEXTOS ...................2051 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 2072 O ENSINO DE LEITURA .............................................................................................. 208 RESUMINDO ............................................................................................................. 217 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 217
AULA 4: ANÁLISE DE DISCURSO E PRODUÇÃO TEXTUAL ...............................................2191 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 2212 PRODUÇÃO TEXTUAL ................................................................................................. 222 RESUMINDO ............................................................................................................. 230 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 230
DISCIPLINA
LINGUÍSTICA III TEORIA DA ANÁLISE DE DISCURSO
Prof. Odilon Pinto de Mesquita Filho
Professor do Curso de Letras da Universidade Estadual de San-ta Cruz (UESC). Possui graduação, mestrado e doutorado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Dentre os vários tra-balhos divulgados, destacam-se os livros Usos do Português, Coisas da Vida, Português no Vestibular e Turismo em Porto Seguro: aspectos (Org.), publicados pela Editora Via Littera-rum, em 2003, 2004, 2005 e 2006, respectivamente.
Estudo dos conceitos básicos em Análise de Discurso: discur-so, texto, linguagem, enunciação, polifonia, sujeito, ideologia. Heterogeneidade discursiva e inter-intradiscurso. As condições de produção do discurso e as formações imaginárias. As prin-cipais vertentes teóricas da linguística do discurso. Análise de discurso e ensino.
EMENTA
APRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃO
Aula 1A questão do sentido na linguística estrutural de Saussure
Aula 2Enunciação, ideologia e sentido
Aula 3O conceito de discurso
Aula 4Texto e discurso
1 2 3 4unidade
O QUE É DISCURSO
Ao fi nal desta aula, você deverá:
• analisar criticamente a proposta teórica da
linguística estruturalista de Saussure;
• estabelecer a diferença entre língua, linguagem
e fala;
• identifi car o tipo de relação existente entre
signifi cante e signifi cado na concepção de
Saussure;
• compreender os signos como um sistema
de valores consensuais estabelecidos pela
coletividade.
1aula
Objetivos
A QUESTÃO DO SENTIDO NALINGUÍSTICA ESTRUTURAL DE SAUSSURE
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AULA 1A QUESTÃO DO SENTIDO NA
LINGUÍSTICA ESTRUTURAL DE SAUSSURE
1 INTRODUÇÃO
Toda ciência surge para resolver problemas enfrentados pelo
homem. Por exemplo, a Física surgiu quando o homem quis enten-
der o problema das causas do movimento dos corpos na Terra e no
Universo. Da mesma forma, a Química surgiu quando o homem quis
entender o problema de como algumas substâncias se transformam
em outras. Nesta aula, vamos analisar alguns problemas que deram
origem à ciência Linguística e que teorias foram propostas pelo seu
fundador, Saussure, para resolvê-los.
LEITURAS PRÉVIAS
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campi-nas: Editora da Universida-de Estadual de Campinas, 1999.
...
Linguística III - Teoria da análise de discurso
22 Módulo 3 I Volume 1 EAD
A questão do sentido na linguística estrutural de saussure
2 PROBLEMAS QUE DERAM ORIGEM À CIÊNCIA LIN-GUÍSTICA
2.1 O problema do objeto da ciência linguística
Para que um conhecimento seja considerado científi co, é pre-
ciso que ele tenha um objeto delimitado, distinto dos objetos de todos
os outros conhecimentos científi cos. Antes de Saussure, os estudos
linguísticos já tinham uma tradição de séculos, mas não eram ainda
considerados uma ciência porque não possuíam um objeto delimita-
do.
No caso do fenômeno linguístico, Saussure (1995) mostrou
que ele apresenta variados aspectos. Por exemplo, quando pronun-
ciamos o fonema /a/, podemos considerá-lo:
- como um som; mas se trata de um som produzido pelo aparelho fo-
nador humano e, portanto, o som do fonema /a/ não pode ser isolado
dos órgãos vocais humanos;
- além disso, o fonema /a/, e os outros sons de uma língua, formam
palavras que estão associadas a ideias do pensamento. Portanto, o
fenômeno linguístico é som, é produto do aparelho fonador e é, tam-
bém, ideia mental;
- a linguagem é, ao mesmo tempo, um fenômeno individual e social.
Enquanto fenômeno social, está no campo da sociologia e, enquanto
fenômeno individual, está no campo da Psicologia e da Antropologia;
- fi nalmente, a linguagem está sempre em mudança. O português
que falamos hoje não é o mesmo falado por Camões nem por Pedro
Álvares Cabral, no ano de 1500.
E aí, que língua devemos estudar: a mais antiga ou a atual?
O fenômeno linguístico pode ser estudado enquanto som, en-
quanto produto do aparelho fonador, enquanto ideia mental, enquan-
to fato social, enquanto fato individual e enquanto mudanças histó-
ricas. Se delimitarmos qualquer um desses aspectos como objeto da
Linguística, estaremos desprezando outros aspectos importantes da
linguagem.
Como Saussure enfrentou esse problema de delimitar o objeto
da ciência Linguística? Ele responde:
Há, segundo nos parece, uma solução para todas essas difi culdades: é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre
Figura 1: Ferdinand de SaussureFonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ferdinand_de_Saussure.jpg
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tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma defi nição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (SAUSSURE, 1995, p. 16-17).
E o que é a língua, para Saussure? Primeiro, vamos distinguir
dois conceitos que, muitas vezes, são tomados como iguais: lingua-
gem e língua.
Linguagem, tomada no seu todo, tem várias formas e está
situada em vários campos científi cos ao mesmo tempo: por ser som,
é estudada pela Física; por ser produzida pelo aparelho fonador, é
estudada pela Fisiologia; por estar associada às ideias do pensamen-
to, a linguagem está no campo psíquico; por ser social, é estudada
pela Sociologia. Enfi m, a Linguagem não se deixa classifi car, de modo
exclusivo, em nenhum campo científi co (ARRIVÉ, 1999). A linguagem
apresenta dois fatores: língua e fala.
O fenômeno total da linguagem apresenta dois fatores: a lín-
gua e a fala. A Língua é a parte mais importante da Linguagem. Ela
não depende da fala e é social, “exterior ao indivíduo, que, por si só,
não pode nem criá-la nem modifi cá-la” (SAUSSURE, 1995, p. 22). A
língua é a linguagem, sem a fala. Por exemplo, hoje o Latim não é
mais falado, porém, mesmo assim, podemos estudá-lo, enquanto lín-
gua. A língua é social, enquanto a fala é individual; a língua é essen-
cial, enquanto a fala é o acessório, mais ou menos acidental. Brandão
(1995, p. 91) explica a diferença entre língua e fala:
Segundo a dicotomia estabelecida por Saussure entre língua e fala – a língua é o sistema abstrato, virtual ou potencial, enquanto que a fala é o ato lingüístico material e concreto, é o uso que cada indivíduo faz da língua. Se a linguagem só existe como atividade, língua e fala não se excluem, pois se a fala é a realização concreta da língua, aquela não existe sem ela.
Assim, a língua é um sistema de signos que permite a um su-
jeito compreender e fazer-se compreender. Por exemplo, na estrutura
da língua portuguesa, temos o seguinte princípio sintático: o artigo
precede o substantivo. Este princípio pertence à língua portuguesa,
enquanto as inúmeras frases, como O curso começou ontem, Dei o
livro ao professor, não fi z o trabalho etc., são realizações concretas
desse princípio na fala. Saussure estabeleceu a língua como objeto
da ciência linguística. Nenhum outro campo científi co pode incluir a
língua em seu objeto. Dessa forma Saussure conseguiu delimitar um
objeto específi co para a ciência linguística, dando-lhe autonomia.
LINGUAGEM: pode ser estudada enquanto fenô-meno sonoro, fi siológico, psíquico e sociológico, além de outros. Apresen-ta dois fatores: língua e fala.
PARA REFLETIR
Segundo Saussure, a língua não depende da fala. Se você observar a linguagem de LIBRAS, usada pelos surdos-mu-dos, você pode analisar e discutir com colegas se eles têm uma língua, isto é, um sistema so-cial e abstrato de signos, apesar de não terem a fala. A propósito, você pode tentar ver fi lmes como O Milagre de Anne Sullivan, Filhos do Silên-cio e outros fi lmes, que tratam do uso de lin-guagens por defi cientes físicos.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
24 Módulo 3 I Volume 1 EAD
A questão do sentido na linguística estrutural de saussure
2.2 O problema do signifi cado ou sentido
Além do objeto, outro problema enfrentado no estabelecimen-
to da ciência linguística foi o do signifi cado das palavras. A língua, na
visão de Saussure, é um sistema de signos que exprime ideias. O es-
sencial da língua é a união do sentido e da imagem acústica (BENVE-
NISTE, 1989). Por isso, ela é “comparável à escrita, ao alfabeto dos
surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais
militares etc.” (SAUSSURE, 1995, p. 24). A Linguística foi considera-
da parte de uma outra ciência, a Semiologia, que estuda “a vida dos
signos no seio da vida social” (ibidem).
A noção mais simples do signifi cado das palavras é a de que
a língua é uma lista de nomes para as coisas do mundo. Assim, o
signifi cado da palavra cavalo seria o animal chamado por esse nome.
O vínculo que une um nome a uma coisa seria uma operação muito
simples (SAUSSURE, 1995).
Mas o signo linguístico não une uma palavra a uma coisa.
Ele une uma imagem acústica, isto é, a impressão psíquica do som
da palavra (signifi cante) a um conceito (signifi cado). O signifi cante
não é o som concreto da palavra, mas a impressão psíquica desse
som em nossa mente. Tanto assim que podemos falar conosco mes-
mos, ou recitar mentalmente um poema, sem movermos os lábios.
Nesse caso, estamos usando signifi cantes? Sim, estamos, porque o
signifi cante não é o som concreto das palavras, mas as impressões
deles em nossa mente. E Saussure conclui: “O signo lingüístico é,
pois, uma entidade psíquica de duas faces: signifi cante e signifi cado”
(SAUSSURE, 1995, p. 80).
O signo linguístico pode ser representado pela fi gura abaixo:
LÍNGUA: sistema de signos de caráter social, abstrato e essencial na linguagem, objeto da ci-ência linguística. FALA: ato concreto de linguagem, de caráter in-dividual, material e aces-sório.
ATENÇÃO
Observe a expressão “entidade psíquica”. Isto quer dizer que tanto o signifi cante quanto o signifi cado são entida-des que existem ape-nas em nossa mente. O signifi cante não é o som que ouvimos, mas é a impressão psíquica dele em nossa mente. Da mesma forma, o signifi -cado de uma palavra não é a coisa concreta cha-mada por esse nome, mas é um conceito abs-trato.
Conceito
Imagem acústica
Figura 2: O signo linguísticoFonte: SAUSSURE (1995, p. 80).
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2.2.1 A arbitrariedade do signo
No signo linguístico, o laço que une o signifi cante ao signi-
fi cado é arbitrário. (SAUSSURE, 1995, p. 80). Assim, o signifi cante
cadeira poderia ter como signifi cado o conceito do objeto panela. O
signifi cado das palavras é, portanto, uma convenção social, um hábi-
to coletivo.
O signifi cante é a imagem acústica dos sons da língua em
nossa mente. O signifi cado está ligado ao nosso pensamento. Não
podemos acreditar, no entanto, que as ideias estão claras em nossa
mente e que os sons da língua são apenas instrumentos para trans-
mitir essas ideias. Saussure (1995, p. 131) afi rma que “O pensa-
mento é caótico por natureza (...). O papel característico da língua é
servir de intermediário entre o pensamento e o som, em condições
tais que uma união conduza necessariamente a delimitações recípro-
cas de unidades”. Assim, os sons da língua delimitam unidades de
pensamento e estas, por sua vez, delimitam os sons da língua.
A língua é também comparável a uma folha de papel: o pensamento é o anverso e o som o verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro; assim tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento, ou o pensamento do som (SAUSSURE, 1995, p. 132).
Mas cada união de um som, imagem acústica (signifi cante)
com um conceito (signifi cado), não pode ser vista isoladamente. Os
signos formam um sistema de valores consensuais, estabelecidos
pela coletividade. Todas as palavras de uma língua formam um siste-
ma de signos. O signifi cado de cada palavra de uma língua é a dife-
rença própria que ela tem de todas as outras palavras dessa língua.
Essa diferença é chamada valor.
Assim, o valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia; nem sequer da palavra ‘sol’ se pode fi xar imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe em redor (SAUSSURE, 1995, p. 135).
As palavras não servem para expressar ideias já prontas de
antemão. Elas têm valores que emanam do sistema total de signos.
Cada palavra tem um signifi cado, que é o conceito, e tem um valor
que é puramente diferencial, defi nido por suas relações com outros
termos do sistema. Por exemplo, a palavra homem tem como signi-
fi cado o conceito: homem é um animal racional; e tem um valor: o
Linguística III - Teoria da análise de discurso
26 Módulo 3 I Volume 1 EAD
A questão do sentido na linguística estrutural de saussure
valor do signifi cado da palavra homem é defi nido por todas as outras
palavras semelhantes no sistema da língua. Assim, o valor da palavra
homem é sua diferença de outras palavras, como: gente, pessoa, ser
humano, indivíduo etc. Ou seja, o valor de homem é constituído pelo
que não é gente, não é pessoa, não é ser humano, não é indivíduo
etc. Como se pode ver, para eu identifi car o valor de uma palavra,
é preciso que eu conheça todas as outras palavras semelhantes da
língua.
Nesse caso, vemos que o conceito, o signifi cado de uma pala-
vra, não é autônomo, original, mas é um valor determinado pelas re-
lações dessa palavra com outras palavras com valores semelhantes.
Assim, o signifi cado da palavra homem é o conceito: animal racional.
Mas esse conceito é apenas o valor dessa palavra, isto é, a diferença
que ela tem com palavras semelhantes. A palavra homem signifi ca o
conceito animal racional. E o que é animal racional? É o animal que
não é irracional, não é sem inteligência, não é sem pensamento etc. A
gente pode dizer, simplesmente, que o signifi cado da palavra homem
é o conceito animal racional. Mas isso não exprime a essência do fato
linguístico de que o signifi cado de uma palavra é o seu valor, isto é, a
diferença que essa palavra tem com todas as outras palavras seme-
lhantes da língua. O signifi cado de uma palavra tem fundamento no
seu valor, isto é, na diferença que ele mantém com todos os outros
signifi cados da língua. Qual o valor da palavra branca? Branca é a cor
que não é preta, não é azul, não é vermelha, não é verde etc. (SAUS-
SURE, 1995).
Saussure, para estabelecer a ciência linguística, teve de ex-
plicar como as palavras signifi cam ideias. A saída que ele achou para
esse problema foi fazer a semântica, não do signifi cado diretamente,
mas do valor:
[...] ou seja, a ‘posição’ de um signo no interior de um conjunto de signos. Essa posição ou valor é inteiramente determinada pelas relações desse signo com os demais. Assim, ao tratar semanticamente um signo como ‘cadeira’, Saussure não vai se preocupar em saber qual é o seu signifi cado (a ‘idéia’ que lhe corresponde) mas vai investigar as relações que esse signo mantém com outros signos, como ‘sofá’, ‘poltrona’, ‘mesa’, etc. O conjunto dessas relações vai determinar o valor de ‘cadeira’ (DASCAL; BORGES, 1991, p. 36).
Dessa forma, só podemos determinar o valor de qualquer sig-
no tendo em vista a totalidade do sistema da língua, que é autônoma
em relação aos falantes e ao meio social. Com essa caracterização
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abstrata da língua, Saussure desvinculou-a daquilo que é propria-
mente social e histórico. Mas “se partirmos do fato de que as línguas
só existem na medida em que se acham associadas a grupos hu-
manos, podemos chegar à concepção de que, na língua, o social e o
histórico coincidem” (ORLANDI, 1996, p. 99).
Saussure exclui a fala do objeto da ciência linguística e, assim,
exclui o sujeito falante e o seu interlocutor. Dessa forma, exclui toda
a prática histórico-social. Mas aprendemos a língua no contato com
a família, com os vizinhos, com a escola e, por fi m, com toda nossa
experiência social. Para Saussure, o signifi cado de uma palavra é um
conceito mental e este tem sua base no valor, isto é, nas diferenças
que apresenta em relação a todos os outros signifi cados da língua.
Mas, como aprendemos a língua nas interações com a comunidade,
Eagleton (1997) considera que o conceito é mais uma prática social
do que uma entidade mental.
Além disso, vemos que, uma mesma palavra, em determi-
nada sociedade, apresenta conceitos diferentes. Basta observarmos
os preconceitos: para uma pessoa com ideologia racista, a palavra
negro signifi ca “raça inferior”, diferente do signifi cado não-racista de
“ser humano igual a todos os outros”. E aí? Como fi ca a teoria de
Saussure? Um signifi cante pode ter mais de um signifi cado? Confor-
me já visto, Saussure não estuda a fala, as interações sociais. Para
ele, os preconceitos seriam usos individuais da língua, acidentais,
acessórios, fora do objeto da ciência linguística. No entanto, em vez
de sustentarmos que as palavras “representam” conceitos, podemos
considerar que “ter um conceito” é a capacidade do indivíduo de usar
palavras de maneiras particulares, na fala (Eagleton, 1997). Para
isso, temos de incluir a fala como objeto da ciência linguística, con-
trariando Saussure.
O preconceito ideológico, portanto, é um determinante do sig-
nifi cado das palavras. Segundo Voloshinov (1997), signo e ideologia
andam sempre juntos, não existindo um sem o outro. As palavras,
longe de terem um signifi cado fi xo, baseado no valor, como propõe
Saussure, podem “preencher qualquer espécie de função ideológica,
estética, científi ca, moral, religiosa” (VOLOSHINOV, 1997, p. 37).
Além da ideologia, o contexto é também determinante do sig-
nifi cado das palavras. Por exemplo, no colunismo social da mídia, a
palavra “sociedade” signifi ca elite econômica. Mas, na sociologia, a
mesma palavra signifi ca grupo social.
De fato, há tantas signifi cações possíveis quantos contextos possíveis. No entanto, nem por isso, a palavra deixa de ser una. (...) Como conciliar a
Linguística III - Teoria da análise de discurso
28 Módulo 3 I Volume 1 EAD
A questão do sentido na linguística estrutural de saussure
polissemia da palavra com sua unicidade? É assim que podemos formular, de modo grosseiro e elementar, o problema fundamental da semântica (VOLOSHINOV, 1997, p. 106).
Vimos, portanto, que Saussure defi niu a língua, abstrata e
social, como objeto da linguística, sem levar em conta a fala que
usamos no cotidiano. Segundo ele, para estabelecer o signifi cado de
uma palavra, é preciso conhecer todas as outras palavras da língua
para delimitarmos o seu valor, isto é, a diferença que este signifi cado
mantém com os signifi cados de todas as outras palavras.
Mas nenhum indivíduo conhece todas as palavras de sua lín-
gua. Como, portanto, ele pode estabelecer o valor de cada signifi ca-
do, isto é, a diferença deste com todos os outros signifi cados? Desse
modo, a semântica do valor, proposta por Saussure, torna-se inviá-
vel.
Além disso, aprendemos e usamos a língua nas interações
sociais. Devido aos preconceitos ideológicos, observamos que uma
mesma palavra, como negro, pode apresentar mais de um conceito,
em vez de um signifi cado fi xo. Ou seja, a teoria do valor não é obser-
vável na fala concreta.
Na fala cotidiana, o contexto em que se usa uma palavra é
determinante do seu signifi cado. Uma mesma palavra, em contextos
diferentes, pode ter signifi cados diferentes. Isso contraria a teoria
proposta por Saussure de uma relação fi xa e abstrata entre signifi -
cante e signifi cado.
Na próxima aula, vamos analisar aspectos da relação entre
ideologia e signifi cados de palavras.
AATIVIDADESTIVIDADES
1. Conforme Saussure, quais as diferenças entre língua e fala?
2. Se a linguagem tem dois fatores, língua e fala, por que Saussure estabeleceu apenas
a língua como objeto da ciência linguística?
3. Explique a teoria do valor, na teoria de Saussure.
4. Na fala, cada palavra tem apenas um signifi cado? Por quê?
5. Por que a língua, segundo Saussure, é um sistema de signos sociais?
6. Por que o signifi cante tem uma relação arbitrária com seu signifi cado?
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RESUMINDO
Nesta aula você viu que, para Saussure:
A linguagem é constituída por dois fatores: língua e fala.
A língua é um sistema de signos abstratos, sociais e essenciais.
A fala é concreta, individual e acessória.
A língua é o objeto da ciência linguística, sem incluir a fala.
O signo linguístico é formado pela união de um signifi cante e um
signifi cado.
O signifi cado de uma palavra está baseado unicamente no seu valor,
isto é, na diferença que mantém com todos os outros signifi cados
da língua.
A teoria do valor não leva em conta a infl uência da ideologia nem do
contexto no signifi cado de palavras.
ARRIVÉ, Michel. Linguagem e psicanálise, lingüística e incons-ciente. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1995.
DASCAL, Marcelo; BORGES NETO, José. De que trata a lingüística, afi -nal?. In: Histoire Epistemologie Langage, tome 13, fascicule I - 1991. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 1991. p. 13-50.
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Luís Carlos Borges; Silvana Vieira. São Paulo: UNESP, 1997.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As for-mas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. Tradução de Antônio Chelini; José Paulo Paes; Izidoro Blinkstein. São Paulo: Cultrix, 1995.
VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e fi losofi a da linguagem. 8. ed.Tradução de Michel Lahud; Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Huci-tec, 1997.
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Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, o aluno deverá:
• estabelecer a relação existente entre enun-
ciação e enunciado;
• analisar o conceito de ideologia apresenta-
do nas diferentes concepções;
• analisar a relação entre ideologia e sentido
em enunciados.
2aula
Objetivos
ENUNCIAÇÃO, IDEOLOGIA E SENTIDO
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AULA 2ENUNCIAÇÃO, IDEOLOGIA E SENTIDO
1 INTRODUÇÃO
Já vimos que Sa ussure tomou a língua, abstrata e social,
como objeto científi co de estudo. Isto o levou a uma teoria sobre o
signifi cado das palavras baseada no valor, isto é, nas diferenças que
um signifi cado mantém com todos os outros signifi cados da língua.
No entanto, se tomarmos a linguagem, incluindo língua e fala, como
objeto científi co de estudo, podemos chegar a outras teorias sobre o
signifi cado das palavras, ou o sentido das palavras.
LEITURAS PRÉVIASALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
BENVENISTE, Émile. O Aparelho Formal da Enunciação. In ____. Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989. p. 81-90
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
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Linguística III - Teoria da análise de discurso
34 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Enunciação, ideologia e sentido
2 ENUNCIAÇÃO E ENUNCIADO
Saussure excluiu a fala do objeto científi co da linguística. En-
tretanto, a enunciação está situada no campo da fala. Segundo Ben-
veniste, (1989, p. 82), a enunciação é “este colocar em funcionamen-
to a língua por um ato individual de utilização”. Mas a enunciação não
é simplesmente a fala, ela é o ato de produzir um enunciado. E assim
ela vai exigir uma situação, em que se dá esse ato, e vai exigir um
sujeito da enunciação. Para Cardoso (1999, p. 16) a enunciação res-
titui “aos estudos da linguagem a instância que coloca o propriamen-
te lingüístico em conexão com os enunciadores e mundo”. Brandão
(1995, p. 89) defi ne:
Enunciação é a emissão de um conjunto de signos que é produto da interação de indivíduos socialmente organizados. A enunciação se dá num aqui e agora, jamais se repetindo. Ela se marca pela singularidade.
A linguagem, então, deixa de ser vista apenas como instru-
mento externo de comunicação e de transmissão de informação, mas
passa a ser vista como uma forma de atividade entre o sujeito da
enunciação e seu destinatário. As formas da língua, tal como defi nida
por Saussure, se oferecem aos falantes como virtualidades, como
possibilidades. Mas elas só funcionam quando são usadas nos atos
de enunciação.
Ao produzir um enunciado, o sujeito da enunciação institui a
si mesmo, como sujeito que fala, e institui o outro, o interlocutor. A
enunciação é um espaço em que se organizam os lugares dos pro-
tagonistas do ato de linguagem. Por exemplo, imagine o seguinte
enunciado:
- Vá para casa agora mesmo!
Ao produzir este enunciado, o sujeito da enunciação se
coloca numa posição superior e institui o interlo-
cutor como alguém numa posição inferior. Este
enunciado só é possível numa situação em
que, hierarquicamente, um superior se dirige a
um subalterno. No cotidiano, quando alguém,
que não ocupa uma posição superior à nossa,
nos dá uma ordem, nossa resposta é: “quem
você pensa que eu sou?” “Quem você pensa
ENUNCIAÇÃO: é a emis-são de um conjunto de signos que é produto da interação de indivíduos socialmente organizados.
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que é?” Em outras palavras, dizemos que não aceitamos o modo
como o sujeito da enunciação instituiu a si mesmo e a nós, através
do enunciado, dando-nos uma ordem.
A enunciação institui seu sujeito e o interlocutor. Além disso,
ela também “tenta legitimar esse quadro instituído” (MAINGUENEAU,
2001, p. 93). No exemplo acima, quando uma ordem nos instituiu
como inferior ao sujeito da enunciação, nossa reação foi não aceitar
essa relação como legítima e respondemos: “Quem você pensa que
é?”
Agora não estamos mais diante da língua abstrata estabele-
cida por Saussure. O ato da enunciação está centrado no sujeito da
enunciação e na situação em que este produz o enunciado. Com a
enunciação, a língua deixa de ser apenas possibilidades e se torna
uma instância sonora da fala de um locutor, que atinge um ouvinte e
que provoca uma outra enunciação de retorno (BENVENISTE, 1989).
Assim, todo enunciado é o produto de um acontecimento único, sua
enunciação, “que supõe um sujeito da enunciação, um destinatário,
um momento e um lugar particulares. Esse conjunto de elementos
defi ne a situação de enunciação” (MAINGUENEAU, 1996, p. 5).
Ao mesmo tempo em que se declara locutor, isto é, aquele
que fala, o sujeito da enunciação implanta também o outro diante de
si: “Toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução,
ela postula um alocutário” (BENVENISTE, 1989, p. 84). A enunciação
emprega a língua para expressar uma certa relação com o mundo,
referida pela sua fala e para o interlocutor. Essa relação é expressa
como sendo um consenso pragmático entre o sujeito da enunciação
e o seu destinatário. Por exemplo, quando uma pessoa lhe diz: “A
mulher foi quem trouxe o pecado ao mundo!”, esta pessoa supõe que
você está de acordo com isso, e que tal afi rmação seja um consenso
entre ela, sujeito da enunciação, e você, o destinatário. Ela está ex-
pressando uma certa relação com um tipo de mundo onde o pecado
foi trazido pela mulher. Caso você fi que calado e continue a conversa,
a enunciação estabeleceu um mundo que é consenso entre o sujeito
da enunciação e você. Os dois estão de acordo, se referindo a um
mesmo mundo. Assim, podemos dizer que o destinatário participa
também da enunciação, sendo um co-enunciador, porque o mundo
referido foi estabelecido em comum acordo entre ambos.
Da enunciação é que emergem os índices de pessoa, a relação
eu-tu. O termo eu denota o indivíduo que profere a enunciação e o
termo tu denota o destinatário. Quando falo, assumo o índice de pes-
soa eu, mas quando alguém fala comigo, assumo o índice de pessoa
tu.
ATENÇÃO
Observe que antes estu-dávamos apenas a estru-tura da língua, abstrata-mente. Por exemplo, estudávamos que o ver-bo concorda em número e pessoa com o sujeito. Trata-se de um princí-pio geral que pode ser exemplifi cado em fra-ses, sem precisar espe-cifi car quem falou, com quem falou, onde falou, quando falou etc. Com a enunciação, passamos a estudar a linguagem, in-cluindo língua e fala e a situação de enunciação. No entanto, no ensino escolar, ainda predomina o ensino da estrutura da língua, por meio de fra-ses, e não o ensino da linguagem, por meio de enunciados.
SITUAÇÃO DE ENUN-CIAÇÃO: é o conjunto dos seguintes elemen-tos: sujeito da enun-ciação, o destinatário, o momento e o lugar em que foi produzido o enunciado.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
36 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Enunciação, ideologia e sentido
Também é da enunciação que emergem as formas chamadas
“pronomes pessoais” e “demonstrativos” que adquirem signifi cados a
depender da situação ou contexto em que são usadas. Por exemplo,
se digo a alguém: “Não saio daqui!”, o signifi cado do termo aqui vai
depender do lugar de onde eu esteja falando. Vemos, portanto, que,
na enunciação, não há uma união fi xa entre signifi cante e signifi cado,
mas existe uma união que varia, a depender do contexto.
O uso das formas temporais emerge igualmente do eu da enun-
ciação. Nas formas verbais, o “presente” coincide com o momento
da enunciação. Quando digo a alguém: “Viajo agora!”, o presente do
verbo “viajo” e do advérbio “agora” coincidem com o momento da
enunciação, isto é, com o momento em que estou falando. O tempo é
produzido na e pela enunciação. Esta instaura a categoria do presen-
te, da qual deriva o passado e o futuro.
Podemos concluir que a enunciação tem importância funda-
mental na signifi cação das palavras, tornando insufi ciente a relação
arbitrária entre signifi cante e signifi cado, postulada inicialmente por
Saussure. As teorias linguísticas da enunciação refutam precisa mente
o corte que Saussure operou entre o linguístico, a estrutura da lín-
gua, e o “extralin guístico”, isto é, a fala. Dessa forma, em vez de
uma relação fi xa entre signifi cado e signifi cante, as signifi cações so-
cioculturais “estão sendo constituídas no próprio ato de enunciação”
(BHABHA, 2003, p. 230). Por exemplo, quando falamos do samba,
na música brasileira, não estamos repetindo um conceito já pronto e
aceito por todos. A cada vez que é feita alguma enunciação sobre o
samba, seu signifi cado está sendo constituído. A palavra samba, em
cada fala, assume conotações e nuances próprias daquela enuncia-
ção e da Formação Discursiva dominante. Por exemplo, no enunciado
de um professor, reclamando da preguiça do aluno: “Você não fez a
atividade! Só quer viver no samba!”, a palavra “samba” signifi ca brin-
cadeira, folga. Mas no enunciado, avaliando os planos de um amigo:
“Isso não vai dar samba!”, a expressão signifi ca “não vai dar certo”.
Assim, é ilusória a crença de que há um único mundo
estável, no qual toda uma comunidade acredite. O mundo é sempre
constituído no ato de cada enunciação. Daí a necessidade de estar-
mos sempre conversando, isto é, de estarmos fazendo enunciações
para atualizar nosso mundo socioculturalmente compartilhado. Por
exemplo, as fofocas, numa cidade pequena, são enunciações que ins-
tituem novas pessoas. Se alguém enuncia que a mulher de Fulano
o está traindo com outro homem, estamos instituindo novas pesso-
as: a mulher, antes considerada honesta, agora é constituída como
uma adúltera; o marido, antes considerado capaz e correto, agora é
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constituído como um bobo que está sendo enganado. É assim que,
na verdade, vamos constituindo o mundo e as pessoas em nossas
enunciações, acreditando ingenuamente que tudo já existia antes tal
como o estamos constituindo em nosso discurso.
A maioria das pessoas pensa que, primeiro, existe um
mundo já pronto, já constituído, e que nossa fala, nossas enuncia-
ções, apenas se referem a ele. Isso é uma ilusão. Na realidade, quan-
do fazemos uma enunciação é que estamos constituindo o mundo.
A enunciação institui seu sujeito, seu destinatário e o
mundo compartilhado pelos dois. Todos estes elementos estão mar-
cados no enunciado, que é o produto da enunciação. O sentido de
um enunciado é, portanto, a representação de sua enunciação. Des-
sa forma, “não há sentidos cristalizados, independentes, mas senti-
dos construídos numa situação discursiva”, isto é, numa enunciação
(BRANDÃO, 1998, p. 98).
A enunciação é um acontecimento que não se repete, porque
se realiza num certo local, numa certa data e num certo horário. O
enunciado, por sua vez, se caracteriza por ser repetível. Assim, pode-
mos dizer que dois enunciados, pronunciados por duas pessoas, em
situações um pouco diferentes, constituiriam um só enunciado.
3 IDEOLOGIA
A ideologia se materializa na linguagem e é um mecanis-
mo estruturante do processo de signifi cação. O conceito de ideolo-
gia, desde o seu surgimento, no século XIX, tem recebido diferentes
signifi cações. Eagleton (1997, p. 15) apresenta 16 delas, como falsa
consciência, visão de mundo, ocultamento da realidade, ideias de um
determinado grupo social, entre outras. A concepção marxista de ide-
ologia é a de ser um instrumento de dominação de classe (BRANDÃO,
1995).
Segundo Althusser (1985), a ideologia interpela os indiví-
duos como sujeitos e é uma representação da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência. Assim, a ideologia
não representa o mundo real, mas a relação que o indivíduo tem com
esse mundo real. Tal representação existe sempre num Aparelho Ide-
ológico de Estado (AIE), que são as instituições, como o AIE religioso,
formado pelo sistema das diferentes igrejas; o AIE escolar, o familiar,
o jurídico, o político, o sindical, etc. Eles funcionam principalmente
pela ideologia e, secundariamente, pela repressão.
Por exemplo, na Idade Média, os servos eram explorados pelos
PARA REFLETIR
Se você conversa com uma pessoa muito reli-giosa, pode perceber que o mundo que ela consti-tui em sua enunciação é diferente do mundo tal como o vivemos em nos-so cotidiano. Basta per-guntar-lhe o que acha do carnaval, por exemplo, para ver que este deixa de ser uma festa popu-lar para se transformar numa orgia satânica. Se perguntar a um pescador o que ele acha do mar, seu mundo oceânico é totalmente diverso do mundo turístico. Con-verse com pessoas de diferentes classes sociais e você irá perceber que, em suas enunciações, vão ser constituídos dife-rentes mundos.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
38 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Enunciação, ideologia e sentido
senhores feudais. Esta era a realidade do mundo.
No entanto, na instituição religiosa, os padres en-
sinavam uma relação imaginária, em que o sofri-
mento causado pela exploração seria recompen-
sado com o céu, após a morte. Dessa forma, a
ideologia católica medieval não representava as
condições reais de existência dos servos, mas re-
presentava uma relação imaginária que esses ser-
vos tinham com a exploração que sofriam.
Assim, as escolas e igrejas dispõem de mé-
todos adequados de punição, expulsão, seleção,
para disciplinar não apenas seus pastores e sacerdotes, mas também
seus rebanhos. O mesmo se aplica às outras instituições, como a
família, a escola e órgãos culturais. Todos os AIEs contribuem para a
reprodução das relações capitalistas de exploração.
Por isso, uma ideologia existe sempre num aparelho e em suas
práticas, regida por rituais: ir à missa, assistir a uma aula, participar
de uma reunião política ou familiar etc. A ideologia se materializa,
portanto, nas instituições sociais, isto é, nos Aparelhos Ideológicos do
Estado. Nossa prática está ligada às instituições e, portanto, só exis-
te prática dentro de uma ideologia. Como sujeito é aquele que age,
podemos dizer que a ideologia, nas instituições, nos interpela como
sujeitos, nos faz agir.
Vamos imaginar que você escute a voz de sua mãe, às suas
costas, chamando-o pelo nome. Você já se volta agindo como fi lho:
“Sim, mãe!”. Se a voz fosse a de um amigo, você já se voltaria agin-
do como amigo: “Oi cara!”. Da mesma forma, ao fazer parte das
instituições sociais, como a família, a escola e a religião, é como se
você respondesse a um chamado da ideologia, como se você fosse
interpelado pela ideologia, passando a agir, inconscientemente, pelo
funcionamento dela. As instituições nos chamam, nos interpelam o
tempo todo em sujeitos e nós atendemos a esse chamado, pensando
que fazemos uma escolha livre e consciente. E assim, cada um de nós
é levado a ocupar um determinado lugar na sociedade.
Nessa visão althusseriana, a infraestrutura econômica da so-
ciedade determina o funcionamento da superestrutura, formada pela
ideologia, nas instituições jurídicas, familiares, religiosas etc. Desse
modo, a ideologia só pode ser vista como reprodutora, perpetuando
a base econômica e a estrutura da sociedade. Essa circularidade no
funcionamento da sociedade acaba por criar uma impossibilidade de
mudanças sociais e o sujeito difi cilmente consegue sair do movimen-
to circular entre infraestrutura e superestrutura.
Bem aventurados os pobres porque verão a Deus!
Figura 2 - Fonte: http://www.sxc.hu/photo/472534
IDEOLOGIA: é a repre-sentação de uma relação imaginária dos indivíduos com suas condições re-ais de existência, numa determinada instituição social.
PARA REFLETIR
Observe que, nas cida-des brasileiras, quase não encontramos pes-soas da religião islâ-mica ou budista. Por quê? Porque, em nossa formação histórica, as instituições religiosas que nos interpelam em sujeitos são a religião cristã, trazida pelo co-lonialismo europeu, e o culto das entidades, trazido pelos africanos e já praticado pelos in-dígenas. Só podemos ser membros de algum grupo religioso, se for-mos antes interpelados por ele.
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A Análise de Discurso parte do conceito de interpelação
proposto por Althusser, mas introduz uma teoria materialista do dis-
curso, em que as relações de classe se caracterizam pelo afronta-
mento de formações ideológicas (ABREU, 2006). Nos aparelhos ideo-
lógicos, isto é, nas instituições, temos, em um dado momento, forças
se contrapondo a outras forças. Por exemplo, dentro da Igreja católi-
ca hoje, os adeptos da Teologia da Libertação se contrapõem à teolo-
gia tradicional e aos grupos carismáticos. Dentro de uma instituição,
as Formações Ideológicas são esses conjuntos de representações e
atitudes, relacionados com as posições de classe em confl ito. Cada
Formação Ideológica, numa dada conjuntura, inclui uma ou várias
formações discursivas, que determinam o que pode e deve ser dito
a partir dessa posição. Assim, as palavras ganham seu sentido de
acordo com a formação ideológica na qual se inscrevem aqueles que
as empregam. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é
nesse e por esse processo que se constituem os signifi cados ou sen-
tidos das palavras.
Dessa forma, o signo linguístico não é uma relação fi xa e
arbitrária entre signifi cante e signifi cado, mas tem um caráter ideoló-
gico, relacionado à luta de classe dentro das instituições sociais:
Na realidade, um signo, uma palavra, uma enunciação só podem ser tomados dentro de um contexto de produção que leve em consideração o seu caráter ideológico, social e histórico, ou seja, no momento concreto de sua realização, dentro da situação concreta que lhes deu origem (BRAGGIO, 1992, p. 90).
Na próxima aula, vamos ver como língua, enunciação e
ideologia são articuladas no discurso.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
40 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Enunciação, ideologia e sentido
AATIVIDADETIVIDADE
1. O que diferencia uma frase de um enunciado?
2. Quem institui o sujeito da enunciação, o destinatário e o mundo referente? Explique.
3. O que são e em que lugar da sociedade ocorrem as Formações Ideológicas? Explique.
4. Qual a relação entre Ideologia e o sentido das palavras?
5. O mundo e as pessoas sobre os quais você fala, existem antes de você falar sobre eles?
6. Explique e dê exemplos de dêiticos.
RESUMINDO
Nesta aula você viu que a enunciação:
Institui o enunciador e seu destinatário. Estabelece, de forma consensual, o mundo a que se refere, tornando o
destinatário co-enunciador. Faz emergir os índices de pessoa eu-tu e outros dêiticos, isto é, palavras
cujos signifi cados dependem do contexto, como os “pronomes pessoais” e os “demonstrativos”.
A enunciação interfere no signifi cado das palavras. As signifi cações socioculturais são constituídas no próprio ato de enuncia-
ção. O mundo é sempre constituído no ato de cada enunciação. O sentido de um enunciado é, a representação de sua enunciação. A enunciação é um acontecimento que não se repete, porque se realiza
num certo local, data e horário. O enunciado é repetível.
Viu também que a ideologia:
Materializa-se na linguagem, infl uenciando o signifi cado das palavras; Interpela os indivíduos como sujeitos e é uma representação da relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência; Existe sempre nas instituições e em suas práticas. Leva-nos a ocupar um determinado lugar na sociedade; Manifesta-se no afrontamento de formações ideológicas nas instituições. Cada Formação Ideológica, numa dada conjuntura, inclui uma ou várias
formações discursivas, que determinam o que pode e deve ser dito a partir dessa posição.
Cada Formação Ideológica dominante determina o signifi cado das pala-vras.
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ABREU, Ana Sílvia Couto de. Escola e Escola on line: alguns efeitos
do discurso pedagógico midiatizado. Tese de doutorado. Campinas:
FE/UNICAMP, 2006.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. 7. ed. Tradu-
ção de Walter José Evangelista; Maria Laura Viveiros de Castro; Rio de
Janeiro: Graal, 1985.
BENVENISTE, Émile. “O Aparelho Formal da Enunciação” In: ____.
Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães
et al. Campinas: Pontes, 1989. p. 81-90.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila; Elia-
na Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
UFMG, 2003.
BRAGGIO, Sílvia Lúcia Bigonjal. Leitura e alfabetização: da concep-
ção mecanicista à sociopsicolingüística. Porto Alegre: Artes Médicas,
1992.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed.
Campinas: UNICAMP, 1995.
_____. Subjetividade, argumentação, polifonia. A propaganda
da Petrobrás. São Paulo: UNESP, 1998.
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Luís Car-
los Borges; Silvana Vieira. São Paulo: UNESP, 1997.
MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário. Tradução de Maria Augusta Bastos de Mattos. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.
_____. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P.
de Souza Silva; Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.
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Ao fi nal desta aula você deverá:
• analisar o conceito de discurso na concepção de
Foucault;
• estabelecer diferença/relação entre língua, discur-
so, ideologia e instituições sociais;
• analisar a relação discurso e formação discursiva;
• relacionar o conceito de discurso com enunciação;
• relacionar o conceito de discurso com ideologia.
3aula
Objetivos
O CONCEITO DE DISCURSO
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AULA 3O CONCEITO DE DISCURSO
1 INTRODUÇÃO
Já vi mos que a enunciação fez com que os estudos linguísticos
deixassem de considerar apenas a língua abstrata, tal como formulada
por Saussure, para tomar como objeto a linguagem, incluindo a
fala. Com isso, a linguística passou a considerar a situação imediata
e o contexto sócio-histórico da enunciação. Além da instância do
fonema, da palavra e da frase, a linguística voltou-se também para a
instância do texto e a instância do discurso. Na análise de discurso, o
sentido das palavras passa a ser determinado pela enunciação e pela
ideologia do discurso em que são usadas.
LEITURAS PRÉVIASORLANDI, Eni Puccinelli. A lingua-gem e seu funcionamento. As formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. www.ciberfi l.hpg.ig.com.br
...
46 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O conceito de Discurso
2 O DISCURSO
Podemos estudar a linguagem de diversas maneiras: a
Linguística concentra sua atenção sobre a língua, enquanto sistema
de signos; a Gramática Normativa enfoca as normas de bem dizer; a
Gramática Histórica estuda as mudanças da língua no tempo etc. A
Análise de Discurso é um modo particular de se estudar a linguagem.
Etimologicamente, a palavra discurso signifi ca percurso, correr por,
movimento. Assim, discurso é palavra em movimento, prática de
linguagem, observar o homem falando (ORLANDI, 1999).
A Análise de Discurso surgiu nos anos 60 do século XX. Mas
os estudos sobre a produção de sentidos na língua já tinham sido
realizados pelos retóricos da Antiguidade e, no século passado, pela
semântica histórica de Bréal, linguista francês, e pelos formalistas
russos, que pressentiram no texto uma estrutura. Todos estes
enfoques permitem analisar unidades além da frase, ou seja, o texto.
Em sua linha francesa, a Análise de Discurso (daqui em
diante AD) parte de “uma relação necessária entre o dizer e as
condições de produção desse dizer”, exigindo uma articulação teórica
com a História, a Psicologia, a Sociologia etc. (BRANDÃO, 1995, p.
17-18). Não se trabalha com a língua fechada nela mesma, mas com
o discurso, que é um objeto sócio-histórico. Por outro lado, não se
trabalha com a história e a sociedade como se fossem independentes
do que signifi cam na linguagem.
Conforme já visto, os confl itos ideológicos ocorrem nas
instituições, como família, escola, igrejas, sindicatos etc. Por isso
o conceito de discurso vai levar em conta a instituição a que está
relacionado, com seus afrontamentos ideológicos, além do espaço
próprio que cada discurso confi gura para si mesmo, entre os outros
discursos. A materialidade específi ca da ideologia é o discurso e a
materialidade específi ca do discurso é a língua. A AD trabalha essa
relação língua/discurso/ideologia (ORLANDI, 1999).
Conforme já visto, uma característica do enunciado é que ele
é repetível. Para Foucault, o discurso existe “na sua realidade material
de coisa pronunciada ou escrita” (FOUCAULT, 2002, p. 3). Assim, ele
vê o discurso como sendo formado por enunciados dispersos, que
parecem não estar ligados por nenhum princípio de unidade. Nessa
visão, cabe à AD descrever essa dispersão, buscando estabelecer
regras capazes de reger a formação dos discursos. Para isso, tem que
levar em conta:
• os objetos e temas que aparecem e coexistem nesses elementos
PARA REFLETIR
Neste início de século XXI, no Brasil, podemos perceber confl itos ideo-lógicos em diversas ins-tituições. Por exemplo, as instituições religiosas estão divididas em cris-tãs, espíritas, cultos de origem africana, cada uma destas com subdi-visões. Nas instituições jurídicas, estamos as-sistindo ao confl ito ide-ológico entre um juiz de São Paulo (De Santis) e os tribunais superio-res em processos mo-vidos contra banqueiros e grandes empreiteiras. Dentro da Igreja católi-ca, os partidários da Te-ologia da Libertação se opõem aos carismáticos. Estes confl itos se multi-plicam em instituições, como os sindicatos, a OAB, órgãos governa-mentais etc.
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47Letras VernáculasUESC
dispersos;
• os tipos de enunciação que podem permear esses elementos;
• os conceitos que apresentam, em suas formas de aparecimento e
transformação, relacionados em um sistema comum.
Os enunciados dispersos que puderem ser reunidos por
meio das características acima comuns, são agrupados numa
Formação Discursiva, isto é, um sistema de relações entre objetos,
tipos enunciativos, conceitos e estratégias. E assim, os enunciados,
antes dispersos, passam a integrar a regularidade de uma Formação
Discursiva. Por exemplo, na Formação Discursiva machista, a
mulher tem uma relação de inferioridade com o homem. Assim,
os enunciados abaixo reafi rmam essa inferioridade e pertencem à
Formação Discursiva machista:
- Eu dirijo caminhão e minha mulher dirige o fogão. (Frase de
caminhão)
- Mulher ao volante, perigo constante; com homem do lado, perigo
dobrado. (Conversa entre dois motoristas)
- Mulher, sede submissa ao marido. (Enunciado usado, até
recentemente em cerimônia religiosa católica de casamento)
- Mulher é o sexo frágil. (Conversa masculina em uma academia de
ginástica).
Dessa forma, o discurso é visto como um conjunto de
enunciados que têm seus princípios de regularidade em uma mesma
Formação Discursiva. Analisar uma Formação Discursiva é descrever
os enunciados que a compõem. Enunciado, conforme, já visto, é o
produto de uma enunciação e, por isso, não pode ser confundido com
frase. Ele é a unidade elementar, básica, que forma um discurso.
Frase é uma sequência de palavras, construída segundo os princípios
da língua. O discurso seria concebido, então, como uma família de
enunciados pertencentes a uma mesma Formação Discursiva.
Podemos destacar as seguintes contribuições de Foucault
para o estudo da linguagem (BRANDÃO, 1995, p. 31-32):
- concepção de discurso como atividade, articulada com outras
práticas não discursivas;
- o conceito de “Formação Discursiva”, cujos elementos
constitutivos são regidos por “regras de formação”;
- a distinção entre enunciação, com diferentes formas de jogos
enunciativos, e enunciado, unidade básica do discurso;
DISCURSO: é um con-junto de enunciados que têm seus princípios de regularidade em uma mesma Formação Dis-cursiva.
ATENÇÃO
Observe que não se pode confundir frase com enunciado. Frase é uma sequência de palavras, construída segundo os princípios da língua. O enunciado é o produto de uma enunciação, isto é, algo realmente dito ou escrito por uma pessoa, numa dada situação.
48 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O conceito de Discurso
- a concepção de discurso como jogo estratégico de ação e de
reação, de pergunta e de resposta, de dominação, de esquiva e de
luta;
- o discurso como espaço de articulação do saber e do poder.
Quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido
institucionalmente, o que gera poder;
- a produção dos discursos é controlada, selecionada,
organizada e redistribuída pelo poder.
Foucault, entretanto, não enfoca o discurso no nível linguístico.
A linguagem, enquanto discurso, é interação, é um modo de produção
social; ela não é neutra, inocente, porque está engajada numa
intencionalidade. O discurso também não é natural, espontâneo, mas
ele é o lugar privilegiado de manifestação da ideologia (BRANDÃO,
1995). A língua é o lugar material em que em que o discurso produz
os efeitos de sentido e faz emergir as signifi cações.
Dessa forma, o discurso é um dos aspectos materiais da
ideologia. Por isso, a Formação Ideológica governa uma ou várias
Formações Discursivas, que determinam o que pode e deve ser dito em
cada discurso, a partir de uma posição dada, numa dada conjuntura. A
Formação Discursiva representa a articulação entre língua e ideologia
e é só dentro dela que as palavras adquirem sentido.
Dessa forma, o sentido das palavras é produzido
historicamente pelo uso e o discurso é um efeito de sentido entre
locutores, posicionados em diferentes pontos de vista. Nessa
perspectiva, uma mesma palavra, expressão ou proposição pode
receber sentidos diferentes, conforme esteja sendo usada em uma
ou outra Formação Discursiva. Por exemplo, a palavra mulher, num
discurso machista, signifi ca gênero inferior ao homem; a mesma
palavra, num discurso humanista signifi ca gênero igual ao homem.
Vemos, portanto, que as palavras mudam de sentido ao passarem de
uma Formação Discursiva para outra.
Podemos ter também o caso de um
mesmo fenômeno receber nomes diferentes, em
diferentes Formações Discursivas. Por exemplo,
para o discurso político do governo norte-
americano, a pessoa que pratica um ataque
suicida é chamada de “terrorista”; mas, para o
discurso político dos palestinos, essa pessoa é
chamada de “mártir”. O discurso é, portanto, o
modo como se produz linguagem.
Isso mostra que as palavras, expressões Figura 1 - “terrorista” ou “mártir”? Homem bomba (por Annie Mole)Fonte: http://www.fl ickr.com/photos/anniemole/39379374/
FORMAÇÃO DISCUR-SIVA: conjunto de prin-cípios que determinam o que pode e deve ser dito em cada discurso, a par-tir de uma posição dada, numa dada conjuntura.
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49Letras VernáculasUESC
e proposições não têm um sentido próprio ou literal, mas têm um
efeito de sentido que se constitui na Formação Discursiva em que está
sendo usada. A antiga distinção entre sentido denotativo e conotativo
não consegue mais dar conta do signifi cado das palavras. O que
chamamos de sentido denotativo não passa de usos cristalizados da
língua à disposição do falante. Mas nem tudo se resolve pela mera
aplicação mecânica desses usos cristalizados nos dicionários.
Há muita coisa que tem de ser estruturada na hora do próprio uso da língua, na hora do funcionamento da língua. A própria situação e seus participantes entram na constituição da linguagem, no funcionamento da linguagem (ORLANDI, 1996, p. 117).
Vejamos a seguinte situação: como os alunos estivessem
fazendo muito barulho na sala de aula, o professor avisou: “Vou fazer
a chamada e não vou gritar! Quem não responder vai ter falta!” O
barulho diminuiu, mas não cessou de todo. No fi nal da chamada um
aluno veio reclamar: “Meu nome passou!”. E o professor, com ironia:
“Então corra atrás dele! Vá depressa para não fi car sem nome!” Na
verdade, ele sabia que o aluno queria dizer que não respondera à
chamada e queria ter sua falta apagada. Observe o funcionamento
da linguagem na fala do aluno: “Meu nome passou!”. Por ocupar uma
posição inferior e ter tido um comportamento indisciplinado, o aluno
não pode exigir do professor que lhe seja tirada a falta. Mas também
o aluno não pode admitir o próprio erro, dizendo que estava sem
prestar atenção, pois isso seria confessar a própria culpa e justifi car
a falta recebida. Ora, sabemos que esta situação e seus participantes
entram no funcionamento da linguagem. O aluno, então, usa da língua
o verbo “passou”, porque tal verbo nem faz exigência ao professor,
nem confessa sua própria falha. Ele diz: “Meu nome passou!” Nesse
caso, a culpa pela falta registrada não é do professor, nem do aluno,
mas é do “nome” que “passou”. Vemos, assim, que a escolha do
verbo “passou” não foi unicamente uma opção
linguística, mas foi uma escolha determinada
também pela situação e seus participantes.
A situação, portanto, faz parte do sentido. O
efeito de sentido do verbo “passou”, no discurso
do aluno, é o de pedir o apagamento da falta,
sem confessar sua culpa. Ou seja, temos de
fazer a análise do discurso, levando em conta
suas condições de produção.
O conceito de discurso é o da
50 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O conceito de Discurso
linguagem em interação, ou seja, a linguagem em relação às suas
condições de produção, levando em conta que a relação estabelecida
pelos interlocutores, assim como o contexto, são constitutivos da
signifi cação, do que se diz. Na AD, não podemos excluir a situação
e seus participantes, mas também não podemos fi car reduzidos a
isso. Um discurso não pode ser visto como sendo isolado de outros
discursos. Na verdade, o discurso não é algo pronto e acabado, mas
é um estado de um processo contínuo. Não há começo absoluto nem
ponto fi nal para um discurso, ele “tem sempre relação com outros
discursos, realizados ou possíveis” (ORLANDI, 1999, p. 39).
O discurso materializa o contato entre o ideológico e o
linguístico. A língua é uma só para toda uma mesma sociedade, mas
os confrontos ideológicos nas instituições são variados. Por isso, uma
mesma palavra da língua pode ter sentidos diferentes, a depender da
ideologia do discurso em que estiver sendo usada. O desafi o que a
AD enfrenta é justamente o de realizar leituras críticas e refl exivas,
sem reduzir o discurso aos seus aspectos linguísticos nem aos seus
aspectos ideológicos. A AD articula o linguístico com o social. “Então,
os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, isto é, as
condições de produção, constituem o sentido da sequência verbal
produzida” (ORLANDI, 1996, p. 26). O modo de funcionamento da
linguagem não é integralmente linguístico, uma vez que dele fazem
parte as condições de produção, que representam o mecanismo de
situar os protagonistas e o objeto do discurso.
Portanto, o discurso é o efeito de sentido construído no
processo de interlocução, relacionado ao lugar social de quem diz, ao
lugar de para quem se diz e aos outros discursos. No discurso, há uma
“relação necessária da linguagem com o contexto de sua produção”
(ORLANDI, 1996, p. 12). O discurso manifesta-se linguisticamente
nos textos. O texto não é um amontoado aleatório de enunciados,
mas uma unidade que possui um todo signifi cativo e acabado. Todo
texto se insere numa situação de discurso, isto é, devem ser levados
em conta: os interlocutores, o referente, o contexto imediato, e o
contexto histórico-social.
A dicotomia língua/fala de Saussure é substituída por uma
divisão entre língua/discurso/fala. O discurso é o lugar da relação
entre a invariabilidade da língua, com autonomia relativa, e a
variabilidade da fala que é dependente do discurso (GERALDI, 1996).
A língua é indiferente aos afrontamentos ideológicos nas instituições.
No exemplo já visto, ela fornece a mesma palavra mulher, tanto para
o discurso machista quanto para o discurso humanista. Ela fornece a
palavra terrorista para o discurso político da instituição governamental
TEXTO: é uma unidade de sentido que possui um todo signifi cativo e acabado.
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51Letras VernáculasUESC
norte-americana, como fornece a palavra mártir para a instituição
político-militar dos palestinos. A língua é, portanto, condição de
possibilidade do discurso.
Porém, o discurso não é indiferente aos afrontamentos
ideológicos nas instituições. Por isso o discurso machista e o discurso
humanista vão atribuir signifi cados diferentes à palavra mulher. Por
isso, na instituição governamental norte-americana, os autores de
ataques suicidas são chamados terroristas e, na instituição político-
militar dos palestinos, esses mesmos atacantes são chamados de
mártires. Assim, é no discurso que se faz a relação entre a indiferença
e invariabilidade da língua com a variabilidade e a ideologia do
enunciado.
As disputas ideológicas nas instituições sociais só podem ser
analisadas no discurso e não na língua. A língua é a mesma para
todos, mas os discursos variam conforme suas posições ideológicas.
Por serem interpelações ideológicas, os discursos fazem os indivíduos
assumirem “suas” posições de sujeitos na sociedade: “Quando alguém
se vê obrigado a ocupar um lugar dentro de um sistema de trabalho,
este processo já se deu anteriormente. Tal pessoa sabe, por exemplo,
que é um trabalhador e sabe o que tudo isto implica” (HENRY, 1993,
p. 26).
A paráfrase, repetição de sentido, e a polissemia, diferença
de sentidos, são os dois grandes processos da linguagem. A paráfrase
é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição. Explicar o
sentido de uma palavra, de uma frase ou de uma proposição é sempre
usar outra palavra, frase ou proposição, isto é, repetir o sentido
com outras palavras. A AD trabalha entre o mesmo (paráfrase) e
o diferente (polissemia), analisando como eles se inter-relacionam
no discurso. A Formação Discursiva se caracteriza pelo espaço de
reformulação-paráfrase.
Dessa forma, o discurso pode ser visto como uma dispersão
de textos que apresentam regularidades enunciativo-discursivas.
Assim, enunciados de diferentes textos, mas que foram produzidos
nas mesmas condições histórico-ideológicas, podem fazer parte de
um mesmo discurso. Por exemplo, os sermões ditos nas igrejas
católicas, nas missas de um domingo, pertencem a um mesmo
discurso porque obedecem a uma mesma doutrina, de uma mesma
Formação Discursiva. Por isso, “o discurso, por princípio, não se fecha,
mas é sempre um processo em curso (...) é uma prática” (ORLANDI,
1999, p. 71).
PARÁFRASE: é repeti-ção de sentidos seme-lhantes.
POLISSEMIA: é a dife-rença de sentidos.
52 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O conceito de Discurso
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Quais as relações entre instituições sociais, ideologia, língua e discurso?
2) O que é Formação Discursiva?
3) Qual a relação entre signifi cado de palavras e Formação Discursiva?
4) Apresente cinco enunciados de um mesmo discurso.
5) Identifi que três instituições sociais brasileiras atuais e aponte um
afrontamento ideológico em cada uma delas.
6) Explique o afrontamento ideológico que há hoje na instituição do Congresso
Nacional, entre a bancada ruralista e a bancada de esquerda.
RESUMINDO
Nesta aula você viu que discurso:
Está relacionado aos afrontamentos ideológicos nas instituições.
Articula língua e ideologia.
É um conjunto de enunciados que têm seus princípios de
regularidade em uma mesma Formação Discursiva.
É a linguagem em interação, levando em conta os interlocutores e
contexto da situação.
É uma dispersão de textos que apresentam regularidades
enunciativo-discursivas.
É sempre um processo em curso, sem ponto fi nal.
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53Letras VernáculasUESC
RE
FE
RÊ
NC
IAS
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed.
Campinas: UNICAMP, 1995.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Disponível em www.ciberfi l.
hpg.ig.com.br Acesso em: mar. 2009.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de
militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras; Associação de
Leitura do Brasil, 1996.
HENRY, Paul. Os Fundamentos Teóricos da ‘Análise Automática do
Discurso’ de Michel Pêcheux. In GADET, Françoise e HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. 2. ed. Tradução de
Tetrania S. Mariani et al.. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
(Coleção Repertórios). p. 13-38
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As
formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
______. Análise de discurso. Princípios & Procedimentos. Campinas:
Pontes, 1999
Suas anotações
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Ao fi nal desta aula você deverá:
• diferenciar texto e discurso;
• analisar os aspectos da relação entre texto e
discurso;
• identifi car os diversos discursos a partir de textos;
• identifi car na Linguística Textual e na Análise de
Discurso o objeto empírico e o objeto teórico;
• distinguir num texto os diferentes discursos.
4aula
Objetivos
TEXTO E DISCURSO
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57Letras VernáculasUESC
AULA 4TEXTO E DISCURSO
1 INTRODUÇÃO
Já vimos que a enunciação fez com que os estudos
linguísticos deixassem de considerar apenas a língua abstrata, tal
como formulada por Saussure, para tomar como objeto a linguagem,
incluindo a enunciação e a ideologia, enfocando unidades maiores
do que a palavra e a frase, como o texto e o discurso. Com isso,
os estudos passaram a não visar mais “o que o texto quer dizer”
(posição tradicional da análise de conteúdo), mas se voltaram para
a questão de como um texto funciona. Surgiram assim a Linguística
Textual e a Análise de Discurso. Embora mantenham semelhanças e
relações próximas, texto e discurso têm objetos teóricos diferentes.
O texto, enquanto enunciado, é a base empírica de ambas as teorias,
mas o discurso é uma categoria teórica mais abstrata.
LEITURAS PRÉVIASORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Uni-camp, 1999.
...
58 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso Texto e discurso
2 TEXTO E DISCURSO
Conforme já visto, a enunciação é única, porque se dá num
dado momento e num dado local. Mas o enunciado é repetível, isto
é, embora produzidos em momentos e locais diferentes, dois ou
mais enunciados podem apresentar regularidades que os tornem
governados por uma mesma Formação Discursiva. Vimos, na aula
anterior, o exemplo dos sermões, nas missas de um domingo, na
Igreja Católica: são enunciados diferentes, mas pertencem todos a
um mesmo discurso porque tratam de um mesmo tema, uma mesma
doutrina e têm uma mesma forma enunciativa. Cada sermão é um
texto e, portanto, o discurso é uma dispersão de textos e o texto é
uma dispersão de sequências discursivas. Para Brandão (1995, p.
92), o texto é uma:
[...] unidade complexa de signifi cação cuja análise implica as condições de sua produção (contexto histórico-social, situação, interlocutores). (...) o texto como objeto teórico não é uma unidade completa; sua natureza é intervalar, pois o sentido do texto se constrói no espaço discursivo dos interlocutores. Mas, como objeto empírico de análise, o texto pode ser um objeto acabado, com começo, meio e fi m.
Vemos, portanto, que o texto pode ser visto como objeto
teórico e como objeto empírico. Do ponto de vista empírico, o texto é
considerado em sua aparência, isto é, como o percebemos pela audição
(texto oral) ou pela visão (texto escrito). As disciplinas científi cas
dividem a realidade observável em regiões do conhecimento:
psicologia, geografi a, química etc. O objeto observacional ou empírico
é “a ‘região’ da realidade que a teoria privilegia como foco de sua
atenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis”
(DASCAL; BORGES, 1991, p. 19). A Linguística delimita sua região
observacional na linguagem, incluindo fonemas, sílabas, palavras,
enunciados, textos e discursos. Dessa forma, o texto, como objeto
empírico de análise, se apresenta como uma sequência acabada de
enunciados, com começo, meio e fi m.
O objeto teórico é construído a partir do objetivo geral do
estudo. Assim, um mesmo objeto observacional ou empírico pode
ser visto por meio de diferentes objetos teóricos, criados por teorias
diversas. O texto, enquanto objeto empírico ou observacional,
é sempre o mesmo, mas, enquanto objeto teórico, ele muda, por
exemplo, conforme a teoria seja a Linguística Textual ou a Análise de
Discurso. Na Linguística Textual, o texto é uma unidade completa de
OBJETO EMPÍRICO: é a área da realidade que uma teoria elege para ob-servar em seus estudos. Por exemplo, o objeto empírico da Medicina é o corpo humano.
OBJETO TEÓRICO: é um objeto criado por cada teoria, a partir do seu objetivo geral de es-tudo. Não é algo concreto da realidade. Por exem-plo, o objeto teórico da Medicina é a descrição e o funcionamento do cor-po humano.
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sentido; mas, na AD, ele não é uma unidade completa de sentido. Na
Linguística Textual, o texto é contínuo, mas, na AD, ele é intervalar
porque o sentido é construído no espaço discursivo dos interlocutores.
A AD instaura um objeto teórico diferente, o discurso, enquanto
interação. Mas esse objeto teórico, o discurso, só pode ser estudado no
texto, que é seu objeto empírico. O texto é uma unidade complexa de
signifi cação, consideradas as condições de sua realização. A unidade
fundamental da linguagem é o texto, a vocação da linguagem é ser
texto, isto é, a linguagem tende para a textualidade.
Todas as teorias linguísticas têm o mesmo objeto observacional:
a linguagem. No entanto, cada teoria tem objeto teórico diferente,
criando uma realidade particular da teoria, um mundo todo seu, que
não se confunde com o mundo tal como o observamos. Por exemplo,
quando uma pessoa fala com outra, a teoria gerativa de Chomsky
ignora o contexto da enunciação e se concentra no enunciado. Para
o fi lósofo Austin, a fala de uma pessoa realiza um ato assertivo
que envolve três atos: ato locutório – a emissão do enunciado; ato
ilocutório – tipo de ação que essa pessoa pratica com a emissão do
enunciado; e ato perlocutório, - o efeito que essa pessoa pretende
obter do destinatário com a emissão do enunciado. Vemos que o
objeto observacional ou empírico é a fala de uma pessoa com outra,
mas o objeto teórico varia.
O texto forma uma unidade signifi cativa global e é marcado
por um conjunto de relações, ou textualidade, que o tornam, não um
amontoado aleatório de enunciados, uma soma de frases, mas uma
unidade que possui um todo signifi cativo e acabado. Na Linguística
Textual, o objeto empírico ou observacional é o texto, enquanto um
todo signifi cativo e acabado, e seu objeto teórico é a textualidade,
isto é, suas relações internas e externas, que o diferenciam de uma
soma de frases.
Na Linguística Textual, a produção de texto é uma atividade
verbal, a serviço de fi ns sociais e, portanto, inserida em contextos
mais complexos de atividade. Trata-se de uma atividade interacional,
consciente, criativa, que compreende o desenvolvimento de estratégias
concretas de ação e a escolha de meios adequados à realização dos
objetivos (KOCH, 2001). Os textos resultam da atividade verbal de
indivíduos socialmente atuantes, no intuito de alcançar um fi m social.
Na AD, o texto, mesmo aquele que se constitui de uma
só palavra ou frase, se insere numa situação de discurso, ou seja,
o discurso se manifesta no texto. Por isso, são levados em conta
os elementos indispensáveis de sua produção: os interlocutores, o
referente, o contexto imediato e o contexto histórico, além do quadro
PARA REFLETIR
As várias ciências podem ter um mesmo objeto empírico, mas diferentes objetos teóricos. Veja-mos o caso da Química e da Física. Ambas têm como objeto empírico observacional a matéria de que é constituído o universo. No entanto, a Química delimita como seu objeto teórico os fe-nômenos da natureza que alterem a substância das coisas. Assim, o proces-so de queimar lenha em uma fogueira, é objeto da Química porque a ma-deira se transforma em cinzas, há uma mudança de substância das coisas. A Física, por sua vez, de-limita como seu objeto teórico os fenômenos da natureza que não alterem a substância das coisas. Assim, os movimentos das coisas no universo, como um carro que se desloca de um ponto a outro, ou a Terra se mo-vimentando ao redor do Sol, são objetos da Física porque nem o carro nem a Terra se transformam em outras coisas depois de realizarem seus movi-mentos.
ATENÇÃO
Observe que o objeto empírico é algo concreto, que podemos perceber com nossos sentidos. No caso do texto, ele é con-creto, pode ser percebi-do pela nossa audição, no texto oral; e pode ser percebido pela visão, no texto escrito. Na Linguís-tica Textual, o objeto te-órico são as relações de textualidade, pelas quais um texto não é uma soma de frases. Na AD, o objeto teórico é o discur-so que se manifesta no texto, sua discursividade. Dessa forma, empirica-mente, as duas teorias partem do mesmo objeto empírico, o texto; mas elas têm objetos teóricos diferentes.
60 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso Texto e discurso
das instituições em que o discurso é produzido. O texto, mais concreto,
é o nível de superfície de manifestação do discurso, que é algo mais
abstrato e subjacente ao texto.
Todo texto pode ser relacionado a uma Formação Ideológica,
de tal forma que o sentido se defi ne por essa relação. Cada Formação
Ideológica dá origem a duas ou mais Formações Discursivas. “Isso
quer dizer que, dependendo da inserção do texto em uma ou outra
formação discursiva, pode-se observar uma variação de sentido”
(ORLANDI, 1996, p. 73). A relação do texto com a ideologia se dá
pela Formação Discursiva de que ele faz parte.
Para a AD, o texto é uma unidade em cujo processo de
signifi cação também entra os elementos do contexto situacional.
Como já visto, para a AD, o texto é o objeto empírico, enquanto o
discurso é o objeto teórico. O texto é o todo que organiza os possíveis
recortes que dele se possa fazer. “E esse todo tem compromisso com
as tais condições de produção, com a situação discursiva” (ORLANDI,
1996, p. 140). O conceito de discurso é o da linguagem em relação
às suas condições de produção, ou seja, a relação estabelecida pelos
interlocutores, assim como o contexto, é constitutiva da signifi cação.
Os textos são partes de Formações Discursivas que, por sua vez, são
partes de uma Formação Ideológica.
Na AD, o discurso é o objeto teórico enquanto o texto é o
objeto empírico ou observacional. Na prática, a delimitação do discurso
é impossível porque se trata de um processo em curso, manifestando-
se em textos, e não de algo pronto e acabado. O discurso machista,
o discurso cristão, o discurso comunista, por exemplo, são todos
processos em curso na história e seu estado é sempre provisório,
nunca fi nal. “Os processos discursivos se delimitam e se defi nem na
sua inclusão em formações discursivas que, por sua vez, se defi nem
na sua inclusão em formações ideológicas” (ORLANDI, 1996, p. 229).
Vemos, portanto que é impossível delimitar um discurso, mas é possível
delimitar um texto. Assim, o objeto da explicação é o discurso e o
objeto observável de análise é o texto. Mas as propriedades do texto,
na AD, são aquelas que o constituem enquanto visto na perspectiva
do discurso.
Na Linguística Textual, o texto é visto em suas relações de
textualidade; mas, na AD, o texto é visto na perspectiva do discurso,
isto é, em sua discursividade. Na Linguística Textual, o texto é visto
como um objeto acabado, com começo, meio e fi m; mas, na AD, o
texto não é um objeto acabado, é incompleto, porque é referido às
suas condições de produção.
A AD parte do texto para remetê-lo imediatamente a um
PARA REFLETIR
Observe o conceito do que é texto: texto pode ser uma letra, uma pa-lavra, uma frase ou uma grande sequência de fra-ses, desde que tenham sentido completo numa dada situação. Por exem-plo, você entra em um restaurante e, no fi nal do salão, existem duas por-tas, uma com a letra H e outra com a letra M. Nes-ta situação, essas duas letras têm sentido com-pleto, elas indicam que ali são os banheiros para homens e para mulheres, respectivamente. Neste caso a letra H e a letra M são textos, porque todos entendem o que signifi -cam. Mas se, ao passar numa rua, eu vejo picha-das num muro as letras H e M, aí elas já não são textos porque não têm um sentido completo em tal situação. Então, o fato de eu ter nas mãos uma folha de papel, com al-guma coisa escrita, não signifi ca que eu tenho um texto. É preciso ver se, naquela situação, aque-la escrita no papel tem sentido completo. Vamos supor que esse papel seja uma carta que eu rece-bi. Nesse caso, trata-se de um texto. Mas vamos imaginar que o vento arranque esse pape da minha mão e esse papel seja levado até a um gru-po de lavadeiras na beira do rio. Para elas, esse pa-pel não tem nenhum sen-tido completo naquela si-tuação de lavar roupa no rio. Então não temos mais um texto.
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discurso. Este se delimita em suas regularidades pela referência
a uma ou outra Formação Discursiva que, por sua vez, deriva de
uma Formação Ideológica dominante numa dada conjuntura.
Enquanto o texto é concreto, palpável, o discurso não é dado, ele
supõe um trabalho do analista para ser alcançado (ORLANDI, 1999).
O texto, enquanto enunciado, é um produto acabado e, o analista,
ao estabelecer sua fi liação a uma dada Formação Discursiva, faz
aparecer o processo. Vamos supor o enunciado: “Mulher no volante,
perigo constante; com homem do lado, perigo dobrado.” Temos aí
um texto acabado, pronto. Num trabalho de análise, podemos ligar
esse texto à Formação Discursiva machista, uma vez que há uma
regularidade entre ambos de afi rmar a inferioridade da mulher em
relação ao homem. Ao fazermos isso, saímos do texto, enquanto
produto acabado, e entramos no processo discursivo, que é um
processo inacabado. O discurso, por princípio, não se fecha, é um
processo em curso. Ele não é um conjunto de textos, mas é uma
prática simbólica histórico-social.
A AD visa compreender como um objeto simbólico, como
o texto, produz sentidos. A transformação da superfície linguística
do texto em um processo discursivo, é o primeiro passo para essa
compreensão (ORLANDI, 1999). Por meio dessa análise é que se
observa a materialização da ideologia na língua, através do discurso,
e se apreende a historicidade do texto, isto é, sua relação com
uma conjuntura dada. Compreender como um texto funciona é
compreender como ele produz sentidos, enquanto objeto linguístico-
histórico, explicitando a discursividade que o constitui, passando da
superfície linguística do texto ao processo discursivo. Nesse modo
de pensar a relação do discurso com o texto, parte-se da variedade
textual para a unidade do discurso.
A análise de discurso tem como unidade o texto. Na perspectiva da análise de discurso, o texto é defi nido pragmaticamente como a unidade complexa de signifi cação, consideradas as condições de sua produção. O texto se constitui, portanto no processo de interação (ORLANDI, 1999, p. 21).
Portanto, na perspectiva da AD, o texto não é a soma de
frases e não é fechado em si mesmo. Para se passar da superfície
do texto ao processo discursivo, faz-se a operação de recorte, isto
é, a relação das partes com o todo, em que se procuram estabelecer
unidades discursivas. O todo que é o texto se impõe sobre suas partes
e tem a ver com as condições de produção, a situação discursiva. “É
ATENÇÃO
Observe que o texto é algo pronto, acabado, es-tabelecido. Mas o discur-so é um processo, é um fazer, é uma prática, nun-ca está acabado. Assim, podemos ter textos onde se manifesta o discurso machista, por exemplo, mas nunca vamos poder delimitar, em termos fi -nais, o discurso machis-ta. Este discurso já apa-rece em textos da bíblia, há mais de dois mil anos, e continua aparecendo hoje em numerosos tex-tos, como em ditos popu-lares sobre a mulher.
62 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso Texto e discurso
preciso não nos iludirmos com o texto enquanto unidade empírica,
mas pensá-lo como unidade imaginária, fazendo intervir na refl exão
a ideologia” ( ORLANDI, 2001, p. 13). O discurso é um processo, não
é um estado do qual se parte para a análise.
Nesse enfoque discursivo, o texto tem relação com o que não
é ele, isto é, com seus implícitos e com o que não é dito, além de sua
relação com outros textos. No exemplo já visto do discurso machista,
podemos ter o seguinte texto: “Mulher não fi ca louca, piora.” Observe
que não aparece a palavra homem. Mas ela está implícita. Além disso,
esse texto está relacionado a um outro que não é dito: “Homem fi ca
louco, não piora.” Portanto, na perspectiva da AD, o texto tem relação
com o que não é dito e com outros textos. Por isso, esse todo em que
se constitui o texto é de natureza incompleta.
Todo discurso é dominado por uma Formação Discursiva
e esta é um conjunto de regularidades numa prática discursiva.
Assim, para caracterizar um discurso é menos importante remeter
a um conjunto de textos efetivos do que a um conjunto virtual, o
dos enunciados produzíveis conforme as regras de regularidade da
Formação Discursiva. No exemplo acima, nunca poderemos reunir
todos os textos efetivos que pertencem ao discurso machista. O que
poderemos fazer é observar a Formação Discursiva que domina o
discurso machista e nos remetermos a um conjunto virtual de todos
os textos que afi rmem a superioridade do homem sobre a mulher.
Assim, o discurso machista não é um conjunto de textos, é uma
prática. A sua delimitação não vem da análise dos textos machistas,
mas da análise das regularidades enunciativas em sua produção
(ORLANDI, 1999).
Num mesmo texto podemos encontrar diferentes Formações
Discursivas. A relação entre essas diferentes Formações Discursivas no
texto podem ser de confronto, de sustentação mútua, de exclusão, de
neutralidade aparente, de gradação etc. Por exemplo, numa pesquisa
sobre o casamento gay, um informante respondeu com o seguinte
texto: “Sou contra o casamento gay porque Deus criou o casamento
entre o homem e a mulher para a procriação, o que é impossível com
pessoas do mesmo sexo.” Nesse texto, podemos observar a existência
de dois discursos: o discurso contra o casamento entre homossexuais
e o discurso religioso. Vemos também que a relação entre esses dois
discursos é de sustentação, isto é, o discurso religioso sustenta o
discurso contra o casamento gay.
Já vimos, portanto, que o texto é a manifestação verbal do
discurso, o que equivale a dizer que os discursos são lidos e ouvidos
sob a forma de textos. Um discurso é normalmente constituído de
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uma pluralidade de textos. Por exemplo, o discurso feminista, o
discurso sobre dietas para emagrecer e o discurso do PT são todos
uma pluralidade de textos. E vimos também que um só texto “é
normalmente atravessado por vários discursos” (CARDOSO, 1999,
p. 36).
O texto pode ser tomado como “uma unidade fechada e
completa, apenas enquanto objeto empírico de análise” (HANAUER,
1999, p. 142). Mas a AD está interessada no texto não como unidade
linguística disponível, naturalizada, objeto fi nal de sua explicação, mas
o texto como parte de um processo, como unidade que lhe permite
ter acesso indireto à discursividade. O analista de discurso não visa
interpretar os textos que analisa, mas compreender os processos de
signifi cação que estes textos atestam (ORLANDI, 2001, p. 50).
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Recorte um texto da mídia e identifi que um discurso contido nele.
2) Recorte outro texto da mídia e mostre dois discursos contidos nele.
3) Dê dois exemplos de textos formados por uma só palavra. Justifi que.
4) Produza um texto de cinco linhas, relacionado à Formação Discursiva de
incentivar a solidariedade internacional ao Haiti.
5) No texto da letra do hino nacional brasileiro, que enunciados pertencem ao
discurso sobre o povo brasileiro?
6) Produza um texto de, no máximo, dez linhas, em que apareçam o discurso
condenando a corrupção dos políticos e o discurso de que esta corrupção é
inevitável.
64 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso Texto e discurso
RESUMINDO
Nesta aula você viu que:
Em Análise de Discurso, o texto é o objeto observacional, enquanto
o discurso é o objeto teórico.
A Linguística Textual e a Análise de Discurso têm o mesmo objeto
observacional empírico, o texto. No entanto, na Linguística Textual,
o objeto teórico são as relações de textualidade; e, na Análise de
Discurso, o objeto teórico são as relações de discursividade.
Na AD, todo texto pode ser relacionado a uma Formação Discursiva
e a uma Formação Ideológica.
No enfoque discursivo, o texto está relacionado aos implícitos, aos
não ditos e a outros textos.
Um mesmo texto pode estar atravessado por diferentes discursos.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1995. CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Dis-curso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
DASCAL, Marcelo; BORGES NETO, José. De que trata a lingüística, afi -nal?. In: Histoire Epistemologie Langage, tome 13, fascicule I - 1991. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 1991. p. 13-50.
HANAUER, Jeane Maria. Sexo seguro/voto seguro: a questão do senti-do. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro. (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 138-148
KOCH, Ingedore V. O texto e a construção dos sentidos. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2001.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As for-mas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
_____. Análise de discurso. Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
_____. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Cam-pinas: Pontes, 2001.
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Suas anotações
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Aula 1O sujeito
Aula 2Condições de produção e formações imaginárias
Aula 3Pré-construído e discurso transverso
Aula 4Heterogeneidade discursiva e polifonia
1 2 3 4unidade
CONCEITOS TEÓRICOS DAANÁLISE DE DISCURSO
Ao fi nal desta aula você deverá:
• compreender o conceito de sujeito em Análise
de Discurso;
• identifi car nas teorias lingüísticas modernas
as etapas da concepção de sujeito;
• estabelecer a diferença entre discurso direto e
indireto;
• distinguir bom sujeito de mau sujeito;
• identifi car os tipos de esquecimento que afe-
tam o sujeito;
• entender o que signifi ca o autor em Análise de
Discurso;
• conceituar polifonia dialógica;
• relacionar o conceito de Sujeito com ideolo-
gia;
• relacionar o conceito de Sujeito com lugar
social.
1aula
Objetivos
O SUJEITO
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71Letras VernáculasUESC
1 INTRODUÇÃO
Já vimos q ue o discurso se manifesta nos textos. Ou seja, em
AD, o objeto empírico é o texto e o objeto teórico é o discurso. Enquanto
objeto teórico, o discurso é parte de uma construção, englobando
vários conceitos, que se relacionam, segundo os princípios da teoria
da AD. Um dos conceitos importantes nessa teoria é o de Sujeito. A
maior difi culdade para se compreender o Sujeito, em AD, é o fato
de essa mesma palavra já ter sido usada antes, em outras teorias,
com signifi cados diferentes. Em sintaxe, dividimos a oração em dois
termos essenciais: sujeito e predicado. Na teoria da enunciação, o
sujeito é aquele que fala, representado pelo pronome de primeira
pessoa, eu, em oposição a um tu. Em outras disciplinas científi cas,
como a sociologia e a antropologia, o termo sujeito assume outros
sentidos. Por isso, nesta aula, vamos ver o conceito de Sujeito, na
teoria da Análise de Discurso.
AULA 1O SUJEITO
LEITURAS PRÉVIASBRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1995. (Ler capítulo sobre Sujeito)
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
...
72 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O sujeito
2 O SUJEITO
A noção de sujeito, à primeira vista, parece tratar-se de uma
evidência, algo único, insubstituível e idêntico a si mesmo. Perguntamos
a quem bate à porta: “Quem é?” e a resposta é simplesmente: “Sou
eu!”. Este diálogo parece confi rmar a evidência de que o sujeito é
algo óbvio, “sou eu”. Na verdade, tal resposta é um absurdo porque é
evidente “que eu sou a única pessoa que poderia dizer “eu”, ao falar
de mim mesmo” (PÊCHEUX, 1997, p. 155). A palavra eu signifi ca
apenas a pessoa que fala. Na verdade, se perguntamos: “Quem é?”,
a resposta “sou eu” equivale a dizer “sou a pessoa que está falando!”.
E isso não responde à pergunta.
Para Benveniste (1989), na enunciação, o indivíduo se apropria
da língua e enuncia sua posição de locutor, ao mesmo tempo em
que implanta o outro diante de si. Embora não tenhamos consciência
disso, quando alguém fala, introduz a si mesmo em sua fala. A nossa
crença ingênua é a de que é evidente quem somos, é óbvio que
todos sabem quem somos e que a nossa fala apenas representa esse
fato anterior. Tal ilusão não resiste à simples lembrança de quantos
sujeitos diferentes já constituímos para nós mesmos em nossa fala.
Será que o que você chama hoje de “eu” é o mesmo sujeito em sua
fala de criança ou adolescente? Por que não percebemos que, ao longo
de um mesmo dia, e com a mesma palavra eu, somos assujeitados
a diferentes discursos e sujeitos? Porque, a cada momento em que
estamos assujeitados à forma-sujeito de um discurso, achamos que
sempre-já fomos tal sujeito. A interpelação ideológica atual nos faz
acreditar que sempre fomos esse único e mesmo sujeito.
Ou seja, toda vez que nos apropriamos da língua, enunciamos,
por meio do “eu”, nossa posição de locutor, aqui e agora. “O sujeito
que produz linguagem também está reproduzido nela, acreditando
ser a fonte exclusiva de seu discurso, quando, na realidade, retoma
um sentido preexistente” (ORLANDI, 1996, p. 26).
Ao mesmo tempo, implantamos o outro diante de nós. Mais
uma vez, a nossa crença ingênua é a de que é evidente quem o
outro é, todos sabem quem é a pessoa com quem estou falando, e
é óbvio que nossa fala apenas representa esta realidade anterior.
Novamente, essa ilusão não resiste à simples lembrança de quantos
outros já instituímos para uma mesma pessoa. Por exemplo, ao falar
com sua mãe hoje, você a está constituindo em outro, da mesma
forma que o fazia quando criança? A pessoa é a mesma, mas a forma
como você a institui em outro, varia a cada enunciação.
Segundo Brandão (1995), a concepção de sujeito nas teorias
PARA REFLETIR
Ao longo de um mesmo dia, somos assujeitados a diferentes Formações Dis-cursivas com seus sujeitos. Por que não notamos essas mudanças? Porque toda vez que somos assujeita-dos, o sujeito parece ter sido sempre-já esse sujeito. Por exemplo, vamos supor que você brinque o carnaval e, na semana seguinte, você seja convertido a uma igreja evangélica. Ao ser assujei-tado à Formação Discursiva evangélica e ao seu sujeito, você vai lembrar-se do car-naval que brincou. No entan-to vai lembrá-lo agora como sujeito evangélico, dizendo que você estava perdido, dominado por Demônio etc., e não mais como um folião animado. Ao ser assujeitado à Formação Discursiva evan-gélica e ao seu sujeito, você acha que sempre-já era esse sujeito e, portanto, o sujeito carnavalesco é apagado, e o que aparece é um sempre-já sujeito evangélico. Cada sujeito discursivo, que nos assujeita, elimina todos os outros a que já fomos sub-metidos antes. Esse apa-gamento é inconsciente e o sujeito não tem acesso a ele.
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73Letras VernáculasUESC
linguísticas modernas passou por três etapas:
a) Numa primeira etapa, predomina a idéia de interação,
de harmonia conversacional, troca entre o eu e o tu.
O sujeito é aquele que conversa tranquilamente com o
outro, segundo as convenções sociais.
b) Numa segunda etapa, há uma idéia de confl ito,
sobretudo político, em que a tarefa de convencer o tu
determina o que o eu diz. Essa concepção, fortemente
infl uenciada pela retórica, é centrada no outro, que
exerce uma espécie de tirania sobre o eu.
c) Numa terceira etapa, o sujeito passa a ter um caráter
contraditório. Marcado pela incompletude, numa
relação dinâmica entre identidade e alteridade, o
sujeito é ele e o outro. O centro da relação está no
espaço discursivo criado entre ambos e o sujeito só se
completa na interação com o outro.
Podemos ver o caráter contraditório do sujeito no discurso
relatado. Por exemplo:
[...] ao exaltar a importância da obra, a ministra [Dilma Roussef] lembrou que a oposição já investiu contra os programas de transferência de renda do governo (...). Em outra solenidade no mesmo dia (...) foi a vez do presidente Lula: ‘Que me desculpem os adversários, mas nós vamos ganhar para poder ter continuidade... (VEJA, 27/01/2010, p. 56)
Na primeira parte do texto acima, vemos um discurso indireto,
em que o locutor usa suas próprias palavras para remeter a uma
outra fonte de “sentido”, a ministra Dilma Roussef.
Na segunda parte do mesmo texto, vemos um discurso direto,
o locutor recorta as palavras do outro e cita-as. Vemos, portanto,
que um locutor complexo e contraditório inscreve no seu discurso as
palavras do outro, mostrando-as através das aspas, como no texto
acima, ou, em outros textos, através do itálico ou de uma entonação
específi ca.
Na ironia, no discurso indireto livre, na imitação etc., o locutor
joga com o outro discurso, mas sem mostrar explicitamente, como
nos exemplos acima, uma fronteira linguística nítida entre sua fala de
locutor e a do outro. Por exemplo, uma apresentadora de debate na
televisão (TV Globo, “Espaço Aberto” em 15/01/2010), se referindo
a Lula, disse: “Nunca antes nesse país se viu um presidente fazer
DISCURSO INDIRE-TO: é um discurso em que o locutor usa suas próprias palavras para relatar o que disse um outro locutor.
DISCURSO DIRETO: é o discurso em que o locutor recorta as pala-vras do outro e cita-as.
74 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O sujeito
tanta campanha política!” A expressão “Nunca antes nesse país” fora
repetida por Lula, alguns meses atrás e fora objeto de comentários
satíricos. A apresentadora não cita explicitamente o presidente Lula,
mas, por meio da ironia, a voz do outro fi ca implícita, sugerida e as
vozes de ambos se imiscuem nos limites de uma única construção
linguística.
Vemos assim que a substância da língua não é constituída
por um sistema abstrato de formas, como estabeleceu Saussure,
mas pelo fenômeno da interação social verbal, realizada através da
enunciação. Da mesma forma, a concepção de sujeito vai perdendo a
polaridade entre, ora o eu e ora o tu, e vai se tornando uma relação
dinâmica entre identidade e alteridade. “O sujeito só constrói sua
identidade na interação com o outro. E o espaço dessa interação é
o texto” (BRANDÃO, 1995, p. 62). Por isso, a signifi cação se dá no
espaço discursivo constituído pelos dois interlocutores.
Fica claro que, em AD, o sujeito não é a pessoa física que fala
ou escreve, nem é dado antes, a priori. O sujeito, como o sentido, é
constituído no discurso, isto é, o sujeito só é apreensível no discurso.
“O discurso só é discurso enquanto remete a um sujeito, um EU, que
se coloca como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais”
(MAINGUENEAU, 2001, p. 55). Não é o sujeito que fala o discurso,
mas é este que fala aquele. O indivíduo da espécie humana só se
torna sujeito quando é interpelado por uma Formação Ideológica e
assujeitado a uma Formação Discursiva. Assim, não é o indivíduo
que escolhe o que vai dizer no discurso. Ao contrário, é a Formação
Discursiva que determina o que o sujeito do discurso pode e deve
dizer e o indivíduo a ela é assujeitado. Ou seja, cada discurso já
tem sua posição de sujeito, como um lugar vazio, que é ocupado
por diferentes indivíduos, assujeitados a tal Formação Discursiva. O
sujeito é uma certa posição sócio-histórica, na qual os enunciadores
são substituíveis, podendo ser ocupada por indivíduos diversos.
Por isso, sujeitos falantes, tomados em uma conjuntura histórica
determinada, podem concordar ou se afrontar, numa Formação
Ideológica, a depender da Formação Discursiva que os domine: “isto
defi ne o sujeito como uma posição, e não como uma coisa em si
mesma, como sustância” (HENRY, 1993, p. 29) O indivíduo é o “não
sujeito”, a ideologia é que constitui esses indivíduos concretos em
sujeitos. “Isso quer dizer que os sentidos que produzimos não nascem
em nós. Nós os retomamos” (ORLANDI, 1996, p. 83).
A interpelação ideológica tem um efeito retroativo, fazendo
com que todo sujeito ache que sempre já era indivíduo interpelado
em sujeito.
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75Letras VernáculasUESC
2.1 Bom sujeito e mau sujeito
As formas concretas da ideologia são realizadas nas
instituições. Quando o sujeito da enunciação segue completamente a
forma-sujeito da Formação Discursiva dominante, ele é chamado “bom
sujeito”. Aquele sujeito que não segue completamente a Formação
Discursiva dominante é o chamado “mau sujeito”. Por exemplo,
na igreja católica de hoje, a Formação Discursiva dominante, é a
tradicional, liderada pelo papa Bento XVI. Muitos sujeitos católicos,
no entanto, não seguem completamente à essa Formação Discursiva
tradicional dominante e seu sujeito. Eles defendem, por exemplo,
o uso da camisinha e do aborto; e são, por isso, “maus sujeitos”
católicos.
Vemos que há uma contradição no interior dessa concepção
de sujeito da AD: ele não é totalmente livre nem é totalmente
submetido. O espaço de sua constituição é tenso. Ao mesmo tempo
em que é interpelado pela ideologia, ele ocupa na Formação Discursiva
que o determina, com sua história particular, um lugar que é único,
especifi camente seu. A identifi cação do sujeito do discurso com a
Formação Discursiva que o domina é a forma-sujeito, isto é, o sujeito
interpelado e afetado pela ideologia.
A AD trabalha com um sujeito “atravessado pelo componente
ideológico e inconsciente, componentes que se manifestam
materialmente na linguagem” (LIMA, 1999, p. 264). Numa dada
formação social e num dado momento, uma instituição social pode
apresentar afrontamentos ideológicos, com diferentes Formações
Discursivas. E aí surgem as variações ideológicas, não originadas a
partir de uma autoconsciência do sujeito, mas originadas a partir de
novas interações já existentes na sociedade, mesmo que ainda não
sejam dominantes.
Cada Formação Discursiva não determina um sujeito único,
mas diferentes posições de sujeito. No exemplo dado da Igreja,
o discurso católico tradicional e o discurso católico que aceita a
camisinha e o aborto, oferecem diferentes posições de sujeito, dentro
da mesma Formação Discursiva católica. No caso dos movimentos
sociais brasileiros que lutam pela reforma agrária, temos o discurso
do MST e do MLT oferecem diferentes posições de sujeito, dentro da
mesma Formação Discursiva a favor da reforma agrária.
O conceito de sujeito totalmente subjugado anula
toda e qualquer possibilidade de verdadeiros sujeitos, agindo e
eventualmente interferindo no curso da história. Em outras palavras,
anula a possibilidade de os sujeitos assumirem posições éticas. Cai-se
SUJEITO: é um lugar va-zio, uma posição sócio-histórica em cada For-mação Discursiva, que é ocupado por diferentes indivíduos assujeitados a tal Formação Discursiva.
BOM SUJEITO: é o su-jeito da enunciação que segue completamente a forma-sujeito da Forma-ção Discursiva dominante.
MAU SUJEITO: é o sujei-to da enunciação que não segue completamente a forma-sujeito da Forma-ção Discursiva dominante.
76 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O sujeito
numa causalidade puramente mecânica: não se dá conta de como os
regimes de poder se transformam em consequência do realinhamento
de suas forças. Não se reconhece a natureza mutante do equilíbrio
de poder e consequentemente a natureza dinâmica da estrutura
social, assim como a heterogeneidade das identidades sociais e das
estruturas do discurso. Não se reconhece que os diversos elementos
que constituem essas estruturas estão em permanente estado de
tensão entre si (CARDOSO, 1990).
Ao ser interpelado por uma Formação Ideológica e assujeitado
a uma Formação Discursiva, numa dada instituição social, o sujeito
sofre a infl uência do momento histórico da enunciação. No exemplo já
visto da Igreja, ao ser assujeitado hoje à Formação Discursiva católica,
o sujeito sofre a infl uência das atuais condições de produção desse
discurso, incluindo a existência da camisinha e de formas seguras
de aborto. Isso altera o equilíbrio de poder dentro da Igreja. Assim,
dentro da instituição católica, diferentes discursos e sujeitos podem
assujeitar os indivíduos. Mas não se trata de o indivíduo escolher
este ou aquele discurso católico. O processo de assujeitamento é
inconsciente e o sujeito se coloca como fonte do que diz, considera-se
sempre-já sujeito, por causa dos esquecimentos, conforme veremos
a seguir.
2.2 Os esquecimentos
O sujeito é afetado por dois tipos de esquecimento, criando
uma realidade discursiva ilusória. Pelo primeiro esquecimento,
o sujeito se coloca como a origem do que diz, fonte exclusiva do
sentido de seu discurso. Trata-se de um esquecimento inconsciente e
ideológico, inacessível ao sujeito, ao mesmo tempo em que o constitui.
Por esse esquecimento, o sujeito rejeita e apaga, inconscientemente,
“qualquer elemento que o remeta ao exterior de sua Formação
Discursiva” (BRANDÃO, 1995, p. 65). Nesse processo de apagamento,
o sujeito tem a ilusão de que é ele o criador absoluto do seu discurso.
O “esquecimento” é o acobertamento da causa do sujeito no próprio
interior do seu efeito. “O efeito-sujeito é constituído-produzido por
um processo natural e sócio-histórico. Mas é constituído-reproduzido
como interior sem exterior. (...) há o acobertamento da causa do
efeito-sujeito, no próprio interior desse efeito-sujeito” (PÊCHEUX,
1997, p. 183). Por exemplo, um indivíduo assujeitado a um discurso
evangélico fundamentalista torna-se um sujeito que não tem mais
acesso ao seu exterior, antes de ter se tornado evangélico. Ao falar
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sobre esse passado, ele dirá que era uma ovelha perdida, que ainda
não havia se encontrado com Jesus. Ele fala como se sempre-já fosse
um crente, sem exterior.
A identifi cação fundadora do sujeito com a Formação
Discursiva que o constitui e domina é que estabelece a unidade
imaginária do sujeito. Os traços que determinam o sujeito são re-
inscritos no discurso do próprio sujeito. O esquecimento 1 é uma zona
inacessível ao sujeito, porque é aí que este se constitui.
O segundo esquecimento se caracteriza pela possibilidade de
o sujeito retomar seu discurso para explicar a si mesmo, reformulá-
lo e usar estratégias discursivas, como interrogação retórica,
reformulação tendenciosa e o uso manipulatório da ambiguidade.
Esse esquecimento permite a operação linguística que todo falante
faz entre o que é dito e o que deixa de ser dito e dá ao sujeito a
ilusão de que o discurso refl ete o conhecimento objetivo que tem da
realidade. O sujeito “esquece” que seu discurso resulta, num nível
anterior ao dessas escolhas linguísticas, da interpelação ideológica e
do assujeitamento à Formação Discursiva.
É por este segundo esquecimento que o sujeito-falante ‘seleciona’,
no interior da Formação Discursiva que o domina, um enunciado,
forma ou sequência, e não um outro. O sujeito pode penetrar
conscientemente na zona do esquecimento 2, por um retorno de seu
discurso sobre si, numa estratégia discursiva. Na medida em que o
sujeito se corrige para explicitar a si próprio o que disse e formulá-lo
mais adequadamente, “pode-se dizer que esta zona 2, que é a dos
processos de enunciação, se caracteriza por um funcionamento do
tipo pré-consciente/consciente” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 177).
Por causa desses esquecimentos, o sujeito é, ilusoriamente,
construído com a ideia de ser uno, central e origem do sentido. Já
vimos que um texto pode ter vários discursos e, portanto, várias
posições de sujeito. Por isso o texto não tem um sujeito uno
central, mas é uma dispersão de sujeitos, ocupando várias posições
enunciativas. No exemplo dado da Igreja católica, o texto produzido
pelo fi el que defende o uso da camisinha e do aborto, é uma dispersão
de sujeitos: há um sujeito católico, que segue os dogmas centrais
dessa religião, mas há também um sujeito não-católico, que segue
os dogmas centrais, mas se rebela contra algumas orientações da
Igreja. Por outro lado, o discurso é uma dispersão de textos porque
pode estar atravessado por várias Formações Discursivas, tendo uma
delas a relação de dominância sobre as outras. No caso do discurso
católico hoje, ele é atravessado por várias Formações Discursivas,
como as que defendem o uso da camisinha e do aborto, mas a
PARA REFLETIR
Observe que o sujeito não é uma pessoa físi-ca, um corpo biológico. O sujeito não tem subs-tância fora do discurso. A Formação Discursiva estabelece, simultanea-mente, o sentido (o que o sujeito pode e deve dizer) e o próprio sujei-to. Só existe sujeito em um discurso. E o sujeito é exatamente o que se apresenta como fonte do sentido do discurso.
ESQUECIMENTO nº 1: é o esquecimento, por parte do sujeito, de que foi assujeitado e, por isso, se coloca como a fonte exclusiva do senti-do de seu discurso.
ESQUECIMENTO nº 2: é o esquecimento, por parte do sujeito, de que foi assujeitado e, por isso, seleciona pa-ráfrases, dentro da For-mação Discursiva domi-nante, com a ilusão de que o discurso refl ete o conhecimento objetivo que tem da realidade.
78 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O sujeito
Formação Discursiva tradicional exerce uma relação de dominância
sobre as outras. Assim, o mesmo discurso católico pode aparecer em
variados textos ortodoxos, em que só aparece a Formação Discursiva
tradicional dominante; e em variados textos não-ortodoxos em
que aparecem, além da tradicional dominante, outras Formações
Discursivas diversas.
2.3 O autor
Como é que o texto, sendo uma dispersão de sujeitos e
discursos, pode nos parecer como tendo uma unidade textual? É
porque, segundo a AD, em cada texto, há uma Formação Discursiva
e um sujeito dominantes. Este sujeito dominante cria um efeito
discursivo que deriva do princípio do autor, uma das ordens
reguladoras do discurso. O autor, em AD, não é o indivíduo que fala ou
que escreve, mas é como um princípio de agrupamento do discurso,
como unidade, origem e coerência de suas signifi cações. Apesar dos
diferentes discursos em um texto, o sujeito da Formação Discursiva
dominante estabelece um efeito discursivo que unifi ca coerentemente
as signifi cações.
A agência de notícias Reuters, divulgou o seguinte texto:
O pregador pessoal do papa, padre Raniero Cantalamessa, disse durante o sermão desta sexta-feira na Basílica de São Pedro que os ataques à Igreja Católica e ao papa sobre escândalos de abuso sexual podiam ser comparados à ‘violência coletiva’ contra os judeus.
Nesse texto, vemos um enunciado do discurso em defesa
do papa e da Igreja católica, vemos um enunciado do discurso sobre
escândalos de abuso sexual na Igreja católica e vemos um enunciado
do discurso sobre a violência coletiva contra os judeus. A Formação
Discursiva dominante é a de defesa do papa e da Igreja católica, uma
vez que ela determina um efeito discursivo que unifi ca coerentemente,
por meio de uma comparação, o discurso sobre escândalos de abuso
sexual e o discurso sobre a violência coletiva contra os judeus. O
autor, portanto, é uma função do sujeito desse discurso dominante,
em defesa do papa e da Igreja católica. Ele funciona como um princípio
de agrupamento dos discursos, como unidade, origem e coerência
de suas signifi cações, comparando as críticas feitas à Igreja pelos
escândalos de abuso sexual à violência coletiva contra os judeus.
O princípio do autor é o elemento que centraliza, que ordena,
que dá unidade ao discurso, sob a forma do texto, excluindo os possíveis
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elementos desviantes da forma individual do eu. Este princípio
limitaria o acaso do discurso, sua proliferação, sua descontinuidade e
sua desordem. Tudo se passa como se interditos, barragens, limites
fossem dispostos de maneira dirigida, para que sua desordem fosse
organizada e controlada.
A autoria é necessária para qualquer discurso e é o que dá
origem à textualidade. O sujeito falante tem as seguintes funções
enunciativas:
a) locutor – aquele que se representa como eu no discurso;
b) enunciador – é a perspectiva, o ponto de vista que esse
eu constrói;
c) autor – é a função social que esse eu assume, enquanto
produtor da linguagem. O autor é a função enunciativa
do sujeito que está mais determinada pela exterioridade
(contexto sócio-histórico) e mais afetada pelas exigências
de coerência, não-contradição, responsabilidade.
2.4 Polifonia
Essa noção do sujeito que se desdobra e assume vários papéis
no discurso nos remete ao conceito de polifonia dialógica, oposto a um
discurso monológico. Há discursos que se “fi ngem” monológicos, uma
vez que toda palavra é dialógica. Assim, todo discurso tem dentro
dele outro discurso, porque tudo que é dito é um “já-dito”.
A polifonia conceito elaborado inicialmente por Bakhtin que o aplicou à literatura, foi retomado posteriormente por Ducrot que lhe deu um tratamento lingüístico. Refere-se à qualidade de todo discurso estar tecido pelo discurso do outro, de toda fala estar atravessada pela fala do outro (BRANDÃO, 1995, p. 91).
Vemos, portanto que, na AD, o sujeito é marcado por
contradições. Podemos ver isso no seguinte diálogo: “Você é ateu?”
E o outro responde: “Sou ateu, graças a Deus!” O sujeito não é
totalmente livre, nem totalmente assujeitado, entre a incompletude
e o desejo de ser completo, entre a dispersão do sujeito e a vocação
totalizante do locutor em busca da unidade e coerência textuais,
entre o caráter polifônico da linguagem e a estratégia monofonizante
de um locutor marcado pela ilusão do sujeito como fonte, origem do
sentido. “O sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas tal como
existe socialmente, interpelado pela ideologia” (BRANDÃO, 1995,
p. 92). Dessa forma, o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do
AUTOR: não é o indivíduo que fala ou escreve, mas é um efeito discursivo, como um princípio de agrupamento do discurso, como unidade, origem e coerência de suas signifi cações.
80 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Linguística III - Teoria da análise de discurso O sujeito
sentido, porque na sua fala outras falas se dizem. A ilusão discursiva
do sujeito consiste em pensar que é ele a fonte, a origem do sentido
do que diz.
AATIVIDADETIVIDADE
1. Comente a diferença entre indivíduo e sujeito.2. Explique o esquecimento 1, constitutivo do sujeito. 3. Recorte algum texto em que aparece o sujeito usando as possibilidades do esquecimento
2.4. Recorte algum texto e destaque a polifonia existente. 5. Em suas falas, ao longo do dia, você acha que permanece sempre o mesmo sujeito de um
mesmo discurso? Por quê?6. Você acha que pode existir a fala de um sujeito, sem estar assujeitado a nenhuma
formação discursiva? Explique.7. Quando um pastor evangélico e um padre católico recitam juntos a oração do “Pai Nosso”,
quem é o sujeito desse discurso? Por quê?
Nesta aula, você viu que:
O sujeito que produz linguagem também está reproduzido nela, acre-ditando ser a fonte exclusiva de seu discurso.
O sujeito tem um caráter contraditório, marcado pela incompletude, numa relação dinâmica entre identidade e alteridade.
O sujeito não é a pessoa física que fala ou escreve, nem é dado antes, a priori.
O sujeito é afetado por dois tipos de esquecimento, criando uma reali-dade discursiva ilusória.
A Formação Discursiva determina o que o sujeito do discurso pode/deve dizer e o indivíduo a ela é assujeitado.
Pelo primeiro esquecimento, o sujeito se coloca como a origem do que diz, fonte exclusiva do sentido de seu discurso.
O segundo possibilita o sujeito retomar seu discurso para explicar a si mesmo.
O autor, em AD, não é o indivíduo que fala ou que escreve, mas é como um princípio de agrupamento do discurso, como unidade, origem e coerência de suas signifi cações.
O sujeito é marcado por contradições. Todo discurso é dialógico.
RESUMINDO
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81Letras VernáculasUESC
BENVENISTE, Émile. O Aparelho Formal da Enunciação. In: ____. Pro-blemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guima-
rães et al. Campinas: Pontes, 1989.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. 4.
ed. Campinas: UNICAMP, 1995.
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
HENRY, Paul Os Fundamentos Teóricos da Análise Automática do Dis-
curso de Michel Pêcheux. In GADET, Françoise; HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso. 2. ed. Tradução de Tetrania S.
Mariani et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. p. 13-38. (Coleção
Repertórios).
LIMA, Regina Bimbi. O enunciado: pontos de deriva possíveis. In: IN-
DURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múlti-plos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzat-
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MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza Silva; Décio Rocha. São Paulo: Cortez,
2001.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As for-
mas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afi rmação
do óbvio. 3. ed. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi; Lourenço Chacon
Jurado Filho; Manoel Luiz Gonçalves Corrêa; Silvana Mabel Serrani.
Campinas: UNICAMP, 1997.
PÊCHEUX, Michel. FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do
Discurso: Atualização e Perspectivas (1975). In: GADET, Françoise;
HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso. 2. ed.
Tradução de Tetrania S. Mariani et al. Campinas: Editora da UNICAMP,
1993. (Coleção Repertórios). p. 163-235.
REUTERS. http://br.reuters.com/article/topNews/idBRSPE632014201
00403 Acesso em: mar. 2010.
RE
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Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, você deverá:
• conceituar condições de produção e compre-ender sua relação com o contexto histórico-social;
• estabelecer a diferença entre condições de produção e formações imaginárias;
• identifi car as condições materiais de produ-ção em que o sujeito está inserido;
• relacionar condições de produção com For-mações Imaginárias;
• relacionar o discurso ao seu contexto sócio-histórico.
2aula
Objetivos
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS
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1 INTRODUÇÃO
Já vimos que o sujeito se coloca no discurso, simultaneamente
ao sentido. Também as condições de produção, incluindo os
interlocutores, o contexto imediato e o contexto sócio-histórico, estão
postos no discurso, através das Formações Imaginárias. Para a AD,
as condições de produção são instituídas no e pelo discurso, e não
são estudadas fora dele, como elementos anteriores e exteriores. Ao
contrário, são partes constitutivas da prática discursiva. A realidade
referencial, o sujeito e o destinatário não antecedem objetivamente o
discurso, cabendo a este apenas refl eti-lo, mas todos são estabelecidos
discursivamente.
AULA 2CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO EFORMAÇÕES IMAGINÁRIAS
LEITURAS PRÉVIASBRANDÃO, Helena H. N. In-trodução à análise do dis-curso. 4. ed. Campinas: UNI-CAMP, 1995.
...
86 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Condições de produção e formações imagináriasLinguística III - Teoria da análise de discurso
2 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E FORMAÇÕES IMAGINÁ-RIAS
Para a AD francesa, o discurso é produzido por um sujeito
interpelado pela ideologia e situado na história. Assim, o contexto
histórico-social, a situação, os interlocutores formam as condições de
produção desse discurso. “A linguagem, por realizar-se na interação
verbal entre locutores socialmente situados, não pode ser considerada
independentemente da sua situação concreta de produção” (CARDOSO,
1999, p. 11). Por isso “a linguagem é sempre relacionada à sua
exterioridade, ou seja, as condições de produção são constitutivas da
linguagem” (ABREU, p. 25). Dessa forma, o sujeito está inserido em
determinadas condições materiais de produção de sentido, isto é, a
língua, as instituições e as Formações Imaginárias. A língua é sujeita
ao equívoco e à historicidade; as instituições fazem parte da ordem
de uma formação social; e as Formações Imaginárias correspondem
à imagem do lugar social que o sujeito e seu destinatário atribuem a
si mesmos e ao outro. O sujeito funda a estratégia do discurso sobre
uma antecipação que faz dessas imagens do destinatário.
As palavras não signifi cam por si, mas pelas posições
que ocupam as pessoas que as falam. Assim, o discurso deve ser
visto em relação com a exterioridade que o constitui. Portanto, “os
sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com
a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não
dependem só das intenções dos sujeitos” (ORLANDI, 1999a, p. 30).
As condições de produção implicam a língua, sujeita ao equívoco e
à história, as instituições sociais numa dada estrutura social e as
formações imaginárias. Estas produzem imagens dos sujeitos e do
objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica.
Um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está ‘isolado’ etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridícula segundo a posição do orador, e do que ele representa, em relação ao que diz: um discurso pode ser um ato político direto ou um gesto vazio, para “dar o troco”, o que é uma outra forma de ação política (PÊCHEUX, 1993, p. 77).
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Nas condições de produção de um discurso, isto é, a língua,
a formação social e as Formações Imaginárias, um desses elementos
pode se tornar dominante. Por exemplo, num discurso sobre o tema
“liberdade”, numa aula de fi losofi a, a língua vai ser o elemento
dominante nas condições de produção desse discurso, porque
o sujeito professor vai estar voltado para a representação que os
alunos fazem dessa palavra, naquele momento histórico. No discurso
que o diretor de uma prisão faz sobre o mesmo tema, “liberdade”,
o elemento dominante nas condições de produção é a ordem da
formação social, porque tudo está condicionado pela imagem que os
detentos formarão do representante do regulamento através de seu
discurso. Finalmente, no discurso de um terapeuta sobre “liberdade”,
o elemento dominante são as Formações Imaginárias porque o
principal, na produção do discurso, é a imagem que o paciente faz de
si mesmo. Ou seja, numa terapia psicológica, o elemento dominante
são as imagens que o paciente faz de si mesmo, em relação à
liberdade: ele se acha livre? Ele se vê preso a medos?
Condições de produção é a ligação entre as “circunstâncias”
de um discurso e seu processo de produção (PÊCHEUX, 1993). Por
isso, as condições históricas são inerentes às condições de produção.
Há, portanto, uma relação necessária entre o dizer e as condições de
produção desse dizer. “Quando se diz algo, alguém o diz de algum
lugar da sociedade para outro alguém também de algum lugar da
sociedade e isso faz parte da signifi cação” (ORLANDI, 1996, p. 26).
Lugar deve ser compreendido enquanto espaço de representações
sociais que é constitutivo da signifi cação discursiva. Os protagonistas
do discurso, conforme já visto, não são pessoas físicas individuais, mas
a representação imaginária de determinados lugares, na estrutura de
uma formação social.
Assim, no interior de uma instituição escolar há ‘o lugar’ do diretor, do professor, do aluno, cada um marcado por propriedades diferenciais. No discurso, as relações entre esses lugares, objetivamente defi níveis, acham-se representadas por uma série de ‘formações imaginárias’ que designam o lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro (BRANDÃO, 1995, p. 36).
As Condições de Produção são constitutivas do discurso em
vez de serem meros complementos. “Não se dirá, assim, que se
acrescentam dados históricos para melhor delimitar a signifi cação;
dir-se-á que o processo de signifi cação é histórico” (ORLANDI, 1999b,
88 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Condições de produção e formações imagináriasLinguística III - Teoria da análise de discurso
p. 18). Portanto, a relação que liga os sentidos às condições em que
eles são produzidos é uma relação necessária, constitutiva da própria
signifi cação. As condições de produção incluem o contexto histórico-
social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem
de si e do outro e do referente. Em outras palavras, incluem:
a) um locutor, aquele que diz e as suas razões para dizer;
b) um alocutário: é preciso que se tenha para quem dizer o que
se tem a dizer;
c) um referente: é preciso que se tenha o que dizer;
d) uma forma de dizer, numa determinada língua: é preciso que
se escolham as estratégias para se dizer o que se tem a dizer
para quem se tem o que dizer;
e) um contexto em sentido estrito; o discurso é determinado pelas
circunstâncias imediatas: o aqui e o agora da enunciação, do
ato de discurso;
f) um contexto em sentido lato: o discurso é sujeito às
determinações histórico-sociais, ao quadro das instituições em
que é produzido;
g) os lugares sociais que, imaginariamente, locutor e alocutário
atribuem um ao outro.
Essas condições de produção mostram que as escolhas de quem
diz não são aleatórias, na construção do sentido no discurso. É preciso
considerar sua enunciação como o correlato de um certo lugar na
estrutura da sociedade e sua representação no imaginário histórico-
social. Por exemplo, o lugar de professor, de aluno, de político, de pai,
de sacerdote etc. O lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo
do que ele diz. Se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas
palavras signifi cam de modo diferente do que se falasse do lugar
do aluno. O padre fala de um lugar em que suas palavras têm uma
autoridade determinada junto aos fi éis. As relações sociais são
relações de força, sustentadas pela hierarquia dos lugares. A fala do
professor vale mais que a do aluno. E essas relações de força são
constitutivas dos sentidos nos discursos (ORLANDI, 1999a).
Entretanto, esses lugares sociais não aparecem no discurso
objetivamente, tal como podem ser descritos pela sociologia.
Aparecem através de formações imaginárias. Existem regras de
projeção que estabelecem as relações entre as situações objetivas
na formação social e as posições, que são representações dessas
situações no discurso. Assim, não são os sujeitos físicos nem os seus
lugares empíricos como estão inscritos na sociedade que funcionam
CONDIÇÕES DE PRO-DUÇÃO: são consti-tutivas do discurso e incluem o contexto his-tórico-social, os interlo-cutores, o lugar de onde falam, a imagem que fa-zem de si, do outro e do
referente.
FORMAÇÕES IMAGINÁ-RIAS: são as posições, isto é, representações das situações concretas, estabelecidas no interior do discurso, através de regras de projeção.
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no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas
projeções que permitem passar dos lugares empíricos para as posições
dos sujeitos no discurso. Logo, o que era um lugar social empírico,
como professor, padre, juiz etc., se transforma numa posição no
discurso. Em toda língua há regras de projeção que permitem ao
sujeito passar da situação empírica para a posição discursiva.
As relações entre esses lugares acham-se representadas no discurso por uma série de ‘formações imaginárias’ que designam o lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmo e a ao outro, a imagem que fazem do referente. O emissor pode antecipar as representações do receptor e, de acordo com essa antevisão do ‘imaginário’ do outro, fundar as estratégias do discurso (CARDOSO, 1999, p. 39).
Faz parte da estratégia discursiva “prever, situar-se no lugar
do ouvinte, antecipando representações, a partir de seu próprio lugar
de locutor, o que regula a possibilidade de respostas, o escopo do
discurso” (ORLANDI, 1996, p. 26). Entre os protagonistas do discurso
é estabelecido um jogo de imagens. Esta antecipação do que o outro
vai pensar é constitutiva do discurso. Vamos imaginar que o cidadão
Antônio tenha recebido uma correspondência da Receita Federal,
pedindo esclarecimentos sobre rendas não declaradas. Antônio se
coloca a seguinte questão: o que a Receita acha da minha declaração,
para que me mande essa correspondência? Então ele imagina que a
Receita tem uma imagem de que sua declaração sonegou imposto. A
Receita Federal, por sua vez, se coloca a seguinte questão: enviando
esta correspondência a Antônio, o que ele vai pensar sobre o que eu
acho da declaração dele? Depois de ler a correspondência, Antônio se
pergunta: o que a Receita acha que eu penso sobre minha declaração,
para me enviar esta correspondência? O jogo de formações imaginárias
não para por aí e pode se tornar muito sofi sticado.
O jogo de imagens entre protagonistas do
discurso é uma das condições de produção desse
discurso. Esse jogo “regula a argumentação,
de tal forma que o sujeito dirá de um modo,
ou de outro, segundo o efeito que pensa
produzir em seu ouvinte” (ORLANDI,
1999a, p. 39). O locutor tem uma
imagem de si mesmo. Quando
o juiz profere a sentença a um
réu, ele tem uma imagem de si
90 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Condições de produção e formações imagináriasLinguística III - Teoria da análise de discurso
mesmo: “Quem sou eu para lhe falar assim?” Tem uma imagem do
réu: “Quem é ele para que eu lhe fale assim?” E tem uma imagem
do objeto do discurso, que é a sentença: “Do que estou lhe falando?”
O réu, por sua vez, faz as mesmas
perguntas a si mesmo: “Quem sou
eu para que ele me fale assim?”,
“Quem é ele para me falar assim?” e
“Do que ele está me falando?” É, pois,
todo um jogo imaginário que preside a troca de
palavras entre os dois. Além disso, cada um
faz antecipações das imagens que o outro
está fazendo. Na relação discursiva são
essas imagens que constituem as diferentes
posições, e não as fi guras concretas do juiz
e do réu. As identidades resultam desses
processos de identifi cação, em que o imaginário tem
sua efi cácia. Vemos que, nas relações de força, o lugar de juiz é mais
forte que o lugar de réu.
Outra condição de produção são as restrições que determinam
os objetos e os temas. No exemplo acima, o único tema de uma
correspondência da Receita Federal para qualquer cidadão ou empresa,
só pode ser a declaração do imposto de renda, ou temas correlatos.
O gênero dessa correspondência, um ofício formal, também é uma
condição de produção do discurso. Impossível a Receita mandar ao
contribuinte um poema sobre o tema do amor.
O sujeito do discurso estabelece relações com suas condições
reais de existência, o contexto, através das formações imaginárias
que o governam (DORNELES, 1999). No contexto, podemos fazer as
seguintes distinções (ORLANDI, 1996, p. 219):
a) Contexto linguístico ou co-texto
b) Contexto textual
c) Contexto de situação
c1 – no sentido estrito: contexto imediato, de enunciação
c2 – no sentido lato: contexto sócio-histórico, ideológico
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AATIVIDADETIVIDADE
1) De modo geral, em que consistem as condições de produção do discurso?2) O que são as Formações Imaginárias?3) Distinga condições de produção sócio-históricas do discurso de suas condições de
produção imediatas.4) O que é lugar social? Dê exemplo. 5) Comente as condições de produção do discurso político contido no texto da letra da
canção de Geraldo Vandré: “Para não dizer que não falei de fl ores”: Caminhando e cantando e seguindo a canção / somos todos iguais, braços dados ou não, / nas esco-las, nas ruas, campos e construções / somos todos soldados, armados ou não // Vem, vamos embora, que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora, não espera aconte-cer// Há soldados armados, amados ou não / quase todos perdidos de armas na mão / nos quartéis lhes ensinam antigas lições / de morrer pela pátria e viver sem razão // Os amores na mente, as fl ores no chão / a certeza na frente, a história na mão / ca-minhando e cantando e seguindo a canção / aprendendo e ensinando uma nova lição.
6) Comente as condições de produção do discurso sobre as difi culdades enfrentadas pelo nordestino, na música “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga: Quando eu vi a terra ardendo / qual fogueira de São João / Eu perguntei a Deus do céu / por que tamanha judiação // Que braseiro, que fornalha / no meu pé de prantação / por falta d’água perdi meu gado / morreu de sede meu alazão // Quando o verde dos teus zóio / se espaiá na prantação / eu te asseguro, não chore, não / eu voltarei, meu coração // Hoje longe muitas léguas / nessa triste solidão / espero a chuva cair de novo / pra eu voltar lá
pro meu sertão.
RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
O sujeito está inserido em determinadas condições materiais de produção de sentido, isto é, a língua, as instituições e as Formações Imaginárias.
O discurso deve ser visto em relação com a exterioridade que o constitui. Condições de produção é a ligação entre as “circunstâncias” de um discurso
e seu processo de produção. As condições de produção incluem o contexto histórico-social, os
interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si e do outro e do referente.
Não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como estão inscritos na sociedade que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções.
O sujeito do discurso estabelece relações com suas condições reais de
existência, o contexto, através das formações imaginárias que o governam.
92 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Condições de produção e formações imagináriasLinguística III - Teoria da análise de discurso
ABREU, Ana Sílvia Couto de. Escola e Escola on line: alguns efeitos
do discurso pedagógico midiatizado. Tese de doutorado. Campinas:
FE/UNICAMP, 2006.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed.
Campinas: UNICAMP, 1995.
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
DORNELES, Elizabeth Fontoura. O discurso do MST: um acontecimento
na estrutura agrária brasileira. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA,
Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 149-172.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As
formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
______. Análise de discurso. Princípios & Procedimentos. Cam-
pinas: Pontes, 1999a
______. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campinas:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999b.
PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GA-
DET, Françoise; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. 2. ed. Tradução de Tetrania S. Mariani et al. Campinas: Edi-
tora da UNICAMP, 1993. (Coleção Repertórios). p. 61-105.
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Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, você deverá:
• relacionar pré-construído e discurso transverso;
• identifi car o pré-construído sob forma de discurso transverso nos enunciados dis-cursivos;
• estabelecer a diferença entre interdiscur-so e intradiscurso.
3aula
Objetivos
PRÉ-CONSTRUÍDO EDISCURSO TRANSVERSO
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1 INTRODUÇÃO
Já vimos que as condições de produção, através das formações
imaginárias, são constitutivas do discurso. Nesta aula, vamos ver
que a Formação Discursiva dominante incorpora enunciados pré-
construídos, vindos do interdiscurso, como se já tivessem sido dito
antes. Isso mostra que a Formação Discursiva não é um espaço fechado.
Ao contrário, tem fronteiras indefi nidas e mantém relações dinâmicas
com seu interdiscurso. No entanto, acreditando ser a fonte única de
seu discurso, o sujeito não tem consciência dos pré-construídos e
considera “naturais” as discrepâncias que eles apresentam.
AULA 3PRÉ-CONSTRUÍDO E DISCURSO TRANSVERSO
LEITURAS PRÉVIASPÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afi rmação do óbvio. 3. ed. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi; Lourenço Chacon Jurado Filho; Manoel Luiz Gonçal-ves Corrêa; Silvana Mabel Serrani. Campi-nas: UNICAMP, 1997.Ler da página 258 à página 279.
...
98 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Pré-construído e discurso transversoLinguística III - Teoria da análise de discurso
2 O PRÉ-CONSTRUÍDO
Conforme já visto, todo discurso é dominado por uma
Formação Discursiva, que, a partir de uma posição dada e numa
dada conjuntura, determina o que pode e deve ser dito. Entretanto,
uma Formação Discursiva não é um espaço estrutural fechado, pois
é constitutivamente “invadida” por elementos “que vêm de outro
lugar, isto é, de outras Formações Discursivas, que se repetem
nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais, sob
a forma, por exemplo, de pré-construídos e discursos transversos”
(PÊCHEUX, 1993, p. 314).
Esses elementos de outras Formações Discursivas
“invasoras” fazem parte do interdiscurso, que é o exterior específi co
de uma Formação Discursiva, enquanto irrompe nesta, vindo do
exterior e anterior, para constituí-la, como se esse elemento já se
encontrasse aí. De uma forma mais geral, “a toda formação discursiva
é associada uma memória discursiva de formulações que repetem,
recusam e transformam outras formulações” (MAINGUENEAU, 1993,
p. 115). O interdiscurso está intricado nas formações ideológicas e é
formado pelo todo complexo das Formações Discursivas. Ele é o lugar
de uma reconfi guração, no qual uma Formação Discursiva é levada,
em função dos seus interesses ideológicos, a absorver elementos
pré-construídos, produzidos fora dela, associando-os a seus próprios
elementos, por meio de discursos transversos, e incorporando-os na
evidência de um novo sentido.
Assim, o sujeito assume como dado, como já-dito-em outro
lugar, o que é domínio de uma prática anterior. Vemos, portanto, que
o pré-construído é uma construção que se opõe ao que é construído
na enunciação, é “um traço do interdiscurso” (MALDIDIER, 1986, p.
6).
Dessa forma, vemos que o pré-construído é ideológico, tem
caráter de verdade evidente e é um elemento produzido em outro(s)
discurso(s), anterior ao discurso em estudo, independentemente
dele. Assim, “Todo discurso mantém uma relação essencial com
elementos pré-construídos” (BRANDÃO, 1995, p. 91). Conforme já
visto, pelo esquecimento-1, o sujeito se coloca como fonte do seu
discurso, embora tenha sido assujeitado a este. Como sua Formação
Discursiva é “invadida” por outras Formações Discursivas, provindas
do interdiscurso, o sujeito não tem consciência do pré-construído. Ele
não só “esquece” a fonte do seu discurso como também esquece que
a esqueceu.
Podemos ver pré-construídos originados de discursos
INTERDISCURSO: é o exterior específi co de uma Formação Discursiva, en-quanto irrompe nesta, vin-do do exterior e anterior para constituí-la.
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estereótipos. Por exemplo, no discurso sobre a industrialização em
Salvador, podemos ver o seguinte enunciado:
- Como todo baiano é preguiçoso, nunca teremos uma indústria
forte em Salvador.
Observe que não há preocupação em provar que “todo baiano
é preguiçoso”. Isso aparece na superfície do discurso, como se
fosse uma coisa já dita antes, em outro momento, e com a qual o
destinatário estaria de acordo, como se fosse uma coisa sabida por
todos. Portanto, a expressão “todo baiano é preguiçoso” é um pré-
construído, isto é, se origina do interdiscurso, mais precisamente, do
discurso estereotipado sobre o baiano, e determina o sujeito do discurso
sobre a industrialização de Salvador, impondo e dissimulando seu
assujeitamento, sob aparência de autonomia. A Formação Discursiva
sobre a industrialização em Salvador, no exemplo acima, é levada,
em função dos interesses ideológicos que ela representa, a absorver
elementos pré-construídos, produzidos no discurso estereotipado
sobre o baiano. Esses interesses ideológicos correspondem à visão
do discurso colonialista de que os baianos e, em geral, os povos
colonizados, são incapazes de fazerem um trabalho produtivo, racional
e planejado. Por isso, o interdiscurso pode ser defi nido como aquilo
que fala antes, em outro lugar, independentemente.
Sabendo-se que “efeito de sentido” é a relação de possibilidade
de substituição entre palavras, expressões e proposições, no interior
de uma Formação Discursiva dada, vemos que, na Formação
Discursiva sobre a industrialização em Salvador, a palavra “baiano”
pode ser substituída por “preguiçoso”, devido à interferência do
pré-construído, isto é, de um elemento originário do discurso
estereotipado sobre o baiano, anterior e exterior ao discurso em foco
sobre a industrialização.
O discurso não nasce da vontade do sujeito enunciador. Ele
nasce de um trabalho sobre outros discursos que ele repete ou modifi ca.
Essa repetição ou modifi cação não é intencional, consciente nem
imediata. Ao contrário, é oculta ao sujeito enunciador e se dá através
do pré-construído e da articulação de enunciados do interdiscurso,
“que atravessam o discurso sob a forma de discurso transverso”
(MITTMANN, 1999, p. 271). O discurso transverso se origina no
interdiscurso e é formulado no intradiscurso por meio da articulação.
A articulação corresponde simultaneamente às expressões “como
dissemos...”, “como todo mundo sabe” e “como todo mundo pode
ver”. O exemplo acima mostra um pré-construído no discurso sobre
a industrialização de Salvador, originário do discurso estereotipado
sobre o baiano: Como todo baiano é preguiçoso, nunca teremos
EFEITO DE SENTIDO: é a possibilidade de substi-tuir palavras, expressões e proposições, no interior de uma Formação Discursiva.
PRÉ-CONSTRUÍDO: é um elemento produzido em outro(s) discurso(s) ante-rior ao discurso em estudo, independentemente dele. Todo discurso mantém uma relação essencial com elementos pré-construí-dos.
100 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Pré-construído e discurso transversoLinguística III - Teoria da análise de discurso
uma indústria forte em Salvador. O pré-construído aparece sob a
forma de discurso transverso: todo baiano é preguiçoso. Observe
que é como se esse discurso transverso estivesse articulado pelas
expressões: como já dissemos, como todo mundo sabe e como todo
mundo pode ver. Isso faz com que o sujeito do discurso sobre a
industrialização “funcione”, isto é, tome a posição de que todo baiano
é preguiçoso, se achando em “total consciência” e em “total liberdade,
se responsabilizando pelo que diz.
Pêcheux (1997, p. 181) cita alguns exemplos de discrepâncias
provocadas pelo pré-construído, sem que o sujeito se dê conta
delas: (...) a história do mau sujeito que telefona ao diretor da escola para pedir dispensa da aula e responde: ‘É meu pai!’ à questão ‘quem fala?’; - sobre a repetição ideológica: ‘Não há mais canibais em nossa área, comemos o último na semana passada’. – sobre o aparelho cultural e o culto aos Grandes Homens: (...) ‘As obras de Shakespeare não foram escritas por ele, mas por um contemporâneo desconhecido que tinha o mesmo nome’. – sobre a metafísica e o aparelho religioso: ‘Deus tem todas as perfeições exceto uma: ele não existe’; ‘X não acreditava em espíritos e chegava mesmo a não ter medo deles.’, etc.
Pré-construído e articulação, portanto, são duas formas de
o interdiscurso manifestar-se no intradiscurso. Do pré-construído
e da articulação surge o efeito da evidência: o que todos sabem e
todos podem ver. Dessa forma, o discurso não provém de uma única
fonte, mas é heterogêneo. Um exemplo de pré-construído pode ser
visto no atual slogan do governo da Bahia: Bahia, terra de todos nós.
Este enunciado pertence ao discurso institucional do governo, que
tem em seu interdiscurso, isto é, em seu “domínio de memória”, o
discurso institucional do governo anterior: A Bahia no caminho certo.
Esse domínio de memória pode ser defi nido como um conjunto de
sequências discursivas que existem antes da enunciação da sequência
discursiva em questão, no seio do processo de formulação do discurso
institucional do governo. O governo anterior era liderado por um
conhecido político, criticado por seu estilo autoritário, semelhante ao
dos antigos coronéis rurais. Assim, a frase principal do discurso desse
governo era auto-afi rmativa, como se não precisasse levar em conta
a opinião dos outros. O tema do discurso atual se opõe ao anterior,
destacando que a Bahia, agora, leva em conta a participação de todos
os seus habitantes. Assim, a voz do slogan anterior ainda ressoa
no atual, que dele se apodera a fi m de a ele se opor. É a partir do
domínio de memória, que se pode entender os efeitos de sentido que
DISCURSO TRANSVER-SO: é a formulação do pré-construído no fi o do discurso, através da arti-culação, que equivale às expressões: como já dis-semos, como todo mundo sabe e como todo mundo pode ver.
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são produzidos pelo tema do discurso atual. As duas frases principais
se ligam por uma relação de antagonismo (ORLANDI, 1999). O
interdiscurso, por meio do slogan do discurso anterior, fornece os
objetos para a enunciação do tema do discurso atual, organizando
e ajustando sua formulação. Esse ajuste acaba por desaparecer aos
olhos de quem o enuncia, garantindo que o sujeito apareça como um
eu, aqui e agora, com a ilusão de ser a origem do que diz.
Dessa forma, o interdiscurso se materializa no intradiscurso,
numa mistura surpreendente de absurdo, uma vez que os dois slogans
se opõem; e de evidência, uma vez que os dois dialogam entre si. Há
um retorno do estranho – A Bahia no caminho certo - no familiar –
Bahia, terra de todos nós. O discurso do governo anterior disponibiliza
dizeres que afetam o modo como o sujeito do governo atual signifi ca.
Há uma relação entre o já-dito, o slogan anterior, e o que se está
dizendo, no atual, ou seja, uma relação entre o interdiscurso e o
intradiscurso. A formulação do tema atual está determinada pela
relação que se estabelece com o anterior, no interdiscurso (ORLANDI,
1999, p. 33).
INTRADISCURSO: é o funcionamento do discurso com relação a si mesmo, o que eu digo agora, com re-lação ao que eu disse antes e ao que vou dizer depois.
DOMÍNIO DE MEMÓRIA: é um conjunto de sequên-cias discursivas que pre-existem à enunciação da sequência discursiva em questão, no seio de um processo.
Figura 2http://www.fl ickr.com/photos/joseserra/4791290469/sizes/o/in/photostream/
Figura 1http://www.fl ickr.com/photos/drrosinha/4850974178/lightbox/
Toda formulação discursiva está colocada na interseção
de dois eixos: o “vertical”, do pré-construído, onde teríamos todos
os dizeres já ditos e esquecidos, representando o dizível; e o eixo
“horizontal”, da linearidade do intradiscurso, que oculta o primeiro eixo
e é aquilo que estamos dizendo naquele momento dado, em condições
dadas. O sujeito enunciador é produzido como se interiorizasse de
forma ilusória o pré-construído que sua formação discursiva impõe. O
“domínio de memória” representa o interdiscurso como instância de
construção de um discurso transverso que regula o modo de doação
dos objetos de que fala o discurso e regula o modo de articulação
desses objetos (MAINGUENEAU, 1993).
102 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Pré-construído e discurso transversoLinguística III - Teoria da análise de discurso
PARA REFLETIR
A teoria da Análise de Discurso, de linha francesa, permite compreender melhor certas contradições em nossa fala. Imagine
o seguinte diálogo:
- Você é ateu?
- Sou ateu, Graças a Deus!
Observe que há uma discrepância no segundo enunciado. Podemos dizer que o discurso ateísta foi “invadido” pelo inter-
discurso, mais precisamente, por um enunciado pré-construído do discurso religioso. E como o sujeito do discurso ateísta
não percebe o absurdo do que diz? Não percebe porque o sujeito é interpelado pela Formação Discursiva dominante, assu-
jeitado a ela, embora pense que é a fonte autônoma do que diz. Nesse discurso, a articulação transforma o pré-construído
em discurso transverso, por meio das expressões implícitas: “como já dissemos”, “como todo mundo sabe” e “como todo
mundo pode ver”. Ou seja, “como já dissemos, posso agradecer a Deus por ser ateu”; “como todo mundo sabe, posso
agradecer a Deus por ser ateu”; e “como todo mundo pode ver, posso agradecer a Deus por ser ateu”.
AATIVIDADETIVIDADE
1) Identifi que o pré-construído, sob a forma de discurso transverso, no seguinte
enunciado discursivo: “Como toda mulher é falsa, não deixo minha mulher ir
sozinha a uma festa!”
2) No discurso da questão anterior, explique o efeito de sentido, isto é, a substituição
possível para a palavra “mulher”.
3) Como é feita a articulação do pré-construído em discurso transverso, no discurso
dado na primeira questão acima?
4) Que sequência, no discurso da primeira questão, pertence ao domínio de memória
do discurso em foco?
5) Produza um texto de no máximo cinco linhas em que apareça um pré-construído,
sob a forma de discurso transverso.
6) Explique um efeito de sentido para a palavra Brasil, isto é, por qual outra palavra
ela pode ser substituída, no hino nacional brasileiro.
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RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
Uma Formação Discursiva não é um espaço estrutural fechado,
pois é constitutivamente “invadida” por elementos que vêm do
interdiscurso, isto é, de outras Formações Discursivas.
O interdiscurso é o exterior específi co de uma Formação Discursiva,
enquanto irrompe nesta, vindo do exterior e anterior, para constituí-
la.
O pré-construído é ideológico, tem caráter de verdade evidente e é
um elemento produzido em outro(s) discurso(s), anterior ao discurso
em estudo, independentemente deste.
O interdiscurso pode ser defi nido como aquilo que fala antes, em
outro lugar, independentemente.
Efeito de sentido é a relação de possibilidade de substituição entre
palavras, expressões e proposições, no interior de uma Formação
Discursiva dada.
O discurso transverso se origina no interdiscurso e é formulado no
intradiscurso por meio da articulação.
A articulação corresponde simultaneamente às expressões “como
dissemos...”, “como todo mundo sabe...” e “como todo mundo pode
ver...”.
O discurso transverso é a formulação do pré-construído no fi o do
discurso, através da articulação.
Pré-construído e articulação, portanto, são duas formas de o
interdiscurso manifestar-se no intradiscurso.
Intradiscurso é o funcionamento do discurso com relação a si mesmo,
o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que vou
dizer depois.
Domínio de memória é um conjunto de sequências discursivas que
preexistem à enunciação da sequência discursiva em questão , no
seio de um processo.
Toda formulação discursiva está colocada na interseção de dois
eixos: o “vertical”, do pré-construído, onde teríamos todos os dizeres
já ditos e esquecidos, representando o dizível; e o eixo “horizontal”,
da linearidade do intradiscurso, que oculta o primeiro eixo e é aquilo
que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas.
104 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Pré-construído e discurso transversoLinguística III - Teoria da análise de discurso
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MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993.
MALDIDIER, Denise. A Michel Pêcheux. In: _____ (Org.). Langages. Mars 1986, 81. Paris: Larousse, 1986. p. 5-7.
MITTMANN, Solange. Nem lá, nem aqui: o percurso de um enunciado. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro. (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 271-277.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Unicamp, 1999.
PÊCHEUX, Michel. A Análise de Discurso: Três Épocas (1983). In: GADET, Françoise e HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso. 2a ed. Tradução de Tetrania S. Mariani et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. (Coleção Repertórios). p. 311-318.
______. Semântica e discurso. Uma crítica à afi rmação do óbvio. 3. ed. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi; Lourenço Chacon Jurado Filho; Manoel Luiz Gonçalves Corrêa; Silvana Mabel Serrani. Campinas: UNICAMP, 1997.
Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, você deverá:
• relacionar heterogeneidade discursiva e polifonia;
• diferenciar os discursos diretos e indiretos;• identifi car os discursos indiretos livres
4aula
Objetivos
HETEROGENEIDADEDISCURSIVA E POLIFONIA
109Letras VernáculasUESC
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Aul
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1 INTRODUÇÃO
Já vimos que o pré-construído, originário do interdiscurso,
se torna discurso transverso, no intradiscurso, através da articulação,
isto é, através das sequências implícitas: como já disse antes, como
todo mundo sabe e como todo mundo pode ver. De certa forma,
o pré-construído, por meio do discurso transverso, constitui uma
heterogeneidade, com a entrada de novas vozes no discurso. Nesta
aula, entretanto, vamos aprofundar a noção de heterogeneidade e de
polifonia discursivas.
AULA 4 HETEROGENEIDADE DISCURSIVA E POLIFONIA
LEITURAS PRÉVIAS
VOLOS HINOV, V. N. Marxismo e fi losofi a da linguagem. Tradução de Michel Lahud; Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.
...
110 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Heterogeneidade discursiva e polifoniaLinguística III - Teoria da análise de discurso
2 HETEROGENEIDADE DISCURSIVA
A heterogeneidade se refere à origem do sentido no discurso
e é o seu diferente, “aquilo que subjaz a ele e liga o seu mesmo com o
seu outro” (CARDOSO, 1999, p. 58). Trata-se de uma relação radical
entre o interior do discurso e seu exterior (MAINGUENEAU, 1993).
A heterogeneidade pode ser mostrada, isto é, apresentar pistas
recuperáveis na superfície do discurso, como no discurso direto,
aspas, itálico, glosas; e pode ser não mostrada, uma heterogeneidade
constitutiva que não se encontra na organização linear do discurso,
mas no interdiscurso. Por isso, a heterogeneidade constitutiva não é
analisável, uma vez que o outro é dado a conhecer sem uma marca
unívoca, como no discurso indireto livre, na ironia, na antífrase etc.
Uma forma bem conhecida de heterogeneidade marcada é o
chamado discurso indireto em que o locutor, “colocando-se enquanto
tradutor, usa de suas próprias palavras para remeter a uma outra
fonte do sentido” (BRANDÃO, 1995, p. 50). Um exemplo pode ser
visto na reportagem de Veja (17/02/2010, p. 43): “O ministro pediu
a eles que referendassem sua decisão”. O enunciador coloca-se como
tradutor do ministro e usa suas próprias palavras para remeter ao
sentido dado pelo ministro: “pediu a eles que referendassem sua
decisão”.
No discurso direto, outra forma de heterogeneidade marcada,
o locutor, colocando-se como porta-voz, recorta as palavras do outro
e cita-as, como podemos ver abaixo:
(...) lembro a história deliciosa do aborígene que, contratado para guiar o cientista carregado de instrumentos refi nados, lhe disse: ‘Você e sua gente não são muito espertos, porque precisam de todas essas ferramentas simplesmente para andar no mato e observar os animais’ (VEJA, 17/02/2010, p. 18).
O enunciado acima apresenta dois “locutores”, o enunciador
narrador e o aborígene. Além disso, é globalmente produzido por
um deles, o enunciador narrador, aquele que se constitui em falante,
ao escrever. Os enunciadores são seres cujas vozes estão presentes
na enunciação sem que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras
precisas. Efetivamente eles não falam, mas a enunciação permite
expressar seu ponto de vista. No texto acima, vemos que a expressão
“história deliciosa” expressa um ponto de vista do enunciador narrador.
Além do discurso indireto e do discurso direto, existem
outras formas marcadas de conotação autonímica, em que o
DISCURSO INDIRETO: ocorre quando o locutor, colocando-se enquanto tra-dutor, usa de suas próprias palavras para remeter a uma outra fonte de sentido.
ENUNCIADOR: é o ser cuja voz está presente na enun-ciação, sem que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras precisas, efetiva-mente eles não falam, mas a enunciação permite ex-pressar o su ponto de vista.
DISCURSO DIRETO: ocor-re quando o locutor, colo-cando-se como porta-voz, recorta as palavras do outro e cita-as.
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locutor inscreve no seu discurso, sem que haja
interrupção da sequência linear, as palavras
do outro, assinalando-as por meio das aspas,
do itálico ou de uma entonação específi ca; ou
ainda por meio de um comentário, uma glosa,
um ajustamento, ou de uma remissão a um
outro discurso, funcionando como marcas
de uma atividade de controle-regulagem
do processo de comunicação.
Um exemplo de heterogeneidade
por meio de aspas já foi visto acima:
(...) [o aborígene] lhe disse: “Você e sua gente não são muito espertos, porque precisam de todas essas ferramentas simplesmente para andar no mato e observar os animais”.
As palavras aspeadas marcam a presença do outro, são
atribuídas a um outro espaço enunciativo, o do aborígene, cuja
responsabilidade o locutor não quer assumir. Elas pertencem ao espaço
enunciativo exterior, isto é, a uma outra formação discursiva. As aspas
mantêm os termos aspeados à distância e constituem sempre um
sinal a ser decifrado pelo interlocutor. Isso mostra que uma Formação
Discursiva se estabelece entre estes dois limites: um discurso
totalmente entre aspas, do qual nada é assumido, e um discurso sem
aspas, que pretenderia não estabelecer relação com o exterior. “As
aspas designam a linha de demarcação que uma Formação Discursiva
estabelece entre ela e seu exterior” (MAINGUENEAU, 1993, p. 90).
Itálico é um tipo de letra, que utiliza caracteres cursivos.
Como exemplo de heterogeneidade marcada, ele pode ser usado em
romances, para indicar o pensamento de um personagem:
Isto não pode estar acontecendo, pensou ela (www.
wikipedia).
Na palavra entre aspas e em itálico, não há ruptura sintática:
a expressão aspeada e em itálico é ao mesmo tempo usada e
mencionada.
A heterogeneidade pode ser considerada o elemento
constitutivo de práticas discursivas “que estão numa relação de
aliança, ou de afrontamento, num certo estado de luta ideológica
e política” (CARDOSO, 1999, p. 58). Por exemplo, o comentário a
seguir apresenta uma relação de afrontamento: “Sou católico, mas
considero muto conservadoras as posições do papa Bento XVI”. Ou
112 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Heterogeneidade discursiva e polifoniaLinguística III - Teoria da análise de discurso
seja, as “posições” muito conservasoras têm origem no papa e não
no sujeito do discurso.
As glosas podem ser interpretação e comentário sobre o
sentido de um texto e marcam a heterogeneidade, do interior do
discurso, a insistência do outro como lei do espaço social e da memória
histórica. Enquanto comentário, as glosas já foram mostradas no
exemplo do parágrafo anterior. Na heterogeneidade, o outro deve
ser concebido independente do plano enunciativo porque ele é
constitutivo de todo discurso, é o seu interdito, o que foi preciso
ser sacrifi cado para que o discurso pudesse construir sua identidade.
”Interdito, ausência, falta, o outro é justamente o que promove a
abertura do discurso para outras posições, outras visões de mundo,
outras ideologias” (CARDOSO, 1999, p. 58). São exemplos de glosas:
“como dizem os especialistas”, “se podemos dizer”, “dizendo de
outro modo”, “para falar como os pedagogos” etc. O locutor procura
construir uma imagem de si mesmo, diferenciando-se do outro. Cada
glosa se apresenta como a exibição de um debate com as palavras.
Podemos encontrar ainda formas mais complexas, em que
a presença do outro não é explicitada por marcas na frase, uma
heterogeneidade não mostrada. É o caso do discurso indireto livre,
da ironia, da antífrase, da alusão, da imitação e da reminiscência, em
que se joga com o outro discurso, mas sem transparência, sem ser
explicitamente mostrado ou dito, fi cando implícito, semi-desvelado
ou sugerido. Nesses casos, não há uma fronteira linguística nítida
entre a fala do locutor e a do outro, as vozes se misturam numa única
construção linguística.
O discurso indireto livre é uma modalidade de técnica
narrativa, resultante da mistura dos discursos direto e indireto. Por
meio dele, o narrador pode, não apenas reproduzir indiretamente falas
dos personagens, mas também o que eles não falam, mas pensam,
sonham, desejam etc. Nesse caso, trata-se de um monólogo interior,
mas expresso pelo narrador, em que a fonte do sentido resulta de uma
mistura do sujeito do discurso, que é o narrador, e do personagem,
o que constitui heterogeneidade discursiva. Na Wikipédia, vemos o
exemplo abaixo:
Quando Eduardo ia para o grupo, deixava-a debaixo da bacia. Um dia o pai lhe disse que aquilo era maldade: ‘Gostaria que fi zessem o mesmo com você? As galinhas também sofrem’. Um domingo encontrou Eduarda na mesa do almoço, pernas para o ar, assada. Eduarda foi comida entre lágrimas. É, sofrem, mas todo o mundo come e ainda acha bom (Fernando Sabino, O Encontro Marcado).
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O enunciado: “É, sofrem, mas todo o
mundo come e ainda acha bom” representa
uma refl exão do personagem, sendo
este, portanto, a fonte do sentido, em
vez de o sujeito do discurso, sem que
haja uma marca linguística distinguindo
os dois. O discurso indireto livre só pode
ser identifi cado no contexto. No exemplo
acima, fora do contexto do menino que gostava da galinha e a vê
assada na mesa, não se pode entender o discurso indireto livre: “É,
sofrem, mas todo o mundo come e ainda acha bom”. Nele ouvimos
misturadas as vozes do narrador e a voz do personagem, havendo
uma discordância entre a voz do enunciador narrador, que relata
as alocuções, e a do personagem cujas alocuções são relatadas. O
narrador disse antes que a galinha fora comida “entre lágrimas”, o
que é contestado pelo personagem: “É, sofrem, mas todo o mundo
come e ainda acha bom.” Entretanto, este enunciado não pode ser
atribuído univocamente ao personagem ou ao narrador, nele ambos
se misturam.
A ironia consiste em dizer o contrário daquilo que se pensa,
deixando entender uma distância intencional entre aquilo que dizemos
e aquilo que realmente pensamos, como podemos ver esse exemplo:
“Moça linda, bem tratada, três séculos de família, burra como uma
porta: um amor!” (Mário de Andrade). Observe que há duas fontes
de sentido, uma que diz: moça linda, bem tratada, três séculos de
família, um amor; e outra fonte que diz: burra como uma porta. “Um
enunciado irônico faz ouvir uma voz diferente da do enunciador que
expressa um ponto de vista insustentável” (MAINGUENEAU, 1993, p.
77). Tal ponto de vista é: moça linda, bem tratada, três séculos de
família, um amor. Na verdade, o enunciador narrador assume apenas
as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam. O seu
ponto de vista, na verdade, é: “burra como uma porta”.
Vemos, portanto, que a ironia subverte a fronteira
entre o que é assumido pelo enunciador, “burra como
uma porta”, e o que não é assumido por este: “moça
linda, bem tratada, três séculos de família, um amor”.
De forma semelhante, a antífrase consiste
na utilização de uma palavra com o sentido contrário
àquele que tem normalmente. Por exemplo, nomear uma
favela de “Paraíso”, quando ali ocorrem frequentemente
assaltos, tráfi co de drogas e assassinatos. O duplo sentido da palavra
DISCURSO INDIRETO LIVRE: mistura os dis-cursos direto e indireto. O narrador reproduz indire-tamente falas dos perso-nagens e também o que elas pensam, sonham e desejam. A fonte do sen-tido é uma mistura do su-jeito do discurso, o narra-dor, e do personagem.
114 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Heterogeneidade discursiva e polifoniaLinguística III - Teoria da análise de discurso
indica uma dupla fonte de sentido no discurso.
A heterogeneidade do sujeito e do discurso mostra que a
unidade do texto é aparente, é uma “evidência” ideológica. O sujeito
não possui total controle sobre o que diz e como diz. “O sujeito
é apenas o suporte e o efeito” porque no discurso há uma relação
radical de seu interior com seu exterior (HANAUER, 1999, p. 141).
Vamos ver agora o caso da pressuposição, que consiste em
um processo de apresentar dois enunciadores, E1 e E2, o primeiro
responsável pelo pressuposto, e o segundo, pelo posto (MAINGUENEAU,
1993, p. 79). No enunciado: “O governo não quer mais decidir”, há
um enunciador sustentando que “o governo decidia antes”; e há um
outro enunciador que se lhe opõe, ao afi rmar que, atualmente, o
governo não quer mais decidir. Desta forma, o pressuposto não é
assumido, não é o objetivo reconhecido da enunciação, mas apenas
uma crença representada no discurso.
Vemos, portanto que heterogeneidade do discurso é um
funcionamento, uma relação radical entre seu “interior” e seu
“exterior”, é uma maneira de organizar a relação com o que se imagina
, indevidamente, exterior. Heterogeneidade mostrada incide sobre as
manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade
de fontes de enunciação. “Heterogeneidade constitutiva aborda uma
heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD pode
defi nir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito
da constituição de uma formação discursiva” (MAINGUENEAU, 1993,
p. 75).
3 POLIFONIA
A polifonia é quase sinônimo de heterogeneidade e é um
conceito que foi elaborado inicialmente por Bakhtin que o aplicou à
literatura. Depois foi retomado por Ducrot que lhe deu um tratamento
linguístico. “Refere-se à qualidade de todo discurso estar tecido pelo
discurso do outro, de toda fala estar atravessada pela fala do outro”
(BRANDÃO, 1995, p. 91).
Já vimos acima, quando tratamos da heterogeneidade, que
várias vozes emergem do interior de um mesmo enunciado, como
no exemplo dado: “É, sofrem, mas todo o mundo come e ainda acha
bom”. Isso mostra a pluralidade do sujeito como origem do discurso e
aponta para uma característica fundamental do discurso: a polifonia.
O discurso se constitui pelo trabalho do sujeito e de suas vozes e o
sujeito se constitui pelo trabalho do discurso.
POLIFONIA: ocorre quan-do é possível distinguir, em uma enunciação dois tipos de personagens, os enun-ciadores e os locutores. .
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Podemos dizer que há polifonia quando é possível distinguir,
em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores
e os locutores. Por ‘locutor’ entende-se um ser que no enunciado
é apresentado como seu responsável. “Trata-se de uma fi cção
discursiva que não coincide necessariamente com o produtor físico do
enunciado” (MAINGUENEAU, 1993, p. 76).
Na ironia, vista acima, faz-se ouvir uma voz distinta daquela
do locutor: nessa perspectiva, uma enuncia ção irônica põe em cena
uma personagem que enuncia algo de deslocado e do qual o locutor
se distancia. Ele se coloca como uma espécie de imitador dessa
personagem que se exprime de maneira incongruente (dizendo, por
exemplo, “moça linda, bem tratada, três séculos de família, um amor”
quando, o ponto de vista assumido é: “burra como uma porta”). Assim,
falar de modo irônico é para um locutor, apresentar a enunciação como
expressando a posição de um enunciador, posição de que se sabe,
aliás, que o locutor não assume a responsabilidade e, mais que isso,
ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o responsável pela
enunciação, o locutor não é assimilado ao enunciador, que é a ori gem
do ponto de vista expresso na enunciação. De um lado, a posição
absurda é diretamente expressa (e não mais relatada) na enunciação
irônica e ao mesmo tempo ela não é atribuída ao enunciador, já
que este só é responsável pelas palavras, sendo o ponto de vista
manifestados nas palavras atribuí dos a uma outra personagem. Trata-
se assim para mostrar que o enunciador se distancia com respeito ao
ponto de vista absurdo (MAINGUENEAU, 1996).
O enunciado irônico é diretamente expresso (não é
uma citação) sem ser por isso da responsabilidade do sujeito da
enunciação. “Esta estranha combinação de uma adesão e de uma
recusa pode ser tratada em termos de polifonia, mas também de
enun ciação paradoxal, auto-destruidora, na qual o sujeito invalida
sua própria enunciação (MAINGUENEAU, 1996, p. 99). Assim, fazer
ironia não é negar de maneira mimética o ato de fala anterior ou
virtual, em todo o caso, exterior, de um outro. É negar a sua própria
enunciação, realizando-a simultaneamente.
116 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Heterogeneidade discursiva e polifoniaLinguística III - Teoria da análise de discurso
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Cite e comente um enunciado em que aparece heterogeneidade mostrada.
2) Cite e comente um enunciado em que aparece heterogeneidade não mostrada.
3) Cite e comente um exemplo de discurso direto.
4) Cite e comente um exemplo de discurso indireto.
5) Cite e comente um exemplo de discurso indireto livre.
6) Escreva um pequeno texto irônico.
7) Observe o seguinte texto:
Ele rebolou tanto na se mana do Carnaval que precisou chamar uma massagista para dar
conta dos quadris doloridos. O baiano (que mais?) LÉO SANTANA, 21, quase 2 metros de altu ra,
inventor do maior hit de Salvador neste ano, o Rebolation (que as pessoas dançam como se
estivessem equilibrando um bambolê), conta que, por noite, che gou a entoar trinta vezes a
música em cima do trio elétrico — sempre com o tanquinho à mostra. “E isso foi só o começo.
Temos mais duas canções para estourar, Quebradinha e Balacobaco. Os programas de TV estão
todos atrás de nós”, informa. Haja massagista. E ouvido. (VEJA, 24/02/2010, p. 74)
Retire do texto:
a) Um caso de heterogeneidade mostrada.
b) Um caso de ironia.
c) Um caso de discurso direto.
d) Um caso de discurso indireto.
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RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
A heterogeneidade se refere à origem do sentido no discurso, a
uma relação radical entre seu interior e seu exterior.
A heterogeneidade pode ser mostrada, isto é, isto é, apresentar
pistas recuperáveis na superfície do discurso, e não mostrada, isto
é, não apresentar estas pistas.
No discurso indireto, o locutor, colocando-se enquanto tradutor,
usa de suas próprias palavras para remeter a uma outra fonte do
sentido.
No discurso direto, o locutor, colocando-se como porta-voz, recorta
as palavras do outro e cita-as.
As palavras aspeadas marcam a presença do outro, são atribuídas
a um outro espaço enunciativo, cuja responsabilidade o locutor não
quer assumir.
As glosas podem ser interpretação e comentário sobre o sentido
de um texto e marcam a heterogeneidade, do interior do discurso.
O discurso indireto livre é uma modalidade de técnica narrativa,
resultante da mistura dos discursos direto e indireto. Por meio dele,
o narrador pode, não apenas reproduzir indiretamente falas dos
personagens, mas também o que eles não falam, mas pensam,
sonham, desejam etc.
A ironia consiste em dizer o contrário daquilo que se pensa, deixando
entender uma distância intencional entre aquilo que dizemos e
aquilo que realmente pensamos.
A pressuposição consiste em um processo de apresentar dois
enunciadores, E1 e E2, o primeiro responsável pelo pressuposto, e
o segundo, pelo posto.
A polifonia refere-se à qualidade de todo discurso estar tecido pelo
discurso do outro, de toda fala estar atravessada pela fala do outro.
118 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Heterogeneidade discursiva e polifoniaLinguística III - Teoria da análise de discurso
RE
FE
RÊ
NC
IAS
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed.
Campinas: UNICAMP, 1995.
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
HANAUER, Jeane Maria. Sexo seguro/voto seguro: a questão do senti-
do. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre:
Sagra Luzzatto, 1999. p. 138-148
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do dis-curso. 2. ed. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993.
_____. Elementos de lingüística para o texto literário. Tradução
de Maria Augusta Bastos de Mattos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
http://pt.wikipedia.org/wiki/ Acesso em 14 fev. 2010.
Suas anotações
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Aula 1Metodologia em análise de discurso
Aula 2Exercícios em análise de discurso
Aula 3Exercícios em análise de discurso
Aula 4Exercícios em análise de discurso
1 2 3 4unidade
METODOLOGIA E PRÁTICAEM ANÁLISE DE DISCURSO
aula
Ao fi nal desta aula, você deverá:
• identifi car os conceitos teórico-metodológicos básicos em Análise de Discurso;
• conhecer as etapas da Análise de Discurso;• compreender o recorte como uma unidade
discursiva correlacionada a uma situação;• diferenciar discurso e texto, propriedade e
marca;• compreender o tipo de discurso como uma
necessidade metodológica relacionado com os objetivos específi cos de cada análise;
• aplicar os conceitos teórico-metodológicos em procedimentos na Análise de Discurso.
1Objetiv
osMETODOLOGIA EM
ANÁLISE DE DISCURSO
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1 INTRODUÇÃO
Já vimos, na Unidade I, como a Análise de Discurso surgiu
das insufi ciências teóricas da linguística estrutural, especialmente no
que se refere ao sentido. Na Unidade II, explicitamos e discutimos
conceitos teóricos básicos da Análise de Discurso, de linha francesa.
Agora, nesta Unidade III, vamos estudar a metodologia da Análise de
Discurso e sua aplicação prática.
AULA 1METODOLOGIA EM ANÁLISE DE DISCURSO
...
Linguística III - Teoria da análise de discurso
126 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Metodologia em análise de discurso
2 A METODOLOGIA EM ANÁLISE DE DISCURSO A teoria do discurso é a teoria da determinação histórica
dos processos semânticos. Ou seja, as palavras não têm um sentido
fi xo ao longo dos séculos, mas apresentam sentidos variáveis, a
depender das formações discursivas em que são usadas, a cada
época. Em AD, o procedimento metodológico é como um movimento
em espiral, “no qual há uma alternância de momentos de análise
linguística e momentos de análise discursiva” (ABREU, 2006, p. 24). O
que importa é compreender os encadeamentos entre o interdiscurso
e o intradiscurso e seus efeitos de sentido numa linguagem histórica
e ideologicamente constituída.
Analisar um discurso é analisar seu “processo de produção
e de circulação de sentidos” (MARIANI, 1999, p. 110). O que
direciona a análise são seus objetivos e o tipo de texto selecionado
para ser recortado. Através dessa análise, é retraçada a trajetória dos
processos históricos e sociais que vão engendrando os sentidos.
O discurso é um processo regulamentado que dá conta
de um certo número de enunciados. Tal processo tem uma existência
objetiva e material, fazendo com que o sujeito obedeça a certas
regras ou regularidades, quando participa do discurso. Essas regras
ou regularidades são anônimas e históricas, defi nindo as condições
do exercício da função enunciativa para uma determinada área
social, econômica, geográfi ca ou linguística, estabelecendo as
formações discursivas. Analisar um discurso é, portanto, identifi car
as regras e regularidades de sua formação discursiva, isto é, seus
processos discursivos, inscritos em relações ideológicas. O discurso é
considerado, ao mesmo tempo, como enunciado e como enunciação,
como dito e como dizer.
O discurso é o modo de existência sócio-histórico da
linguagem, um conjunto de enunciados que se originam de uma
mesma formação discursiva. Assim, os enunciados constituem as
formações discursivas que são grandes unidades históricas, ligadas a
instituições sociais, como a medicina, a gramática, a economia política,
a religião etc. Essas formações discursivas não são blocos fechados,
estabilizados, mas são constituídas por práticas discursivas que
“determinam os objetos, as modalidades de enunciação dos sujeitos,
os conceitos, as teorias e as escolhas temáticas” (CARDOSO, 1999,
p. 35). A formação discursiva é um operador de coesão semântica do
discurso – o que pode e deve ser dito - e um sistema de restrições – o
que não pode nem deve ser dito.
O sujeito e o sentido do discurso não são dados a priori,
SENTIDO DAS PALA-VRAS: as palavras não têm um sentido literal fi xo. O sentido varia conforme a formação discursiva em que são usadas.
O DISCURSO: é um pro-cesso regulamentado que dá conta de um certo nú-mero de enunciados.
127Letras VernáculasUESC
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III
A
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mas são constituídos no interior de sua formação discursiva. Para
o analista de discurso, os sentidos das palavras mudam de uma
formação discursiva para outra e os indivíduos se constituem como
sujeitos na medida em que se inscrevem nas formações discursivas.
Portanto, em análise de discurso, o importante é a formação discursiva
e não os indivíduos a ela assujeitados.
As análises linguísticas estão sempre articuladas com os
processos discursivos, como no caso das nominalizações, que são
substantivos derivados de verbos. Por exemplo, o substantivo doação
deriva do verbo doar. Muitos discursos se valem das nominalizações
para introduzir uma “verdade” já posta, um “dado inquestionável”.
Assim, em A melhoria do nível de vida do brasileiro com o plano real,
não se discute se o nível de vida do brasileiro melhorou ou não. Pela
nominalização melhoria, isto é dado como uma verdade já posta.
Portanto a análise linguística da nominalização melhoria é articulada
com os processos discursivos em questão.
A AD, com seus conceitos e método, intenta mediar o
movimento entre a descrição e a interpretação, para compreender
o funcionamento discursivo. Portanto, a AD não é somente descrição
ou interpretação do discurso, mas busca analisar como ele funciona,
como ele cria seus efeitos de sentido, isto é, como ele cria as possíveis
substituições entre palavras dentro de uma formação discursiva.
Para se analisar um discurso, é preciso seguir algumas
etapas, havendo sempre um ir e vir entre a teoria, a consulta ao
corpus e a análise. Parte-se de um texto, enquanto exemplar de um
discurso, para se chegar ao processo discursivo:
Etapa 1: passagem da superfície linguística do texto para o
discurso. Nessa etapa, observa-se o como se diz, o quem diz,
em que circunstâncias etc. Isto é, observa-se o que o discurso
mostra em sua sintaxe e enquanto processo de enunciação, em
que o sujeito se marca no que diz, fornecendo-nos pistas para
compreendermos o modo como o discurso que analisamos se
textualiza. O texto nem é o ponto de partida absoluto nem o
ponto de chegada. O texto é só uma peça de linguagem de um
processo discursivo bem mais abrangente. É nessa primeira
etapa que se desfaz a ilusão de que aquilo que é dito só poderia
ser dito daquela maneira. Agora temos um objeto discursivo
e tentamos compreender como esse objeto simbólico produz
sentidos. Nessa etapa inicial, relacionamos o dito ao não dito,
o que foi dito pelo sujeito em um lugar com o que foi dito em
outro, seus diferentes modos de dizer, buscando compreender
AS NOMINALIZAÇÕES: são substantivos derivados de verbos e podem servir discursivamente para in-troduzir uma verdade já posta, inquestionável.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
128 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Metodologia em análise de discurso
as formações discursivas.
Etapa 2: passagem do objeto discursivo para a formação
discursiva. Nesta etapa, relacionam-se as formações
discursivas com a formação ideológica, atingindo, assim, a
constituição do processo discursivo. Nesse ponto, o texto ou
textos particulares analisados desaparecem como referências
específi cas para dar lugar à compreensão de todo um processo
discursivo do qual eles são parte. Os resultados da análise
tornam-se então disponíveis para que sejam interpretados
pelo analista.
Etapa 3: passagem para o processo discursivo e formação
ideológica. Nesse ponto, se relaciona o funcionamento do
discurso, isto é, o modo como ele cria efeitos de sentido, com a
formação ideológica, ou seja, com o afrontamento de posições
de que ele faz parte. A metodologia da AD não objetiva a
completude, a exaustividade do processo discursivo, uma vez
que todo discurso se estabelece na relação com um discurso
anterior e aponta para outro.
A análise de discurso é uma posição enunciativa, em que
um sujeito histórico se esforça por estabelecer um deslocamento
suplementar em relação ao modelo, à hipótese de sujeito histórico
que fala. O trabalho do analista “tenta dar conta do fato de que a
memória suposta pelo discurso é sempre reconstruída na enunciação”
(ACHARD, 1999, p. 17). A enunciação é um conjunto de operações
que regulam a retomada e a circulação do discurso. Assim, um texto
dado trabalha através de sua circulação social, o que supõe que sua
estruturação é uma questão social.
Essa estruturação do texto inclui o gênero discursivo que é,
segundo Bakhtin (1997, p. 320), “um elo na cadeia da comunicação
verbal, que não pode ser separado dos elos anteriores que o
determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações –
respostas imediatas e uma ressonância dialógica”. O gênero discursivo
é, portanto, uma categoria de análise em AD.
A enunciação está marcada no enunciado, isto é, um
enunciado é a representação de sua enunciação. Isto signifi ca que a
situação de comunicação, em que se deu a enunciação, deixa marcas
no enunciado. Por exemplo, o enunciado: “Eu vos declaro marido e
mulher”, traz marcas da situação de comunicação em que houve esta
enunciação: uma cerimônia de casamento. Dessa forma, vemos que
os sentidos das expressões linguísticas não se reduzem a valores
de verdade, isto é, “não há sentidos cristalizados, independentes,
ETAPAS DA ANÁLISE DE DISCURSO: etapa 1- passagem da superfície linguística do texto para o discurso; etapa 2 – passa-gem do objeto discursivo para a formação discursi-va; etapa 3 – passagem para o processo discursivo e formação ideológica.
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mas sentidos construídos numa situação discursiva”
(BRANDÃO, 1998, p. 98).
Cada formação discursiva tem seus
processos formadores de sentido, isto é, os
processos que regulam a substituição de uma
palavra ou expressão por outra. Ao analisar
tais processos, o analista deve estar atento aos
deslizamentos de sentido intencionados
pelo locutor, no jogo da interlocução.
O uso da conjunção mas é geralmente
um índice de outras vozes no discurso. É muito comum que ela não
refute o enunciado anterior, mas um pressuposto ideológico. Por
exemplo: Ela é mulher, mas é inteligente. Aqui, o mas não refuta
mulher mas refuta o pressuposto ideológico de que toda mulher é
burra.
2.1 O Recorte
O recorte é uma unidade discursiva, isto é, são fragmentos
de linguagem correlacionados a uma situação. Assim, um recorte é
um fragmento da situação discursiva e é fruto de um trabalho de
construção teórica, em vez de ser automático ou predeterminado. Nos
recortes não há passagem automática entre as unidades e o todo que
elas constituem, mas através delas, chega-se à representação das
relações textuais referidas às condições em que foram produzidas.
Por exemplo, ao analisar o uso do discurso religioso pelo
discurso político, Cazarini (1999) fez os seguintes recortes:
Recorte 1
O vermelho da bandeira do PT é o sangue de Jesus Cristo na
cruz... (Discurso em Canudos, Caravana da Cidadania – Veja, ano 26,
n. 19, p. 26, 12/5/93).
Recorte 02
Eu não queria discutir o processo eleitoral nesse instante. O
que eu queria é que não se brincasse com o sentimento do povo.
A campanha tem 30 dias e vamos trabalhar para ganhar a eleição. Isso que aconteceu serviu para mostrar a podridão da elite dirigente
brasileira: foi coisa de Deus. (Diário Popular, p. 5, 4/9/94)
Recorte 03
RECORTE: é uma unida-de discursiva, isto é, são fragmentos de linguagem correlacionados a uma si-tuação.
Figura 01 - O enunciado traz marcas da situação de
comunicação
Linguística III - Teoria da análise de discurso
130 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Metodologia em análise de discurso
A estrela do PT signifi ca guia, que há milênios
guia os navegantes. (Comício em Salvador, publicação
em Zero Hora, 1;10/94).
Vemos, portanto, que esses recortes são
fragmentos de um discurso político, sendo que todos
estão relacionados ao uso do discurso religioso.
Eles foram resultado de um trabalho de construção
teórica do analista, em vez de ser automático ou
predeterminado. Nesses recortes não há passagem
automática entre eles e o todo, que é uso do discurso
religioso pelo discurso político. Mas é através desses recortes que
se chega a mostrar que o discurso político está usando o discurso
religioso.
O analista de discurso recorta os textos, isto é, busca
correlacionar fragmentos de linguagem correlacionados a uma
situação discursiva. Os recortes discursivos não segmentam a língua,
mas, por meio da análise de marcas gramaticais, como as negações, o
discurso relatado etc., pode-se chegar ao funcionamento do discurso
em análise (MARIANI, 1999).
2.2 O silêncio
Todo dizer é uma relação fundamental com o não dizer. Como
o sentido é sempre produzido a partir a partir de uma posição do
sujeito, ao dizer, ele estará necessariamente não dizendo outros
sentidos possíveis, mas indesejados, numa dada situação discursiva.
“Produz-se, assim, um recorte entre o que se diz e o que não se diz,
onde uma palavra apaga necessariamente as outras palavras” que
não podem ser ditas (CAZARINI, 1999, p. 133).
Quando se analisa o silêncio, não se tem marcas formais, o
que se tem são pistas. A análise se volta para o processo de produção
dos sentidos, para a historicidade de sua relação com o interdiscurso.
O primeiro ponto é que o silêncio, tanto quanto a palavra, tem suas condições de produção; por isso, dada a diversidade dessas, o sentido do silêncio varia, isto é, ele é tão ambíguo quanto as palavras. O silêncio imposto pelo opressor é exclusão, é forma de dominação, enquanto que o silêncio proposto pelo oprimido pode ser uma forma de resistência. Ambos produzem uma ruptura, no caso, desejada. Por outro lado, o silêncio pode produzir uma ruptura não desejada. Inscreve-se nesse caso aquilo a que
SILÊNCIO: tem uma re-lação fundamental com o dizer. Uma palavra apaga necessariamente outras palavras.
Figura 02: Exemplo de discurso político usando o discurso reli-gioso
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se chama ruído da comunicação (ou seja, a comunicação mal sucedida). Há ainda a ruptura categórica entre interlocutores ocasionada pela destruição do contato: é o silêncio radical (ORLANDI, 1996, p. 263).
2.3 O tipo de discurso
A noção de tipo de discurso é uma necessidade metodológica.
Essa tipologia está relacionada com os objetivos específi cos de cada
análise. Por isso, as tipologias são de aplicação relativa, “podendo
possuir uma maior ou menor generalidade” (ORLANDI, 1996, p.
152). A tipologia deve incorporar a relação da linguagem com suas
condições de produção. Mesmo quando se estabelece uma tipologia
discursiva, o discurso não tem necessariamente de se apresentar
como um tipo puro, mas pode se apresentar de uma forma mista.
Nesse último caso, deve-se analisar também o jogo de dominância
tipológica. Assim, propriedades de um tipo de discurso podem também
estar presentes em outros tipos de discurso. Isso ocorre porque
“os discursos se relacionam, se comunicam entre si, se sustentam
mutuamente” (ORLANDI, 1996, p. 256). Por exemplo, aquilo que
consideramos como propriedade do discurso do tipo religioso pode
ser encontrada numa poesia, num discurso político ou no editorial
de um jornal. Vemos, portanto, que os discursos não se distinguem
entre si de forma categórica, mas segundo seu funcionamento.
Os tipos de discurso são modos de ação que instauram uma
forma de interação. Por exemplo, o discurso pedagógico do tipo
autoritário se opõe ao do tipo polêmico e ao do tipo lúdico. O tipo
autoritário tem como uma de suas características substituir o objeto
em debate por um ponto de vista imposto pelo professor. Além disso,
a interação não é reversível, ou seja, as posições de locutor e ouvinte
não se alternam.
2.4 Discurso e texto
A Análise de Discurso não se confunde com a Linguística
Textual. A grande diferença entre ambas está exatamente na noção
de texto: “o discurso é tomado como conceito teórico e metodológico e
o texto, em contrapartida, como o conceito analítico correspondente”
(ORLANDI, 1996, p. 159). Em outras palavras, o texto é o objeto
TIPO DE DISCURSO: é uma necessidade metodo-lógica e está relacionado com os objetivos específi -cos de cada análise.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
132 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Metodologia em análise de discurso
empírico, concreto, de análise, enquanto o discurso é um objeto
teórico a ser identifi cado no texto. Partimos do texto para chegar
ao discurso. Conforme já visto, é através de recortes do texto que
atingimos o nível discursivo.
2.5 Propriedade e marca
O discurso apresenta propriedades e marcas. A propriedade
tem mais a ver com a totalidade do discurso e sua relação com a
exterioridade, enquanto a marca diz respeito à organização do discurso.
Por exemplo, no discurso religioso, uma propriedade característica
é a não-reversibilidade entre os planos temporal e espiritual. Isso
vai resultar no uso da forma semântica de antíteses, baseadas no
mecanismo gramatical da negação, o que constitui uma marca interna
desse discurso. Outra marca ou traço do discurso religioso é o uso do
imperativo e do vocativo, enquanto formas próprias de discurso em
que existe doutrinação: não matarás. Podemos encontrar também
o uso do imperativo no discurso do tipo publicitário: beba com
moderação.
A forma como as marcas são usadas em relação à propriedade
de um tipo de discurso é que o caracteriza e o defi ne. Assim, determinar
a forma dessa relação entre traços e propriedades é estabelecer o
funcionamento discursivo específi co.
PROPRIEDADE E MAR-CA: o discurso apresenta propriedades e marcas. A propriedade tem mais a ver com a totalidade do dis-curso e sua relação com a exterioridade, enquanto a marca diz respeito à orga-nização do discurso.
AATIVIDADETIVIDADE
1) Oração do Pai Nosso: “Pai Nosso, que estais no céu, santifi cado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal.”
Partindo do texto acima da oração do Pai Nosso, faça o recorte de enunciados em que o discurso do crente se dirigindo a Deus apresenta elementos do discurso do fi lho se dirigido ao pai, na família patriarcal. Por exemplo, o recorte da expressão “Pai Nosso” já apresenta um termo da relação familiar fi lho-pai, em que o sujeito crente se coloca como “fi lho” e Deus é estabelecido como “pai”. Observe que muitas outras religiões não estabelecem a divindade como sendo “pai”. Um outro recorte é a expressão “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Na família patriarcal é o pai que tem a função de prover alimento para os fi lhos. No discurso do Pai Nosso, esta mesma função é atribuída a Deus.
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RESUMINDO
Faça outros recortes no texto do Pai Nosso em que aparecem elementos do discurso do fi lho ao pai, na família patriarcal.
2) Letra da música popular Mulata assanhada: “Oh mulata assanhada/ que passa com graça/ fazendo pirraça/ fi ngindo inocente/ tirando o sossego da gente// Ah meu Deus que bom seria / se voltasse a escravidão / eu pegava essa mulata / e prendia no meu coração / e depois na pretoria / resolvia a questão”.
Recorte deste texto enunciados do discurso escravocrata sobre a mulher escrava.
3) Cantiga de roda: “Teresinha de Jesus / de uma queda foi ao chão / acudiram três cavaleiros / todos três chapéu na mão. // O primeiro foi seu pai / o segundo seu irmão / o terceiro foi aquele / que a Teresa deu a mão”.
Recorte desse texto enunciados do discurso tradicional sobre a relação mulher-homem, ao longo da vida.
Nesta aula, você viu que:
As palavras não têm um sentido fi xo, mas apresentam sentidos variáveis, a depender das formações discursivas em que são usadas.
O que direciona a análise de discurso são seus objetivos e o tipo de texto selecionado para ser recortado.O discurso é considerado, ao mesmo tempo, como enunciado e como enunciação, como dito e como dizer.
Muitos discursos se valem das nominalizações para introduzir uma “verdade” já posta, um “dado inquestionável”.
A etapa 1 da análise de discurso constitui a passagem da superfície linguística do texto para o discurso.
A etapa 2 da análise de discurso constitui a passagem do objeto discursivo para a formação discursiva.
A etapa 3 da análise de discurso constitui a passagem para o pro cesso discursivo e formação ideológica.
O recorte é uma unidade discursiva, constituída por fragmentos de linguagem correlacionados a uma situação.
O silêncio tem uma relação fundamental com o dizer. Uma palavra apaga necessariamente outras palavras.
O tipo de discurso é uma necessidade metodológica e está relacionado com os objetivos específi cos de cada análise.
O texto é o objeto empírico da análise de discurso, enquanto o discurso é um objeto teórico e metodológico.
A propriedade tem mais a ver com a totalidade do discurso e sua relação com a exterioridade, enquanto a marca diz respeito à organização do discurso.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
134 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Metodologia em análise de discurso
RE
FE
RÊ
NC
IAS
ABREU, Ana Sílvia Couto de. Escola e Escola on line: alguns efeitos do discurso pedagógico midiatizado. Tese de doutorado. Campinas: FE/UNICAMP, 2006.
ACHARD, Pierre. Memória de Produção Discursiva do Sentido. In: ____ et al. Papel da Memória. Tradução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
BAKHTIN, M. Marxismo e fi losofi a da linguagem. 8. ed. Tradução de Michel Lahud; Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Subjetividade, argumentação, polifonia. A propaganda da Petrobrás. São Paulo: UNESP, 1998.
CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
CAZARIN, Ercília Ana. Relações entre o político e o religioso no discurso político de L. I. Lula da Silva. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 131-137.
MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. Sobre um percurso de análise do discurso jornalístico – A Revolução de 30. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 102-121.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
Suas anotações
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aula
Ao fi nal desta aula, você deverá:
• ter uma noção da prática em Análise de Discurso;
• ser capaz de aplicar conceitos teórico-metodológicos básicos na análise de discursos;
• ser capaz de aplicar os procedimentos de cada etapa na Análise de Discurso;
2Objetiv
osEXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO
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AULA 2EXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO
1 INTRODUÇÃO Já vimos, na aula anterior, os conceitos teóricos e metodológicos
básicos da Análise de Discurso. Vamos ver agora a aplicação desses
conceitos em análises concretas. Vamos tomar aqui como exemplo
de análise de discurso o artigo inédito “O discurso dos brasileiros
sobre o Brasil: relações interdiscursivas com o discurso colonialista”,
de RODRIGHERO, Nayla e MESQUITA FILHO, Odilon Pinto de.
...
Linguística III - Teoria da análise de discurso
140 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
2 O DISCURSO DOS BRASILEIROS SOBRE O BRASIL O discurso dos brasileiros sobre o Brasil é frequentemente
marcado pelo negativismo. Em conversas informais, ao se referir a
algum fato negativo, é comum ouvir-se, em seguida, comentários
do tipo: “isso só acontece no Brasil!” Na mídia, também podem ser
encontradas afi rmações do tipo:
O aspecto mais gratifi cante de se torcer contra os brasileiros é que a gente sempre acaba ganhando. Cada medalha de bronze perdida pode ser comemorada como um triunfo. Mas nossos atletas em Pequim merecem ser festejados por algo muito mais transcendental do que o mero sucesso esportivo. Com suas humilhantes derrotas, eles ajudam a ratifi car todos os estereótipos mais grosseiros sobre o Brasil e os brasileiros. O povo dócil. A cultura conformista. O caráter frágil. A personalidade titubeante. O espírito resignado. O pendor para ser eternamente café-com-leite. É reconfortante saber que o país nunca trairá nossas piores expectativas (MAINARDI, Veja, 13/08/2008).
Tal negativismo apresenta relações interdiscursivas com o
discurso colonialista. Interdiscursividade é a:
(...) relação de um discurso com outros discursos (...) ao tomar o interdiscurso como objeto, procura-se apreender não uma formação discursiva, mas a interação entre formações discursivas diferentes. Nesse sentido, dizer que a interdiscursividade é constitutiva de todo discurso é dizer que todo discurso nasce de um trabalho sobre outros discursos (BRANDÃO, Unicamp, 1995).
Assim, uma formação discursiva pode ser levada a incorporar
elementos pré-construídos, produzidos fora dela, “provocando
sua redefi nição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o
chamamento de seus próprios elementos para organizar sua
repetição, mas também, provocando, eventualmente, o apagamento,
o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos”
(MAINGUENEAU, 1993, p. 113).
A formação discursiva que domina o discurso negativo
dos brasileiros sobre o Brasil pode estar incorporando elementos
produzidos no discurso colonialista, ainda que, eventualmente, possa
estar fazendo também o apagamento de alguns desses elementos.
Por isso, a transparência de sentido que nela se forma esconde
“algo que fala sempre antes” (PÊCHEUX, 1997, p. 162), no discurso
Figura 01: O discurso negativo do brasileiro sobre o Brasil e os brasileiros
INTERDISCURSIVIDA-DE: é a relação de um dis-curso com outros discur-sos, no interdiscurso.
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discurso
141Letras VernáculasUESC
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colonialista.
O discurso colonialista se caracteriza por apresentar um
conhecimento determinado sobre o colonizado. Esse conhecimento
cria a justifi cativa para uma relação de subalternidade entre metrópole
e colônia. Portanto, a função estratégica do discurso colonialista “é a
criação de um espaço para ‘povos sujeitos’ através da produção de
conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilância” (BHABHA,
2003, p. 111).
A relação entre o discurso colonialista e o discurso do
colonizado sobre si mesmo é complexa e multifacetada, incluindo
desde a paráfrase mais servil até as formas mais críticas. O discurso
colonialista estabelece um mito fundador:
No período da conquista e colonização da América e do Brasil surgem os principais elementos para a construção de um mito fundador. O primeiro constituinte é a (...) ‘visão do Paraíso’ e o que chamaremos aqui de elaboração mítica do símbolo ‘Oriente’. O segundo é oferecido, de um lado, pela história teológica providencial (...) e, de outro, pela história profética herética cristã, ou seja, o milenarismo de Joaquim de Fiori. O terceiro é proveniente da elaboração jurídico-teocêntrica da fi gura do governante como rei pela graça de Deus, a partir da teoria medieval do direito natural (...) para os fundamentos das monarquias absolutas ibéricas (CHAUÍ, 2000, p. 58).
Esse mito fundador oferece um conhecimento sobre o Brasil
como resultado da criação divina de sua natureza, da criação divina de
sua história (Bíblia) e da criação divina do Estado. Tal conhecimento
ainda hoje pode ser encontrado no discurso dos brasileiros sobre o
Brasil.
Vamos analisar aqui aspectos das relações interdiscursivas
entre o discurso de professores brasileiros sobre o Brasil e o discurso
colonialista. Para isso serão analisados os dois discursos, identifi cando-
se as relações parafrásticas entre ambos. Vamos então sistematizar
elementos do discurso negativo dos brasileiros sobre o Brasil, vamos
identifi car características relevantes do discurso colonialista e vamos
estabelecer relações interdiscursivas entre os dois discursos. O que
se espera é que o discurso negativo dos professores sobre o Brasil
e os brasileiros apresente estreitas relações interdiscursivas com o
discurso colonialista sobre o mesmo tema.
Em Análise de Discurso, a pesquisa é qualitativa, sem a
preocupação de incluir percentagens signifi cativas. Dessa forma,
foi aplicado um questionário aberto entre cinco professores, com as
Linguística III - Teoria da análise de discurso
142 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
seguintes perguntas:
1. O que acha do Brasil?
2. O que você acha do passado do Brasil?
3. O que você acha do futuro do Brasil?
4. O que você acha do povo brasileiro?
5. O que você acha dos estudantes brasileiros?
6. O que você acha de ser brasileiro?
7. O que você acha de nossa aparência étnica?
8. O que você acha dos produtos brasileiros? São melhores ou inferiores aos produtos importados?
9. O que você acha de um espanhol falar bem a língua espanhola aos 05 anos de idade e o brasileiro, em sua maioria, ainda falar mal?
10. O que você achou da situação do Brasil nas Olimpíadas de Pequim?
Foi obtido um total de 50 respostas. Não serão mostradas aqui
todas as respostas, mas apenas as mais signifi cativas para a análise.
Cada resposta será considerada um texto, nosso objeto empírico de
trabalho, de onde será retirado enunciado do discurso sobre o Brasil e
os brasileiros, nosso objeto teórico. O texto é considerado aqui:
(...) com sua materialidade (com sua forma, suas marcas
e seus vestígios): como historicidade signifi cante e
signifi cada (e não como: ‘documento’ ou ‘ilustração’):
como parte da relação mais complexa e não coincidente
entre memória, discurso e texto: como unidade de análise
que mostra acentuadamente a importância de se ter à
disposição um dispositivo analítico compatível com a
natureza dessa unidade (ORLANDI, 2001, p. 12).
Em seguida, esses enunciados serão agrupados, conforme
estejam sob o domínio de uma formação discursiva positiva ou de
uma formação discursiva negativa sobre o Brasil. Em cada formação
discursiva, serão identifi cados aspectos do funcionamento dos
dois discursos, por meio da análise parafrástica e polissêmica dos
enunciados. Finalmente, serão estabelecidas relações interdiscursivas
com o discurso colonialista.
2.1 Formação Ideológica
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O primeiro passo da análise é identifi car se o discurso dos
professores sobre Brasil e os brasileiros, é uma Formação Ideológica,
isto é, se apresenta tomadas de posições diferentes. Segundo
Brandão (1995), Formação Ideológica é qualquer elemento, ou tema,
capaz de constituir-se numa força, confrontada com outras forças, na
conjuntura ideológica, num dado momento, em uma dada sociedade.
Trata-se de uma organização de posições políticas e ideológicas, mais
ou menos relacionadas às posições de classes em confl ito.
Entre os professores, foram produzidos os seguintes enunciados
sobre o Brasil e os brasileiros (a numeração segue a totalidade de 50
enunciados produzidos):
1. [O Brasil é] um país rico, porém sem cultura.
2. Acho o Brasil um bom país. Apesar de suas difi culdades, pode-se dizer que é um bom país para se viver. Aqui há liberdade de expressão religiosa, sexual e partidária.
19. [O povo brasileiro é] um povo batalhador que muitas vezes vive uma vida de restrições, mas que nunca desiste de sonhar.
20. Um povo [brasileiro] alegre, porém desonesto.
39. Com certeza existem bons produtos [brasileiros], mas também temos inúmeros produtos de péssima qualidade.
40. [Os produtos brasileiros] são ruins. São inferiores aos importados.
As respostas a cada pergunta se dividem em positivas (2, 19,
39) e negativas (1, 20, 40). Podemos, então, dizer que a opinião
dos professores sobre o Brasil e os brasileiros apresenta duas forças
confrontadas, na conjuntura ideológica atual de nossa sociedade.
Vemos que constituem duas posições políticas e ideológicas, mais
ou menos relacionadas às posições de classes em confl ito. Assim,
concluímos que o tema Brasil e brasileiros constitui uma Formação
Ideológica.
2.2 Formações Discursivas
Segundo Brandão (1995), dentro de uma determinada
Formação Ideológica, são as Formações Discursivas que determinam
o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada, numa
conjuntura dada. Assim, as Formações Discursivas “determinam o
que pode e deve ser dito” a partir de cada uma dessas posições
(ORLANDI, 1996, p. 27)
Tendo em vista os enunciados mostrados acima, podemos
estabelecer duas Formações Discursivas, para a Formação Ideológica
FORMAÇÃO IDEOLÓGI-CA: é qualquer elemento ou tema, capaz de cons-tituir-se numa força, con-frontada com outras forças, na conjuntura ideológica de uma dada sociedade, em um dado momento.
FORMAÇÕES DISCURSI-VAS: em cada discurso, a formação discursiva é um conjunto de princípios que determinam o que pode e deve ser dito, a partir de uma dada posição ideoló-gica
Linguística III - Teoria da análise de discurso
144 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
sobre o Brasil e os brasileiros: uma Formação Discursiva Positiva e
outra Negativa. Os enunciados (2), (19) e (39) são dominados pela
Formação Discursiva Positiva, enquanto os enunciados (1), (20) e (40)
são dominados pela Formação Discursiva Negativa. Portanto, podemos
concluir que, sendo uma Formação Ideológica, o tema Brasil e brasileiros,
no discurso dos professores, apresenta duas Formações Discursivas:
uma Positiva e outra Negativa.
2.3 A Formação Discursiva Negativa Segundo Brandão (1995, p. 39), uma Formação Discursiva é constituída
por um sistema de paráfrases, isto é,
(...) um espaço em que enunciados são retomados
e reformulados num esforço constante de fechamento
de suas fronteiras, em busca da preservação de sua
identidade (...) Enquanto a paráfrase é um mecanismo
de ‘fechamento’, de ‘delimitação’ das fronteiras de
uma formação discursiva, a polissemia rompe essas
fronteiras, ‘embaralhando’ os limites entre diferentes
formações discursivas, instalando a pluralidade, a
multiplicidade de sentidos.
Novamente, não vamos mostrar enunciados da Formação
Discursiva Positiva. Na Formação Discursiva Negativa, temos as
seguintes paráfrases, estabelecidas a partir das 50 respostas dadas,
conforme indicam os números entre parênteses:
Paráfrase 1: [O Brasil] é um país sem cultura (1)
[O Brasil] não é um país modelo (4)
[O Brasil] não tem educação (4)
Paráfrase 2: [O Brasil] do ponto de vista político é sofrível (3)
Os políticos [brasileiros] são sem escrúpulos (4)
Paráfrase 3: [O Brasil] é violento (4)
[O Brasil] tem muita miséria (4)
[No Brasil] há falta de respeito do homem pelo homem (4)
Paráfrase 4: [O passado brasileiro] foi péssimo (6)
[O passado brasileiro] não foi glorioso (8)
145Letras VernáculasUESC
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Paráfrase 5: [O passado brasileiro] foi sem participação popular (8)
[O passado brasileiro] manteve os privilégios da elite
agrária (latifundiários escravistas) (8)
[O passado brasileiro] faz com que seu povo, até hoje,
sofra e padeça. (9)
[O povo brasileiro] é usado como “massa de
manobra” para servir aos interesses da elite medíocre,
especialmente nas eleições (16)
Paráfrase 6: [O passado brasileiro] inclui a morte de pessoas
[O passado brasileiro] foi pródigo em torturar,
“desaparecer”, expulsar, matar
Paráfrase 7: [Quanto ao futuro do Brasil], fi caremos “parados no
tempo” por muitos longos e cansativos anos (11)
[Quanto ao futuro do Brasil] só Deus dirá se vai haver
melhoria na qualidade de vida da população (12)
[Quanto ao futuro do Brasil] precisamos deixar de lado
a utopia de que o Brasil venha a ser um país de primeiro
mundo. (13)
[O Brasil] não tem um bom futuro porque não investe
em educação e saúde (14)
Paráfrase 8: [O povo brasileiro] é acomodado, racista, debochado
(17)
[O povo brasileiro] é alegre, porém desonesto (20)
Paráfrase 9: É preciso maior investimento na área educacional (22)
[Os estudantes] vêm sendo deixados de lado (23)
Paráfrase 10: [Hoje] o estudante não estuda (21)
O estudante não se preocupa com o dia de amanhã (23)
O estudante, quando tem oportunidade, não sabe o que
fazer (24)
Os estudantes são fracos, viciados em relação aos
estudos e só pensam em pesca. (25)
Paráfrase 11: Os produtos brasileiros são ruins, inferiores aos impor-
tados (40)
A vigilância sanitária sobre alimentos deixa a desejar
(37)
Linguística III - Teoria da análise de discurso
146 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
Temos inúmeros produtos brasileiros de péssima
qualidade (39)
Paráfrase 12: Faltam investimentos em educação (38)
O sistema educacional brasileiro não é adequado (39)
As raízes de nossos problemas educacionais estão em
nosso passado colonial (40)
Falta justamente uma política de educação (41)
O sistema educacional brasileiro é muito defasado (42)
Essas paráfrases funcionam como um mecanismo de
“fechamento” e de “delimitação de fronteiras” da Formação Discursiva
Negativa sobre Brasil e brasileiros, reafi rmando uma avaliação
negativa.
Podemos então dizer que as paráfrases constituem princípios
produtivos da Formação Discursiva Negativa sobre o Brasil e
brasileiros, delimitando um lugar específi co da constituição dos
sentidos, determinando o que pode e deve ser dito. Com base nas
paráfrases vistas, podemos estabelecer os seguintes princípios da
Formação Discursiva Negativa sobre o Brasil e brasileiros:
1. O Brasil é um país sem cultura nem educação.2. A política brasileira é dominada pela corrupção.3. O Brasil é marcado pela violência e pela miséria4. O passado histórico brasileiro é péssimo, não glorioso.5. O passado histórico brasileiro não teve participação popular,
privilegiou as elites e faz com que ainda hoje o povo seja manipulado e sofra.
6. O passado histórico brasileiro é marcado pela tortura e morte de pessoas.
7. O Brasil não investe em saúde e educação, por isso nunca será um país de primeiro mundo.
8. O povo brasileiro é acomodado, racista, debochado, alegre e desonesto.
9. O estudante brasileiro não estuda, não aproveita as oportunidades, é fraco e só pensa em pesca.
10. Os produtos brasileiros são inferiores aos importados.
2.4 O Espaço Discursivo
Segundo Cardoso (1999), o espaço discursivo liga, pelo
menos, duas Formações Discursivas que se supõem manterem
relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos
considerados. Nesse trabalho, o espaço discursivo considerado é
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constituído pela Formação Discursiva Negativa, no discurso atual
dos professores sobre o Brasil e brasileiros, e a Formação Discursiva
Colonialista. Essas Formações Discursivas mantêm relações cruciais
para a compreensão dos dois discursos.
Ao analisar um discurso temos de ter um dispositivo teórico,
os conceitos e procedimentos da Análise de Discurso, e um dispositivo
analítico, um conjunto de conhecimentos sobre o tema abordado.
Como, nesse trabalho, estamos enfocando aspectos interdiscursivos
entre o discurso dos professores sobre o Brasil e brasileiros e o
discurso colonialista sobre o mesmo tema; vamos usar, como
dispositivo analítico, alguns conhecimentos já elaborados sobre este
último discurso. Segundo BEM (2005, p. 37),
Além da exclusão material, concreta, um dos importantes impulsionadores do turismo sexual são as representações. Ele precisa, portanto, de imaginário. Em primeiro lugar, com a migração internacional, as representações coloniais serão atualizadas e redimensionadas nos países emissores. Essas imagens coloniais, uma vez atualizadas, funcionarão como importante “canal” para dar legitimidade às novas práticas de hierarquização. Em segundo lugar, a migração internacional fi xará, por supor uma estratifi cação do mercado de trabalho baseada no pertencimento étnico, clichês específi cos, atribuídos aos integrantes das várias nacionalidades, construindo, com esses estereótipos, uma subalternidade. Esses estereótipos passam a circular no interdiscurso social.
Desse texto, podemos deduzir os seguintes princípios da
Formação Discursiva colonialista:
I) As representações coloniais são atualizadas e
redimensionadas
II) O discurso colonialista legitima novas práticas de
hierarquização.
III) O discurso colonialista supõe uma estratifi cação do
mercado de trabalho baseada no pertencimento étnico.
IV) O discurso colonialista atribui clichês aos integrantes de
várias nacionalidades.
V) O discurso colonialista constrói uma subalternidade [entre
etnias e nacionalidades] por meio de estereótipos.
Bhaba propõe (2003, p. 110-111):
Linguística III - Teoria da análise de discurso
148 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
(...) que, de forma bem preliminar, o estereótipo é um modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afi rmativo. (...) Estas são estratégias teóricas que são necessárias para combater o ‘etnocentrismo’. Não pode haver um deslizamento inevitável da atividade semiótica para a leitura não problemática de outros sistemas culturais e discursivos. Há nessas leituras uma vontade de poder e conhecimento que, ao deixar de especifi car os limites de seu próprio campo de enunciação e efi cácia, passa a individualizar a alteridade como a descoberta de suas próprias pressuposições. O discurso colonial é um aparato que se apóia no reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominante é a criação de um espaço para “povos sujeitos” através da produção de conhecimentos em termos dos quais se exerce vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/desprazer. O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justifi car a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. (...) estou me referindo a uma forma de governamentalidade que, ao delimitar uma “nação sujeita”, apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade. (...) o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um “outro” e ainda assim inteiramente apreensível e visível.
Desse texto, podemos deduzir os seguintes princípios da
Formação Discursiva colonialista:
VI- Os estereótipos do discurso colonialista são representações
complexas, ambivalentes, contraditórias e, na mesma
proporção, afi rmativas e ansiosas.
VII- O discurso colonialista é etnocêntrico.
VIII- O discurso colonialista faz uma leitura semiótica não
problemática de outros de sistemas culturais e discursivos.
IX- Na leitura não problemática que faz de diferentes sistemas
culturais e discursivos, o discurso colonialista manifesta uma
vontade de poder e de conhecimento.
X- O discurso colonialista não especifi ca os limites de seu
próprio campo de enunciação e efi cácia.
XI- O discurso colonialista individualiza a alteridade como
descoberta de suas próprias pressuposições.
XII – O discurso colonialista, ao mesmo tempo que reconhece,
também repudia as diferenças raciais, culturais e históricas.
XIII- O discurso colonialista, através da produção de
conhecimentos, cria um espaço para “povos sujeitos”.
XIV- Através dos conhecimentos que produz, o discurso
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colonialista exerce vigilância e estimula uma forma complexa de prazer/desprazer, em
relação aos povos subalternos.
XV- O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população
de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justifi car a conquista e
estabelecer sistemas de administração e instrução.
XVII- Existem posicionalidades deslizantes dos sujeitos, no discurso colonialista, por
efeitos de classe, gênero, ideologia, formações sociais diferentes, sistemas diversos
de colonização etc.
XVIII- A governamentalidade, no discurso colonialista, delimita uma “nação sujeita” e
dela se apropria, dirige e domina suas várias esferas de atividade.
Observando os princípios da Formação Discursiva Negativa, no discurso atual dos
professores sobre Brasil e os brasileiros, e os princípios da Formação Discursiva Colonialista,
podemos observar as seguintes relações interdiscursivas:
Quadro 1 - Relações Interdiscursivas
Formação Discursiva Colonialista Formação Discursiva Negativa
Legitima novas práticas de hierarquização (II), criando um espaço para “povos sujeitos” (XIII)
O Brasil é um país sem cultura nem educação (1) e seu povo é acomodado, racista, debochado, alegre e desonesto (8)
Supõe uma estratifi cação do mercado de trabalho base-ada no pertencimento étnico (III)
O Brasil não investe em saúde e educação, por isso nunca será um país de primeiro mundo (7)
Atribui clichês aos integrantes de várias nacionalidades (IV). Constrói uma subalternidade [entre etnias e na-cionalidades] por meio de estereótipos (V). Na leitura não problemática que faz de diferentes sistemas cultu-rais e discursivos, o discurso colonialista manifesta uma vontade de poder e de conhecimento (IX). Individuali-zando a alteridade como descoberta de suas próprias pressuposições (XI)
O Brasil é um país sem cultura nem educação. (1) mar-cado pela violência e pela miséria (3) O povo brasileiro é acomodado, racista, debochado, alegre e desonesto (8) Os produtos brasileiros são inferiores aos importa-dos (11)
É etnocêntrico (VII) e faz uma leitura semiótica não problemática de outros sistemas culturais e discursivos (VIII).
O Brasil é um país sem cultura nem educação (1) com um passado histórico péssimo, não glorioso (4) e não investe em saúde e educação, por isso nunca será um país de primeiro mundo (7).
O discurso colonialista, ao mesmo tempo em que reco-nhece, também repudia as diferenças raciais/culturais/históricas (XII).
O povo brasileiro é acomodado, racista, debochado, alegre e desonesto (8). Com um passado histórico pés-simo, não glorioso (4)
Através dos conhecimentos que produz, exerce vigilância e estimula uma forma complexa de prazer/desprazer, em relação aos povos subalternos (XIV)
[O Brasil] é um país rico (1) é um país maravilhoso e tem todas as condições de ser um país modelo (4) O futuro do Brasil como país parece promissor (12) O povo brasileiro que batalha duro tem valor (16)O povo brasileiro é maravilhoso, acolhedor, alegre, simpático, trabalhador
Linguística III - Teoria da análise de discurso
150 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
2.5 Considerações fi nais
O quadro comparativo acima, relacionando princípios da
Formação Discursiva Colonialista e princípios da Formação Discursiva
Negativa, no discurso atual dos professores sobre o Brasil e brasileiros,
mostra que há numerosas e intensas relações interdiscursivas entre
ambas. Podemos até dizer que o discurso colonialista sobre o Brasil e
brasileiros sobrevive e revive no discurso atual dos professores sobre
esse mesmo tema.
AATIVIDADESTIVIDADES
1) A partir de três instituições sociais, identifi que uma formação ideológica em cada uma delas.
2) Considerando que, na instituição da igreja católica, o uso da camisinha é atualmente uma formação ideológica, estabeleça um princípio básico da formação discursiva que domina o discurso contra esse uso e um princípio básico da formação discursiva que domina o discurso a favor desse uso. Você pode tomar como base textos da mídia, sermões de padres, conversas informais, declarações etc.
3) Considerando que, nas instituições universitárias brasileiras, a questão das cotas raciais é uma formação ideológica, identifi que um princípio básico da formação discursiva a favor e um princípio básico da formação discursiva contra o uso de cotas. Você pode tomar como base, textos da mídia, conversas informais, declarações etc.
4) Admitindo que, nas instituições policiais brasileiras, matar ou não matar os bandidos é uma formação ideológica, identifi que um princípio básico da formação discursiva que domina o discurso a favor de matar marginais e um princípio básico da formação discursiva que domina o discurso contra matar bandidos. Você pode tomar como base textos da mídia, conversas informais, pesquisas de opinião etc.
5) Nenhuma pessoa tem a experiência física, concreta, de conversar com Deus. Por isso, nas orações religiosas, são tomadas como base as relações familiares patriarcais. Do texto da oração do Pai Nosso, retire enunciados que pertencem ao discurso do fi lho se dirigindo ao pai, na família patriarcal.
6) Retire de textos da revista Veja enunciados que pertencem ao discurso contra o
governo Lula.
7) Retire, do texto de uma propaganda, enunciados que pertencem ao discurso contra
o produto anunciado.
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RESUMINDO
Nessa aula, você viu que:
A formação discursiva que domina o discurso negativo dos
brasileiros sobre o Brasil pode estar incorporando elementos
produzidos no discurso colonialista.
A relação entre o discurso colonialista e o discurso do colonizado
sobre si mesmo é complexa, incluindo desde a paráfrase mais
servil até as formas mais críticas.
Em Análise de Discurso, a pesquisa é qualitativa, sem a
preocupação de incluir percentagens signifi cativas.
Cada resposta ao questionário aberto foi considerada um texto. E
desses textos foram retirados enunciados que foram agrupados,
conforme estejam sob o domínio de uma formação discursiva
positiva ou de uma formação discursiva negativa sobre o Brasil e
os brasileiros.
O primeiro passo da análise é identifi car se o discurso atual
dos professores sobre Brasil e os brasileiros, é uma Formação
Ideológica, isto é, se apresenta tomadas de posições diferentes.
Identifi cada a formação ideológica, os enunciados foram alinhados
em duas Formações Discursivas, uma Positiva e outra Negativa.
O dispositivo analítico usado nessa análise foram conhecimentos
já elaborados sobre o discurso colonialista.
Em seguida foram identifi cadas relações interdiscursivas entre o
discurso colonialista e o discurso negativo dos professores sobre
o Brasil e os brasileiros.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
152 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
RE
FE
RÊ
NC
IAS
BEM, Arim Soares do. A dialética do turismo sexual. Campinas: Papirus, 2005.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1995. CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999
CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perceu Abramo, 2000.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
______ Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afi rmação do óbvio. 3. ed. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. Campinas: UNICAMP,
Suas anotações
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aula
Ao fi nal desta aula, você deverá:
• ter uma noção da prática em Análise de Discurso;
• aplicar conceitos teórico-metodológicos básicos na análise de discursos;
• aplicar os procedimentos de cada etapa na Análise de Discurso;
3Objetiv
osEXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO
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1 INTRODUÇÃO Já vimos, na aula anterior, um trabalho de análise de discurso.
Vamos ver agora outro artigo, aplicando os conceitos e método da AD
numa análise concreta. Vamos tomar aqui, como exemplo de análise
de discurso, o artigo inédito: “O discurso sobre os ciganos na obra de
Bartolomeu Campos Queirós”, de CASTRO, Maria Lígia Andrade.
AULA 3EXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO
...
Linguística III - Teoria da análise de discurso
158 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
2 O DISCURSO SOBRE OS CIGANOS NA OBRA DE BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS
Em sua obra, Ciganos, Bartolomeu Campos Queirós apresenta
uma narrativa poética construída através do entrecruzamento da
história desse povo, recuperada pela memória discursiva, que revela
uma visão estereotipada desses nômades, através do menino sem
nome, personagem da história. Esse menino revela ser o mesmo
personagem de outras narrativas queirosianas, tais como: Indez; Ler,
escrever e fazer conta de cabeça; Por parte de pai e O olho de vidro
do meu avô.
Nessa narrativa, o menino, que sofre por ser órfão de mãe e
por não ter o afeto do pai, sonha em ser roubado pelos ciganos, que,
para ele, são a imagem da liberdade e da aventura.
Ao contar a história do povo cigano, o narrador traz para o
texto outras vozes, revelando ao leitor a imagem cristalizada na
memória coletiva do mundo ocidental:
Eles deixaram a Índia, alguns diziam, em busca de um caminho para se chegar ao sol. Escutei de outros que eram fi lhos de grandes fl orestas e procuravam uma passagem para as minas de ouro do rei Salomão. Outros falavam que vinham de terras da Espanha ou das areias de Portugal (...). Sem saber ao certo de onde vinham ou para onde iam, sei que os ciganos surgiam (QUEIRÓS, 2004, p. 1).
Nesse enunciado, que abre a narrativa, verifi ca-se o caráter
de indeterminação dos ciganos, o mistério que cerca esse povo, que
não tem origem, nem pátria defi nida. Reverbera nesses enunciados a
visão de que os ciganos buscam sempre riquezas, traço que faz surgir
no sujeito não-cigano o medo de ser roubado e que contribui para a
construção da imagem deles como pessoas ambiciosas e trapaceiras.
A narrativa fala da chegada de ciganos a uma pequena cidade,
“povoado antigo”, segundo nos diz o narrador, e mostra a repercussão
desse fato para os moradores do local, que experimentam um misto
de pavor e mistério, provocado pela presença dos gitanos.
Como num sonho, denso e distraído, os ciganos montavam suas tendas em terreno vago, sempre perto do descampado da igreja, enquanto pelas frestas de portas e
janelas tantos olhos os vigiavam (QUEIRÓS, 2004, p. 2).
O primeiro passo, na análise de discurso, é investigar se o tema
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dos ciganos constitui uma formação ideológica na obra, “Ciganos”, de
Bartolomeu Campos Queirós, isto é, se constitui um afrontamento de
posições ideológicas distintas. Para isso, temos que iniciar a primeira
etapa metodológica da análise de discurso, conforme já visto, na Aula
1, desta Unidade III:
Etapa 1: passagem da superfície linguística do texto para o discurso. Nessa etapa, observa-se o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias etc. Isto é, observa-se o que o discurso mostra em sua sintaxe e enquanto processo de enunciação, em que o sujeito se marca no que diz, fornecendo-nos pistas para compreendermos o modo como o discurso que analisamos se textualiza. O texto nem é o ponto de partida absoluto e nem o ponto de chegada. O texto é só uma peça de linguagem de um processo discursivo bem mais abrangente. É nessa primeira etapa que se desfaz a ilusão de que aquilo que é dito só poderia ser dito daquela maneira. Agora temos um objeto discursivo e tentamos compreender como esse objeto simbólico produz sentidos. Nessa etapa inicial, relacionamos o dito ao não dito, o que foi dito pelo sujeito em um lugar com o que foi dito em outro, seus diferentes modos de dizer, buscando compreender as formações discursivas.
Segundo Brandão (1995), Formação Ideológica é qualquer
elemento, ou tema capaz de constituir-se numa força, confrontada
com outras forças, na conjuntura ideológica, num dado momento, em
uma dada sociedade. Vamos, então, partir do texto de Queirós e dele
retirarmos os enunciados que se referem aos ciganos. Nesse ponto,
já estamos deixando a superfície linguística do texto, porque saímos
recortando nele somente os enunciados que atendem aos objetivos
de nossa análise, que é o discurso sobre os ciganos. Assim, partimos
do texto, mas já estamos no discurso.
Do texto (QUEIRÓS, 2004), foram retirados os seguintes
enunciados sobre os ciganos:
(1) “A presença dos ciganos mudava o ritmo da cidade.
Portas eram cerradas, roupas não dormiam em varal,
nem cavalos soltos nos pastos” (p. 2).
(2) “Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser
companheiro dos meninos: isto por contarem que
cigano roubava criança. E, como ninguém sabia de
onde vinham ou para onde iam, as crianças fi cariam
Linguística III - Teoria da análise de discurso
160 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
perdidas para sempre” (p. 6).
(3) “Á tarde, quando chegava, e tudo fi cava preguiçoso, os
vizinhos se reuniam em portas e varandas. Trocavam
olhares, desfi avam conversas e suspeitas sobre a
ventura dos visitantes. Suspeitavam roubos...” (p. 7).
(4) “E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas
ciganas – tiradoras de sorte – liam futuros cheios de
amor e fortuna” (p. 5).
(5) “E as ciganas de coloridas saias, andando pelas praças,
pintavam de luz a cidade” (p. 4).
(6) “Nas noites, forte música saía das cabanas e,
percorrendo a cidade, invadindo ouvidos, promovia
sonhos. Em volta do fogo eles dançavam e mais
dançavam. Entre sons de violinos e guitarras, de suas
bocas partia um canto bonito, em língua diferente que
mesmo o silêncio quietava para escutar” (p. 7).
(7) “(...) devem ter sido os ciganos os inventores do circo.
Não a arte de se equilibrar no arame, de balançar em
trapézio ou de se expor às facas e fogo. Eles devem ter
inventado a festa, a cor, a forma do circo. E mais que
isto, criaram essa magia e encanto que o circo reserva
ainda hoje” (p. 10).
(8) “Durante o dia os ciganos martelavam o cobre,
assentados em torno da fogueira, construindo tachos”
(p.3).
(9) “Moldar e polir o cobre era herança que o pai cigano
passava para o fi lho” (p. 9).
Esse conjunto de enunciados acima não é mais o texto literário
de QUEIRÓS, é o discurso sobre os ciganos contido nesse texto. E
aqui percebemos claramente a diferença entre Linguística Textual,
que estuda os traços de textualidade, e Análise de Discurso, que se
volta para o discurso. Analisando os enunciados acima, vemos que
eles podem ser agrupados em dois conjuntos, conforme mantenham
relações parafrásticas, isto é, de sentidos semelhantes, com uma
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visão em favor ou uma visão contra os ciganos. Os enunciados abaixo
apresentam relações parafrásticas contra dos ciganos:
(1) “A presença dos ciganos mudava o ritmo da cidade.
Portas eram cerradas, roupas não dormiam em varal,
nem cavalos soltos nos pastos” (p. 2).
(2) “Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser
companheiro dos meninos: isto por contarem que cigano
roubava criança. E, como ninguém sabia de onde vinham
ou para onde iam, as crianças fi cariam perdidas para
sempre” (p. 6).
(3) “Á tarde, quando chegava, e tudo fi cava preguiçoso, os
vizinhos se reuniam em portas e varandas. Trocavam
olhares, desfi avam conversas e suspeitas sobre a ventura
dos visitantes. Suspeitavam roubos...” (p. 7).
Os seguintes enunciados apresentam relações parafrásticas
em favor dos ciganos:
(4) “E nas mãos que a cidade timidamente oferecia, estas
ciganas – tiradoras de sorte – liam futuros cheios de
amor e fortuna” (p. 5).
(5) “E as ciganas de coloridas saias, andando pelas praças,
pintavam de luz a cidade” (p. 4).
(6) “Nas noites, forte música saía das cabanas e, percorrendo
a cidade, invadindo ouvidos, promovia sonhos. Em
volta do fogo eles dançavam e mais dançavam. Entre
sons de violinos e guitarras, de suas bocas partia um
canto bonito, em língua diferente que mesmo o silêncio
quietava para escutar” (p. 7).
(7) “(...) devem ter sido os ciganos os inventores do circo.
Não a arte de se equilibrar no arame, de balançar em
trapézio ou de se expor às facas e fogo. Eles devem ter
inventado a festa, a cor, a forma do circo. E mais que
isto, criaram essa magia e encanto que o circo reserva
ainda hoje” (p. 10).
Linguística III - Teoria da análise de discurso
162 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
(8) “Durante o dia os ciganos martelavam o cobre,
assentados em torno da fogueira, construindo tachos”
(p.3).
(9) “Moldar e polir o cobre era herança que o pai cigano
passava para o fi lho” (p. 9).
Vemos, assim, que o tema dos ciganos, na obra de
Queirós, apresenta duas posições ideológicas opostas. Isso mostra
que o tema dos ciganos nessa obra literária constitui uma formação
ideológica.
Passemos agora a identifi car as duas formações discursivas
que se originam dessa formação ideológica: a formação discursiva
contra os ciganos e a formação discursiva a favor destes. Conforme
já visto na primeira aula dessa unidade, a segunda etapa do método
de análise de discurso é a:
(...) passagem do objeto discursivo para a formação discursiva. Nesta etapa, relacionam-se as formações discursivas com a formação ideológica, atingindo, assim, a constituição do processo discursivo. Nesse ponto, o texto ou textos particulares analisados desaparecem como referências específi cas para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual eles são parte. Os resultados da análise tornam-se então disponíveis para que sejam interpretados pelo analista.
As Formações Discursivas “determinam o que pode e
deve ser dito” a partir de uma dada posição ideológica (ORLANDI,
1996, p. 27). A partir dos enunciados parafrásticos contra os ciganos,
vamos identifi car os princípios que regem esse discurso:
(1) “A presença dos ciganos mudava o ritmo da cidade.
Portas eram cerradas, roupas não dormiam em varal,
nem cavalos soltos nos pastos” (p. 2).
(2) “Com a chegada dos ciganos o medo passava a ser
companheiro dos meninos: isto por contarem que
cigano roubava criança. E, como ninguém sabia de
onde vinham ou para onde iam, as crianças fi cariam
perdidas para sempre” (p. 6).
(3) “Á tarde, quando chegava, e tudo fi cava preguiçoso, os
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vizinhos se reuniam em portas e varandas.
Trocavam olhares, desfi avam conversas e
suspeitas sobre a ventura dos visitantes.
Suspeitavam roubos...” (p. 7).
Do enunciado (1), podemos inferir o seguinte princípio:
os ciganos são ladrões. Do enunciado (2), podemos inferir
que: os ciganos roubam crianças. Do enunciado (3), podemos
inferir que os ciganos inspiram temor por serem ladrões.
Agora desaparece a obra literária de Queirós e passamos a
compreender o processo discursivo sobre o cigano de que os
enunciados acima fazem parte. O discurso sobre o cigano é um
processo que vem se desenvolvendo há séculos. Portanto, os
enunciados recortados acima, já não nos interessam enquanto
pertencentes à obra literária de onde foram recortados. Estes
enunciados passam a nos interessar, enquanto pertencentes
ao discurso sobre os ciganos. Portanto, a formação discursiva
contra os ciganos determina o que pode e deve ser dito que:
Os ciganos são ladrões
Os ciganos roubam crianças
Os ciganos inspiram temor por serem ladrões
A partir dos enunciados parafrásticos em favor
dos ciganos, vamos identifi car os princípios que regem esse
discurso:
(3) “E nas mãos que a cidade timidamente oferecia,
estas ciganas – tiradoras de sorte – liam futuros
cheios de amor e fortuna” (p. 5).
(4) “E as ciganas de coloridas saias, andando pelas
praças, pintavam de luz a cidade” (p. 4).
(5) “Nas noites, forte música saía das cabanas
e, percorrendo a cidade, invadindo ouvidos,
promovia sonhos. Em volta do fogo eles
dançavam e mais dançavam. Entre sons de
violinos e guitarras, de suas bocas partia um
canto bonito, em língua diferente que mesmo o
silêncio quietava para escutar” (p. 7).
Linguística III - Teoria da análise de discurso
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Exercícios em análise de discurso
(6) “(...) devem ter sido os ciganos os inventores do circo.
Não a arte de se equilibrar no arame, de balançar em
trapézio ou de se expor às facas e fogo. Eles devem ter
inventado a festa, a cor, a forma do circo. E mais que
isto, criaram essa magia e encanto que o circo reserva
ainda hoje” (p. 10).
(7) “Durante o dia os ciganos martelavam o cobre,
assentados em torno da fogueira, construindo tachos”
(p.3).
(9) “Moldar e polir o cobre era herança que o pai cigano
passava para o fi lho” (p. 9).
Do enunciado (4), podemos inferir que as ciganas predizem
futuros cheios de amor e fortuna. Do enunciado (5), podemos inferir
que as ciganas pintavam de luz a cidade. Do enunciado (6), podemos
inferir que a música dos ciganos promove sonhos. Do enunciado (7),
podemos inferir que os ciganos criaram a festa, a cor e a magia do
circo. Do enunciado (8), podemos inferir que os ciganos trabalham
durante o dia. Finalmente, do enunciado (9), podemos inferir que,
entre os ciganos, os pais ensinam os fi lhos a moldar e a polir o cobre.
Portanto, a formação discursiva a favor dos ciganos determina
o que pode e deve ser dito que:
As ciganas predizem futuros cheios de
amor e fortuna.
As ciganas pintam de luz a cidade.
A música dos ciganos promove sonhos.
Os ciganos criaram a festa, a cor e a
magia do circo.
Os ciganos trabalham durante o dia.
Os pais ciganos ensinam os fi lhos a
moldar e a polir o cobre.
Segundo Orlandi, “o interdiscurso é
o conjunto do dizível, histórica e lingüisticamente defi nido” (1993,
89). Interdiscurso é o conjunto de todos os discursos, numa dada
formação social e num dado momento. Na formação social brasileira,
há séculos, circula um discurso em que o cigano é visto como ladrão,
imoral e facínora. Nos enunciados vistos contra os ciganos, reverbera
essa memória do discurso da sociedade ocidental
Nesse sentido, o interdiscurso é a memória do discurso, aquilo
que fala antes, em outro lugar, independentemente, o já-dito, o
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preestabelecido. Essa visão manifesta uma relação interdiscursiva
com o discurso da sociedade ocidental, que perpetua essa imagem.
Como nos diz Fazito (2006), o cigano é tido e visto como selvagem
– um mau selvagem, desde os primeiros contatos no Ocidente,
identifi cado como sarraceno imoral, ignorante e herege, facínora e
covarde. Na melhor das hipóteses, o estereótipo cigano negociado
com o imaginário gadjo, em geral, sustenta a fi gura de um indivíduo
indolente, bárbaro e perigoso:
Os ciganos são ladrões
Os ciganos roubam crianças
Os ciganos inspiram temor por serem ladrões
Outra representação constante nesse discurso ocidental é a que
mostra o cigano como o indivíduo exótico e misterioso. Essa imagem
também contribuiu para a visão estereotipada do cigano, aliando esse
exotismo às práticas de bruxarias e ao paganismo (FAZITO, 2006).
(3) “À tarde, quando chegava, e tudo fi cava preguiçoso, os
vizinhos se reuniam em portas e varandas. Trocavam
olhares, desfi avam conversas e suspeitas sobre a ventura
dos visitantes. Suspeitavam roubos...” (p. 7).
Podemos concluir, então, que há uma relação interdiscursiva
entre o discurso ocidental sobre o cigano e o discurso contra o cigano
na obra de Queirós.
São essas representações que fazem parte, até hoje, do
imaginário popular sobre os ciganos e que a narrativa fi ccional aqui
analisada, de certa forma reforça, mas ao mesmo tempo, através
do discurso a favor do cigano, busca provocar uma refl exão sobre a
diferença e a alteridade, fazendo pensar sobre o outro, pertencente
a uma diferente etnia. Nessa formação discursiva, os ciganos são
mostrados como um povo alegre, festeiro, colorido e também
trabalhador, exercendo um fascínio sobre a população local por serem
diferentes:
As ciganas predizem futuros cheios de amor e fortuna.
As ciganas pintam de luz a cidade.
A música dos ciganos promove sonhos.
Os ciganos criaram a festa, a cor e a magia do circo.
Os ciganos trabalham durante o dia.
Os pais ciganos ensinam os fi lhos a moldar e a polir o cobre.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
166 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discurso
Através de uma narrativa curta e simples, Bartolomeu Campos
Queirós nos leva a refl etir acerca da representação do outro, das
imagens pré-construídas sobre o povo cigano.
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Do romance Senhora, de José de Alencar, retire enunciados do discurso sobre o papel da mulher na sociedade.
2) Da letra do hino nacional, retire enunciados do discurso sobre as belezas naturais Brasil
3) Do romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, retire enunciados do discurso sobre os coronéis do cacau.
4) Ouça um sermão religioso e anote alguns enunciados do discurso sobre o pecado.
5) Da letra da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, retire enunciados do discurso sobre o sofrimento do nordestino com a seca.
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RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
Numa obra literária, você pode recortar enunciados pertencentes a
uma mesma formação ideológica.
Esses enunciados recortados podem ser agrupados em duas ou
mais formações discursivas, através da identifi cação de relações
parafrásticas e polissêmicas.
A partir dos enunciados recortados e agrupados, você pode inferir
os princípios que regem cada formação discursiva.
Em cada análise é preciso um dispositivo teórico, a teoria da análise
de discurso, e um dispositivo analítico, conhecimentos sobre o tema
do discurso em análise.
Na análise acima, o dispositivo analítico usado foi a visão ocidental
sobre os ciganos.
Na primeira etapa da análise, partimos do texto para entrar no
processo discursivo mais amplo.
Na segunda etapa da análise, partimos dos enunciados recortados
para estabelecermos os princípios da formação discursiva em
questão.
Finalmente, na terceira etapa foi feita uma relação entre a formação
discursiva e a ideologia ocidental sobre os ciganos.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1995.
FAZITO, Dimitri. A identidade cigana e o efeito de nomeação: deslocamento das representações numa teia de discursos mitológico-científi cos e práticas sociais. In: Revista de Antropologia, vol.49, n.2. São Paulo, jul./dez. 2006.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
_________. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes, 2003.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Ciganos. 14. ed. São Paulo: Global, 2004.
Suas anotações
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aula
Ao fi nal desta aula, você deverá:
• ter uma noção da prática em Análise de Discurso; • aplicar conceitos teórico-metodológicos básicos
na análise de discursos; • aplicar os procedimentos de cada etapa na
Análise de Discurso;
4Objetiv
osEXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO
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1 INTRODUÇÃO Já vimos, na aula anterior, um trabalho de análise de discurso
com base em um texto literário. Vamos ver agora mais um artigo,
aplicando os conceitos e método da AD em numa análise concreta.
Vamos tomar aqui, como exemplo de análise, o artigo inédito “O
discurso de gênero no Evangelho de Maria Madalena”, de MESQUITA
FILHO, Odilon Pinto de.
AULA 4EXERCÍCIOS EM ANÁLISE DE DISCURSO
...
172 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discursoLinguística III - Teoria da análise de discurso
172 EAD
2 O DISCURSO DE GÊNERO NO EVANGELHO DE MARIA MADALENA
Em 1945, em Nag Hamadi, no alto Egito, foram encontrados,
em língua copta, os evangelhos de Tomé e de Maria Madalena.
De Maria Madalena, infelizmente, o texto está fragmentado.
A presença de tantos textos fragmentados pode ser atribuída, além
de outros fatores, aos decretos e recomendações papais solicitando o
não uso desses textos pelos cristãos. É conhecido o decreto Gelasiano
(referente ao Papa Gelásio - falecido em 496), contendo uma lista
de 60 livros apócrifos do Segundo Testamento, os quais os cristãos
deveriam evitar. E muitos livros apócrifos foram para a fogueira. Daí
a importância de se encontrar um livro como o de Maria Madalena,
guardado e conservado por tantos anos.
Como se sabe, as sociedades antigas eram dominadas pelo patriarcalismo, o que levava à inferioridade e dominação das mulheres. Apesar disso, estas são importantíssimas no início do cristianismo. Entre elas, destacam-se Maria Madalena, Maria, mãe de Jesus, Tecla e Verônica. Nos evangelhos apócrifos sobre Maria, mãe de Jesus, nós encontramos uma mulher diferente da que aparece nos evangelhos canônicos. Se em Atos dos Apóstolos ela é aquela mulher subserviente, que está junto aos apóstolos, mas que não tem liderança, nos apócrifos ela é uma mulher que discute de igual para igual com os apóstolos e que tem liderança entre eles. Tecla, da mesma forma, era a companheira de Paulo na evangelização. Ela batizava. Mas logo no início do Cristianismo a voz de Tecla foi silenciada. Tertuliano, que lutou contra o movimento de mulheres cristãs, no ano 200, escreveu o seguinte: ‘... Que elas se calem e que questionem, em casa, os seus maridos’ (www.apocrifos.evangelhos).
Quem é essa mulher? A interpretação “errônea” de outros
textos dos evangelhos chegou a identifi cá-la com Maria irmã de Marta,
com a mulher que ungiu Jesus e, o que é pior, com a prostituta,
interpretação que fi cou mais no inconsciente coletivo. Quem não
“aprendeu” que Maria Madalena era prostituta? No entanto, Maria
Madalena, discípula de Jesus é uma “apóstola”, uma líder entre os
primeiros cristãos e a mulher que Jesus tanto amou.
LEITURA RECOMENDADA
Acesse o site www.apocrifos.evangelhos para
saber mais sobre esta descoberta.
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O objetivo desse trabalho é analisar aspectos do funcionamento
do discurso de gênero nos fragmentos do evangelho de Maria
Madalena, com base na teoria da Análise de Discurso, de linha
francesa. A hipótese é de que este evangelho explicite uma formação
ideológica sobre a questão de gênero, apresentando enunciados que
reafi rmam o patriarcalismo dominante na época e enunciados que
resistem a essa dominação da mulher.
Esse trabalho se justifi ca pela importância que as religiões
cristãs ainda hoje têm na cultura ocidental. Tais religiões são
dominadas pelo antigo discurso patriarcal, sujeitando a mulher a uma
posição subalterna. Dessa forma, essa pesquisa pode contribuir para
uma visão crítica de posições religiosas tradicionais sobre a mulher.
O método a ser seguido iniciará com a identifi cação de
enunciados opostos quanto à questão de gênero, a fi m de determinar
se esse tema constitui uma formação ideológica no evangelho de
Maria Madalena.
Em seguida, por meio da observação de paráfrases e
polissemias, serão caracterizadas as formações discursivas existentes.
Finalmente, serão destacados alguns aspectos do
funcionamento de cada discurso.
2.1 Análise dos dados
Do evangelho de Maria Madalena foram retirados os seguintes
enunciados sobre gênero:
Figura 01: O discurso de gênero no evangelho de Maria Madalena. Leonardo da Vinci (1452–1519)Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Leonardo_da_Vinci_(1452-1519)_-_The_Last_Supper_(1495-1498).jpg
174 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discursoLinguística III - Teoria da análise de discurso
174 EAD
Pedro lhe disse: ‘Já que nos explicaste tudo, dize-nos isso também: o que é o pecado do mundo?’. Mas eles estavam profundamente tristes. E falavam: ‘Como vamos pregar aos gentios o Evangelho do Reino do Filho do Homem? Se eles não o pouparam, vão poupar a nós?’. Maria Madalena se levantou, cumprimentou a todos e disse a seus irmãos: ‘Não vos lamentais nem sofrais, nem hesiteis, pois sua graça estará inteiramente convosco e vos protegerá. Antes, louvemos sua grandeza, pois Ele nos preparou e nos fez homens. Após Maria ter dito isso, eles entregaram seus corações a Deus e começaram a conversar sobre as palavras do Salvador’. Pedro disse a Maria: ‘Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conta-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e nós nem ouvimos’. Maria Madalena respondeu dizendo: ‘Esclarecerei a vós o que está oculto’. E ela começou a falar essas palavras: ‘Eu’, disse ela, ‘eu tive uma visão do Senhor e contei a Ele: ‘Mestre, apareceste-me hoje numa visão’. Ele respondeu e me disse: ‘Bem aventurada sejas, por não teres fraquejado ao me ver. Pois, onde está a mente há um tesouro’. Eu lhe disse: ‘Mestre, aquele que tem uma visão vê com a alma ou como espírito?’ Jesus respondeu e disse: ‘Não vê nem com a alma nem com o espírito, mas com a consciência, que está entre ambos - assim é que tem a visão’. Depois de ter dito isso, Maria Madalena se calou, pois até aqui o Salvador lhe tinha falado. Mas André respondeu e disse aos irmãos: ‘Dizei o que tendes para dizer sobre o que ela falou. Eu, de minha parte, não acredito que o Salvador tenha dito isso. Pois esses ensinamentos carregam idéias estranhas’. Pedro respondeu e falou sobre as mesmas coisas. Ele os inquiriu sobre o Salvador: ‘Será que ele realmente conversou em particular com uma mulher e não abertamente conosco? Devemos mudar de opinião e ouvirmos ela? Ele a preferiu a nós?’. Então Maria Madalena se lamentou e disse a Pedro: ‘Pedro, meu irmão, o que estás pensando? Achas que inventei tudo isso no mau coração ou que estou mentindo sobre o Salvador?’. Levi respondeu a Pedro: ‘Pedro, sempre fostes exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher como adversário’. Mas, se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós. É antes, o caso de nos envergonharmos e assumirmos o homem perfeito e nos separaremos, como Ele nos mandou, e pregarmos o Evangelho, não criando nenhuma regra ou lei, além das que o Salvador nos legou.
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Os enunciados (1), (2), (3), (4), (5), (6) e (11) pertencem ao
discurso em favor da igualdade de gênero, isto é, igualdade entre a
mulher Maria Madalena e os homens apóstolos.
Pedro lhe disse: “Já que nos explicaste tudo, dize-nos isso também: o que é o pecado do mundo?” - Esse enunciado apresenta uma atitude de respeito e de humildade de Pedro em relação à Madalena. Mas eles estavam profundamente tristes. E falavam: “Como vamos pregar aos gentios o Evangelho ao Reino do Filho do Homem? Se eles não o pouparam, vão poupar a nós?” Maria Madalena se levantou, cumprimentou a todos e disse a seus irmãos: “Não vos lamentais nem sofrais, nem hesiteis, pois sua graça estará inteiramente convosco e vos protegerá. Antes, louvemos sua grandeza, pois Ele nos preparou e nos fez homens. Após Maria ter dito isso, eles entregaram seus corações a Deus e começaram a conversar sobre as palavras do Salvador”. - Neste enunciado, além de uma atitude de respeito e de humildade, agora de todos os apóstolos, podemos ver também que Maria Madalena exerce um papel de liderança sobre eles. Pedro disse a Maria: “Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conta-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e nós nem ouvimos.” - Aqui, o apóstolo Pedro, além de demonstrar respeito e humildade com relação a Madalena, reconhece a condição de ela ser a discípula mais amada por Jesus e a que dele recebeu mais ensinamentos. Maria Madalena respondeu dizendo: “Esclarecerei a vós o que está oculto”. - Neste enunciado, a própria Madalena se coloca como mais sábia do que os outros apóstolos E ela começou a falar essas palavras: “Eu”, disse ela, “eu tive uma visão do Senhor e contei a Ele: ‘Mestre, apareceste-me hoje numa visão’. Ele respondeu e me disse: ‘Bem aventurada sejas, por não teres fraquejado ao me ver. Pois, onde está a mente há um tesouro’. Eu lhe disse: ‘Mestre, aquele que tem uma visão vê com a alma ou como espírito?’ Jesus respondeu e disse: ‘Não vê nem com a alma nem com o espírito, mas com a consciência, que está entre ambos - assim é que tem a visão’ - Neste enunciado, Madalena detalha a maior proximidade que tinha com Jesus, contando um episódio acontecido somente com os dois. Depois de ter dito isso, Maria Madalena se calou, pois até aqui o Salvador lhe tinha falado. - Neste enunciado, Madalena afi rma estar repetindo palavras que Jesus lhe dissera.
Por outro lado, os enunciados (7), (8), (9) e (10) pertencem
ao discurso patriarcal, contra a igualdade de gênero, isto é, contra a
176 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discursoLinguística III - Teoria da análise de discurso
176 EAD
igualdade entre a mulher Maria Madalena e os homens apóstolos:
Mas André respondeu e disse aos irmãos: “Dizei
o que tendes para dizer sobre o que ela falou. Eu, de
minha parte, não acredito que o Salvador tenha dito isso.
Pois esses ensinamentos carregam idéias estranhas”
- Neste enunciado, André duvida que as palavras de
Madalena tenham sido ensinadas por Jesus.
Pedro respondeu e falou sobre as mesmas
coisas. Ele os inquiriu sobre o Salvador: “Será que ele
realmente conversou em particular com uma mulher e
não abertamente conosco? Devemos mudar de opinião
e ouvirmos ela? Ele a preferiu a nós?” - Aqui é o apóstolo
Pedro que põe em dúvida a veracidade das palavras de
Madalena
Então Maria Madalena se lamentou e disse
a Pedro: “Pedro, meu irmão, o que estás pensando?
Achas que inventei tudo isso no mau coração ou que
estou mentindo sobre o Salvador?” - Agora é Madalena
que se põe em uma posição defensiva, mas resistindo
contra as insinuações de ser mentirosa.
Levi respondeu a Pedro: “Pedro, sempre fostes
exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher
como adversário. - Neste enunciado, é afi rmado que
competir com uma mulher é uma situação humilhante,
inferior, para um homem.
Mas, se o Salvador a fez merecedora, quem és
tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece
bem. Daí a ter amado mais do que a nós. É antes, o
caso de nos envergonharmos e assumirmos o homem
perfeito e nos separaremos, como Ele nos mandou, e
pregarmos o Evangelho, não criando nenhuma regra
ou lei, além das que o Salvador nos legou. - Agora
Levi afi rma que Madalena diz a verdade, não por mérito
dela, mas por ela ter sido escolhida por Jesus.
A análise mostra que Madalena é vista, sobretudo, pela sua
condição de mulher:
“Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher”. “Será que ele realmente conversou em particular com uma mulher e não abertamente conosco? Devemos mudar de
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opinião e ouvirmos ela? Ele a preferiu a nós?”. Levi respondeu a Pedro: “Pedro, sempre fostes exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher como adversário”.
Por isso, podemos considerar que as referências a Madalena
são, principalmente, referências ao gênero feminino. Nesse caso,
o evangelho de Maria Madalena apresenta o tema de gênero como
uma formação ideológica, isto é, constituído por “um conjunto
complexo de atitudes e representações que não são nem individuais,
nem universais, mas dizem respeito, mais ou menos diretamente,
às posições de classe em confl ito umas com as outras. Cada
formação ideológica pode compreender várias formações discursivas
interligadas” (BRANDÃO, 1995, p. 90).
A Formação Ideológica vista acima apresenta duas Formações
Discursivas: uma formação discursiva patriarcal, de dominação
sobre a mulher; e outra formação discursiva de resistência contra
tal dominação. A Formação Discursiva é “um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço,
que defi nem, em uma dada época e para uma determinada formação
social as condições do exercício da função enunciativa”, o que pode e
deve ser dito (CARDOSO, 1999, p. 23).
Para a AD, a historicidade tem uma realidade material na língua.
A formação da opinião pública e a construção da memória social, por
exemplo, são processos históricos que se realizam principalmente
através de funcionamentos discursivos de contradição, repetição e
indeterminação, entre outros: “Nestes processos, o que entra em
jogo é um duplo movimento de construção dos sentidos: das palavras
e da enunciação no movimento histórico e do movimento histórico
nas palavras e enunciação” (MARIANI, 1999, p. 109).
O discurso patriarcal, que considera a mulher Maria Madalena
inferior aos apóstolos homens, funciona mais por meio da desconfi ança
do que realmente por afi rmações diretas:
“Dizei o que tendes para dizer sobre o que ela falou. Eu, de minha parte, não acredito que o Salvador tenha dito isso.” “Será que ele realmente conversou em particular com uma mulher e não abertamente conosco? Devemos mudar de opinião e ouvirmos ela? Ele a preferiu a nós?” “Pedro, meu irmão, o que estás pensando? Achas que inventei tudo isso no mau coração ou que estou mentindo sobre o Salvador?”
MEMÓRIA SOCIAL: é um processo histórico que se realiza principalmente atra-vés de funcionamentos dis-cursivos.
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Exercícios em análise de discursoLinguística III - Teoria da análise de discurso
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E essa desconfi ança está voltada, sobretudo, à condição de
gênero feminino de Madalena: “Será que ele realmente conversou em
particular com uma mulher e não abertamente conosco?”.
Por sua vez, o discurso em favor da igualdade, entre os
homens apóstolos e a mulher Maria Madalena, funciona por meio
de enunciados positivos da própria Madalena, uma vez que ela é a
autora do texto evangélico em questão:
Maria Madalena se levantou, cumprimentou a todos e disse a seus irmãos: “Não vos lamentais nem sofrais, nem hesiteis, pois sua graça estará inteiramente convosco e vos protegerá. Antes, louvemos sua grandeza, pois Ele nos preparou e nos fez homens. Após Maria ter dito isso, eles entregaram seus corações a Deus e começaram a conversar sobre as palavras do Salvador.” Maria Madalena respondeu dizendo: “Esclarecerei a vós o que está oculto”. Depois de ter dito isso, Maria Madalena se calou, pois até aqui o Salvador lhe tinha falado.
O mesmo discurso em favor da igualdade entre homem e
mulher, no meio dos apóstolos, também aparece em falas masculinas:
Pedro lhe disse: “Já que nos explicaste tudo, dize-nos isso também: o que é o pecado do mundo?” Pedro disse a Maria: “Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conta-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e nós nem ouvimos.”
Estes últimos enunciados ora apresentam uma aceitação pura
e simples da igualdade de gênero, ora apresentam uma aceitação
dessa igualdade por ter sido imposta por Jesus:
“Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher.” Mas, se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós.
2.2 Considerações fi nais
O evangelho de Maria Madalena, quanto ao discurso sobre
gênero, apresenta uma formação ideológica, com duas formações
discursivas: a) um discurso a favor da igualdade entre homens e
mulheres, no meio dos apóstolos; e b) um discurso contra essa
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igualdade.
O discurso contra a igualdade entre homens e mulheres
funciona mais por meio da desconfi ança do que realmente por
afi rmações explícitas sobre a superioridade masculina; e o discurso
em favor da igualdade entre os gêneros, no meio dos apóstolos,
funciona por meio de enunciados explícitos da própria Madalena e de
outros apóstolos. Estes últimos ora apresentam uma aceitação pura
e simples da igualdade de gênero, ora apresentam uma aceitação
porque imposta por Jesus.
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Cite dois enunciados da cultura popular brasileira que pertencem ao discurso machista, isto é, de domínio do homem sobre a mulher.
2) Cite três profi ssões hoje, no Brasil, que não são desempenhadas por mulheres.
3) O enunciado: “Ela é mulher, mas é inteligente” - pertence ao discurso de igualdade entre os gêneros ou pertence ao discurso machista de superioridade do homem sobre a mulher? Por quê?
4) O enunciado: “Mulher é o sexo frágil” pertence ao discurso machista ou ao discurso feminista? Por quê?
5) O enunciado: ”Mulher no volante, perigo constante; com homem de lado, perigo dobrado” pertence ao discurso machista ou ao discurso feminista? Por quê?
6) A frase de pára-choque: “Eu dirijo o caminhão e minha mulher dirige o fogão” pertence ao discurso machista ou ao discurso feminista? Por quê?
7) O vendedor bate à porta de uma residência. A dona da casa vem atendê-lo: pois não! Ele pergunta: o chefe da casa está? E a mulher responde: o chefe da casa sou eu e meu marido!
A pergunta do vendedor pertence ao discurso machista ou ao discurso feminista? Por quê? A resposta da mulher é um enunciado que pertence ao discurso feminista ou ao discurso machista? Por quê?
180 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Exercícios em análise de discursoLinguística III - Teoria da análise de discurso
180 EAD
RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
O discurso de gênero dominante nas sociedades antigas era o discurso patriarcal de superioridade do homem sobre a mulher.
Em 1945, em Nag Hamadi, no alto Egito, foram encontrados, em língua copta, os evangelhos de Tomé e de Maria Madalena.
Tertuliano, que lutou contra o movimento de mulheres cristãs, no ano 200, escreveu o seguinte: “... Que elas se calem e que questionem, em casa, os seus maridos”.
No texto analisado, as referências a Madalena são, principalmente, referências ao gênero feminino.
O tema do gênero, no evangelho de Maria Madalena, constitui uma formação ideológica.
No evangelho de Maria Madalena, encontramos uma formação discursiva patriarcal, de dominação do homem sobre a mulher; e uma formação discursiva feminista, de igualdade de gênero.
No evangelho de Maria Madalena, o discurso contra a igualdade entre homens e mulheres funciona mais por meio da desconfi ança do que realmente por afi rmações explícitas sobre a superioridade masculina.
No evangelho de Maria Madalena, o discurso em favor da igualdade entre os gêneros, no meio dos apóstolos, funciona por meio de enunciados explícitos da própria Maria Madalena e de outros apóstolos.
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BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1995. CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. MARIANI, Bethania Sampaio Corrêa. Sobre um percurso de análise do discurso jornalístico – A Revolução de 30. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 102-121.
www.apocrifos.evangelhos. Acesso em 15 maio 2009.
Suas anotações
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1 2 3 4unidade
APLICAÇÃO DA ANÁLISE DE DISCURSONO ENSINO ESCOLAR DE
PORTUGUÊS, FUNDAMENTAL E MÉDIO
Ao fi nal desta aula, você deverá:
• analisar as implicações teóricas da Análise de Discurso no ensino escolar de leitura e interpretação de texto;
• discutir aspectos da aplicação da Análise de Discurso no ensino escolar de leitura e interpretação de texto.
1aula
Objetivos
ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA INTERPRETATIVA DE TEXTOS
187Letras VernáculasUESC 187UESC
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1 INTRODUÇÃO
Você começou e ste curso vendo as limitações da linguística
estrutural de Saussure para resolver a questão do sentido das palavras.
Depois você viu os conceitos básicos teóricos e metodológicos da
Análise de Discurso. Em seguida você viu a aplicação desses conceitos
em análises específi cas de discurso. Finalmente, nesta unidade, você
vai ver propostas de atividades para o ensino escolar de português,
com base em Análise de Discurso. Vamos iniciar com propostas para
o ensino de leitura e interpretação de texto.
AULA 1ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA
INTERPRETATIVA DE TEXTOS
LEITURA RECOMENDADA
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: formula-ção e circulação dos sen-tidos. Campinas: Pontes,
2001.
...
Linguística III - Teoria da análise de discurso
188 Módulo 2 I Volume 8 EAD188 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
188 EAD
2 ANÁLISE DE DISCURSO E O ENSINO ESCOLAR DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO
Na atividade de leitura, o professor pode desenvolver no aluno
a capacidade de identifi car diferentes vozes que falam em um mesmo
texto, uma vez que a polifonia é uma característica fundamental do
discurso (BRANDÃO, 1998, p. 55). Um texto traz diferentes vozes
anônimas e não só a voz do autor, como pode ser visto no texto
abaixo:
O vice-presidente José Alencar garantiu aos políticos mineiros que não disputará o governo estadual, apesar de os médicos terem constatado as grandes vitórias que ele obteve contra o câncer que se espalhou no seu abdômen (VEJA, 24/03/2010, p. 56).
No texto acima, por exemplo, temos três vozes: a primeira é
a do jornalista que narra os fatos em terceira pessoa; a segunda voz
é a do vice-presidente José Alencar, que fala aos políticos mineiros; e
a terceira é a voz dos médicos que constataram as grandes vitórias de
José Alencar contra o câncer. Desenvolver no aluno essa capacidade
de identifi car diferentes vozes leva-o a uma melhor compreensão do
texto.
2.1 O leitor é co-autor
Em Análise de Discurso, o leitor é co-autor do discurso.
Ao produzir enunciados em um texto, o sujeito não pode dizer
explicitamente tudo. Por isso, ele “pede ao leitor que preencha toda
uma série de lacunas” (ECO, 1994, p. 9). Além disso, ao produzir o
texto, o sujeito autor imagina um leitor ideal a quem se dirige. Esse
leitor não é empírico, isto é, não é um indivíduo físico, é um ser
virtual. Dessa forma, esse leitor imaginário participa efetivamente da
escrita do texto. Por exemplo:
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, entrou em campo para que grandes empresários saiam em defesa de Dilma Rousseff quando ela for atacada. O que Padilha tem pedido é que, a cada bordoada da oposição, um desses bravos empresários patriotas apareça para dizer que o Brasil vai muito bem, obrigado (VEJA, 21/04/2010, p. 56).
VOZES: a polifonia é uma característica fundamental do discurso.
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No texto acima, não é dito o que são “Relações
Institucionais”, quem é Dilma nem “bordoada da oposição”. O
jornalista espera que o leitor seja competente para preencher
essas lacunas deixadas. Além disso, tal leitor ideal participa
efetivamente na elaboração do texto, porque determina o que deve
ser explicitado e o que deve ser deixado em lacunas, fazendo com
que o texto seja mais ou menos curto (elíptico). Portanto, o leitor
ideal desse texto jornalístico é uma pessoa culta que acompanha
o noticiário político.
Observe, no entanto, que o leitor ideal não é uma pessoa
física, um indivíduo, mas é uma criação do discurso. Esse leitor é
apenas um lugar, um dispositivo, uma posição de leitura à qual o
texto associa diversas características. Dessa forma, o texto acima
pode ser lido por diferentes pessoas físicas que não correspondem
ao leitor ideal criado por esse discurso.
Um texto que começa com ‘Era uma vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável (ECO, 1994, p. 15).
Para o professor, isso é importante na hora de escolher
textos a serem trabalhados em sala. Cada texto cria seu leitor
ideal e este deve estar próximo do perfi l dos seus alunos
(MAINGUENEAU, 1996, p. 88). Por exemplo, as lacunas deixadas
pelo texto podem ser preenchidas pelos estudantes de uma
determinada turma?
Em sala de aula, o professor pode desenvolver atividades
com os alunos para identifi car quem é o leitor imaginário ideal
a quem um determinado texto se dirige. Na propaganda a
seguir, podemos analisar, pelo texto e pela imagem, algumas
características do seu leitor ideal.
A propaganda a seguir é de uma marca luxuosa de relógio
e foi retirada da revista Veja (21/04/2010). Se observarmos a
imagem da mulher no texto, com seu corpo bem cuidado e sua
roupa elegante, podemos identifi cá-la como sendo de uma classe
de alta renda. Observemos também o pequeno texto: TEMPO DE
SOFISTICAR TEMPO DE DESEJAR TEMPO DE BRILHAR. O verbo
“sofi sticar”, associado à imagem dos modelos de relógio, se refere
a um tipo caro de consumo. Finalmente, o verbo “brilhar” se
refere ao destaque, ao status superior, conferido ao consumidor
LEITOR IDEAL: o sujeito--autor pede ao leitor ideal que preencha uma série de lacunas deixadas no texto.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
190 Módulo 2 I Volume 8 EAD190 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
190 EAD
desse produto. Como essa propaganda foi veiculada no fi nal de abril,
a três semanas do Dia das Mães, a propaganda tem como leitor ideal
os fi lhos e pais de renda alta, para que presenteiem suas mães e
esposas com um relógio. Observe que a mulher que aparece no texto
já tem idade sufi ciente para ser uma mãe.
Figura 02: Publicodade da Technos. Fonte: Veja, 21 abr. 2010.
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O leitor é levado a um modo de leitura, afetado pela sua
inserção no social e na história. Ele tem sua identidade confi gurada
enquanto tal “pelo lugar social em que se defi ne ‘sua” leitura’ (ORLANDI,
1999a, p. 76). Por isso, na propaganda acima, o modo de leitura de
um leitor de baixa renda não é o mesmo modo de leitura de um leitor
de renda alta. Enquanto este pode identifi car a imagem da mulher
que aparece no texto como podendo ser sua mãe ou esposa, aquele
a identifi ca como uma estranha. Além disso, a expressão TEMPO DE
SOFISTICAR, associada ao consumo caro do relógio, aparece como
algo viável ao leitor de renda alta, mas aparece como algo inviável
ao leitor de baixa renda.
Vemos, portanto, que o modo de leitura de um texto é
afetado pela posição sócio-histórica do leitor. Assim, selecionar
um texto para leitura numa escola pública, onde se concentram as
classes populares, é diferente de selecionar um texto para leitura
numa escola particular, onde se concentram as classes de renda
alta. O texto acima foi retirado da revista Veja. O fato de poder
ser identifi cado como propaganda de uma marca de relógio, institui,
como leitor ideal, um consumidor em potencial desse produto.
Cada texto fi xa um “lugar” de leitura historicamente
determinado (ORLANDI, 1997). No caso da propaganda acima,
esse lugar histórico de leitura só pode ser datado após a invenção
da imprensa, o surgimento da sociedade capitalista e a publicidade
na mídia impressa. Dessa forma, não são as condições empíricas
imediatas que contam, ou seja, permanece o gesto da leitura sem que
seja necessário o fato circunstanciado, empírico, concreto do sujeito
que lê para se representar como consumidor. Existe, na sociedade
brasileira de mercado atual, um lugar de leitura do consumidor. Não
é o leitor empírico, mas o leitor histórico que produz esse sentido.
É uma leitura em que não interessa a pessoa do leitor, mas o seu
lugar de produção de sentido. Este lugar se mantém mesmo que
o leitor não esteja lendo empiricamente a propaganda. A “leitura”
permanece desgrudada do ato concreto, como parte dos processos
de identifi cação do consumidor. Vemos, portanto, que o discurso da
propaganda não pode ser lido fora de sua história mais longa.
O discurso capitalista de consumo é um lugar forte de
interpretação do texto acima. É nele que podemos compreender o
que signifi ca o discurso da propaganda, associando o consumo de um
produto aos sentidos de “sofi sticar”, “desejar” e “brilhar”.
Há um leitor virtual inscrito no texto:
MODO DE LEITURA: o mo--do de leitura de um texto é afetado pela posição sócio--histórica do leitor.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
192 Módulo 2 I Volume 8 EAD192 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
192 EAD
Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em
termos do que denominamos ‘formações imaginárias’ em
análise de discurso, trata-se aqui do leitor imaginário,
aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e
para quem ele se dirige. Tanto pode ser um seu ‘cúmplice’
quanto um seu ‘adversário’ (ORLANDI, 1999b, p. 9).
Na propaganda acima, há um leitor constituído em sua própria
elaboração. Trata-se do leitor imaginário, aquele que o autor imagina
e a quem o texto se dirige. Já vimos que esse leitor é um fi lho ou
marido com renda alta. Esse leitor é um ‘cúmplice’, na medida em
que o autor supõe que ele vá considerar simpática a imagem da
mulher mãe que domina a propaganda. Além disso, o autor também
supõe que esse leitor estará de acordo que a mãe, no seu dia, deve
“sofi sticar”, “desejar” e “brilhar”. A partir dessa cumplicidade é que o
autor sugere o produto relógio como um presente adequado à mulher
mãe.
Assim, quando o leitor real, aquele que lê o texto, “se apropria
do mesmo, já encontra um leitor aí constituído com o qual ele tem
de se relacionar necessariamente” (ORLANDI, 1999b, p. 9). Ou seja,
quando o leitor empírico lê a propaganda acima, ele já encontra aí um
leitor ideal constituído, com o qual ele tem de se relacionar, aceitando
a cumplicidade estabelecida ou se opondo a ela:
- ele se identifi ca como um sujeito consumidor numa sociedade
de mercado?
- ele se identifi ca com o sujeito que dá um presente no dia
das mães para ela “sofi sticar”, “desejar” e “brilhar”?
Podemos dizer que a relação básica que instaura o processo
de leitura é a do jogo existente entre o leitor virtual e o leitor real.
2.2 A incompletude
Quando se lê, considera-se não apenas o que está dito, mas
também o que está implícito: aquilo que não está dito e que também
está signifi cando. Podemos dizer que há relações de sentidos que se
estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia
dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas relações
de sentido atestam, pois, a intertextualidade, isto é, a relação de um
texto com outros (existentes, possíveis, ou imaginários).
Na propaganda anterior, está implícito o discurso de que, no
Dia das Mães, devemos manifestar nossos sentimentos comprando
LEITOR IMAGINÁRIO: é aquele que o autor imagina para seu texto e para quem ele se dirige.
PROCESSO DE LEITURA: é instaurado basicamente pelo jogo existente entre o leitor virtual e o leitor real.
193Letras VernáculasUESC 193UESC
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presentes. Esse discurso não está dito, mas está o tempo todo
signifi cando. Somente a partir desse discurso não dito é que se pode
atribuir sentido às expressões: “tempo de sofi sticar, tempo de desejar,
tempo de brilhar”. Sem dar à mãe um relógio da marca Technos,
como ela vai poder “sofi sticar”, “desejar” e “brilhar”? Portanto,
podemos estabelecer uma relação de intertextualidade entre o texto
da propaganda e o texto imaginário sobre comprar presentes no Dia
das Mães.
Assim, os sentidos que podem ser lidos em um texto não estão
necessariamente ali, nele. O(s) sentido(s) de um texto passa(m) pela
relação dele com outros textos. Os sentidos da propaganda vista
passam pela relação dela com o texto imaginário sobre a compra de
presentes.
Na produção discursiva, há a inscrição do outro. Se pensarmos
o campo da leitura, isso fi ca assim: a função-autor tem, como seu
correspondente, o efeito leitor (ORLANDI, 2001). Na propaganda em
questão, o sujeito-autor, por um mecanismo de antecipação, projeta-
se imaginariamente no lugar em que o leitor o espera. Esse leitor
imaginário tem renda média ou alta e expressa seus sentimentos,
no Dia das Mães, por meio de um presente que faça a homenageada
“sofi sticar”, “brilhar” e “desejar”. O sujeito-autor é então “guiado” por
esse imaginário e constitui, no texto da propaganda, um leitor virtual.
O NÃO DITO: os sentidos de um texto passam pela relação dele com outros textos.
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Identifi que o leitor ideal das seguintes placas encontradas em nosso cotidiano: NÃO PISE NA GRAMA, CÃO FEROZ, ENTRADA PROIBIDA, PROIBIDO FUMAR.
2) Identifi que as vozes existentes no seguinte texto: “Em verdade vos digo: nem todo aquele que diz ‘Senhor! Senhor!’ entrará no reino dos Céus.”
3) Identifi que, em cada um dos seguintes textos, a posição sócio-histórica do leitor que afeta seu modo de leitura:a) “Meu fi lho Pedro, assuma o reino do Brasil, antes que algum aventureiro lance
mão dele.”b) “Como é para o bem de todos e a felicidade geral da nação, diga ao povo que
eu fi co!”c) “A partir de hoje, o governo brasileiro será exercido a partir de sua nova capital,
Brasília, situada no planalto central de nosso país!” 4) Identifi que, no texto a seguir, qual é o outro texto a que está relacionado: “Apesar
dos sofrimentos e difi culdades pelos quais estou passando, eu sei que o Senhor é
meu pastor e nada me faltará.”
Linguística III - Teoria da análise de discurso
194 Módulo 2 I Volume 8 EAD194 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
194 EAD
RESUMINDO
Nesta aula você viu que:
Em um texto podemos ter várias vozes, porque a polifonia é uma característica fundamental do discurso.
O sujeito-autor pede ao leitor ideal que preencha uma série de lacunas deixadas no texto.
O modo de leitura de um texto é afetado pela posição sócio-histórica do leitor.
O leitor ideal é aquele que o autor imagina para seu texto e para quem ele se dirige.
O processo de leitura é instaurado basicamente pelo jogo existente entre o leitor virtual e o leitor real.
Os sentidos de um texto passam pela relação dele com outros textos.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Subjetividade, argumentação, polifonia. A propaganda da Petrobrás. São Paulo: UNESP, 1998.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da fi cção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário. Tradução de Maria Augusta Bastos de Mattos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Um Sentido Positivo para o Cidadão Brasileiro. In: _____; LAJOLO, Marisa; IANNI, Octavio. Sociedade e linguagem. Campinas: Unicamp, 1997.
_____. Análise de discurso. Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999a.
_____. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999b.
_____. Discurso e Texto: formulação e circulação os sentidos.
Campinas: Pontes, 2001.
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Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, você deverá:
• compreender a leitura no seu sentido mais amplo reconhecendo os seus diferentes modos;
• reconhecer que as condições de produção da leitura são constituídas pela relação de posições históricas socialmente determinadas;
• reconhecer a intertextualidade nos diversos textos.
2Objetiv
osANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA
INTERPRETATIVA DE TEXTOS
aula
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199Letras VernáculasUESC 199UESC
AULA 2ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA
INTERPRETATIVA DE TEXTOS
1 INTRODUÇÃO
Nesta unid ade, você está vendo propostas de atividades para
o ensino escolar de português, com base em Análise de Discurso.
Vamos continuar apresentando algumas possibilidades de uso dessa
teoria no ensino escolar de leitura e interpretação de texto.
LEITURAS PRÉVIAS
ORLANDI, Eni Puccinelli. En-trar na Sociedade Geral dos Cidadãos. Caminhos da His-tória, Trajetos do Político. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de (Org.). Os discursos do desco-brimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 119-130.
...
200 Módulo 2 I Volume 8 EAD200 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textosLinguística III - Teoria da análise de discurso
200 EAD
2 LEITURA
Já vimos que o leitor ideal não é um indivíduo ou um conjunto
de indivíduos exteriores ao texto: ele é uma fi gura construída pelo
texto a serviço de seus fi ns, é apenas um lugar num dispositivo, uma
posição de leitura à qual o texto associa diversas características.
Tampouco esse leitor ideal pode ser confundido com o que chamamos
de público. Público são as pessoas que leem efetivamente um
determinado texto (MAINGUENEAU, 1996).
Leitura, no sentido mais amplo, pode ser entendida como
atribuição de sentidos (ORLANDI, 1999, p. 7). Também pode
signifi car “concepção”, como quando se fala em “leitura de mundo”.
Nesse caso, estamos destacando uma relação geral com a ideologia.
Num sentido mais acadêmico, “leitura” pode ser ainda um dispositivo
teórico-metodológico de aproximação de um texto: uma leitura
estruturalista de Freud, as possíveis leituras de um texto de Platão
etc. Finalmente, em termos de escolaridade, a leitura pode ser
vinculada à alfabetização, à aprendizagem formal de ler e escrever.
Na perspectiva discursiva, “leitura” pode ser enfocada
enquanto interpretação e compreensão. Nesse caso, podemos
pensá-la como produção, possível de ser trabalhada. Assim, tanto a
leitura quanto a escrita fazem parte do processo de instauração do(s)
sentido(s), uma vez que o sujeito-leitor tem suas especifi cidades e
sua história. Portanto, sentidos e sujeito são determinados histórica
e ideologicamente. Isso faz com que sejam múltiplos e variados
os modos de leitura. Em consequência, nossa vida intelectual está
intimamente relacionada aos modos e efeitos de leitura de cada
época e segmento social.
2.1 Legibilidade
A legibilidade é uma questão de graus e não de tudo ou
nada. Ela é uma espécie de “julgamento”, na relação entre o leitor
e o autor, mediados pelo texto. O leitor não interage com o texto,
numa relação sujeito/objeto, mas interage com outros sujeitos, como
o leitor virtual e/ou o sujeito-autor. A relação é social e histórica,
entre homens, mediada pelo texto. Se nos fi xamos na “objetalidade”
do texto, absolutizamos a mediação e perdemos sua historicidade e
signifi cância.
Texto e leitura são produções históricas. A leitura é o momento
da produção da unidade textual, da sua realidade signifi cante,
LEITURA: no sentido mais amplo, pode ser entendida como atribuição de senti-dos.
LEGIBILIDADE: é uma es-pécie de “julgamento”, na relação entre o leitor e o autor.
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201Letras VernáculasUESC 201UESC
quando “os interlocutores se identifi cam como interlocutores e, ao
fazê-lo, desencadeiam o processo de signifi cação do texto (ORLANDI,
1999, p. 10). Sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente
num mesmo processo, que assume formas diferentes, a depender da
maior ou menor distância que se estabelecer entre o leitor virtual e
o leitor real. Em sala de aula, o professor pode, junto com os alunos,
traçar o perfi l do leitor ideal de um texto, isto é, aquele leitor capaz
de preencher as lacunas deixadas pelo sujeito autor. Em seguida,
podem discutir possíveis leitores reais, incapazes de preencher essas
lacunas.
A relação entre os interlocutores e os modos de leitura faz
parte do contexto, da situação de leitura. Os modos de leitura são
variáveis e organizam formas diferentes de relação dos leitores com
o texto:
a) Relação do texto com o autor: o que o autor quis dizer?
b) Relação do texto com outros textos: em que esse texto
difere de tal texto?
c) Relação do texto com seu referente: o que o texto diz de X?
d) Relação do texto com o leitor: o que você entendeu?
e) Relação do texto com o para quem se lê: (se for o professor),
o que é mais signifi cativo nesse texto para o professor Z? O que
signifi ca X para o professor Z?
Os diferentes modos de leitura vão depender do contexto
em que eles se dão e de seus objetivos, isto é, de suas condições
de produção. Essa contextualização da leitura inclui a instauração do
autor e do leitor, em sua relação como sujeitos, uma vez que sujeitos
e sentidos são elementos de um mesmo processo, o da signifi cação.
Dessa forma, não podemos pensar:
a) num autor onipotente, cujas intenções controlem todo
percurso da signifi cação do texto;
b) na transparência do texto, que diz por si toda (e apenas
uma) signifi cação;
c) num leitor onisciente, cuja capacidade de compreensão
dominasse as múltiplas determinações de sentido que jogam em
um processo de leitura.
Em sala de aula, o professor pode estabelecer diferentes
modos de leitura para um mesmo texto, organizando formas
diferentes de relação dos leitores com o texto. Cada relação diferente
dos leitores com o texto é organizada por diferentes modos de leitura.
202 Módulo 2 I Volume 8 EAD202 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textosLinguística III - Teoria da análise de discurso
202 EAD
Por exemplo:
a) O autor quis dar uma ordem; o autor quis dizer que não
está satisfeito com a situação X; o autor quis dizer que deseja
uma situação X etc.
b) Esse texto difere do texto X (Bíblia, Constituição Brasileira,
letra de uma determinada música) nos aspectos A, B etc. (ideias,
valores, estilo etc.)
c) Esse texto diz do seu referente X que ele é (a), (b) e (c).
d) Na relação do texto com o leitor, (o que você entendeu?),
podemos estabelecer diferentes compreensões.
e) Na relação do texto com o para quem se lê: o que signifi ca
o referente X, nesse texto, para um comunista, para um católico
carismático, para um nazista, para um médico, para um professor,
ou para um psicólogo?
Esses componentes das condições de produção da leitura
entram na tensa relação entre paráfrase e polissemia, em suas
posições relativas. Portanto, as condições de produção da leitura
são constituídas pela relação de posições históricas e socialmente
determinadas, em que se juntam o simbólico (linguístico) e o
imaginário (ideológico). Assim, as condições de produção da leitura
de um texto, na Idade Média, são muito diferentes das condições
de produção da leitura desse mesmo texto nos dias atuais, uma
vez que há mudanças no simbólico, isto é, mudanças linguísticas; e
mudanças no imaginário, isto é, no ideológico, na visão de mundo.
Na produção da leitura, é preciso levar em conta a
“incompletude”, da qual derivam as noções de “implícito” e de
“intertextualidade”. Quando lemos, consideramos o que está dito e
o que está implícito, isto é, ”aquilo que não está dito e que está
também signifi cando” (ORLANDI, 1999, p. 11). O que não está dito
pode ser de várias naturezas:
a) de certa forma, ele sustenta o que está dito. Por exemplo,
no enunciado: “Durante a Segunda Guerra, verifi camos o choque
entre duas formas totalitárias de governo.”, não está dito que essas
formas foram o nazismo e o comunismo, mas é esse não dito que
sustenta o que está dito. No ensino escolar de interpretação de
texto, o professor pode fazer atividades com os alunos para que
estes identifi quem não ditos que sustentam o que está dito no texto;
b) o não dito pode ser o que está suposto para que se
entenda o que está dito. Por exemplo, no enunciado: “João deixou de
SUJEITOS E SENTIDOS: são elementos de um mesmo processo, o da signifi cação.
ATENÇÃO
Observe que não estamos falando aqui de sujeitos, enquanto pessoas físicas. Estamos falando de lu-gares sociais históricos, isto é, de determinadas posições, numa dada for-mação social e num dado momento histórico.
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203Letras VernáculasUESC 203UESC
beber”, se supõe que João bebia, para se entender o que está dito;
c) outras maneiras diferentes de se dizer o dito e que
signifi cam com nuances distintas. Por exemplo, no enunciado: “O
Brasil será o campeão na Copa do Mundo de 2014”, pode ser dito “O
Brasil será heptacampeão em 2014”, “O Brasil sempre terá o melhor
futebol do mundo.” etc. que signifi cam com nuances distintas.
Podemos dizer que há relações de sentidos que se
estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas
poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Tais
relações mostram a intertextualidade, isto é, a relação de um texto
com outros textos existentes, possíveis ou imaginários. Portanto,
o(s) sentido(s) de um texto passa(m) pela relação dele com outros
textos. Dessa forma, saber ler é saber o que o texto diz e o que ele
não diz, mas o constitui signifi cativamente.
Quando os colonizadores portugueses chegaram ao Brasil,
eles tiveram uma visão paradisíaca da nova terra, como se pode ver
nos enunciados ditos: “Em se plantando tudo dá” e “Os índios andam
nus mas são inocentes”. Nessa mesma visão, outros enunciados
poderiam ter sido ditos: “Encontramos o Paraíso bíblico perdido”,
“Encontramos o homem tal como era antes do pecado original”
etc. Portanto, os enunciados ditos têm relações de sentido com os
enunciados não ditos, mas que poderiam ter sido ditos.
Por outro lado, essa visão paradisíaca das novas terras
descobertas tem relações de sentido com o texto bíblico sobre o
mito do Paraíso. Nesse texto, Adão e Eva andam nus, mas são
inocentes; e a fertilidade da terra é tanta e tão diversifi cada que
o homem não precisava trabalhar para alimentar-se. Portanto, os
sentidos do discurso do colonizador sobre a nova terra descoberta
estão relacionados aos sentidos do discurso no texto bíblico sobre o
Paraíso.
Tais relações de sentido mostram que há uma intertextualidade,
isto é, uma relação de sentido entre os textos produzidos pelos
portugueses, sobre as terras brasileiras, com textos imaginários,
que poderiam ter sido ditos, e com o texto bíblico. Portanto, o(s)
sentido(s) dos textos dos colonizadores passa(m) pela relação dele
com outros textos. O professor, em sala de aula, pode trabalhar essas
relações de intertextualidade, nem sempre percebidas pelos alunos.
Entre os aspectos não imediatamente visíveis em um texto,
mas que são partes constitutivas do processo de signifi cação, estão
as relações de forças, isto é, as relações entre os lugares sociais dos
interlocutores: aquele do qual falam e leem. Assim, “o(s) sentido(s)
CONDIÇÕES DE PRODU-ÇÃO DA LEITURA: são constituídas pela relação de posições históricas e socialmente determinadas, em que se juntam o simbó-lico (linguístico) e o imagi-nário (ideológico).
INTERTEXTUALIDADE: é um conjunto de relações de sentido que se estabe-lecem entre o que um tex-to diz e o que ele não diz, mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que ou-tros textos dizem.
204 Módulo 2 I Volume 8 EAD204 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textosLinguística III - Teoria da análise de discurso
204 EAD
de um texto está(ão) determinado(s) pela posição que ocupam
aqueles que o produzem (os que o emitem e o lêem) (ORLANDI,
1999, p. 12). Por exemplo, um texto produzido pelo Papa de Roma,
na Idade Média, tinha processos de signifi cação diferentes, para os
católicos europeus e para os budistas chineses. Os primeiros tinham
um lugar social subordinado ao lugar do Papa, enquanto os segundos
simplesmente o ignoravam.
Cada discurso se inscreve em uma formação discursiva,
que se defi ne relativamente a outras formações discursivas. Todas
elas estão ligadas a formações ideológicas. E é isso que, em última
instância, vai produzir as diferentes leituras de um discurso. Por
exemplo, na sociedade brasileira atual, o discurso do MST sobre
a reforma agrária vai produzir diferentes leituras nos partidos
ideológicos de esquerda e nos partidos de direita. Dessa forma, a
signifi cação de qualquer texto tem a ver com a complexidade de
elementos muito distintos, incluindo os diversos tipos de discurso.
Não se lê da mesma forma um texto literário e um texto científi co,
um conto de fadas e um cálculo matemático.
Vemos, portanto, que a atribuição de sentidos a um texto
pode variar desde o que podemos chamar de uma leitura parafrástica,
isto é, uma leitura que se caracteriza pelo reconhecimento do sentido
que se supõe ser o do texto, dado pelo autor; até o que podemos
chamar de uma leitura polissêmica, que se defi ne pela atribuição
de múltiplos sentidos ao texto. Tanto o reconhecimento de um
sentido (leitura parafrástica) quanto a atribuição de sentidos (leitura
polissêmica) se inscrevem na ideia de produção da leitura.
Não lemos num texto aquilo que queremos, do jeito que
queremos e para qualquer um. Tanto a formulação de um texto
quanto sua leitura são reguladas. Ler é saber que o sentido sempre
pode ser outro. Por exemplo, no Brasil atual, a leitura de um texto do
MST é regulada conforme a posição ideológica do leitor: se este for
de direita, teremos uma leitura de violação do direito de propriedade;
se for de esquerda, teremos uma leitura de justiça social. Por isso, só
a referência à situação histórica permite dizer de uma leitura, se ela
compreendeu menos ou mais do que “devia”. Só uma determinação
histórica pode fazer com que apenas alguns sentidos sejam “lidos” e
outros não.
A relação dos homens com as instituições é marcada pelo
poder e pela ideologia. Por exemplo, na atualidade, a igreja católica
perdeu o poder político que tinha na Idade Média, mas ainda mantém
seu domínio ideológico sobre parte da população ocidental. Por isso,
os sentidos, nos discursos católicos oscilam entre uma permanência,
RELAÇÕES DE FORÇA: são as relações entre os lugares sociais dos interlocutores: aquele do qual falam e leem.
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205Letras VernáculasUESC 205UESC
que às vezes parece irremediável, como, por exemplo, no caso do
discurso sobre a ressurreição de Cristo; e uma fugacidade, que se
avizinha do impossível, como, por exemplo, no caso do discurso
sobre a mudança de uso do latim, para o uso das línguas vernáculas,
nos atos litúrgicos.
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Assinale a alternativa que apresenta uma defi nição de leitura, conforme vista no texto acima:a) Leitura é identifi car os sentidos produzidos pelo autor do texto.b) Leitura é atribuir sentidos a um texto.c) Leitura é identifi car os sentidos existentes no texto.d) Leitura é produção de sentidos pelo leitor.
2) A legibilidade de um texto é constituída na relação entre: a) Leitor e texto.b) Autor e texto.c) Leitor e autor.
3) Assinale a única alternativa verdadeira:a) Somente os sentidos fazem parte do processo de signifi cação. b) Os sujeitos realizam o processo de signifi cação.c) Somente os sujeitos fazem parte do processo de signifi cação. d) Sentidos e sujeitos fazem parte do processo de signifi cação.
4) No enunciado: “Israel suspendeu o bloqueio contra a Faixa de Gaza” o não dito suposto para que se entenda o que está dito é:a) Israel tinha o controle da Faixa de Gaza.b) Os palestinos, na Faixa de Gaza, tinham atacado os israelenses.c) Israel tinha estabelecido um bloqueio contra a Faixa de Gaza.d) Israel tinha estado em guerra contra os países árabes.
5) Os textos a seguir têm relações com outros textos existentes, possíveis ou imaginários. Identifi que estes últimos: a) “Você voltou a seu país, como um fi lho pródigo”.b) “Todos são iguais perante a morte”.c) “Antônio, você perdeu tudo. E agora, José?”.d) “A praça é do povo como o céu é do avião”.e) “Nenhuma mulher deseja mais ser a rainha do lar”.f) “Não quero viver num Brasil do futuro”.g) “A mulher ideal é do tipo da Amélia”.h) “O verde de nossas matas está virando cinza”.i) “O Brasil é um gigante dorminhoco”.j) “Quando me baterem, não pensem que vou dar a outra face”.k) “Sou formiga e sou cigarra: trabalho e canto”.l) “Quem madruga pega resfriado”.
206 Módulo 2 I Volume 8 EAD206 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textosLinguística III - Teoria da análise de discurso
206 EAD
6) Sabendo que cada relação diferente dos leitores com o texto é organizada por diferentes modos de leitura, estabeleça para o texto: “Deus fez primeiro o homem, a mulher nasceu depois. É por isso que a mulher trabalha sempre pelos dois” (Dorival Caymmi).
As seguintes relações dos leitores com esse texto: a) relação do texto com o autor: o que o autor quis dizer? b) Relação do texto com outros textos: em que esse texto difere do texto bíblico? c) Relação do texto com seu referente: o que o texto diz da mulher?d) Relação do texto com o leitor: o que você entendeu?
RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
Leitura, no sentido mais amplo, pode ser entendida como atribuição de sentidos.
Legibilidade é uma espécie de “julgamento”, na relação entre o leitor e o autor.
Sujeitos e sentidos são elementos de um mesmo processo, o da signifi cação.
As condições de produção da leitura são constituídas pela relação de posições históricas e socialmente determinadas, em que se juntam o simbólico (linguístico) e o imaginário (ideológico).
Intertextualidade é um conjunto de relações de sentido que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz, mas poderia dizer e entre o que ele diz e o que outros textos dizem.
Relações de força são as relações entre os lugares sociais dos interlocutores: aquele do qual falam e leem.
RE
FE
RÊ
NC
IAS MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto
literário. Tradução de Maria Augusta Bastos de Matos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, você deverá:
• analisar propostas de atividades para o ensino escolar de português com base na Análise de Discurso;
• reconhecer que a situação histórica é constitutiva do processo de leitura;
• buscar possibilidades de uso da Análise de Discurso no ensino escolar de leitura e interpretação de texto.
3Objetiv
osANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA
INTERPRETATIVA DE TEXTOS
aula
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211Letras VernáculasUESC 211UESC
1 INTRODUÇÃO
Nessa uni dade, você está vendo propostas de atividades para
o ensino escolar de português, com base em Análise de Discurso.
Vamos continuar apresentando outras possibilidades de uso dessa
teoria no ensino escolar de leitura e interpretação de texto.
LEITURA RECOMENDADA
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Tra-dução de Walter José Evange-lista; Maria Laura Viveiros de Castro. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
AULA 3ANÁLISE DE DISCURSO E LEITURA
INTERPRETATIVA DE TEXTOS
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Linguística III - Teoria da análise de discurso
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Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
212 EAD
2 O ENSINO DE LEITURA No ensino de leitura, é preciso analisar seus processos de produção e
o funcionamento da compreensão, ou seja, o que esta é e quais seus
mecanismos em termos de discurso (ORLANDI, 1999). Tanto quem
escreve quanto quem lê produzem sentidos, em certas condições
sócio-históricas. Assim, a determinação histórica é constitutiva dos
processos de produção da leitura. Quando lemos estamos produzindo
sentidos e, mais ainda, estamos participando do processo de produção
e institucionalização dos sentidos, a partir de um lugar social e com
uma direção histórica determinada. Por exemplo, durante a ditadura
militar brasileira, o enunciado: “Povo unido jamais será vencido”
foi produzido e “lido”, naquelas condições históricas, pelos grupos
sociais que combatiam o governo autoritário, com um sentido de
resistência democrática. No entanto, ele era “lido” pelas forças ofi ciais
de repressão como tendo sido produzido pelo movimento comunista
internacional, num sentido de combate ao governo para conseguir
dominar o Brasil. Vemos, portanto, que a situação histórica da época
é constitutiva dos processos de produção e de leitura deste enunciado.
Em sala de aula, o professor não pode ter uma concepção
passiva de leitura, como se o sentido de um texto fosse transparente,
cabendo ao sujeito-leitor apenas identifi cá-lo. O enunciado: “Temos
duas mulheres candidatas à presidência da república” parece ter um
sentido “evidente” para os brasileiros, em 2010, porque estamos
vivendo tal situação histórica. A “evidência” aparente ocorre porque
a situação histórica da época é constitutiva do processo de leitura e
produção textual. Quando o professor leva para a sala de aula textos,
publicados recentemente pela mídia, ele está facilitando a leitura dos
alunos porque a produção do texto e sua leitura são feitas numa
mesma situação histórica. Isso, entretanto, não pode levar professor
e alunos a acharem que o sentido do texto é transparente, é evidente.
O mesmo não ocorre, quando o professor leva textos literários
de séculos anteriores para trabalhar com os alunos. Certos fatos
narrados podem ter tido sentidos específi cos na situação histórica em
que foram produzidos, o que não ocorre mais nos dias de hoje, ao
ser feita a leitura pelos alunos. Por exemplo, no romance Inocência,
o pai acerta o casamento da fi lha com um vizinho fazendeiro, fato
considerado normal e legítimo na época. Nos dias de hoje, porém, esse
fato passou a ter um sentido de arbitrariedade e imposição. Nesses
casos, antes da leitura pelos alunos, o professor deve contextualizar
o romance na situação histórica em que foi produzido.
O discurso resulta de um consenso entre indivíduos socialmente
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213Letras VernáculasUESC 213UESC
organizados no curso de um processo de interação (ORLANDI,
1999). Dessa forma, o discurso pede a co-presença de indivíduos
(autor/leitor) no quadro das relações sociais (e não fora delas),
no confronto de forças políticas e ideológicas. Portanto, o cerne da
produção de sentidos está no modo de relação (leitura) entre o dito
e o compreendido. No exemplo dado anteriormente, a leitura, isto é,
a relação entre o dito e o compreendido, no enunciado “Povo unido
jamais será vencido”, variava conforme a posição sócio-político-
ideológica do leitor, no contexto histórico da ditadura militar. Ou seja,
esse contexto histórico é constitutivo dos processos de produção e de
leitura deste enunciado.
Nessa perspectiva, os professores de escolas públicas
trabalham muitas vezes com alunos oriundos das classes populares,
com cultura diferente daquela das classes médias. Cabe ao professor
selecionar textos que se aproximem da linguagem e da cultura dos
alunos.
Vivemos a história, mas esta, nem por isso, nos é transparente.
Nossa vida cotidiana e os noticiários que passam pela mídia aparecem
com um sentido evidente para nós. Tal evidência, no entanto, é forjada
pela ideologia, por meio de espessos processos de produção de
sentido, historicamente determinados. A “naturalidade” dos sentidos
é, pois, ideologicamente construída. A aparente transparência de
sentido em um texto não resiste à explicitação do processo de leitura
e dos mecanismos ideológicos que aí estão jogando. Por exemplo,
hoje nos parece “evidente” que, em geral, os muçulmanos são
terroristas. Ignoramos que existe uma estratégia de propaganda das
potências ocidentais, desenvolvida justamente para nos inculcar esse
tipo de crença que, por sua vez, vai infl uenciar o processo de leitura
que fazemos dos confl itos no Oriente Médio. Basta lembrar aqui a
mentira propalada pelo governo norte-americano de que o Iraque
possuía armas de destruição em massa, com o fi m de nos levar a um
processo de leitura que justifi casse a invasão militar daquele país.
No funcionamento da ideologia, há um modo pelo qual o leitor
se instala no processo de produção de sentidos, fazendo parte da
história desse processo. O discurso se inscreve na relação da língua
com a história, isto é, o seu funcionamento se dimensiona no tempo
e no espaço das práticas do homem. O enunciado “Povo unido jamais
será vencido” se inscreve na relação da língua portuguesa com a
história do Brasil. É no contexto histórico da ditadura militar brasileira,
que esse discurso funciona.
Nessa perspectiva, o discursivo materializa o contato entre o ideológico e o linguístico, representando, no interior da
A SITUAÇÃO HISTÓRI-CA: é constitutiva do pro-cesso de leitura e produ-ção textual.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
214 Módulo 2 I Volume 8 EAD214 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
214 EAD
língua, os efeitos das contradições ideológicas e, inversamente, manifestando a existência da materialidade linguística no interior da ideologia. Assim, o efeito da contradição ideológica entre o desejo popular por democracia, representado na língua por “povo unido”, e a violência repressiva dos militares, representada na língua por “jamais será vencido”, mostram a representação do ideológico no interior da língua. Ao mesmo tempo, a ideologia de resistência democrática contra a ditadura se materializa linguisticamente nesse discurso.
Os sentidos não nascem do nada, eles são construídos no
confronto de relações sociais, historicamente fundadas e permeadas
pelas relações de poder, com seus jogos imaginários. Essa produção dos
sentidos ocorre, principalmente, nas instituições (ORLANDI, 1999). O
sentido de resistência popular democrática do enunciado “Povo unido
jamais será vencido” foi construído no confronto das relações sócio-
históricas da época, permeadas pelas relações de um poder ditatorial.
Os jogos imaginários em questão incluem o imaginário dos militares
de ganharem pela força e o imaginário popular de que o povo unido,
mais cedo ou mais tarde, será o vencedor. As instituições em que
ocorreu essa produção de sentidos eram, de um lado, as forças
armadas; e, de outro, as organizações estudantis, os sindicatos, a
OAB, parte da igreja católica, além de outras.
Ao levar um texto, atual ou de outra época, para a sala de
aula, o professor deve contextualizá-lo em sua situação histórica,
dando ênfase às instituições em que foi produzido e lido esse tipo de
texto. Ele pode mostrar como esse mesmo texto possui diferentes
modos de leitura, em diferentes instituições. Por exemplo, o texto do
tipo “oração”, como o Pai Nosso, está ligado à instituição religiosa e
tem características formais próprias.
No discurso, não temos transmissão de informação, mas são
criados efeitos de sentido entre locutores. Por isso, podemos falar de
um “efeito leitor”. Dessa forma, os sentidos não pertencem ao autor
nem ao leitor, mas decorrem da troca de linguagem. Eles não nascem
nem se extinguem no momento em que se fala. No enunciado “Povo
unido jamais será vencido”, não é transmitida nenhuma informação
específi ca, mas são criados efeitos de sentidos: a) de resistência à
ditadura, se o leitor se opõe ao regime da época; b) de agitação
comunista, se o leitor é a favor desse regime.
Vemos, assim, que os sentidos não pertencem ao autor
nem ao leitor, mas decorrem das diferentes trocas de linguagem.
Além disso, eles não nasceram naquele momento, mas foram ecos
de outras situações históricas anteriores, até mesmo em diferentes
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215Letras VernáculasUESC 215UESC
países. Da mesma forma, tais sentidos não se extinguiram naquele
momento, mas podem ser postos novamente em circulação em
outras situações. Vemos, portanto, que os sentidos são partes de um
processo, realizam-se num contexto, mas não se limitam a ele. Têm
historicidade, têm um passado e se projetam num futuro.
Quando leva um texto aos alunos, em que há referência, por
exemplo, à instituição família, formada pelo pai, a mãe e fi lhos, o
professor deve comentar que, na sociedade atual, o núcleo familiar
pode ser formado ainda por: mãe e fi lho, pai e fi lho, casais sem fi lhos,
e, ainda, por indivíduos solteiros.
O sujeito autor e o sujeito leitor não estão presos apenas a
uma situação imediata de enunciação, mas, também, a uma situação
histórico-social. Autor e leitor são a origem, não do discurso, mas
de sua unidade e coerência. Assim, na situação histórica da ditadura
militar brasileira, o autor e o leitor, não são a origem de “O povo unido
jamais será vencido”, mas são origem de sua unidade e coerência.
O efeito de sentido de unidade textual decorre da relação do
autor com o texto e corresponde ao efeito-leitor de unidade da leitura
(coerência, não-contradição, progressão, consistência etc.). Se
considerarmos o enunciado: “Povo unido jamais será vencido” como
sendo um texto, o efeito de sentido de unidade textual decorre da
relação do autor com o texto, isto é, da coerência, não-contradição,
progressão, consistência etc. Nesse caso, o efeito de sentido de unidade
textual decorre da coerência, uma vez que o inverso: “Povo unido
sempre será vencido”, é incoerente, porque se pressupõe que a maior
força de uma nação é seu povo, não seus militares. Tal incoerência
não teria o efeito de sentido de unidade textual e exigiria o acréscimo
de novos enunciados. Da mesma forma, “povo unido” e “sempre será
vencido” encerram uma contradição, pelo motivo de que a união faz
a força e esta traz a vitória; tal contradição impediria que essas duas
expressões tivessem um efeito de sentido de unidade textual. Quanto
à progressão, o texto se constrói por retomadas de informações já
dadas, seguidas de novas informações. Como esse texto era repetido
em manifestações públicas contra a ditadura, podemos admitir que
a informação retomada era o pressuposto de que os manifestantes
eram, eles próprios, o “povo unido”; e a informação nova era a de
que “jamais será vencido”. A consistência se refere à relação do texto
com a situação histórica de comunicação. Como esta situação era a
de uma ditadura militar, o texto “Povo unido jamais será vencido” é
consistente com a luta popular contra esse regime. Portanto, o efeito
de sentido de unidade textual e o efeito-leitor decorrem do modo
como o autor produz o texto.
OS SENTIDOS não perten-cem ao autor nem ao leitor, mas decorrem da troca de linguagem.
AUTOR E LEITOR: não são a origem do discurso, mas são origem de sua uni-dade e coerência.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
216 Módulo 2 I Volume 8 EAD216 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
216 EAD
Nas atividades de leitura, o professor pode levar os alunos
a mostrarem no texto as marcas da coerência, da não-contradição,
da progressão e da consistência, discutindo como esses fatores
constituem, ao mesmo tempo, a unidade textual e o efeito-leitor.
Dessa forma, analisar o processo de leitura é analisar o modo
de constituição e confi guração desse efeito-leitor. Do ponto de vista da
produção textual, há três funções enunciativo-discursivas do sujeito:
a função de locutor, a função de enunciador e a função de autor:
O locutor é aquele que se representa como ‘eu’ no discurso; o enunciador corresponde às perspectivas com que esse ‘eu’ se apresenta; e o autor é o princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem das suas signifi cações. O autor é a função que o ‘eu’ assume enquanto produtor de linguagem, sendo a dimensão do sujeito mais determinada pela relação com a exterioridade, com o social (ORLANDI, 1999, p. 104).
No exemplo em questão, o locutor, isto é, aquele que se
representa como “eu”, é o opositor à ditadura, auto-identifi cado como
“povo unido”. O enunciador, isto é, as perspectivas com que esse “eu”
se apresenta, são as perspectivas de luta contra o regime militar.
E, fi nalmente, o autor é o princípio de agrupamento do discurso,
unidade e origem de suas signifi cações, a função que o “eu” assume
enquanto produtor de linguagem, sendo esta função do sujeito
a mais determinada pela relação com o social. O autor, enquanto
princípio de agrupamento do discurso, é o princípio de combate à
ditadura, que origina e dá unidade às signifi cações. O autor é também
a função que o “eu” assume enquanto produtor de linguagem, isto
é, enquanto produtor de coerência, não-contradição, progressão,
consistência etc. O autor é a dimensão do sujeito responsável pela
utilização da linguagem para se comunicar com o outro. Por isso, ele é
determinado pela relação com o social de luta contra o regime militar.
Este enunciado, gritado nas passeatas contra a ditadura, apresenta
ainda, como resultado da função autor, ritmo cadenciado e rima, o
que facilita sua memorização e repetição em coro.
O professor pode analisar com os alunos alguns aspectos
estilísticos do texto, que mostram a função autor, enquanto produtor
de linguagem, submetido a um princípio de agrupamento do discurso.
Qual o princípio de agrupamento desse texto, isto é, qual a sua ideia
central? Que aspectos estilísticos são usados e como eles se articulam
com essa ideia central?
Se, do ponto de vista da produção do texto, podemos
O EFEITO DE SENTIDO DE UNIDADE TEXTUAL E O EFEITO-LEITOR: de-correm do modo como o autor produz o texto.
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217Letras VernáculasUESC 217UESC
identifi car três funções do sujeito, então, do ponto de vista da
recepção, podemos identifi car três funções correspondentes: a
função de alocutário, que corresponde à função do locutor; a função
de destinatário, que corresponde à função do enunciador; e a função
de leitor, que corresponde à função enunciativo-discursiva do autor.
O alocutário é o ‘tu’ a quem o ‘eu’ do locutor se dirige; o destinatário é o ‘outro’ da perspectiva do enunciador, ou seja, uma perspectiva de leitor construída pelo enunciador, é o ‘leitor-ideal’ inscrito no texto, por antecipação. E o leitor é aquele que se assume como tal na prática da leitura, numa ordem social dada, em um lugar específi co (ORLANDI, 1999, p. 104).
A função do leitor é enunciativo-discursiva e constitui um
sujeito afetado pela sua inscrição no social. Assim, o efeito-leitor é
determinado historicamente pela relação do sujeito com a ordem
social. Conforme já visto acima, em “Povo unido jamais será vencido”,
o leitor que se inscreve socialmente a favor da ditadura militar, atribui
um sentido de agitação comunista a esse enunciado; enquanto que o
leitor que se inscreve socialmente em oposição a tal regime atribui ao
mesmo enunciado um sentido de resistência democrática.
Portanto, é do leitor inscrito no social que se cobra um modo
de leitura (coerência, unidade, etc.). Desta forma, na produção
de leitura, ele entra com as condições que o caracterizam sócio-
historicamente. Ele terá, assim, sua identidade de leitura confi gurada
pelo seu lugar social e é em relação a esse “seu” lugar que se defi ne a
“sua” leitura. O efeito-leitor é, pois, relativo à função autor do sujeito.
Das três funções – alocutário, destinatário, leitor -, esta última
(como, na emissão, a de autor) é a que está mais determinada pelo
social. Segundo Orlandi, (1999, p. 105), “O sujeito do discurso é
constituído pela interpelação ideológica e representa uma ‘forma-
sujeito’ historicamente determinada.” Para Althusser (1985, p. 85), “A
Ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos
com suas condições reais de existência”. Tal ideologia interpela os
indivíduos enquanto sujeitos, uma vez que só há ideologia pela
categoria de sujeito e de seu funcionamento em sujeitos concretos.
A categoria de sujeito é constitutiva de toda ideologia, seja qual for
a determinação (regional ou de classe), seja qual for o momento
histórico.
Em “Povo unido jamais será vencido”, o sujeito é constituído
pela interpelação ideológica e representa uma “forma-sujeito”,
historicamente determinada pela situação de ditadura militar da época.
FUNÇÕES ENUNCIATI-VO-DISCURSIVAS DO SUJEITO: do ponto de vis-ta da produção textual, há três funções enunciativo--discursivas do sujeito: a função de locutor, a função de enunciador e a função de autor.
UM CONSELHO
Em sala de aula, o pro-fessor pode trabalhar com temas polêmicos na socie-dade brasileira atual, como as cotas para negros nas universidades, o aborto, o casamento gay, o uso de símbolos religiosos em instituições públicas etc. A posição defendida pelo aluno nesses temas vai de-pender de sua inscrição no social. Por exemplo, os alu-nos ligados a instituições religiosas serão contrários ao aborto, à proibição de símbolos religiosos em ins-tituições públicas e ao ca-samento gay. O professor pode então mostrar que, ao ler o texto, o aluno terá sua identidade de leitura confi gurada pelo seu lugar social.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
218 Módulo 2 I Volume 8 EAD218 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
218 EAD
A interpelação ideológica que constitui esse indivíduo em sujeito é a
de combater o regime ditatorial, pois tal era a relação imaginária
desse sujeito com suas condições reais sócio-políticas. Vemos, pois,
que a categoria de sujeito é constitutiva de toda ideologia e que toda
ideologia tem por função “constituir” indivíduos concretos em sujeitos.
É nesse jogo de dupla constituição que se localiza o funcionamento da
ideologia, nas formas materiais de existência. Portanto, todo sujeito é
ideológico, ou seja, o homem é, por natureza, um animal ideológico.
Vemos, portanto, que a função da ideologia é transformar o
indivíduo num sujeito que pensa, sente e age de uma determinada
forma. Assim, “o indivíduo” se refere apenas ao corpo biológico e “o
sujeito” se refere ao modo como esse indivíduo pensa, sente e age.
Em sala de aula, a partir da identidade de leitura de um texto, o
professor pode discutir com os alunos as interpelações ideológicas que
os transformaram de indivíduos em sujeitos diferentes, em relação
àquele determinado tema. Por exemplo, no tema do casamento gay,
os indivíduos foram transformados em sujeitos, a favor ou contra a
união legal entre homossexuais. Essa transformação foi feita pela
ideologia ou interpelação ideológica.
Por isso, Orlandi (1999, p. 106) afi rma que: “o sujeito-leitor do
século XIII, o do século XVII e o de hoje são diferentes”, uma vez que
têm ideologias diferentes. Dessa forma, a função social do sujeito-
leitor se refere à relação que tem com seu meio sócio-histórico. No
exemplo dado, o sujeito-leitor brasileiro de “Povo unido jamais será
vencido”, na época da ditadura militar, é diferente do sujeito-leitor
atual.
Existem duas instâncias de constituição do discurso: a de
contexto de situação imediata, ou circunstância de enunciação, e a de
contexto sócio-histórico. É dentro desta última que se pode considerar
a primeira, isto é, a situação imediata é o eu-aqui-agora da situação
histórica. As passeatas contra a ditadura militar brasileira, quando
se enunciava “Povo unido jamais será vencido”, eram as situações
imediatas de constituição do discurso de resistência democrática,
que só podem ser entendidas dentro do contexto histórico daquele
período. Assim, nos dias atuais, podemos ter um contexto imediato
de passeata contra o governo, repetindo o mesmo enunciado. No
entanto, por estarem situados em outro contexto histórico, os sentidos
serão diferentes.
Toda formação discursiva tem um “domínio de saber”, isto é,
um espaço do interdiscurso do qual ela se apropria e repete, sob a
forma de pré-construídos. É esse “domínio de saber” que faz com que
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um discurso seja “legível” para o sujeito-leitor. Em “Povo unido jamais
será vencido”, o discurso se apropria de um domínio de saber, oriundo
do interdiscurso: a) “povo unido” se refere, principalmente, às classes
populares; b) “jamais será vencido” deixa implícito elipticamente que
o povo jamais será vencido pela ditadura militar, pela tirania, pela
arbitrariedade, pelo opressor, pela violência etc. A legibilidade do texto
vai depender de o sujeito-leitor ter conhecimento desse “domínio de
saber” de cada formação discursiva. Tal domínio de saber é repetível,
por se originar do interdiscurso. Além disso, não está associado a
um sujeito específi co, pré-existindo à situação de enunciação e ao
sujeito desta. Um sujeito-leitor que desconheça a situação histórica
de produção desse discurso e, consequentemente, desconheça seu
domínio de saber vai considerar o texto com um grau muito baixo de
legibilidade: que povo? Jamais será vencido por quem ou pelo quê?
Em sala de aula, o professor pode identifi car, nas lacunas do
texto, nos implícitos, nas elipses e nos pré-construídos, o domínio
de saber da formação discursiva em questão. Em seguida, pode ser
mostrado que é esse domínio de saber que torna o texto mais ou
menos legível. Também pode ser usado um texto técnico ou científi co,
cujo domínio de saber seja desconhecido pelos alunos, para mostrar
como o texto se torna pouco legível. Por exemplo, um texto técnico
sobre o funcionamento de um computador certamente será pouco
legível ou compreensível, para quem não conhece o “domínio de
saber” da informática.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
220 Módulo 2 I Volume 8 EAD220 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e leitura interpretativa de textos
220 EAD
AATIVIDADESTIVIDADES
1) Assinale alguns aspectos da situação histórica atual que interferem na atribuição de sentido, feita por um leitor e torcedor brasileiro, para o enunciado: “O Brasil é pentacampeão mundial de futebol”.
2) Se você escreve um texto num papel e, em seguida, queima esse papel, qual é o dito e qual é o compreendido?
3) Sabendo que, na Antiguidade, a pessoa que não pagava uma dívida podia ser escravizada pelo credor, explique por que a Igreja católica substituiu, em ano recente, na oração do Pai Nosso, a expressão: “perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos a nossos devedores” por outra expressão: “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.
4) Ao pregar a seus fi éis, um vigário diz: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Identifi que o locutor, o enunciador e o autor deste discurso.
5) Na questão anterior, do ponto de vista da recepção dos ouvintes ao discurso do vigário, identifi que: o alocutário, o destinatário e o leitor (ouvinte), justifi cando cada resposta.
6) Quando um sujeito enuncia: “Sou católico, apostólico, romano”, o que ele pensa, o que ele sente e o que ele faz em relação ao seu mundo histórico-social?
7) Ao comentar a participação da seleção brasileira na última copa, um comentarista esportivo fez o seguinte enunciado, num programa de televisão: “O Brasil poderia ter tido um desempenho melhor na copa da África do Sul”. Identifi que a situação imediata e a situação histórica deste enunciado.
8) Comente o grau de legibilidade do seguinte texto para alunos do Ensino Fundamental, levando em conta a noção de “domínio de saber”:
Defi nir a natureza do eu leva muito longe. Pois bem, é deste muito longe que vamos partir para voltar ao centro – o que nos trará de volta ao muito longe. Nosso assunto deste ano é o Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Mas não é só nessa teoria e nessa técnica que o eu tem sentido, isso que faz justamente com que o problema seja complicado. A noção do eu foi elaborada no decurso de séculos, tanto pelos chamados fi lósofos, e com os quais não tememos comprometer-nos aqui, quanto pela consciência comum. Em suma, há uma certa concepção pré-analítica do eu – vamos chamá-la assim por convenção, a fi m de orientarmo-nos – que exerce sua atração sobre aquilo que a teoria de Freud introduziu de radicalmente novo no que se refere a esta função (LACAN, 1985, p. 9).
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RESUMINDO
Nesta aula você viu que:
A situação histórica é constitutiva do processo de leitura e produção textual.
A leitura é a relação entre o dito e o compreendido. O funcionamento do discurso se dimensiona no tempo e no espaço das
práticas do homem. Os sentidos não pertencem ao autor nem ao leitor, mas decorrem da
troca de linguagem. Autor e leitor não são a origem do discurso, mas são origem de sua
unidade e coerência. O efeito de sentido de unidade textual e o efeito-leitor decorrem do
modo como o autor produz o texto. As funções enunciativo-discursivas do sujeito são, do ponto de vista da
produção textual: a função de locutor, a função de enunciador e a função de autor.
A categoria de sujeito é constitutiva de toda ideologia; e toda ideologia tem por função “constituir” indivíduos concretos em sujeitos.
As instâncias de constituição do discurso são: a instância de contexto de situação imediata, ou circunstância de enunciação, e a instância de contexto sócio-histórico.
A legibilidade de um discurso depende de o sujeito leitor ter conhecimento do “domínio de saber” da formação discursiva em questão.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
LACAN, Jacques. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 2. ed. Tradução de Marie Christine Lasnik Penot. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Unicamp, 1999.
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Suas anotações
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Ao fi nal desta aula, você deverá:
• analisar propostas de atividades para o ensino escolar de português com base na Análise de Discurso;
• buscar possibilidades de uso da Análise de Discurso no ensino escolar de produção textual;
• reconhecer que a situação histórica é constitutiva do processo de produção textual.
4Objetiv
osANÁLISE DE DISCURSO E
PRODUÇÃO TEXTUAL
aula
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1 INTRODUÇÃO
Nesta uni dade, você está vendo propostas de atividades para
o ensino escolar de português, com base em Análise de Discurso.
Vamos, nesta aula, apresentar possibilidades de uso dessa teoria no
ensino escolar de produção textual.
LEITURAS PRÉVIAS
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 2. ed. S. Paulo: Martins Fontes, 1993.
AULA 1ANÁLISE DE DISCURSO E
PRODUÇÃO TEXTUAL
...
Linguística III - Teoria da análise de discurso
226 Módulo 2 I Volume 8 EAD226 Módulo 2 I Volume 8 EAD
Análise de discurso e Produção textual
226 Módulo 2 I Volume 8 EAD
2 PRODUÇÃO TEXTUAL No ensino de produção textual, é preciso analisar como funciona
esse processo (ORLANDI, 1999). Quem escreve produz sentidos, em
certas condições sócio-históricas. Assim, a determinação histórica é
constitutiva do processos de produção de sentidos, a partir de um
lugar social e com uma direção histórica determinada. Por exemplo,
durante a ditadura militar brasileira, a letra da canção - Para não
dizer que eu não falei de fl ores, de Geraldo Vandré - foi produzida,
naquelas condições históricas, a partir de um lugar social de combate
ao governo autoritário, com um sentido de resistência democrática:
Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores
Geraldo Vandré
Composição: Geraldo Vandré
Caminhando e cantandoE seguindo a cançãoSomos todos iguaisBraços dados ou nãoNas escolas, nas ruasCampos, construçõesCaminhando e cantandoE seguindo a canção...Vem, vamos emboraQue esperar não é saberQuem sabe faz a horaNão espera acontecer...(2x)Pelos campos há fomeEm grandes plantaçõesPelas ruas marchandoIndecisos cordõesAinda fazem da fl orSeu mais forte refrãoE acreditam nas fl oresVencendo o canhão...Vem, vamos emboraQue esperar não é saberQuem sabe faz a horaNão espera acontecer...(2x)Há soldados armadosAmados ou nãoQuase todos perdidosDe armas na mãoNos quartéis lhes ensinamUma antiga lição:
De morrer pela pátriaE viver sem razão...Vem, vamos emboraQue esperar não é saberQuem sabe faz a horaNão espera acontecer...(2x)Nas escolas, nas ruasCampos, construçõesSomos todos soldadosArmados ou nãoCaminhando e cantandoE seguindo a cançãoSomos todos iguaisBraços dados ou não...Os amores na menteAs fl ores no chãoA certeza na frenteA história na mãoCaminhando e cantandoE seguindo a cançãoAprendendo e ensinandoUma nova lição...Vem, vamos emboraQue esperar não é saberQuem sabe faz a horaNão espera acontecer...(4x)
Fonte: http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46168/
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Vemos que a situação histórica da época é constitutiva dos
processos de produção de sentidos nesse texto. Em sala de aula, o
professor não pode ter uma concepção ingênua de produção textual,
como se esta resultasse apenas de uma inspiração imediata do aluno.
Ao propor uma produção textual, é preciso contextualizar o tema na
situação histórica atual. Por exemplo, se o tema for o consumo de
drogas pelos jovens, é preciso trazer para a sala dados estatísticos e
comentários de diversos especialistas sobre a questão.
A produção textual resulta de um consenso entre indivíduos
socialmente organizados no curso de um processo de interação
(ORLANDI, 1999). Dessa forma, o texto pede a co-presença de
indivíduos (autor/leitor) no quadro das relações sociais (e não fora
delas), no confronto de forças políticas e ideológicas. Portanto, o
cerne da produção de sentidos vai estar no modo de relação (leitura)
entre o dito e o compreendido. Esta relação, no poema anterior de
Vandré, varia conforme a posição sócio-político-ideológica do leitor, no
contexto histórico da ditadura militar. Sua canção foi lida como uma
espécie de hino ofi cial dos movimentos populares contra o regime
militar, mas o poeta foi lido como “subversivo”, preso e torturado
pelos órgãos de repressão.
Nessa perspectiva, os professores, numa atividade de produção
textual, devem discutir com os alunos para qual leitor ideal querem
dirigir seus textos. Em outras palavras, qual a posição sócio-político-
ideológica do leitor ideal sobre o tema a ser abordado. Por exemplo,
se o tema for a reforma agrária brasileira, o texto será dirigido a um
leitor ideal militante do MST ou a um leitor ideal associado da UDR?
Se o tema for o aborto, o texto será dirigido a um leitor ideal religioso
ou a um leitor ideal leigo?
No funcionamento da ideologia, há um modo histórico de se
produzir sentidos. O discurso se inscreve na relação da língua com
a história, isto é, o seu funcionamento se dimensiona no tempo e
no espaço das práticas do homem. Na canção de Geraldo Vandré, o
enunciado “Somos todos soldados, armados ou não” se inscreve na
relação da língua portuguesa com a história do Brasil. É no contexto
da ditadura militar que se dá a produção e o funcionamento desse
discurso.
Nessa perspectiva, o discursivo materializa o contato entre o
ideológico e o linguístico, representando, no interior da língua, os
efeitos das contradições ideológicas e, inversamente, manifestando
a existência da materialidade linguística no interior da ideologia.
Assim, o efeito da contradição ideológica entre o desejo popular por
democracia, representado na canção de Vandré por “Somos todos
A SITUAÇÃO HISTÓRICA é constitutiva do processo de produção textual.
LEITOR IDEAL: antes de produzir o texto, o aluno deve determinar a posição sócio-político-ideológica do leitor ideal, em relação ao tema.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
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Análise de discurso e Produção textual
228 Módulo 2 I Volume 8 EAD
iguais, braços dados ou não”, e a violência repressiva dos militares,
representada na língua por:
“Pelos campos há fomeEm grandes plantaçõesPelas ruas marchando
Indecisos cordõesAinda fazem da fl or
Seu mais forte refrãoE acreditam nas fl oresVencendo o canhão...”
mostra a representação do ideológico no interior da língua. Ao mesmo
tempo, a ideologia de resistência democrática contra a ditadura se
materializa linguisticamente nesse discurso.
Os sentidos não nascem do nada, eles são construídos no
confronto de relações sociais, historicamente fundadas e permeadas
pelas relações de poder, com seus jogos imaginários. Essa produção
dos sentidos ocorre, principalmente, nas instituições (ORLANDI,
1999). O sentido de resistência popular democrática na canção de
Vandré:
“Vem, vamos emboraQue esperar não é saber.Quem sabe faz a hora,Não espera acontecer”
foi construído no confronto das relações sócio-históricas da época,
permeadas pelas relações de um poder ditatorial. Os jogos imaginários
em questão incluem o imaginário popular de que o povo que sabe faz
a hora, muda a sociedade e não espera acontecer.
Ao desenvolver uma atividade de produção textual, o professor
deve contextualizar o tema no confronto das relações sócio-históricas
atuais. Por exemplo, a questão do casamento gay deve ser vista no
confronto entre movimentos afi rmativos dos homossexuais, como a
parada gay, e a resistência de grupos religiosos e conservadores. Os
jogos imaginários incluem o direito de ser diferente, por parte dos
gays, e costumes condenados pela Bíblia, por parte dos religiosos
e conservadores. Os alunos devem discutir esses confrontos e seus
respectivos imaginários, antes de produzirem seus textos.
Ao produzir um texto, o aluno deve saber que não está
transmitindo informações, mas está criando efeitos de sentido entre
locutores. Por isso, é importante que ele tenha defi nido antes o
seu leitor ideal. Esse leitor ideal é um “efeito leitor” que vai sendo
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criado ao longo da produção de texto. Dessa forma, os sentidos
não pertencem ao autor nem ao leitor, mas decorrem da troca de
linguagem entre ambos. Eles não nascem nem se extinguem no
momento em que se fala. No enunciado “Caminhando e cantando e
seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não”, não é
transmitida nenhuma informação específi ca, mas é criado um efeito
de sentido de resistência à ditadura. Vemos, assim, que os sentidos
não pertencem ao autor nem ao leitor, mas decorrem da diferentes
trocas de linguagem entre ambos.
O sujeito autor não está preso somente a uma situação imediata
de enunciação, mas, também, a uma situação histórico-social. O
autor é a origem, não do discurso, mas de sua unidade e coerência.
Assim, na situação histórica da ditadura militar brasileira, a letra da
canção anterior tem unidade e coerência: “Vem, vamos embora”,
“Quem sabe faz a hora”, “Somos todos iguais”, “Pelos campos há
fome”, “Pelas ruas marchando indecisos cordões”, “E acreditam nas
fl ores vencendo o canhão”, “Há soldados armados, amados ou não”,
“Quase todos perdidos de armas na mão”, “Somos todos soldados,
armados ou não”, “a certeza na frente”.
O efeito de sentido de unidade textual decorre da relação
do autor com o texto e corresponde ao efeito-leitor de unidade da
leitura (coerência, não-contradição, progressão, consistência etc.).
Se considerarmos a canção anterior, o efeito de sentido de unidade
textual decorre da relação do autor com o texto, isto é, da coerência,
não-contradição, progressão, consistência etc. Nesse caso, o efeito
de sentido de unidade textual decorre, entre outros fatores, da
coerência, conforme já mostrada. Da mesma forma, o texto não
apresenta nenhuma contradição entre resistência popular, de um
lado, e ditadura militar, de outro, o que garante sua unidade. Quanto
à progressão, o texto se constrói por retomadas de informações
já dadas, seguidas de novas informações. Assim, “caminhando e
cantando” é retomado logo depois com “vem, vamos embora”, seguido
de uma nova ideia: “quem sabe faz a hora”. O enunciado “há soldados
armados” é retomado logo adiante com “nos quartéis lhes ensinam
antigas lições”, seguido de uma nova ideia: “de morrer pela pátria e
viver sem razão”. A consistência se refere à relação do texto com
a situação histórica de comunicação. Como esta situação era a de
uma ditadura militar, o texto inteiro é consistente com a luta popular
contra esse regime. Portanto, o efeito de sentido de unidade textual e
o efeito-leitor decorrem do modo como o autor produz o texto.
Nas atividades de produção textual, o professor deve levar os
alunos a manterem a coerência e não contradição em seus textos,
OS SENTIDOS não perten-cem ao autor nem ao leitor, mas decorrem da troca de linguagem entre ambos.
AUTOR: não é a origem do discurso, mas é origem de sua unidade e coerência.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
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Análise de discurso e Produção textual
230 Módulo 2 I Volume 8 EAD
juntamente com a retomada de ideias já enunciadas, seguidas de
ideias novas. O professor deve mostrar como esses fatores constituem,
ao mesmo tempo, a unidade textual e o efeito-leitor.
Do ponto de vista da produção textual, há três funções
enunciativo-discursivas do sujeito: a função de locutor, a função de
enunciador e a função de autor:
O locutor é aquele que se representa como ‘eu’ no discurso; o enunciador corresponde às perspectivas com que esse ‘eu’ se apresenta; e o autor é o princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem das suas signifi cações. O autor é a função que o ‘eu’ assume enquanto produtor de linguagem, sendo a dimensão do sujeito mais determinada pela relação com a exterioridade, com o social (ORLANDI, 1999, p. 104).
Na canção de Vandré, o locutor, isto é, aquele que se representa
como “eu”, é o opositor à ditadura, auto-identifi cado como primeira
pessoa no plural: “(nós) somos todos iguais”. O enunciador, isto é, as
perspectivas com que esse “nós” se apresenta, são as perspectivas
de luta contra o regime militar: “quem sabe faz a hora”, “somos todos
soldados, armados ou não”. E, fi nalmente, o autor é o princípio de
agrupamento do discurso, unidade e origem de suas signifi cações, a
função que o “eu” assume enquanto produtor de linguagem, sendo
esta função do sujeito a mais determinada pela relação com o social.
O autor, enquanto princípio de agrupamento do discurso, é o princípio
de combate à ditadura, que origina e dá unidade às signifi cações. O
autor é também a função que o “nós” assume enquanto produtor de
linguagem, isto é, enquanto produtor de coerência, não-contradição,
progressão, consistência etc. O autor é a dimensão do sujeito
responsável pela utilização da linguagem para se comunicar com o
outro. Por isso, ele é o mais determinado pela relação com o social de
luta contra o regime militar. Este enunciado, cantado nas passeatas
contra a ditadura, apresenta ainda, como resultado da função autor,
ritmo cadenciado e rima, o que facilita sua memorização e repetição
em coro.
O professor pode analisar com os alunos alguns aspectos
estilísticos do texto, que mostram a função autor, enquanto produtor
de linguagem, submetido a um princípio de agrupamento do discurso.
Qual o princípio de agrupamento desse texto, isto é, qual a sua ideia
central? Que aspectos estilísticos são usados e como eles se articulam
com essa ideia central?
O efeito leitor decorre da função autor, numa dada ordem
O EFEITO DE SENTIDO DE UNIDADE TEXTUAL E O EFEITO-LEITOR: decor-rem do modo como o autor produz o texto.
FUNÇÕES ENUNCIATIVO--DISCURSIVAS DO SU-JEITO: do ponto de vista da produção textual, há três funções enunciativo-discur-sivas do sujeito: a função de locutor, a função de enuncia-dor e a função de autor.
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social e numa determinada situação histórica. Conforme já visto, em
“Caminhando e cantando e seguindo a canção”, o autor se inscreve
socialmente contra a ditadura militar, criando um sentido de resistência
democrática.
Portanto, é do autor inscrito no social que se cobra um modo
de produção de sentidos (coerência, não contradição, progressão,
unidade, consistência etc.). Desta forma, na produção de sentido,
ele entra com as condições que o caracterizam sócio-historicamente.
Ele terá, assim, sua identidade de autor confi gurada pelo seu lugar
social. O efeito-leitor é, pois, relativo à função autor do sujeito.
A função autor do sujeito é a que está mais determinada pelo
social. Segundo Orlandi, (1999, p. 105), “O sujeito do discurso é
constituído pela interpelação ideológica e representa uma ‘forma-
sujeito’ historicamente determinada.” Para Althusser (1985, p.
85), “A Ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência”. Portanto, em sala
de aula, a função autor assumida pelo aluno em relação ao tema
da produção textual resulta de sua interpelação ideológica, num
dado momento e em uma dada formação social. Por exemplo, temos
uma quantidade muito pequena de muçulmanos, no Brasil, porque a
interpelação ideológica religiosa majoritária é a cristã. Convém que o
professor mostre ao aluno que a posição assumida por este, enquanto
enunciador de seu texto, resulta de uma interpelação ideológica e não
de uma escolha intelectual absoluta e livre.
Em “Caminhando e cantando e seguindo a canção”, a função
autor do sujeito é constituída pela interpelação ideológica e representa
uma “forma-sujeito”, historicamente determinada pela situação de
ditadura militar da época. A interpelação ideológica que constitui
esse indivíduo em sujeito é a de combater o regime ditatorial, pois
tal era a relação imaginária desse sujeito com suas condições reais
sócio-políticas. Vemos, pois, que a categoria de sujeito é constitutiva
de toda ideologia e que toda ideologia tem por função “constituir”
indivíduos concretos em sujeitos. Portanto, todo sujeito é ideológico,
ou seja, o homem é, por natureza, um animal ideológico.
Vemos, portanto, que a função da ideologia é transformar o
indivíduo num sujeito que pensa, sente e age de uma determinada
forma. Assim, “o indivíduo” se refere apenas ao corpo biológico e
“o sujeito” se refere ao modo como esse indivíduo pensa, sente e
age. Em sala de aula, a partir da atividade de produção textual, o
professor pode discutir com os alunos as interpelações ideológicas que
os transformaram de indivíduos em sujeitos diferentes, em relação a
um determinado tema. Essa transformação foi feita pela ideologia
SUJEITO E IDEOLOGIA: a categoria de sujeito é cons-titutiva de toda ideologia; e toda ideologia tem por fun-ção “constituir” indivíduos concretos em sujeitos.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
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Análise de discurso e Produção textual
232 Módulo 2 I Volume 8 EAD
ou interpelação ideológica. Em sala, o professor pode discutir com
os alunos as interpelações ideológicas que as instituições fazem aos
indivíduos, transformando-os em sujeitos que pensam, sentem e
agem. Por exemplo, os sujeitos contrários ao aborto foram assim
interpelados ideologicamente pelas instituições religiosas.
Por isso, um autor do século XIII, ou do século XVII é diferente
do autor de hoje, uma vez que têm ideologias diferentes. Dessa
forma, a função autor está vinculada ao seu meio sócio-histórico. No
exemplo dado, o autor contra o governo de “Vem, vamos embora,
que esperar não é saber”, na época da ditadura militar, é diferente
do autor atual que também seja contra o governo. O professor pode
mostrar aos alunos que a função de enunciador, que vão assumir em
seus textos, está vinculada ao seu meio sócio-histórico.
Existem duas instâncias de constituição do discurso: a de
contexto de situação imediata, ou circunstância de enunciação, e a de
contexto sócio-histórico. É dentro desta última que se pode considerar
a primeira, isto é, a situação imediata é o eu-aqui-agora da situação
histórica. As passeatas contra a ditadura militar brasileira, quando
se cantava “Vem, vamos embora, que esperar não é saber”, eram
as situações imediatas de constituição desse discurso de resistência
democrática. Mas tais situações imediatas só podem ser entendidas
dentro do contexto histórico daquele período.
Em sala de aula, o professor pode mostrar que o contexto
de situação imediata da atividade de produção textual é a situação
pedagógica de ensino de português. Mas este contexto só pode ser
entendido dentro de uma situação histórica atual do tema a ser
abordado.
Toda formação discursiva tem um “domínio de saber”, isto
é, um espaço do interdiscurso que repete, sob a forma de pré-
construídos, depois de apropriar-se dele. É esse “domínio de saber”
que faz com que um discurso seja “legível” para o sujeito-leitor. Em “A
certeza na frente e a história na mão”, o discurso se apropria de um
domínio de saber, oriundo do interdiscurso: a) “a certeza na frente”
se refere, principalmente, à previsibilidade da luta de classes ao
longo da história; b) “a história na mão” se refere às lutas de classes
já ocorridas no passado. A legibilidade desse texto vai depender de
o sujeito-leitor ter conhecimento deste “domínio de saber” marxista.
Tal domínio de saber é repetível, por se originar do interdiscurso.
Além disso, não está associado a um sujeito específi co, preexistindo
à situação de enunciação e ao sujeito desta. Um sujeito-leitor que
desconheça tal domínio de saber vai considerar o texto de Vandré
com um grau muito baixo de legibilidade: que certeza? Por que a
INSTÂNCIAS DE PRODU-ÇÃO DO DISCURSO: in-cluem a instância de contex-to de situação imediata, ou circunstância de enunciação, e a instância de contexto sócio-histórico.
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233Letras VernáculasUESC 233Letras VernáculasUESC
história na mão?
Em sala de aula, o professor pode identifi car, nas lacunas do
texto, nos implícitos, nas elipses e, sobretudo, nos pré-construídos,
o domínio de saber da formação discursiva usada pelo aluno em sua
produção textual. Em seguida, pode ser mostrado que é esse domínio
de saber que torna o texto mais ou menos legível, criando o efeito
leitor.
LEGIBILIDADE DE UM DISCURSO: o sujeito autor deve usar um “domínio de saber” que seja conhecido pelo sujeito leitor.
AATIVIDADESTIVIDADES
Assinale alguns aspectos da situação histórica atual que interferem na criação de sentido, feita pelo autor, do enunciado: “O Brasil lutou para ser hexacampeão mundial de futebol”.
1) Na Roma antiga, o espetáculo de gladiadores atraía multidões ao Coliseu. Antes das lutas, os gladiadores saudavam o imperador com o seguinte enunciado: “Salve, César! Os que vão morrer te saúdam!” Nos dias atuais, foram abolidos os espetáculos com sacrifícios de vidas. De acordo com a situação histórica atual, construa um enunciado com que os jogadores de futebol poderiam saudar as autoridades políticas, antes das partidas.
2) Comente a incoerência do seguinte texto, supostamente publicado pelo Ministro da Educação, em Brasília: “Sou contra a alfabetização de adultos porque: a) quem já sabe ler não precisa ser alfabetizado; b) quem não sabe ler só vai atrapalhar os outros na escola”.
3) O deputado Paulo Maluf declarou: “Minha fi cha é a mais limpa na política brasileira!” Identifi que o locutor, o enunciador e o autor deste discurso.
4) Ao comentar as seleções participantes na copa da África, o técnico Dunga afi rmou: “Todas as seleções que estão na África do Sul mostraram que podem disputar e vencer
o título mundial. Por isso, respeitamos todos os nossos adversários!” Identifi que a situação imediata e a situação histórica deste enunciado.
5) Produza dois textos sobre a copa mundial de futebol, ambos com alto grau de legibilidade. O primeiro texto deve ter como leitor ideal crianças de sete anos de idade; o segundo texto deve ter como leitor ideal jogadores profi ssionais de futebol no Brasil. Leve em conta a noção de “domínio de saber”.
Linguística III - Teoria da análise de discurso
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Análise de discurso e Produção textual
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RESUMINDO
Nesta aula, você viu que:
A situação histórica é constitutiva do processo de produção textual. A produção de texto se dimensiona no tempo e no espaço das práticas do
homem. Os sentidos não pertencem ao autor nem ao leitor, mas decorrem da troca
de linguagem. O autor não é a origem do discurso, mas é origem de sua unidade e
coerência. O efeito de sentido de unidade textual e o efeito-leitor decorrem do modo
como o autor produz o texto. Do ponto de vista da produção textual, as funções enunciativo-discursivas
do sujeito são: a função de locutor, a função de enunciador e a função de autor.
Toda ideologia tem por função “constituir” indivíduos concretos em sujeitos. As instâncias de constituição do discurso são: a instância de contexto
de situação imediata, ou circunstância de enunciação; e a instância de contexto sócio-histórico.
A legibilidade de um discurso depende de o autor saber usar seu “domínio de saber” de forma adequada ao seu leitor ideal.
R E F E R Ê N C I A S
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 4. ed. São Paulo: Cortez; Unicamp, 1999.
VANDRÉ, Geraldo. Disponível em: http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46168/. Acesso em 28 jun.2010.
Suas anotações
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