JOÃO PEDRO RIBEIRO PEREIRA
“UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ
OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-
MATO-GROSSENSE (1967-1989)
DOURADOS – 2017
JOÃO PEDRO RIBEIRO PEREIRA
“UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ
OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-
MATO-GROSSENSE (1967-1989)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Mestre em História.
Área de concentração: História, Região e Identidades.
Orientador: Prof. Dr. Jérri Roberto Marin.
DOURADOS – 2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
P436" Pereira, Joao Pedro Ribeiro"Um povo sem identidade cultural definida": José Octávio Guizzo e a
construção da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) / Joao Pedro RibeiroPereira -- Dourados: UFGD, 2017.
123f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Jérri Roberto Marin
Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Humanas,Universidade Federal da Grande Dourados.
Inclui bibliografia
1. Identidade. 2. José Octávio Guizzo. 3. Mato Grosso do Sul. I. Título.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
©Direitos reservados. Permitido a reprodução parcial desde que citada a fonte.
JOAO PEDRO RIBEIRO PEREIRA
“UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ
OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-
MATO-GROSSENSE (1967-1989)
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD
Aprovada em 21 de Agosto de 2017.
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
Jérri Roberto Marin (Dr., UFMS)
_______________________________________________________
2º Examinador:
Edvaldo Correa Sotana (Dr., UFMS)
_______________________________________________________
3º Examinador:
Eudes Fernando Leite (Dr., UFGD)
_______________________________________________________
À minha família e à todos os meus professores,
que os tenho como amigos.
AGRADECIMENTOS
Sinceros agradecimentos aos amigos discentes da turma de 2015 do Programa de
Pós-Graduação em História da UFGD, que de alguma forma contribuíram para as questões
e para o aprimoramento das reflexões a respeito deste trabalho.
Agradeço, em especial, ao professor doutor Jérri Roberto Marin, rigoroso
orientador e perseverante conselheiro do trabalho que se apresenta. Ao professor, Edvaldo
Correa Sotana, que, desde o incipiente trabalho de conclusão de curso, fez importantes e
pontuais contribuições para o prosseguimento da pesquisa. Ao professor Eudes Fernando
Leite, arguto crítico deste tema que, de várias formas, tanto quanto professor na pós-
graduação quanto membro da banca, contribuiu com o aprimoramento das reflexões
necessárias para o desenvolvimento desta pesquisa.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que
possibilitou o financiamento da pesquisa, à FCH/UFGD de forma geral, e sobretudo ao
corpo de docente e de funcionários do Programa de Pós-Graduação em História da UFGD.
Ao amigo e companheiro das viagens cansativas, Murilo Cezar da Luz, pelas
conversas alucinantes, mas sempre produtivas para o sentido do fazer histórico.
Por fim, agradeço aos meus pais pelo incentivo aos estudos e, singularmente, à
minha querida esposa Sahra dos Anjos, a quem devo infinita gratidão pelo amor disposto,
pelos sonhos e planos adiados em prol de mais uma fase profissional que concluo, e pelo
incansável companheirismo administrado durante a realização deste trabalho. À minha
família, minha motivação.
RESUMO
A pesquisa analisa a atuação política e cultural de José Octávio Guizzo, a sua militância e
suas propostas para a construção da identidade sul-mato-grossense, entre os anos de 1967 e
1989. Sua atuação na esfera cultural foi ampla, seja como advogado, pesquisador,
compositor, cineasta, intelectual e político. Desde a década de 1960 até 1989 atuou na
esfera cultural obtendo considerável notoriedade, tanto em Mato Grosso como em Mato
Grosso do Sul. O conjunto de sua obra bibliográfica e da sua atuação no cenário cultural
revela a sua preocupação em constituir uma identidade para o estado de Mato Grosso do
Sul, criado em 1977. Guizzo empenhou-se em definir os alicerces da identidade ao
pesquisar as tradições culturais comuns e singulares, sobretudo na música, no folclore, nas
artes visuais, na literatura e no cinema. Como decorrência de suas atuações e relações
políticas, participou de secretarias de governo, do Conselho Estadual de Cultura de MS, e
nomeado presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, em 1984, quando
pôde efetivamente definir políticas culturais. Seu projeto identitário estava alicerçado no
universo rural, especialmente, voltado ao estabelecimento do Pantanal como símbolo
autêntico para a identidade sul-mato-grossense. O desenvolvimento da pesquisa esteve
embasado nas reflexões sobre Região, elaboradas por Pierre Bourdieu e discutidas por
Durval Albuquerque Jr, que serviram como referencial teórico e metodológico, juntando-se
à noção de Representação cunhada por Roger Chartier, que entende ser o horizonte
cultural permeado por sistemas simbólicos e práticas sociais que funcionam como sistemas
de signos pautados por discursos, que podem contribuir para a estruturação de identidades
regionais e para o estabelecimento de diferenças. Ou seja, buscou-se desconstruir os
discursos de Guizzo para a construção identitária e, consequentemente, suas políticas
culturais que pretenderam sustentar o regionalismo. Dessa modo, procurou-se com este
trabalho, a apresentação e a promoção de uma nova forma de dizer e de ver a região.
Palavras-chaves: Identidade. José Octávio Guizzo. Mato Grosso do Sul.
ABSTRACT
The research analyzes the political and cultural performance of José Octávio Guizzo, his
militancy and his proposals for the construction of the South Mato Grosso identity,
between the years 1967 and 1989. His performance in the cultural sphere was broad, as a
lawyer, a researcher, a composer, a filmmaker, an intellectual and a politician. From the
decade of 1960 until 1989 he worked in the cultural sphere obtaining considerable
notoriety, both in Mato Grosso and in South Mato Grosso. The set of his bibliographical
work and his performance in the cultural scene reveals his concern about establishing an
identity for the state of South Mato Grosso, created in 1977. Guizzo dedicated to defining
the foundations of the identity by researching common and unique cultural traditions,
especially in music, folklore, visual arts, literature and cinema. As a result of his activities
and political relations, he participated in secretariats, in the State Council of Culture of MS,
and he was named president of the Cultural Foundation of South Mato Grosso in 1984,
when he could effectively define cultural policies. His identity project was based on the
rural universe, especially aimed at establishing Pantanal as an authentic symbol for the
identity of the South Mato Grosso. The development of the research was based on the
reflections on region elaborated by Pierre Bourdieu and discussed by Durval Albuquerque
Jr.,that served as theoretical and methodological references. It also joins the notion of
representation coined by Roger Chartier, who understands the cultural horizon is
permeated by symbolic systems and social practices that work as systems of signs guided
by discourses that can contribute to the structuring of regional identities and to the
establishment of differences. In other words, it was sought to deconstruct Guizzo's
discourses for the construction of identity and, consequently, his cultural policies, which
attempted to sustain regionalism. In doing so this work seeks to present and promote a new
way of saying and seeing the region.
Keywords: Identity. José Octávio Guizzo. South Mato Grosso.
―A história (do) regional, enquanto iluminadora do passado, deve
ser capaz de introduzir o estranho, de contestar o oficial, de renegar
uma invenção do passado, de desmentir-se, de produzir o
afastamento do que se vê, do que se diz, do que se sente como
próximo‖.
Durval Muniz de Albuquerque Junior
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 – Territórios de MT e MS, antes e depois da divisão .................................... 36
Imagem 2 – Primeiro disco do grupo Tetê e o lírio Selvagem (1978)............................. 53
Imagem 3 – Capa da segunda versão do álbum Canta-dores do Pantanal.......................
Imagem 4 – Capa do disco O Estradeiro, de 1981...........................................................
Imagem 5 – Capa do filme-documentário Comitiva Esperança......................................
Imagem 6 – Os músicos protagonistas no Pantanal: Simões, Sater e Corrêa..................
Imagem 7 – Simões e Sater aguardando transporte com a matula..................................
Imagem 8 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme
no hall de um cinema........................................................................................................
Imagem 9 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme
no hall de um cinema........................................................................................................
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78
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104
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ARCA – Arquivo Público de Campo Grande
ARENA – Aliança Renovadora Nacional
ASL – Academia Sul-mato-grossense de Letras
DOEMS – Diário Oficial do Estado de Mato Grosso do Sul
FCMS – Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul
FIC – Fundo de Investimentos Culturais
IHGMS – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
MS – Mato Grosso do Sul
MT – Mato Grosso
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
TVE – TV Educativa
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
SUMÁRIO
Lista de imagens.................................................................................................................................. 09
Lista de abreviaturas e siglas............................................................................................................... 10
Introdução ......................................................................................................................................... 13
I - O CENÁRIO CULTURAL (MUSICAL) NO SUL DE MATO GROSSO E A
PARTICIPAÇÃO DE JOSÉ OCTAVIO GUIZZO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
SUL-MATO-GROSSENSE (1967-1984).........................................................................................
25
1.1. A divisão de Mato Grosso, o surgimento de Mato Grosso do Sul e as contribuições de José
Octávio Guizzo na construção da identidade (1977-1983)..................................................................
35
1.2. Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul: José Octávio Guizzo e a defesa de uma
música regional....................................................................................................................................
44
II - HISTÓRICO DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE MATO GROSSO DO SUL E AS
AÇÕES DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO COMO POLÍTICAS CULTURAIS (1984-
1985)....................................................................................................................................................
68
2.1. A Comitiva Esperança e a busca por uma pantaneidade para Mato Grosso do Sul...................
2.2. A construção das diferenças entre MS e MT por meio das representações de José Octávio
Guizo, em 1985....................................................................................................................................
2.3. O movimento cultural Unidade Guaicuru: outra proposta identitária em Mato Grosso do
Sul........................................................................................................................................................
73
82
90
III - EMBATES POLÍTICOS E REDIRECIONAMENTOS CULTURAIS: A ATUAÇÃO
DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO APÓS A SUA SAÍDA DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE
MATO GROSSO DO SUL (1985-1989)..........................................................................................
97
3.1. Alma do Brasil: um livro sobre o primeiro filme nacional inteiramente sonorizado sobre a
Guerra do Paraguai..............................................................................................................................
3.2. José Octávio Guizzo e a produção cinematográfica.....................................................................
3.3. A construção da memória em torno de José Octávio Guizzo.......................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................
101
107
108
113
FONTES E REFERÊNCIAS............................................................................................................
4.1. Bibliografia...................................................................................................................................
4.2. Entrevistas.....................................................................................................................................
4.3. Fontes............................................................................................................................................
4.4. Referências eletrônicas.................................................................................................................
116
116
121
121
122
13
INTRODUÇÃO
Sob a égide teórica da desconstrução se organiza esta pesquisa. Especificamente,
o presente estudo analisa a atuação de José Octávio Guizzo na construção de uma
identidade1 para o estado de Mato Grosso do Sul, criado em 1977. Buscou-se, por meio do
exame de suas obras bibliográficas e de suas ações/atuações políticas, identificar quais
foram os pressupostos e quais os elementos característicos que ele defendeu como
constitutivos de uma identidade sul-mato-grossense. Tais ações, pautadas em um
paradigma singular, junto à Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (autarquia
governamental presidida por Guizzo) buscaram estruturar de forma categórica concepções
(―verdadeiras‖) de identidade para o referido estado. Procurou-se, compreender as razões e
as lógicas das políticas culturais defendidas por ele, além dos elementos identitários
selecionados que foram destacados e que mostravam coerência em relação às expressões
culturais da região.
1 O termo ―identidade‖, que será muitas vezes empregado, tem sido usado de diversas e conflitantes
maneiras, muitas das quais associadas ao essencialismo e/ou ao regionalismo, sendo, portanto, necessário
conceituá-lo de imediato com o sentido que será utilizado aqui. Etimologicamente, ―identidade‖ deriva do
latim identitas, provavelmente uma fusão de idem, ―o mesmo‖, e entitas, ―entidade‖. Como tal, em uma
perspectiva pós-estruturalista, como a adotada nesta tese, o termo ―identidade‖ exprime um conceito errôneo,
pois um sujeito dividido (entre um efeito de consciência, provocado pelo discurso, e seu inconsciente) não
poderia, em qualquer circunstância, ser idêntico a si próprio. Entretanto, o termo é utilizado mesmo assim,
em virtude de sua ampla aceitação em volumosa e importante bibliografia nas ciências sociais e
humanidades. Para o pós-estruturalismo, o conceito mais adequado às vicissitudes da produção (sempre
precária, não essencial, problemática e descentrada) do sujeito seria ―subjetividade‖. Isso porque este coletivo
teórico tende a compreender o que se chama de ―identidade‖ como um conjunto de diferentes ―posições
subjetivas‖ assumidas temporariamente pelo sujeito ao ativá-las por intermédio do discurso – inclusive os
discursos verbais e musicais veiculados pelas canções. Portanto, ao conceito estático de ―identidade‖ é
preferida uma política de representação, que permite a contínua desestabilização das ideologias dominantes
por intermédio de práticas de intervenção ativa dos sujeitos e grupos não-hegemônicos sobre as modalidades
de representação (NEDER, 2011, p. 14).
14
Guizzo foi ativista, produtor cultural e um agente público de considerável
notoriedade em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul durante as décadas entre 1967 e
1989, ano de seu falecimento. Teve importante presença no cenário musical da cidade de
Campo Grande desde o ano de 1967 até 1979. Neste período, participou dos festivais
culturais de música da cidade. Pesquisou a vida profissional e os aspectos musicais de
alguns artistas e de alguns grupos da localidade que, em sua concepção, poderiam traduzir
uma musicalidade para a região. Como intelectual, preocupou-se em pesquisar as
particularidades das tradições, do folclore, da literatura, do teatro e do cinema que foram
produzidos em Mato Grosso e, após a divisão político-administrativa deste estado, de Mato
Grosso do Sul, a partir de 1977.
A participação e o engajamento de Guizzo no âmbito político-cultural fez com
que ele participasse do grupo de trabalho da Secretaria de Desenvolvimento Social de
Mato Grosso do Sul, em 1981. Posteriormente, foi membro do Conselho Estadual de
Cultura, logo após, nomeado presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.
Neste cargo, criou incentivos para organizar e estruturar uma identidade para o estado
recém-criado. Durante a sua gestão foram realizados os primeiros Encontros Estaduais de
Cultura e o Primeiro Encontro do Patrimônio Cultural de Mato Grosso do Sul.
A proposta de Guizzo era criar uma comunidade simbólica a partir de uma
coletividade pura, autêntica, coesa e distintiva, um nós. Ou seja, buscava tecer uma
essência comum onde todos se identificariam, e que possibilitaria aglutinar os interesses
individuais e as divergências políticas em princípios coletivos e gerais e forjar sentimentos
regionais de responsabilidade política para com os demais membros da comunidade local.
Para tal, era necessário criar elementos comuns, como base para a construção de novos
critérios identitários, que valorizariam o regional e os sentidos de unidade, tais como: os
mitos, as memórias, os personagens, os símbolos, as artes, o teatro, os usos e costumes, a
língua, a etnia, o território, as festas e as tradições comuns.
Para que esse processo se consolidasse era necessário também construir
diferenças, pois a identidade se constrói a partir da existência de um ―outro‖, ou seja, da
alteridade. A identidade é relacional e é construída por meio das diferenças em relação aos
outros. Para Silva (2000, p. 81), não ―há como distanciar identidade/diferença das relações
de poderes, já que são essas que têm a prerrogativa de definir a identidade e marcar a
diferença‖.
15
Após a criação de Mato Grosso do Sul, o governo estadual mobilizou diferentes
instituições e intelectuais com o objetivo de criar um imaginário social e sentimentos de
pertença coletiva a Mato Grosso do Sul. Os esforços consistiam em forjar aspectos comuns
que pudessem construir, como afirmou Anderson (1989, p. 14), uma comunidade
imaginada, um companheirismo horizontal e profundo. Ou seja, no caso específico desta
pesquisa, transformar os mato-grossenses em sul-mato-grossenses.
O conjunto da produção bibliográfica de Guizzo demonstra a sua preocupação
com uma identidade, a partir de 1979, para o novo estado, por intermédio da eleição de
aspectos comuns, a fim de construir um companheirismo que pudesse criar e homogeneizar
as representações regionais. Nessa construção a música tinha um papel central. Guizzo
pesquisou e publicou diversos livros. Tal bibliografia é referenciada por A Moderna
Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul, publicada em 1982, Alma do Brasil: o
primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado, em 1984, e
Glauce Rocha: atriz, mulher, guerreira, em 1996, como publicação póstuma. Ainda, de
sua autoria, tem-se um artigo publicado na Revista MS Cultura, Histórias e estórias de
uma velha pendenga revisitada, em 1985, no qual por meio de suas interpretações
constatava a existência de diferenças nas características biotípicas, étnicas e culturais,
assim como de identidades regionais diferentes entre a população do norte e do sul de
Mato Grosso, justificando uma maior distinção cultural dessas regiões após a criação de
Mato Grosso do Sul.
José Octávio Guizzo preocupou-se com a busca das ―raízes‖ regionais, do que
seria legitimamente a ―música regional‖ sul-mato-grossense; com a preservação das
tradições, dos costumes e a construção e preservação do patrimônio regional. Mobilizou,
dessa forma, outros aspectos importantes para a construção da identidade, tais como as
memórias do passado, o desejo por viver em conjunto e a perpetuação das heranças
comuns (HALL, 2006, p. 58). Segundo Maria da Glória Sá Rosa ―após a divisão do estado
de Mato Grosso, a busca pelas raízes da cultura sul-mato-grossense era uma verdadeira
obsessão para Guizzo‖ (SÁ ROSA, 2003, p. 99). Américo Calheiros, ex-presidente da
Fundação de Cultura, por exemplo, relatou que Guizzo ―alterou a visão que se tinha da
cultura de Mato Grosso do Sul, pois, suas atuações enquanto pesquisador e músico foram
importantes nesses campos‖ (CALHEIROS, 2009). A historiografia sul-mato-grossense,
sobretudo a oficial, celebra o papel de José Octávio Guizzo como pesquisador e como
importante ativista da cultura sul-mato-grossense.
16
A construção da identidade sul-mato-grossense, com ênfase à atuação de José
Octávio Guizzo, ainda carece de pesquisas, tendo em vista o número significativo de
questões-problemas ainda pouco discutidas e analisadas. Nos círculos dos memorialistas
ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, à Academia Sul-mato-
grossense de Letras e à Fundação de Cultura temos a construção de uma história e de uma
memória oficiais, sobretudo por se alinharem às diretrizes estaduais no intuito de
garantirem os financiamentos de publicações pelo Estado. Em boa parte, tais publicações
estão ligadas à escrita da história, meramente descritiva e notadamente política, na busca
incessante pela criação de uma identidade regional e de uma glorificação das elites
dirigentes (SALGUEIRO, 2015, p. 20).
Todavia, as pesquisas acadêmicas, como a de José Carlos Ziliani, intitulada
Tentativas de construções identitárias em Mato Grosso do Sul (1977-2000), a de Ricardo
Souza da Silva, Mato Grosso do Sul: labirintos da memória (2006) e a de Gilmar Lima
Caetano, A música regional urbana e identidades culturais de Mato Grosso do Sul:
questões a partir da musicologia histórica (2012), ou mesmo o trabalho fundamental como
a premiada tese do professor e músico Álvaro Simões Corrêa Néder, intitulada “Enquanto
este novo trem atravessa o Litoral Central”: platinidad, poéticas do deslocamento e
(des)construção identitária na canção popular urbana de Campo Grande, Mato Grosso do
Sul (2011), demonstram, notadamente, que ainda suscitam questões intrigantes quanto à
história regional e que essas carecem de maiores argumentações em relação às tentativas
de construção identitária em Mato Grosso do Sul.
Talvez, essa pendência seja pelo fato de tal conteúdo se direcionar a história
recente, que tem como objetos de pesquisa personagens ainda vivos ou figuras
cristalizadas na história oficial. No entanto, é observável o nível de influência que o
trabalho de alguns historiadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato
Grosso do Sul2 e a Fundação de Cultura estabeleceram - e ainda o fazem – ao longo dos
39 anos de existência de Mato Grosso do Sul. Estes ainda na contemporaneidade procuram
efetivar uma história ―memorável‖, marcada pela atuação ―célebre‖ de determinados atores
políticos, tais como José Octávio Guizzo, por exemplo. O que estes historiadores
memorialistas fazem é criar mitos e cristalizar uma história ―oficial‖. Tal medida é
possível sob a intenção, principalmente, de investimentos na construção de uma memória
2 Durante a história de Mato Grosso do Sul o IHGMS foi avalizado pela Fundação de Cultura de Mato
Grosso do Sul.
17
também ―oficial‖ para Mato Grosso do Sul, ―que na maioria das vezes permite
compreender as representações que emanam das obras produzidas pelos intelectuais [...] e
que, aparentemente, têm como maior ambição fornecer uma chave da identidade regional‖
(SALGUEIRO, 2015, p. 21).
Sobre esse poder, o medievalista Jacques Le Goff (1996, p. 422) alertou que, há a
necessidade de grupos ou indivíduos restritos tentarem, historicamente, docilizar e dominar
a maioria da sociedade, assim, ―tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas‖.
É justamente com o objetivo de contribuir para a ampliação do debate
historiográfico a respeito dessa produção histórica regional que se intentou, com essa
pesquisa, a análise das ações políticas de Guizzo e a desconstrução de seus discursos
utilizando-se de conceitos centrais como identidade, representação, campo, região e
memória. Pretendeu-se promover o estabelecimento de uma nova forma de dizer e ver o
regional, e abrir o caminho para a desconstrução do regionalismo.
A cultura nacional/regional é um discurso – um modo de construir sentidos que
influenciam e organizam tanto nossas ações, quanto a concepção que temos de nós
mesmos. Para Hall (1992, p. 50-51), ―as culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre
‗a nação‘, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades‖. Por
outro lado, integrantes de um mesmo grupo podem aderir de forma diferenciada ao mesmo
estoque simbólico ou não se sentirem reconhecidos neles, como ocorreu com alguns
grupos artísticos em Mato Grosso do Sul quanto às ações e projetos político-culturais que
foram dirigidas por Guizzo.
Os aspectos étnicos, culturais e identitários elencados por Guizzo foram
instituídos como típicos e distintivos do ser sul-mato-grossense. Nesse sentido, ao longo do
trabalho que se apresenta, tornou-se importante a noção de Representação cunhada por
Roger Chartier. Para este historiador o âmbito cultural está permeado por sistemas
simbólicos e práticas sociais que funcionam como sistemas de signos, ou seja, como
representações, pautadas por discursos que ―produzem estratégias e práticas sociais, que
(sociais, escolares, políticas) tendem a impor uma autoridade à custa de outras, por elas
menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos as suas escolhas ou condutas‖ (CHARTIER, 1990, p. 17).
18
Isso permite compreender como os indivíduos e os grupos sociais se percebem e
percebem os demais. Para Chartier (1990, p. 16-18), as representações se constituem em
uma área de formulações mentais e de atitudes baseadas nas vivências dos grupos que as
forjam na sociedade. Embora as representações do mundo social almejem constatações
fundamentadas na razão, elas são determinadas pelos interesses de grupos que as forjam,
ou seja, são discursos distantes da neutralidade. Desta maneira, são produzidas práticas e
estratégicas no intuito de legitimar um projeto reformador em substituição de outro a ser
combatido e superado. Assim, as representações identitárias oferecem muito sobre a visão
que alguns agentes, em determinado momento histórico, constroem sobre si mesmos, sobre
os grupos com os quais dialogam e sobre a sociedade em que vivem.
Outro conceito fundamental a este trabalho é a de campo, desenvolvida por Pierre
Bourdieu, que orienta que temos propriedades gerais que são válidas para vários campos
tais como, o campo religioso, o científico, o de poder e o intelectual (BOURDIEU, 2011,
p. 68). Portanto, as ações políticas e culturais de Guizzo são analisadas e interpretadas sob
a perspectiva de que são disputas e se caracterizam por relações de poder, explícitas e
implícitas, conscientes e inconscientes, e que permeiam as relações políticas, seja no
espaço social ou no âmbito cultural. Sendo assim, a ideia de teoria dos campos, de
Bourdieu (2011), é presumida pela estrutura de todos os campos, que envolvem, sobretudo,
as lutas concorrenciais, quer dizer, a disputa pelo poder entre seus diferentes agentes. Mais
do que isso, na esfera cultural, o poder tem relação com a disputa pela autoridade, pela
legitimidade, pela autenticidade e pelo domínio dos signos, dos sentidos e das
interpretações, no caso, pelo poder de impor uma identidade (LIMA, 2010, p.14).
Por fim, as reflexões sobre Região, feitas por Durval Albuquerque (2008) e
elaboradas a partir de Pierre Bourdieu (2011) servem como referencial metodológico a este
trabalho. Para Albuquerque (2008, p. 61), a região não é um dado prévio, com um referente
identitário que existiria por si só. Ela é construída por discursos, ações e por práticas não-
discursivas que criam essas noções espaciais e são base para direções de projetos políticos,
administrativos, culturais e estéticos, que definem e delimitam fronteiras, domínios,
territórios, regiões e nações. Ou seja, A região é construída e objetivada discursivamente,
pois, ao traçarem, ―com autoridade‖, as fronteiras produzem diferenças culturais e
comunidades imaginadas. Ou seja, ―trazem à existência aquilo por elas prescrito‖
(BOURDIEU, 2011, p. 114).
19
Nesse sentido, como alertou Albuquerque (2008, p. 58-67), o trabalho do
historiador (do) regional3 adquire outro viés - a importante tarefa de pôr em questão os
muros das identidades regionais e de desconstruí-las, pois elas dividem, separam,
hierarquizam e alimentam os preconceitos de origem geográfica e de lugar, sustentam os
estereótipos regionalistas, que geram discriminação e ódio, desprezo e falta de
solidariedade, que autorizam e legitimam a exploração e a violência sobre dados sujeitos
regionais. Para tal, é importante estar atento para os afrontamentos políticos, às lutas pelo
poder, às estratégias de governo, de comando, os projetos de domínio e de conquista que
ali foram investidos, que fizeram parte de sua instalação e demarcação, que estabeleceram
as fronteiras e os limites que agora podem reivindicar como sendo naturais, ancestrais
divinos ou legítimos. Ou seja, não repor acriticamente a pretensa identidade de uma região,
mas se a desconstrói. Caso contrário, estar-se-ia a serviço das forças, dos interesses e
projetos políticos que lhe deram forma ou que sustentam um dado espaço dito e visto como
regional.
Em suma, fazer ―história do regional [...] não é afirmar a região; é colocá-la em
questão, é suspeitar de sua existência naturalizada [...] implica em colocar no tempo os
espaços ditos e vistos regionais, implica em pensar arqueologicamente as relações de poder
e as distintas camadas de saber que vieram a se cristalizar, que vieram a dar contorno e
realidade a um dado recorte regional‖ (ALBUQUERQUE, 2008, p. 63). Nesse sentido, o
historiador (do) regional se volta contra qualquer cristalização do regional e que ―encararia
como um campo de luta, que implica em assumir posições, em ocupar lugares de sujeito,
em se postar no meio da batalha de ações e de discursos, e apresentações e de
representações da própria região‖ (ALBUQUERQUE, 2008, p. 64). É aquele que investe
no seu desmonte, que evita a falar em seu nome, em ser seu porta-voz, que se nega a
colocar-se na posição de sujeito da região. Por fim, não assume qualquer discurso
regionalista. O historiador do regional deve estar atento para desconstruir e por em questão
a definição de suas fronteiras, suas identidades, a invenção de suas paisagens e dos seus
habitantes, das escolhas que instituíram o que seriam suas manifestações culturais
3 Notadamente nos Estados ou espaços que são vistos e ditos ou que se veem e se dizem como periféricos,
tanto em relação ao processo histórico, quanto à produção historiográfica do país, costumam proliferar as
atividades acadêmicas, culturais, artísticas e políticas que reivindicam para si a identidade de regionais.
Prefere-se a denominação de história (do) regional, que se desloca na contramão daquilo que fazem os
regionalismo, pelo fato, ao mesmo tempo, de o próprio conceito de região ser pouco discutido, pouco
problematizado. Ver, por exemplo: GEBARA, 1987.
20
tradicionais, seus costumes e hábitos, vistos como ―autênticos‖ e singulares
(ALBUQUERQUE, 2008, p. 62-65). Ou seja, é aquele que procura na desconstrução a
inversão da história que justifica as invenções identitárias e mantém o desigual status quo.
Sob o amparo da desconstrução, reúnem-se questões filosóficas, literárias,
políticas, intelectuais e, sobretudo, históricas, matérias estas que, ao longo da segunda
metade do século XX, acarretaram em uma desestruturação nas reflexões das Ciências
Humanas. Diante disso, pode-se considerar que o trabalho empreendido pelo filósofo
Jacques Derrida esteve além da própria Filosofia, estendendo-se, como se oferece neste
trabalho, ao campo da História. A sombra da análise da desconstrução tem-se um
incessante trabalho de investigação que coloca em desconfiança os discursos
tradicionalmente estruturados nas Ciências Humanas, na Literatura, na História, ao
questionar, até mesmo, o próprio conceito de ciência. Nesse sentido, a noção de
desconstrução é comumente entendida como uma corrente teórica que pretendia solapar as
cadeias hierárquicas racionais sustentadoras do pensamento ocidental, tais como,
dentro/fora; corpo/mente; fala/escrita; presença/ausência; natureza/cultura; forma/sentido,
nós/outros, nacional/estrangeiro (PEDROSO, 2010, p. 11).
Ao refletir acerca das relações hierárquicas do pensamento ocidental, Derrida
(2001, p. 48-49) registra a necessidade de se inverter tais hierarquias, uma vez que fazer
justiça a essa necessidade significa reconhecer que em uma oposição filosófica, nós não
estamos lidando com uma coexistência pacífica, mas com uma hierarquia de violência.
Desconstruir a oposição significa, em dado momento, inverter a hierarquia. Ele pontua que
operar essa inversão, ―significa ainda operar no terreno e no interior do sistema
desconstruído‖, deste modo, ao buscar a decomposição dos discursos com os quais opera,
revelando seus pressupostos, suas ambiguidades, suas contradições, a desconstrução se
manifestará como uma operação particular dos discursos sustentadores do pensamento
ocidental, tendo-se em vista que esta seria, portanto, a melhor forma de abordá-los,
desestruturá-los e, por consequência, ampliar seus limiares e seus limites.
Diante disso, pode-se afirmar que a desconstrução, de fato, causou um impacto
significativo no campo das Ciências Humanas ao inaugurar novos questionamentos,
instigar novos deslocamentos e propor realocações de conceitos considerados canônicos
nesta área do conhecimento. Tal redimensionamento conceitual resultou em um abalo na
soberania dos discursos, tendo em conta que, assim, qualquer discurso que pretendesse à
verdade, ao certo, à precisão, ao real, à genuinidade ou à ―verdadeira‖ reconstituição
21
histórica, era jogado pelo alcantil. Desconstruir uma oposição (construída) é mostrar que
ela não é natural, tampouco proveniente da verdade, mas sim resultado de uma construção
com elementos intencionalmente selecionados e sustentada por discursos.
Nesse sentido, é oportuno reconhecer que, apesar de ter nascido no campo da
Filosofia, a desconstrução não é exclusivamente filosófica, menos ainda, se a entendermos
no seu sentido tradicional. Para além da Filosofia, podemos observar que a desconstrução
apresenta-se como uma prática de leitura crítica, seja essa leitura de textos históricos,
filosóficos, ou literários. Podemos fazer alusão, por exemplo, às palavras de Jonathan
Culler (1997, p. 99), para quem ―a desconstrução tem sido variadamente apresentada como
uma posição filosófica, uma estratégia política ou intelectual e um modo de leitura‖.
Portanto, pode-se entender que desconstruir é, como afirma Nascimento (2005, p.
141) ―re-colocar, a cada vez, tudo em jogo, de acabar para recomeçar, de acabar por
recomeçar. Não no sentido de esquecer o já sabido, de reinventar o mesmo, mas de se
colocar a tarefa de redefinir as tonalidades do acontecimento‖.
Para isso, fez-se necessário as contextualizações históricas locais, apesar do objeto
específico desse estudo ser as ações políticas e culturais de Guizzo, o cenário cultural de
Mato Grosso do Sul, sobretudo a sua proposta de identidade, não foi, como se perceberá
fruto de fabricação e de representações engendradas apenas por ele. Outros indivíduos,
instituições e governadores como Pedro Pedrossian e Wilson Barbosa Martins também
auxiliaram em tal construção, além de professores da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul e aqueles membros do IHGMS, intimamente ligados às políticas da
Fundação de Cultura. Dado que, a identidade, como parte da formação cultural, é sempre
trabalho de muitos, todos contribuem de formas diferenciadas e em situações distintas,
sejam eles grupos de poderosos ou desprovidos de poder, de evidenciados ou excluídos e
mesmo de intelectualizados ou apedeutas (AMARILHA, 2006, p.11).
Em suma, a pesquisa procurou indagar, analisar, argumentar e desconstruir os
discursos sobre a proposta de edificação da identidade sul-mato-grossense feita por
Guizzo, na qual teve reivindicada, construída, constituída e invocada para si as tradições
locais, às vezes, ―inventadas‖, e que formaram uma comunidade imaginada, pautada em
sentimentos de comunhão e por um companheirismo entre seus membros (ANDERSON,
1989, p. 14). Pois, nesse sentido, os investimentos simbólicos feitos por Guizzo buscaram
inventar uma região: Mato Grosso do Sul.
22
As fontes utilizadas nessa pesquisa foram diversificadas. Foram entrevistas
realizadas com pessoas que conviveram com Guizzo, tais como o professor e membro do
IHGMS Valmir Batista Corrêa e o artista plástico Jonir Figueiredo. As fontes orais, por
exemplo, podem acrescentar outra dimensão à pesquisa histórica, por via delas mostram-se
desígnios, crenças, representações, imaginários e experiências vividas. A fonte oral pode
desnudar questões que um documento escrito, ―oficial‖, não permite. Tal entendimento não
quer dizer, obrigatoriamente, que ela traz nova perspectiva ao historiador, mas pode
contribuir para determinados objetivos, daí sua importância. Outras fontes relevantes são
os documentos do governo estadual, tais como o Documento Preliminar – Política
Estadual de Cultura, os atos administrativos publicados no Diário Oficial de Mato Grosso
do Sul, além das obras biográficas sobre Guizzo e suas próprias publicações e criações –
artigos em jornais, livros e composições musicais.
Por intermédio das fontes foi-se em busca de indícios que pudessem indicar
fragmentos de uma realidade de outrora, paralelos que comportam e trazem relações das
quais se pode verificar sentidos e permanências históricas através das fontes que são
construídas e trazem visões, símbolos de sujeitos e diferentes contextos históricos
(GINZBURG, 1991, p. 46).
As fontes não são neutras e, como monumentos, um livro ou um depoimento de
um entrevistado não falam por si. Antes de tudo, como apontou Le Goff (1996, p. 535), a
história é resultado de uma construção mediada por intenções e interpretações, logo, ―o que
sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer
pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade‖.
Portanto, é certo que as fontes não podem ser utilizadas como argumento de autoridade,
isto é, como verdade. As diversas linguagens utilizadas por Guizzo para legitimar a
identidade sul-mato-grossense, como a literatura, o cinema, a música ou o teatro são como
nos sugere Albuquerque (2006, p. 320-321), ações e práticas inseparáveis de uma
instituição. Estas linguagens não apenas representam o real, mas também o instituem.
Os resultados da pesquisa são apresentados em três capítulos. No primeiro,
apresenta-se o cenário cultural do antigo sul de Mato Grosso, desde 1967 até a criação de
Mato Grosso do Sul em 1977. Foram enfocados os primeiros festivais culturais de música,
ocorridos em Campo Grande, os artistas, os grupos musicais da cidade, as expressões
decorrentes da criação do Estado e em outros centros urbanos, tais como os artistas
plásticos da cidade de Dourados, de Coxim e os músicos de Corumbá, além da participação
23
de Guizzo nesse contexto. Seguidamente, apresenta-se a sua proposta para a construção da
identidade de Mato Grosso do Sul, juntamente com uma interlocução sobre as questões que
envolveram a divisão de Mato Grosso, em 1977. Procurou-se expor as questões
econômicas, políticas e culturais que condicionaram, de fato, a promoção e o fomento de
um conjunto de diretrizes, até 1984, data da nomeação de Guizzo à Fundação de Cultura
de Mato Grosso do Sul.
No segundo capítulo, aborda-se sobre as questões relacionadas às políticas
culturais adotadas pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, criada em 1984, e
que teve como seu primeiro presidente José Octávio Guizzo. O histórico de sua criação e
estruturação é importante nesse contexto pelo fato de ter sido por meio desta autarquia
governamental que, efetivamente, o grupo de artistas e de pessoas ligadas a Guizzo
puderam direcionar as políticas culturais naquele estado. Fez-se importante estabelecer,
num segundo momento, uma análise do que correspondeu ser um movimento cultural de
artistas denominado Unidade Guaicuru e quais foram suas implicações no plano cultural
de Mato Grosso do Sul na década de 1980. Também, uma breve análise sobre a Comitiva
Esperança que foi composta por músicos locais a fim de conhecerem o Pantanal e sua
contribuição para a efetivação da identidade cultural defendida por Guizzo. Num último
momento, analisou-se as disputas e o intrincado jogo de poder que se estabeleceu no
interior da Fundação de Cultura após a saída de Guizzo da presidência e os
redirecionamentos realizados pelo novo grupo que o sucedeu e promoveu a certo
redirecionamento de suas políticas culturais.
No terceiro capítulo busca-se o enfoque na preocupação que Guizzo teve em torno
do estabelecimento do filme Alma do Brasil como representação simbólica e demarcatória
das contribuições históricas do território sul-mato-grossense para o restante da nação
brasileira e reconhecido como episódio a ser celebrado e rememorado, ocupando um
destaque no processo constitutivo da identidade regional. Haja vista que, o desenrolar da
Guerra do Paraguai se deu quase que todo no território, que até 1977, correspondia ao
estado de Mato Grosso e que a partir daí passou a dizer respeito a Mato Grosso do Sul. As
disputas que ocorreram pela administração da Fundação de Cultura são enfocadas neste
capítulo juntamente com a análise do livro Alma do Brasil, representado como bem
simbólico para a construção do nós sul-mato-grossense. Tal ação simbólica realizada por
Guizzo só aconteceu após sua saída da presidência da Fundação de Cultura, o que
denuncia as disputas no campo político à época. O grupo responsável por tal autarquia
24
governamental após a sua destituição não deu continuidade plena a sua proposta típica de
identidade. Por fim, em uma última parte, tem-se um breve panorama analítico sobre a
construção da memória em torno das imagens de José Octávio Guizzo veiculadas na
contemporaneidade. Seu nome é constantemente lembrado e celebrado como um dos mais
relevantes da história cultural de Mato Grosso do Sul. O dever de memória, o dever de não
esquecer esta presente num conjunto de obras biográficas e de artigos de jornais que
representam suas ações e sua trajetória de vida. As construções da memória e da identidade
estão intimamente associadas ao relembrar, ao rememorar, ao recordar e ao celebrar.
25
I - O CENÁRIO CULTURAL (MUSICAL) NO SUL DE MATO
GROSSO E A PARTICIPAÇÃO DE JOSÉ OCTAVIO GUIZZO
NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-MATO-GROSSENSE
(1967-1984)
A atuação de José Octávio Guizzo no cenário regional se estabeleceu,
publicamente, entre os anos de 1967 e 1989. Nesse período, ele foi um militante cultural e
político de considerável notoriedade nos estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul,
pois desenvolveu inúmeros projetos voltados à cultura, sobretudo durante o período em
que foi presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, entre 1984 e 1985.
José Octávio Guizzo nasceu em Campo Grande em março de 1938, era filho de
imigrantes italianos e passou sua infância no bairro do Cascudo e fez o primário, o ginasial
e o científico no colégio Dom Bosco. Aos 15 anos, assumiu as funções de locutor da PRI-7
– Radio Difusora de Campo Grande, onde fazia comerciais e apresentava um programa.
Posteriormente, cursou a faculdade de Direito em Curitiba, onde foi presidente e vice-
presidente do Centro Acadêmico. Ali, desenvolveu intensa atividade político-cultural.
Em 1963, já formado, retornou a Campo Grande e passou a administrar os
negócios da família e a trabalhar como advogado. No seu escritório recebia vários artistas
como Joel Pizzini e Candido Alberto da Fonseca, José de Almeida, entre outros, que
vinham conversar sobre música, cinema, folclore, menos sobre Direito (SÁ ROSA, 2003,
p. 89-90). Guizzo passou a atuar no cenário cultural como compositor de duas músicas:
Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal, que concorreu no Primeiro Festival de Música
Popular Brasileira de Campo Grande, em 1967, e que recebeu o prêmio de melhor
composição, e João Galo, Pistoleiro Matador, que concorreu no Terceiro Festival de
Música Popular Brasileira de Campo Grande, em 1969, conquistando o segundo lugar.
26
Posteriormente, organizou alguns dos Festivais Sul-mato-grossenses de Música,
produzidos pela TV Morena, de 1979 a 1981, onde atuou também como jurado (SÁ ROSA,
2012: 129-132).
Devido ao processo de ocupação de Mato Grosso que desde o início se observa a
heterogeneidade cultural. Segundo Néder (2011, p. 6) o estado era composto por três
regiões bastante distintas em seus aspectos: o sul, ocupado pelo atual Mato Grosso do Sul,
o norte, com características derivadas de sua proximidade com a floresta amazônica, e o
centro, ocupado pela capital Cuiabá. No entanto, Cuiabá terminou por ser referida como o
norte, em decorrência da polarização divisionista que a opôs ao sul, cujo centro passou a
ser a cidade de Campo Grande4.
No cenário musical, como resultado da heterogeneidade e dos intercâmbios
fronteiriços, apresentavam-se diferentes ritmos, tais como o Chamamé5, o Vaneirão
6, o
Sertanejo, a Polca, a Bossa Nova, o Tropicalismo, o Rock, a Música Popular Brasileira e
outros gêneros musicais. No entanto, a partir de 1967, o sul da região passou por uma série
de mudanças no plano de suas produções culturais (musicais). Foi na cidade de Campo
Grande, especificamente, que surgiu, por intermédio da participação de alguns artistas e de
4 Pode-se evidenciar a participação de Guizzo no cenário musical que se estabeleceu na porção sul do estado
de Mato Grosso desde o início da década de 1960. Decorrente de uma região limítrofe entre fronteiras
nacionais, extremo oeste do Brasil abrigava em seu território grandes diferenças. As diversidades sócio-
culturais e étnicas permitiram a conjugação de diferentes acervos, memórias e tradições musicais, resultado
das trocas e do convívio intercultural e da transformação das diferenças através de impactos, tensões e
resistências . As contribuições culturais dos indígenas juntaram-se à dos paraguaios, bolivianos, da região
platina, andina, européia e a brasileira que de forma geral. Tal região, em si, reunia uma grande e
significativa pluralidade cultural (MARIN, 2004, p. 327).
5 O ritmo do Chamamé teve sua origem na Província de Corrientes, na Argentina. É um gênero musical
tradicional desta província, apreciado também no Paraguai várias localidades do Brasil, em Mato Grosso do
Sul, Paraná e no Rio Grande do Sul. Em sua origem se integram raízes culturais dos indígenas Guarani, e dos
exploradores espanhóis. Na Argentina, o chamamé e dançado em compasso ternário, ou seja, valsado. Na
língua Guarani, Chamamé quer dizer improvisação (TEIXEIRA, 2016). Disponível em:
http://www.academia.edu/5219316/Breve_estudo_sobre_o_chamame. Acesso em: 09 de fevereiro de 2016.
6 A Vaneira é executada em andamento moderado, facilmente encontrada em festivais nativistas e em discos
de artistas que utilizam em suas canções temáticas campesinas. O Vaneirão tem um caráter jocoso e possui
um andamento mais rápido, o qual surgiu a partir da necessidade que os músicos percebiam nos bailes, de
que a vaneira era muito lenta para dançar, assim aumentou-se o andamento e criou-se o Vaneirão, também
conhecido como o samba-campeiro. É o ritmo mais apreciado e mais executado nos bailes do Rio Grande do
Sul. Ritmo afro-cubano tal ritmo influenciou vários outros nos países hispano-americanos sendo difundida na
Espanha. Conhecida também como Havaneira, seu nome é uma homenagem à capital de Cuba, Havana.
Chegou ao Brasil por volta de 1866 e influenciou outros ritmos como o Samba, por exemplo. No sul do
Brasil, ganhou outros nomes, de acordo com o andamento da música, a Vaneirinha para o ritmo lento, a
Vaneira para o ritmo moderado (ALVARES, 2007, p. 27).
27
produtores culturais, uma proposta que prometia desenvolver e estabelecer uma
modernização7 artística e cultural na região.
No final da década de 1960, o grupo representado como modernizador, que
correspondia à classe média campo-grandense, defendia inovações estéticas e
performáticas. Ele se mostrava contra alguns alicerces culturais e musicais já cristalizados
e comuns - como aqueles identificados por Rodrigo Teixeira em Os pioneiros (2009) -,
rejeitava a música sertaneja de raiz, que, desde os anos de 1950, figurava como a vertente
musical mais popular nas rádios locais. Tal grupo procurou elevar o aspecto da urbanidade
de Campo Grande e negar o estereótipo de ―grande fazenda‖ tão marcante nas canções
popularizadas na região8.
Para a professora e pesquisadora Maria da Glória Sá Rosa9, os músicos
responsáveis por tal modernização teriam sido as ―revelações‖ do Primeiro Festival de
Música Popular Brasileira de Campo Grande, eram eles Geraldo Espíndola, Paulo
Simões, Rubens de Aquino, José Boaventura, Celito Espíndola, Grupo Acaba, Tetê
Espíndola, Carlos Colman, Lenilde Ramos, entre outros. Segundo Sá Rosa (2012, p. 15-
16), o festival foi promovido pela Aliança Francesa, pelo Jornal do Comércio e pelo
Clube Surian e procurou consolidar as marcas da nova cena cultural que pretendiam. A
temática do mundo rural, tão presente nas produções musicais e que foi o gênero musical
7 Tal modernização estava alinhada aquilo que vinha acontecendo nos grandes centro urbanos no âmbito das
produções musicais, tais como os festivais musicais em São Paulo e Rio de Janeiro. Portanto, tinha-se a ideia
de se desvincular aos processos formadores da musica local, sobretudo a sertaneja.
8 Tais constatações são do músico Geraldo Roca, divulgadas em uma entrevista concedida à Maria da Glória
Sá Rosa (SÁ ROSA; DUNCAN, 2009, p. 79). Vários músicos traziam em suas canções os aspectos ‗rurais‘ e
sertanejos, tais como: Aurélio Miranda, Cruzeiro & Tostão, Tostão & Guarany, Délio & Delinha e outros
(TEIXEIRA, 2009, p. 9-15).
9 Ao longo deste trabalho será feita várias citações aos escritos e pesquisas da autora Maria da Glória Sá
Rosa, os quais correspondem a um importante conjunto de fontes e referências (memorialística e acadêmica)
quando se tratam de história, arte e cultura em Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, torna-se importante, já
neste início, uma breve apresentação de sua participação nestas áreas. Sá Rosa, era cearense, graduou-se em
Línguas, no Rio de Janeiro; fundou e dirigiu a escola Aliança Francesa, na cidade de Campo Grande;
participou da instalação dos primeiros cursos superiores desta cidade, na Faculdade Dom Aquino de
Filosofia, Ciências e Letras, onde trabalhou durante 18 anos. Criou o Teatro Universitário de Campo
Grande, a Revista Estudos Universitários e o Cine-Clube de Campo Grande (o qual participou José Octávio
Guizzo). Produziu o programa Intercomunicação na TV Morena e Mensagem ao Mundo Feminino na Rádio
Educação Rural. Em 1967, passou a trabalhar na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Foi chefe de
departamentos e órgãos culturais e promoveu o Projeto Prata da Casa nesta instituição, responsável por
espetáculos de música ao vivo e edição de álbuns com músicos da região após a criação de MS. Durante anos
foi presidenta do Conselho Estadual de Cultura e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras até
seu falecimento em 2016.
28
mais popularizado, entre as décadas de 1950 e 196010
, deveria ser preterida pelo grupo
modernizador (CAETANO, 2012, p. 42-43).
No entanto, as imagens sertanejas, sobretudo, as influenciadas por ritmos
paraguaios e argentinos, já estavam presentes no âmbito da música popular de Campo
Grande, antes mesmo de 1967, em meados da década de 1950. Para Rodrigo Teixeira
(2009, p. 34), autor do livro Os Pioneiros – A origem da música sertaneja de Mato Grosso
do Sul (2009), os músicos de Campo Grande eram influenciados pelos ritmos sertanejos e
paraguaios. Porém, tinham os seus próprios estilos de interpretar a Polca, a Guarânia e o
Chamamé, estes estilos musicais de um grupo artístico que tinha como divulgadores uma
geração de músicos dos anos de 1950 que se apresentavam em Campo Grande.
Para Teixeira (2009), havia intercâmbios culturais com os países fronteiriços,
sobretudo com o Paraguai e a Argentina. Em 1960, o músico Zé Corrêa, que era
popularmente conhecido na região como o rei do chamamé, mostrava outros modos de
tocar instrumentos típicos da música sertaneja. Dessa forma, contribuía com uma
apropriação singular de interpretar o ritmo característico da Argentina, ao popularizar uma
nova forma de tocar o instrumento acordeon:
Este jeito de tocar o chamamé, que Dino Rocha depois se tornou o
principal representante, ainda é um enigma para a maioria dos
sanfoneiros de outras regiões do país. Por isso, quando os ‗nacionalistas‘
apontam a música fronteiriça como não sendo ‗brasileira‘, há uma
negação de um lado do país que não se ‗enquadra‘ nos moldes do que se
consome e produz artisticamente no litoral do Brasil. O fato é que em
poucos lugares do país os compositores unem três línguas nas letras –
espanhol, guarani e português -, [...] Esta geração de 1950 foi a primeira a
fazer isso no campo da música autoral e esta tradição segue até hoje na
música sul-mato-grossense. É pertinente ressaltar que até o final dos anos
1970, quem dominava a cena artística e ‗ditava‘ as cartas era justamente
Délio & Delinha e companhia. (TEIXEIRA, 2009, p. 35).
Esse cenário musical foi sendo alterado na década de 1950, como resultados de
disputas em torno das novas apropriações culturais que o grupo modernizador se
encarregou de direcionar.
A partir dos anos de 1960, tal grupo assumiria, intencionalmente, a missão
transformadora e modernizadora do padrão rural que marcava a cena musical. Diante de
10 Rodrigo Teixeira é pesquisador da história musical de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e apontou a
presença de aspectos musicais sertanejos popularizados por artistas como Délio e Delinha, Beth e Betinha,
Zacarias Mourão, Amambay e Amambaí, Zé Correa, Dino Rocha, Cruzeiro e Tostão, entre outros. Para mais
esclarecimentos ver: TEIXEIRA, 2009.
29
um cenário político e social que se mostrava conservador e reacionário e que teve, com o
apoio de parte da sociedade brasileira, a inauguração da Ditadura Civil-Militar no país.
A modernização, da maneira como foi pensada pelo grupo, em Campo Grande,
era um empreendimento ligado às necessidades do capital simbólico (cultural) alinhado às
elites pecuaristas da região. Vários outros setores da sociedade, como parte do
empresariado, de artistas sem grande visibilidade e de políticos se apropriavam dos
discursos globais, ligados a ideia de modernização, para fazer avançar suas agendas
próprias, com vistas a controlar o poder no âmbito local/estadual. Fundamentalmente, eram
essas as intenções de vários grupos locais que buscaram se estabelecer no âmbito do poder.
O processo de transformação deste cenário cultural pode ser constatado a partir
dos primeiros festivais estudantis de música de Campo Grande11
. Devido ao início da
transmissão televisiva12 em Mato Grosso, as pessoas puderam ter contato com os
programas de festivais musicais que aconteciam em São Paulo, com a transmissão da TV
Record, a partir de 1965. Grupos de artistas sentiram a necessidade de reproduzir aqueles
festivais em Mato Grosso, principalmente, em Campo Grande. Assim, influenciados pelo
fenômeno ocorrido em São Paulo, promoveram, em 1967, o Primeiro Festival de Música
Popular Brasileira de Campo Grande, no Clube Surian.
É neste contexto que se têm as primeiras participações, oficializadas, de José
Octávio Guizzo no cenário artístico e musical de Campo Grande, que inicialmente não se
vincula ao grupo modernizador da cena cultural dessa cidade. Ele participou desse festival
ao revelar-se como compositor da música Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal, que
concorreu e recebeu o prêmio de melhor composição do evento. Em seguida, em 1969,
Guizzo apresentou-se como compositor de João Galo, Pistoleiro Matador, quando
11
Segundo Fonseca (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 20-27), ocorreram quatro festivais na cidade
de Campo Grande nesse curto período, o 1º Festival de Música Popular Brasileira de Campo Grande, em
1967; a segunda edição deste, em 1968. Em seguida, o 1º Festival Estudantil do Surian, em 1969 e,
anunciado pelo jornal Correio do Estado e pela Rádio Cultura, o 4º Festival de Música Estudantil Campo-
Grandense, em 1972.
12 O início da transmissão televisiva em Mato Grosso contribuiu para o avanço da modernização no Centro-
Oeste brasileiro. Segundo Sotana (2013, p. 1-9), convém indicar que as cidades de Campo Grande e de
Cuiabá, em meados da década de 1960, atendiam os requisitos básicos para obterem a autorização para
funcionamento de uma Emissora televisiva, pois, possuíam populações adequadas, número de residências e
comércio satisfatório que fundamentasse a estruturação do projeto moderno que era a transmissão televisiva.
Em 1963, o grupo dos irmãos Zahran (Eduardo, Nagib Elias e Ueze Zahran) começava a realizar os esforços
para a instalação da terceira emissora de televisão no Centro-Oeste brasileiro.
30
concorreu no Terceiro Festival de Música Popular Brasileira de Campo Grande, e
conquistou o segundo lugar.
A canção Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal teve a contribuição de dois
músicos em sua composição, Paulo Mendonça de Souza e Jorge Antônio Siufi. O primeiro,
conhecido como Paulinho Bateria, esteve encarregado de fazer o arranjo, já que Guizzo,
declaradamente, não tinha habilidades em manusear instrumentos musicais. Após a
apresentação da letra e da melodia, Jorge Siufi foi o intérprete e completou a produção de
Mané Bento. Esta canção, segundo Paulo Simões, foi ―um dos raros exemplos de proposta
regional: ao ritmo da toada sertaneja, os versos descreviam o cotidiano de um vaqueiro do
Pantanal‖, evidenciando uma música que revelava um Pantanal não romântico, com a
realidade do vaqueiro e da prática da cavalgada (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012,
p. 21).
Infelizmente, desta canção restaram apenas os fragmentos das letras, registrados
no livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, de 2012. Os elementos identitários
que figuraram a composição procuraram demonstrar que o homem pantaneiro,
desbravador, indômito, combatente do Sertão, destemido, que busca a liberdade na
natureza, e que sua indumentária não dispensava seu alforje de peão e seu berrante
boiadeiro:
Mané Bento, Vaqueiro do Pantanal
Composição: J. O. Guizzo e P. M. de Souza
De camisa aberta ao peito
Lá vai o Mané Bento
Em cima do alazão fazendo rodeio.
E da morte sem receio
Enfrentando o sertão...
No couro de sua sela/o laço/o pala
O alforje e o berrante
Na cintura a guaiaca
Tendo atrás a faca
E o porte sempre galante
Guizzo, em entrevista, relatou que sem a realização do Primeiro Festival a canção
Mané Bento não teria existido, pois só foi pensada com o objetivo de concorrer. Sua
preocupação era valorizar elementos da região, sendo eleito o Pantanal como objeto a ser
31
tematizado na letra e no ritmo em detrimento de outras escolhas como a do indígena, ou
temas urbanos, por exemplo.
Ocorrido isso, ele pôde efetivar sua intenção de realizar o que já acontecia em
outras regiões, que era estabelecer uma música que valorizasse temas regionais, que
pudessem caracterizar o regionalismo na porção sul do estado de Mato Grosso. Para
Guizzo, mesmo não tendo conhecimento profundo da região pantaneira a qual ele iria
promover, na época foi:
[...] uma oportunidade de contribuir, para que a gente aqui, contasse
coisas da própria região. Porque isso estava acontecendo em outras
regiões, eu não entendia como não se dava conosco. Procurei [então]
alguma realidade cultural, e a que se apresentou de maneira mais
evidente, além da cultura indígena, naturalmente, foi a cultura pantaneira.
Foi até certo ponto uma coisa inconsciente, eu não tinha na época um
conhecimento profundo dos valores da região (SÁ ROSA; FONSECA;
SIMÕES, 2012, p. 52).
Guizzo procurava criar uma proposta musical que pudesse firmar características
culturais que ele via como típicas. No entanto, sua proposta era singularizada em relação às
demais competidoras, que ―seguiam, sem maiores constrangimentos, o figurino das
canções de festival, um gênero híbrido que mesclava a harmonização da Bossa Nova com
letras complexas, elementos folclóricos com vocalizações retumbantes‖ (SÁ ROSA;
FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 21).
As premiações de Guizzo naqueles dois festivais são exemplos da influência e da
valorização que os ritmos sertanejos e fronteiriços tinham, apesar de se difundirem novas
tendências musicais, tais como, da MPB (Música Popular Brasileira), do Tropicalismo e da
Bossa Nova, entre outros estilos musicais já presentes no cenário musical de Campo
Grande. Para Caetano (2012), apesar de Guizzo ter conquistado o primeiro lugar no
festival de 1967, a partir de uma temática regionalista, a maioria das músicas concorrentes
foram inspiradas por estilos musicais que faziam sucesso nos grandes centros urbanos do
país, e que não um ―forte sentimento regionalista‖, como apontou Sá Rosa (2012, p. 16) na
apresentação do livro Festivais de Música de Mato Grosso do Sul.
Fonseca (2012), contradizendo Sá Rosa (2012), afirmou que nas edições do
festival evidencia-se que as demais canções e os músicos participantes não tiveram tanta
expressividade popular como Sá Rosa procurou representar posteriormente. Fonseca
(2012, p. 27) relatou que era difícil rememorar a trajetória exata dos festivais ocorridos em
32
Campo Grande até os últimos, que foram o Festival Sul-mato-grossense de Música e o
Festão, organizados pela TV Morena, em 1979 e 1980, respectivamente:
Torna-se mais difícil reconstruir a trajetória dos festivais que se realizam
na cidade. Além da falta de registros mecânicos, como fitas, livretos,
fotos e reportagens, a própria numeração dos eventos torna-se caótica [...]
A falta de registros materiais deste e dos diversos festivais estudantis que
seriam realizados nos anos seguintes, já se faz sentir pela confusa e
improvável numeração dada aos eventos (SÁ ROSA; FONSECA;
SIMÕES, 2012, p. 27).
Músicos das décadas de 1950/60 que eram frequentadores assíduos do Clube
Surian, relembram que tinham contato com as produções dos grandes centros urbanos, a
exemplo do gênero do Rock. Eles declararam que ouviam inclusive na escola Dom Bosco,
dos padres Salesianos. O músico e pesquisador Álvaro Néder, em sua premiada tese de
doutoramento, mencionou, com base em depoimentos de músicos da região, como Lenilde
Ramos e Miguel Tatton, que havia intensa influência do rock, ritmo que eletrizava os
jovens das metrópoles nacionais e internacionais:
Às lembranças de Lenilde juntam-se as de Miguel Tatton, Miguelito,
experiente músico, compositor, fundador do Zutrik e dos Miniboys (as
bandas mencionadas por Lenilde), dono de empresa de sonorização e
figura também fundamental da música no estado desde os anos 1960.
Este momento se caracterizava na voz de Miguelito (que não viveu na
cidade nos anos 50), por intensa influência do rock e da mesma música
que eletrizava os jovens das metrópoles nacionais e internacionais.
Miguelito menciona também o Colégio Dom Bosco (dos padres
salesianos), como mais um local onde os jovens podiam ouvir a música
do momento (NEDER, 2011, p. 125).
Ou seja, havia o interesse por uma modernização, por sentimentos de atualização
cultural e de manter-se atualizado e conectado com as transformações vivenciadas nos
grandes centros do Brasil e do mundo. No entanto, os discursos de modernização eram
diversos, exprimiam posições subjetivas e plurais, que não se reduziam a um discurso
único, como quiseram incorporar alguns memorialistas, na finalidade de se construir o
regionalismo, consequentemente, práticas sociais, forças de produção e estabelecer
relações de poder. Haja vista que, como apresenta Álvaro Néder (2011, p. 125):
[...] as relações e forças de produção, instituições e práticas da sociedade
são construídas por discursos, tornando-se a base material dos discursos
33
dominantes, os discursos são terrenos da luta política que visa estabilizar
ou transformar os sentidos dessas estruturas e as próprias estruturas, as
instituições e práticas que possibilitam o modo de produção [...]. Entre
estes discursos também é possível encontrar aqueles que favorecem a
manutenção do status quo e aqueles que o desafiam‖.
Os festivais não poderiam ser tão importantes, como quiseram representar a
posteriori, e ao mesmo tempo, sofrerem com a falta de registros, ainda mais quando
tiveram o Jornal do Comércio como um dos seus promotores. Essa argumentação esteve
alinhada a uma apropriação que ―procurava legitimar a existência de uma identidade
regional consolidada, o que estaria incorreto‖ (CAETANO, 2012, p. 48-49). Tal afirmação
contribui para a desconstrução da ideia de que os Festivais se estabeleceram como
formadores da cena musical moderna de Campo Grande. O quadro que os músicos e
ativistas13
procuraram estabelecer não estaria firmemente estruturado como Sá Rosa e
Fonseca (2012) defenderiam após a criação do Estado de Mato Grosso do Sul. Rememorar
os festivais vincula-se a construção identitária sul-mato-grossense ao valorizar a presença
de uma identidade regional já existente e consolidada, anterior à divisão de Mato Grosso.
Há indicativo de que nas demais edições dos festivais, que aconteceram até 1980,
a temática vitoriosa não foi a sertaneja/pantaneira, como ocorreu na primeira edição como
iriam defender o grupo de José Octávio Guizzo e a principal organizadora dos festivais,
Maria da Glória Sá Rosa14
. No festival de 1968 as duas músicas vencedoras evidenciaram
a presença de outras influências como o Tropicalismo e a cultura ―hippie‖. Nesta edição,
venceram as músicas 2001, interpretada pelo grupo Bizzaros15
e O Amor Vence a Cor,
música composta por Lenilde Ramos e que foi inspirada nos movimentos pelos direitos
civis dos negros dos Estados Unidos, isto é, destacou-se a ―canalização da maioria dos
autores para os temas românticos‖ (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 23-26).
13
Entendem-se como responsáveis os principais promotores dos festivais, como Maria da Glória Sá Rosa,
Candido Alberto da Fonseca, Nelson Nachif (diretor social do clube Surian), Ailton Guerra (gerente do
Jornal do Comércio), José Octávio Guizzo, Paulo Simões e alguns outros músicos da cidade de Campo
Grande.
14 A apropriação dos festivais de músicas ocorridos em Campo Grande ocorreria após a criação de Mato
Grosso do Sul, sobretudo, depois de 1979.
15 Originalmente esta canção intitulada 2001 foi gravada pelo grupo Os mutantes, mas, no festival o grupo
Bizzaros (formado por Geraldo Espíndola e Paulo Simões, Mauricio de Almeida, James de Deus e Joao
Clivelarro) foi quem a interpretou.
34
Em 1980, com a realização da segunda edição do Festival Sul-Mato-Grossense de
Música (FESSUL), o ritmo sertanejo voltou a ser premiado. Nessa edição ocorrera
problemas ocasionados pelo aumento do número de concorrentes, e por falhas na
organização realizada pela TV Morena16
– responsável pela transmissão. Como
decorrência, os músicos participantes boicotaram o evento devido à péssima acústica e aos
equipamentos de som perniciosos. Neste festival se destacaram o Grupo Acaba, Geraldo
Espíndola e outros artistas com menor visibilidade ao retomar a valorizar temáticas, que
também foram vencedoras do primeiro FESTÃO, um ano antes, como a imobilidade, os
fatos históricos, o elogio do chão/terra natal/pertencimento/raízes e do Pantanal (NEDER,
2011, p. 271).
Segundo Gilmar Lima Caetano (2012, p. 48), ―não existiu nada próximo a um
sentimento regionalista‖, como se defendeu no livro Festivais de Música de Mato Grosso
do Sul, de autoria de Maria da Glória Sá Rosa, Carlos Alberto da Fonseca e Paulo Simões.
Pelo contrário, eles foram, ―uma caricatura, em boa medida inconsciente, da própria
modernização da cena artística urbana da cidade de Campo Grande‖. Caetano (2012, p. 48-
49) alertou, por exemplo, que os próprios músicos responsáveis pela pesquisa e publicação
do referido livro, relativizaram a ressonância dos festivais, que até então atingia apenas
círculos restritos de pessoas ligadas às atividades artísticas.
Também não ocorreu a consolidação da tendência modernizadora que enaltecesse
temas regionais no cenário dos festivais. Havia uma diversidade de influências musicais,
como aquelas mais próximas das duas canções do Guizzo com características sertanejas, as
advindas do Tropicalismo, do samba-exaltação, da bossa-nova, dos sons românticos, entre
outras, além daqueles presentes nos festivais televisivos das cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro, que foram os modelos para a realização daqueles de Campo Grande. Isso é
constatado, no fato de ―muitos artistas sagraram-se vencedores em diferentes categorias,
apostando em canções como Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, A Banda, de Chico
Buarque e Disparada, de Geraldo Vandré, tidos como sucessos da música brasileira do
final dos anos 1960 e início dos anos 1970 (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 26-
29).
16
Em 1963, o grupo dos irmãos Zahran (Eduardo, Nagib Elias e Ueze Zahran) começou a realizar esforços
para a instalação da terceira emissora de televisão no Centro-Oeste brasileiro. Em outubro de 1965, houve a
instalação da TV Morena – canal 42, a primeira emissora do então Estado de Mato Grosso. Depois de onze
anos de funcionamento, em 1976, a emissora assinou um contrato de afiliação com a Rede Globo.
35
Em decorrência desses festivais de música, a geração de artistas vistos como
―sertanejos‖ e ―fronteiriços‖, dos quais Guizzo se filiava, começou a declinar no final dos
anos de 1970 e na década de 1980. Eles enfrentaram a concorrência com os ritmos sulinos,
como o Vaneirão, que se popularizou em Mato Grosso e que mudou o panorama do
mercado musical, antes basicamente composto pelo gênero ―fronteiriço‖ (TEIXEIRA,
2009, p. 35).
Ao final da década de 1970, o grupo modernizador, também era o resultado de
uma miscelânea de diversos músicos e compositores que entendiam a música de formas
diferentes. José Octávio Guizzo, manteve afinidades e alinhamentos sócio-políticos com o
grupo responsável por aqueles festivais realizados em Campo Grande e passou a se
destacar no cenário cultural. Contudo, por fim, ele divergia a respeito de como deveria ser
a verdadeira música regional. Em suma, o campo musical de Campo Grande era
complexo, diversificado e competitivo tanto em relação aos ritmos, aos estilos e a
utilização dos instrumentos.
1.1. A divisão de Mato Grosso, o surgimento de Mato Grosso do Sul e as
contribuições de José Octávio Guizzo na construção da identidade (1977-1983)
As participações de José Octávio Guizzo nos festivais e suas relações de amizade
com os organizadores contribuíram para uma progressiva atuação junto às instâncias
culturais e políticas da cidade, sobretudo, aos setores que organizavam e administravam as
políticas culturais. Contudo, seu trabalho não representou um total alinhamento quanto ao
entendimento das características regionais e das estéticas musicais em relação ao grupo
modernizador. As letras de suas canções procuravam evidenciar um paradigma rural,
campeiro, tipicamente pantaneiro, distinto daquele ―urbano‖, como sugeririam as canções
vitoriosas dos festivais posteriores.
A influência de Guizzo no cenário cultural, sobretudo no musical, de Campo
Grande foi sendo construída, a partir de suas amizades com os intelectuais e os agentes
políticos17
do âmbito cultural, por meio de suas participações artístico-musicais e de seu
17
Professores universitários como Maria da Glória Sá Rosa, Idara Duncan, entre alguns outros foram,
durante certo tempo, intelectuais influentes nas políticas culturais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Ver: ROSA; MENEGAZZO; RODRIGUES, 1992.
36
declarado interesse no desenvolvimento de pesquisas sobre aspectos culturais. Tais ações
contribuíram para que ele pudesse, posteriormente, vir a organizar alguns dos Festivais
Sul-mato-grossenses de Música, os de 1979, 1980 e 1981, todos produzidos pela TV
Morena, e a participar como jurado (SÁ ROSA; SIMÕES, FONSECA, 2012, p.129-132).
No plano político a atuação de Guizzo foi alargada a partir de 1977, após a divisão
político-administrativa do estado de Mato Grosso. Tal processo se deu no contexto da
política brasileira da segunda metade do século XX, especificamente, sob a ordem dos
militares. O golpe de 31 de março de 1964 pôs fim a um período democrático no Brasil e
inaugurou a ditadura civil-militar. Os militares buscavam, durante este período autoritário,
controlar a sociedade com vistas à segurança nacional. Isso permitiu a criação de
programas que facilitariam o desenvolvimento de alguns Estados de fronteira, entre eles o
de Mato Grosso. Neste período, alguns políticos divisionistas se aproximaram dos
representantes militares, o que colaborou para que integrassem parte de algumas comissões
que estudaram (secretamente) as potencialidades políticas que colaboravam e as que
impediam a divisão18
do estado de Mato Grosso (VIEIRA, 2010, p. 162-163).
Imagem 1 – Territórios de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, antes e depois da divisão de 1977
18
Sobre a discussão a respeito do processo histórico que envolveu a divisão de Mato Grosso, se já havia ou
não algum movimento estruturado antes do fato, têm-se pesquisas e bibliografias que discorrem e debatem tal
movimento, por exemplo: WEINGARTNER, 2002; QUEIROZ, 2006; BITTAR, 1997; AMARILHA, 2006;
SILVA, 2006; entre outros.
ANTES DEPOIS
37
Fonte: http://www.educamor.net/mapas-da-formacao-regional-no-brasil.html
Fazendo uso de seus poderes arbitrários, conferidos, sobretudo, pelo AI-5, o
general-presidente Ernesto Geisel, colocou o Congresso em recesso no mês de abril de
1977 e decretou um conjunto de mudanças constitucionais, com vistas a garantir o poder
político nas mãos dos militares – que viria receber o nome de Pacote de Abril. Tal
alteração proporcionaria a criação de mais um estado e, consequentemente, mais três
senadores e quatro deputados para apoiá-los (FLEISCHER, 1994, p. 177).
Após modificações, negociações e acordos políticos, Geisel assinou, em 11 de
outubro de 1977, a lei complementar n.º 31 que, por fim, criou o estado de Mato Grosso do
Sul, em decorrência do desmembramento do território de Mato Grosso, e estabeleceu como
capital do novo estado federativo a cidade de Campo Grande.
Como demonstrou Marisa Bittar (1999, p. 126), a divisão foi justificada por
motivos ligados à questão geopolítica e a interesses imediatos dos militares19
. Constatou
também que a população viu de forma inesperada a medida efetivada no Congresso
Nacional:
É importante perceber, inclusive, que a divisão oriunda desse contexto,
isto é, prescindindo da participação popular, completou a trajetória do
―movimento divisionista‖ como demanda que esteve sempre vinculada às
elites políticas e econômicas do sul de Mato Grosso. Exceto por ocasião
da coleta das 20 mil assinaturas levadas à Constituinte em 1934, o
―movimento‖ nunca teve feição popular (BITTAR, 1997, p. 230).
19 Historiadores como Paulo Cimó Queiroz (2006) e Marisa Bittar (1997, 1999, 2009) orientam que os
movimentos conduzidos pelo intuito da divisão de Mato Grosso não se constituíram processos únicos, muito
menos contínuos. Pelo contrário, Bittar aponta que nunca houve, nesta região, um movimento divisionista
propriamente dito, mas sim, proposições com intenções divisionistas e separatistas, espalhadas ao longo do
século XX. Além do mais, Queiroz, responsavelmente, alertou que não há fundamentos históricos que
possam sustentar a ideia tão disseminada pela história oficial de Mato Grosso do Sul – uma história
produzida, sobretudo, pelo Instituto Histórico e Geográfico do estado – de que houve uma posição
homogênea e até mesmo estendida à população que pudesse se manter justa ao ideário de criação de um novo
estado. Enfim, pode-se perceber que mesmo sob as divulgadas ideias sobre a criação de Mato Grosso do Sul,
no âmbito da historia oficial, como a realizada pelo historiador do IHGMS, Hildebrando Campestrini, o qual
pautado em autores reverenciados por uma história oficial do Estado, contribuem para a efetivação de uma
história memorialista de Mato Grosso do Sul. Em suma, não é prudente considerarmos que a criação deste
estado se deu por pressões de grupos locais instituídos de poderes.
38
Com a divisão de Mato Grosso e a implantação de Mato Grosso do Sul20
, entre
1977 e 1979 respectivamente, Guizzo engajou-se como pesquisador da cultura.
Prontamente, publicou as obras A Moderna Música Popular Urbana de Mato Grosso do
Sul, em 1982, Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica,
inteiramente sonorizado, em 1984, e, após o seu falecimento, Glauce Rocha: atriz, mulher,
guerreira, em 1996. Ainda é de sua autoria, um artigo que foi veiculado na Revista MS
Cultura, intitulado Histórias e estórias de uma velha pendenga revisitada, em 1985, onde
constatava a existência de diferenças culturais, assim como de identidades regionais
distintas entre o norte e o sul de Mato Grosso.
Após fundar a produtora Seriema Filmes, juntamente com os amigos João José de
Souza Leite e Candido Alberto da Fonseca, também teria dirigido dois curtas-metragens:
Conceição dos Bugres, em 1980, e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – 10
Anos, em 1989, este último tendo roteiro e direção dele. Os produtores da Seriema Filmes
ainda tentaram produzir um longa-metragem sobre a história de Silvino Jacques, um
gaúcho que chamavam de Robin Hood da região, porém o filme não foi finalizado devido a
falta de recursos e embargo da família de Silvino Jacques (GEHLEN; HERRERO, 2011, p.
69-71).
Com a criação de Mato Grosso do Sul surgiu a necessidade de construir uma
identidade distinta21
, que pudesse diferenciá-lo de Mato Grosso. As produções de Guizzo
estavam direcionadas nesse projeto. Segundo Maria da Glória Sá Rosa (2003, p. 99), ―após
a divisão do estado de Mato Grosso, a busca pelas raízes da cultura sul-mato-grossense era
uma verdadeira obsessão para Guizzo‖. Também, Américo Calheiros testemunhou que
Guizzo alterou a visão que se tinha da cultura em Mato Grosso do Sul, pois, suas atuações
enquanto pesquisador e músico foram importantes nesses campos (CALHEIROS, 2009). O
conjunto da sua obra revela que a construção de uma região ―também é produto dos
devaneios, dos sonhos, das utopias, dos investimentos imaginários, das simbologias, dos
mitos, das lendas, das invenções poéticas e estéticas dos homens‖ (ALBUQUERQUE,
2008, p. 62).
20
Em virtude do objeto proposto e do recorte temporal estabelecido nesta pesquisa nos atentaremos,
sobretudo, as questões que envolveram, após a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, as ações culturais e
as medidas políticas tomadas pelo novo governo e efetivadas institucionalmente por José Octávio Guizzo.
21A identidade regional cria uma coletividade, um companheirismo e laços de afetividade entre os habitantes
de um mesmo território, ou seja, forja subjetividades. As regiões, assim como o regionalismo, são
construções discursivas e simbólicas, que forjam homogeneidades e diferenças.
39
Como intelectual22
preocupou-se em pesquisar aspectos culturais que
envolvessem a música, a identidade, a cultura, o teatro, as artes plásticas, o cinema, o
artesanato e a literatura, produzidos na região e que, a partir de 1977, passaram a ser
reivindicados como constitutivos da cultura de Mato Grosso do Sul.
Entretanto, há questões interpretativas sobre a divisão de Mato Grosso que foram
construídas ao longo da história e que contribuem para uma ideia de que já existia uma
vontade latente e contínua de separação. Há vertentes e perspectivas que justificam, de
forma implícita, uma separação que ―sempre‖ foi almejada e defendida, ou seja, de que
Mato Grosso do Sul ―sempre foi‖. Nesse sentido, tem-se como exemplo de análise um
aparente paradoxo, discutido por Bungart Neto (2012), ao expor o fato da autonomia
política de Mato Grosso do Sul ter ocorrido somente no final da década de 1970, mas, que
de alguma forma episódios como a Guerra do Paraguai e o apoio de grupos da região dado
à Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932, tornarem-se manifestações
culturais de um povo com identidade própria e que, portanto, exigia reconhecimento
oficial. A análise realizada por Bungart Neto (2012) é crítica em relação a construção da
memória. Ao propor como conclusão parcial, em recente pesquisa, que a memória sul-
mato-grossense é um paradoxo como:
[...] uma espécie de paradoxo pessoano, no qual, a despeito de sua rica
história cultural, sua autonomia política é tão recente e ainda em
construção que nos autoriza a pensar que o Mato Grosso do Sul, nossa
Lisboa povoada pela insistência de outros Ulisses, já existia antes de
―ser‖, implicitamente e por maneiras diversas, existia em estado latente
em Aleixo Garcia, Antônio João e Vespasiano Martins, e, a partir de
1977, passa de fato a existir autonomamente, explicitamente, em todas as
acepções e com o reconhecimento protocolar do qual esta identidade
híbrida, secular, conquistada a custo, sempre foi merecedora,
orgulhosamente merecedora (NETO, 2012, p. 74-75).
Para Guizzo (2012, p. 11), era necessário pesquisar e sistematizar o acervo
cultural deste novo estado para torná-lo conhecido não só em Mato Grosso do Sul como
também no restante do Brasil. Porém, ele alertava que uma das dificuldades encontradas
para a realização de tal ―missão‖ era a inexistência de arquivos e a desorganização dos
22
Para Antonio Gramsci cada grupo social fundamental com papel decisivo na produção engendra seus
próprios intelectuais, ditos ―orgânicos‖. Tais intelectuais são os responsáveis pela forma do Estado e da
sociedade, são os ―funcionários da superestrutura‖, que terminam por moldar o mundo à imagem e
semelhança da classe fundamental. Dado às proporções, muito deste conceito pode ser ponderado em relação
às atividades culturais de José Octávio Guizzo. Para mais ver: SEMERARO, 2006, p. 379.
40
poucos existentes em Mato Grosso do Sul e o fato dos arquivos existentes estarem em
Cuiabá. Outro problema era a falta de sistematização e de organização dos acervos no
Arquivo Público de Mato Grosso dificultando o estabelecimento de uma pesquisa
fundamentada em fontes. Para superar esses impasses defendeu a necessidade de criar um
arquivo público em Mato Grosso do Sul. Na introdução de A Moderna Música popular
Urbana de Mato Grosso do Sul, de 1982, Guizzo expôs que:
Se o estado unificado já padecia da falta de sistematização de seu acervo
documental, o Mato Grosso do Sul, ao adquirir a maioridade, viu-se na
contingência de não deter, nos limites de seu território, um arquivo
público, sequer, de suas fontes primárias. Assim é que toda e qualquer
pesquisa que envolva o nosso passado histórico cultural deve ser
desenvolvida, para ser levada a bom termo, nas capitais de Mato Grosso,
São Paulo, Rio de Janeiro e, no exterior, Lisboa (GUIZZO, 2012, p. 11).
A sua participação e atuação no meio cultural como músico, pesquisador e
produtor de cinema e seus conhecimentos como advogado contribuíram para que, em 1980,
Guizzo fosse nomeado, sob o governo de Pedro Pedrossian, assessor jurídico da Secretaria
de Estado de Desenvolvimento Social, uma repartição que englobava o departamento de
cultura, o de esporte e o de promoção social.
A indicação para essa função possibilitou-lhe integrar o Conselho Estadual de
Cultura, um órgão que tinha o objetivo de pesquisar, discutir e fomentar atividades
artísticas no estado. Guizzo, ao lado de outros intelectuais e pesquisadores, tais como a
professora Thie Higuchi dos Santos, o sociólogo Paulo Eduardo Cabral e o médico Silvio
Torrecilha Sobrinho, formularam políticas culturais para o novo estado.
Como resultado, elaboraram o Documento Preliminar – Política Estadual de
Cultura, publicado em 1981, e que teve como fonte referencial o professor sociólogo João
Vieira e o então presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, o
médico Paulo Coelho Machado. O documento estabeleceu quatro diretrizes que seriam
fundamentais para as políticas públicas na esfera cultural. As preocupações principais eram
a construção da identidade sul-mato-grossense, a preservação dos patrimônios material e
imaterial, a interiorização das ações culturais e a democratização do acesso a bens e
serviços culturais, como refere-se o documento:
1. Criar e desenvolver mecanismos que possibilitem à comunidade sua
auto-identificação: com o objetivo de detectar a identidade cultural de
Mato Grosso do Sul; 2. Preservar a identidade cultural de Mato Grosso do
41
Sul: com o objetivo de garantir coesão social, através da defesa de valores
representativos que assegurassem a unidade nacional, respeitada a
diversidade regional; 3. Descentralizar e deselitizar as ações culturais:
com o objetivo de interiorizar as ações governamentais no setor cultural,
valorizar e prestigiar as manifestações locais e espontâneas; 4.
Democratizar o acesso a bens e serviços culturais: com o objetivo de
maximizar a produtividade do setor cultural, implementando a produção,
distribuição e consumo desse bens e, concomitantemente, atuando na
defesa daquela identidade (MATO GROSSO DO SUL, 1981, p. 11).
Os objetivos anunciados neste documento mostram uma preocupação importante
para a construção da identidade e de subjetividades. Existia a intenção de fabricar corações
e mentes sul-mato-grossenses, daí a preocupação em popularizar aquilo que era eleito
como sendo a cultura e as tradições locais.
Até o lançamento do Documento Preliminar, quando a administração de Mato
Grosso do Sul estava sob a responsabilidade do governador Pedro Pedrossian23
, as políticas
culturais estavam entre as iniciativas da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social
por intermédio do Conselho Estadual de Cultura e de algumas outras instituições públicas
e privadas, como a já mencionada TV Morena com os festivais de música, a Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul e o jornal Correio do Estado, que reivindicavam a
necessidade de fugir da ―nefasta ação do colonialismo cultural externo‖, conforme matéria
publicada em 1988, que citou a crítica de Guizzo sobre a ―invasão‖ da indústria cultural de
massa:
Como Estado próximo ao eixo São Paulo-Minas, somos mercado franco
favorito, via indústria de massa, a ser mero agente importador de
produtos culturais daqueles grandes centros‘, explicou Octávio Guizzo.
‗Para fugirmos a essa influência, e também à nefasta ação do
colonialismo cultural externo, temos, urgentemente, que resgatar a nossa
memória e fortalecer os nossos traços culturais básicos, espelhando as
formas de manifestações culturais do sertão, do serrado, que são
múltiplas e não codificadas‘. (CORREIO DO ESTADO, 1988, p. 8).
O projeto cultural de Guizzo, idealizado em suas obras e estruturadas nas políticas
defendidas pelo Conselho Estadual de Cultura era valorizar os elementos típicos de Mato
Grosso do Sul nos ritmos musicais, nas tradições culturais, nas características raciais, na
alimentação e nos dialetos.
23
Pedro Pedrossian foi governador de Mato Grosso no período de 1966 a 1971. Após a criação de Mato
Grosso do Sul, assim como Harry Amorim Costa, em 1979, Londres Machado, em 1979, Marcelo Miranda
Soares, entre 1979 e 1980, foi nomeado pelos militares e assumiu como governador entre 1980 e 1982. Uma
década depois, em 1991, retorna a tal posto — neste caso, em decorrência do pleito direto ocorrido em 1990.
42
A partir de 1981, com a publicação do livro A moderna música popular urbana de
Mato Grosso do Sul, teve seus interesses direcionados publicamente a uma militância
intelectual e política, ao propor um modelo cultural que vinha se alicerçando mediante suas
pesquisas, artigos em jornais e entrevistas concedidas às revistas locais.
A edição de janeiro do mesmo ano da revista Grifo trazia como principal matéria
uma síntese de discussões que ocorreram nos círculos de artistas e de intelectuais
preocupados com a temática da cultura e da identidade. Desse modo, naquele primeiro mês
de ―independência‖ de Mato Grosso do Sul a revista publicou excertos dessas discussões,
predominantemente a matéria foi marcada pela exposição das ideias de Guizzo.
Ao ser questionado sobre a existência de uma cultura sul-mato-grossense e onde
ela seria mais fácil de ser identificada, Guizzo deixou bem claro sua compreensão sobre o
processo formador da região. Ele negou qualquer proximidade da cultura do ―norte‖, ou
seja, da cidade de Cuiabá, com a de Mato Grosso do Sul. As diferenças culturais entre o
norte e o sul de Mato Grosso fundamentavam-se:
[...] pelo lado histórico, pelo processo de colonização do Mato Grosso
[...] Cuiabá viveu uma época de fausto, e toda a cultura mato-grossense,
até nossos dias, pode-se dizer que está lá em Cuiabá. Tanto é que no meu
modo de pensar nós não temos nada a ver com a cultura do norte. O Mato
Grosso do Sul foi descoberto praticamente com a Guerra do Paraguai.
Sofremos um processo de colonização completamente diferente
(GUIZZO, 1979, p. 41).
A identidade é relacional, ou seja, é construída por meio de diferenças em relação
aos outros. Para Silva (2000, p. 74-75), ―a noção de identidade e de diferença tem uma
estreita relação de interdependência e não se esgota em si mesma‖. A afirmação apresenta-
se porque existem outros indivíduos que não são sul-mato-grossenses. A identidade tem
que ter sentido. Se se pensar em um mundo fictício, totalmente homogêneo, onde todos
partilhassem da mesma identidade, as afirmações dela própria não seriam necessárias. Não
há necessidade de se afirmar o que é óbvio, o que é evidente.
Para a formação das identidades são fundamentais as presenças do elemento
cultural (uma vez que identidade e diferença são criações sociais e culturais); do simbólico
(já que os signos que constituem a linguagem não tem sentido se considerados
isoladamente); e do poder (pois a definição da identidade, sendo discursiva e linguística,
está sujeita a vetores de força, as relações de poder). Assim, Silva (2000, p. 81)
complementa:
43
Na disputa pela identidade está envolvido uma disputa mais ampla por
outros recursos simbólicos e materiais da sociedade a afirmação da
identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes
grupos sociais, assimetricamente situados de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em
estreita conexão com relações de poder.
Guizzo desqualificou a participação de ascendentes de estrangeiros como os
sírios, os libaneses e os japoneses, ao afirmar que tais grupos não procuraram se integrar
ficando excluídos do processo da formação cultural sul-mato-grossense. Expôs enclaves
étnicos que alimentam os preconceitos de origem geográfica e de lugar, representando-os
como isolados e desinteressados em se integrarem à cultura local:
Para cá vieram os gaúchos, os paulistas, os mineiros e mais tarde os
paraguaios. No meu ponto de vista acho que o germe do movimento
separatista está justamente aí: por não ter havido uma integração cultural
do sul com o norte do Estado. A partir daí houve um aprofundamento das
divergências sociais, políticas, econômicas [...] depois de tudo isso que eu
falei ainda vieram os nortista; pelas fronteiras, os paraguaios, os
bolivianos; pela via férrea vieram os sírios, libaneses, os japoneses...
Todos têm suas manifestações folclóricas, que procuram manter isoladas,
não procuram se integrar, participar desse processo de formação cultural
sul-mato-grossense (GUIZZO, 1979, p. 41).
Em 1979, Guizzo formulou a sua primeira crítica pública à influência cultural,
―moderna‖, que advinha da região da cidade de São Paulo e do Rio de Janeiro, estados
estes que configuravam, certamente, o centro das produções e das manifestações midiáticas
que envolviam a música. Assim, advertiu sobre ―a colonização cultural que nós sofremos
do eixo Rio - São Paulo. Isso vem descaracterizar ainda mais as pobres manifestações
culturais que temos aqui‖ (GUIZZO, 1979, p. 41).
Quando os entrevistados, que debatiam as questões publicadas naquela matéria
em Campo Grande um ano antes, foram indagados sobre as manifestações carnavalescas
que ocorriam na região, Guizzo demonstrou, claramente, o que com o passar dos anos viria
ser sua ―missão‖ obsessiva: a criação de uma identidade cultural. Sua missão era costurar
todas as diferenças e transformá-las em uma unidade:
Nós temos hoje no Mato Grosso do Sul uma sociedade cosmopolita, uma
salada cultural em Campo Grande. A partir daí você tem que traçar os
rumos para criar, digamos assim, um universo cultural próprio, uma
44
linguagem própria. Cada povo tem sua cultura. Nós temos que descobrir a
nossa (GUIZZO, 1979, p. 42).
Guizzo procurou direcionar e estabelecer tradições puras que estivessem distantes
das influências dos grandes centros urbanos e elegia como referência, o Pantanal, o Sertão
e o Cerrado. O texto da revista Grifo evidencia que os seus paradigmas de identidade e do
modelo de cultura estavam voltados à eleição e ao estabelecimento de características
artísticas e musicais que pudessem ser considerados como legítimos e típicos da região.
Guizzo procurou instituir uma homogeneização para o diversificado e complexo campo da
produção musical.
O cenário artístico da cidade de Campo Grande durante a década de 1980
colaborou para que os grupos de sertanejos tão presentes durante as décadas de 1950 e
1960, acabassem sendo relegados, mesmo tendo obras maiores e significativo respaldo
popular, sobretudo, no que tange a quantidade de discos gravados por eles e o vultoso
número apresentações em festas. Nenhum artista sul-mato-grossense gravou mais que
Délio & Delinha ou Dino Rocha, por exemplo (TEIXEIRA, 2009, p. 35).
No que tange aos aspectos musicais Guizzo procurou estabelecer como marcas
identitárias os elementos os cenários do Pantanal, os hábitos alimentares, as cores
regionais, a música, a dança, a fronteira com o Paraguai e o modo de falar dos sulistas (de
Mato Grosso Uno), com o intuito de produzir sentidos e a finalidade de criar ―um sistema
de representação cultural‖ que pudesse gerar subjetividades, ou seja, sentimentos de
pertença coletiva (HALL, 2006, p. 49). Uma região, no caso Mato Grosso do Sul, além de
uma delimitação territorial deveria ser, também, uma comunidade simbólica, e é
justamente nisso que Guizzo investiu: a criação de corações e mentes sul-mato-grossenses.
1.2. Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul: José Octávio Guizzo e a defesa
de uma música regional
As propostas de Guizzo eram como ―sistemas simbólicos‖, que objetivavam
funcionar como instrumentos capazes de forjar subjetividades e criar representações para a
legitimação da identidade. Nesse sentido, ele procurou impor uma padronização para os
ritmos e para as letras, que deveria privilegiar os aspectos físicos-naturais da região,
sobretudo, do Pantanal.
45
Havia outros grupos ligados à música, que estavam preocupados em estabelecer
aspectos musicais urbanos, modernos, e que, de certa forma, ainda figuram no cenário da
música regional, tais como, os irmãos Geraldo, Alzira, Celito e Tetê Espíndola, que foram
integrantes do grupo Tetê e o Lírio Selvagem, que teve o primeiro disco lançado no mesmo
ano da emancipação político-administrativa do estado de Mato Grosso do Sul, em 1979. O
ocorrido representou o primeiro disco autoral de músicos sul-mato-grossenses. Tem-se,
ainda, Lenilde Ramos, Guilherme Rondon, Almir Sater, Paulo Simões, Geraldo Roca,
entre outros (CAETANO, 2013, p. 112).
Nesse contexto, grupos se mostravam em disputa para impor um modelo de
região. Para Bourdieu (2011, p. 111), tais ações são atos, são a:
[...] imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para
assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)
dando reforço de sua própria força às relações de força que as
fundamentam e contribuindo assim, para a domesticação dos dominados.
O papel desempenhado por José Octávio Guizzo na construção da identidade sul-
mato-grossense, sobretudo, ao se preocupar em estabelecer uma região acaba por mostrar
que um estado evidencia que as regiões são construções de um dado espaço, que, por fim,
configuram-se em atos, práticas e objetivos de fazer existir. Nesse sentido, os discursos
representados por Guizzo agem como instrumentos de objetivação da realidade, de um
espaço, onde este passa a existir e a reconhecer-se como diferente, como sul-mato-
grossense.
A produção, tanto de instituições culturais, como de personalidades, de práticas
sociais ou dos próprios sujeitos, é realizada por discursos. Eles são materiais porque levam
as pessoas a praticarem atos materiais convenientes à eles. Ao fazê-lo, os discursos (e as
pessoas, movidas por estes discursos) constroem o social, as práticas sociais e as
instituições. No entanto, visto a pluralidade de discursos presentes na sociedade, tanto
dominantes como subalternos, tanto integrados como críticos, verifica-se a oportunidade de
oposição aos discursos dominantes, logo de cada prática, instituição e sujeito. A música,
enquanto instância discursiva, possibilita o embate entre os discursos conflitantes, e
adquire materialidade na medida em que reforça o status quo ou arrojam à transformações
sociais e políticas (NEDER, 2011, p. 475-481). Guizzo, procurava estabelecer e impor um
novo e único paradigma identitário.
46
A disputa entre forças simbólicas ocorrida em Mato Grosso do Sul, representadas
pelos modernizadores ou pelos sertanejos/rurais, na qual estava em jogo o poder para
instituir uma música, consequentemente, envolvia o estabelecimento do poder para definir
uma identidade musical determinada, que deveria estar ancorada em uma realidade que
fosse possível de ser assimilada e percebida. Pois, a construção das identidades está
terminantemente transformada em relações de poder, como teorizou Roger Chartier:
A história da construção das identidades sociais encontra-se assim
transformada em uma história das relações simbólicas de força. Essa
história define a construção do mundo social como êxito (ou fracasso) do
trabalho que os grupos efetuam sobre si mesmos – e sobre os outros –
para transformar as propriedades objetivas que são comuns aos seus
membros em uma pertença percebida, mostrada, reconhecida (ou
negada). Consequentemente, ela compreende a dominação simbólica
como o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as
identidades impostas que visam assegurar e perpetuar seu assujeitamento
(CHARTIER, 2002, p. 11).
As disputas sucedidas e as relações de poder firmadas para estabelecer como
deveria ser a música regional se deram em variados campos, como no político, no cultural
e no intelectual. Nesse sentido, Bourdieu (2011, p. 68), orienta que há diversos campos,
tais como, o campo religioso, o científico, o de poder e o intelectual, que disputam o poder
em torno da autoridade de falar, de atestar e definir algo. Para este sociólogo, as relações
de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes, permeiam todas as
relações humanas e todos os campos que fazem parte do espaço social.
O campo é o espaço de práticas específicas, nas relações do campo de poder em
que estavam em disputas as forças políticas representadas por Guizzo e aquelas que se
colocavam contrárias à definição reduzida da cultura e da música que ele defendia como
regional. O campo então tem determinada autonomia, munido de uma história própria,
caracterizado por um espaço de possíveis, que tende a orientar a busca dos agentes,
definindo um universo de problemas, de referências, de marcas intelectuais, relacionadas
umas com as outras (LIMA, 2010, p. 14). Ele é estruturado pelas relações concretas entre
as posições de determinados agentes e de instituições que conduzem a forma de suas
interações, conservam ou transformam aquilo que querem instituir e defender. Dessa
forma, para Bourdieu (1996, p. 61):
47
É no horizonte particular dessas relações de força específicas, e de lutas
que tem por objetivo conservá–las ou transformá–las, que se engendram
as estratégias dos produtores, a forma de arte que defendem, as alianças
que estabelecem, as escolas que fundam e isso por meio dos interesses
específicos que aí são determinados.
Portanto, o que configurava um campo em Mato Grosso do Sul eram as posições,
as lutas concorrenciais e os interesses em controlar o poder simbólico. As ações políticas e
culturais de Guizzo são analisadas sob a perspectiva de que são disputas e se caracterizam
por relações de poder, seja no espaço social ou no âmbito cultural da música. Como a ideia
de teoria dos campos24
, de Bourdieu, que é presumida pela estrutura de todos os campos,
que envolvem, sobretudo, as lutas concorrenciais, quer dizer, a disputa pelo poder entre
seus diferentes agentes. Mais do que isso, na esfera cultural, o poder tem relação com a
disputa pela autoridade, pela legitimidade, pela autenticidade e pelo domínio dos signos,
dos sentidos e das interpretações, no caso, pelo poder de impor uma identidade (LIMA,
2010, p. 14).
Na busca pela criação da identidade regional Guizzo criou discursos e políticas
culturais que procuraram engrandecer a imagem do Pantanal como paraíso natural
especificamente de Mato Grosso do Sul, e outro que demonizava alguns ritmos musicais
como, por exemplo, o rock. Enfim, discursos regionalistas como esses, muitas vezes,
acabam por contribuir para produzir aquilo que ele descreve ou designa, isto é, ao trazer à
existência a região Mato Grosso do Sul.
Entende-se que a região é uma delimitação simbólica resultante destes discursos,
que geram representações, e se configuram como práticas culturais que buscam apreender
e estruturar o mundo com modos de pensar a realidade e de construir as identidades. Essas
percepções do real, ou seja, as representações, ―não são de forma alguma discursos
neutros, ao contrário, produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas,
culturais) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a
legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas‖ (CHARTIER, 1990, p. 17).
24
Essa teoria geral dos campos é fruto das análises realizadas sobre os diversos campos que foi sendo
cristalizada ao longo da obra de Pierre Bourdieu (1990, 1996, 1998, 2011).
48
A justificativa de que o estado de Mato Grosso do Sul deveria ser visto como
―pantaneiro‖ estava ancorada nos discursos de Guizzo, ao defender que algo singular25
, que
fosse demarcado, em sua maior parte, no território deste estado deveria ser divulgado,
neste caso, o Pantanal. Apenas as músicas com raízes sertanejas e que tematizassem o
Pantanal deveriam ser promovida e elevada à música regional.
Guizzo quis controlar os caminhos que deveriam percorrer a cultura à identidade
regional. Suas práticas discursivas projetaram uma noção espacial do território de Mato
Grosso do Sul e revelaram investimentos diretos no controle da definição da identidade
sul-mato-grossense, que buscou trazer à existência um estado com os moldes culturais de
uma elite26
agrária que controlava o poder, por conta de sua importância econômica e que
influenciava a política estadual.
Guizzo, especialmente, ao empenhar-se em definir o que seria a identidade
musical de Mato Grosso do Sul, propôs a criação e a valorização de uma música regional
sob moldes singulares, que fosse diferente daquilo que era produzido nos centros urbanos,
deveria, portanto, ser próxima à tradução da realidade natural e pantaneira.
A construção dessa identidade perpassou pela distinção de um outro, e pela
promoção de um nós. Para Todorov (1993, p. 215) o conceito de nós é a unidade cultural
que nos identifica que nos diferencia e de outro é tudo aquilo que não é partilhado pelo
nós. Nesse contexto desta pesquisa o outro corresponde ao mato-grossense, e o nós ao sul-
mato-grossense.
Partindo do pressuposto de que a dinâmica dos processos vividos e as relações
internas e externas constroem as identidades que não estavam determinadas nas aspirações
de nenhum de seus atores, seja ao se tratar do nós, seja ao se tratar do outro, o sujeito toma
consciência de si somente através dos enunciados e das representações repassadas a ele por
meio de outrem (BAKHTIN, 1992, p. 378).
Para forjar homogeneidade, um nós, é necessário, principalmente, submeter todas
as diferenças culturais e étnicas selecionadas, já que uma cultura nacional/regional nunca é
25
Apesar de Guizzo ter defendido o Pantanal como algo singular de Mato Grosso do Sul sabe-se que tal
região corresponde às porções tanto deste estado como de Mato Grosso.
26 Segundo Heinz (2006, p. 7) ―não há consenso sobre o que se entende por elites, sobre que são e sobre o
que as caracteriza‖. O termo apresenta-se como um termo de sentido amplo e descritivo, que faz referencia
categorias ou grupos que parecem ocupar o mais alto posto das ―estruturas de autoridade ou de distribuição
de recursos‖. Entende-se por essa palavra, neste caso em análise, os dirigentes, os abastados, as pessoas
influentes e etc. Enfim, o termo elite aponta tão somente para uma vasta zona de investigação científica, e
não evoca nenhuma implicação teórica particular.
49
um simples ato de lealdade ou de identificação simbólica entre seus conterrâneos. É uma
estrutura de poder cultural que utiliza dispositivos discursivos e bens simbólicos para
impor uma hegemonia cultural mais unificada e singular (HALL, 2006, p. 59-65). Por isso,
aquietam-se as diferenças internas (nós) e anunciam as externas (outro),
Na construção de uma música regional distinta para Mato Grosso do Sul, teve-se
como referencial alguns artistas que já atuavam no cenário local e que foram eleitos por
Guizzo como representantes legítimos da música sul-mato-grossense, e que não estariam,
necessariamente, ligados ao estilo da música moderna.
Logicamente, os artistas eleitos deveriam buscar uma homogeneidade musical.
Pois, Guizzo entendia que as artes em geral deveriam estar engajadas na construção
identitária, juntamente com o Estado, que deveria ser o maior responsável para criá-la e
difundi-la. Em 1979, em entrevista à revista Grifo, Guizzo defende a necessidade de se
construir uma identidade, enfatizou a sua opinião ao declarar:
Eu acho o seguinte: com a criação do novo Estado, o governo deve
investir maciçamente na cultura, em busca de uma identidade cultural sul-
mato-grossense, se ele quiser construir um Estado autônomo. Cultura
popular é sinônimo de soberania (GUIZZO, 1979, p. 43).
Elencou os parâmetros que, em sua concepção, corresponderiam à música típica
sul-mato-grossense, e que deveriam servir como referência aos artistas locais. Os ritmos
deveriam seguir o estilo sertanejo e as letras retratarem a natureza do Cerrado e do
Pantanal. Os instrumentos musicais deveriam ser principalmente a viola caipira, a sanfona
e o violão, excluindo os eletrônicos. Elegeu como modelo as composições e os ritmos das
músicas de sua autoria que concorreram naqueles festivais estudantis de 1967 e 1968. Suas
canções Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal e João Galo, Pistoleiro matador foram
experiências importantes para a eleição do que ele considerava como típica música
regional e a valorização dos temas regionais, isto é, a cultura do homem pantaneiro e os
biomas da localidade.
Os festivais musicais realizados em Campo Grande, durante as décadas de 1960 e
1970, foram rememorados e valorizados a fim de servir de referência para a política
cultural com relação à música. Isso se deu, não apenas pelo fato de ele ter vencido em dois
festivais, mas para justificar a existência de uma sólida cultura musical anterior a criação
de Mato Grosso do Sul e que fosse, esta, distinta daquela produzida em Cuiabá e no norte
de Mato Grosso. Segundo Sá Rosa, havia a:
50
[...] necessidade de saber-se que tipo de música se fazia na região e
também a vontade de aproximar os compositores, conhecê-los, sentir-lhes
o modo de ser e de agir. Havia ainda o fato de que no eixo Rio-São Paulo
estavam acontecendo os festivais de música da TV Record que
estimulavam o processo criativo de nosso jovens (SÁ ROSA; SIMÕES;
FONSECA, 2012, p. 15).
Em 1982, Guizzo lançou o livro A Moderna música popular urbana de Mato
Grosso do Sul, resultado da sistematização de suas pesquisas sobre a música produzida na
região, mas que foi apropriada como sendo de Mato Grosso do Sul. Ao mesmo tempo
sistematizou uma história da música que viesse servir de referência àqueles que buscavam
pesquisar essa temática. Essa publicação reveste-se de importância por trazer à existência o
que seria a música típica sul-mato-grossense, contribuindo para a construção de uma
história e de um passado comum orientar os músicos nas futuras composições. Pretendia,
dessa forma, homogeneizar os ritmos, estilos, leras, temáticas ao impor o que seria
regional legítimo, típico, puro, original e fiel às raízes.
Guizzo afirmou que não pretendia produzir uma obra apologética, mas crítica e
que revelasse ao público um ―movimento‖ musical já estabelecido e consolidado:
Por isso mesmo, o presente trabalho, A moderna música popular urbana
de Mato Grosso do Sul (grifo do autor), pretende apenas ser uma reflexão
analítica, não simplesmente apologética, e, sobretudo, reveladora, desse
movimento que já adquiriu corpo (GUIZZO, 2012, p. 11).
Na obra, estabeleceu um panorama histórico da música desde as duas últimas
décadas do século XIX no sul de Mato Grosso, mostrando a existência de bandas e
orquestras musicais, traçando uma linha temporal com os grupos musicais atuantes até
chegar à criação de Mato Grosso do Sul, em 1977. A cidade de Corumbá foi representada
como uma cidade culturalmente produtiva e rica em instrumentistas, compositores e
intérpretes e com um povo amante da música em geral. Assim, ao eleger alguns músicos e
bandas locais, a cidade foi eleita como o berço musical de Mato Grosso do Sul. Segundo
Guizzo (2012, p. 14-15),
Entre 1930 e1934 havia tantos músicos em Corumbá a ponte de ser
formada uma orquestra especial com cerca de 30 elementos. Neste
período várias orquestras atuavam: Turunas do Ocidente (1929-1932),
Orquestra Colon (1931-1935), Orquestra Tamandará (1932), Orquestra
51
Castro (1934-1937). Nas décadas de 40 e 50 são alinhados os seguintes
conjuntos: Coringa e Seus Rapazes, Amantes do Ritmo, Os Morais do
Ritmo, O Guarani, Flamboyant, Os Vagalumes, Os Diamantes, Agápito
Ribeiro e Seu Conjunto.
Guizzo apontou algumas diferenças dos sul-mato-grossenses em relação aos
mato-grossenses e o que ele chamou de avanços na música regional, ao exemplificar, a
partir de sua visão, os festivais estudantis de música ocorridos na localidade de Campo
Grande, as festas carnavalescas que aconteciam na cidade de Corumbá e a presença de
orquestras e conjuntos, que serviam:
[...] para constatar que Corumbá sempre foi e ainda é uma cidade rica em
instrumentistas, compositores, interpretes e cujo povo e extremamente
musical. A simples existência desses músicos todos em uma cidade
distante da metrópole, em uma época e em um país onde a música
instrumental era pouco considerada, já se faz digna de nota por si só.
Desde o início do século XX a Cidade Branca abriga o melhor carnaval
do Estado e um dos melhores de todas as cidades interioranas do país.
Neste particular, tem-se ciência de que inúmeros eram os compositores
ligados aos festejos momescos. Este é um dos capítulos mais importantes
da Musica Popular Urbana de Mato Grosso do Sul (GUIZZO, 2012, p,
15).
A comprovação feita por Guizzo da existência de orquestra e grupos de música
clássica em Corumbá está alinhada ao fato que nesta cidade que faz fronteira com a Bolívia
os estrangeiros, desde o início do século XX, correspondiam a 40% da população, sem
contar os descendentes. Havia ainda, em colônias estrangeiras os paraguaios que eram
seguidos pelos árabes em números de habitantes. Corumbá, com isso, teria recebido
influências platina e européia (MARIN, 2004, p. 327). Portanto, não seria diferente sua
heterogeneidade também na constituição musical.
Posteriormente, ele deixou a cidade de Corumbá em segundo plano e passou a dar
uma maior visibilidade à tradição musical de Campo Grande, ao destacar como os maiores
expoentes da ―música regional‖ os irmãos Espíndolas (integrantes do grupo Luz Azul e do
conjunto Tetê e Lírio Selvagem), o Grupo Acaba, e Almir Sater e Paulo Simões. Ele
selecionou tais músicos porque tinham em seus repertórios musicais as características
regionais que identificavam e seriam ―originais‖ da cultura musical de Mato Grosso do
Sul. Guizzo afirmou que o Grupo Acaba representava ―uma tentativa de um encontro fiel
com nossas raízes e que, por razões de naturalidade, se voltam para o Pantanal, enfocando
sistematicamente em seus temas, os tipos e os símbolos próprios da flora e da fauna
52
daquela região‖. O Luz Azul foi valorizado pelo fato das ―vozes, violas e craviolas
emitiram um som acústico harmonioso e inovador; suas canções exalavam o cheiro da
terra‖ (GUIZZO, 2012, p. 27); e que Almir Sater, por ser um artista que não utilizava
instrumentos eletrônicos tinha bem definida sua posição como músico, pois ele era adepto
conscientemente da viola acústica. Para Guizzo (2012, p. 32), ―[Almir Sater] ao fazer essa
opção corajosa (sobretudo porque não-imediatista e anticomercial), ele se tornou mais
próximo de nossas raízes rurais‖.
Ao analisar a música produzida em Mato Grosso do Sul Guizzo criticou as
influências musicais vindas de outras regiões do Brasil e presentes desde os festivais
estudantis em Campo Grande. Isso colabora para a constatação da existência de outros
ritmos musicais na região, tais como, o Pop, a Bossa Nova, o Tropicalismo, entre outros
(GUIZZO, 2012, p. 35). O Rock seria advindo do eixo Rio-São Paulo e foi condenado por
ele como ―pobre‖ em harmonia e ritmo. Ao enfatizar a existência de um colonialismo
cultural que invadia Mato Grosso do Sul transformando-o em mero importador cultural
daqueles grandes centros. Nesse sentido, criticava os artistas que ―copiavam‖ os ritmos
que, para ele, não seriam típicos outros (GUIZZO, 1985, p. 48).
Segundo Guizzo (2012, p. 11), os cantores e os grupos musicais deveriam se
engajar no projeto de consolidação da música tipicamente sul-mato-grossense, e para
divulgar nas demais regiões do Brasil. Também valorizava o papel dos intérpretes, dos
músicos e dos compositores na construção identitária, pois o povo era visto como ―sem
identidade cultural definida‖, sendo necessário instituí-la e difundi-la. A música teria um
papel central nessa construção de subjetividades.
O grupo vocal Luz Azul, composto pelos irmãos Tetê, Geraldo, Alzira e Celito
Espíndola, por exemplo, fez sua primeira apresentação na Universidade Federal de Mato
Grosso, em 1978, cujas letras das músicas tinham como referências o homem pantaneiro, o
Cerrado e o Pantanal. Para Guizzo (2012, p. 27), esses elementos deveriam figurar nas
músicas sul-mato-grossenses. Dessa forma, ele elevou grupo expondo que ―com o show
Canto e Cores de Mato Grosso o Luz Azul brilhava pela primeira vez. Vozes, violas e
craviolas emitiram um som acústico harmonioso e inovador; suas canções exalavam o
cheiro da terra‖. As canções do grupo traziam em suas letras os elementos naturais e
culturais daquela região e utilizavam instrumentos advindos do artesanato pantaneiro. Em
suma, seriam verdadeiros cantores da terra.
53
A história do grupo Luz Azul foi protagonizada por Tetê Espíndola, que era
vocalista, e que pôde ter sua continuidade graças à ida da própria vocalista à cidade de São
Paulo (centro de produção cultural e econômica) e conseguir negociar a gravação do
primeiro LP do grupo, que a partir daí, por influências empresariais, passaria a se chamar
Tetê e o Lírio Selvagem.
Imagem 2 – Primeiro disco do grupo Tetê e o lírio Selvagem (1978)
Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/tete-espindola-sertaneja-planetaria
Guizzo expôs o sucesso que o grupo alcançou, sobretudo por se apresentar no
programa Fantástico da Rede Globo. Segundo Guizzo (2012, p. 28), o grupo não teria
conseguido um sucesso contínuo no mercado discográfico brasileiro devido à mudança de
nome que o grupo fez e por deixarem de valorizar temas e ritmos regionais em suas
canções devido às exigências da gravadora e dos empresários.
Apesar de o grupo manter e evidenciar, como se observa pela imagem, suas
representações características e suas identificações, por meio das vestimentas, com a
natureza local e com o Pantanal, Guizzo afirmou que o grupo tinha transformado as
músicas à revelia, perdendo a regionalidade original que tinham, quando na realidade tais
mudanças haviam sido impostas pela gravadora:
54
[...] fazendo quase que desaparecer o regional. A música Rio Cuiabá, que
era para ser gravada somente com instrumentos acústicos, pois continha
influências do cururu e do siriri, virou Rio de Luar, no melhor estilo
discoteque. Os arranjos foram mudados a revelia do grupo (GUIZZO,
2012, p. 28).
A falta do que se poderia chamar de ―mundo natural‖ foi o que determinou, na
interpretação de Guizzo, o fracasso do grupo.
Porém, havia algumas contradições entre o mercado da música nacional, o som
regional de Mato Grosso do Sul e a seleção de uma referência musical para o estado.
Enquanto Guizzo defendia a efetiva incorporação dos traços do ―mundo natural‖, do
Pantanal, do Cerrado, da cultura pantaneira e uma música típica da região com aspectos
originais, o grupo Tetê e o Lírio Selvagem incorporava outras linguagens com referências
nacionais no Pop, na Bossa Nova e no Tropicalismo, demonstrando estilos híbridos através
de suas letras e suas melodias, sem deixar de ser regional. Contudo, mesmo depois de
estabelecer aquelas críticas ao Tetê e o Lírio Selvagem, ao fim, Guizzo acaba por
considerar o grupo como um dos representantes da música regional, porém, sem ser típico,
fiel às raízes, original e autêntico.
Em sequência, outro grupo elencado por Guizzo e que foi representado como
legítimo sul-mato-grossense foi o Grupo Acaba. Este grupo, representado como Os
Cantadores do Pantanal, foi valorizado como genuíno representante da ―música regional‖
de Mato Grosso do Sul. Criado pelos irmãos Francisco e Moacir Saturnino de Lacerda, o
grupo tinha como referência as experiências da infância no Pantanal, a cultura indígena e o
modo de vida no campo, o homem pantaneiro, o fazendeiro, o vaqueiro, a fauna e a flora
da região. A partir do Grupo Acaba, Guizzo passou a valorizar as tradições indígenas27
, as
quais poderiam traduzir justamente a vida exuberante, harmoniosa e tranquila junto à
natureza, próxima à vida pantaneira:
[...] o Grupo Acaba, entendendo a importância da arte popular, buscou
nos usos e costumes, nas lendas e nas tradições do povo do Pantanal a sua
fonte primeira de inspiração. Mais tarde, diversificando sua temática, foi
o Acaba buscar a motivação indígena (GUIZZO, 2012, p. 30).
27
Os principais aspectos culturais indígenas que apareciam nas composições do Grupo Acaba eram dos
Guarani, Guató, Ofaié-Xavante e Guaicuru.
55
Imagem 3 – Capa da segunda versão do álbum Canta-dores do Pantanal
Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/grupo-acaba
Para Guizzo (2012, p. 29), esse grupo musical tinha objetivos claros, que era
representar ―fielmente‖ as raízes pantaneiras, tanto por intermédio dos trajes brancos que
buscavam simbolizar a pureza da natureza como pela representação campeira e rural
exposta pelas imagens da capa e do interior do disco. Para ele, ao serem denominados os
Cantores do Pantanal:
[...] seus objetivos ficaram claros desde o início, quando seus integrantes
disseram que eles representavam uma tentativa de um encontro fiel com
nossas raízes e que, por razões de naturalidade, se voltavam para o
Pantanal, enfocando sistematicamente em seus temas, os tipos e os
símbolos próprios da flora e da fauna daquela região (GUIZZO, 2012, p.
29).
56
Guizzo (2012, p. 30) afirmou que ―ao elaborar uma música essencialmente
regional, salpicada de elementos nossos, o Grupo Acaba se credenciou como uma força
viva dentro do panorama da Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul‖. Entretanto,
nota-se que para o próprio grupo havia referenciais comuns entre Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. Chico Lacerda, membro do Grupo Acaba, em entrevista, colaborou para o
entendimento de que não se diferenciava significativamente as identidades de tais estados,
como Guizzo procurou representar. Pelo contrário, o depoimento de Lacerda contribui para
entender que existia certa dificuldade em se criar a identidade regional. Ao falar das
influências musicais e folclóricas do grupo revelou os diálogos culturais com Mato Grosso
e as heranças herdadas, que são apropriadas como comuns, embora representadas como
distintas:
‗A questão indígena, que faz parte da preocupação mundial, já existia no
cerne de nossas composições. Todo esse trabalho unido às manifestações
folclóricas, como a catira, o siriri, o cururu, constitui o que chamarei
cultura mato-grossense, porque nossas raízes estão fincadas no antigo
Estado, de onde nunca nos separamos culturalmente. Continuamos mato-
grossenses do Sul e do Norte‘ (SÁ ROSA, 1992, p. 128).
Na sequência do conjunto selecionado de músicos, tem-se a figura de Almir Sater,
outro artista representado por Guizzo como legítimo sul-mato-grossense, e que também
estava na esteira dos dois grupos citados acima. Para Guizzo (2012, p. 32), Almir Sater era
―discípulo confesso de músicos sertanejos e caipiras, esse excelente instrumentista
revitalizava e revalorizava a viola, instrumento lúdico num Estado cujo potencial de
música daqueles filões é inesgotável‖. Com isso, procurava mostrar que a música sul-mato-
grossense recebia, de forma inesgotável, influências sertanejas e que possuía traços
culturais marcantes da vida no Pantanal, que se observava a partir de representações como
a capa do disco abaixo. Sater era a demonstração da vida pantaneira, que tocava viola à luz
da fogueira que aquece a noite nas fazendas.
57
Imagem 4 – Capa do disco O Estradeiro, de 1981
Fonte: http://www.acervoorigens.com/2010/09/almir-sater-1981-22092010.html
Guizzo pretendeu representar Almir Sater como o músico que renegou os
instrumentos eletrônicos e os modismos de estilos musicais, ao utilizar a viola, um
instrumento ―puro‖, tornando-se, dessa forma, legitimamente sul-mato-grossense. Optar
pela música sertaneja, o tornou mais próximo das raízes campeiras de Mato Grosso do Sul:
[...] o desprezo pelos instrumentos eletrônicos e sua opção consciente
pela viola acústica define bem a sua posição como músico infenso aos
ditames da moda. Ao fazer essa opção corajosa (sobretudo porque não
anti-imediatista e anticomercial), ele se tornou mais próximo de nossas
raízes rurais. A sua intimidade com a viola amplia-lhe as possibilidades
de criação e colocam-no na posição privilegiada, mas ao mesmo tempo,
de grande responsabilidade de ser um de nossos músicos mais
credenciados para atingir o que se convencionou chamar de som sul-
mato-grossense (GUIZZO, 2012, p. 32).
58
Por fim, o músico Paulo Simões foi outro compositor e intérprete valorizado por
Guizzo como verdadeiro representante da música sul-mato-grossense apesar de sofrer28
à
época de sua evidenciação influências dos festivais nacionais de música, principalmente
sobre interferência do Tropicalismo, da MPB e do rock anglo-americano. Porém, o que
marcou sua importância foi a sua habilidade em absorver aquela influência originada do
centro do país, e num ato inteligente ―antropofagicamente deglutiu todas essas
informações, criando um estilo próprio‖, juntando todas aquelas influências, incluindo o
ritmo que ele expunha como ritmo ―pobre‖, o Rock (GUIZZO, 2012, p. 34).
Para Guizzo (2012, p. 35), ao criar um estilo ―próprio‖, Paulo Simões trouxe
características da música urbana, mas conservou uma base rítmica assentada na música
sertaneja considerada como tipicamente sul-mato-grossense. Guizzo entendia que tal
música possuía uma fluente textura melódica vinculada às raízes locais. Entre as canções
de Paulo Simões, a mais importante seria Trem do Pantanal, música que, posteriormente,
se tornou uma das referências musicais em Mato Grosso do Sul e no restante do Brasil sob
a interpretação de Almir Sater.
Para Guizzo (2012, p. 27-33), o grupo Tetê e o Lírio Selvagem recebia influências
urbanas e buscava atender as demandas mercadológicas, que apareciam com base no Pop,
na Bossa Nova, na Tropicália, no Rock e em outros estilos da época. Para ele, estes tipos
musicais eram desvalorizados e representados como colonizados. O Grupo Acaba e Almir
Sater estariam ligados às influências advindas do Oeste da América Latina (músicas
andina, guarani), da música caipira e das representações do Pantanal, tidas como positivas
e verdadeiramente inspiradoras.
Os aspectos artísticos e musicais dos cantores e compositores elencados por
Guizzo são índices que compõem, por meio de sua proposta, o que se poderia chamar de
cultura musical sul-mato-grossense – caracterizada por elementos rurais/sertanejos. No
entanto, percebem-se certas contradições, quando Guizzo empreendeu a uma condenação o
que não fosse genuinamente regional, o fato de músicos como Tetê Espíndola e Paulo
Simões, representados por ele como ícones genuínos da música local, confirmarem a difusa
e universal influência que recebiam do rádio.
28
Guizzo utilizou o termo ―sofria‖, ao se referir as influências que Paulo Simões recebeu enquanto músico.
Como foi exposto, Guizzo procurou criticar e renegar os estilos musicais que não traziam em suas estruturas
musicais referenciais sertanejos, pantaneiros e da natureza do Mato Grosso do Sul.
59
Paradoxalmente, Tetê Espíndola e Paulo Simões acabaram por mostrar posição
contrária às representações de Guizzo. Eles enfatizaram as múltiplas influências presentes
em suas produções musicais. A cantora Tetê Espíndola, por exemplo, declarou que sua
musicalidade provinha de uma formação universal em termos de influências artísticas
(ZILIANI, 2000, p, 67). Paulo Simões, por sua vez, questionou e criticou diretamente tal
classificação hierárquica sobre o adjetivo de regional, desvelando, com isso, a ocorrência
de tensões e de conflitos a respeito das representações de Guizzo. Ele explicou que:
É difícil conviver-se com esse conceito de regional, porque se trata de
mais um rótulo eficaz e eficiente para quem precisa escrever sobre o
assunto, [...] me sinto aflito, quando me colocam esse rótulo [...] Então, o
rótulo funciona mais, para quem queira explicar, do que para quem faz‖
(SIMÕES apud ZILIANI, 2000, p. 75).
Simões evidenciava a existência de projetos musicais e identitários distintos. Em
Campo Grande havia a preocupação29
, com a criação de Mato Grosso do Sul, de
estabelecer a nova capital e o estado como um modelo progressista e moderno por
intermédio de seus artistas urbanos e não os caipiras do Pantanal. Gilmar Lima Caetano,
no artigo Música regional urbana de Mato Grosso do Sul, expôs que, existia a expectação
de fazer de Mato Grosso do Sul um estado modelo para o restante do país e, para isso, era
preciso:
[...] estabelecer uma nova cena cultural moderna; afinal, existia uma
expectativa bastante grande de que Mato Grosso do Sul, visto como força
econômica do antigo Estado, fosse rapidamente transformado no ―Estado-
modelo‖, fato que permitiria avanços significativos nas esferas culturais e
artísticas (CAETANO, 2012, p. 98).
Observa-se, portanto, a manifestação de disputas simbólicas (representações
identitárias) entre Guizzo, que engrandecia os elementos sertanejos/pantaneiros, e alguns
artistas de Campo Grande que reivindicavam uma identidade urbana e moderna, que não
estavam preocupados em reduzir as artes apenas ao engajamento político e à construção da
identidade, como foi o caso do grupo Tetê e o Lírio Selvagem, inicialmente. Para Caetano
(2012, p. 97), este grupo e Paulo Simões estariam mais próximos daqueles que defendiam
uma cultura modernizada para Mato Grosso do Sul sem deixar de se reconhecerem como
29 Com a criação de Mato Grosso do Sul a cidade de Campo Grande, que já era um dos maiores entrepostos
comerciais de Mato Grosso antes da divisão, transformou-se em capital do novo estado.
60
típicos. Para eles, a valorização da natureza, do homem e da cultura pantaneira não excluía
o diálogo com outras referências culturais, fossem nacionais ou universais. A proposta de
Guizzo, pautada por duas vertentes que ele definiu como ―sertaneja e advinda da herança
cultural guarani‖ (GUIZZO, 2012, p. 52), também concorreu com a do Tetê e o Lírio
Selvagem, que, segundo Caetano (2012, p. 88) foi transformado num dos símbolos de uma
nova cena artística, moderna, pautada por uma nova mentalidade urbana e cosmopolita,
mais próximos do projeto de construção de um Mato Grosso do Sul moderno defendido
pelo Estado e pelas elites.
Segundo Caetano (2012, p. 90) Tetê Espíndola defendeu que uma música
modernizada fazia parte da realidade e da identidade sul-mato-grossense. Caetano (2012,
p. 90) justificou esse entendimento ao criticar a versão de Guizzo, ao dizer que ―[...] na
verdade, na época do lançamento do disco, Mato Grosso do Sul já caminhava para a
efetivação de um cenário urbano, que muito pouco tinha a ver com essa imagem de um
lugar natural e exótico‖30
. As referências urbanas do Tetê e o Lírio Selvagem buscavam
respaldo num movimento de consciência ambiental, mais universal, que estava voltado
para a conservação da natureza e era contra o avanço desenfreado da urbanidade, isto é,
uma mentalidade sustentável (CAETANO, 2012, p. 88).
Tetê Espíndola com o grupo apresentava outras linguagens, mais universal, não
deixava de ser regional, ela dialogava com temas universais, mas estabelecia um olhar a
partir do regional. Em entrevista, manifestou ideias contrárias às críticas de Guizzo sobre o
sucesso do Tetê e o Lírio Selvagem, ao defender que o grupo não havia deixado de lado
aqueles traços culturais regionais, tais como a vida em meio à natureza, os bichos, a fauna
e a flora típicos do Pantanal. As influências artísticas e musicais advinham da realidade
natural de Mato Grosso do Sul, segundo Caetano (2012, p. 90), ela:
[...] faz questão de reafirmar essa imagem, como na ocasião em que
revelou ter aprendido a cantar com os pássaros da região e que os
instrumentos usados pelo grupo eram afinados pelos sons da natureza.
Aliás, essa preocupação em construir uma história vinculada ao que
30 É contundente pontuar que apesar das críticas e da análise realizada por Gilmar Lima Caetano (2012) em
sua dissertação de mestrado a respeito da disputa antagônica em torno do estabelecimento de uma música que
fosse característica para o estado de Mato Grosso do Sul, se entende, conclusivamente, que o autor não
conseguiu analisar ou demonstrar um pouco além da noção bipolarizada e antagônica entre os termos rural e
urbano. Pode-se constatar que o autor não se preocupou em imprimir uma inversão das hierarquias
estabelecidas, uma vez que, não se está lidando com uma coexistência pacífica, mas com uma hierarquia
violenta e que o ato de desconstruir tal oposição (rural/urbano) pode significar, em dado momento, inverter a
hierarquia da disputa entre as ambiguidades presentes nas perspectivas identitárias em disputa.
61
poderia se chamar de mundo natural tornou-se uma grande preocupação
[...] entre os artistas que atuam no universo da música regional.
Para Caetano (2012, p. 88) o grupo Tetê e o Lírio Selvagem obteve sucesso, de fato,
quando se apresentou, em nível nacional, no programa Fantástico, da Rede Globo, em
1978. O clipe foi produzido pela própria emissora e a música tematizava a preservação do
meio ambiente. Segundo Caetano (2012, p. 88),
[...] naquela ocasião, eles apareceram, para todo o país, trajados de
collants, produzidos pelo artista plástico cuiabano João Sebastião da
Costa. Apresentaram uma canção apegada a um tema que seria
extremamente relevante no contexto dos anos 1980, a consciência
ambiental [...] Isso demonstra que o interesse pelo grupo não advinha
apenas por conta da música, mas também pela própria imagem que os
artistas veiculavam.
A partir de algumas entrevistas que os integrantes do Tetê e o Lírio Selvagem
concederam ao longo de suas carreiras, Caetano (2012) notou que o gosto musical da
classe média31
urbana de Campo Grande, a qual esses artistas pertenciam, girava em torno
do que era praticado nos centros culturais do Brasil, basicamente pela Bossa Nova, pelo
Samba e pelas grandes vozes do rádio. Até Almir Sater (que foi representado por Guizzo
como o legítimo músico de raiz sul-mato-grossense) teria afirmado que sua ―família
gostava de samba-canção, de bossa nova‖ (SATER, 2009, p. 29); Paulo Simões revelou
que suas influências também advieram de seus pais que ―tinham um gosto eclético‖,
escutavam ―Ary Barroso, Noel Rosa [...], escutava os primórdios da Bossa Nova‖
(SIMÕES, 2008). Os irmãos Espíndola sempre deixaram evidente a influência e o
incentivo de sua mãe Alba Miranda. Alzira Espíndola mencionou que tinha a admiração
pela cantora Maysa. Geraldo Espíndola, por sua vez, relatou que em sua infância escutava
―muita Rádio Nacional [...], que tocava Dalva de Oliveira, Caubi Peixoto‖ (ESPÍNDOLA,
2006). A música paraguaia, tão valorizada e representada na contemporaneidade como um
dos elementos identitários daquela geração, não fazia parte do universo musical das
famílias de classe média de Campo Grande. Nesse caso, Paulo Simões, por exemplo,
afirmou que a música paraguaia e latina, de um modo geral, ficava restrita às apresentações
31
Não se devem buscar relações de pertencimento de canções a classes sociais. Ao contrário, importam os
efeitos das canções sobre as diversas lutas ideológicas, por intermédio do oferecimento de posições
subjetivas, que podem ser politicamente inertes ou mobilizadoras. Se for assim, a medida do potencial
transformador das canções é a quantidade de pessoas que envolvem, e a capacidade dessas práticas de gerar
polêmica e debate entre as pessoas envolvidas (NEDER, 2011, p. 7).
62
realizadas em churrascarias ―e festas em fazendas e, eventualmente, em festas aqui em
Campo Grande‖ (SIMÕES, 2008).
É inegável que a música regional participasse da construção das lutas dos setores
mais reprimidos da população sul-mato-grossense, mas ela esteve muito mais envolvida
com os conflitos entre setores médios e dominantes em torno dos projetos divergentes de
poder regional e de poder nacional, e seus significados não se esgotam aí. Em primeiro
lugar, verifica-se que o movimento, aquele modernizador, atingiu e transformou pessoas de
segmentos sociais subalternos e provocou efeitos nestes segmentos. Em segundo lugar,
porque esse movimento evidenciava, justamente, a contradição entre diferentes projetos: se
são identificáveis tais conflitos entre setores médios e dominantes do estado, a eles se
superpõem outras inúmeras polêmicas que envolvem a inclusão de culturas e saberes
tradicionais em um projeto alternativo de modernização, a preocupação com as etnias
indígenas, a integração da América Latina com o questionamento da hegemonia
econômica, política e cultural dos grandes centros brasileiros, e a interpretação sobre os
costumes e os usos dos corpos – polêmicas constitutivas dessa música que abrangem
virtualmente todas as classes sociais, e que foram significativos para as pessoas submetidas
a uma vida culturalmente empobrecida em um estado destinado a uma vocação
agropecuária por arranjos entre elites regionais e nacionais (NEDER, 2011, p. 7).
A disputa sobre a definição da identidade musical e as diferentes interpretações,
como as de Tetê Espíndola e Paulo Simões, por exemplo, fornecem evidências de que os
próprios artistas selecionados por Guizzo, de fato, não entendiam a música regional da
mesma forma que ele; ou pelo menos não partilhavam completamente da sua concepção de
música.
Assim, a construção da identidade sul-mato-grossense foi marcada por lutas e
disputas simbólicas onde artistas, instituições (Aliança Francesa, Clube Surian e Jornal do
Comércio) e alguns grupos de artistas procuravam impor e legitimar a sua visão de mundo,
por intermédio da música, das representações identitárias e da seleção de elementos
culturais que deveriam funcionar como princípios de divisão cultural e social e
integradores da identidade regional. Tal construção não foi neutra, tampouco livre de
questionamentos, disputas e tensões com o surgimento do novo estado. Essas disputas são,
como teorizou Pierre Bourdieu (2011, p. 108),
63
lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, em torno de
propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar
de origem, bem como das demais marcas que lhe são correlatas [...]
constituem um caso particular das lutas entre classificações, lutas pelo
monopólio do poder fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e
reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e,
por essa via, de fazer e desfazer os grupos. O móvel de todas essas lutas é
o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-
visão que, tão logo se impõem ao conjunto de um grupo, estabelecem o
sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade e a
unidade do grupo, que está na raiz da realidade da unidade e da
identidade do grupo (BOURDIEU, 2011, p. 108).
Posteriormente, alguns músicos e compositores passaram a absorver e valorizar a
identidade ―pantaneira‖ ou ―sertaneja‖ que Guizzo defendeu. Em Mato Grosso do Sul,
alguns daqueles cantores selecionados por ele como legítimos representantes da música
sul-mato-grossense, como Paulo Simões e Almir Sater e Tetê Espíndola, por exemplo,
consolidaram-se32
no cenário regional a partir da década de 1980, quando uma consciência
ambiental e de proteção aos indígenas ganhou espaço e projetou a produção musical sul-
mato-grossense. Esses músicos, evidenciados por Guizzo33
, transformaram-se, a partir
daquela década, em divulgadores efetivos da região e da identidade sul-mato-grossense.
No início de suas carreiras esses músicos enfrentavam dificuldades para divulgar
seus trabalhos. Esse cenário mudou quando o Estado passou a estabelecer com alguns deles
uma relação visível de mecenato, porque atendia aos interesses das políticas culturais,
como a preservação do meio ambiente que era tematizado naquelas canções.
Um ponto importante deste processo, como sinalizou Caetano (2012, p. 98), é que
a Fundação de Cultura34
, por sua vez, procurou estimular um projeto conservador e
preservacionista, direcionado pelas elites locais, representantes de uma economia rural,
mas que procurava estabelecer uma cena urbana na capital Campo Grande, e que estava
voltada ao estabelecimento de uma sociedade despolitizada e que pudesse justificar e
legitimar o próprio regime que criou Mato Grosso do Sul, o regime ditatorial dos militares:
32
Tal conjuntura só foi possível graças as relações que tais artista passaram a ter junto às instâncias do
governo, que procurou agentes divulgadores daquilo que deveria ser a identidade sul-mato-grossense. Alguns
como Almir Sater conseguiram ascendência nacional apoiado pelo próprio mercado musical.
33 Além dos já citados soma-se cantores e compositores como Guilherme Rondon, Iso Fisher, Grupo Terra
Branca entre outros.
34 Autarquia responsável pela promoção das políticas governamentais no âmbito cultural em Mato Grosso do
Sul. Tal instituição será tema no próximo capítulo.
64
[...] um ponto importante que a história deu conta de apagar é o fato de
que aquela geração, especialmente no início dos anos 1980, não contava
com apoio maciço da população. Eram considerados marginais,
desocupados, ―comunistas‖ [...] o próprio discurso de apresentação da
Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul [...] enquanto alguns
chamavam a proposta de ―coisa de comunista‖ a Fundação seria
responsável por ―projetar sobre uma sociedade rurícola, os contornos de
pretensa catedral do espírito‖. Assim, à medida que passaram a
representar o Estado, muito por conta de um interesse que vinha mais ―de
fora‖ do que ―de dentro‖, a partir de um discurso preservacionista, a
própria Fundação teve a tarefa de conscientizar a população em relação
àquela nova cena artística (CAETANO, 2012, p. 98).
Os artistas que trouxeram em suas produções os elementos culturais singulares ou
originais selecionados por Guizzo para a construção identitária receberam o aval e o
incentivo financeiro do governo estadual. O Grupo Acaba, por exemplo, nos meses
seguintes à criação do estado, andou em caravana com o governador da época35
e seus
assessores políticos fazendo shows no interior de Mato Grosso do Sul. O objetivo era
fabricar e promover um novo tempo como procurou demonstrar Ziliani (2000, p. 76):
Nos meses que se seguiram à instalação do governo do estado recém criado, o
conjunto musical Grupo Acaba, incorporando elementos pantaneiros (índios,
fazendeiro, vaqueiro, fauna, flora), numa iconografia encomiástica desses
valores, chagaram a andar em caravanas com o governador e seus secretários e
assessores [...] em uma verdadeira cruzada fundadora de um novo tempo.
Santos (2003, p. 125), entretanto, ao criticar Ziliani (2000), registrou que esse fato
histórico nada mais foi que um tradição inventada e que não poderia dar conta de refletir
criticamente a abrangente complexidade da cultura analisada, se não pelas imagens
estereotipadas. Dessa forma, Santos (2003, p. 125) apontou que,
Observa-se assim algo como uma tradição inventada, que não dá conta de
refletir criticamente a variegada tessitura da cultura se não a partir de
signos estereotipados [...] em nome da busca das raízes e da identidade
cultural ampliou-se o leque da animosidade e da contradição.
35
Nos primeiros anos de Mato Grosso do Sul o governador foi Harry Amorin Costa – janeiro de 1979 a
junho do mesmo ano. Desde a emancipação política do estado, em 1979, já havia a preocupação do governo
com a construção identitária, mas que foi representada, com a trajetória de Guizzo como algo que surgiu com
ele e a partir dele.
65
As culturas nacionais ou regionais são construídas artificialmente. Porém, nunca
são ou foram tão homogêneas quanto as representações que delas se fazem, mas
constituem-se como híbridas. A construção identitária é sempre artificial e não subordina
todas as diferenças, divisões, lealdades e contradições internas. Intercâmbios culturais e
fronteiriços juntamente com as hibridações existentes passam a ser negadas36
.
Em entrevista, um dos integrantes do Grupo Acaba, Moacir Lacerda, relatou que a
Fundação de Cultura financiava com ótimos salários os artistas que tinham o Pantanal
como referência e que procuravam estabelecer uma singularidade regional para Mato
Grosso do Sul:
Eu posso mostrar um documento datado de 21 de fevereiro de 1979, assinado
pela diretora executiva da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul,
professora Maria da Glória Sá Rosa, em que é firmado o compromisso de a
Fundação custear todas as despesas do Grupo Acaba durante o Projeto Pantanal.
Eu o guardo com todo o carinho, porque marca uma época áurea de nossa
cultura, em que um grupo viaja divulgando nossa música, pelo Estado, com um
bom cachê, hospedando-se bem. Nunca mais tivemos uma oportunidade igual.
Agora mesmo acabamos de chegar do Rio Grande do Sul, onde nos
apresentamos com êxito, viajando num pau-de-arara (LACERDA, 1992, p. 121-
129).
Tais grupos analisados, por fim, estabeleceram os sentidos das músicas
tradicionais encontradas em Mato Grosso do Sul, tais artistas acabaram transformados em
solenes e grandiosos por meio de uma elaboração supostamente única e superior. Reunidos
em elementos populares, enquanto manifestações das raízes. Frutos de uma realidade
contraditória, de choques sociais e culturais violentos, em que o antigo, de ―raiz‖, e o
contemporâneo, comercial, se embatem. Contudo, se negaram tais conflitos para se
estabilizar os sentidos de maneira prevista pelo sistema de significações estipulados pelos
discursos dominantes, na defesa de uma identidade sul-mato-grossense agendada pelas
elites campo-grandenses. Uma sociedade ao mesmo tempo aparentemente moderna
(sofisticada), mas de raízes (histórica) (NEDER, 2011, p. 328).
Dada a realidade, os grupos comentados acima deixaram, oportunamente, de
expor e efetivar a posição subalterna, no plano das produções culturais e identitárias.
36
Segundo Canclini (2015, p. 109), o termo ―Culturas Híbridas‖ pode ser definido como um rompimento
entre as barreiras que separa o que é tradicional e o que é moderno, entre o culto, o popular e o massivo. As
culturas híbridas consistem na miscigenação entre diferentes culturas, ou seja, uma heterogeneidade cultural
presente no quotidiano do mundo moderno. Essa miscigenação une traços distintos de diferentes visões de
mundo, formando assim uma nova cultura, que resultará na elaboração de signos de identidades.
66
Contribuíram, ao contrário, para a perpetuação do Estado em uma posição de produtor
primário, controlador, da produtividade cultural (musical) e identitária como um todo,
defendendo o que deveria ser fomentado com recursos públicos ou não.
Os grupos musicais que Guizzo preferiu para expor uma essência do ―espírito‖
identitário de Mato Grosso do Sul partiu de uma preocupação que só pode existir a partir
do momento em que os mesmo se investiram dessa preocupante responsabilidade de dirigir
à constituição da identidade do estado. Como apontou Néder (2011, p. 329) tal
preocupação seria impensável alguns anos antes da criação de Mato Grosso do Sul. Antes
da divisão de Mato Grosso, a produção se caracterizava pelo descompromisso, pela
incerteza, pela ironia e pela busca de caminhos ainda não trilhados. A partir da criação de
Mato Grosso do Sul começou a prevalecer um compromisso (com uma verdade histórica),
uma certeza (de uma identidade) e uma respeitabilidade (de uma pesquisa fundacional
calcada em um histórico musical). Os discursos sobre a música tradicional, objetivava
instaurar uma identidade regional, que se contradizia à realidade social, paradoxal,
daqueles próprios que buscavam sua instituição. Para Néder (2011, p. 329), o contexto
histórico que se mostrava tinha outro percurso, bem distinto daquele proposto por Guizzo:
Inicialmente, em um momento em que o desenvolvimentismo pecuarista
era a ideologia hegemônica em Campo Grande, e que o universo rural e
paraguaio era recalcado, o uso da música tradicional, lado a lado com o
rock, era radicalmente deslocado de seu contexto habitual. Este
procedimento chocante e perturbador – deslocado – ressaltava a
reificação da música tradicional como música do lazer da classe média
urbana, nas churrascarias, festas e bailes, e da posição do outro,
silenciado em todos os momentos, a não ser para ocupar este lugar
subalterno. A artificialidade do processo era salientada pelo descaso em
tentar reproduzir qualquer noção de ―verdade‖ supostamente constante da
música ―original‖, seja em sua composição, instrumentação, arranjo ou
execução. O resultado era estranho, estrangeiro, e indicava a
intertextualidade produzida pelas poéticas do deslocamento.
Ao selecionar e defender os grupos musicais em destaque, Guizzo procura fazer
aparecer um estado de caráter inigualável, não mais como um substantivo abstrato,
imponderável, vazio de conteúdos, mas algo concreto, identificável. Busca a transformação
da música em identidade e acaba por determinar o seu lugar, ao apagar suas contradições e
suas diferenças, portanto,
67
A contradição é conciliada, e o conflito, pacificado, é abandonado sem
resolução. Assumido como essência, o traço do outro se torna
apaziguador, reconfortante, e o estrangeiro torna-se familiar. O sujeito
intertextual se torna o sujeito centrado. Não mais dominado pela
incerteza, sabe seu lugar e sabe o lugar do outro. A pesquisa das raízes
busca retomar a música tradicional tal como ela ―realmente é‖, e a
autenticidade é a condutora do grande engodo reificador provocado pela
identidade [...] passa a ser a personificação do estado, e ouvir e cantar,
exaltar-se, emocionar-se com o Mato Grosso do Sul. Este passa a ser, não
mais um substantivo abstrato, imponderável, vazio de conteúdos
positivos, válido apenas como lugar virtual de encontro e perpétua
reconfiguração de sentido e significados diferenciais em conflito, mas
algo concreto como uma pessoa, e não uma pessoa qualquer: uma pessoa
que presidiu ao nosso nascimento e nos doou nosso nome – uma instância
paternal (NEDER, 2011, p. 329-330).
Por fim, Guizzo proporcionou o atrelamento e o financiamento de alguns daqueles
grupos musicais juntos à Fundação de Cultura. Era a sua tentativa e do governo estadual
de efetivar uma identidade original para Mato Grosso do Sul, buscando unificar seus
habitantes, para representá-los todos como uma grande família sul-mato-grossense.
Para se compreender a importância política da Fundação de Cultura no
estabelecimento da identidade sul-mato-grossense, além das relações de poder
estabelecidas por José Octávio Guizzo nesta autarquia, torna-se necessário compreender os
fundamentos históricos de sua criação, como será enfatizado no próximo capítulo.
68
II - HISTÓRICO DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE MATO
GROSSO DO SUL E AS AÇÕES DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO
COMO POLÍTICAS CULTURAIS (1984-1985)
Como a grande maioria das entidades governamentais de Mato Grosso do Sul, a
Fundação de Cultura foi criada em 1979 em decorrência da emancipação político-
administrativa estadual. Foi sob o Decreto–Lei nº 1, de janeiro daquele ano que se
estabeleceu a organização básica do Estado de Mato Grosso do Sul.
Naquele primeiro Diário Oficial (DOEMS Nº1, 1979, p. 1-12), instituiu-se o
Decreto-Lei nº 8, que dispôs sobre o Sistema Executivo para o desenvolvimento de
recursos humanos, ao autorizar a criação de entidades administrativas junto ao governo.
O então governador Harry Amorim Costa, nomeado pelo Presidente-General
Ernesto Geisel, criou a Secretaria de Desenvolvimento de Recursos Humanos como órgão
regulador central responsável pela promoção e o desenvolvimento cultural no estado.
Instituiu o Conselho Estadual de Cultura como o órgão colegiado incumbido de
supervisionar as atividades da Fundação de Cultura enquanto entidade estatal. Com
autonomia administrativa e financeira, esta última tinha ―por finalidade planejar, promover
e executar atividades voltadas para a preservação da memória e o desenvolvimento cultural
do Estado‖ (DOEMS Nº1, 1979, p. 21-22).
Desde a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, e sua emancipação, em 1979, o
cenário político foi marcado por forte instabilidade, sobretudo, no âmbito das indicações
para governador37
. Efetivamente, na esfera institucional, houve uma estratégia de gestão
37
Os governadores no período de 1979 a 1982 eram nomeados diretamente pela presidência, ou seja, pelos
militares de forma autoritária e antidemocrática. Até o retorno das eleições diretas para governador, só
ocorrida em 1982. Mato Grosso do Sul teve, neste curto período, os seguintes governadores: Harry Amorin
69
feita pelos militares que visava assegurar a maioria dos votos no Colégio Eleitoral para, em
eleição indireta, garantir a vitória do general João Batista Figueiredo. O objetivo se
concentrava em sustentar o regime militar para uma transição longa, gradual e segura com
vistas ao retorno da representação democrática. Nesta fase da política brasileira, os
governadores, os prefeitos das capitais e parte dos senadores eram nomeados diretamente
pelos militares para os cargos chamados ―biônicos‖, cujo objetivo era garantir a
continuidade do regime e impedir que os objetivos traçados por eles fossem desarranjados
por sedições políticas. Na prática as regiões sob a administração de governadores e
prefeitos biônicos não possuíam autonomia política, todas as orientações e as decisões
advinham da centralização dos militares, na capital Brasília. Por fim, tal estratégia
contribuía para a diminuição da influência das forças políticas locais.
Prematuramente o governo de Harry Amorim Costa, que durou apenas seis meses,
baseado nas expectativas renovadoras da região de estabelecer o novo estado como um
modelo de administração moderna e técnica, acabou graças a conjuntura política que se
mostrava volátil, instável e conflituosa entre os grupos que disputavam o poder no âmbito
estadual. Na época, a editora e redatora da revista Grifo, Neuza Chacha, defensora
explicita do Regime Militar, que intitulava o governo ditatorial ―revolução‖ 38
, relatou que:
Nem a própria criação do Mato Grosso do Sul mereceu tanto destaque na
imprensa nacional como a substituição de Harry Amorim. Apesar de
anunciada nos meios arenistas locais desde antes de sua posse (o General
Golbery teria prometido o cargo a Pedrossian em troca de uma vitória da
Arena nas eleições de novembro [de 1978]), a destituição de um
governador do Estado por um presidente [João Figueiredo] que, ao que
tudo indica, vinha seguindo fielmente as orientações de seu predecessor,
responsável pela nomeação, é um fato praticamente inédito nesses 15
anos de Revolução. Por isso, muitos atribuem a queda de Amorim à sua
Costa (Jan/79 a Jun/79); Marcelo Miranda Soares (Jun/79 a Out/80); Londres Machado (13 a 30/Jun/1979 –
28/10/1980 a 7/11/1980); Pedro Pedrossian (Nov/80 a Mar/83), todos nomeados diretamente pelo Presidente
militar, mas sob influência de grupos políticos locais. Disponível em: http://www.ms.gov.br/institucional/ex-
governadores.
38 Muito se discute sobre o tema no campo da História no Brasil e em Mato Grosso do Sul (FICO, 2001,
2004, 2014; GASPARI, 2003; ARAKAKI, 2008; LEITE, 2009). Entende-se que, inquestionavelmente, que o
golpe impetrado pelos militares, apoiado por grande parcela da população brasileira, que inaugurou a
Ditadura Civil-Militar no Brasil, em 1964, não foi uma ―revolução‖. As elites campo-grandenses, como
aquela que figurava a revista Grifo, representavam enaltecidamente um regime que teve as torturas e os
assassinatos como marcas; que tinha um manual de como os militares deveriam torturar para extrair
confissões; que praticavam choques, afogamentos e sufocamentos para obter informações; agentes que
perpetraram crimes contra a humanidade - tortura, estupro, assassinato, desaparecimento- que vitimaram
opositores do regime e implantaram um clima de terror para sustentar seus conceitos de sociedade.
70
própria habilidade política, insuficiente para garantir o apoio e a
cumplicidade dos principais capitães da política local, Pedro Pedrossian,
Mendes Canalle, José Fragelli e Rachid Derzi. Em qualquer das
hipóteses, a destituição do ―Gauchão‖ só foi possível quando essas
lideranças apresentaram ao governo federal um consenso momentâneo, já
que Amorim havia sido nomeado justamente para por fim a uma crise
resultante da ―falta de consenso‖ entre essas lideranças (CHACHA, 1979,
p. 19).
A conjuntura de disputa política somada à ânsia pelo poder contribuiu para que os
principais mandantes locais, como Pedro Pedrossian, Mendes Canale, José Fragelli e
Rachid Derzi, articularem a saída de Harry Amorim, já que eles dependiam da política
clientelista dos militares para se manterem no poder. Com a queda de Amorim assumiu em
seu lugar, sob eleição do Colégio Eleitoral, Marcelo Miranda Soares39
. No fim, no lugar
daquele ideário tecnocrático permaneceram as velhas práticas.
Todos os nomeados, posteriormente, para exercer o cargo de governador biônico
em Mato Grosso do Sul, nos seus dez primeiros anos de atividade, foram políticos ligados
ao partido ARENA, que tinham influência e trânsito político na região, e que, obviamente,
seguiam as providências dos militares. Ex-senadores, ex-prefeitos e ex-deputados, como
Pedro Pedrossian, Marcelo Miranda Soares e Londres Machado, que foram nomeados
governadores não deixariam de exercer cargos políticos até suas aposentadorias.
Entre as idas e vindas de governadores e as inconstâncias políticas, várias
transformações e reformas foram empreendidas na esfera administrativa. Em 30 de julho
de 1979, o governador Marcelo Miranda, que sucedeu Harry Amorim Costa, extinguiu a
Secretaria para Desenvolvimento de Recursos Humanos, juntamente a Fundação da
Cultura, como se observa pelo Decreto-Lei nº 117: ―Art. 14 – O Poder Executivo fica
autorizado promover a extinção das Fundações relacionadas nos incisos I a V, do art. 7º do
Decreto nº 8 de 1º de janeiro de 1979‖ (DOEMS Nº 145, 1979, p. 2).
Apesar da extinção da Fundação de Cultura esse governo ainda manteve o
Conselho Estadual de Cultura, supervisionado pela Secretaria de Desenvolvimento Social
que, posteriormente, proporia o trabalho que resultou no Documento Preliminar – Política
Estadual de Cultura (1981).
39
Harry Amorim Costa esteve à frente do governo estadual apenas por pouco mais de cinco meses, com sua
queda, assume interinamente o presidente da Assembleia Legislativa da época Londres Machado até a
indicação de Marcelo Miranda Soares. Os três governadores temporários integravam o ARENA, o partido
político brasileiro criado em 1965 com a finalidade de dar sustentação política ao Regime Militar.
71
O governador Marcelo Miranda (1979-1980) eliminou as várias fundações da área
social que existiam em 1980, a Fundação de Cultura foi transformada neste período em
um pequeno Departamento Estadual de Cultura. Segundo Américo Calheiros, artista que
trabalhou na primeira fase da Fundação, essa ação do governo na época não ajudou na
promoção de uma política cultural, pelo contrário:
O DEC [Departamento Estadual de Cultura] muito pouco pôde fazer.
Ficou, porém, a consciência de que havia mercado produtor e consumidor
de cultura. Muitas reclamações, verba irrisória, o tradicional paternalismo
e a ausência de uma política cultural abrangente foram as marcas do
tumultuado governo instalado pelas forças políticas que assumiam o
poder, destituindo, em seguida, Marcelo Miranda Soares para que o nome
de Pedro Pedrossian fosse ungido ao governo do Estado (CALHEIROS,
1985, p. 39)
Somente mais tarde, em 15 de novembro de 1982, Wilson Barbosa Martins e
Ramez Tebet, governador e vice, respectivamente, representariam, de fato, o
restabelecimento das eleições diretas para governador. As quais estavam suspensas pelo
regime militar desde 1966 (CHAGAS, 2016). Tal chapa eleitoral foi eleita sob um pleito
histórico, tanto para o estado quanto para o restante do Brasil, haja vista o grande
significado que teve para a conjuntura política o restabelecimento das eleições diretas para
governadores.
Esta eleição foi extremamente importante, pois representou a derrota do candidato
apoiado pela ditadura, o ex-senador biônico Pedro Pedrossian. Marcou o retorno à
normalidade democrática após três governos interrompidos pela ação conjunta de
negociações de gabinete das elites político-econômicas e de atos autoritários do regime
militar. O vencedor, Wilson Barbosa Martins, tinha um histórico marcado pela participação
em movimentos estudantis, pela postura crítica em relação aos atos militares, e,
principalmente, por ter, em 1969, seu mandato parlamentar na Câmara dos Deputados
cassado e ter seus direitos políticos suspensos por dez anos40
pelo Ato Institucional nº 5.
Ao mesmo tempo, era se caracterizava por fazer parte de uma tradicional oligarquia
pecuarista em Mato Grosso. Desta maneira, seu governo representou, antagonicamente, um
40 Após ter seu mandato cassado Wilson Barbosa Martins foi eleito para o diretório do MDB, em 1974, mas
não pode ocupar o cargo devido à perda de seus direitos políticos. Adiante, teve que aguardar obter do
Tribunal Superior Eleitoral a recuperação de seus direitos políticos, que ocorreu somente a partir da
declaração de Anistia, ocorrida em agosto de 1979. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/wilson-barbosa-martins.
72
momento em que as esquerdas e a sociedade civil mais ampla se uniram para repudiar a
ditadura dos militares, mas, em contra partida, afirmando o prevalecimento das elites rurais
(NEDER, 2011, p. 320).
Nesse seguimento, foi somente em dezembro de 1983, após essas sucessivas
mudanças de governo, que o governador Wilson Barbosa Martins recriou a Fundação de
Cultura. Passado o recesso de final de ano, em janeiro de 1984, ele reestruturou a
instituição com o objetivo de ―implementar as diretrizes estabelecidas pelo Governo do
Estado na área cultural‖, conforme está descrito no site da instituição41
.
A Fundação de Cultural de Mato Grosso do Sul, foi resultado de ações políticas
envolvendo departamentos, instâncias governamentais e disputas de poder num momento
de forte instabilidade política, que tinha como marca entradas e a saídas rápidas de
governadores em um curto espaço de tempo. Desde o início dos anos 1980 as relações
políticas foram oscilando até a sua efetiva instalação, em 1984.
Com a aprovação do novo estatuto da Fundação de Cultura, pelo decreto nº
2.417, de 13 de janeiro de 1984, instituiu-se o órgão da Presidência da instituição. Neste
processo de recriação e reestruturação José Octávio Guizzo foi indicado pelo Conselho
Estadual de Cultura para exercer o novo cargo.
A indicação de Guizzo à presidência da Fundação de Cultura, que ocorreu em
1984, foi em virtude da sua atuação como militante, político e pesquisador da própria cena
cultural da região, mas, também, pelas relações pessoais que mantinha com integrantes do
governo, sobretudo, com aqueles que integravam a secretaria responsável pela Fundação.
Seu trabalho enquanto advogado e estudioso o credenciou como intelectual e crítico, e suas
relações políticas o avalizaram como presidente de uma autarquia governamental voltada à
determinação das ações culturais oficiais do Estado de Mato Grosso do Sul.
A sua atuação política a frente da Fundação de Cultura foi marcada por inúmeros
empreendimentos culturais que já eram defendidos pelo Conselho, desde 1981. Sob a
gestão de Guizzo foi criado o Centro Cultural de Mato Grosso do Sul, um espaço para
exposições e para cursos voltados à população, um lugar onde os artistas, as vezes
iniciantes, e os considerados ―regionais‖ poderiam exibir seus trabalhos. Criou-se a TV
Educativa, cuja programação estaria voltada para auxiliar o ensino; o Trem da Cultura,
uma locomotiva que partia de Campo Grande e percorria diversas cidades do estado
41
Disponível em: www.fundacaodecultura.ms.gov.br. Acesso em: 18 de maio de 2015.
73
promovendo música, dança, artes plásticas e literatura para as demais localidades de Mato
Grosso do Sul e, por fim, foi criada a revista MS Cultura, que reunia artigos, crônicas e
reportagens sobre a cultura sul-mato-grossense.
A TV Educativa, como rede pública de Mato Grosso do Sul, começou suas
atividades em 1984, quando foi inaugurada como uma emissora repetidora, que apenas
transmitia programas produzidos em outros estados, sobretudo, em São Paulo e Rio de
Janeiro. Somente, mais tarde passou a produzir seus próprios programas. Por intermédio
dela foram criados musicais e programas de entrevistas, com os temas específicos como
educação, saúde e esporte, entre outros. Durante seus primeiro anos a TVE esteve
vinculada a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Posteriormente, ela teve sua
sede transferida para o Parque dos Poderes, onde estão localizadas as secretarias estaduais.
O novo prédio, por fim, foi considerado um cartão postal da cidade de Campo Grande, pois
é considerada uma obra contemporânea, com destaque para a torre com 116 metros de
altura e que é considerada a mais alta torre de alvenaria da América Latina42
.
Tais criações e ações culturais estavam alinhadas ao que já se tinha estabelecido
com o decreto de nº 2.663, de agosto de 1984, que trazia em seu artigo primeiro as
finalidades da Fundação de Cultura:
Art. 1º - A Fundação de Cultua de Mato Grosso do Sul – (FCMS)
supervisionada pela Secretária de Desenvolvimento Social, tem por
finalidade primordial a produção e veiculação de programas de rádio e
televisão educativa e outras tecnologias educacionais, bem como, a
difusão artística e cultural, o desenvolvimento do artesanato e a
preservação do patrimônio histórico, cultural e artístico no Estado
(DOEMS nº 1.399, 1984, p. 16).
A proposta da Fundação de Cultura era contribuir para com o engajamento de
intelectuais, artistas e instituições que pudessem salvaguardar e desenvolver a cultura
entendida como singular da região.
2.1 A Comitiva Esperança e a busca por uma pantaneidade para Mato Grosso do Sul
Os paradigmas identitários de Guizzo foram bastante significativos na orientação
das políticas culturais implementadas pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.
42 Disponível em: http://portaldaeducativa.com.br/site/institucional/. Acesso em 17 de julho de 2016.
74
Este programa não estaria ausente das políticas culturais do governo do estado no setor
cultural, que mostrava intensa preocupação em estimular empreendimentos que
concordassem com o projeto identitário de Guizzo no intuito de firmar uma representação
delimitada da cultura sul-mato-grossense. O governador Wilson Martins que deu atenção a
esta área, ao reinstituir a Fundação de Cultura, alinhou-se ao contexto da época e
favoreceu as iniciativas nessa esfera.
Sob a responsabilidade de Guizzo, a Fundação concretizou a ideia de retratar o
Pantanal na busca por sua consolidação como símbolo de Mato Grosso do Sul. O projeto
Comitiva Esperança, que entre novembro de 1983 e janeiro de 1984, percorreu diversas
regiões do Pantanal. A iniciativa obteve apoio/financiamento da Fundação de Cultura
(governo) – e, por este apoio, conclui-se que a proposta não contrariava os interesses
identitários organizados por Guizzo –, da Funarte e da Embrafilmes43
. O projeto, por fim,
resultava em uma questão de múltiplos interesses, o político que buscava estabelecer o
Pantanal como lugar excepcional e fundamental para a conservação da fronteira, o cultural
que buscava designá-lo como um paraíso das águas, lugar edênico e paraíso ecológico para
a produção do que seria a verdade cultural do estado44
, e o comercial que procurava
estruturá-lo enquanto um produto turístico45
e de desenvolvimento regional. Tais
iniciativas como apontou Néder (2011, p. 321),
43
A Embrafilme foi uma empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos. Foi
criada através do decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, como Empresa Brasileira de Filmes
Sociedade Anônima. Enquanto existiu, sua função foi fomentar a produção e distribuição de filmes
brasileiros.
44 Nota-se que, com a possibilidade de financiamento pelo estado de projetos com vistas àquilo do que se
poderia chamar de verdade regional, alguns atores culturais como Paulo Simões, por exemplo, deixaram de
lado as propostas descompromissadas daqueles anos iniciais. Simões havia criticado as inscrições a seu
respeito enquanto músico regional ao afirmar que o ―rótulo funciona mais para quem queira explicar, do que
para quem faz‖ (SIMÕES apud ZILIANE, 2000, p. 75). No entanto, a partir do Comitiva Esperança ele
parece se distanciar de sua própria crítica e passa a incorporar a proposta de Guizzo para a identidade sul-
mato-grossense.
45 Segundo Kmitta (2014, p. 46), as representações sobre o Pantanal a partir da década de 1970, para a sua
inserção em uma nova atividade econômica para o Estado e a veiculação de imagens para fins turísticos,
procuraram apresenta-lo como um lugar natural, contudo, artificializado. Difundiu-se uma representação
deslocada do real onde as águas preenchem em grande parte esse imaginário, tal a grandeza e o encantamento
com que são apresentadas. Em tal construção representativa a realidade do espaço tem importância inferior
ao sistema de imagens que redirecionam à paisagem e à cultura, e respondem ao consumo que se destina,
portanto, uma natureza/mercadoria. No caso do Pantanal a imagem comercializada é de um santuário
ecológico, paraíso de espécies da fauna e flora, do mosaico das águas espraiadas, atuando como pano de
fundo para sua comercialização turística. Encanto e natureza mesclados e direcionados à construção de um
imaginário turístico, onde muitas paisagens são arquitetadas pelas linguagens criadas, pelos sistemas míticos,
narrativos, simbólicos e pelos performativos.
75
Explicitava-se em uma convergência dos múltiplos interesses – políticos,
culturais e comerciais – em torno do Pantanal como referência identitária
do estado implementado apenas cinco anos antes. Essa convergência é
sinal, tanto da nova respeitabilidade da MLC [Música do Litoral Central],
quanto de sua institucionalização, ao ser legitimada por vários atores para
falar em nome do estado, coisa impensável nos primeiros tempos em que
era considerada coisa de ―malucos‖, como dissera Celito. Não é de se
espantar que, nesse contexto, artistas da MLC, como Simões, deixassem
de lado as propostas descompromissadas dos anos iniciais, e se voltassem
para uma busca do que lhes parecia ser a verdade cultural do estado
(NEDER, 2011, p. 321, grifos do autor).
Como resultado deste empreendimento teve-se a apresentação de um filme que
retratava a viagem realizada, em 1984, por Almir Sater, Paulo Simões e Zé Corrêa ao
interior do Pantanal. O objetivo dos músicos era realizar uma comitiva, acompanhada de
peões a fim de conhecer a vida no Pantanal sul-mato-grossense, para instaurar uma
pantaneidade46
. A Comitiva Esperança percorreu mais de mil quilômetros e tinha como
objetivo conhecer e compreender a cultura e a vida pantaneira. Seus protagonistas
buscaram mostrar as ligações culturais da realidade do Pantanal para justificar a legítima
música sul-mato-grossense, pois se imbuíram no projeto de construção identitária de
Guizzo. O Pantanal seria o selo distintivo de Mato Grosso do Sul.
O projeto, que gerou um documentário em 16mm (média-metragem), procurou
mostrar o homem pantaneiro e sua realidade47
. Foi dirigido por Wagner Paula de Carvalho
e recebeu o título de Comitiva Esperança, uma viagem ao interior do Pantanal, pretendeu
demonstrar a alma do pantaneiro, através dos sons, das imagens e da rotina do homem no
Pantanal. O registro cinematográfico foi feito pela produtora Tatu Filmes e distribuído pela
Embrafilmes, uma vez que os músicos não se propunham realizar um levantamento
etnográfico de fato (NEDER, 2011, p. 322-323).
O filme obteve prêmios de melhor trilha sonora na XIV Jornada Internacional de
Cinema da Bahia (1985), melhor fotografia no Festival de Brasília do Cinema
46 Optou-se pelo termo pantaneidade para se referir aos aspectos identitários da cultura pantaneira e de ser
pantaneiro. No entanto, consta na dissertação de Pollianna Thomé, intitulado A mulher e o Pantanal: uma
relação de trabalho e identidade (2008), a terminologia pantaneiridade, que também expõe o sentido de
cultura pantaneira ou ser pantaneiro.
47 O filme está disponível para apreciação no MIS – Museu da Imagem e do Som, em Campo Grande/MS,
mas, pode-se encontrá-lo, também, acessível pela Internet no endereço eletrônico:
https://www.youtube.com/watch?v=4Ch3mVOYUsA.
76
Brasileiro/DF (1985) e melhor montagem no Festival de Cinema de Fortaleza, no estado
do Ceará, em 198548
.
Imagem 5 – Capa do filme-documentário Comitiva Esperança
Fonte: MIS – Museu da Imagem e do Som – Coleção MS
Um dos membros e idealizadores do projeto, Paulo Simões, comentou que tal
experiência lhe proporcionou a ampliação do conhecimento sobre a região, sobre seus
costumes, sobre as convivências sociais e à carinhosa cultura acolhedora:
48
Disponível em Cinemateca Brasileira: http://www.cinemateca.gov.br/a-cinemateca-programas-e-
projetos#banco-de-conte-dos-culturais.
77
Entre novembro de 1983 e fevereiro de 1984, nossa comitiva se pôs na
estrada, percorrendo o Paiaguás, Nhecolândia, Piquiri, São Lourenço e
Abobral. Ouvindo moradores, peões de comitiva, trovadores, mascates e
outros representantes da comunidade pantaneira, fomos conhecendo os
aspectos mais íntimos daquela região e retribuindo com nossa música, em
momentos festivos, à carinhosa acolhida que encontramos49
.
Os músicos protagonistas da viagem se engajaram no Pantanal e em todos os
elementos a ele agregados, como a fauna e a flora, a pecuária, o modo de vida pantaneiro, a
ferrovia Noroeste do Brasil e os ritmos singulares da música tocada na região como os
elementos que deveriam compor a identidade sul-mato-grossense. Eles elegeram e
impuseram o que seria a legítima cultura musical do estado, ainda que, as demais regiões
não se reconhecessem necessariamente no Pantanal, tendo em vista a identidade ser uma
construção imaginária (MARIN; SANCHES, 2010, p. 5).
Imagem 6 – Simões e Sater aguardando transporte com a matula
Fonte: MIS – Museu da Imagem e do Som – Coleção MS
No documentário são exibidas imagens de festas típicas, das paisagens naturais,
do cotidiano dos peões, dos trovadores, dos compositores e dos músicos protagonistas.
49
Disponível em: http://brasilfesteiro.com.br/projetos/projetos_comitivaesperanca.html.
78
Grande parte das canções produzidas durante o percurso pelo Pantanal, posteriormente, se
popularizaram e se consolidaram como emblemas da pantaneidade e da identidade sul-
mato-grossense. A canção de maior destaque, Comitiva Esperança50
, composta durante a
viagem e que leva o próprio nome do projeto/viagem foi composta por Almir Sater e Paulo
Simões e teve divulgação em âmbito nacional (MARIN; SANCHES, 2010, p. 6).
Observa-se a partir de algumas das fotos tiradas ao longo da viagem que havia a
preocupação em demonstrar as dificuldades sobre o modo de vida, o tipo alimentar e até
mesmo sobre as vestimentas necessárias para a inclusão no ―mundo‖ pantaneiro. As fotos
apresentadas dão uma noção, propositalmente estruturada, desde o início do projeto, de
como deveria ser tal ―missão‖.
Imagem 7 – Os músicos protagonistas no Pantanal: Simões, Sater e Corrêa
Fonte: MIS – Museu da Imagem e do Som – Coleção MS
50
Tal música foi tema da novela Pantanal, produzida pela extinta rede Manchete e exibida pela primeira vez
em 1990. Foi reprisada outras quatro vezes, a última pela rede SBT. A novela teve Almir Sater como
protagonista e galã. Foi veiculada em escala nacional e incluía na sua trilha sonora várias das canções
produzidas por aqueles artistas e serviu inegavelmente como reforço à auto-estima do sul-mato-grossense. A
novela superou os índices de popularidade da TV Globo, abalando sua hegemonia e impondo um novo filão,
o da novela ecológica (NEDER, 2011, p. 336).
79
Enfim, pode-se concluir que a Comitiva Esperança foi mais uma das ações que
contribuíram para a estruturação daquilo que Guizzo pensava para a identidade de Mato
Grosso do Sul. Os músicos protagonistas das composições realizadas durante a viagem
eram os mesmos que Guizzo havia definido na obra A moderna música popular urbana de
Mato Grosso do Sul (1982). Com realização da viagem e o resultado do projeto, tais
artistas passaram a ter mais ligações com aquilo que Guizzo estabeleceu como legítimo da
região.
Ainda que os resultados de tal empreendimento não saíssem de acordo com os
objetivos iniciais estaria de qualquer forma contribuindo para evidenciar a meta principal:
divulgar o Pantanal enquanto marca identitária de Mato Grosso do Sul. De fato, foi o que
aconteceu, como apontou Paulo Simões:
Houve uma overdose de expectativas musicais nessa viagem.
Esperávamos encontrar artistas pululando pelo Pantanal, o que foi um
engano. Achamos alguns isolados que justificaram nossa ida até lá. Um
velhinho, seu André Preto, foi talvez um dos únicos sábios vivos que eu
conheci até hoje sobre a terra. Poeta, pantaneiro, negro e trabalhador.
Descobrimos a realidade pantaneira em oposição ao pantanal sonho [...]
Saímos em busca de festas de fazenda, onde houvesse gente, que nos
falasse, por exemplo, do Pantanal, paraíso Zen, com a rotina sendo o
corolário da segurança e nos decepcionamos. O céu é só para um, está do
lado de fora. Para quem vive lá dentro, pode parecer um inferno. Foi uma
dialética que procuramos destrinchar. Só que com recursos insuficientes,
com prazos reduzidos e até com resultados insatisfatórios. Porque na
época ninguém se interessou pelo projeto. Descobri que o tesouro
pantaneiro não está em festas de peões, mas guardado na memória do
pantaneiro. O cérebro do pantaneiro é diferente do nosso. Ele não é afeito
à precisão, é meio índio, meio zen em sua relação com a natureza. E eu, o
Almir, o Zé Gomes, o pessoal da Comitiva Esperança não éramos
exploradores ansiosos, caçadores da arca perdida, loucos para abri-la e
exclamar: Olhem só o que achamos, vejam o que descobrimos! Nossa
recompensa foi nosso aprendizado (SIMÕES apud SÁ ROSA, 1992, p.
88-89).
A ascensão do Pantanal, como produto turístico, e a visibilidade nacional e
internacional, provocou uma nova valorização desse ecossistema antes desprezado como
inóspito, improdutivo devido às cheias e símbolo da privação. O Pantanal, a partir da
década de 1980, adquiriu centralidade em vários discursos: no ecológico, no turístico, no
empresarial e no governamental. Além, é claro, de reter o lugar influenciador nos discursos
80
do naturismo e ecológico desde o princípio nas canções daqueles grupos musicais já
mencionados.
É tangível que a escolha do Pantanal, feita pelos integrantes da Comitiva
Esperança e por Guizzo, não se configurou mera coincidência, dado que, com a criação de
Mato Grosso do Sul, seria necessário àqueles que direcionavam as ações governamentais
realizar uma série de eventos que pudessem construir a identidade sul-mato-grossense
como algo exclusivo, pautado em uma singularidade natural e diferente de qualquer outra
região do país. O propósito de tal ação estava próximo aquilo que se procuravam fazer com
a identidade nacional, dar sustentação para a busca de elementos comuns que pudessem
servir de identificação para todos dentro de determinado recorte espacial (país ou estado).
No sentido de que isso contribuiria à condução de uma identificação entre os integrantes do
grupo regional. Seria algo essencial para se fortalecer e evitar a fragmentação, a
dissidência e o esfacelamento de um país51
, ou como neste caso específico, de um estado.
As propostas de Guizzo, de estabelecer o Pantanal como símbolo identitário e
produto turístico foram amparadas pelo governador Wilson Barbosa Martins. A noção da
importância dada por ele compreende tanto as efetivas inovações estéticas na música
quanto de reflexões culturais sobre a vida e as belezas naturais do Pantanal. A sua
institucionalização e legitimação, realizada por diferentes atores sociais (políticos do
governo estadual, professores da Universidade Federal, e alguns empresários de Campo
Grande), contribuiu para o prestígio que foi explicitamente outorgado pelo governo
estadual (na forma de apoio declarado, econômico e/ou institucional, para os festivais
musicais, intercâmbios, iniciativas como o Projeto Pantanal, realizado pelo Grupo Acaba,
além da própria Comitiva Esperança), pela televisão, pela iniciativa privada e pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (projeto Prata da Casa52
, filme Caramujo
51
As preocupações sobre a possibilidade de descoberta de uma identidade nacional (regional), se
constituíram a partir de outras iniciativas que se organizaram em várias partes do mundo. Em suma, a busca
por uma identidade nacional esteve ancorada à necessidade das nações-estado, recém criadas, de se
estabelecer como autônoma, singular e soberana. Mesmo que a partir de uma realidade heterogênea de
conjuntos humanos e com traços culturais, por vezes, radicalmente diferentes (ANDERSON, 2008, p. 32).
52 Em maio de 1982, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) promoveu o Festival Prata da
Casa. O evento foi considerado por Gilmar Caetano (2013, p. 104), como um dos mais importantes episódios
da história musical e cultural do de Mato Grosso do Sul. O episódio aconteceu com a participação de artistas
atuantes na cena musical campo-grandense. O festival revelava-se para além da apresentação de seus mais
importantes músicos, como uma tentativa de propagar a ideia de uma cultura regional projetada pelas elites
sul-mato-grossense, pois, reuniram-se representantes das instituições intelectuais, políticas e artísticas da
região, como a UFMS, a ASL, por exemplo.
81
Flor53
e outros). Além disso, o prestígio dado ao Pantanal se evidencia pela própria atitude
sintomática de seus compositores, ao assumir o papel de desveladores da verdade cultural
do pantaneiro e da música do estado (NEDER, 2011, p. 332).
Criticamente, esse modelo homogeneizador da cultura foi centrado justamente na
ideia de que as identidades inventadas, como a pantaneidade de Guizzo, só podiam existir
à base do estabelecimento das diferenças. Por isso, qualquer projeto que procura uma
identidade deve ser colocado sob suspeita. A tentativa de privilegiar (exclusividade) a
cultura pantaneira como detentora da identidade de Mato Grosso do Sul, mesmo que
partilhada por alguns grupos étnicos e populacionais da região faz recusar a enorme
diversidade cultural existente em Mato Grosso do Sul, implicada por escolhas que
visualizam interesses comerciais, políticos e culturais. Visto que, desde a formação
histórica, a região possuiu população formada por diversas etnias indígenas, por gaúchos,
paulistas, mineiros, cearenses, baianos, paranaenses, paraguaios, bolivianos entre outros.
Cada uma destas contribuições culturais se organizou, em termos culturais, pela música
sertaneja comercial, pelo jazz, pelo funk, ou pelo rock, todas elas representam vozes e
práticas culturais que merecem ser ouvidas. A singularidade do estado se constitui a partir
do acolhimento a todas estas diferenças, enquanto a ênfase na noção de identidade serve ao
intento de neutralizá-las em favor de um projeto identitário dominante (NEDER, 2011, p.
325).
Como demonstrou Sá Rosa (SÁ ROSA; DUNCAN, 2009. p. 17-18), a formação
histórica de Mato Grosso do Sul foi marcada pelo cruzamento de tendências culturais, que
tornou a região multifacetada. A mesma diversidade cultural também foi atestada por
Paulo Simões ao representar o povo encontrado no interior do Pantanal. Pois o Estado
―além das influências das correntes migratórias que incorporam seu jeito de ser e estar no
mundo ao cotidiano material e moral‖, abriga identidades indígenas, latino-americanas e
fronteiriças. Essa heterogeneidade cultural são marcas distintivas da identidade sul-mato-
grossense (SÁ ROSA; DUNCAN, 2009. p. 17-18).
Sabe-se que a identidade esta longe de ser homogênea e legitimamente regional
como Guizzo procurou fazê-la, uma vez que os artistas de Mato Grosso do Sul absorvem
diretamente influências musicais do Brasil, de outros países latino-americanos, da Europa e
dos Estados Unidos, onde ―coexistem ritmos eruditos, populares, como o sertanejo, o
53
Corresponde a obra fílmica de Joel Pizzini. O filme procurou representar os signos verbais e visuais que se
apresentam na construção do texto poético de Manoel de Barros, na obra Gramática Expositiva do Chão.
82
samba, a bossa nova, o reggae, o pop, rock, a polca, o cururu e o siriri‖ (SÁ ROSA;
DUNCAN, 2009, p. 18), e tantos outros acordes da pós-modernidade, cantores e
compositores conviviam sob influências estimuladoras da criatividade musical54
.
Isso correspondia ao oposto do que se queria com projetos como a Comitiva
Esperança, que se mostram como pesquisas resultantes da grande determinação e de um
caráter regional, supostamente perdido pelas trocas culturais e que precisava urgentemente
ser recuperado com a ida à fonte, à origem, ao que é sempre representado como natural e
exclusivo (NEDER, 2011, p. 327).
A partir da construção identitária realizada por Guizzo, calcada em um referencial
pantaneiro, singular, pode-se constatar uma negação pelos músicos, intelectuais e outros
agentes políticos, que lêem de outra maneira a identidade sul-mato-grossense, sem a
―essência‖, a vida e os produtos da cultura, silenciando a variegada complexidade do
horizonte cultural, que se mostrava agitado, vivo, resistente, inconstante e volátil como
toda matriz representativa (SANTOS, 2003, p. 122).
2.2 A construção das diferenças entre MS e MT por meio das representações
preconceituosas de José Octávio Guizo, em 1985
Preocupados em se construir fronteiras simbólicas e diferenças culturais entre os
mato-grossenses e sul-mato-grossenses realizaram investimentos diversificados. Com a
ascendência de Guizzo a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul houve o
estabelecimento de outras medidas à promoção de uma identidade distinta daquela
produzida por Mato Grosso. A criação da revista MS Cultura representou,
significativamente, a institucionalização das aspirações intelectuais de Guizzo para esse
objetivo. A revista era de responsabilidade da Fundação de Cultura e reunia artigos,
crônicas e reportagens sobre a cultura de Mato Grosso do Sul.
Em 198555
, enquanto esteve à frente da presidência da instituição, Guizzo
publicou o artigo História e estórias de uma velha pendenga revisitada. O editorial de tal
54
A hibridação é um processo bastante diferente daquele sugerido pelo projeto do tipo em questão, que
buscava se basear em um repertório homogêneo, numa nítida tentativa de desnudar uma essência. Pela
própria natureza do processo, a hibridação coloca os diferentes materiais lado a lado, simultaneamente, sem
hierarquizar, sem que um seja representado evolutivamente como ―primitivo‖ e o outro como moderno. Tais
processos empregam, quase sempre, distintos tipos de materiais, diferentes e diversas origens, múltiplas
temporalidades, na prova de visualizar nessa fragmentação a perda das referências identitárias fixas.
83
edição consolidava o Pantanal como um referencial cultural importante para a construção
da identidade sul-mato-grossense, pois trazia inúmeras fotos ―das belezas do Pantanal e
não deixava de divulgar acontecimentos culturais da região‖ (GEHLEN; HERRERO,
2011, p. 74-83).
Desde as suas composições musicais que fora vitoriosas nos primeiros festivais,
em 1967 e 1968, consecutivamente e até suas ações políticas, Guizzo tinha como
referência os elementos identitários do Pantanal, do Cerrado, e do modo de vida do homem
pantaneiro. Mas, em contrapartida, também defendeu a existência de inúmeras diferenças
anteriores à divisão. Entre elas, a de um maior desenvolvimento econômico estabelecido
no sul do estado de Mato Grosso em relação região norte, antes da divisão de 1977.
À frente da Fundação de Cultura, esses elementos tornaram-se políticas de
Estado, pois quaisquer manifestações que valorizassem outros referenciais, acabavam
sendo deslegitimadas por ele. No referido artigo, forjou as diferenças étnicas e culturais
que, para ele, diferenciavam Mato Grosso do Sul do Estado de Mato Grosso.
Num ato de categorização e subordinação das diferenças culturais se referia a
existência de biótipos e culturas diferentes entre os habitantes do norte e do sul de Mato
Grosso pré-existentes à criação de Mato Grosso do Sul. A população do norte, na visão de
Guizzo, mantinha, historicamente, entraves econômicos e sociais devido ao distanciamento
do centro econômico do Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro) e à inferioridade biológica e
cultural de sua população, assim sendo, aspectos que justificavam seu atraso econômico e
social. Os mato-grossenses do norte, por serem mestiços entre índio e branco eram
biologicamente inferiores e seu biótipo, como resultado desse cruzamento, configurava-se
como ―baixinho‖, gordo, burro e preguiçoso (GUIZZO, 1985, p. 31).
Guizzo, entendia a mestiçagem ocorrida no norte como um dos fatores causadores
da desvantagem econômica e cultural do norte em relação ao sul. Sua perspectiva sobre a
inviabilidade econômica da população do norte aproximava seus argumentos do
pensamento do final do século XIX, em que os escritores, os políticos e os cientistas
repensaram a identidade cultural e política do Brasil em meio às transformações que
55 Em 2008, o artigo de Guizzo foi republicado na revista Cultura em MS, também da Fundação de Cultura
de Mato Grosso do Sul. O artigo republicado neste ano contou com uma apresentação e uma homenagem
enaltecida de seu amigo Valmir Batista Corrêa, historiador e membro do IHGMS.
84
levaram ao fim da escravidão em 1888 e à implantação do regime republicano em 188956
.
Ele seguia as teorias raciais que desde o século XIX baseavam-se na crença da
inferioridade dos não brancos, assim, suas concepções racistas e seu preconceito de cor
ganharam ares de ciência. Ou seja, situava os mato-grossenses do norte nos limites da
humanidade em razão da mestiçagem de raças e da cultura inferiores, o que explicaria as
diferenças nos estágios evolutivos no âmbito econômico e cultural entre o norte e o sul.
Tais concepções negativas e racistas são reflexos dos seus preconceitos de cor e diante das
diferenças culturais.
O olhar branco e racista de Guizzo o levou a negar os costumes, as características
linguísticas e a mestiçagem ocorrida na porção norte do estado. Assim, ele excitava os
processos geradores de alteridade a partir dos seus preconceitos e de sua ideologia racista.
Por conseguinte, não cessava de fabricar o outro mato-grossense e de desqualificá-lo
enquanto contribuinte para o progresso e desenvolvimento de Mato Grosso. Na perspectiva
de Guizzo, os habitantes do norte seriam a pura negatividade biológica e cultural e
símbolos do atraso econômico.
Já os sulistas foram representados por ele com características biológicas e
culturais superiores, que os habilitavam para o desenvolvimento econômico e cultural
devido à superioridade racial da população. A população sulista seria descendente dos
bandeirantes paulistas, dos gaúchos e dos mineiros, cada qual contribuindo com aspectos
diferenciados: o gosto pelo progresso dos bandeirantes paulistas, os ideais revolucionários
e a bravura dos gaúchos e a astúcia e sagacidade política dos mineiros. Como decorrência
da superioridade étnica e cultural, os sulistas seriam um povo branco, de olhos azuis, altos,
inteligentes, astutos, intrépidos, progressistas, que tinham iniciativa, sendo obstinados e
56
A teoria das desigualdades raciais se difundiu no Brasil nas três últimas décadas do século XIX, junto com
os ideários naturalistas, positivistas e evolucionistas. O chamado racismo científico foi adotado por
escritores, políticos e cientistas e teve uma acolhida entusiasta nos órgãos de imprensa e nos estabelecimentos
de ensino e pesquisa (faculdades, instituto histórico e museus). No final do século XIX, intelectuais como
Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha encaravam a mestiçagem como uma desvantagem
evolutiva e uma ameaça à civilização brasileira. Os acontecimentos do final do século XIX e início do XX
trouxeram questionamentos sobre o futuro do país, cujo atraso era atribuído à grande diversidade de sua
população. Aqueles letrados se mostravam divididos entre a valorização dos aspectos originais do povo
brasileiro e a meta de se construir uma sociedade branca de molde europeu. Temido por boa parte das elites
locais, o cruzamento de raças no final do século XIX era tomado como pista para explicar a possível
inviabilidade do Brasil como nação. O racismo daquele século se ligava aos interesses de uma elite letrada
preocupada em se diferenciar da massa popular. As concepções racistas se tornaram parte da identidade da
classe senhorial e dos grupos dirigentes em uma sociedade hierarquizada e estamental (VENTURA, 2000, p.
331-352).
85
persistentes para conquistarem seus objetivos. Para Guizzo (1985, p. 31) o sulista seria a
representação do homem símbolo do progresso:
Na realidade, etnicamente nós formamos biótipos diferentes. O cuiabano
é puxado pro curiboca (cruza de índio com branco), meio atarracado, QI
elevadíssimo de tanto comer cabeça de bagre, quer dizer de pacu, rico em
fósforo, segundo eles; enquanto que o sulista, bem ... ... o sulista é a
resultante de uma tríade eugenésica: a dos intrépidos bandeirantes
paulistas de quem herdamos a tez alva e o gosto pelo progresso, a dos
valentes gaúchos de quem recebemos o espírito revolucionário, a
indômita bravura, o porte altivo e os olhos azuis e a dos astutos mineiros
de quem legamos a sagacidade política e a fama de come-quietos (grifos
do autor).
Com base nos critérios biológicos, Guizzo atestou a existência de hierarquias
raciais em Mato Grosso, que justificavam o maior desenvolvimento econômico e cultural
do sul em relação ao norte. Assim, ele naturalizava as diferenças de desenvolvimento
econômico e cultural, a partir de um discurso racista e preconceituoso. Procurava, dessa
forma, justificar a divisão de Mato Grosso com base na ideia de que já existia um estado
diferente e independente na porção sul.
Leva-se em conta que, a região não é um território naturalizado, a-histórico. As
regiões nascem, nessa lógica, da produção de sentidos que buscam organizar o mundo,
para melhor ordená-lo, classificá-lo, esquadrinhá-lo, dominá-lo, as regiões são invenções
humanas que nascem de práticas de significação e de ordenação do mundo que trazem
imanentes estratégias de poder, de domínio, de controle, de separação, de inclusão e
exclusão. O regionalismo, ao inventar as regiões, forja subjetividades, fabrica a região e
produz as diferenças, trazendo-a à existência como uma região conhecida e reconhecida.
Por fim, a região é um objeto em constante construção e reconstrução (ALBUQUERQUE,
2008, p. 66).
As elites mato-grossenses, sobretudo as de Cuiabá, desde as primeiras décadas do
século XX, já reivindicavam a descendência dos ―nobres‖ bandeirantes para redefinir a
identidade mato-grossense e revogar os estigmas de Mato Grosso como um lugar atrasado,
isolado, distante da civilização e povoado por gente bárbara e violenta57
. Nas
57
As representações de Mato Grosso como um protótipo do Sertão são recorrentes, nos vários escritos sobre
a região, durante todo o período imperial. Distante e desconhecida, sem meios de comunicação eficazes com
o litoral e mesmo com as províncias mais próximas, a Província era identificada pela negatividade: não
possuía uma atividade produtiva de peso ou vias de comunicação que encurtassem as distâncias com o litoral
civilizado. Nas representações sobre a sociedade local, os intelectuais traduzem o drama da tradicional elite
nortista, assustada diante dos sinais de estagnação do seu espaço de reprodução social. Esse quadro explica
86
representações da identidade regional construídas pelos ―nortistas‖, os cuiabanos seriam
descendentes de uma ―estirpe cuiabana‖, herdeira do sangue bandeirante e que carregavam
qualidades raciais superiores. Nesse sentido, Guizzo negava a descendência bandeirante
para Mato Grosso e a reivindica com exclusividade para Mato Grosso do Sul, ressaltando,
também, o papel dos migrantes mineiros, gaúchos e paulistas na formação da população.
De fato, a questão é: tanto José Octávio Guizzo, agora sul-mato-grossense, quanto
os mato-grossenses, quando defendem uma representação de população ―superior‖, branca,
inteligente e/ou bandeirante e dos migrantes, silenciam a presença daqueles fronteiriços
que por várias vezes foram representados como inferiores, indolentes, preguiçosos e/ou
criminosos - neste caso, principalmente os paraguaios e os bolivianos.
Desde o final do século XIX os paraguaios eram a maioria dos imigrantes
estrangeiros na região, devido à fronteira, seca ou fluvial, permitir vários pontos de
passagem, principalmente entre Ponta Porã e Bela Vista58
. Nas conjunturas desfavoráveis,
vários paraguaios, fugindo das crises geradas pela guerra, atravessaram a fronteira e
refugiaram-se no Brasil. Com isso, as uniões inter-raciais tornaram-se frequentes,
formando uma numerosa população mestiça. Fazendeiros e militares neste período
destacaram-se por deixarem número significativo de descendentes de todas as cores. Havia
quantidade relevante de homens e falta de mulheres, o que tornou comum as uniões
interétnicas. Diferentemente daquele sul-mato-grossense branco e de olhos azuis
representado por Guizzo, o pantaneiro e o fronteiriço presentes nessa região tinham, em
sua maioria, pele escura e cabelos lisos (MARIN, 2004, p. 328-329).
Lévi-Strauss notou que na região era notável a mistura das tradições brasileira,
paraguaia e argentina, além daquela advinda do sul do próprio Brasil. Algo que nos
em parte o fato de os mato-grossenses do norte manifestarem significativa preocupação e desagrado em
relação às apreciações negativas que se faziam a cerca do estado. A consciência do atraso de Mato Grosso era
aguçada pela visão que os próprios mato-grossenses expressavam acerca da situação do estado quando
confrontada com o grau de progresso e civilização que vinha sendo atingido por outras unidades da
federação. Nesse sentido, nos jornais e revistas editados em Cuiabá neste período podemos encontrar sinais
do dilema de um mal estar cultural, provocado pela dolorosa imagem de viver num lugar atrasado, distante
dos avanços da civilização, estigmatizado como bárbaro e violento. Em contrapartida, para a redefinição da
imagem de Mato Grosso, intelectuais da elite cuiabana pensaram e selecionaram aspectos culturais e
ideológicos que pudessem redefinir a imagem do mato-grossense, que passaria a ser representado pela elite
local como um espaço de abundância, que tinha inesgotáveis riquezas naturais e uma geografia que
adequava-se aos mais diversos empreendimentos (GALETTI, 1995, p. 3-15).
58 Estes dois municípios localizam-se no sul do estado de Mato Grosso do Sul na atualidade, porém antes da
Guerra com o Paraguai o território correspondia ao Paraguai.
87
direciona a interpretação de que houve grandes fluxos populacionais e hibridações
culturais (MARIN, 2004, p. 329).
Guizzo silenciou tal constatação histórica ao enfocar a criação e demarcação das
diferenças culturais entre o norte e o sul de Mato Grosso. Para ele, não existia nenhuma
aproximação, pois os habitantes do sul não consumiam o guaraná ralado e o pequi e
valorizavam o tereré e a chipa, contribuições culturais paraguaias. No artesanato não se
interessavam pela arte rendeira ou ceramista do norte. Na música e na dança não
cultivavam as festas do Cururu e do Siriri, mas sim outros ritmos como a Catira e o
Pericão. Segundo Guizzo (1985, p. 31-32),
O guaraná ralado (dizem que o formato do bastão e o remelexo da
nortista no ralar, tornam a bebida extremamente afrodisíaca) e o licor de
pequi (que todo campo grandense costumava estigmatizar dizendo ser um
tremendo de um anticoncepcional), nunca foram introduzidos em nossos
costumes. Assim como nós nunca nos interessamos pela arte das famosas
rendeiras do norte e, nem tampouco, das ceramistas de São Gonçalo [...] o
nosso incipiente movimento literário reflete alguma influência dos
vestutos mestres da Academia Mato-grossense de Letras? E os nossos
artistas plásticos receberam alguns influxos dos de lá? Com exceção de
Corumbá [...] nenhuma outra região de nosso Estado cultiva ou cultivou
as manifestações folclóricas do Cururu e do Siriri. Dançando em outros
ritmos o que o nosso povo sempre praticou foi a Catira e o Pericão [...]
em qualquer outra manifestação artística, nenhum ponto de identidade
que nos aproxima.
Nas falas e nos sotaques haveriam modos diferenciados, a entonação e o dialeto
dos habitantes do norte nunca teriam sido assimilados pelos sulistas:
A dialetologia cuiabana (expressão básica de uma cultura regional) nos
evidencia o modo de falar característico da gente do Norte: Na tchácara
do tchico tchavié tem uma tchapa de tchumbo tochado no tchãoooon [...]
Ou as expressões desse diálogo: Djooon (João) – vai dá de i na casa de
Bidi? Bié – o quar que esse? [...] Essa entonação especial com a qual os
nortistas pronunciam as palavras nunca foi assimilada pelos sulistas
(GUIZZO, 1985, p. 31).
De fato, Guizzo procurou emudecer as hibridações presentes na região e enfocou
as diferenças linguísticas entre as populações de Mato Grosso do Sul e de Mato Grosso
para dar legitimidade a uma cultura pura, diferente e única que para ele seriam importantes
para a consolidação do sentimento regional. Desconsiderou a situação de que desde o final
da década de 1940, constatava-se que no sul de Mato Grosso falava-se três línguas e dentre
88
estas o guarani era a mais utilizada, inclusive pelos militares (SODRÉ, 1941, p. 189).
Enfim, a região dos estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, como corredor,
ponto de passagens e trocas culturais, de convivências e experiências, proporcionou a
diversidade, resultando na multinacionalidade e no multilinguismo (MARIN, 2004, p. 330-
331), os quais foram sistematicamente negados por Guizzo.
Enfim, ele procurou enfocar que desde os primeiros anos do século XX, quando
se deu o início o processo, acalentado por uma parte dos habitantes da porção sul do
estado, de divisão de Mato Grosso, não havia, de modo nenhum, qualquer identificação da
porção sul deste com a parcela cuiabana. No capítulo Cultura e arte em Mato Grosso do
Sul, do livro Memória da arte em Mato Grosso do Sul: Histórias de vida, Sá Rosa recorda
que Guizzo comentava que:
[...] apesar de termos pertencido ao mesmo Estado, nunca nos
identificamos com a maneira de ser dos cuiabanos, que, ao longo dos
anos de abandono, pelo poder imperial, acostumaram-se ao banho no rio,
à fabricação de rendas, ao licor de pequi, à festa do Divino (SÁ ROSA,
1992, p. 14).
Reforçando tais diferenças, Guizzo procurava estruturar uma coletividade sul-
mato-grossense construindo alteridades, elegendo qualidades, valorizando a participação
de uns e diminuindo a dos outros. Assim, a identidade que pretendia construir valorizava as
alteridades, os aspectos polarizados, distintos, que diferenciavam um do outro, com as
operações de incluir e excluir e declarações sobre quem pertencia e de quem não pertencia.
Segundo Silva (2000, p. 82), a
[...] afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre,
as operações de incluir e excluir. Como vimos dizer o que somos significa
também dizer o que não somos. A identidade e a diferença se traduzem,
assim, em declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre
quem esta incluindo e quem esta excluindo (grifo do autor).
A preocupação de Guizzo voltava-se para o resgate da memória e do
fortalecimento de traços culturais que ele entendia serem fundamentais para Mato Grosso
do Sul. Ou seja, os aspectos singulares do Pantanal, das falas, dos biótipos da população,
da música produzida na região, dos instrumentos musicais, das danças, dos biótipos, do
artesanato, dos hábitos alimentares, da literatura e dos gostos culturais. Alertava sobre a
necessidade de unificar a música sul-mato-grossense sob uma ―verdade regional‖
89
(especialmente que fosse distante do rock), da mesma forma que faziam os músicos
Guimarães Rosa, Villa Lobos e Glauber, que extrapolaram o conformismo de colonizados
culturalmente e produziram, nas palavras de Guizzo, a ―verdadeira‖ música regional. Dessa
forma, ele recusava as influências externas por contaminarem a cultura e a
descaracterizarem. Assim, defendia o fortalecimento do local frente ao nacional e ao
internacional:
Para fugir a essa influência e também à nefasta ação do colonialismo
cultural externo, nós temos, urgentemente, que resgatar a nossa memória
e fortalecer os nossos traços culturais básicos, espelhando as formas de
manifestações culturais do sertão, do cerrado, que são múltiplas e não
codificadas. Esse papo de som universal (ou a ―a arte não tem fronteiras‖)
é fomentado e só interessa as multinacionais do disco, coisa que os
nossos roqueiros (a par do ―rock‖ ser uma música pobre ritma-melódica e
harmonicamente) não entenderam até hoje, talvez, porque, como Sansão,
os cabelos longos e as ideias curtas só lhes dão forças físicas para se
estrebucharem no palco. Desde Tolstoy que nós aprendemos: uma obra
de arte será tão universal quanto mais profundamente regional ela for.
Vide Glauber, Guimarães Rosa, Villa Lobos [...]. Todos eles
extrapolaram o conformismo colonizado e aproximaram-se de uma
verdade regional (GUIZZO, 1985, p. 32).
Autoritariamente ele encaminhou suas conclusões para a fixação de seus gostos
culturais nas políticas de estado. Nesse sentido, é preciso não perder de vista que ―o gosto é
um filtro com implicações morais e cognitivas, além das estéticas‖ (GINZBURG, 2007, p.
69). Suas escolhas representaram a tentativa de se instituir uma estética, uma visão de
mundo, um paradigma para a cultura em Mato Grosso do Sul, que, por fim, demonstrou
nada mais que a sua limitação em compreender o que corresponderia à diversidade da
identidade sul-mato-grossense.
Guizzo assentou uma parte de um todo complexo na história de Mato Grosso do
Sul, fez como toda construção identitária faz e é, parte de um processo contínuo e em
andamento, que está em constante re-significação e apropriação por diferentes grupos
políticos que assumem o poder.
90
2.3 O movimento cultural Unidade Guaicuru: outra proposta identitária em Mato
Grosso do Sul
A identidade sul-mato-grossense não é absoluta/concreta, é flexível/variável. Pois,
nem todos têm os mesmos sentimentos, ou subjetividade sul-mato-grossense. Uma
sociedade não é uma coisa palpável, especialmente a identidade cultural, que é um
conceito flexível e difícil de ser percebido concretamente. As constantes des-
territorializações a que os grupos sociais são expostos cotidianamente têm agitado o
sentimento de pertença a qualquer grupo fixo, como a identidade sul-mato-grossense, por
exemplo. São necessários vários operadores conceituais para se compreender o presente,
para se situar no mundo e para reorganizar o espaço interno, para instituir delimitação e
estabelecer a constituição de novas subjetividades transitivas e volúveis. Portanto, a
identidade sul-mato-grossense é vista como múltipla, heterogênea, variável, de várias
cores e de inúmeras identificações.
Não há um mito fundador de Mato Grosso do Sul no imaginário sul-mato-grossense
que seja aceito integralmente por todos. Apesar das tentativas realizadas de se criar figuras,
emblemas e signos, não há sucesso pleno. Talvez, uma das razões seja pelo fato de a
própria criação deste estado não ter sido uma resultante popular. Foi uma decisão
deliberada, de cima para baixo, imposta, feita nos bastidores, na anuviada política ditatorial
da época para beneficiar os próprios interessados em permanecer no poder (AMARILHA,
2012).
Nesse sentido, colaborando com tal conjuntura, tem-se, como projeto, a tentativa
de se fazer engajar os artistas e as produções culturais em um plano de instituição da
coletividade. José Octávio Guizzo, como um dos arquitetos desta proposta, procurou
instituir políticas para fomentar o que seria o ―melhor‖, verdadeiro ou idealmente
representaria o constituinte identitário da região. Para tal, apoiou a participação, enquanto
estava à frente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, de vários grupos artísticos.
Houve, após a divisão/criação, um questionamento acerca da busca e da construção da
identidade de Mato Grosso do Sul, feitas por diferentes grupos produtores de arte e de
cultura na região. Esses artistas, dependentes de recursos do Estado, se deparavam com a
necessidade de identificar valores culturais da região que fossem correspondentes com o
novo estado.
91
Um desses grupos corresponde ao Movimento Cultural Unidade Guaicuru que
teve como membro fundador o historiador e artista plástico Henrique de Melo Spengler. O
artista, que se utilizando dos ícones e das cores presentes na arte Kadiwéu, marcas
constituintes de seu trabalho, se auto-determinou59
um legítimo guaicuru (SANTOS, 2003,
p. 124).
Ao usar os ícones e as cores da arte Guaicuru como elementos constituintes de
suas obras, Spengler pretendia expor a importância dos índios Guaicurus para a construção
da identidade sul-mato-grossense. Considerava que tal grupo étnico, era a primeira
plataforma social, econômica, política e cultural em abrangência no território
correspondente ao novo estado. Buscou, consequentemente, estudar quais as instâncias que
eram influenciadas pela cultura dos índios Guaicurus em Mato Grosso do Sul. Spengler os
representou como um povo guerreiro, lutador, resistente e símbolo de grande determinação
(VIEIRA, 2010, p. 156). Visualizava um sentido histórico expresso por momentos
escolhidos no passado, a partir de um ideal de ―guerreiro forte e batalhador‖ na
consolidação de uma interpretação de passado e de um projeto de presente e de futuro.
Considerado um aglutinador de pessoas pelo artista plástico Jonir Figueiredo, ex-
integrante do movimento, Henrique Spengler teve a contribuição e a participação ativa de
outros artistas que acreditavam ser o ―gentílico guaicuru‖ a melhor representação do sul-
mato-grossense. Desse modo, constituíram e estruturam a Unidade Guaicuru
(FIGUEIREDO, 2008, p. 24).
Para vários profissionais da época, como o jornalista Paulo Renato Coelho Netto,
Spengler criou um núcleo do movimento em Campo Grande que deu origem na Unidade
Guaicuru. Em relato ele lembra que ele reunia historiadores, amigos, artistas plásticos,
universitários, músicos, curiosos, viajantes, poetas, escritores e até os vizinhos em torno de
sua grande causa guaicuru a fim de revelar a ―verdadeira‖ identidade cultural de Mato
Grosso do Sul (NETTO, 2009).
Neste período, enquanto Guizzo figurava o Conselho Estadual de Cultura e
antecedia sua posse como presidente da Fundação de Cultura, marcava a história da região
a fase embrionária da Unidade Guaicuru, que foi, para Paulo Coelho Netto, com certeza:
59
Como se num ato pela simples troca de vestuário o artista pudesse elaborar o trans/vestimento, a
trans/versão da representação, então legitimada pelo simples desfilar dos pressupostos ícones de identidade
sul-mato-grossense (SANTOS, 2003, p. 124).
92
[...] a mais fecunda época para a cultura nesse Estado. Com seu carisma e
inteligência, Spengler foi o grande aglutinador dos artistas daqui. Todos
que se sentissem órfãos, sem saber ao certo qual caminho percorrer, iriam
cedo ou tarde parar na casa da Avenida Calógeras. Foi um movimento
capaz de dividir a história cultural do Estado em antes e depois da
Unidade Guaicuru. Serviu para nós, habitantes do cerrado, como o grito
da Semana da Arte Moderna em 1922, em São Paulo (NETTO, 2009).
O tema predileto de Spengler, evidentemente, era inspirado na cultura Kadiwéu.
Representava em suas telas a arte que os nativos originalmente produziam em vasos de
cerâmica. Ao lembrar-se de seus encontros com o artista o jornalista Paulo Coelho Netto
relatou que Spengler dizia que suas pesquisas tinham o objetivo de ―revelar‖ a identidade
de Mato Grosso do Sul, a partir de referências regionais primitivas, nativas. Dizia que o
tema sempre foi pouco explorado e orgulhosamente sintetizava que ―no bastidor artístico
cultural já existe um conhecimento mediano sobre o assunto, mas na sociedade em geral o
tema é praticamente desconhecido. A sociedade ainda ignora nosso processo histórico e
por isso mesmo o desvaloriza‖ (NETTO, 2009).
Considerado imponente artista plástico e arguto político, o fundador da Unidade
Guaicuru procurava, junto de seus colaboradores, defender a representação do Guaicuru
como essência da unicidade do sul-mato-grossense, não levava em consideração o
problema de que ―a própria nação guaicuru representava-se por várias tribos e diferentes
praticas culturais, consequentemente, praticando entre si profundas divergências culturais‖
(SANTOS, 2003, p. 125).
Sob a ânsia desses produtores regionalistas, que logo após a criação de Mato
Grosso do Sul buscaram se organizar, se encontrava uma crise de identidade, posta pelo
advento o novo estado. O objetivo, que já vinha sendo construído com base na história dos
índios Guaicurus, era promover o gentílico indígena em substituição ao já criado Mato
Grosso do Sul. Para demarcar esta proposta como identidade seria necessária a divulgação
e a percepção de seu processo histórico-cultural.
A Unidade Guaicuru tinha como meta a difusão de um processo histórico
construído e voltado ao estabelecimento de uma identidade ao sul-mato-grossense.
Procurava, com isso, divulgar os valores e as referências culturais de uma região que ainda
estava em questão (sob quais elementos culturais deveriam ser reconhecidos perante os
mato-grossenses e o Brasil).
O trabalho do movimento buscava adesão de pessoas que nele encontravam
identificação e afinidade. À sombra de um projeto de descentralização, ou expansão
93
mercadológica, foram ampliadas às regiões de influência e produção do movimento, no
interior de Mato Grosso do Sul. Criaram-se sucursais nas cidades de Dourados e de Coxim.
Nesta, houve um projeto mais estendido voltado à ecologia, uma preocupação já crescente
na época (VIEIRA, 2010, p. 167).
O movimento optava, na época, por desenvolver um trabalho retrospectivo desta
história indígena. Identificaram e ―resgataram‖ as várias etapas de tal processo, as
referências, as características e os valores culturais do sul-mato-grossense e sua ―evolução‖
no tempo. Identificou-se o ―período Guaicuru‖ como referência temporal desse processo.
Neste contexto o termo ―Guaicuru‖, até então pouco conhecido, passou a ter maior
importância existencial e a representar, para aqueles que integravam o movimento, a
síntese referencial da identidade cultural de Mato Grosso do Sul (VIEIRA, 2010, p. 166).
Criou-se uma representação deferente daquela de Guizzo. Segundo o próprio líder do
movimento, Henrique Spengler, do povo guaicuru descendia o ―verdadeiro‖ sul-mato-
grossense, que deveria ser representado sob todas as qualidades de um habitante da região,
já que o
[...] ―guaicuru‖ é ao mesmo tempo essência e símbolo histórico
cultural do povo deste Estado; e a configuração épica do homem
nativo, consciente, guerreiro, lutador, resistente, autônomo,
independente, que, por muito tempo a partir do pantanal, dominou
de forma absoluta, sob égide de ―cavaleiro guaicuru‖, o atual
território do Estado de Mato Grosso do Sul. (SPENGLER, 1999, p.
6.)
Percebe-se que após a divisão política e territorial de Mato Grosso e iniciada as
estruturas de Mato Grosso do Sul, houveram propostas e questionamentos variados a
respeito de qual seria a identidade deste novo estado, a urbana, progressista e cosmopolita,
a fronteiriça com intercâmbios culturais e a Guaicuru. A partir de tais concorrências
identitárias, desenroladas fundamentalmente por artistas e intelectuais locais, a Unidade
Guaicuru também procurou organizar sua resposta à questão identitária.
Torna-se interessante notar como esse ideário, chamado de Nação Guaicuru
agrupou pessoas e artistas, tais como Cacilda Mattos, Nelly Martins, Vânia Pereira, Jonir
Figueiredo e Henrique Spengler, que procuravam transformar aos poucos a noção de
acontecimento histórico para fato histórico. O movimento retomava o passado – porventura
a etnia Guaicuru – a fim de construir uma concepção diferente para o presente e para o
futuro que sinalizava para o novo território federativo.
94
Efetivamente, a construção de uma memória histórica à volta da etnia Guaicuru
foi uma das maiores metas do Movimento. Para seus integrantes, fundamentados
estrategicamente em uma concepção histórico-científica, o passado seria o ponto de inicial
para a construção do presente e do futuro. Para eles, somente por intermédio de uma
memória, edificada conforme suas representações culturais, seria possível fazer o ―resgate‖
da cultura local e atingir uma determinada identidade (VIEIRA, 2010, p. 167).
No decorrer dos anos da década de 1980, foram realizadas pelos artistas várias
mostras de artes plásticas, que tinham o caráter itinerante e que aconteciam alternadamente
entre as cidades de Campo Grande, Dourados, Corumbá, Aquidauana e Coxim. As Mostras
Guaicuru de Artes Plásticas tinham um caráter nativista e objetivavam divulgar as obras e
os artistas engajados iconologicamente no tema daquele movimento (VIEIRA, 2010, p.
168).
No entanto, ao construir representações, os representados da mesma forma que os
representantes acabaram como resultados de diferenças interpretativas quanto aos rumos
que tomaram a Unidade, ao se verificar a própria desunião do movimento, que marcou os
anos subsequentes. Nesse sentido, como afirmou o artista Jonir Figueiredo, ao declarar
sobre os caminhos do movimento: ―deveríamos nos unir mais, para voltar aquele clima de
movimento artístico‖ (FIGUEIREDO, 2008, p. 24).
Decididamente, entende-se que o que se buscou foi algo como uma tradição
inventada, que não dava conta de refletir criticamente a variegada composição da cultura se
não a partir de signos estereotipados. O movimento esteve como promotor de tal identidade
comprometido com seu trabalho, colocando-se a serviço da vontade de grupos políticos
que rivalizavam60
, por exemplo, sobre a escolha do ―melhor‖ gentílico para o estado. No
fim, com a Unidade Guaicuru, ―em nome da busca das raízes e da identidade cultural
ampliou-se o leque da animosidade e da contradição‖ (SANTOS, 2003, p. 125). Com tal
ação estariam, os integrantes dos movimentos, agindo como promotores da identidade, e de
certa forma colocando-se a serviço da vontade de grupos políticos que rivalizavam na
escolha do melhor gentílico para o estado, sendo eles ou o Guaicuru, o urbano/moderno ou
o Pantaneiro (SANTOS, 2002, p. 240).
O agrupamento daqueles artistas, que tinha como base o enredo histórico desses
índios – índios cavaleiros –, se concentrava em promovê-los definitivamente como
60
Sobre as disputas em torno do melhor nome para Mato Grosso do Sul, ver: ZILIANI, 2000.
95
―gentílicos‖ e como emblema da história de Mato Grosso do Sul. Consequentemente, o
movimento fez ao longo da década de 1980 todo um registro histórico e toda uma
divulgação deste processo reconhecido da etnia Guaicuru na região. Pretendeu, portanto,
estabelecer sua interpretação pautada em suas representações artísticas, sobretudo na
pintura. A intenção era edificar um signo ―puro‖, primitivo, que representasse a bravura do
sul-mato-grossense da mesma forma que a dos índios Guaicurus.
Essa noção de história parte da premissa da luta pelo futuro a partir de uma
memória de um passado. O conhecimento histórico, portanto, se distingue por meio da
interpretação historiográfica que se tornou fato, pela memória histórica, e não
necessariamente pela experiência do movimento. Além disso, o próprio sentido de
identidade perde sua dimensão de luta e embate e torna-se hegemônico, na medida em que
há vários projetos de construções identitárias para impor sua proposta. Enfim, a imagem da
nação Guaicuru como elemento para construção identitária de Mato Grosso do Sul foi
utilizada como representativa de um povo guerreiro, lutador, resistente, símbolo de grande
determinação. Sendo assim, Mato Grosso do Sul teria suporte no passado para projetar a
partir desses ícones uma diferença em relação a Mato Grosso (VIEIRA, 2010, p. 170).
Por fim, ao longo da curta história de Mato Grosso do Sul, foram vários os
movimentos artísticos e sociais, voltados à defesa de uma identidade para o referido
estado, que nasceram e se desfizeram subitamente. Apesar disso, a Unidade Guaicuru
mostrou relativa duração em volta deste processo de disputa de projetos identitários.
Recebeu apoio e adesão de outras pessoas e entidades que nele encontraram afinidades de
ideias e interpretações da cultura sul-mato-grossense, e foi responsável pela difusão de
variadas palestras, de artes plásticas, de artesanato, de varais de poesia, de saraus e de
outras atividades culturais em geral (SPENGLER, 1996, p. 17).
Talvez, pode-se afirmar, por fim, que o movimento não obteve o êxito final, não
prosperou como uma identidade oficial/legítima. Posto que, ao observar a população
indígena na contemporaneidade, apesar de elevada como símbolo da história sul-mato-
grossense pela Unidade Guaicuru e por vários outros artistas da região61
, não desfrutava do
mesmo prestígio que pretendiam por meio daquelas representações. Quando se trata da
posição e participação do índio na sociedade vê-se uma calamidade social desprezível.
61 Vários artistas da região têm como tema de suas produções a cultura indígena: Jonir Figueiredo, Miska,
Conceição dos Bugres, Anelise Godoy, Cecílio Vera, Daniel Nunes, Erika Pedraza, Jeferson Barros, Jonas
Eduardo Santana, Lina da Anunciação, Luciano Alonso, Mariana França, Marilena Grolli, Monique Merlone,
Patrícia Helney, Pedro Guilherme, Tetê Iriê, Ton Barbosa e Zilá Soares, entre outros.
96
Uma realidade marcada por disputas desproporcionais, tanto jurídicas, quanto sociais, por
terras entre os fazendeiros e os indígenas em Mato Grosso do Sul, que, por sinal, se dá de
longa data nesta porção territorial e que demonstra as relações de forças atuantes na
sociedade ao se constatar a triste situação dos nativos no campo e a dramática realidade de
fome daqueles que vivem na cidade.
97
III - EMBATES POLÍTICOS E REDIRECIONAMENTOS
CULTURAIS: A ATUAÇÃO DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO APÓS
A SUA SAÍDA DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE MATO
GROSSO DO SUL (1985-1989)
Do ponto de vista da conjuntura política nacional, em meados da década de 1980,
o que se apresentava era a chamada transição democrática. Instigada por um conjunto de
forças sociais e políticas da sociedade civil, caracterizadas principalmente a partir do final
dos anos de 1970, os elementos de continuidade e de ruptura somaram-se ao mesmo tempo
ao ordenamento jurídico ao qual o país havia assumido após o golpe civil-militar, que
ocorrera em 1964. De fato, o quadro institucional da transição, com a vitória de Tancredo
Neves (PMDB) para presidente do Brasil no Colégio Eleitoral, em 1985, foi conceituado
como uma transição democrática marcada por uma descontinuidade sem ruptura em
relação à estrutura jurídico-econômica herdada do regime militar (FERREIRA JR, 2009, p.
65).
Enquanto grupos sociais se colocavam em prol da consolidação das liberdades
políticas e da substituição da lógica econômica implantada após 1964, não se
transformavam as principais contradições da transição entre o regime e o Estado de direito
democrático. O Brasil, portanto, estava cimentado num contexto de crise sócio-política no
qual os brasileiros lutavam, tanto por melhores condições de vida, como pelas liberdades e
pelos direitos democráticos (FERREIRA JR, 2009, p. 66).
No contexto local, em Mato Grosso do Sul, não se mostrava diferente. Por conta
de vários realinhamentos ocorridos no cenário político e cultural durante a década de 1980,
José Octávio Guizzo sairia (ou seria retirado) da Fundação de Cultura de Mato Grosso do
98
Sul. Sua retirada, verificada oficialmente em 29 de abril de 1985, se deu por suas
divergências particulares e resultantes de tais mudanças, que influíram diretamente na
estrutura governamental do estado. Guizzo, naquela conjuntura, passou a estar diante de
concorrentes que também galgaram espaço no vigoroso e disputado quadro político, sob a
eminência do próprio estabelecimento autônomo de Mato Grosso do Sul.
Não desprendida da circunstância nacional, nesta situação local acontecia a
concorrência entre aqueles políticos que desejaram se estabelecer no poder. Houve,
principalmente, alguns que já tinham ligações políticas anteriores ao governo da época e,
por conta disso, conseguiram ascender por fazerem parte do processo. Foi o caso, por
exemplo, da sucessora de Guizzo na presidência da Fundação de Cultura, a professora
Idara Duncan, que durante a gestão dele esteve à frente da coordenadoria de Promoção e
Difusão Cultural, uma das três coordenadorias da instituição62
.
Havia disputas para ascensão política mesmo entre os pares que integravam a
própria equipe. Guizzo e Duncan tinham suas ligações políticas com o PMDB, algo que de
certa forma acontecia com quase todos que eram nomeados para cargos do governo no
setor da Cultura. Como a situação anterior à redemocratização era da suposta concorrência
entre os dois partidos, o ARENA e o MDB, aqueles que estavam vinculados à política
estavam diretamente ligados a um dos dois grupos. Os que eram representados como da
oposição aos militares estavam associados ao que viria se transformar no PMDB. Em
depoimento, o historiador Valmir Batista Corrêa, associado emérito do Instituto Histórico
e Geográfico de Mato Grosso do Sul, relatou que era comum a ligação política dos
intelectuais com o PMDB e que, para ele, agregava, toda a oposição a ditadura militar,
tanto os mais próximos da ―esquerda‖ como aqueles contrários ao conservadorismo e mais
próximos da ―direita‖. José Octávio Guizzo, segundo Corrêa (2016), se ligou a tal grupo
mesmo não sendo adepto de tal ideologia e/ou partido, pois se mostrava o mais
progressista possível dentro de tal grupo.
A nomeação de Guizzo à Fundação de Cultura decorria de um governo,
representado como do povo e democrático - um governo que deveria traduzir a liberdade
democrática e a autonomia administrativa. Por conseguinte, acreditava que poderia ter uma
postura bastante autônoma em relação aos políticos que passaram a controlar o poder no
62
Durante a gestão de José Octávio Guizzo na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul a instituição
abrigou três coordenadorias: do Patrimonio Cultural, coordenada por Maria Maciel, do Artesanato,
coordenada por Amir Fernandes e a de Patrimonio e Difusão Cultural, por Idara Duncan.
99
âmbito estadual após 1984. Nesse sentido, ele procurou estruturar uma política cultural
independente da lógica e dos interesses diretos dos representantes governamentais e que
fosse voltada à sua própria concepção de cultura sul-mato-grossense. Guizzo estaria perto
daquele progressismo que influenciava bastante o setor cultural da época. Para Corrêa
(2016), em decorrência do contexto político, ele estaria no meio de uma intrincada disputa
pelo poder, pois:
[...] Quando o Wilson assumiu, ele teve apoio da esquerda. Dentro do
PMDB tinha um grupo do antigo PCB e também da esquerda, e claro
todos disputaram o poder. E o Guizzo era um cara... vamos dizer... ao
pessoal, não ele, mas a um pessoal de esquerda. E ele começou a fazer a
política e os investimentos contrariando as pessoas. Ele não se preocupou
em contentar os caciques [...] e ai a ilusão dele, porque ele achou que o
Wilson iria dar todo o espaço, ele procurou fazer de forma independente.
Ele não fazia nada consultando os políticos.
A partir do relato pode-se perceber a lógica da situação política naqueles
primeiros anos da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. De fato, passado um ano
de sua efetiva recriação e reestruturação, a circunstância demonstrara ser de indicações e
nomeações diretas pelo governo. Como Guizzo procurava organizar uma gestão
independente, rapidamente suas ações passaram a ser contestadas. Para Corrêa (2016) os
representantes da cultura ―foram muito fortes nesse momento, e a partir do ponto em que o
Guizzo deixou de atender as demandas dos dirigentes, talvez, tenha sido quando ele
começou a ser preterido‖.
Como toda conjuntura política tal realidade se configurava como uma intrincada
disputa. Havia interesses distintos e heterogêneos do ponto de vista político e de poder,
para direcionar as representações culturais oficializadas pelo Estado para formar corações
e mentes sul-mato-grossenses. No campo, em que se apresentam agentes carregados de
interesses e projetos de poder. Pois, no campo político é que se gera, sob a concorrência
entre os atores que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas,
análises, comentários, conceitos e acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns,
reduzidos ao estatuto de consumidores, devem escolher, com probabilidades de mal-
entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar da produção.
O campo político exerce concretamente um efeito de censura ao limitar o universo
do discurso político e, por este modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao
espaço finito dos discursos suscetíveis de serem produzidos ou reproduzidos nos limites da
100
problemática política como espaço das tomadas de posição efetivamente realizadas no
campo. A fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou
impensável para conjunto populacional, determina-se na relação entre os interesses que
exprimem entre as classes sociais, grupos, instituições e a capacidade de expressão de seus
interesses para sua posição nas relações de produção cultural (BOURDIEU, 2011, p. 165).
O grupo sucessor de Guizzo na Fundação de Cultura, o liderado por Idara
Duncan, buscou se estabelecer no campo e redirecionar a representação do partido
(PMDB). Teve seus interesses ligados à existência e à persistência da estruturação de um
novo poder sobre a instituição que ele dirigiu. Um novo grupo nesse campo político se
baseou sobre os ganhos específicos que ele assegurava - quase sempre sobre a liberdade
que o monopólio da produção e da imposição de interesses políticos instituídos lhes
assegurava. Enfim, buscou assentar e impor seus novos interesses, alinhados a outros
mandatários, como os governadores que sucederiam Wilson Martins63
, sob os interesses
desses mandantes.
Não há nada que seja exigido de modo mais completo pelo campo político
(disputa) do que a adesão fundamental a ele próprio. O investimento na disputa é produto
dela mesma e, ao mesmo tempo, é a condição de funcionamento do próprio jogo: todos os
que têm o privilégio de investir nele (em vez de serem reduzidos à indiferença e à apatia do
apolitismo), para não correrem o risco de se verem excluídos e distantes dos possíveis
ganhos que dele se adquirem, quer seja pelo simples prazer de arriscar, quer seja por todas
as vantagens materiais ou simbólicas associadas à posse do capital simbólico, aceitam o
contrato tácito que se implica no fato de participarem de tal disputa, de o reconhecerem,
deste modo, como algo que vale a pena participar. No fim, o que os une a todos os outros
participantes é uma espécie de conluio originário, bem mais poderoso do que todos os
acordos abertos ou secretos (BOURDIEU, 2011. p. 166).
Definitivamente, devia-se impedir que aqueles que não participassem, ou não
devessem continuar participando, como Guizzo, pudessem influenciar as ações e/ou
determinar os investimentos de poder. Nesse sentido, ao transcorrer a saída de Guizzo da
presidência da Fundação de Cultura, foi inaugurada uma nova fase das políticas culturais
para a identidade sul-mato-grossense, que acabou por ter a inserção de novos atores
63
Os governadores que sucederam Wilson Martins, entre 1986 e 1991,foram Ramez Tebet (1986-1987) e
Marcelo Miranda (1987-1991, num segundo mandato), os dois mantiveram a professora Idara Duncan à
frente da FCMS após a saída de Guizzo.
101
(artistas) principais como representantes da cultura, mas, também, a efetivação daqueles
que se sujeitaram aos realinhamentos políticos para se manterem no jogo que buscava
instituir uma identidade singular e exclusiva para Mato Grosso do Sul.
Por fim, torna-se elementar a ideia de que o campo político só funciona como um
engodo do interesse público (a cultural da população) e o interesse privado (negociações
realizadas pelos políticos para manter seus projetos pessoais e/ou partidários).
3.1. Alma do Brasil: um livro sobre o primeiro filme nacional inteiramente sonorizado
sobre a Guerra do Paraguai
Após sua saída da Fundação de Cultura, Guizzo passou a se dedicar aos seus
projetos pessoais, mas não distante daquilo que procurou fazer enquanto presidente da
instituição. Como relatado por sua esposa em entrevista, ele passou a escrever melhor e se
dedicar mais ao cinema (GEHLEN; HERRERO, 2011, p. 85). Sobre isso, teve a
possibilidade de fazer um grande levantamento documental e fundamentado com
entrevistas que resultaria no livro Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de
reconstituição histórica, inteiramente sonorizado, publicado em 1984. O enredo estava
firmado em um dos principais episódios da Guerra do Paraguai (1864-1870), o livro
deixava bastante claras questões como as disputas ocorridas na fronteira entre o Brasil e o
Paraguai, sobretudo, após o conflito.
Com o desenrolar desse conflito latino-americano, sobretudo, depois do episódio
canonizado na história do Brasil como Retirada da Laguna64
, foi filmado, em território que
atualmente corresponde a Mato Grosso do Sul, o Alma do Brasil (1931). O filme teve
como cenário o próprio local das batalhas travadas entre os dois principais exércitos
beligerantes65
, o brasileiro e o paraguaio, ocorridos sessenta e dois anos antes da produção
do filme.
64
O episódio da Retirada da Laguna (1868) correspondeu historicamente à desocupação das tropas
brasileiras que haviam tomado a fazenda de Francisco Solano López, o segundo presidente constitucional da
República do Paraguai (1862-1870).
65 Durante tal conflito três principais países compuseram a chamada Tríplice Aliança: o Brasil, a Argentina e
o Uruguai –, que lutaram contra o Paraguai.
102
O roteiro do filme esteve baseado em uma abordagem patriótica66
da maior
intervenção militar protagonizada pelo Brasil no contexto latino-americano. A estrutura
narrativa apresentava-se em três partes, como um tríptico, no qual seria, do início ao fim, a
apresentação de imagens documentais resultantes da época em que o comando da 9ª
Região Militar, sediado na cidade de Campo Grande, era chefiado pelo general Bertoldo
Klinger.
Na primeira parte do filme, tropas do Exército, que forneceram infraestrutura
material para a realização da película, aparecem percorrendo os mesmos caminhos
trilhados pelos brasileiros durante a Retirada da Laguna. Nesse momento, os destaques são
as cenas em que o general Klinger e o seu comando visitam os túmulos do coronel
Camisão e de José Francisco Lopes, o Guia Lopes, na região da cidade de Jardim. O filme
era caracterizado como cinema mudo, entretanto possuía trilha sonora, o que contribuiu
para que Guizzo viesse a celebrá-lo como o primeiro filme brasileiro de reconstituição
histórica inteiramente sonorizado. De fato, o panorama central que compôs o Alma do
Brasil (1931) se constituiu propriamente na reconstituição ficcional dos principais fatos
ocorridos durante a Retirada da Laguna.
Os cineastas Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes estabeleceram como fio
condutor da narrativa uma interpretação fundada em uma luta fosse travada entre os
brasileiros, representados como o bem, e os paraguaios, representados como o mal. Enfim,
tomaram como base um roteiro no qual os brasileiros seriam as vítimas indefesas das
crueldades realizadas pelas tropas de Solano López. Nesse sentido, teve-se como o ápice
de tal drama cinematográfico a circunstância em que os paraguaios cercaram os soldados
do coronel Camisão e atearam fogo na vegetação dos cerrados dos Campos de Vacaria. As
cenas seguintes procuraram mostrar os brasileiros, exaustivos pela fome e por doenças, ao
serem perseguidos pelos paraguaios que matavam os acometidos pela cólera e uma mãe
que tinha o seu filho pequeno abandonado numa choupana que seria tomada pelo fogo67
.
66
O roteiro do filme esteve baseado no livro A retirada da Laguna: episódio da guerra do Paraguai (1871),
de autoria de Alfredo d'Escragnolle Taunay.
67 O filme está disponível enquanto arquivo histórico no MIS – Museu da Imagem e do Som, em Campo
Grande, mas também é possível visualizar uma cópia um pouco corrompida em:
https://www.youtube.com/watch?v=0iNHfRwoMl4.
103
A primeira exibição do filme aconteceu em Campo Grande, em 1932. Após a
estréia nesta cidade, o filme percorreu68
parte do Brasil, inclusive sob cobertura da
imprensa nacional com direito a reportagens publicadas na revista Cinearte. Em alguns
cinemas foram feitos até tematizações com alguns artigos de guerra, como armas, e que
supostamente teriam sido usadas no conflito. No hall de entrada dos cinemas colocaram
grandes quadros pintados representando momentos memoráveis durante a Retirada da
Laguna.
Imagem 8 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme no hall
de um cinema
Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/BK/audiovisual/exposicao-de-armas-usadas-na-
guerra-do-paraguai-e-cartazes-do-filme-alma-do-brasil-no-hall-de-um-cinema
68
Neste período as os poucos filmes nacionais não tinham várias cópias como viria acontecer posteriormente
com o desenvolvimento do Cinema no Brasil. Um dos diretores viajou com uma cópia para a região norte do
país, o outro, com uma segunda cópia, para o sul.
104
Imagem 9 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme no hall
de um cinema
Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/BK/audiovisual/exposicao-de-armas-usadas-na-
guerra-do-paraguai-e-cartazes-do-filme-alma-do-brasil-no-hall-de-um-cinema
Quase quatro décadas depois do feito histórico de exibir tal filme no Brasil, os
interesses de Guizzo em pesquisa e produção de Cinema somaram-se à sua proposta de
identidade sul-mato-grossense e contribuiu para a elaboração e publicação de seu livro,
Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente
sonorizado (1984). O livro teve a Guerra do Paraguai e a Retirada da Laguna como
objetos.
A publicação evidenciava a sua preocupação e de outros intelectuais sul-mato-
grossenses: criar e registrar uma imemorial história e uma memória que sintetizasse um
espírito sul-mato-grossense e delineasse uma identidade (SQUINELO, 2008).
A história representada pelo filme (1931) e, posteriormente, pelo livro (1984) de
Guizzo, juntamente por outros escritores69
, buscaram incutir ao sul-mato-grossense uma
69
O episódio da retirada da Laguna foi privilegiado na construção do discurso que legitimou a história, a
memória e a identidade sul-mato-grossense, sobretudo a história escrita por Alfredo d`Escragnolle Taunay
105
identidade peculiar com ligações longínquas e fundamentalmente históricas. O objetivo era
introduzir o ideário dos grandes heróis para forjar o caráter do sul-mato-grossense. Nesse
sentido, o episódio da Retirada da Laguna foi escolhido, meticulosamente, pelos
produtores do filme. Guizzo, ao rememorá-lo, representava as virtudes do homem sul-
mato-grossense. Os heróis brasileiros como o Coronel Camisão, os tenente-coronel
Juvêncio e Antônio João e o Guia Lopes, teriam, ao serem representados, um
comportamento exemplar de grandes homens, indivíduos predestinados a dar sua
contribuição para o progresso e a felicidade de uma região promissora, habitada por uma
população ordeira e pacata (SQUINELO, 2008).
O processo de apropriação e re-apropriação de eventos relacionados à Retirada da
Laguna ocorreu e em diversos momentos da história de Mato Grosso do Sul. Contudo, foi
a partir do afastamento de Guizzo da vida política que o aspecto cinematográfico,
especificamente o filme Alma do Brasil, somou-se aos investimentos realizados pelo
governo estadual – os escritos de autores memorialistas quase sempre ligados ao IHGMS e
as políticas culturais da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.
O filme, re-significado a partir do livro de Guizzo, passaria a ser parte da
identidade cultural de Mato Grosso do Sul. Seria, inclusive, um possível mito fundador da
arte do cinema em território sul-mato-grossense, representado como o primeiro filme
nacional de reconstituição histórica, sonorizado de Mato Grosso do Sul e do Brasil. Ao
eleger tal obra fílmica Guizzo alinharia seus interesses em divulgar uma história para a
produção cinematográfica do novo estado e somaria os interesses políticos de evidenciar
uma contribuição patriótica de Mato Grosso do sul ao restante do país.
O livro canonizou a manipulação da representação patriótica do filme para a
história sul-mato-grossense. A obra de Guizzo ao divulgar o filme buscava designar uma
memória cívica. Todavia, percebe-se que mesmo como representação, o filme ao
engrandecer o episódio da Guerra, não se configurava como tal, mas sim, como uma
memória saturada de implicações políticas. Pois, como afirmou Squinelo (2008):
[...] inversamente ao que insistem em afirmar, isto é, de que a memória da
Guerra e da Retirada caracterizam-se como uma ―memória de cunho
patriótico‖, acredito que seja a memória de uma ―conotação política‖
singular, haja vista, que em Mato Grosso do Sul os aspectos relacionados
(1843-1899), que para redigir a obra em questão, teve como base um diário de campanha e as suas
―lembranças‖, interessado em justificar a participação brasileira no conflito platino e, principalmente,
divulgar as ―provações‖ passadas pela expedição brasileira no sul de Mato Grosso (SQUINELO, 2008).
106
a memória, a história e a identidade fazem parte dos processos de
tentativas de construções identitárias delineadas nos projetos políticos
forjados seja por uma elite local ou pelas instâncias governamentais.
Nesse contexto, Guizzo recebeu o apoio e o incentivo do governo estadual em seu
projeto bibliográfico, que já havia começado durante suas pesquisas sobre cinema na
década de 1970. De certa forma o livro contribuiria para a consolidação de uma memória,
de uma história e de uma identidade imemorial. Com a divulgação oficial, enquanto
emblema patriótico a partir do filme Alma do Brasil (1931), foi possível a cristalização da
Retirada da Laguna na construção épica da historiografia que já abordava esse tema.
Para comemorar tal evento histórico, foi realizada, em 12 de fevereiro de 1985,
uma celebração promovida pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, em conjunto
com o Cineclube de Campo Grande, que reuniu 700 pessoas para assistirem a uma
apresentação especial do filme Alma do Brasil. Para fundamentar a tentativa de
reconstituir alguns momentos da primeira estréia, que ocorrera em 1931 no Cine Trianon
em Campo Grande, a produção do evento convidou três pessoas que participaram da
produção do filme: os atores Conceição Ferreira, e Otaviano Ignácio de Souza e o assessor
especial dos diretores, Waldir dos Santos Pereira.
O evento aconteceu no teatro Glauce Rocha, onde Guizzo fez, juntamente com a
exibição do filme, o lançamento do livro. Os que estiveram presentes também podiam
contemplar uma exposição de fotos tiradas durante as filmagens, na década de 1930. Em
matéria publicada na revista MS Cultura, em maio de 1985, foi relatado que na solenidade,
já no hall de entrada do teatro:
[...] o público já tomava contato, com a obra de Wulfes e Luxardo,
através de uma exposição de fotografias antigas, feitas nos locais das
filmagens, e do livro de José Octávio Guizzo, ―Alma do Brasil‖, lançado
na mesma noite de pesquisa e entrevistas que durou oito anos.
Procedendo a apresentação do esperado Alma do Brasil, foi projetado no
telão (MS CULTURA, Nº 1, 1985, p. 42).
O objetivo de Guizzo, ao final, foi construir uma história sobre a produção do
filme que pudesse justificá-lo enquanto feito histórico e extraordinário para a arte
cinematográfica sul-mato-grossense.
107
3.2. José Octávio Guizzo e a produção cinematográfica
Por conta da frequência de Guizzo no Cineclube de Campo Grande, suas
amizades foram sendo alicerçadas com aqueles que faziam parte da associação. Foi
seguindo isso que Guizzo, juntamente com João José de Souza Leite, presidente do
Cineclube, e Candido Alberto da Fonseca, fundou uma produtora voltada ao audiovisual.
O objetivo da produtora Seriema Filmes era realizar projetos completos de filmes.
Contudo, como expôs Gehlen e Herrero (2011, p. 69), ―a realização da empresa ficou mais
na área da pesquisa para a elaboração de roteiros do que na produção em si. Apenas três
filmes começaram a ser produzidos e, destes, dois foram finalizados‖. Os filmes referidos
são: Conceição dos Bugres e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – 10 anos.
O primeiro curta-metragem teve roteiro e direção de Candido da Fonseca e fez
uma releitura da obra da artista, sendo premiado pela antiga Fundação Nacional de Arte –
Funarte, em 1980. O segundo, resultado de um financiamento pleiteado junto ao governo
federal, foi um documentário institucional que teve como um dos diretores o próprio
Guizzo, que já havia contribuído com o roteiro. De acordo com o sócio e amigo Candido
da Fonseca, ele tinha ―o grande sonho [...] de dirigir um filme‖ (GEHLEN; HERRERO,
2011, p. 70). Os orçamentos pequenos somados aos projetos pessoais de cada sócio
dificultaram a manutenção da produtora Seriema Filmes, que acabou, aliás, antes da
efetivação dele nos cargos políticos.
Guizzo foi considerado um entusiasta do cinema em Mato Grosso do Sul,
participava do Cineclube de Campo Grande regularmente. Promoveu, em 1983, a primeira
experiência do cineasta Joel Pizzini70
na produção cinematográfica. Ele o havia convidado
para trabalhar em Campo Grande e criar um núcleo de cinema na cidade. Pizzini foi o que
o acompanhou nas entrevistas realizadas para a escrita do livro sobre o filme Alma do
Brasil.
Por fim, Guizzo alinhou seus projetos àquilo e àqueles que o rodearam com vistas
à produção cultural. Desse modo, apresentou Joel Pizzini a seu amigo Sylvio Back, um
diretor na década de 1980, que já havia feito mais de vinte filmes entre curtas-metragem e
70
É um cineasta e documentarista brasileiro. Seu trabalho no cinema inclui direção, roteiro e produção.
Produziu os filmes Dormente (2005), 500 Almas (2004), Glauber Rocha (2004), Abry (2003), Enigma de um
Dia (1996) e Caramujo-Flor (1988). Recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Prêmio Internacional de
Cinema da Bahia e o Prêmio de Melhor Filme do Festival de Cinema de Brasília. Foi co-diretor do projeto
de restauração dos filmes de Glauber Rocha e colabora com o projeto de preservação Tempo Glauber.
108
documentários. Consequentemente, a partir da intermediação de Guizzo o diretor Sylvio
Back convidou Joel Pizzini para trabalhar como seu assistente de direção em Guerra do
Brasil, um documentário sobre a Guerra do Paraguai.
3.3. A construção da memória em torno de José Octávio Guizzo
José Octávio Guizzo esteve durante anos atuando na política e no cenário cultural
de Mato Grosso do Sul, como presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul
permaneceu pouco mais de um ano, foi produtor musical, compositor, produtor de cinema,
escritor e pesquisador, até sua morte acontecer, em 1989, durante uma palestra que
ministrava sobre mais um de seus objetos de pesquisa, a vida e a obra da atriz Glauce
Rocha. Seu falecimento aconteceu de forma dramática, pois, foi enquanto exaltava
publicamente a figura da atriz que Guizzo terminou sua vida – coincidentemente no teatro
que recebia o nome da mesma personalidade que ele procurou afamar.
Após sua morte, parentes e amigos manifestaram seus sentimentos de variadas
formas, como o senador Wilson Barbosa Martins, por exemplo, quando proferiu discurso
no Congresso Nacional expondo seu pesar, em dezembro de 1989. Jornais, como Correio
do Estado, Jornal da Cidade e Jornal Diário da Serra, mencionaram pesares durante os
anos que se seguiram e procuraram elevar as contribuições de Guizzo para a cultura em
Mato Grosso do Sul. Amigos, como Maria da Glória Sá Rosa, que presidia o Conselho
Estadual de Cultura na época, preocupados em não deixar a história e a imagem de Guizzo
serem esquecidas solicitaram junto ao governo do estado que o Centro Cultural, criado na
gestão dele mesmo, tivesse o nome alterado em sua homenagem em dezembro de 1990,
passando a partir daí a se chamar Centro Cultural José Octávio Guizzo (GEHLEN;
HERRERO, 2011, p. 97-99).
No mesmo ano, 1990, a prefeitura de Campo Grande também prestou uma
homenagem ao pesquisador, transformou o anfiteatro do Paço Municipal em Teatro José
Octávio Guizzo, a ideia foi do vereador Francisco Valente, amigo de Guizzo. No mesmo
dia o jornal Correio do Estado publicou em seu caderno de cultura a matéria Guizzo e seus
amigos, a reportagem era constituída por uma poesia dedicada a ele, pela letra de sua
música Mané Bento, Vaqueiro do Pantanal e por depoimentos de amigos de trabalho. Em
2009, o governador André Puccinelli prestou outra homenagem a Guizzo, inaugurou um
109
conjunto habitacional popular em Campo Grande com seu nome, o Residencial José
Octávio Guizzo (GEHLEN; HERRERO, 2011, p. 100-101).
No que corresponde à preservação da memória de Mato Grosso do Sul, a
participação de Guizzo na pesquisa e na construção da identidade sul-mato-grossense foi
realizada por meio das homenagens, das denominações de prédios públicos, de matérias
jornalísticas e, também, de obras biográficas que procuraram demonstrar e elevar a
importância de Guizzo enquanto pesquisador e político voltado à cultura no estado. Guizzo
foi celebrado como o homem que acreditava na cultura de Mato Grosso do Sul e que viveu
em função da consolidação dessa identidade. Desse modo, construiu-se uma memória que
valorizou sua imagem e suas participações no investimento cultural. Quer dizer, em torno
da sua pessoa, e de outros intelectuais e artistas, de uma história da cultura. De produtor
cultural, pesquisador e ex-presidente da Fundação de Cultura tornou-se objeto de
pesquisas e homenagens, cujo objetivo era rememorar sua trajetória. Tornou-se um dos
grandes nomes a ser celebrado.
Para rememorá-lo foram publicadas algumas obras que procuraram descrever sua
vida e sua militância, tal como o artigo de Maria da Glória Sá Rosa, José Octávio Guizzo:
o pesquisador que dedicou a vida ao resgate da cultura sul-mato-grossense, publicado em
2003 pelo Arquivo Histórico de Campo Grande, na coletânea de textos Personalidades. E,
em 2011, a biografia José Octávio Guizzo – Um nome em registro eterno, publicação dos
autores Luiz Henrique Gehlen e Marianne Cunha Herrero, pela Fundação de Cultura de
Mato Grosso do Sul. Na obra de Sá Rosa ele foi celebrado como um inteligente
compositor, amante da música, vencedor dos festivais, político sagaz e engajado, como o
primeiro presidente da Fundação de Cultura e responsável pela consolidação das políticas
culturais no estado, como o pesquisador que dedicou a vida ao estudo da arte cênica71
e se
abnegou da vida pessoal e da profissional para levantar e divulgar as práticas culturais em
Mato Grosso do Sul. Do mesmo modo, na obra de Gehlen e Herrero (2011), Guizzo foi
celebrado como excelente escritor, pensador das políticas culturais, político que se
preocupava com o acesso do povo à cultura, promotor cultural (festivais), crítico musical,
compositor regional e o intelectual que resgatou a cultura de Mato Grosso do Sul.
A obra de Gehlen e Herrero (2011) foi publicada por meio do financiamento de
um programa do governo de Mato Grosso do Sul, chamado Fundo de Investimentos
71 Guizzo também pesquisou a vida e a obra da atriz Glauce Rocha.
110
Culturais. O programa tem como finalidade prioritária o apoio a projetos estritamente
culturais de iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, a fim
de estimular e fomentar a produção artístico-cultural de Mato Grosso do Sul. O FIC, como
é conhecido, é vinculado à Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer e a Fundação
de Cultura, entidade à qual compete a sua gestão (MATO GROSSO DO SUL, 2003).
Desde seu retorno, o FIC destacou, ao longo de suas edições, a preferência na seleção de
projetos para financiamento que estivessem alinhados às políticas culturais do governo
estadual.
A obra José Octávio Guizzo – um nome em registro eterno é um dos exemplos
que mostram a preocupação do governo do estado na manutenção da memória oficial ao
apontar e elevar as participações de atores políticos, artísticos e culturais na formação do
estado e de personalidades que estiveram preocupados com a construção não só da
identidade, mas, de forma geral, com a história oficial do Mato Grosso do Sul desde sua
concepção. Neste sentido, no Boletim Mensal de abril de 2013 do Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso do Sul, o presidente do órgão, Hildebrando Campestrini, teceu
elogios ao governador André Puccinelli na celebração da assinatura do convênio do FIC
2013, louvando a demonstração de satisfação do governador em prestigiar a cultura
regional do Mato Grosso do Sul por intermédio do FIC, sobretudo na edição de 2013 do
programa, quando o Fundo contemplou com o financiamento a edição de mais sete obras
memorialísticas de alguns membros e associados do IHGMS, o que, consequentemente,
possibilitava o fortalecimento da história oficial:
O Governador André Puccinelli, demonstrava sua satisfação em prestigiar
a arte e a cultura regional, cumprimentando todos os ativistas culturais
pelo nome, numa manifestação espontânea da importância que outorga ao
setor. Sem dúvida a solenidade que se iniciou com o hino de Mato Grosso
do Sul em solo de harpa, pelo músico paraguaio Ortiz, foi uma bela festa
de cidadania. O IHGMS, foi contemplado pelo FIC, para edição de mais
7 volumes da Série Memória Sul-mato-grossense, cujos autores são:
Demóstenes Martins, Rosário Congro, Arlindo de Andrade, Manoel
Joaquim de Moraes, Carlos Vândoni de Barros, Kerman José Machado,
João Nepomuceno Costa72.
Desta forma, assim como o investimento na construção da memória oficial de
Mato Grosso do Sul, a simbologia criada em torno de Guizzo demonstrava o poder que
72
Disponível em: www.ihgms.org.br/boletim/boletim-ano-1-n-1-abr-2013.
111
memória oficial possui, como apontou Le Goff (2003, p. 422), que há a necessidade de
grupos ou indivíduos restritos tentarem, historicamente, docilizar e dominar a maioria da
sociedade, assim ―tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas‖.
Os variados usos da memória – arquivos cada vez mais gigantescos, o interesse
em publicar e republicar obras dos institutos históricos e geográficos, a construção de
memoriais em homenagem a pioneiros, políticos locais e religiosos, festas e rituais – são
amplamente saudados e defendidos por políticas públicas dos governos e pela mídia,
multiplicam-se como práticas e rituais de cidadania e como elementos essenciais
constitutivos das múltiplas formas de reconhecimento contemporâneas e de construção e
reconstrução das subjetividades. Ou seja, atualmente busca-se não apenas o direito a
memória, que cada indivíduo ou coletividade tem, mas, sobretudo, o dever à memória, um
compromisso com a história de determinada nação, cidade, povo ou região, que
normalmente é elaborada e fomentada por aqueles que dirigem os projetos políticos,
organizam as medidas de controle e de definição da memória coletiva regional para
constituir subjetividades, as quais criam os sentidos às identidades (SEIXAS, 2000, p. 76).
A memória é imprescindível para a construção da identidade, tanto individual
quanto coletiva, cuja procura na contemporaneidade é uma das atividades fundamentais
dos indivíduos e das sociedades. Contudo, a memória não é somente uma conquista, uma
busca, uma construção, ela é mais do que uma simples reivindicação, é um instrumento e
um objeto de poder (LE GOFF, 2003, p. 469). Desta maneira, pesquisar a memória sul-
mato-grossense, fortemente constituída e investida de poderes, implica preliminarmente a
análise de seus propósitos. A construção da memória estadual é uma operação poderosa,
realizada por pessoas e grupos adjuntos ao poder local, ao mostrar-se como uma operação
coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, a
memória se faz a partir de tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos
diferentes: classes sociais, grupos artísticos, classes políticas, regiões, nações, etc. Um dos
deveres da memória é de nada esquecer, de registrar tudo para a posteridade. O papel de
lembrar é de perpetuar sua memória e de celebrá-la continuadamente, mantendo-a viva na
memória das pessoas.
112
É o dever da memória que seu nome é lembrado, rememorado, para que sua
trajetória de vida não seja jamais esquecida. As referências aos grandes heróis (pioneiros,
chefes militares, políticos, artistas e intelectuais como Guizzo, etc.) do passado e de seus
feitos servem para manter a coesão dos grupos locais e das instituições que compõem a
sociedade, para definir seus respectivos lugares, para melhor gerenciá-los e dominá-los, e
controlar as oposições irredutíveis e singulares de determinada região (POLLAK, 1989, p.
09).
Ao contrário do que faz o governo do Estado ao fabricar uma história regional e
uma memória local reduzindo as artes ao engajamento político, limitando e
esquadrinhando a cultura regional ao veicular uma imagem forjada por si própria e
construindo uma história oficial, a pesquisa e a divulgação da história (do) regional não
precisa ser uma construção histórica celebrativa, veiculadora de mitos e reafirmadora de
identidades. A história pode, enquanto iluminadora do passado, ser capaz de introduzir o
diferente, contestar o oficial, renegar uma invenção do passado, desmentir-se, produzir o
afastamento do que se vê como verdadeiro, do que se diz como certo, do que se sente
como próximo, ela pode ser capaz de descarrilar quem anda nos trilhos como o trem de
ferro e tornar a cultura como água que corre entre as pedras com destino à liberdade73
, a
partir daí se poderá, mesmo que laboriosamente, visualizar o caráter multifacetado da
realidade cultural de Mato Grosso do Sul.
73 Referência poética a: BARROS, 2001. p. 35.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo central deste trabalho consistiu em analisar a construção identitária sul-
mato-grossense. Com base na concepção teórica da desconstrução, a pesquisa investigou e
analisou a atuação política e cultural de José Octávio Guizzo nos estados de Mato Grosso e
de Mato Grosso do Sul, entre os anos de 1967 até 1989.
Sua atuação na esfera cultural foi ampla, seja como advogado, pesquisador,
compositor, cineasta, intelectual e político e, por isso, desde a década de 1960 até 1989
obteve considerável notoriedade, tanto em Mato Grosso como em Mato Grosso do Sul. O
conjunto de sua obra bibliográfica e da sua atuação no cenário cultural revelam suas
preocupações em constituir uma identidade para o estado de Mato Grosso do Sul, criado
em 1977. Ele se dedicou, a pesquisar a história e as tradições comuns e singulares e
procurou estabelecer inúmeras diferenças culturais com relação a Mato Grosso, sobretudo
na música, no folclore, nas artes visuais, na literatura, no teatro e no cinema. Desde a sua
participação no cenário musical da cidade de Campo Grande, entre os anos de 1967 até
1979, se apresentou como um defensor das raízes sertanejas e pantaneiras.
Pela sua militância e participação na esfera cultural foi indicado para compor o
Conselho Estadual de Cultura e, posteriormente, presidiu a Fundação de Cultura de Mato
Grosso do Sul, entre 1984 e 1985. Guizzo criou diferentes projetos e instituições cujo fim
era formular e propagandear o regionalismo, tais como o Centro Cultural de Mato Grosso
do Sul, um espaço para realização de exposições e cursos, onde os artistas regionais
poderiam desenvolver seus trabalhos; a TV Educativa, que tinha a programação voltada à
educação e ao ensino escolar; o Trem da Cultura, uma locomotiva que viajava da cidade de
114
Campo Grande rumo ao interior para promover a música, a dança, as artes plásticas e a
literatura. Guizzo criou também a revista MS Cultura, que tinha o objetivo de publicar
artigos, crônicas e reportagens sobre a cultura sul-mato-grossense. Ele empenhou-se em
reunir e engajar intelectuais, artistas e instituições que pudessem singularizar a região e
formar corações e mentes sul-mato-grossenses. A Comitiva Esperança e a Unidade
Guaicuru são exemplos desse engajamento, cujo fim era criar um imaginário social e
sentimentos de pertença à Mato Grosso do Sul.
Os conflitos em torno de tal estabelecimento aconteceram, principalmente, no
campo político, quando Guizzo passou por constantes críticas, que acabaram por tirá-lo do
poder, em 1985. Sob a conjuntura política nacional, durante a década de 1980, quando se
apresentou a chamada transição democrática, grupos sociais se colocaram em prol da
consolidação das liberdades políticas e da substituição da lógica econômica, implantada
após o golpe militar, em 1964. Em Mato Grosso do Sul as instabilidades políticas eram
decorrência da acirrada disputa pelo poder no âmbito estadual. Essas disputas também se
estendiam às políticas culturais. Enquanto Guizzo defendia como matriz identitárias focada
no universo rural, especialmente nas raízes sertanejas e pantaneiras, outros intelectuais e
instituições defendiam identidade urbana, moderna e cosmopolita. Como decorrência,
Guizzo foi substituído da presidência da Fundação de Cultura por Idara Duncan, que
redefiniu as representações culturais e identitárias delineadas por seu antecessor.
Após a Fundação de Cultura, Guizzo passou a se dedicar aos seus projetos
pessoais, mas não distante daquilo que procurou fazer quanto presidente. Seu projeto mais
bem estruturado configurou-se na possibilidade de fazer um levantamento documental
fundamentado em entrevistas que resultou no livro Alma do Brasil: o primeiro filme
nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado (1984). Guizzo procurou
representar com tal publicação aquilo que durante a década de 1980 agitou parte dos
intelectuais sul-mato-grossenses: a necessidade de criar e registrar uma imemorial história
e uma memória que sintetizasse a alma sul-mato-grossense, que delineasse a identidade e
que fosse capaz de unificar a população.
Após o seu falecimento, em 1989, passou a ser lembrado e celebrado como um
dos mais relevantes da história político-cultural de Mato Grosso do Sul. Invocar sua
memória revela a preocupação de não esquecê-lo e de construir uma História para Mato
Grosso do Sul, sendo sua trajetória de vida um dos destaques por sua atuação no cenário
cultural e político.
115
Por fim, a análise e a desconstrução dos discursos de Guizzo e das memórias
construídas em torno de sua imagem, possibilitaram outra forma de dizer e ver o regional,
e abriu outro caminho para se compreender a construção identitária de Mato Grosso do
Sul. À vista disso, a pesquisa não poderia ser conclusiva, tampouco poderia estabelecer
uma história totalizante. Outros olhares poderão ser lançados sobre a temática, buscando
dialogar e complementar os resultados obtidos, no intuito de ampliar aquilo que a
heterogênea complexidade do horizonte cultural mostra, a cultura como sendo viva,
inconstante e volátil, habitual, resistente, tradicional e/ou infrequente.
116
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Autorizo a reprodução deste trabalho.
Dourados, 21 de Agosto de 2017.
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João Pedro Ribeiro Pereira