ARQUEOLOGIA DE UMA FBRICA DE FERRO: MORRO DE ARAOIABA
SCULOS XVI-XVIII
ANICLEIDE ZEQUINI
So Paulo Dezembro de 2006
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO Museu de Arqueologia e Etnologia
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA
ARQUEOLOGIA DE UMA FBRICA DE FERRO: MORRO DE ARAOIABA, SCULOS XVI-XVIII.
Anicleide Zequini
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Arqueologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Arqueologia.
Orientadora Professora Doutora Margarida Davina Andreatta
So Paulo 2006
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Aos meus Pais: Francisco Zequini
e Dirce da Costa Zequini e Ismar
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AGRADECIMENTOS
Durante a primeira visita ao Stio Arqueolgico Afonso Sardinha da Floresta Nacional de Ipanema em Iper, So Paulo, no ano de 2003, tive oportunidade de
conhecer o objeto de estudo desta Tese: as evidncias da Fbrica de Ferro com a
sua respectiva vala da roda e os inmeros artefatos que haviam sido recolhidos
durante as escavaes. Naquela oportunidade, fui gentilmente recebida pela Sra.
Janette Gutierrez, a quem deixo meus agradecimentos, extensivo aquela
Instituio.
Recebi ainda, no transcorrer do meu trabalho, importantes informaes das
Sras. Vivian Cristiane Fernandes e Nair Tanabe Tomiyama, ambas do Ncleo de
Arqueologia da Universidade Braz Cubas, assim como das Sras. Snia Paes do
Museu Histrico Sorocabano e Marizia Tonelli.
Agradeo tambm ao Sr. Jos Monteiro Salazar, o qual gentilmente me
recebeu em sua residncia em Boituva, SP, um apaixonado pela Historia de
Ipanema, o qual contou fatos de grande interessante sobre a descoberta das
runas, assuntos que incorporei na minha Tese.
Em maro deste mesmo ano apresentei minha qualificao, oportunidade
em que recebi valiosas sugestes das Professoras Doutoras Helosa Maria
Silveira Barbuy e Elaine Farias Veloso Hirata, a quem agradeo.
Finalmente, com admirao e especial carinho que agradeo a minha
orientadora, a Professora Doutora Margarida Davina Andreatta, com quem tive a
oportunidade de discutir longamente os conceitos e detalhes deste meu trabalho.
Os seus conhecimentos e a responsabilidade com que conduziu a orientao
foram fundamentais para a elaborao desta Tese, assim como para minha
prpria formao em Arqueologia, em especial na Arqueologia Histrica.
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SUMRIO
ndice 06 ndice das Figuras 10 Resumo 14 Abstract 15 Introduo 16 Captulo I 19 Captulo II 47 Captulo III 83 Captulo IV 109 Capitulo V 126 Capitulo VI 167 Consideraes finais 193 Bibliografia 195 Glossrio 214 Anexos 220
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NDICE INTRODUO 15 CAPTULO 1 O STIO AFONSO SARDINHA: QUESTES DA ARQUEOLOGIA HISTRICA 1.1 Contexto do presente trabalho 19
1.1.1 Avaliao dos dados bibliogrficos 19 1.1.2 Histrico das descobertas das runas 26 1.1.3 Consideraes sobre a metodologia 32 1.1.4 Descrio geral das pesquisas arqueolgicas realizadas 37
1.2 Principais questes a serem abordadas no decorrer da Tese 46
CAPITULO 2 A TECNICA DE PRODUO DE FERRO NO PERIODO ENTRE OS SCULOS XVI AO XVIII 2.1 Consideraes sobre Tcnica e Tecnologia 47 2.2 O conceito de Tcnica 50 2.3 A valorizao do conhecimento tcnico e a cincia
experimental moderna 53 2. 4 A Tecnologia como sinnimo de Tcnica 55 2.5 A Tcnica de produo do ferro 59 2.6 Fornos de fundio de ferro 64 2.7 Tratados Tcnicos de Metalurgia 78
CAPITULO 3 HISTRICO DA MINERAO NO BRASIL COLONIAL 3.1 As primeiras expedies martimas: a busca dos metais nobres 83 3.2 O Peabiru: uma trilha para o Serto 85 3.3 O descobrimento da prata em Potosi 88 3.4 A busca de metais nobres na Capitania de So Vicente 90 3.5 D. Francisco de Sousa: a organizao da explorao mineral 91
7
3.6 Tcnicos e prticos na minerao e metalurgia 94 3.7 A Fbrica de Ferro de Santo Amaro 96 3.8 A Fbrica de Ferro do morro de Araoiaba: os empreendedores 99 3.9 A Real Fbrica de Ferro de So Joo do Ipanema 103 CAPTULO 4 O STIO AFONSO SARDINHA 4.1 Localizao 109 4.2 A vegetao 116 4.3 Rios e ribeires
4.4 A magnetita: o minrio do morro de Araoiaba 119 4.5 Fatores fisiogrficos da ocupao europia 123
CAPTULO 5 INVESTIGAES ARQUEOLGICAS: AS EVIDENCIAS DE UMA FBRICA DE FERRO 126 5.1 Estruturas hidrulicas para a produo da fora motriz. 129 5.1.1 O Canal de Derivao. 129 5.1.2 A Vala da Roda 132 5.1.2.1 Evidncias de esteios 134 5.2 A Fbrica de Ferro: os espaos de produo 137 5.2.1 Area C 137 5.2.2 A rea B (Forja) 139 5.3 Area E: Sul da Fbrica de Ferro 150 5.3.1 Fornos de fundio na rea externa da Fbrica (rea A1) 155 5.3.1. Forno de Fundio 1 157 5.3.2 Fornos de fundio da rea A2 159 5.3.2.1 Forno de fundio 1 (rea A2) 161 5.3.2.2 Forno de fundio 2 (rea A2) 165
CAPITULO 6 INTERPRETAES DOS DADOS ARQUEOLGICOS 6.1 Avaliao das caractersticas do Arranjo das Estruturas 167 6.2 As ferreras de gua na Pennsula Ibrica 170 6.3 Sistema hidrulico: produo da fora motriz 175
8
6.3.1 Dique de represamento do ribeiro do Ferro 175 6.3.2 Canal de Derivao das guas 176 6.3.3 Vala da roda 177 6.3.4 A Caixa de gua - Banzao 179 6.3.5 A roda hidrulica 180 6. 4 A Fbrica de Ferro: os espaos de produo 183 6.4.1 A Oficina da Fbrica de Ferro. 183 6.4.1.1 O Malho 188 6.4.1.2 Fornos de fundio e foles 190 CONSIDERAES FINAIS 193 BIBLIOGRAFIA 195 GLOSSRIO 214 ANEXOS 220 1. Relatrio de Ensaio Laboratrio de Vidros e Datao FATEC 2. Inventrio de Peas: Cermica 3. Inventario de Peas: Ltico 4. Inventrio de Peas: Louas 5. Inventrio de Peas: Telhas 6. Inventrio de Peas: Metal 7. Tratado da Arte de ensaiar e fundir cobre, ferro e ao. Ano de 1691 8. Aranzel ou Roteiro de haveres de oiro e pedras preciosas. Ano de 1696 9. Planta Geral da rea pesquisada. Stio Afonso Sardinha (Mapa 1) 10. Mapeamento das reas de decapagem e escavao ( Mapa 2) 11. rea E - Concentrao de lminas de metal (Mapa 3)
9
12. rea E - Concentrao de escrias (Mapa 4) 13. rea E - Concentrao de blocos de arenito (Mapa 5) 14. rea E Concentrao de cravos de metal (Mapa 6) 15. rea E - Concentrao de telhas (Mapa 7)
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INDICE DAS FIGURAS
1. Mapa de localizao da FLONA Ipanema 2. Mapa de localizao do Stio Afonso Sardinha 3. Desenho esquemtico da localizao da Fbrica de Ferro 4. Aspecto do Stio Afonso Sardinha, 1983 5. Incio das pesquisas arqueolgicas no Stio Afonso Sardinha, 1983 6. Reunio de trabalhos, 1984 7. Aspecto da Fbrica de ferro, em 1987 8. Planta do Stio Afonso Sardinha: reas A1 e A2 9. Planta da rea A1 10. Vista Geral da rea A1 11. Vista Geral da rea A2 12. Planta da rea A2B: detalhe 13. Planta do morrote A2B 14. rea A2: morrote e evidencias de fornos de fundio 15. Corte esquemtico de um forno baixo 16. Maquete de forno de fundio (Celta) 17. Forno de fundio (romano) 18. Fornos de fundio de lupa ou de vento 19. Corte esquemtico de fornos de fundio de lupa ou de vento 20. Fornos de fundio de Guaira (Potosi)
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21. Fornos de fundio, sculo XVI 22. Fornos de Fundio, sculo XVI 23. Arranjo funcional de uma Fbrica de Ferro 24. Elementos que compem uma Farga Catalan 25. Traado do Peabiru (Tronco de So Vicente) 26. Mapa do Peabiru feito por Pasquale Petrone 27. Prospecto das runas da Fbrica de Ferro de Santo Amaro 28. Vista Geral da Fbrica de Ferro de Ipanema, 1827 29. Vista Geral da Fbrica de Ferro de Ipanema, sculo XIX 30. Altos fornos geminados construdos por Varnhagem, 1818 31. Alto forno construdo pelo Cel. Mursa, 1888 32. Roteiro Histrico da Minerao e metalurgia paulista 33. Mapa Geolgico do Morro de Araoiaba 34. Bloco diagrama da regio da Serra de Araoiaba 35. Vista geral do morro de Araoiaba I 36. Vista geral do morro de Araoiaba II 37. Magnetita 38. Limpeza do Stio Afonso Sardinha, 1984 39. Equipe de trabalho, 1988 40. Vista geral da rea E, 1988 41. Dimenses da Vala da roda e localizao da evidncias de esteios 42. Vala da roda hidrulica, 1987 - I 43. Vala da roda hidrulica, 1987 II 44. Evidncias de esteios
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45 Detalhe da evidncia de esteios 46. Detalhe de um esteio 47. Topografia do terreno da rea C 48. Vista geral da rea C, 1987 49. Reconstituio das paredes da rea B, 1984 50. Evidncias de paredes da rea B, 1984 51. Parede reconstituda da rea B, 1984 - I 52. Parede reconstituda da rea B, 1984 - II 53. Parede reconstituda da rea B, 1984 - III 54. Vasilhame de cermica (01/06) rea B, sculo XVI - I 55. Vasilhame de cermica (01/06) rea B, sculo XVI - II 56 Vasilhame de cermica (01/06) rea B, sculo XVI III 57. Vasilhame de cermica (01/22) rea B, sculo XVI I 58. Vasilhame de cermica (01/22) rea B, sculo XVI II 59. Tijela, faiana , [sculo XVII] 60. Escria restos de fundio, rea E 61. Telha (01/15), rea E, sculo XVIII 62. Telha rea E 63. Telha rea E 64. Raspador plano convexo, rea E 65. Garrafa de grs, rea A forno1 66. Decapagem rea A, forno 1 67. Vestgios do forno de fundio 1, rea A1 68. Morrote e vestgios de fornos de fundio, rea A2
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69. Croqui da rea A2, morrote B 70. Vestgios do forno de fundio 1, rea A2 71. Croqui do forno de fundio 1, rea A2 72. Vestgios do forno de fundio 2, rea A2 - I 73. Vestgios do forno de fundio 2, rea A2 II 74. Vestgios do forno de fundio 2, rea A2 III 75. Aspecto de uma ferrera de gua, sculo XVII 76. Sistema de pujn tuorto 77. Trabalho de extrao da bola de ferro ou massa de ferro 78. Traado esquemtico do Canal de Derivao, rea A1 (Interpretao) 79. Depsito de gua: soluo Banzao 80. localizao do malho e da roda hidrulica (Interpretao) 81. Fbrica de Ferro do Stio Afonso Sardinha: arranjo dos equipamentos (interpretao) 82. Fbrica de Ferro: Planta baixa (interpretao) 83. Fbrica de Ferro: rea erodida (Interpretao)
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RESUMO
Esta Tese tem como objetivo analisar a pesquisa arqueolgica e os
artefatos coletados no Sitio Arqueolgico Afonso Sardinha, localizado no morro de
Araoiaba, Iper - So Paulo.
O resultado da anlise permitiu concluir que a rea corresponde a um
campo de minerao de ferro com a presena de evidncias de uma Fbrica de
Ferro, de um sistema de aproveitamento de energia hidrulica para movimentar
os equipamentos e ferramentas destinadas a produo e de fornos de fundio.
Alm disso, a datao do material cermico (vasilhames e telhas) indica que as
atividades de explorao do minrio tiveram incio no sculo XVI.
Palavras-Chaves: Arqueologia Histrica; Floresta Nacional de Ipanema; Tcnica
de produo de ferro Colonial; Sitio Afonso Sardinha, morro de Araoiaba, Iper-
SP.
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ABSTRACT This Thesis has the goal to analyze archaeological research and artifacts
found in Afonso Sardinha Archaeological, site located on Mount Araoiaba, Iper
So Paulo.
The analysis result leads to the conclusion that the area corresponds to iron
mining field with the presence of Iron Factory evidence, a system that makes use
of hydraulic power to move the equipment and tools used in the production and
small ovens to melt iron. Besides, the ceramic date (pots and tiles) indicates that
mineral digging activities began in the 16th century.
Key words: History Archeology; Ipanema National Forest; Colonial Iron
Production Technique; Archeological Site Afonso Sardinha; Mount Araoiaba,
Iper-SP
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INTRODUO
A presente Tese busca analisar sob o ponto de vista da Arqueologia
Histrica os resultados da pesquisa arqueolgica desenvolvida pela pesquisadora
e arqueloga Margarida Davina Andreatta, entre os anos de 1983 a 1989, na rea
do stio arqueolgico Afonso Sardinha, localizado no morro de Araoiaba,
municpio de Iper a cerca de quinze quilmetros da cidade de Sorocaba, So
Paulo.
Os estudos desenvolvidos consideraram apenas os fatos relacionados
explorao e fabricao do ferro no morro de Araoiaba desde finais do sculo
XVI at o sculo XVIII, portanto antes da instalao do Estabelecimento
Montanstico de Extrao de Ferro das Minas de Sorocaba, em 1810 e mais tarde
com a denominao de Real Fbrica de Ferro de Ipanema.
O resultado final do trabalho do levantamento de campo formou um
conjunto vasto e consolidado em textos de Dirios de Campo escritos pela
pesquisadora, correspondncias, levantamentos topogrficos, planos de
escavao, croquis e desenhos geomtricos de plantas das runas, croquis de
cortes estratigrficos e de reconhecimento das escavaes, Inventrio de Peas e
fotografias, tudo devidamente registrado em relatrios da pesquisa arqueolgica.
17
Os artefatos coletados durante as investigaes de campo foram
acondicionados em caixas devidamente protegidas e identificadas e depositadas
nas dependncias do Museu do Centro de Visitantes da FLONA de Ipanema.
Foram desenvolvidos trabalhos de reconhecimento e anlise detalhada dos
registros arqueolgicos que resultaram da pesquisa de campo e, em seguida
interpretadas as informaes anteriormente consolidadas com base nos
conhecimentos da Arqueologia Histrica e Histria da Tcnica e da Cincia.
Na elaborao da sntese interpretativa foi necessrio valer-se de
instrumentos disponveis em outras reas do conhecimento, tais como: Geologia,
Mineralogia, Metalurgia, Engenharia, dentre outras reas.
Tambm foram elaborados exames visuais e catalogrficos visando a
datao relativa, assim como foram encaminhadas amostras de cermica as
quais foram submetidas a testes de datao absoluta, com base em ensaios de
Termoluminescncia pelo Laboratrio de Vidros e Datao da Faculdade de
Tecnologia de So Paulo - FATEC.
Por outro lado, amostras de resduos de fundio (escrias) foram
ensaiadas em laboratrio para anlise qumica-mineralgica no Departamento de
Mineralogia e Geotectnica GMG, do Instituto de Geocincias da Universidade de
So Paulo.
No Captulo 1 O Stio Afonso Sardinha: questes da Arqueologia Histrica,
optamos por colocar uma sntese dos achados arqueolgicos no Sitio Afonso
Sardinha, sendo que com base nas informaes disponveis foram expostas as
questes da Arqueologia Histrica que resultaram das investigaes de campo e
de laboratrio, assim como das pesquisas bibliogrficas.
No Capitulo 2 A Tcnica de Produo de Ferro no perodo entre os
sculos XVI ao XVIII foram analisadas e discutidas as questes conceituais da
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tcnica e da tecnologia relacionadas a metalurgia no perodo de interesse desta
Tese compreendido entre os sculos XVI e XVIII. Para compreenso dos
processos de produo de ferro foram apresentadas descries dos
procedimentos de fabricao, bem como ilustraes das ferramentas,
equipamentos e mquinas em uso naquele estgio do conhecimento tcnico.
O Captulo 3 Histrico da Minerao no Brasil Colonial trata de uma
avaliao da historiografia disponvel sobre as atividades de minerao no Brasil
e, particularmente para o caso da ento Capitania de So Vicente, merecendo
esclarecer que parte destas obras foi produzida na primeira metade do sculo XX.
Alm disso, foram consultados documentos do Arquivo Municipal de So Paulo,
do Arquivo do Estado de So Paulo e Biblioteca e Arquivo do Museu Histrico
Sorocabano.
No Captulo 4 O Sitio Afonso Sardinha apresenta-se a localizao
geogrfica, as caractersticas geolgicas e geomorfolgicas do morro de
Araoiaba, a vegetao, a hidrografia, recursos minerais com destaque especial
para a presena da Magnetita. Finalmente oferece-se um contexto sucinto a
respeito da ocupao colonial e a presena de naturalistas viajantes, inclusive
Saint Hilaire em 1919.
No Captulo 5 Investigaes Arqueolgicas: as evidencias de uma Fbrica
de Ferro com base em todos os dados que resultaram da pesquisa de campo
foram desenvolvidos trabalhos, sendo que num primeiro momento relacionados
ao reconhecimento e anlise detalhada dos registros arqueolgicos fornecidos
pela pesquisa acima mencionada.
No ltimo Captulo de nmero 6 Interpretaes dos dados arqueolgicos
buscou-se elaborar uma interpretao das informaes consolidadas nos
documentos produzidos a partir dos conhecimentos da Arqueologia Histrica e
Histria da Tcnica e da Cincia.
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CAPTULO 1
O STIO AFONSO SARDINHA: QUESTES DA ARQUEOLOGIA HISTRICA O presente Captulo tem por objetivo indicar um conjunto de questes que devero ser analisadas no decorrer da elaborao desta Tese, as quais
emanaram dos resultados alcanados pelas pesquisas arqueolgicas realizadas
no stio Afonso Sardinha pela pesquisadora e arqueloga Margarida Davina
Andreatta.
Para melhor compreenso dos fatos que fazem parte do contexto do
presente trabalho, tendo em vista a identificao daquelas questes, so
apresentados: a) uma avaliao dos dados bibliogrficos que tratam de assuntos
relacionados ao stio arqueolgico; b) um histrico da descoberta das runas; c) consideraes sobre a metodologia utilizada; d) uma descrio geral resumida
das pesquisas arqueolgicas realizadas.
1.1 Contexto do presente trabalho 1.1.1 Avaliao dos dados bibliogrficos As primeiras notcias relacionadas s minas de ferro do Morro de
Araoiaba e, com os trabalhos de fundio daquele minrio, foram dadas por
Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777). Alm de sua obra mais
conhecida a Nobiliarquia Paulistana Histrica e Genealgica, escreveu a Histria
da Capitania de So Vicente e um compndio sobre a explorao e a legislao
mineira intitulado Noticia das Minas de So Paulo e dos Sertes da mesma
Capitania.
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Neste ltimo trabalho, escrito na segunda metade do sculo XVIII, afirmou
ter sido o bandeirante Afonso Sardinha e seu filho mameluco do mesmo nome,
os que tiveram a glria de descobrir ouro de lavagem nas Serras de
Jaramimbaba e do Jaragu em So Paulo, na de Votoruna em Parnaba e na
Biraoiaba, no Serto do Rio Sorocaba, ouro, prata e ferro pelos anos de 1597
(TAQUES, 1954, p. 112). Em Notcias Genealgicas, citado por Nicolau de
Campos Vergueiro, PedroTaques completa aquela informao indicando que
Afonso Sardinha havia construdo uma fbrica e dois fornos de ferro em
Biraoiaba e que havia doado, um dessas Fbricas, D. Francisco de Souza,
quando em pessoa passou a Biraoiaba no ano de 1600 (VERGUEIRO, 1978,
p.6).
Taques, escreveu suas obras dentro de um contexto em que os trabalhos
historiogrficos buscaram dar um enfoque positivo a participao bandeirante na
histria de So Paulo e, ao mesmo tempo, contrapor todas as outras narrativas
que haviam sido escritas nos sculos anteriores, sobretudo, pelos Jesutas.
Assim, firmou para que Afonso Sardinha e seu filho passassem para a Histria
como tendo sido os descobridores daquelas minas e os pioneiros na fabricao
do ferro no Morro de Araoiaba.
Entre os veculos de divulgao dessa historiografia, est o Instituto
Histrico e Geogrfico de So Paulo e do Brasil (sediado na cidade do Rio de
Janeiro), sendo este ltimo, responsvel pela divulgao das obras de Pedro
Taques1. Por outro lado, aquelas afirmativas foram reforadas pelo
1 Os Institutos Histricos e Geogrficos foram, junto com os Museus brasileiros, os primeiros e mais importantes espaos que existiam no sculo XIX para a pesquisa de humanidades, e para a cincia em geral, no Brasil. O Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo ser uma instncia de produo a afirmar uma suposta especificidade paulista, elaborar tradies do estado atravs de biografias de seus vultos, estudos sobre o passado da provncia etc. Nesse sentido, tambm uma historiografia com teor cvico, paulista, sobretudo, mas que buscava afirmar a prevalncia de So Paulo perante a nao como um todo releitura da figura do bandeirante, no sentido de elev-lo condio de construtor da nao. ROMANCINI, Richard. Inventando tradies: os historiadores e a pesquisa inicial sobre o jornalismo. II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho Florianpolis, de 15 a 17 de abril de 2004. Disponvel em: . Acesso em 06/07/06
21
desaparecimento de total ou significativa parcela dos documentos que
constituram as fontes pesquisadas por aquele autor tais como: os arquivos do
Primeiro Cartrio dos rfos de So Paulo, os da Provedoria da Real Fazenda e
os da Cmara da Vila de So Paulo2.
Alm disso, uma significativa parcela dos trabalhos publicados entre os
sculos XIX e XX sobre as atividades metalrgicas desenvolvidas no morro de
Araoiaba, estavam voltados para as anlises sobre os aspectos da geografia,
historia, mineralogia, botnica e geologia a partir da implantao da Real Fbrica
de Ferro de Ipanema, fundada em 1810 3. Quanto aos perodos anteriores, a fonte
de informao sempre foi a obra de Pedro Taques, a qual foi amplamente
difundida com a publicao da obra de Azevedo Marques intitulada
Apontamentos histricos, geogrficos, bibliogrficos e estatsticos da provncia de
So Paulo, em 1879.
A construo da Real Fbrica de Ferro de Ipanema est inserida no mbito
da implementao de polticas voltadas para favorecer a transferncia para a
colnia de todo o aparelho institucional do reino a partir da chegada de D. Joo VI
a cidade do Rio de Janeiro4. Entre os projetos estava a implantao e
desenvolvimento da siderurgia no Brasil a partir da explorao das jazidas de
ferro j conhecidas como as do Morro de Araoiaba, na Provncia de So Paulo e,
das jazidas de ferro de Minas Gerais localizadas nos atuais municpios de
Congonhas do Campo e Gaspar5.
2 Os arquivos da Provedoria foram destrudos por uma enchente do Tamanduate em 1929. Dos outros arquivos restam apenas poucos exemplares e que esto incompleto como o das Atas da Cmara da Vila de So Paulo. RODRIGUES, Leda Maria Pereira. As Minas de ferro em Araoiba (So Paulo. Sculos XVI-XVII-XVIII). Annais do III Simpsio dos Professores Universitrios de Histria. Franca, 1966, p. 171. 3 A Real Fbrica de Ferro de Ipanema, inicia suas atividades a partir da promulgao da Carta Rgia de 4 de dezembro de 1810. Esta carta contm instrues para o funcionamento de uma fbrica de ferro em Sorocaba. Em 1895 encerra definitivamente as suas atividades. Ver bibliografia. 4 Com a presena de D. Joo VI foi promulgada em 1808 a abertura dos portos para o comrcio e um alvar que revogava o Decreto de D. Maria I, de 1785, referente a proibio da abertura de fbricas e manufaturas no estado do Brasil e Domnios Ultramarinos. 5 As minas de ferro de Gaspar Soares deram origem a Real Fbrica de Ferro de Gaspar Soares, cuja direo foi dada ao Intendente Manuel Ferreira da Cmara. Em 1811, tambm para o Brasil o tcnico alemo Gotthelft Von Feldner com a incumbncia de examinar as minas recm
22
Para dar andamento queles projetos foram trazidos para o Brasil o
mineralogista alemo Friederich Ludwig Wilhelm Varnhagen (1782-1842) e
Wilhelm-Ludwig Von Eschwege (1777-1835), ambos funcionrios da Coroa
Portuguesa6. Eschwege foi enviado para Minas Gerais para inspecionar as
jazidas e minas de ferro e criar com outros acionistas, a companhia siderrgica
Fbrica Patritica do Prata de Congonhas do Campo que comeou a funcionar
em fins de 1811 e Varnhagen para o Morro de Araoiaba7.
Aps observaes mineralgicas realizadas por Varnhagen em
Araoiaba. A partir dos resultados daquelas observaes ficou determinado que
Sorocaba era o local mais apropriado para a construo de uma siderurgia, pois,
a mina existente dentro de sua circunscrio muito rica em metal de ferro e
conta, na sua proximidade, com extensas matas as quais h muitos anos mandou
reservar, e que fornecero o indispensvel combustvel.(FRAGA, 1968, p. 66).
Assim, em 1810 foi fundado o Estabelecimento Montanstico de Extrao de Ferro
das Minas de Sorocaba denominado posteriormente de Real Fbrica de Ferro de
Ipanema.
A rea escolhida para aquele novo empreendimento estava localizada junto
ao rio Ipanema, que da retira aquela denominao, deixando para traz a histria
da metalurgia que havia sido desenvolvida, durante dois sculos, no interior Morro
de Araoiaba no vale das Furnas onde est localizado o Stio Arqueolgico
Afonso Sardinha.
Os primeiros trabalhos sobre a Real Fbrica privilegiavam as anlises
voltadas para a mineralogia e as tcnicas de fundio. Quanto a este ltimo
descobertas de carvo do rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Cf. FIGUEIROA, Silvia, As cincias Geolgicas no Brasil: uma Histria Social e Institucional: 1875-1934. So Paulo: Hicitec, 1997. p. 63-65. 6 Varnhagen e Eschwege voltaram para Portugal em 1822. 7 Varnhagen esteve em Araoiaba acompanhado por Martim Francisco de Andrada Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Inspetor de Minas e Matas da Capitania de So Paulo.
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aspecto, destacam o emprego do alto forno, da fabricao do carvo e o emprego
de fundentes, bem como crticas relacionadas produo e qualidade do ferro8.
Entre as obras mais gerais sobre aquele empreendimento publicadas no
sculo XIX, esto os trabalhos de Antonio da Costa Pinto Silva (1852), Nicolau de
Campos Vergueiro (1843), Frederico Augusto Pereira de Moraes (1858), M. Alves
de Arajo (1882), Francisco de Assis Moura (1888), J. Ewbank da Cmara (1875),
Leandro Dupr (1885), Baro Homem de Mello (1888), Manuel Eufrzio de
Azevedo Marques (1879), Carlos Conrado de Niemeyer (1879), Frederico
Augusto Pereira de Moraes (1858).
Sobre a mineralogia e a geologia esto os de Jos Bonifcio de Andrada e
Silva (1820, 1846), Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1828, 1846, 1855), F.
Schimidt (1853) e Wilhelm L. Von Eschwege (1833) e Orville Adalbert Derby
(1891 e 1895, 1909). Derby foi o descobridor, em 1891 da apatita mineral que foi
amplamente explorado para a fabricao de adubos a partir de 1927. Naquele
mesmo sculo foram realizadas as primeiras anlises da magnetita de Ipanema
pela Escola de Minas de Ouro Preto9, as quais tiveram como resultado a
identificao do titnio como componente daquele minrio.
Dessa forma foi possvel entender a dificuldade tcnica que enfrentaram
todos os diretores de Ipanema em produzir um ferro de boa qualidade, pois a
magnetita alm de sua exagerada densidade apresentava-se impregnada de
xido de Titnio, fatores que contribuem, de forma decisiva, para dificultar sua
reduo mesmo em altos fornos (FRAGA, 1968, p. 86). Entre as pesquisas
realizadas por essa Escola, esto os trabalhos de Paul Ferrand (1885) e Leandro
Dupr (1885), Joo Pandi Calgeras (1893, 1895, 1904,1828) e Ferdinando
Gautier, responsvel em 1891, pela identificao da presena de fsforo no
minrio, elemento tambm nocivo para a produo do ferro. Ainda no sculo XIX,
8 Fundentes so materiais que quando mesclados com o carvo vegetal, dentro do forno, facilitam a fundio dos minrios, no caso de minrios de ferro. Em Ipanema eram utilizados como fundentes os dioritos, tambm chamada pedra verde" (do alemo grunstein). 9 A Escola de Minas de Ouro Preto foi inaugurada em 1876. Destinava-se a formar profissionais para a minerao.
24
esto os relatos elaborados pelo naturalista viajantes como Saint Hilaire, Von
Martius e Zaluar.
No sculo XX os trabalhos relacionados com aquele empreendimento
foram desenvolvidos em duas linhas de investigao, o da histria econmica e
da social. Nesta ltima, as anlises privilegiaram as abordagens sobre o processo
de trabalho e, mais para o final daquele sculo, para as questes sobre o meio
ambiente como os aspectos da ecologia florestal, recursos hdricos, gesto
ambiental e do turismo ecolgico.
Os trabalhos historiogrficos daquele sculo pouco acrescentaram aos
aspectos relacionados com a implantao dos primeiros empreendimentos
metalrgicos anteriores construo da Real Fbrica10. Contudo, trs trabalhos
podem ser destacados pelas contribuies, seja pela releitura de documentos
ainda existentes, como foi o caso dos estudos realizados por Mrio Neme, seja
pelos trabalhos de pesquisa documental elaborados tanto por Leda Maria Pereira
Rodrigues, quanto por Estefania Knotz Canguu Fraga.
No primeiro caso Mrio Neme apresenta em seu livro Notas de Reviso da
Histria de So Paulo, uma reavaliao das obras de Pedro Taques, bem como
de outros autores, que tratam da histria de So Paulo at o momento da 10 Entre as obras direcionadas a um contexto geral brasileiro esto: Sylvio Froes Abreu (1937,1962), Afranio do Amaral (1946), Renato Frota de Azevedo (1955), Tanus Jorge Bastini (1957), Vicente Licinio Cardoso (1924), Sobrinho Costa e Silva (1953), Alpheu Diniz Gonalves (1937), R. Hermanns (1958), R. N. Jafet (1957), Theodor Knecht (1931), Viktor Leinz (1942), Clodomiro de Liveira (1914), Ncia Vilela Luz (1961), Manuel Moreira Machado (1919), Roberval Germano Medeiros (1947), Geraldo Magella Pires de Melo (1957), Geraldo Dutra Moraes (1943), Almiro de Lima (1929), Matias Gonalves de Oliveira Roxo (1937), Edmundo de Macedo Soares (1953), Gilberto Freyre (1988), Francisco Adolpho de Varnhagen (1956), Jos Epitcio Passos Guimares (1981), Francisco Magalhes Gomes (1983), Francisco de Assis Barbosa (1958), Francisco de Assis Carvalho Franco (1928), Silvia Figueroa (1997), Roseli Santaella Stella (2000). Para anlises direcionadas ao Estado de So Paulo esto as de Paulo R. Pestana (1928), Luis Flores de Moraes (1930), Afonso Taunay (1931), Benedito Lima de Toledo (1966), Mrio Neme (1959) Srgio Buarque de Holanda (1960, 1966), Ernani da Silva Bruno (1953) Jesuno Felicssimo Jnior (1969), Washington Luis (1956), Gabriel Pedro Moacyr (1935). E, aqueles relacionados histria local da Real Fbrica, esto o de Jos Monteiro Salazar (1982), Astor Frana Azevedo (1959), Luiz de Almeida Castanho (1937, 1939, 1958), Jaime Benedito de Arajo (1939), Ezequiel Freire (1953), Emanuel Soares Veiga Garcia (1954), Joo Loureno Rodrigues (1953), Otvio Tarqunio de Souza (1946), Hlio Vianna (1969), Andr Davino (1965), Guido Ranzani (1965), Miriam Escobar (1982), Theodoro Knecht (1930), Helmut Born (1989), Lenharo, S L R (1996), Antonio Maciel Botelho Machado (1998) e Jaime Rodrigues (1998), Aluzio de Almeida (2002).
25
publicao da obra em 1959, confrontando as afirmaes dos autores com base
nos documentos disponveis naquele momento. A obra, segundo o autor, fora
escrita com base em pesquisa documental realizada por ele durante duas
dcadas, tendo concludo que firmamo-nos na convico mais absoluta de que a
crnica de nossa formao e evoluo est a exigir ampla reviso, quer em
matria de fatos e acontecimentos, na sua ocorrncia e significao imediata e
futura, e no que toca a dados, datas e nomes, quer em matria de interpretao
(NEME,1959, p.11).
Ao final deste trabalho Neme conclui que, os dados oferecidos por Pedro
Taques a respeito da construo de uma Fbrica de ferro por Afonso Sardinha no
Morro de Araoiaba, no passou de uma fbula criada por aquele autor, sendo
que a nica Fbrica de ferro que de fato existiu no incio do sculo XVII foi a de
Santo Amaro.
No segundo trabalho a ser considerado, trata-se de um artigo publicado em
1966 pela historiadora Leda Maria Pereira Rodrigues, intitulado As Minas de ferro
em Araoiaba (So Paulo. Sculos XVI-XVII-XVIII), onde a autora afirma que os
primrdios de nossa Histria fazem surgir dvidas difceis de serem esclarecidas,
pois h falta de documentos coesos que provem incontestavelmente a veracidade
de certas afirmaes. Neste mesmo trabalho ela conclui que at a instalao da
Real Fbrica em 1810, todos os empreendimentos anteriores constituram numa
srie de tentativas frustras. A autora demonstra que pelo menos dois
empreendimentos foram efetivamente implementados naquele local, o de Luiz
Lopes de Carvalho, por volta de 1690, e o de Domingos Pereira Ferreira, em 1875
(RODRIGUES, 1966, p.246-249).
Em 1968, Estefania Knotz Canguu Fraga, sob a orientao da historiadora
Leda Maria Pereira Rodrigues, seguindo as discusses iniciadas pela autora
acima mencionada, desenvolveu uma tese na rea de Histria do Brasil com o
titulo Subsdios para o estudo da Histria da Real Fbrica de Ferro de Ipanema
(1779-1822). Neste trabalho, analisou especialmente, o empreendimento de
26
Domingos Pereira Ferreira, como tambm, as primeiras dcadas de
funcionamento da Real Fbrica sob a direo de Hedberg (1810-1814) e
Varnhagen (1814-1822). A autora, depois de enumerar as possveis causas que
teriam levado ao que atribui ser um insucesso econmico daqueles
empreendimentos, conclui que:
mesmo que a fbrica de ferro de Araoiaba (como
primitivamente era denominado o local), no possa oferecer
ao pesquisador nada alm de constantes provas de seu
insucesso, ainda assim o propsito que o anima, no deve
esmorecer. Afinal, o que seria da Historia se s merecessem
registro os eventos vitoriosos? Quantas derrotas no
levaram as vitrias? Porque ento omiti-las se fazem parte
integrante da mesma? Porque esquec-la se refletem uma
circunstancia real, mesmo que nela se insinue uma ou mais
foras obstrutivas que consagram ao fracasso tudo o que
nela se condiciona, mas que, nem por isso, obstam uma ou
vrias tentativas de superao? sabido que a dualidade de
foras impele a civilizao. E mais, que a tanta glria existe
na derrota quanto na vitria quando supem luta. E poder
algum negar que Ipanema no foi um glorioso campo de
luta? (FRAGA, 1966, p. 109).
1.1.2 Histrico das descobertas das runas O Stio Arqueolgico Histrico Afonso Sardinha foi assim denominado, por
ter sido Afonso Sardinha, bandeirante, e seu filho mameluco11 Afonso Sardinha, o
moo, apontados por Pedro Taques e pela historiografia, como os provveis
11 Filho de pai branco e me indgena. No caso dos mamelucos, os pais reconheciam publicamente a paternidade e os filhos gozavam da liberdade plena e aproximavam-se identidade portuguesa. Essa denominao cai em desuso no sculo XVIII e substituda pelo termo bastardo, que passava a designar qualquer pessoa com ascendncia indgena. (MONTEIRO, 1994, p 167).
27
descobridores e construtores dos primeiros fornos de fundio naquele local em
finais do sculo XVI.
No ano de 1977, Jos Monteiro Salazar, pesquisador estudioso da histria
regional e, particularmente, da Real Fbrica de Ferro de Ipanema acompanhado
pelos engenheiros agrnomos Nerzon Nogueira de Barros e Dinchiti Sinzato, e
pelo fotgrafo Venedavel Acosta, encontrou as runas de um possvel Fbrica de
ferro que atribuiu ser aquele construdo por Afonso Sardinha em finais do sculo
XVI (SALAZAR, 1997,156-159). Tal avaliao decorria do fato de que aquela
regio teria sido uma rea de provvel explorao mineral do ferro, que
remontaria aos primrdios da colonizao de So Vicente, conforme apontavam a
historiografia disponvel sobre aquela Capitania.
28
Fig. 1 MAPA DE LOCALIZAO DA FLONA Floresta Nacional de Ipanema, Escala: 1:250 000 CENEA- Centro Nacional de Engenharia Agrcola, 1985
29
Fig. 2 MAPA DE LOCALIZAO DO STIO AFONSO SARDINHA Folheto IBAMA, sem data e sem escala.
30
Fig. 3 DESENHO ESQUEMTICO DE LOCALIZAO DA FBRICA DE FERRO. Salazar (1997, p.80).
Fig. 4 MARGARIDA DAVINA ANDREATTA E JOS MONTEIRO SALAZAR. Aspecto do Stio em 1983.
31
Fig. 5 MARGARIDA DAVINA ANDREATTA E JOS MONTEIRO SALAZAR. Incio das pesquisas no Stio Afonso Sardinha, 1983. As runas foram localizadas no interior do vale das Furnas, onde est o
ribeiro do Ferro, que nasce e cruza o Morro de Araoiaba, desaguando no rio
Ipanema, o qual por sua vez um afluente, pela margem esquerda do rio
Sorocaba.
Este ribeiro:
(...) nasce no Monte do Chapu e corre primeiro do norte para o
sul e, depois de passar pelo Vale das Furnas, torce bruscamente
e muda radicalmente de direo, fazendo uma grande curva e
passando a correr do sul para o norte, indo desaguar, afinal no
Ipanema. (SALAZAR, 1997, p. 02)
Foi numa das curvas do ribeiro do Ferro que aquelas runas foram
localizadas. As estruturas ali descobertas se cercavam de condies fisiogrficas
favorveis para viabilizar a atividade de produo do ferro, devido a proximidade
32
das jazidas do minrio, existncia de matas abundantes, assim como de uma
hidrografia favorvel para o aproveitamento da fora motriz das guas.
A primeira constatao da existncia de uma estrutura por eles encontrada
foi uma fileira de pedras bem conservadas que identificaram como canal,
certamente para o desvio do rio a fim de mover os martinetes. Descobriram uma
muralha, que atriburam ser uma parede de forja (SALAZAR, 1997, p.159-160).
1.1.3 Consideraes sobre a metodologia. O termo arqueologia histrica surge nos Estados Unidos nas dcadas de
1960 para designar o estudo da cultura material dos europeus no mundo. Esse
termo passou a ser oficialmente adotado em 1967, tendo em vista regulamentar a
nomenclatura para designar as pesquisas arqueolgicas em stios histricos que
estavam sendo desenvolvidas nos Estados Unidos. At ento eram utilizados,
para identificar aqueles trabalhos arqueolgicos, uma nomenclatura diversificada
como, arqueologia colonial, arqueologia da historia, arqueologia de stios
histricos, entre outros.
Naquela mesma dcada, a arqueologia histrica passa a ser uma
disciplina, valendo-se da aplicao de mtodos de escavao j consagrados
pela arqueologia pr-historica e, das abordagens terico-metolgicas voltadas
para a interpretao dos registros arqueolgicos. As ferramentas tericas
metodolgicas apresentadas pela arqueologia foram sendo revisadas e
aprimoradas de modo a contribuir com as anlises destinadas a interpretar as
culturas pretritas.
Outra questo diz respeito compreenso do papel da Arqueologia
Histrica aplicada s pesquisas desenvolvidas na Amrica, tendo em vista a
viso desenvolvida por Charles Orser Jr., segundo o qual cabe a esta disciplina
investigar fundamentalmente os (...) aspectos matrias, em termos histricos,
33
culturais e sociais concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo que
foi trazido da Europa em fins do sculo XV e que continua em ao ainda hoje
(ORSER, 1992, p. 23).
Posteriormente, Orser trouxe novas contribuies a aquela conceituao
ao formular a Teoria de Rede, segundo a qual as pesquisas em Arqueologia,
deveriam levar em considerao a questo das interligaes globais,
demonstrando a origem e os desenvolvimentos ulteriores da globalizao, da
modernizao e da expanso colonialista, criados por agentes conscientes do
colonialismo, do eurocentrismo e da modernidade, que proporcionaram a
criao de uma srie de elos complexos e multidimensionais que uniam
diversos povos ao redor do mundo (ORSER, 1999, p. 87).
No que se referem interpretao dos registros arqueolgicos, as
pesquisas em arqueologia histrica empregam teorias e mtodos que foram
sendo desenvolvidos por meio da aplicao de mtodos de abordagens como o
Histrico-Culturalismo (foi amplamente difundida entre os arquelogos
brasileiros), New Archaeology ou Arqueologia Processual e Ps-
processualismo e suas derivaes. Cada mtodo privilegiou uma escala
apropriada de anlise, para o Histrico Culturalismo foi o stio, para o
Processualismo, a regio e, para o Ps-Processualismo passou a ser o
indivduo (LIMA, 2000, p. 2).
No Brasil, a formao da primeira gerao de arquelogos na dcada de
1970 foi orientada por duas correntes tericas. A americana representada pelos
arquelogos Clifford Evans (1920-1981) e Betty Meggers coordenadores do
Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas (Pronapa) criado na dcada
de 1960. E a Francesa representada por Joseph e Annette Emperaire. Da
escola francesa destacamos as pesquisas realizadas pelo grupo do Centre
National de la Recherche Scientifique que trabalharam em Minas Gerais,
Paran, So Paulo e no Piau em convenio com o Museu Paulista da
Universidade de So Paulo e a Universidade do Piau, com o objetivo de
34
proporcionar as primeiras dataes para as obras rupestres e sua insero no
contexto cultural pr-histrico (PROUS, 1992, p.17).
A partir da pesquisas do grupo Franco-Brasileiro foram fornecidas as
primeiras dataes radiocarbono, a introduo de tcnicas e mtodos mais
refinados de decapagem e a realizao de escavaes sistemticas no Brasil.
Alm da influncia terica-metodologica o convnio entre aquele grupo
representado por Joseph e Annette Laming Emperaire e o Centre National de
la Recherche Scientifique proporcionou a formao de arquelogos e de
especializaes na Frana. Entre os anos de 1960-1980 o legado francs
permanecia em duas Instituies de So Paulo, o Museu de Pr-Histria
(atualmente incorporado ao MAE) e Museu Paulista da Universidade de So
Paulo e em Minas Gerais, no Museu de Histria Natural da Universidade
Federal de Minas Gerais.
A partir da dcada de 1960, as pesquisas relacionadas ao campo da
arqueologia histrica foram conduzidas, particularmente por arquelogos pr-
historiadores que passaram a desenvolver pesquisas em Stios Histricos.
Num primeiro momento, aquelas pesquisas arqueolgicas foram marcadas
pelas teorias do mtodo histrico-culturalista, privilegiando monumentos como
igrejas, conventos, misses jesuticas, fortificaes, solares, entre outros,
encorajadas pelos rgos de preservao do patrimnio histrico e cultural e
pela recm-criada Lei 3.924, de 26 de julho de 1961, atravs da qual os
monumentos arqueolgicos e pr-histricos passaram a serem considerados
como patrimnio da Unio. (ANDRADE, 1993; FUNARI, 1998; RUBINO, 1996).
At a dcada de 80 as pesquisas ainda seguiam aquela linha de
investigao, privilegiando pesquisas em monumentos. Contudo, j havia
perspectivas de novas abordagens de pesquisa, notadamente, voltadas para
os segmentos sociais desfavorecidos de registros, possibilitando recuperar
memrias sociais, reinterpretar a Histria Oficial, resgatar elementos e prticas
da vida cotidiana, sobre os quais normalmente no se escreve.
35
Proporcionando a arqueologia histrica investigar uma diversificada temtica,
transformando em Stios Histricos, quilombos, unidades domsticas, becos
urbanos, senzalas, tecnologias de produo de materiais e povoados, etc.
(ANDRADE, 1993, p. 228).
Neste contexto, se inserem as pesquisas em arqueolgica histrica
desenvolvida na cidade de So Paulo. O Programa de Arqueologia Histrica no
Municpio de So Paulo foi coordenado por Margarida Davina Andreatta do
Museu Paulista da Universidade de So Paulo em colaborao com o
Departamento do Patrimnio Histrico da Secretaria Municipal de Cultural. A
pesquisa realizada a partir de prospeces e escavaes sistemticas em
Casas Bandeiristas e locais pblicos e privados do municpio como becos,
ruas, praas, quintais, lixes, logradouros, etc. Entre os anos de 1979 e 1981
foram realizadas pesquisas arqueolgicas no Municpio de So Paulo nos
Stios Mirim, em Ermilindo Matarazzo; Sitio de Morrinhos, no Jardim So Bento;
Casa do Grito, no Parque da Independncia Ipiranga; Beco do Pinto, Bairro
da S; Casa n. 1 do Ptio do Colgio e Casa do Tatuap e no bairro do
Tatuap (ANDREATTA, 1981/2; 1986a; 1986b). Em 1983, Margarida Davina
Andreatta iniciou as pesquisas arqueolgicas na Fazenda Ipanema Iper,
So Paulo, atualmente um rea de proteo ambiental FLONA 12.
Durante o desenvolvimento dessa pesquisa foram realizadas
escavaes e prospeces em uma rea extensa daquela Fazenda, incluindo
todas as edificaes que pertenceram a Real Fbrica de Ferro de Ipanema
(1810-1895)13 e as runas existentes no Vale das Furnas, junto do ribeiro do
Ferro e interior do Morro de Araoiaba. Nesta ltima rea denominada Stio
Afonso Sardinha, foi evidenciado estruturas de um Fbrica de Ferro e Fornos 12 As edificaes da Real Fbrica de Ferro de Ipanema foram tombadas pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, em 1964. O Stio Arqueolgico Afonso Sardinha foi registrado tambm no IPHAN em 1997, por Margarida Davina Andreatta. Ver: Detalhes de Stios Arqueolgicos. Disponvel em . Acesso em 09.mar. 2004. 13 Foram realizadas pesquisas arqueolgicas nas reas dos altos fornos, fornos de carvo, edifcio de armas brancas, Praa Afonso Sardinha, entre outros, dependncias pertencentes a Real Fbrica de Ferro de Ipanema.
36
de Fundio e uma diversificada tipologia de materiais, os quais compe os
documentos arqueolgicos que foram registrados no Inventrio de Peas
relacionadas a pesquisa (exemplos em anexo).
Da pesquisa no Sitio Afonso Sardinha, foram produzidos um significativo
conjunto documental formado por inmeras tipologias de documentos de
arquivo, que formam o Fundo Sitio Afonso Sardinha. A partir dessa
documentao foi possvel acompanhar o processo de desenvolvimento
daquela pesquisa e tambm contextualizar os documentos arqueolgicos
permitindo assim, a realizao de interpretaes quanto sua datao e
significado. Nas palavras de Hodder, a partir del momento em que se conoce
el contexto de um objeto, este ya no es completamente mudo (HODDER,
1994, 18).
Os documentos do Fundo Stio Afonso Sardinha so compostos por
dirios de campo, relatrios de pesquisa, planos de escavao, fotografias,
correspondncias e tambm por uma coleo formada por documentos de
apoio a pesquisa como plantas topogrficas, planoaltimtricas, bibliografia
histrica e tcnica sobre minerao e fundio de ferro no Brasil nos primeiros
trs sculos de colonizao.
A pesquisa realizada a partir da bibliografia encontrada no Fundo Afonso
Sardinha apontou caminhos de investigao que direcionaram para uma
bibliografia tcnica e histrica sobre a tcnica da produo de ferro
desenvolvida na Europa, especialmente na Espanha, entre os sculos XVI-
XVIII. Alm disso, foi agregada aquela investigao um conjunto de
documentos de cunho oficial, escritos pelos empreendedores daquela
produo e rgos administrativos coloniais, como a Cmara da Vila de So
Paulo.
Assim, os documentos pertencentes ao Fundo Afonso Sardinha,
documentos textuais oficiais e documentos arqueolgicos permitiram
37
interpretar que a rea do Stio corresponde a um campo de trabalho de
produo de ferro e que as atividades de minerao e fundio estavam
distribudas por uma rea extensa com forte influencia dos modelos de ferrarias
de gua que haviam, no perodo pesquisado, na regio basca da Espanha.
Assim, as possibilidades dadas pela arqueologia histrica de permitir a
utilizao tanto de documentos arqueolgicos (artefatos) e textuais na
realizao da pesquisa e produo do conhecimento tambm, uma das
principais tenses que norteiam as questes tericas-metodolgicas da
arqueologia histrica. Para tanto, autores como Anders Andrn, ao considerar
que o problema da arqueologia histrica o encontro entre a cultura material e
a escrita, indica tambm que a arqueologia histrica no pode ignorar as
disciplinas que tratam do homem, como o caso da Histria, da Antropologia
ou da Filologia, propondo que a metodologia em arqueologia histrica deve
estabelecer dialogue between artifact and text that is unique in relation to
prehistoric archeology as well as history (ANDRN, 1998, p. 177).
1.1.4 Descrio geral das pesquisas arqueolgicas realizadas Entre os anos de 1983 1989, as runas encontradas por Jos Monteiro
Salazar (1982) foram objeto de uma pesquisa arqueolgica iniciada pelo
Protocolo de Intenes entre o Museu Paulista da Universidade de So Paulo e o
CENEA Centro Nacional de Engenharia Agrcola - rgo autnomo do Ministrio
da Agricultura, ao qual a Fazenda Ipanema estava ligado. A pesquisa foi
coordenada pela arqueloga Margarida Davina Andreatta, do Museu Paulista da
Universidade de So Paulo14.
14 A Fazenda Ipanema pertenceu ao CENEA, Centro Nacional de Engenharia Agrcola, rgo autnomo do Ministrio da Agricultura, at a extino desse Centro em 1990, poca em que foram exploradas as minas de Apatita para a fabricao de adubos. A pesquisa arqueolgica nesta rea foi coordenada pela pesquisadora e arqueloga Profa. Dra Margarida Davina Andreatta , tendo como assistente o pesquisador da Historia regional Jos Monteiro Salazar, alm de estagirios da Universidade de So Paulo e voluntrios.
38
Fig. 6 MARGARIDA DAVINA ANDREATTA E EQUIPE EM REUNIO COM A DIRETORIA DA FLORESTA NACIONAL DE IPANEMA, 1984.
Fig. 7 ASPECTO DA FBRICA DE FERRO, em 1987
39
Fig. 8 Planta da rea do Sitio Afonso Sardinha: reas A1 e A2
40
As pesquisas arqueolgicas desenvolvidas no sitio Afonso Sardinha
evidenciaram a existncia de um campo de produo de ferro, localizado na
margem esquerda do ribeiro do ferro, o qual se mostrou formadas por duas
reas, identificadas durante aqueles trabalhos como rea A1 e rea A2 mostradas no Mapa da Figura 8.
A rea A1 situada no setor norte do campo apresentou runas de uma edificao relativamente maior de produo de ferro composto por quatro setores
identificados como Forno (setor A), Forja (setor B), espao entre a Forja e o Canal
(setor C) e Canal (setor D), espao sul da estrutura (setor E).
Nessa rea A1 a pesquisa arqueolgica possibilitou as seguintes principais evidncias:
(i) ocorrncias de escrias de forma disseminada e tambm na forma de
um amontoado junto a parede externa (sul) da Forja;
(ii) ocorrncias de telhas na rea ao sul das paredes dos setores B,C e D;
(iii) ocorrncias de cravo e lminas de metal tambm na rea sul da
estrutura;
(iv) ocorrncia de cermica neo-brasileira nos setores da forja (B) e do
Forno (A);
(v) ocorrncia de faiana portuguesa nos setores da Forja (B) e do Forno
(A);
(vi) ocorrncia de vidro na parte norte do Forno (setor A), parte externa da
Forja (setor B) e tambm um fragmento no setor E (parte sul da estrutura);
41
(vii) ocorrncia de metal na parte interna e externa da Forja (B), na rea E,
parte interna da rea (C) e face oeste do Canal (D).
(viii) evidncias de esteios nas laterais do Canal (D)
Fig 9 Detalhe da rea A 1 Sitio Afonso Sardinha
42
Fig 10 VISTA GERAL DA REA A 1 Sitio Afonso Sardinha, 1987.
Fig 11 VISTA GERAL DA REA A 2 Stio Afonso Sardinha, 1987. Na rea A2 mostrada na figura 12, as pesquisas arqueolgicas evidenciaram a existncia de duas subreas sendo uma denominada de A2-B e a
43
outra de D, constituda de parte de um muro de pedras, cuja estrutura no foi
possvel identificar.
Fig. 12 DETALHE DA REA A 2 Sitio Afonso Sardinha Na rea A2-B (Morrote) foram observadas as seguintes evidncias:
(i) ocorrncia de dois fornos soterrados sob um Morrote na rea
designada como A2-B;
(ii) ocorrncia de tijolos, telhas e mureta de pedra.
44
Na rea D da figura 12 foram observados:
(i) mureta de estrutura no identificada;
(ii) ocorrncia de duas estruturas circulares, de natureza no
identificada.
(iii) ocorrncias de cermicas, telhas e tijolos.
(iv) Ao sul da rea A2-B observou-se a existncia de: um muro de
pedra interpretado como sendo parte de um canal, tendo ao seu lado duas
estruturas circulares com dimetro de 1,5 m. (Figura 13 e 14)
Fig. 13 PLANTA MORROTE REA A2-B, 1987.
45
Fig 14 MORROTE COM EVIDENCIAS DE FORNO. REA A2.
46
1.2 Principais questes a serem abordadas no decorrer da Tese Os estudos histricos disponveis acima apresentados, bem como os
resultados das pesquisas arqueolgicas realizadas, conforme descritas nos itens
anteriores, permitem relacionar um conjunto de questes que consideramos
importantes para esclarecimento do processo de instalao da Fbrica de ferro
em Araoiaba (Sitio Afonso Sardinha) no perodo compreendido entre o final do
sculo XVI ao sculo XVIII, que antecedeu a instalao da Real Fbrica de Ferro
de Ipanema em 1810.
Tais questes podem ser resumidas conforme seguem:
I - Avaliao dos vestgios arqueolgicos das atividades relacionadas minerao
e produo de ferro a partir do final do sculo XVI e anteriormente instalao
da Real Fbrica de Ferro de Ipanema em 1810.
II - Investigao das possveis tcnicas de produo e mtodos de fundio de
ferro empregadas em Araoiaba no perodo de analise desta tese.
III - Caracterizao de modelos de fornos de fundio e processos industriais
encontrados na rea do sitio arqueolgico.
IV Avaliao das possveis causas tcnicas e cientficas relacionadas s
dificuldades de produo e de qualidade do ferro produzido em Araoiaba.
47
CAPITULO 2
A TECNICA DE PRODUO DE FERRO NO PERIODO ENTRE OS SCULOS
XVI AO XVIII
2.1 Consideraes sobre Tcnica e Tecnologia
Uma das primeiras questes para conceituar Tcnica refere-se s anlises
que permitem diferenci-la do conceito moderno de Tecnologia. Ruy Gama (1986,
p. 19) ao analisar essa questo, a partir de autores de lngua inglesa, observa que
o conceito de tecnologia aparece ora como simplesmente sinnimo de tcnica ou
de conjunto de tcnicas, alarga-se as vezes para incluir o produto material das
tcnicas, e outras vezes menos freqentes, usada como sinnimo de saber
associado as tcnicas ou como estudo das tcnicas.
A partir de 1930, a preocupao com a Histria da Tcnica vem se
difundido, sobretudo, por meio das anlises iniciadas por autores franceses como
Marc Bloch, Lefevre de Nottes e Lucien Febvre e, ingleses, como Abbott Payson,
Lynn White Jr. e Lewis Munford, que a transformaram numa nova disciplina
historiogrfica. 15
No Brasil, a primeira discusso sobre essa temtica foi apresentada, em
1985, com a publicao do livro Histria da Tcnica e da Tecnologia, organizado
por Ruy Gama. Este trabalho formado por uma coletnea de textos clssicos e
de outros produzidos por autores estrangeiros e brasileiros sobre a Histria da
Tcnica, da Tecnologia e da Cincia. Entre os textos escritos por autores
brasileiros, destacam-se os trabalhos de Fernando Luis Lobo Barbosa Carneiro e
de Julio R. Katinsky.
15 Os Textos em que estes autores discutem o conceito de Tcnica e Tecnologia foram publicados no livro Historia da Tcnica e da Tecnologia organizado por Ruy Gama (1985).
48
No texto escrito por esse ltimo autor, est um Glossrio dos Carpinteiros
de Moinho, onde o autor apresenta os resultados de uma pesquisa que fez sobre
os moinhos hidralicos no Brasil, cuja utilizao bastante freqente nas reas
rurais dos Estados de So Paulo e Sul de Minas. Alm disso, oferece um
glossrio de termos empregados basicamente, na construo de monjolos,
prensas de mandioca, engenhocas de acar e moinhos hidralicos de gros,
estes ltimos geralmente preparados para produzir quirera ou fub (KATINSKY,1985, p. 216).
Alm desses textos, a Coletnea traz dois artigos do economista alemo
Johann Beckmann (1729-1811), considerado o pai da Tecnologia por haver
firmado aquele conceito em fins do sculo XVIII e institudo a disciplina de
Tecnologia no ensino da Universidade de Gttingen16. Em 1777 publica a obra
Instruo sobre Tecnologia em que firmava o seu conceito de Tecnologia como:
conhecimento dos ofcios, fbricas e manufaturas, especialmente daquelas que
tem contacto estrito com a agricultura, a administrao pblica e as cincias
cameralsticas (GAMA, 1985, p.6). Na introduo dessa mesma obra, Beckmann,
escrevia que:
A histria das artes pode dedicar-se a enumeraes das
invenes, ao progresso e ao curso habitual de uma arte ou de
um trabalho manual, mas a tecnologia que explica de maneira
completa, clara e ordenada, todos os trabalhos, assim como seus
fundamentos e suas conseqncias (BECKMANN Apud GAMA,
1985 p.6).
Serge Moscovici, em Essai sur lhistorie humaine de la Nature, referindo-se
a Beckmann, afirma que este autor conscientemente forja o termo tecnologia
para designar a disciplina que descreve e ordena os ofcios e as indstrias
existentes (MOSCOVICI apud GAMA, 1985, p. 8).
16 Gttingen era uma das mais conhecidas universidades da Europa, qual se vinculavam muitos estadistas e funcionrios administrativos da Alemanha.
49
Para Beckmann e outros autores de seu tempo, a Tecnologia estava
intimamente ligada escola e, basicamente, unio dos sbios com os
fabricantes, que dominavam o conhecimento tcnico, numa poca em que este
mesmo conhecimento comeava a ser objeto de investigao de academias e
universidades, as quais tinham como objetivo a formulao de uma linguagem
tecnolgica por intermdio da codificao de conceitos. Ressaltamos ainda que
as propostas de Beckmann e, esse novo olhar paras as tcnicas, estavam
voltadas para o atendimento de demandas sociais surgidas com a Revoluo
Industrial.
Se a Tecnologia tem a funo de explicar, como afirma Beckmann, ela
tambm teve seu tempo de formulao. Segundo Ruy Gama, o nascimento do
conceito de Tecnologia pode ser situado historicamente no decorrer da Idade
Moderna sendo difundido a partir do sculo XVII. Para este autor, tal conceito foi
construdo,
pari passu ao desenvolvimento do capitalismo e substituio do
modo de produo feudal/coorporativo, e do sistema de
transmisso do conhecimento apoiado na aprendizagem, pelo
emprego do trabalho assalariado e pelo sistema escolarizado do
conhecimento (GAMA, 1986, p.30).
Dessa forma, at pelo menos antes do advento da Revoluo da Cincia
(1789-1848), especialmente pelas descobertas proporcionadas pela Qumica 17,
todos os processos de produo eram realizados a partir de conhecimentos
prticos e que no eram e no poderiam ser explicados cientificamente. Assim
trabalhavam os carpinteiros, camponeses, mineiros e fundidores de metais e
outros artesos da Idade Mdia, associando engenhosidade, experincia e
habilidade manual ou, em outras palavras, centrados no mais rude empirismo
(USHER, 1994, p. 465).
17 A Qumica, entre todas as cincias, foi a mais ntima e imediatamente ligada prtica industrial a Revoluo Industrial - especialmente integrada aos processos de tingimento de tecidos e branqueamento da industria txtil ( HOBSBAWM, 1979, p.305)
50
Para Milton Vargas, a Tecnologia s pode ter vigncia depois do
estabelecimento da Cincia Moderna 18,
principalmente pelo fato de essa cultura ser um saber que, apesar
de terico, deve necessariamente ser verificado pela experincia
cientfica. Esse aspecto experimental e, portanto, emprico da
Cincia moderna provm da idia renascentista de que tudo
aquilo que fora realizado pela tradio tcnica poderia s-lo
tambm pela teoria e metodologia cientficas, o que
evidentemente aproxima o saber terico-cientfico do fazer
emprico da tcnica (VARGAS, 1994, p. 16).
2.2 O conceito de Tcnica Originrio da Grcia Clssica, o conceito de Tcnica estava inserindo num tipo de saber-fazer associado a mitos como o de Hefestos (Vulcano para os
romanos) o ferreiro - senhor do fogo e da forja que, segundo aquela mitologia,
havia revelado o segredo desta Tcnica aos homens. Desta perspectiva
mitolgica, o conceito de Tcnica transformou-se num outro tipo saber-fazer, o da
techn: um conhecimento emprico que somente pode ser obtido atravs do
aprendizado baseado na experincia ou ento a partir dos ensinamentos
transmitidos de gerao em gerao.
Neste sentido, a Techn no uma habilidade qualquer, mas uma
habilidade que segue certas regras, por isso, techn significa tambm ofcio;
pressupe a existncia de um substrato, um saber e um conhecimento na
18 Para Hobsbawm, o progresso da cincia, no pode ser entendido como um simples avano linear, cada estgio determinando a soluo de problemas anteriormente implcitos nele, e por sua vez colocando novos problemas. Estes avanos tambm procedem pela descoberta de novos problemas, de novas maneiras de enfocar os antigos, de novas maneiras de enfrentar e solucionar velhos problemas, de campos de investigao inteiramente novos, de novos instrumentos prticos e tericos de investigao. (HOBSBAWM , 1979, p. 302).
51
execuo de uma atividade. (NADAL, 2000, p. 18). Esta forma de saber baseada
na lgica prolongou-se atravs da Idade Mdia e chegou aos nossos dias com o
ttulo de Tcnicas. No so teorias, so conhecimentos que tanto podem ser
adquiridos pela prtica como pelo estudo de tratados tcnicos.
Entre os sculos XVI e XVII, a Cincia ao romper com a tradio
escolstica19, avana para o caminho da experimentao com a valorizao das
artes (tcnica), as quais j vinham se transformando em objeto de preocupao e
de estudo desde a Baixa Idade Mdia e o Renascimento at chegar constituio
da Cincia Moderna (DANTAS, 2004).
Contraposta ao pensamento grego e medieval, em que a
contemplao das verdades era a meta do conhecimento, sabe-se
que a partir do Renascimento h uma valorizao do
conhecimento prtico, bem como uma mudana no estatuto do
conhecimento tcnico. H uma expectativa de interveno e de
controle da natureza, e correlativamente, um reconhecimento da
tcnica, isto , das atividades, inventos e construes dos
prticos, engenheiros e artesos. Da se falar em uma nova forma
de saber e uma nova figura de douto. H, no entanto uma srie de
dificuldades para estabelecer as razes do surgimento dessa
dimenso ativa, e o papel que ocupa no nascimento da cincia
moderna (OLIVEIRA,1997, p. ).
No sculo XV, esse movimento de valorizao do trabalho tcnico dos
artesos ligado experimentao foi, amplamente, difundido pela divulgao
daqueles conhecimentos atravs de publicaes. A partir de 1630, surgiram os
Tratados Tcnicos, Manuais20, como tambm dicionrios e enciclopdias, que se
dedicavam ao levantamento da terminologia das diversas artes, das
nomenclaturas tcnicas e da descrio dos processos e dos mtodos das artes
19 Escolstica: movimento cultural e filosfico medieval baseado, em grande parte, em comentrios da obra do filsofo grego Aristteles e de cunho puramente contemplativo. 20 Na arquitetura, por exemplo, o estabelecimento desta prtica permitiu a difuso das teorias e desenhos imaginados pelos arquitetos renascentistas, findando assim a necessidade de construir e realizar obras para exemplificar as idias arquitetnicas.
52
mecnicas, as quais acabaram por solapar o domnio das corporaes de ofcios 21 (BARGALL, 1955, p.47).
A publicao dos manuais tcnicos ter uma importncia decisiva
na padronizao de unidades de medida e de representao. O
esforo por se fazer compreender sem a equivocidade do discurso
do senso comum e sem o hermetismo do discurso mgico-
religioso, reservado aos iniciados, uma forma decisiva de
objetivao da comunicao que, muito embora seja fundamental
ao empreendimento da cincia, nasce como uma necessidade do
desenvolvimento da tcnica. As exigncias da preciso aparecem
na representao (desenhos, grficos etc.) e na linguagem
daquele tipo de saber - as artes mecnicas -, em seus manuais de
modelos de construo, nas descries dos aspectos e
propores dos corpos ou no detalhamento do fabrico e do uso de
instrumentos e artefatos. No difcil ver que esse interesse na
divulgao de conhecimentos, potencializado pelo aparecimento
da imprensa, tornava necessria a padronizao da divulgao
com uma linguagem mais objetiva e medidas mais precisas
(OLIVEIRA, 1997).
Entre os Tratados Tcnicos publicados est a obra De pictura (1435),
considerado o primeiro estudo cientfico da perspectiva, pelo italiano Leone
Batista Alberti, arquiteto, literato e escultor (1404-1472). Para Alberti, os artistas
deveriam aprender com todos os outros artesos. E o caminho para esse
aprendizado, segundo ele, consistia em conseguir com os prprios artesos, os
21 Dos sculos II (d.C.) ao XV, as Artes estavam classificadas em Artes Liberais e Artes Mecnicas. As Liberais (assim chamadas por serem consideradas dignas do homem livre), estavam associadas Gramtica, Retrica, Astronomia, Lgica, Aritmtica, Msica. Quanto s Artes Mecnicas, organizadas nas reas urbanas, eram consideradas menos honrosas mais prprias do trabalhador manual/servil, como Medicina, Arquitetura, Agricultura, Pintura, Escultura, Olaria, Carpintaria, Ferraria, Cantaria, Ofcio de pedreiros, etc. As corporaes de ofcios, at ento responsveis pelo treinamento dos artesos e pelos segredos dos ofcios (os mistrios dos misteres), tinham o sistema de aprendizado baseado na transmisso dos conhecimentos tcnicos na prtica das oficinas o aprender fazendo que encaminhava o aprendiz na sua carreira, passando pela categoria de oficial e finalmente pela de mestre, isso quando conviesse corporao ter mais mestre, vale dizer mais oficinas no mercado.
http://gl.wikipedia.org/wiki/1435
53
saberes no divulgados ou secretos dos ofcios. Para isso, orientava os artistas
para freqentar as oficinas e outros lugares de trabalho e fazerem perguntas aos
ferreiros, pedreiros, construtores de barcos e at aos sapateiros. Deveriam
tambm, freqentemente, fingir ignorncia para descobrir em que o conhecimento
dos outros excedia aos seus (GAMA, 1983, p. 284-85).
Esse novo caminho da Cincia, o da experimentao, encontra no
pensamento do Filsofo ingls Francis Bacon (1561-1626), uma de suas
expresses tericas. Considerado o fundador da cincia experimental moderna,
foi tambm o criador do mtodo cientfico baseado na observao e
experimentao (empirismo), que permitiram o avano das tcnicas que
transformaram a vida do homem campesino e mineiro do sculo XVII (GAMA,
1983, p.34).
Em linhas gerais, Bacon, rejeitou a separao e a oposio vigentes nas
filosofias tradicionais entre teoria e prtica, entre lgica e operaes reais, entre
verdade e utilidade (GAMA, 1983, p. 33).
Interpretou essas oposies como oriundas das condies
histricas e sociais bem determinadas que valorizavam a
contemplao a verdade em sua pureza e que desprezavam
tudo o que fosse ligado s atividades prticas e materiais. Por
tudo isso preocupou-se em realar tanto quanto fosse necessrio
a importncia dos fatores materiais no desenvolvimento da
filosofia e da cultura. E a partir da sustenta a identidade entre
verdade e utilidade, teoria e atividade operativa, conhecer e fazer
e afirma que qualquer separao e contraposio entre esses
termos cria obstculos intransponveis de resultados efetivos e
eficientes (GAMA,1983, p.33-34).
54
2.3 A valorizao do conhecimento tcnico e a cincia experimental moderna Com o nascimento da Cincia Experimental, a tcnica artesanal e os
procedimentos tcnicos ligados s Artes Mecnicas passaram a ser os meios que
permitiriam o progresso da cincia e o avano do saber.
Joan Luis Vives (1492-1540), filsofo e preceptor da corte inglesa, assim
como o italiano Leone Alberti, defendia que o homem culto no devia
envergonhar-se de entrar nas oficinas e perguntar aos artesos pelas tcnicas
que empregavam em suas artes. Vives, em sua obra De Tradendis Disciplinis,
convidava os estudiosos europeus a prestar grande ateno aos problemas
tcnicos relativos construo das mquinas, agricultura, tecelagem,
navegao. Advertia ainda que devessem deitar os olhos sobre o trabalho dos
artesos, para tentar saber onde e como essas artes foram inventadas, buscadas,
desenvolvidas, conservadas, e como aplic-las. Dessa forma, segundo Vives
(1531 apud ROSSI, 1989, p. 24), o homem venceria seu tradicional desdm por
aquilo que considerava como conhecimento vulgar: o dos artesos22.
Nota-se tambm que esse movimento, o de valorizao do saber tcnico,
nasce no mbito das Academias e Associaes vinculadas a esta nova
perspectiva de Cincia e no nas Universidades, que permaneceram at finais do
sculo XVIII com poucas alteraes metodolgicas. Entre os novos centros de
conhecimento estavam a Academia dei Lincei en Roma (1603), a Accademia del
Cimento en Florena (1657), a Royal Society de Londres (1660), a Acadmie des
Sciences de Paris (1666), alm de Escolas Artesanais ento criadas, que
conjugavam na Cincia Emprica a aliana entre o saber (cincia) e o fazer
22 Dentro desta mesma perspectiva, devem ser acrescentar as obras do j citado Francis Bacon, Harvey, Galileu e Boyle, que valorizavam a experimentao e a observao da natureza, reformulando as concepes cientficas e reconhecendo a importncia das tcnicas e da prtica para a Cincia.
55
(tcnica). Na Espanha, por exemplo, cria-se uma escola de mineiros exercitados
em tcnicas, sobretudo, nas tcnicas metalrgicas. 23
Assim, podemos afirmar que, naquele momento, entrar no mundo do
conhecimento tcnico representava entrar no mundo das corporaes de ofcios,
desvendando os segredos por meio da apropriao do saber tcnico e da
linguagem utilizada pelos artesos para a realizao de seus ofcios. Para Ruy
Gama, A que parece o domnio dos segredos da linguagem dos artesos
foi a porta pela qual se entrou no domnio dos prprios segredos
dos ofcios. Dentre os mistrios dos misteres, a linguagem foi a
primeira a ser desvendada, decifrada e jogada na rua pelas portas
e janelas arrombadas das oficinas numa espcie de ao de
despejo para ser vista por todo mundo (GAMA, 1986, p. 48).
Nas escolas artesanais surge a Tecnologia como disciplina curricular. A
institucionalizao deste saber permitiu que aqueles conhecimentos tcnicos
fossem reunidos, estruturados e sistematizados e, dessa forma, transmitidos a um
nmero cada vez maior de pessoas (GAMA, 1994, p. 54).
2. 4 A Tecnologia como sinnimo de Tcnica
Apesar de toda a diferenciao j feita entre os conceitos de Tcnica e
Tecnologia, estes termos so freqentemente utilizados como sinnimos. Autores
da lngua ingleses no fazem esta distino, pois consideram, entre outros
aspectos, que a Histria da Tcnica e a Histria da Tecnologia apresentam seus
campos embaralhados e sua periodizao extremamente difcil de definir. Lynn
White Jr., historiador econmico e medievalista americano, por exemplo, afirma
que a Tecnologia no conhece fronteiras cronolgicas e geogrficas, pois entende
Tecnologia como o conjunto de todas as Tcnicas e as maneiras pelas quais as
56
pessoas fazem coisas (GAMA, 1985, p. 14). Mas segundo Ruy Gama, esta
definio no permite nem o estabelecimento de uma fronteira histrico-
cronolgica e nem geogrfica para situar o nascimento do conceito, j que Lynn
o emprega como sinnimo de Histria do Trabalho e, dessa forma, permite
empregar o termo Tecnologia para todas as realizaes e obras materiais dos
povos (GAMA, 1985, p. 14-15).
Essa concepo de Tecnologia, como sinnimo de Tcnica, desenvolve-se
num contexto em que, entre outros aspectos, a Arqueologia e a Histria
passavam por reformulaes conceituais. A Arqueologia passava a revelar, nos
anos 40 do sculo XX, novos documentos materiais relacionados a civilizaes da
Amrica pr-colombiana que, supunha-se, no conheciam a escrita (pesquisas
atuais comeam a demonstrar que a conheciam) e tampouco a roda, elementos
considerados, naquele perodo, indicadores para qualificar o nvel de progresso
tcnico de uma determinada sociedade, que poderia ser considerada como
avanada ou atrasada. Essas descobertas levaram a uma reavaliao nas
idias de progresso e civilizao e na forma de olhar outras sociedades, deixando
de centrar as anlises somente no eixo tradicional etnocntrico europeu (GAMA,
1985, p. 14-15).
Quanto Histria, o nascimento de uma nova escola historiogrfica, a
Histria Nova surgida na Frana, na primeira metade do sculo XX, d um novo
enfoque terico-metodolgico pesquisa histrica voltada para a anlise do
cotidiano. Esta nova tendncia amplia a noo de documento, aproximando a
Histria das demais Cincias Humanas, entre elas a Arqueologia, possibilitando,
nos anos 60 do sculo XX, uma verdadeira Revoluo Documental que permitiu,
nas anlises historiogrficas, a incorporao dos documentos no-escritos -
cultura material viabilizando o estudo das sociedades que no possuam a
escrita para registrar sua Histria.
Para a divulgao desse novo conceito de documento, Lucien Febvre
idealizou, no perodo entre as duas primeiras guerras, uma revista de Histria que
57
seria fundada mais tarde em parceria com Marc Bloch, com o nome de Annales
dHistorie Economique et Sociale: os Annales. Para Febvre ao analisar o
trabalho do historiador a partir da noo ampliada de documento, afirma que:
A Historia faz-se com documentos escritos, sem dvida. Quando
estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos
escritos quando no existem. Com tudo o que a habilidade do
historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das
flores habituais. Logo, com palavras, signos, paisagens e telhas.
Com as formas do campo e ervas daninhas. Com os eclipses da
lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras
feitos pelos gelogos e com a anlise de metais feitas pelos
qumicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencente ao homem,
depende do homem, serve ao homem, exprime o homem,
demonstra a presena, a actividade, os gostos e as maneiras de
ser do homem.
Toda uma parte e sem dvida a mais apaixonante do nosso
trabalho de historiadores, no consistir num esforo constante
para fazer falar as coisas mudas, para faz-las dizer o que elas
por si prprias no dizem sobre os homens, sobre as sociedades
que as produziram, e para constituir, finalmente entre elas, aquela
vasta rede de solidariedade e de entre-ajuda que supre a
ausncia do documento escrito (FEBVRE 1953 p. 428 apud
GOFF, 1984, p. 98).
Para conceituar Tcnica e Tecnologia, recorremos tambm ao Dicionrio
das Cincias Sociais de Alain Birou, segundo o qual, Tcnica significa:
O conjunto de regras prticas para fazer coisas determinadas,
envolvendo a habilidade do executor e transmitidas, verbalmente,
por exemplo, no uso das mos, dos instrumentos e ferramentas e
das mquinas. Alarga-se freqentemente o conceito para nele
incluir o conjunto dos processos de uma cincia, arte ou ofcio,
para obteno de um resultado determinado com o melhor
rendimento possvel (GAMA, 1986, p. 30).
58
Para este mesmo dicionrio, Tecnologia :
O estudo e conhecimento cientfico das operaes tcnicas ou da
tcnica. Compreende o estudo sistemtico dos instrumentos, das
ferramentas e das mquinas empregadas nos diversos ramos da
tcnica, dos gestos de trabalho e dos custos, dos materiais e da
energia empregada. A tecnologia implica na aplicao dos mtodos
das cincias fsicas e naturais e, como assinala Alan Birou, tambm
na comunicao desses conhecimentos pelo ensino tcnico
(GAMA, 1986, p. 30).
********
Diante dessas consideraes sobre Tcnica e Tecnologia, salientamos
que, neste trabalho, pretendemos, a partir da Arqueologia Histrica, contribuir
para a Histria da Tcnica no perodo colonial brasileiro, especialmente no que
diz respeito s tcnicas relacionadas minerao e metalurgia.
No perodo analisado, entre os sculos XVI e XVIII, todos os trabalhos
relacionados quelas atividades estavam baseados no puro empirismo, no saber-
fazer e nas experincias prticas daqueles trabalhadores, que sabiam realizar as
operaes de fundio de forma prtica, mas no tinham instrumentos para
explic-los. Somente com o advento da Cincia Moderna, especialmente com a
Revoluo Cientfica, que aqueles mineiros e fundidores puderam compreender
as operaes produtivas que realizavam.
Assim, assumimos a periodizao proposta por Ruy Gama, ao considerar
Tcnica e Tecnologia como categorias distintas e, portanto, que a Histria da
Tcnica no coincide com a Histria da Tecnologia.
59
2.5 A tcnica de produo do ferro no perodo entre os sculo XVI ao XVIII
Los antiguos herrreros descubrieron que, si martillaban
repetidamente y recalentaban una y otra vez en fuego de carbn
un trozo de mineral de hierro al rojo, obtenan un metal
extremamente fuerte y duro hierro forjado (CARDWELL, 1994,
p. 33).
Antes do conhecimento dos metais eram aproveitadas treze diferentes espcies minerais, todas do grupo no-metlicos denominadas: calcednia (chert
e slex), quartzo, cristal de rocha, jaspe, serpentina, pirita, calcita, ametista,
fluorita, esteatita, mbar e obsidiana (GUIMARES,1981,p.22). A estes minerais
no metlicos pode-se acrescentar a utilizao de pigmentos minerais usados
para ornamentos e pintura, constitudos de argila e xidos metlicos coloridos,
embora alguns objetos feitos, especialmente, de cobre tenham sido encontrados e
datados de aproximadamente 9.000 a.C (GUIMARES, 1981, p. 22).
Atribui-se o incio do aproveitamento dos minrios para a extrao de
metais entre os anos de 6.000 a 5.000 a.C. Admite-se que o cobre teria sido o
primeiro metal produzido pelo homem, depois o bronze (uma liga metlica de
estanho e cobre). Na mesma poca, tambm se passou a utilizar o chumbo e, por
ltimo, o ferro. Na chamada Idade do Ferro, houve tambm a difuso da
fabricao do vidro e do mercrio.
Pesquisas arqueolgicas em reas mineiras da Europa tem possibilitado
revises do conhecimento relacionado a natureza das matrias-primas
empregadas na extrao do ferro. Tradicionalmente, sustentava-se a idia de que
a matria-prima com que se confeccionavam os primeiros objetos de ferro teria
origem em meteoritos. Esta teoria se aplicava particularmente aos objetos
fabricados com ferro rico em nquel. Atualmente, pesquisas na rea da
paleometalurgia demonstram que a origem de associaes do ferro com outros
60
metais ocorre em razo da composio qumica natural dos minerais utilizados
para a produo destes materiais (FAUS, 2000, p. 27).
O ferro, como alguns outros metais, no encontrado na natureza em
forma pura, sendo que nestas condies encontra-se sempre combinado com
outros elementos, formando xidos, carbonatos, silicatos e sulfatos. Para a
produo do ferro so utilizados minrios, sobretudo os xidos, tais como a
hematita (Fe2O3) e a magnetita (Fe3O4) 24. Outros minrios de menor importncia
para a produo tambm contm ferro, tais como a Siderita (FeCO3), Limonita
(Fe3O4), Pirita (FeS2) e a (Cromita FeOCr2O3) ( LABOURIAU, 1928, p. 95-110).
Os termos mineral, minrio e metal precisam ser esclarecidos para que
se possa compreender a forma da produo do ferro.
Mineral: uma substncia formada em resultado da interao de
processos geolgicos em ambientes geolgicos naturais. Os minerais variam na
sua composio desde elementos qumicos, em estado puro ou quase puro, e
sais simples a silicatos complexos com milhares de formas conhecidas
(LABOURIAU, 1928, p. 95-96).
Minrio: toda substncia natural da qual se possa fazer a extrao de
algum metal (como a hematita e a magnetita). Assim, um minrio sempre uma
substncia mineral. Entretanto, nem todo mineral minrio, pois alguns minerais
no permitem a extrao de metais, como exemplo, pode-se citar a pirita (sulfeto
de ferro), um mineral que aproveitado para a fabricao do cido sulfrico, mas
que no permite a extrao do metal nele contido (o ferro). Por conseguinte a
perita um mineral til, mas no um minrio (LABOURIAU, 1928, p. 95-96).
Metal: cada um de um grande grupo de substancias simples, obtidas a
partir de minrios.
24 A magnetita assim denominada devido ao seu magnetismo natural, um mineral de cor preta acinzentada ou avermelhada, com brilho metlico, de formula qumica (Fe3O4).
http://pt.wikipedia.org/wiki/Geologiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Elemento_qu%C3%ADmicohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Salhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Silicato_%28minerais%29
61
Para a extrao do ferro dos seus minrios (geralmente xidos frricos
como a hematita) foram desenvolvidas, desde a Antigidade, tcnicas de fundio
destes materiais por reduo, que utilizavam carvo de madeira como redutor.
Entretanto, variava de uma regio para outra o tipo do forno e forma de colocao
do minrio e do carvo no seu interior.
Elena Faus, referindo ao caso da tradio basca, defende que at o sculo
XIX, os avanos dos mtodos de fundio do ferro tm decorrido independentes
da investigao cientfica. Para esta autora esses avanos tcnicos foram
realizados por uma multitud annima de individuos de talento formados a la
sombra del teller, protagoniza la Historia de la Tecnologia. Son analfabetos y no
han conocido ningn tipo de enseanza (FAUS, 2000, p 51). O aprimoramento
da tcnica de fundio podia, ento, ser considerado como uma sucesso de
inventos de artesos que, na determinao em resolver as dificuldades que
surgiam, inventaram tcnicas de fundio a partir de experincias prticas, pelo
nico mtodo que conheciam: o da prxis do ensaio e erro (FAUS, 2000, p.51).
Toda a produo do ferro estava fundamentada em conhecimentos
tcnicos, baseados na prtica e que eram conhecimentos secretos, restritos aos
membros da respectiva corporao de ofcio. At a revoluo da Qumica, no
sculo XVIII, no havia nenhum conhecimento que pudesse explicar, de forma
cientfica, o processo em que ocorria a reduo do minrio em metal. S a partir
da foi possvel, por exemplo, explicar a atuao de um elemento, o Carbono,
obtido pela queima do carvo vegetal no processo produtivo do ferro. Na Frana,
em 1722, o cientista Ren Raumur concluiu que a diferena entre as distintas
qualidades do ferro e do ao resultava da incorporao de uma substncia
material. Em 1786, na Sucia, os matemticos Vandermonde e Berthollet e o
qumico Monge, confirmaram esta hiptese e identificaram o elemento: o
Carbono, o mesmo procedente da queima do carvo de madeira utilizado, desde
a antiguidade, na fabricao (FAUS, 2000, p. 21-22).
62
Com o aprimoramento da tcnica de fabricao do ferro, descobriu-se
tambm a forma de se produzir ao, sendo que sua difuso promoveu a
emergncia de instrumentos e ferramentas completamente novas, dando prestgio
a todos aqueles que dominavam a tcnica dos metais. Dessa forma, o ferro e,
depois, o ao foi empregado na fabricao de uma diversificada variedade de
instrumentos que, anteriormente, eram confeccionados com madeira ou pedra,
transformando assim, a metalurgia, em uma tcnica extremamente estratgica.
Para Donald Cardwel,
la metalurga hizo posibles instrumentos y herramientas completamente nuevos y anteriormente inimaginables -. La importancia fundamental de la metalurga y el prestigio de los
trabajadores expertos en el metal quedan confirmados, como
sealaba Samuel Smiles, por la frecuencia del apellido Smith
(Herrero). Adems, la palabra Smith es de origen nrdico o
germnico, lo cual da una clave para entender la localizacin de
los primitivos centros del trabajo del metal en el occidente
europeo. (CARDWEL, 1994, p. 34, grifo nosso).
A crescente demanda de objetos e utenslios feitos de ferro proporcionou o
aprimoramento das tcnicas de fundio como tambm da especializao
daquele trabalho.
Na Espanha, por exemplo, os espaos destinados a produo de ferro
foram se especializando. Um desses espaos era denominado de ferrarias
maiores, que se especializaram na fundio dos minrios para a obteno de
metal e, outras denominadas de ferrarias menores, dedicavam-se manufatura
desse metal, ou seja: transformando-o em barras ou laminas para fabricar, entre
o