Revista Latino-Americana de História
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As Missões Sociais da era Chávez como alternativa ao neoliberalismo
Anatólio Medeiros Arce
Resumo: Este artigo analisa as Missões Sociais implantadas durante o governo do presidente
Hugo Chávez na Venezuela (1999-2013). Primeiramente, no intuito de fundamentar o artigo, os
conceitos de Estado e Políticas Públicas são discutidos, levando em consideração a realidade
dos países que adotaram políticas neoliberais nas décadas de 1980 e 1990, como a Venezuela e
os demais países da América Latina. Em seguida, analisa-se as Missões Sociais focalizando em
8 das 37 lançadas na era Chávez, pois foram aquelas que atuaram em pontos elencados como os
mais estratégicos pelo governo: segurança alimentar, saúde, educação e infraestrutura. Defende-
se, portanto, que as Missões Sociais atuaram como uma estratégia de Chávez a fim ampliar sua
base de apoio nos setores sociais mais pobres, servindo como alternativa frente aos negativos
impactos sociais produzidos pelas políticas neoliberais.
Palavras-chave: Estado; Missões Sociais; Políticas Públicas;
Abstract: This article aims to analyze the Social Missions implemented in Venezuela during
Chavez‟s administration (1999-2013). Firstly, to hold the article, the State and Public Policy
conceptions are discussed, taking into consideration the context of those countries that adopted
the neoliberal politics in 1980 and 1990 decades, like Venezuela and other Latin American
countries. After that the Social Missions are analyzed, focusing on 8 of 37 implemented during
Chavez‟s government. They worked on the areas that the Venezuelan‟s government considered
the most strategic like food security, health, education and infrastructure. It holds the Social
Missions worked on like a strategy used by President Chavez to broaden his vote‟s base on the
poorest social sectors, employed as alternatives against the negatives social impacts caused by
neoliberal politics.
Keywords: State; Social Missions; Public Policy;
Introdução
Hugo Chávez foi um líder político de posturas peculiares e controversas nos 14
anos em que ocupou a presidência da Venezuela. Projetado a partir de uma frustrada
tentativa de golpe de Estado em fevereiro de 1992, ele foi eleito presidente em
dezembro de 1998 com uma votação relativamente ampla. Sem dúvida, foi um dos
Doutorando e Mestre em História da América Latina pelo Programa de Pós-graduação em História
(PPGH) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Mato Grosso do Sul, Brasil. Gostaria de expressar meu imenso agradecimento ao professor-doutor Guillermo Alfredo Johnson,
docente da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Foi a partir da disciplina de Estado e
Políticas Públicas, ministrada pelo professor Johnson, que este artigo começou a ser desenvolvido. Meus
agradecimentos se estendem a todos aqueles que participaram da disciplina, enriquecendo a discussão em
sala de aula com pertinentes colocações e divergências.
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líderes políticos que desempenharam papéis relevantes na América Latina do começo
do século XXI, pois sua retórica, suas políticas sociais e sua revolução serviram como
motivadores ao debate concernente à realidade sócio-estrutural latino-americana.
Todavia, a principal estratégia de Chávez a fim de permanecer no poder
consistia em amplia sua base de apoio político entre os setores sociais mais pobres.
Logo após tomar posse, erigiu um novo sistema político por intermédio da Constituição
de 1999, com a qual permitiu submeter a referendos, plebiscitos e demais consultas
populares várias medidas tomadas por seu governo, consideradas controversas no
sentido político e econômico. Dessa forma, uma das principais estratégias do regime foi
adotar políticas públicas com viés social, batizadas pelo nome de Missões Sociais
(Misiones Sociales). Através delas, sua base de apoio popular foi reforçada, sendo
financiadas com os recursos do petróleo, os quais estavam chegando mais volumosos ao
tesouro venezuelano, devido a estatização da produção petrolífera e, sobretudo, o
aumento nos preços do barril no mercado internacional.
Chávez esteve longe de ser uma unanimidade, por mais que buscasse tal objetivo
entre seus partidários. Contudo, ele nitidamente se beneficiou da intensa polarização do
cenário político venezuelano, de uma oposição sem estratégia consistente e
„desmoralizada‟ após a tentativa de golpe de Estado em abril de 2002.
Analisar a realidade política venezuelana constitui um vasto cabedal para
desenvolver um estudo. Todavia, os objetivos desse artigo são mais modestos e se
limitam a apenas analisar as Missões Sociais da era Chávez como um conjunto de
políticas públicas que melhoraram os indicadores sociais venezuelanos. Elas surgiram
na esteira de uma proposta já defendida por Chávez desde a década de 1990 com
críticas as políticas neoliberais. Portanto, optou-se em concentrar o escopo do trabalho
em apenas 8 das 37 Missões lançadas na gestão Chávez, focalizadas em alimentação,
saúde, educação, seguridade social e infraestrutura.
O artigo está divido em dois itens. No primeiro, faz-se uma breve discussão dos
conceitos de Estado e Políticas Públicas, trazendo-os à realidade da América Latina,
porém, correndo o risco de simplificá-los pela superficialidade. No segundo item,
analisa-se as Missões Sociais instituídas na era Chávez, descrevendo-as e expondo seu
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impacto nos indicadores sociais da Venezuela, por intermédio de números expostos em
tabelas. Por fim, são apresentadas as considerações finais.
I – Conceituando Estado e políticas públicas
Estabelecer uma noção seguramente precisa do que seria o Estado não constitui
uma tarefa simples. Desde a Antiguidade, quando ele era visualizado por intermédio das
cidades-estados gregas e romanas, até sua versão „moderna‟ consolidada entre os
séculos XVIII e XIX, sua formação histórica não pôde ser entendida de maneira linear.
Contudo, a noção do que seria a estrutura existente no Estado Moderno, isto é, em seu
protótipo burocrático-burguês, somente começa a se vislumbrar na Europa do século
XVI, quando as Monarquias absolutistas se formaram em Portugal, Espanha, Inglaterra
e França1, ainda que se tratasse de um Estado política e administrativamente
centralizado e conduzido por intermédio de instituições autocráticas. Portanto, na
historiografia moderna o Estado foi discutido de maneira não consensual, possuindo
diferentes visões acerca de seu surgimento, ou período de sua formação. Conforme
destaca Florenzano (2007), no século XV o Estado deixa de ser um poder orgânico, tal
como foi durante o período Feudal, para se tornar um poder-máquina (FLORENZANO,
2007, p.21), ou o poder-público, com território constituído. Para Bobbio (2011),
[a] condição necessária e suficiente para que exista um Estado é que
sobre um determinado território se tenha formado um poder em
condições de tomar decisões e emanar os comandos correspondentes,
vinculados para todos aqueles que vivem naquele território e
efetivamente cumpridos pela grande maioria dos destinatários na
maior parte dos casos em que a obediência é requisitada (BOBBIO,
2011, p.95).
Dessa forma, o Estado seria um processo de centralização político-territorial
iniciado no século XV (FLORENZANO, 2007, p.33). Com isso, compreende-se que as
origens do Estado podem ser historicamente explicadas, porém sua construção não pode
ser uma realidade acabada, pois a construção do Estado é contínua e infindável
(JESSOP, 2007, p.17). Portanto, “[...] a característica-chave do Estado é o conjunto
historicamente variável de tecnologias e práticas que produz, naturaliza e gerencia o
1. Sem contar com as cidades-estados da Itália renascentista, tão amplamente analisadas por Maquiavel
em O Principe.
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espaço territorial como um continente delimitado dentro do qual o poder político é então
exercido para obter [...] objetivos políticos” (JESSOP, 2007, p.15).
Em linhas gerais, a função do Estado no que tange a garantia da propriedade
privada e da livre circulação de mercadorias não se alterou desde o século XIX até os
dias atuais. Porém, isso não significa que o papel exercido pelo Estado e, sobretudo,
suas atribuições não tenham sido alteradas ao longo dos séculos. Ao contrário disso, a
consolidação do capitalismo industrializado com a Revolução Industrial Inglesa no
século XVIII e intensificada no século XIX, levou o Estado a buscar novas formas de se
colocar ante a sociedade. No século XX, o Estado se tornou um ente garantidor de
direitos, sejam eles civis, políticos e/ou sociais. A garantia dos direitos sociais é
representada pela formação de sistemas de proteção social que visavam criar uma
realidade de bem-estar social, atenuando a possibilidade de conflitos sociais.
Todavia, sistemas de proteção social instituídos pelos Estados são estratégias
antigas. Segundo Pereira (2008), o Rei Eduardo III da Inglaterra promulgou a Lei dos
Trabalhadores em 1351, com a qual se propunha regular as relações de trabalho. Três
anos depois surgiu a conhecida Lei dos Pobres (PEREIRA, 2008, p.62). Mas, foi apenas
com o Welfare State após a Segunda Guerra Mundial em 1945 que as políticas sociais
se tornaram “[...] um meio possível e legitimado de concretização de direitos sociais de
cidadania” (PEREIRA, 2008, p.86). De acordo com a perspectiva norte-americana,
somente no século XX se pode falar em políticas públicas enquanto uma área de
conhecimento e prática política dos Estados, separada da ciência política. Segundo tal
raciocínio, política pública é:
[...] um fluxo de decisões públicas, orientado a manter o equilíbrio
social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa
realidade. Decisões condicionadas pelo próprio fluxo e pelas reações e
modificações que elas provocam no tecido social, bem como pelos
valores, ideias e visões dos que adotam ou influem na decisão. É
possível considerá-las estratégias que apontam para diversos fins,
todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos grupos que
participam do processo decisório (SARAVIA, 2006, p.28-29).
Entretanto, na América Latina as políticas públicas atreladas aos direitos sociais
não foram sendo inseridas na realidade social desses países ao mesmo tempo em que
suas instituições políticas se fortaleciam, sendo que grande parte delas surgiu em
períodos de forte autoritarismo. Ademais, não se pode descartar o perfil periférico dos
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países latino-americanos, embora seus modelos de Welfare State tenham sido inspirados
naqueles aplicados nos países centrais. Por isso, há distorções e tais iniciativas não se
desenrolaram em torno de um processo tranquilo.
Na década de 1980, grande parte dos países da América Latina aderiu ao
receituário neoliberal, que previa o encolhimento do Estado e a redução de seus gastos
(LOPEZ, 2006, p.110). Como consequência, menos recursos foram destinados para
criar, manter e aperfeiçoar políticas públicas no continente. Difundiu-se amplamente a
tese de que o Estado não tem competência administrativa para gerenciar serviços, ainda
que eles fossem estratégicos e essenciais à sociedade, pois era considerado um „mal
necessário‟, fraco, ineficiente e suas instituições vulneráveis a práticas atreladas a
fatores culturais (clientelismo, personalismo, etc.), tese defendida por Fukuyama
(2005).
Como consequência, nas décadas de 1980 e 1990, os Indicadores Sociais dos
países da América Latina foram negativamente impactados. Em um cenário de ampla
desigualdade, a Venezuela também aderiu a “onda” neoliberal do momento e adotou
esse receituário no combate a crise desencadeada em 1983. Desde o início do século
XX, a Venezuela havia se destacado como um país de economia petroleira, dependente
das rendas adquiridas pela venda desse produto, e de excessivo gasto público. Todavia,
duas décadas de sucateamento da máquina pública produziram dois efeitos danosos à
realidade social do país: aumento das desigualdades; e piora de seus indicadores sociais.
Tal situação se tornou insustentável no início do século XXI, havendo a necessidade de
que a Venezuela, assim como os demais países latino-americanos, buscasse „reinventar
o Estado‟ após as fracassadas medidas adotadas durante a era neoliberal (MONEDERO,
2012, p.420).
Como resultado, em 1998 a maioria dos eleitores venezuelanos elegeu à
presidência da República alguém com discurso crítico em relação ao neoliberalismo e
movido por uma retórica atrelada à preocupação com o social. Hugo Chávez se
posicionou contrário ao modelo econômico vigente que, na realidade, demonstrou ser
insuficiente para garantir bem-estar ao país. Dessa forma, durante seu mandato, Chávez
se empenhou em criar políticas públicas que melhorassem o bem-estar da população,
como uma forma de reforçar sua base de apoio para continuar no poder. Dessas
iniciativas, a principal delas foi as Missões Sociais, consideradas pelo governo como
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políticas públicas „revolucionárias‟. Em curto espaço de tempo conseguiu-se melhorar
os indicadores sociais da Venezuela, ainda que tenha sido de uma forma menor do que o
descrito pela propaganda oficial, tal como se discute no próximo item.
II – As Missões Sociais: uma alternativa ao neoliberalismo
Nos discursos do presidente Chávez sempre houve uma marcante preocupação
no tocante as questões sociais, defendendo a necessidade de políticas públicas capazes
de combater a pobreza, a desnutrição infantil e a fome. Tais argumentos eram
pertinentes quando se elegeu presidente da República em dezembro de 1998, pois a
Venezuela vinha sendo atingida por sucessivas crises econômicas desde a década de
1980. Na ocasião, os preços do petróleo no mercado internacional caíam
sucessivamente, enquanto os gastos públicos venezuelanos aumentavam, resultando em
desequilíbrio nas contas públicas.
Como consequência, houve uma piora significativa em vários indicadores
sociais venezuelanos. Sob um ponto de vista sociológico, o país se tornou vulnerável a
distúrbios sociais, fazendo com que o governo fosse obrigado a tomar drásticas medidas
para combater os protestos de rua. Em fevereiro de 1989 a situação se tornou
irreconciliável, desencadeando uma onda de protestos em Caracas devido ao aumento
nos preços da gasolina em 100%, o que encareceu as tarifas dos ônibus. Tais distúrbios
ficaram conhecidos como Caracazo (GOTT, 2004, p.74). A população promoveu
saques a supermercados e enfrentou a polícia nas ruas da capital, inconformada com a
retirada dos subsídios aos transportes e com as medidas de austeridade adotadas pelo
presidente Carlos Andrés Pérez. Segundo números oficiais, houve aproximadamente
396 mortes e, a partir do Caracazo, se abriu “[...] caminho para a surpreendente
sucessão de eventos que sacudiriam a Venezuela ao longo da década seguinte”
(MARINGONI, 2009, p.72).
Nesse clima, em fevereiro de 1992 um grupo de militares, comandado pelo
tenente-coronel Hugo Chávez, tentou tomar o poder por intermédio de um golpe de
Estado. A iniciativa fracassou, porém o malogro foi atenuado pela difícil situação
econômica e social do país, que viabilizou a ascensão de Chávez ao poder em fevereiro
de 1999, através da via eleitoral. Portanto, a preocupação com o social foi uma das
principais bandeiras do candidato Chávez durante a campanha de 1998. Se por um lado
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a difícil situação dos indicadores sociais do país legitimavam os argumentos de um líder
que se destacou no cenário político justamente por adotar uma postura crítica em
relação à política econômica neoliberal dos governos venezuelanos do momento, por
outro a persistência dessa situação poderia também ser desfavorável a Chávez.
Por isso, logo ao tomar posse, o novo presidente instituiu o Plano Bolívar 2000,
que consistia em aproveitar a estrutura das Forças Armadas para realizar mutirões de
serviços nas áreas de saúde e infraestrutura. Nesse Plano foram envolvidas mais de 40
mil pessoas, dentre soldados e voluntários (GOTT, 2004, p.228), porém, esse
contingente foi insuficiente se comparado com a carência venezuelana naquele
momento. Esse Plano também apresentou problemas e expôs suas limitações devido a
excessiva improvisação, falta de transparência com acusações de corrupção e ausência
de garantias institucionais mais sólidas (LANDER, 2005, p.208). Contudo, as lições
retiradas do ocorrido em 1989 e em 1992 foram úteis para que, desde o princípio,
Chávez se esforçasse em combater tais gargalos, ainda que nos primeiros anos de seu
mandato estivesse empenhado em renegociar as dívidas do país2.
Todavia, para investir maciçamente em políticas sociais recursos seriam
necessários. A situação começou a mudar em 2001, quando Chávez instituiu decretos
por intermédio de Leis Habilitantes com os quais o setor petrolífero foi renacionalizado,
recuperando o monopólio estatal na área de hidrocarbonetos, que havia sido perdido
devido às políticas liberalizantes de seus antecessores. Em linhas gerais, sua política de
recuperação do setor petrolífero pelo Estado foi relativamente exitosa, embora tenha
havido muita resistência3. Por isso, as Missões Sociais foram instituídas oficialmente
apenas em 2003. Nesse momento, Chávez já estava politicamente melhor consolidado
no poder e o país estava economicamente fortalecido, devido a recuperação dos preços
do petróleo no mercado internacional.
A Tabela – 1 expõe as principais Missões lançadas na era Chávez,
discriminando-as por nome, data de lançamento e finalidade para a qual foi instituída.
2. Nos 14 anos que Chávez esteve na presidência da República, a Venezuela não deixou de pagar sua
dívida externa, contrariando alguns prognósticos do momento de que a ascensão do ex-militar à
presidência poderia significar o calote da dívida externa.
3. Como reação a nacionalização do petróleo, setores da elite venezuelana organizaram uma onda de
protestos em dezembro de 2001 que culminaria, em abril de 2002, na tentativa de golpe de Estado contra
Chávez, retirando-o da presidência por aproximadamente 72 horas. Meses mais tarde, entre dezembro de
2002 e fevereiro de 2003, a gerência da PDVSA (estatal petroleira) organizou uma greve geral que parou
o setor produtivo do país. Tal situação perdurou até Chávez, finalmente, vencer a disputa política e
demitir a maioria dos executivos da empresa.
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Ao todo, o governo da Venezuela bolivariana laçou 37 Missões, batizadas cada uma
delas com um nome específico que fizesse referência à sua finalidade.
Tabela 1 – Principais Missões Lançadas na era Chávez
Nome Data de lançamento Finalidade
Festa de Asfalto Março de 2011 Investir no recapeamento da malha rodoviária venezuelana e
ampliá-la.
Bairro à dentro Maio de 2003
Fazer consultas médicas gratuitas nos bairros mais carentes
da Venezuela e instalar consultórios médicos em cada um
deles. Posteriormente, foi-lhe incrementada a medicina
preventiva.
Milagre Maio de 2005 Fazer consultas oftalmológicas e distribuir óculos à
população de baixa renda.
Mercal Abril de 2003
Distribuir alimentos à população carente, bem como um
complemento alimentar específico para combater a
desnutrição infantil.
Menino Jesus Dezembro de 2009 Prestar assistência médica e psicológica às mulheres grávidas
de baixa-renda.
Nega Hipólita Janeiro de 2006 Oferecer assistência médica e psicológica a quem vive nas
ruas, visando abrigá-la em instituições especializadas.
Robinson Abril de 2003
Combater o analfabetismo e a baixa escolaridade,
promovendo a alfabetização em massa de adultos e jovens
através de métodos e cartilhas elaborados em Cuba.
Zamora Novembro de 2001 Reorganizar a distribuição de terras na Venezuela, visando
recuperar o setor agrícola e alimentar do país.
Fonte: Gobierno Bolivariano de Venezuela4.
Apesar de terem sido 37 Missões, a Tabela – 1 se ocupou somente de 8. Para
fins do escopo dessa análise, considera-se que elas foram as que atingiram os setores
mais estratégicos dentre os propósitos estabelecidos pelo governo venezuelano, isto é,
saúde, educação, alimentação e infraestrutura. Porém, algumas Missões se ocuparam do
desenvolvimento de formas comunitárias de organização (Missão Che Guevara), de
prover consciência política a membros das Forças Armadas (Missão Miranda) e de
investir na recuperação do setor energético do país (Missão Revolução Energética),
além de outras finalidades, as quais foram bastante diversas.
Porém, as Missões da era Chávez não podem ser consideradas meras políticas
públicas instituídas por um governo comandado por alguém com forte inserção nas
massas. Elas desempenharam um papel social relevante e estratégico no governo do
presidente Chávez e, sobretudo, à sua permanência no poder. “Oferecendo de tudo,
desde mercadinhos com alimentos subsidiados a tratamento de saúde e programas de
alfabetização, as missões tornaram-se extremamente famosas nos populosos barrios de
4. Site: http://www.gobiernoenlinea.ve/home/misiones.dot (acesso: 20/07/2014).
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Caracas, em outros centros urbanos e na empobrecida zona rural do país” (JONES,
2008, p.411-412). Na visão de Merentes (2007),
Con las misiones sociales se aspira a un proceso de adiestramiento
productivo, atención a la salud, alimentación, prestación de servicios
básicos y en general a la creación de condiciones iniciales para la
incorporación de toda la población a una función socialmente
productiva (MERENTES, 2007, p.245).
Contudo, sob o aspecto político, as Missões são investidas do governo a fim de
ampliar sua base de apoio entre a população mais pobre (MARINGONI, 2009, p.153),
justamente aqueles que haviam votado maciçamente por Chávez, bem como apoiado
suas propostas submetidas à consulta popular. Ou seja, são mais do que políticas
públicas compensatórias. Porém, as Missões foram incapazes de promover uma
transformação nos serviços públicos venezuelanos rumo a uma estrutura de excelência.
Elas criam estruturas paralelas as dos serviços públicos, pois resolvem problemas
imediatos, entretanto não alteram as engrenagens da máquina pública (MARINGONI,
2009, p.154-155).
Embora sejam visíveis suas limitações, através das Missões “abriu-se um novo
horizonte de políticas públicas que [...] representa uma tentativa de ser coerente com os
conteúdos do projeto de país representado pelo texto constitucional como modelo social
contra-hegemônico” (LANDER, 2005, p.213). Com base no definido pelos autores
acima e no descrito pela Tabela – 1, as Missões Sociais seriam políticas públicas que
visam, dentre várias funções, realizar cirurgias e consultas gratuitas nos bairros carentes,
fornecer alimentos subsidiados aos venezuelanos mais pobres, alfabetizar jovens e
adultos incapazes de ler e escrever, construir casas para pessoas carentes, etc.. Ou seja,
elas se dedicam em prover assistência médica, educacional, alimentar e habitacional aos
venezuelanos mais pobres. Além disso, as Missões também se ocupam de conscientizar
politicamente a população, através dos Conselhos Comunais, e de lhes oferecer cursos
profissionalizantes. Nesse sentido, a finalidade das Missões se baseia em um modelo
que pode ser considerado uma forma alternativa de políticas públicas, pois através delas
se propõe a formar uma sociedade com economia alternativa ao capitalismo, onde
prevaleça uma visão comunitária do bem público e dos meios de produção.
Se o aprofundamento de tais políticas públicas levará ou não a uma visão
comunitária de sociedade, ou a uma forma socialista de produção, não há como afirmar
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com base na realidade social venezuelana. Todavia, em termos numéricos, após as
Missões serem instituídas em 2003 houve uma melhora significativa e até mesmo
exitosa nos indicadores sociais da Venezuela. Isso porque através delas os indicadores
sociais do país melhoraram, o que pode ser evidenciado em termos numéricos.
Conforme demonstra a Tabela – 2, em 2003 o índice de pobreza na Venezuela era de
aproximadamente 62% e 29% de pobreza extrema. Tais números são considerados altos
no que tange a manutenção de uma coesão social em determinada sociedade.
Tabela – 2
Índice de pobreza na Venezuela entre 2003 e 2013 (em termos % em relação a totalidade
da população) Ano Pobreza Pobreza Extrema
2003 62,1 29,8
2004 53,9 22,5
2005 43,7 17,8
2006 36,3 11,1
2007 33,6 9,6
2008 32,6 9,2
2009 31,8 9,0
2010 32,5 8,6
2011 31,6 8,5
2012 25,4 7,1
Fonte: INE – Instituto Nacional de Estadística.
Ainda conforme essa Tabela, a pobreza no país somente diminuiu após as
Missões. Em 2006, ou seja, três anos depois de Chávez anunciá-las e investir recursos
nelas, o índice de pobreza já havia caído praticamente à metade, chegando a 36,6%, e o
da pobreza extrema mais da metade, atingindo 11,1%, em relação ao índice apresentado
em 2003. Em 2012, ou seja, com quase dez anos de Missões e de maciço investimento
de recursos financeiros e humanos nelas, a pobreza na Venezuela já estava em 25,4% e
a pobreza extrema em 7,1%. Trata-se de indicadores exitosos, caso comparado com os
números vigentes em 2003.
Com as Missões, a taxa de mortalidade infantil também foi reduzida na
Venezuela. Conforme demonstra a Tabela – 3, em 2003 morriam aproximadamente 22
crianças de 0 a 5 anos para cada mil nascidas vivas. Em 2004, esse índice diminuiu para
19, atingindo 16,36 em 2008 e 15,98 em 2010.
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Tabela – 3
Taxa de Mortalidade Infantil entre menores de 5 anos (por cada 1000 nascidos vivos) 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
22,40 19,36 18,42 17,3 16,82 16,36 16,82 15,98
Fonte: Ministerio del Poder Popular para la Salud – República Bolivariana de Venezuela.
Nesse ínterim, a Venezuela passou a ser observada com um olhar diferente
pelos organismos internacionais, na qualidade de um “país exemplo” que não apenas
combatia a pobreza, a desnutrição e a mortalidade infantil, mas as combatia de forma
relativamente rápida. Na Tabela – 4, é possível observar melhoras no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) da Venezuela, medido com base no sistema Gini, de
acordo com o publicado por organismos internacionais ligados a Organização das
Nações Unidas (ONU).
Tabela – 4
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Venezuela entre 2000 e 2012 (números de 0
a 1) Ano 2000 2007 2010 2011 2012
Índice 0,662 0,712 0,744 0,746 0,748
Fonte: PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
De 0,662 em 2000, o país ultrapassou a marca do 0,7 e chegou a 0,748 em
2012, índice considerado razoavelmente bom. A melhora dos indicadores sociais da
Venezuela foi amplamente explorada pelo governo Chávez no intuito de justificar a tese
de que a Revolução Bolivariana5 possui como eixo principal a distribuição de renda.
Por fim, outro indicador venezuelano a cair positivamente foi o índice de
analfabetismo6, amplamente comemorado e divulgado pelo governo de Chávez na
qualidade de uma conquista revolucionária. No entanto, conforme a Tabela – 5,
publicada com base nos dados do Anuário Estatístico da Comissão Econômica para
5. Há muita controvérsia no tocante ao fato do processo político ocorrido na Venezuela após 1999 ser
ou não uma Revolução. De fato, as profundas alterações nas bases sociais e no próprio Estado não foram
feitas, o que abre margem a questionamentos se Chávez conduziu ou não uma Revolução. Entretanto,
para os limitados fins desta análise, a categoria Revolução Bolivariana tem como significado denominar o
processo político desencadeado na Venezuela após a ascensão de Hugo Chávez à presidência da
República.
6. De acordo com o estipulado pela CEPAL, uma pessoa é considerada analfabeta quando não é capaz
de ler e escrever um relato simples e breve sobre sua vida cotidiana.
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América Latina e Caribe (CEPAL), o analfabetismo no país caiu significativamente,
porém, não houve sua erradicação.
De acordo com a Tabela – 5, na década de 1980, 15% da população
venezuelana acima de 15 anos era analfabeta, sendo maior esse índice entre as
mulheres. Em 1990, apesar a crise econômica que abateu o país, os números estavam
em 9,9%. Na era Chávez, o analfabetismo foi reduzido de maneira ligeiramente
acelerada, incentivado pelo trabalho desenvolvido nas Missões Robinson, que contou
com a participação fundamental de professores, métodos e materiais vindos de Cuba.
Em 2005, já com as Missões em curso, 4,8% dos venezuelanos eram analfabetos e em
2012, último ano de governo Chávez, estavam em apenas 3,9%.
Tabela – 5
Taxa de analfabetismo na Venezuela (em %) entre 1980 e 2012
1980 1990 2000 2005 2010 2012
Ambos os sexos 15,1 9,9 7,0 4,8 4,5 3,9
Homens 13,3 9,1 6,7 4,6 4,3 3,8
Mulheres 16,9 10,8 7,3 5,1 4,6 4,1 Fonte: Anuário Estatístico da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL)
Apesar de ter havido uma nítida redução do analfabetismo no país, queda
acentuada no governo do presidente Chávez, dois fatores ficaram nítidos nessa questão.
Em primeiro lugar, as Missões não foram capazes de erradicar o analfabetismo na
Venezuela, embora tenha reduzido-o significativamente bem como as Missões de
alfabetização promovidas na era Chávez aceleraram tal processo. Em segundo plano, o
analfabetismo na Venezuela manteve uma lógica, ou seja, em todos os períodos
analisados ele sempre foi maior entre as mulheres. Enquanto entre os homens apenas
3,8% eram analfabetos em 2012, entre as mulheres esse índice ultrapassava os 4%. As
políticas de alfabetização da era Chávez não foram capazes de romper com essa lógica
historicamente presente na realidade venezuelana. Contudo, tal disparidade já foi mais
acentuada em relação a outros períodos. Por exemplo, enquanto em 1980 o índice de
analfabetismo entre os homens era de 13,3%, entre as mulheres estava em 16,9%.
Portanto, em linhas gerais é perceptível que as políticas públicas de
distribuição de renda adotadas na era Chávez contribuíram na melhora dos indicadores
sociais da Venezuela. Isso se torna ainda mais evidente se comparado com a situação
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existente em 1999, quando os números estavam a patamares comprometedores no
tocante a coesão social do país.
Considerações Finais
Na Venezuela da era Chávez, os avanços socioeconômicos obtidos através de
maciço investimento em programas sociais foram nítidos. Até mesmo os adversários do
regime começaram a prometer, se eleitos fossem, continuarem investindo em programas
sociais, mantê-los ou incrementá-los. Por outro lado, a sustentabilidade de tais políticas
é questionável, pois elas ainda não ultrapassaram o patamar de políticas de governo para
chegar a se tornarem políticas de Estado, garantindo continuidade e eficiência à suas
estruturas, pois os índices de desigualdade na Venezuela, assim como da maioria dos
países da América Latina, ainda são considerados elevados.
Dessa forma, não é possível afirmar se as Missões são capazes de manterem os
indicadores sociais do país a patamares razoáveis, ou de melhorá-los ao longo dos anos.
Ademais, ainda não ficou perceptível se, ao ampliar o escopo dos programas sociais na
Venezuela, é possível viabilizar um contexto político de emancipação da maior parte da
população, os oferecendo uma cidadania de fato e não os deixando „reféns‟ de uma
adesão ao pensamento defendido pelo governo do momento. Por isso, há a necessidade
de manter e aperfeiçoar os canais de participação política e o poder de intervenção da
população organizada nas decisões institucionais, tal como prevê a Constituição do país
e é teoricamente projetada pelos Conselhos Comunais. Na Venezuela, o ato de
organizar-se socialmente ainda permanece dependente da existência de políticas sociais
que fazem com que a participação política seja interessante e concretamente visível à
grande parte da população.
No aspecto econômico a Venezuela não pode ser considerada com perfil de
definição menos complicada. Embora haja a retórica do socialismo do século XXI entre
os partidários de Chávez, o país tem uma economia de mercado com forte presença do
Estado, assim como a maioria de seus vizinhos da América Latina. Muitas vezes,
somente distribuir renda não é o bastante para se atingir um desenvolvimento realmente
sustentável. No entanto, as Missões da era Chávez demonstraram de forma concreta que
existe alternativa frente ao neoliberalismo com sua já conhecida proposta de
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encolhimento do Estado, processo que desde a década de 1980 tem produzido de forma
mais intensa lições desagradáveis a maioria dos países periféricos da América Latina.
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Artigo recebido em 11 de Setembro de 2014.
Aprovado em 14 de Julho de 2015.