Adalgimar Gomes Gonçalves
AS PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA: UMA ESCRITURA INCLUSIVA
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2009
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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Adalgimar Gomes Gonçalves
AS PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA: UMA ESCRITURA INCLUSIVA
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em Letras, da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Letras –
Estudos Literários.
Área de Concentração: Teoria da Literatura (Mestrado)
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade (LEA)
Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2009
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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
Dissertação intitulada As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma
escritura inclusiva, de autoria do mestrando Adalgimar Gomes Gonçalves, aprovada
pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
_____________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre – FALE/UFMG – Orientador
______________________________________________________
Prof. Dr. Erisvaldo Pereira dos Santos
______________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte
________________________________________________________
Prof. Dr. Julio Cesar Jeha
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários da FALE/UFMG
Belo Horizonte, 19 de março de 2009
Av. Antônio Carlos, 6627– Belo Horizonte – MG –31.270-901 – Brasil – Tel: (31) 3409-5112 – Fax: (31) 3409-5490
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A Chico Rei, por fazer ecoar as vozes perpétuas da Liberdade.
A Chica da Silva, por ter sido a Vênus Negra de Diamantina.
A Santa Ifigênia do Alto da Cruz de Ouro Preto, pelas forças espirituais.
A Cecília Meireles, pelo desempenho na educação, nas artes e,
principalmente, na literatura, registrando, em versos,
parte importante da nossa memória coletiva.
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Marcos Antônio Alexandre, pela orientação extremamente competente,
pela dedicação, sempre oportuna e incondicional – atitudes que foram decisivas para a
concretização deste estudo.
Aos professores Graciela Inés Ravetti de Gómez, Marcos Antônio Alexandre, Myriam
Corrêa de Araújo Ávila e Reinaldo Martiniano Marques, do Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, que
ministraram, com muito empenho e dinamismo, as disciplinas cursadas por mim.
Ao professor Eduardo de Assis Duarte, pelo incentivo aos estudantes e professores nos
estudos de literatura, que também é afro-brasileira, e pelo parecer ao meu projeto
definitivo de dissertação.
Aos professores Erisvaldo Pereira dos Santos e Margareth de Souza Freitas, da
Universidade Federal de Ouro Preto, pelo incentivo aos meus estudos.
Aos amigos Adilson Pereira dos Santos, Aline Alves Arruda, Márcia da Conceição
Valadares, Maria do Perpétuo Socorro de Oliveira, Ricardo Madureira Rodrigues e
Terezinha Lobo Leite, pela atenção permanente.
À minha mãe, Maria José Gomes Gonçalves, que reside no plano espiritual, ao meu pai,
Manoel da Cruz Gonçalves, e aos meus irmãos, Adalgisa, Adalgirlene, Adalgivan e
Adalgirley, pela companhia e amizade.
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Tal é, pois, a “verdadeira” e “pura” literatura: uma subjetividade que se entrega sob a aparência de objetividade, um discurso tão curiosamente engendrado que equivale ao silêncio; um pensamento que se contesta a si mesmo, uma Razão que é apenas a máscara da loucura, um Eterno que dá a entender que é apenas um momento de História, um momento histórico que, pelos aspectos ocultos que revela, remete de súbito ao homem eterno; um perpétuo ensinamento, mas que se dá contra a vontade expressa daqueles que ensinam.
Jean Paul Sartre
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RESUMO
Este trabalho propõe uma discussão sobre as personagens negras no Romanceiro da
Inconfidência, de Cecília Meireles, a partir da questão da negritude, do gênero e da
identidade nas representações das personagens Chico Rei, Chica da Silva e Santa
Ifigênia, dentre outras expressões da alteridade.
O estudo é desenvolvido por meio da análise dos ideais e do contexto da Inconfidência
Mineira perante a escravidão negra e do discurso da questão da negritude e da
alteridade, com vistas a verificar, na obra em tela, a ressignificação dos discursos
outrora silenciados.
Dessa forma, são investigadas, considerando o emprego da memória coletiva, as
personagens negras que constituem o Romanceiro da Inconfidência, principalmente nos
poemas-romances dedicados ao líder africano Chico Rei, defensor de uma liberdade
universal, à ex-escrava Chica da Silva, uma mulher negra ascendida socialmente que se
destaca pela sabedoria, à Santa Ifigênia, a princesa Núbia, evocada para proteger os
escravos no trabalho, e, finalmente, à representação de outras vozes negras anônimas.
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RESUMEN
En este trabajo se propone hacer una discusión acerca de los personajes negros en el
Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, a partir de cuestiones de la negritud,
del género y de la identidad en las representaciones de los personajes Chico Rei, Chica
da Silva y Santa Ifigênia, entre otras expresiones de la alteridad.
El estudio se desarrolla a través de un análisis de los ideales y del contexto de la
Inconfidência Mineira frente a la esclavitud negra y del discurso de la cuestión de la
negritud y de la alteridad, para verificar en la obra estudiada la resignificación de los
discursos antes silenciados.
Así, son investigados, considerando el empleo de la memoria colectiva, los personajes
negros que constituyen el Romanceiro da Inconfidência, principalmente en los poemas-
novelas dedicados al líder africano Chico Rei, defensor de una libertad universal, a la
ex-esclava Chica da Silva, una mujer negra ascendida socialmente que se destaca por la
sabiduría, a Santa Ifigênia, la princesa nubia, evocada para proteger a los esclavos en el
trabajo, y, finalmente, a la representación de otras voces negras anónimas.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
I – INCONFIDÊNCIA, POESIA, IDENTIDADES 18
1.1 – OS IDEAIS DOS INCONFIDENTES E A ESCRAVIDÃO NEGRA 19
1.2 – O ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA: “A VOZ
IRREPRIMÍVEL DOS FANTASMAS” 27
1.3 – IDENTIDADES E NEGRITUDE: DIÁLOGOS MÚLTIPLOS 46
II – AS PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA 53
2.1 – CHICO REI E A MEMÓRIA COLETIVA 54
2.2 – SANTA IFIGÊNIA: O PLANO DIVINO ROMANCEADO
NOS RITUAIS DA CONGADA 63
2.3 – CHICA DA SILVA: A NEGRA QUE MANDA 67
III – OUTRAS VOZES NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA 92
3.1 – O CANTAR DO NEGRO 93
3.2 – O NEGRO QUE DESCE DO SERRO 97
3.3 – OUTROS PRETOS DE OURO PRETO 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS 107
REFERÊNCIAS 113
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INTRODUÇÃO
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A presente dissertação propõe uma análise, a partir da questão da alteridade, das
personagens negras constituintes do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles,
obra literária publicada em 1953.
O Romanceiro da Inconfidência foi escrito na década de 1940 quando sua autora, então
jornalista, chegou a Ouro Preto, com a finalidade de documentar os eventos de uma
Semana Santa. Assim, envolvida pela “voz irreprimível dos fantasmas”1, conforme
dissera, passou a reescrever, de forma poética, os episódios marcantes da Inconfidência
Mineira, destacando, evidentemente, o martírio de Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes, personagem principal da obra.
Com efeito, nesse exercício de recomposição dos eventos principais da Inconfidência, a
autora reconstrói e legitima, no aspecto discursivo e histórico, a multiplicidade da
cultura negra, ressignificando o “outro” como parte constitutiva de histórias que foram
silenciadas, uma vez que, se a Inconfidência Mineira não apregoava a libertação dos
negros, Cecília Meireles, ao retomar o passado histórico, dedica, em sua mencionada
obra literária, poemas-romances aos negros, Chico Rei, Santa Ifigênia2 e Chica da Silva.
Chico Rei é uma personalidade ímpar que, desde os tempos coloniais, faz parte da
história oral de Ouro Preto, pois sendo líder na África, tornou-se escravo no Brasil e,
uma vez nessa condição de oprimido, conseguiu comprar a sua liberdade e explorar uma
mina de ouro, libertando provavelmente o seu filho e também outros escravos,
participando, efetivamente, do contexto religioso da época.
Santa Ifigênia do Alto da Cruz de Ouro Preto, a Santa Negra, é uma das entidades
espirituais protetoras dos negros e, por eles, é homenageada nos rituais performáticos da
congada, a dança que relata a conversão dos mouros ao cristianismo, como um exercício
da memória coletiva.
Chica da Silva, uma ex-escrava do Arraial do Tejuco, atual Diamantina, ascendeu
socialmente ao se tornar esposa do marianense João Fernandes de Oliveira,
1 MEIRELES, 1989, p. 22. 2 O nome da Santa Negra permanece escrito com “I”, em conformidade com o que está grafado no Romanceiro da Inconfidência.
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desembargador e contratador de diamantes na Região de Diamantina, com quem tivera
treze filhos e vivera por dezessete anos. Nos poemas dedicados a Chica da Silva,
também é importante verificar a questão do gênero e da identidade, pois trata-se de uma
mulher negra que, no mesmo exemplo de Chico Rei, passou da condição de mulher
oprimida para liberta, tornando-se, dessa forma, integrante da elite colonial mineira.
Assim, verifica-se que, somando-se a essas vozes, outras vozes anônimas também
emergem do texto, como o “Romance XXII, ou do Diamante Extraviado”, em que um
negro capitania desce do Serro de Diamantina e traz, em seu poder, um diamante
escondido ⎯ o que permite analisar esse episódio como uma possibilidade de subversão
do regime escravista, pelo fato de o negro representar a mão-de-obra escrava não paga,
mas que resgata, de certa forma, o valor de seu trabalho.
Consideramos relevante apontar que, nessa reescrita sobre a Inconfidência Mineira, a
autora não evitou a necessidade de também representar personagens negras como uma
grande massa explorada. Nessa perspectiva, merece registro o “Romance VIII ou do
negro nas catas”, que aborda as condições degradantes de trabalho nas minas e, além
disso, é justo reconhecer que a autora não deixa de evidenciar, em seus versos, as
personagens negras de forma elevada, incluindo o outro — escravizados e libertos —,
que tivera vários momentos de exclusão, principalmente nos discursos hegemônicos que
se consolidaram nas diferentes formas de representação da história.
No exercício de análise do Romanceiro da Inconfidência, há que se considerar a questão
do “deslocamento de olhar”, que reside na problemática temporal, porque são contextos
distintos ⎯ o tempo vivido pelo autor empírico ⎯ a primeira metade do Século XX ⎯
e o tempo do autor textual ⎯ o período do Século das Luzes, dos grandes ideais
iluministas3, os quais influenciaram o pensamento dos inconfidentes. Nesse momento,
as representações negras foram ressignificadas.
3 Vitor Manuel de Aguiar e Silva, em Teoria da Literatura, confirma a necessidade da distinção adequada entre autor enquanto sujeito histórico, cujo nome vem escrito nas obras, e do emissor que assume a responsabilidade da enunciação de um dado texto literário. Assim, esse teórico utiliza os conceitos autor empírico e autor textual. “(...) preferimos as designações de autor empírico e de autor textual, de modo a ficar bem clara a ideia de que o primeiro possui existência como ser biológico e jurídico-social e de que o segundo existe no âmbito de um determinado texto literário, como uma entidade ficcional que tem a função de enunciador do texto e que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores desse mesmo texto”. (AGUIAR e SILVA, 1983, p. 227.)
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As ações dessas personagens em tela ⎯ Chico Rei, Chica da Silva e Santa Ifigênia,
dentre outras representações negras ⎯ são concomitantes com as dos inconfidentes e
formam, na escritura de Cecília Meireles, não um texto paralelo, mas parte de uma
mesma história marcada pela antítese opressão x liberdade.
Julgamos oportuno registrar que os estudos acerca do legado poético de inclusão do
negro, percebido nos textos de Cecília Meireles, ocorrem em um momento privilegiado
se levamos em consideração as Diretrizes Curriculares Nacionais da Lei 10639/03, que
institui o oferecimento do ensino de história e cultura afro-brasileira nas instituições
escolares, das redes pública e privada do país.
Ainda no que tange à referida norma, o pesquisador Sales Augusto dos Santos, no artigo
“A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro”, permite
compreender que, antecedendo essa conquista, houve uma intensa mobilização
preconizada pelos movimentos e intelectuais afro-brasileiros que defendiam,
inequivocamente, a possibilidade e a responsabilidade de o Estado incluir, na educação,
o estudo do continente africano, da história e da cultura negra no Brasil:
Portanto, ao perceberem a inferiorização dos negros, ou melhor, a produção e a reprodução da discriminação racial contra os negros e seus descendentes no sistema de ensino brasileiro, os movimentos sociais negros (bem como os intelectuais negros militantes) passaram a incluir em suas agendas de reivindicação junto ao Estado brasileiro, no que tange à educação, o estudo da história do continente africano e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional brasileira. 4
Devemos ressaltar que as representações das personagens negras, neste trabalho, são
investigadas no interior da linguagem, enfatizando a análise dos diferentes recursos
expressivos na escritura, como processo de reconhecimento da alteridade, tendo em
vista a confluência de vozes, que, ora silenciadas, ora evidenciadas, permitem verificar
realidades vividas ou não, em diálogo permanente entre a história e a literatura.
Tomamos como base o conceito de Literatura, na concepção proposta por Roland
Barthes, em sua Aula inaugural:
4 SANTOS, 2005, p. 23.
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Entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso portanto, essencialmente, o texto, isto é, o tecido de significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é teatro.5
Visando confirmar a hipótese de que no Romanceiro da Inconfidência Cecília Meireles
insere a questão da negritude, do gênero e das identidades, nas representações das
personagens Chico Rei, Chica da Silva e Santa Ifigênia, dentre outras expressões da
alteridade, a presente dissertação foi dividida em três capítulos, a considerar:
O primeiro capítulo, INCONFIDÊNCIA, POESIA, IDENTIDADES, foi subdividido
em três seções: Os ideais da Inconfidência e a escravidão negra; Romanceiro da
Inconfidência: “a voz irreprimível dos fantasmas” e Identidades e negritude: Diálogos
múltiplos, que têm como finalidade apresentar o contexto histórico em que surgiu a
Inconfidência Mineira, suas reais reivindicações, ampliando o debate em torno da
questão da escravidão. Nessa perspectiva, são analisados os motivos que levaram a
poeta carioca a escrever o Romanceiro da Inconfidência, conforme dissera em uma
conferência no 1° Festival de Inverno de Ouro Preto. A questão da negritude e da
alteridade será rediscutida com vistas a investigar os resgates das identidades outrora
silenciadas.
Na seção Os ideais da Inconfidência e a escravidão negra, são utilizados os seguintes
referenciais teóricos: O Manto de Penélope: história, mito e memória da inconfidência
mineira, de João Pinto Furtado; A Devassa da devassa: A inconfidência mineira, Brasil-
Portugal, de Kenneth Maxwel; As veias abertas da América Latina, de Eduardo
Galeano; África-Brasil: matrizes, heranças e diálogos contemporâneos, organizado por
Íris Maria da Costa Amâncio. Além disso, articulam-se essas proposições com a
questão do “silêncio do passado”, percebido nas Teses sobre história, de Walter
Benjamim, e a dissertação Romanceiro da Inconfidência: um diálogo entre literatura e
história, de Marilda de Souza Castro.
Na seção O Romanceiro da Inconfidência: “A voz irreprimível dos fantasmas”,
toma-se como suportes metodológicos os estudos de Ana Maria Domingues de Oliveira,
5 BARTHES, 1980, p. 16-17.
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que desenvolveu a dissertação “Estudo crítico da bibliografia sobre Cecília Meireles”; A
Farpa da lira: Cecília Meireles na revolução de 30, de Valéria Lamego; Aula, de
Roland Barthes; Imagens do negro na literatura, de Jean Carvalho França; Vozes em
discordância da literatura afro-brasileira contemporânea; de Maria Nazareth Soares
Fonseca, e a conferência, apresentada por Cecília Meireles, na Primeira Semana de Arte
de Ouro Preto, em abril de 1955. Naquele evento, intitulado “Como Escrevi o
Romanceiro da Inconfidência”, a escritora relatou a gênese da sua obra, as suas relações
estabelecidas com a cidade de Ouro Preto a partir de seu primeiro contato, o propósito
de, como jornalista, documentar os eventos de uma semana santa.
Na última seção dessa primeira parte, Identidades e negritude: Diálogos múltiplos,
são discutidas as questão das identidades, da alteridade e da negritude, a partir dos
textos: A Identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall; Alguns termos e
conceitos presentes no debate sobre as relações raciais no Brasil: uma breve discussão,
de Nilma Lino Gomes; O que é literatura, de Jean Paul Sartre; Negritude e literatura na
América Latina, de Zilá Bernd; O Local da cultura, de Homi Bhabha; Microfísica do
poder, de Michel Foucault; e Literatura, política e identidades, de Eduardo de Assis
Duarte.
O segundo capítulo, AS PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA, enfatiza, a partir das personagens negras apresentadas, a postura
enunciativa do Romanceiro da Inconfidência ao comprovar o emprego da memória
coletiva, como ressignificação e reinterpretação do passado ao se verificar a abordagem
reflexiva e performática da obra, bem como analisa a forma inclusiva com que a autora
escreve sobre as personagens negras. Esse capítulo foi subdividido nas seguintes partes:
Chico Rei e a memória coletiva; Santa Ifigênia: o plano divino romanceado nos rituais
da congada e Chica da Silva: A negra que manda.
Na seção Chico Rei e a memória coletiva, é analisada a construção da imagem de
Chico Rei como liderança negra e defensora da liberdade para todos, conforme
demonstra o poema a ele dedicado. Para essa leitura, são observados os seguintes
textos: “Performances escritas: o diáfano e o opaco da experiência”, de Graciela
Ravetti; “Memória e Performance nas culturas afro-brasileiras”, de Florentina Souza,
Afrografias da memória, de Leda Maria Martins; Reis Negros no Brasil escravista:
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história da festa de coroação do rei congo, de Marina de Mello e Souza; História antiga
das Minas Gerais, de Diogo de Vasconcelos.
Na seção Santa Ifigênia: o plano divino romanceado nos rituais da congada, são
utilizados para corroborar as análises críticas os escritos Afrografias da memória, o
reinado do rosário de Jatobá, de Leda Maria Martins, e O Negro no romanceiro da
inconfidência, de Francis Úteza.
Na seção Chica da Silva: A negra que manda, é debatida a atuação de Chica da Silva
durante a Inconfidência Mineira, considerando a questão do gênero e da identidade,
pois trata-se de uma mulher negra que ascendeu socialmente, conforme apresentada nos
poemas. São relevantes para essa leitura os textos: Chica da Silva e o contratador de
diamantes – o outro lado do mito, de Júnia Ferreira Furtado, e Memória do distrito
Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos.
O último capítulo, OUTRAS VOZES NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA, considera a representação de vozes negras não-históricas, que
aparecem no Romanceiro da Inconfidência, e discute as formas de representação dessas
personagens. Esse capítulo, como os demais, também é subdividido em três partes: “O
cantar do negro”, “O negro que desce do Serro” e “Outros pretos de Ouro Preto”.
Para a realização da leitura proposta, são emblemáticos o “Romance VII ou do Negro
nas Catas” e o “Romance XXII ou do Diamante Extraviado”, analisados
respectivamente nos subcapítulos O Cantar do negro e O Negro que desce do Serro.
Na última seção, Outros pretos de Ouro Preto, analisamos as formas de
representações das personagens negras e mulatas que aparecem anonimamente, ora
confirmando o senso comum, ora subvertendo os estereótipos.
Nessa última parte, tem-se como referência o artigo intitulado “O Negro no Romanceiro
da Inconfidência”, de Francis Utéza. No texto mencionado, há uma abordagem
significativa a respeito dos poemas dedicados aos negros, relacionando alguns deles
com a história das Minas Gerais do Século XVIII.
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Enfim, constituem-se também como parte dessa dissertação as considerações finais,
que não pretendem ser conclusivas acerca dos estudos aqui apresentados sobre as
personagens negras no Romanceiro da Inconfidência, pois essa obra artística é
portadora, per si, de várias interpretações. A questão da alteridade negra é tão somente
uma delas, dentre tantos outros aspectos que, temos consciência, são igualmente
importantes.
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CAPÍTULO I
INCONFIDÊNCIA, POESIA, IDENTIDADES
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1.1 – OS IDEAIS DOS INCONFIDENTES E A ESCRAVIDÃO NEGRA
Em Minas Gerais, durante a segunda metade do Século XVIII, o chamado Século das
Luzes, período em que a razão foi de importância capital, um movimento composto por
intelectuais que estudaram na Europa, proprietários rurais e de minas, militares e
clérigos, pretendia, organizar uma revolta contra o sistema político que vigorava no
país. As elevadas taxas de impostos eram um dos pretextos principais da revolução.
Naquela época, em virtude da intensa exploração de ouro, as minas desse precioso
mineral passaram por um processo de esgotamento. Contudo, a Coroa portuguesa não
diminuiu a cobrança dos impostos; pelo contrário, com o intuito de assegurar o lucro
para o império, instituiu a Derrama, que, segundo João Pinto Furtado, foi um dos
principais métodos adotados para arrecadação de imposto ao longo daquele século:
[...] fez-se uso de outro método por estimativa, em que os moradores da região assumiam, através das câmaras municipais e numa espécie de contrato de risco, o compromisso de remeter pelo menos cem arroubas de ouro anuais (o equivalente a 1500 quilos) à Coroa portuguesa. Nesse caso, o que excedesse a quantidade estipulada ficaria em poder dos mineiros. Por outro lado, se não se arrecadasse o montante estimado pela Coroa, as câmaras se comprometiam a completar o volume previsto através de cobrança adicional, a famigerada derrama.6
Como consequência desse ato, inconformados, homens da elite mineira, principalmente
das cidades de Vila Rica, atual Ouro Preto, e da Comarca Rio das Mortes, hoje São João
del-Rei, influenciados pelas idéias liberais provenientes do Iluminismo francês –
principalmente porque “tiveram acesso, segundo os Autos de seqüestro e dos
depoimentos, aos textos de Montesquieu”7 e da Independência das treze colônias dos
Estados Unidos, pois, segundo Kenneth Maxwell, “é provável que o exemplo da
Revolução Americana fosse particularmente adequado porque os inconfidentes viam
notável semelhança entre a causa dos acontecimentos da América do Norte e sua
própria situação”8 – mobilizaram-se para combater a intensificação do controle fiscal
exercido pela Coroa Portuguesa. Surgiu, assim, a vontade de implantar a república no
Brasil.
6 FURTADO, 2002, p. 16. 7 Ibidem, p. 155. 8 MAXWELL, 1978, p. 155.
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Em 1789, mesmo ano da Revolução Francesa, com vistas à obtenção do perdão de suas
dívidas com a coroa, o minerador Joaquim Silvério dos Reis delatou o movimento do
qual fez parte ao governo de Minas Gerais. Todos os inconfidentes foram presos,
enviados para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, acusados pelo crime de
infidelidade à rainha, Dona Maria I, a Louca.
Como punição pela tentativa de levante, alguns inconfidentes foram enviados para o
degredo na África, entre eles os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de
Alvarenga Peixoto. Outros foram perdoados, mas tiveram seus bens seqüestrados. O
poeta Cláudio Manuel da Costa morreu na prisão, de forma misteriosa. Joaquim José da
Silva Xavier, o Tiradentes, inconfidente de mais baixa condição econômica, assumiu
para si toda a culpa da Inconfidência e foi condenado à pena capital. A sentença foi
executada aos 21 de abril de 1792, no Campo da Lampadosa, Rio de Janeiro.
No prefácio de sua obra, A devassa da devassa, Kenneth Maxwell afirma que a
Inconfidência Mineira foi “o resultado das divergências sócio-econômicas entre Minas e
Portugal e da clássica contradição de grupos de interesses coloniais e metropolitanos”9 e
que aquele movimento teve “uma importância crítica devido a seu impacto sobre a elite
branca do Brasil e na política imperial do governo metropolitano.”10
Ainda que considerada uma revolução burguesa, é evidente que a Inconfidência Mineira
tivera a sua importância histórica em muitos aspectos, como difundir, nas cidades
envolvidas, questionamentos sobre a hegemonia do poder da metrópole portuguesa.
Consideramos relevante registrar que entre os inconfidentes havia participantes que
foram responsáveis pelo nosso Arcadismo Brasileiro. São os poetas Tomás Antônio
Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto.
Sobre os ideais dos conjurados, é importante ressaltar que, se estes pretendiam
implantar uma república no país, não propuseram libertar os escravos, conforme
discutiram na noite de 26 de dezembro de 1788, data em que ocorrera a reunião decisiva
para a Inconfidência. João Pinto Furtado, no livro O manto de Penélope: História, mito
e memória da inconfidência mineira de 1788-9, afirma:
9 Ibidem, p. 14. 10 Ibidem, p. 14.
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[...] é preciso destacar que ficou acordado na última reunião, a mais decisiva, de 26 de dezembro de 1788, que não se tocaria de imediato no problema da escravidão, sob pena de desestabilizar todo o sistema social na capitania, convicção partilhada decisivamente pelo nosso alferes, o que se constitui em notável exemplo dos limites relativos à natureza da rebelião proposta. 11
Se, por um lado, não existia a vontade de libertar os negros, por outro, tornam-se
explícitos os interesses que aparentemente justificavam essa posição. Dessa forma,
Furtado empreende uma minuciosa análise acerca dos bens seqüestrados de cada um dos
vinte e quatro inconfidentes que foram condenados e chega à conclusão de que a
maioria deles era composta de senhores escravocratas:
Foram, no volume total do seqüestro, identificados 458 escravos entre homens, mulheres, velhos e crianças com e sem ofícios, alguns casados, com preços que variavam de 12 a 30 mil reis, respectivamente para um escravo velho e uma menina de seis meses, a 210 mil-réis, para um oficial de marcenaria com 35 anos. Do ponto de vista puramente quantitativo, é possível afirmar que 60% dos 24 inconfidentes submetidos a julgamento e condenados eram proprietários de escravos.12
Nessa linha de análise, Furtado discute as contradições do movimento dos
inconfidentes, uma vez que circulava entre alguns deles exemplares do Recueil de Loix
Constitutives des États-Unis de l’Amérique, publicado na Filadélfia, em 1778, e que
incluía os artigos da Confederação e das Constituições da Pensilvânia, Nova Jersey,
Delaware, Maryland, Virgínia, Carolinas e Massachusetts.13 Essa é a grande tese de
defesa da Independência dos Estados Unidos que condenava à escravidão.
João Pinto Furtado, embasado nos pressupostos do Recueil, assegura também que os
iluministas franceses Voltaire e Montesquieu não aprovavam a escravidão. Dessa forma,
fica evidente que os inconfidentes pretendiam implantar uma república no Brasil, ao seu
gosto, porque a maioria deles, membros da elite colonial da época, não se opôs ao
trabalho servil.
Não nos esqueçamos de que a escravidão já era condenada em Voltaire, presente nas livrarias do cônego Vieira, Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, José de Resende Costa e do padre Manuel Rodrigues da Costa. Também o seria em Montesquieu, de quem os inconfidentes retiraram, ainda que de maneira indireta, apenas o conceito geograficamente restrito de república.14
11 FURTADO, 2002, p. 21. 12 Ibidem, p. 63. 13 MAXWELL, 1978, p. 147. 14 FURTADO, 2002, p. 166.
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Eduardo Galeano, em As Veias abertas da América Latina, livro que aborda a
exploração econômica nesse continente, destina, em seus escritos, uma análise do
resplendor das riquezas de Ouro Preto, aspecto que é importante analisar para
compreender o interesse especial pelo trabalho dos africanos no ciclo do ouro.
Na primeira parte do livro em que discute “a pobreza do homem como resultado da
riqueza da terra”, o autor descreve, de forma poética, a gênese da descoberta do
precioso minério das Minas Gerais, desde a ação das chuvas sobre as rochas,
espalhando filões para os rios, os vales e as depressões das montanhas, o que facilitaria
a exploração, até a posição de destaque que a região atinge:
A ação milenar das chuvas tinha roído os filões de ouro das rochas e os havia depositado nos rios, no fundo dos vales e nas depressões das montanhas. Sob as camadas de areia, terra ou argila, o pedregoso subsolo oferecia pepitas de ouro, fácil de extrair do cascalho de quartzo; os métodos de extração tornaram-se mais complicados na medida em que se foram esgotando os depósitos mais superficiais. A região de Minas Gerais entrou assim, impetuosamente, na história: a maior quantidade de ouro então descoberta no mundo foi extraída no menor espaço de tempo.15
No entanto, para que toda essa riqueza fosse explorada, houve uma mão-de-obra que
não viera de forma espontânea de seu continente, muito pelo contrário. A economia,
naquela época, não só a proveniente das regiões mineradoras, não seria impulsionada
sem os milhões de africanos que aqui aportaram para o trabalho escravo. Assim,
Eduardo Galeano argumenta a respeito da introdução dos africanos no Brasil e a sua
absorção no trabalho ao longo do Século XVIII, esclarecendo que:
Estima-se em uns dez milhões o total de negros escravos introduzidos desde a África, a partir da conquista do Brasil até a abolição da escravatura: apesar de não se dispor de cifras exatas para o século XVIII, deve ter-se em conta que o ciclo do ouro absorveu mão-de-obra escrava em proporções enormes.16
Nessa perspectiva, o autor evidencia o seu ponto de vista acerca da escravidão brasileira
e aponta que, para a exploração das riquezas em Minas Gerais, na ex-capital Vila Rica,
Ouro Preto, os escravos africanos tiveram participação fundamental no ciclo do ouro,
principalmente aqueles que vieram da praia de Whydah, na Guiné. Os escravos da
15 GALEANO, 1990, p. 62. 16 Ibidem, p. 63.
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pequena praia da Guiné, segundo Galeano, eram os preferidos dos mineradores de Ouro
Preto pelo fato de serem mais resistentes, viverem por mais tempo e também disporem
de poderes sobrenaturais para encontrar o tesouro:
Os escravos se chamavam “peças da Índia” quando eram medidos, pesados e embarcados em Luanda; os que sobreviviam à travessia do oceano se convertiam, já no Brasil, em “mãos e pés” do amo branco. Angola exportava escravos bantus e presas de elefante em troca de roupa, bebidas e armas de fogo; porém os mineiros de Ouro Preto preferiam os negros que vinham da pequena praia de Whydah, na costa da Guiné, porque eram mais vigorosos, duravam um pouco mais e tinham poderes mágicos para descobrir ouro.17
Nesse contexto de exploração das minas encontradas em Ouro Preto, houve uma intensa
demanda pelo trabalho escravo, e suas condições eram tão desumanas que os negros
mineradores tinham pouco tempo de vida. Galeano aponta também que, para a
consolidação do sistema escravista, a religião hegemônica portuguesa tivera papel
preponderante:
[...] Era insaciável a fome de escravos em Ouro Preto. Os negros morriam rapidamente; só em casos excepcionais chegavam a suportar sete anos contínuos de trabalho. Isto sim: antes de cruzarem o Atlântico, os portugueses batizavam todos. E no Brasil tinham a obrigação de assistir à missa, embora lhes estivesse proibido de entrar na capela maior ou sentar nos bancos.18
Podemos observar que a religião foi utilizada como um instrumento não só de
conversão no processo de aculturação, mas havia, nas relações entre senhores e
escravos, a intenção de torná-los obedientes para que assim não se rebelassem.
Erisvaldo Pereira dos Santos, no artigo “Religiões de matriz africana: negação e
afirmação em contexto católico brasileiro”, afirma que, por mais de quatro séculos,
foram negados aos escravos africanos o direito em “afirmar e vivenciar suas religiões”.
Afinal, os colonizados foram condicionados a uma mentalidade que excluía os seus
valores de outrora. Nas palavras do autor:
Os ritmos, a percussão, os sons, os cânticos, as danças e o transe místico foram desqualificados como expressões de valor religioso. Os rituais, envolvendo oferendas de alimentos, sacralização de animais e intensa relação com a natureza, foram qualificados como feitiçaria. Em virtude dessa classificação, as práticas religiosas dos africanos
17 Ibidem, p. 65. 18 Ibidem.
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eram realizadas às escondidas, para evitar a perseguição da Igreja Católica e da polícia.19
A obrigatoriedade de assistirem à missa, conforme assegura Galeano, e a negação da
religião do outro, apontada por Santos, pressupõem, evidentemente, que os escravos não
tiveram sequer a escolha de seguir suas crenças, ao menos, oficialmente.
Apesar de os argumentos supramencionados serem procedentes, no próximo capítulo,
no qual analisaremos as personagens negras Santa Ifigênia, Chico Rei e Chica da Silva,
verificaremos o papel significativo que a religião católica, por meio de algumas de suas
irmandades, desempenhou, ainda que em parte, na inserção da cultura negra.
É significativo apontar que, ao escrever acerca do ciclo do ouro na antiga Vila Rica, o
autor de As veias abertas na América Latina informa ao leitor sobre uma importante
escrava mulata do Tejuco que conquista sua liberdade ao se tornar amante do
desembargador João Fernandes de Oliveira, virtual soberano daquele lugar. A ex-
escrava é Francisca da Silva de Oliveira, a Chica da Silva, como assim foi chamada uma
das personagens expressivas do contexto do Século XVIII, pelo fato de representar as
possibilidades que outras mulheres negras e mulatas tiveram de subverter, ao menos
parcialmente, a questão do pensamento colonial, esse excludente por excelência.
Ainda no que diz respeito à escravidão negra, Kenneth Maxwell, apresenta em, A
devassa da devassa, dados estatísticos a respeito da população escrava e livre de Minas
Gerais dos anos de 1786 a 1823, comprovando que, naqueles tempos, a população
escrava correspondia a quase cinqüenta por cento dos mineiros.
Tabela 1 – Percentagem de escravos na população de Minas Gerais, 1786 a 1823.
ANO LIVRES ESCRAVOS TOTAL ESCRAVOS %
1786 188.712 174.135 362.847 47,9
1805 218.223 188.761 407.004 46,4
1808 284.277 148.772 433.049 34,3
1821 343.333 171.204 514.537 33,3
1823 378.620 140.365 518.985 27,0
Fonte: “Documentos Diversos – População de Província de Minas Gerais”, RAPM, IV (1899) 294-295. Apud Kenneth Maxwell, op. cit., p. 302.
19 SANTOS, In: AMANCIO, 2008, p. 79.
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Se, naquela noite decisiva, como foi chamada a noite do dia 26 de dezembro de 1788,
quase a metade da população mineira era escrava, de acordo com o censo da população,
o tema da abolição da escravatura não deixou de ser incluído na pauta de discussões,
pois, em virtude dessa elevada parcela de negros escravos, o inconfidente José Álvares
Maciel tinha receios de que eles, em posição contrária, poderiam ser uma ameaça ao
novo regime que propunham instituir.
É interessante verificar que o poeta José Inácio de Alvarenga Peixoto, um dos grandes
proprietários de escravos do grupo de conjurados, defendeu a liberdade desses,
imaginando que eles, uma vez libertos, poderiam ser os futuros defensores da
República, um dos objetivos da Inconfidência Mineira:
[...] o tema da escravidão impôs-se ao debate. Maciel considerava a presença de tão grande percentagem de negros na população como uma ameaça possível ao novo Estado, caso a promessa de liberdade os induzisse a se oporem aos brancos. Alvarenga, um dos maiores senhores de escravos dentre os inconfidentes, defendia a liberdade dos escravos que, segundo ele, os transformaria nos mais apaixonados defensores da nova república e comprometidos com sua sobrevivência. Maciel achava que esta solução poderia representar a autodestruição, pois os proprietários ficariam sem contar com quem trabalhasse nas minas. Uma solução de compromisso foi eventualmente apresentada e, presumivelmente, aceita: a de que só os negros e mulatos nativos fossem libertados, no interesse da defesa do Estado ⎯ não houve menção a compensações.20
A partir da argumentação contrária de José Álvares Maciel para libertar os escravos,
torna-se explícito o interesse dos inconfidentes em preservar o trabalho servil, pois não
teriam substitutos para explorar as minas de ouro. Nessa perspectiva, temos que analisar
a hipótese de que se efetivasse o compromisso firmado entre os presentes de libertar,
restritamente, os negros e mulatos nativos, sem compensações. Esses seriam submetidos
a uma nova forma de exploração, porque, conforme o excerto citado, pode-se concluir
que o trabalho minerador seria substituído pelo “interesse da defesa do Estado”.
Maxwell argumenta a respeito da disposição dos inconfidentes de libertar os escravos
nascidos no país e questiona a respeito da inserção dessa classe em uma nova sociedade,
tendo em vista que não se previa reajustamento social.21 Segundo Maxwell, era
surpreendente, para aquela época, a proposta de emancipar os escravos nascidos no
Brasil. Apesar de não se empenharem na defesa efetiva do fim desse regime, os 20 MAXWELL, 1978, p. 152. 21 Ibidem, p. 155.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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inconfidentes cônegos Vieira e Manuel Rodrigues da Costa, Cláudio Manuel da Costa,
Alvarenga Peixoto e José Resende da Costa, tiveram a leitura da Constituição dos
Estados Unidos, que condenava a escravidão, e dos escritos, no mesmo enfoque, de
Voltarie e Montesquieu. Definitivamente, com exceção das disposições de Alvarenga
Peixoto, a libertação dos escravos no Brasil não era o motivo da Inconfidência Mineira.
Assim, o historiador mencionado ressalta que os escravos libertos, na ótica dos
inconfidentes, não teriam nenhuma forma de compensação pelos serviços prestados e
adverte que esse gesto, de libertação, era subestimado, pois os inconfidentes presumiam
controlar a situação de acordo com seus interesses. Portanto, com base nesses
elementos, podemos argumentar que, se os chamados escravos nativos fossem
emancipados, o tráfico negreiro, muito provavelmente, também permaneceria a garantir
a mão-de-obra africana escravizada para os trabalhos nas minas.
Considerando essa perspectiva analítica, fica evidente o significado das personagens
negras presentes no Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, sob a ótica da
questão da alteridade, com base na releitura da história mineira nas ocasiões da
Inconfidência e da escrita da mencionada obra. Julgamos oportuno considerar o
posicionamento da pesquisadora Marilda de Souza Castro, na dissertação “Romanceiro
da Inconfidência: um diálogo entre literatura e história”, que assegura que “Nas várias
peças que constituem a obra, a poeta dá voz e vez aos dominados, a fim de que se
manifestem livremente, apresentando outras versões paralelas do discurso oficial
celebrativo, veículo ideológico da classe detentora do poder.”22 A pesquisadora ainda
contextualiza a relação entre o momento de turbulência da Inconfidência Mineira e a
escrita da obra em análise, produzida durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas:
Explorando, como lastro de sua poética, episódios extraídos da história colonial de fins de século XVIII, Cecília se reporta a um período em que o poder político era altamente centralizador, na colônia, apontando as conseqüências funestas desse governo de natureza oligárquica. Mas, simultaneamente, remete o leitor perspicaz a um outro contexto histórico de semelhança espantosa: o advento do Estado Novo, instalado por Getúlio Vargas, no ano de 1937.23
Naquele momento histórico, a escritora rearticulava o passado de Minas Gerais e
escrevevia uma identidade negra inclusiva nos poemas romances dedicados a Chico Rei,
22 CASTRO, 2001, p. 68. 23 Ibidem.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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Chica da Silva e Santa Ifigênia24, considerando os importantes feitos dessas personagens
que tiveram a sua história recontada na história de Tiradentes e dos poetas
inconfidentes, num tempo que emerge reescrito e ressignificado.
Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, no artigo “O Leitor e o texto afro-brasileiro”,
apresenta, de forma sintética, considerações sobre a independência política do Brasil de
Portugal, que fora um dos objetivos da Inconfidência Mineira, e assegura que, mesmo
após esse processo, a escravidão legalizada permaneceria por mais de 65 anos:
O Brasil teve sua independência proclamada em 1822 e, como país politicamente emancipado, manteve por 65 anos a escravização legalizada. Tal independência não pode ser símbolo de orgulho pátrio, como se instituiu no país, mas de decepção em face de cruéis injustiças contra as quais de nada serviu. Manteve a maior parte da população sob grilhões. Por essa e outras razões, ao negro a recomposição da memória coletiva tem grande importância sim, através do retorno às matrizes culturais africanas, sufocadas pela superposição europeizante, e da reconstrução de uma identidade nacional crítica.25
Na posição de Cuti, fica evidente a importância de se recompor a memória coletiva do
povo negro, reportando à cultura africana que foi obliterada, por demasiado tempo,
pelos padrões eurocêntricos, o que torna significativo compreender a maneira pela qual
se constitui a nova trama das personagens negras no tempo dos inconfidentes.
Portanto, fica evidente que Cecília Meireles, no Romanceiro da inconfidência,
reconstrói e legitima, no aspecto discursivo e histórico, a multiplicidade da cultura
negra, ressignificando o “outro” como parte constitutiva de uma história que foi
silenciada, mas que não deixou de existir.
1.2 – ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA: “A VOZ IRREPRIMÍVEL DOS
FANTASMAS”
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu no Rio de Janeiro, em 1901; viveu 63
anos, ao longo dos quais foi professora, jornalista e poeta. No exercício do Magistério,
além de estudar sobre as teorias educacionais, dedicou-se aos estudos de literaturas e
cultura brasileira, enfatizando o folclore popular. Fundou a primeira biblioteca infantil
24 Esses poemas serão analisados no próximo capítulo. 25 SILVA, In: FIGUEIREDO e FONSECA, 2002, p. 27.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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do Rio de Janeiro e participou, ativamente, na década de 30, do “Manifesto da nova
educação ao Governo e ao Povo”26. Esse manifesto foi elaborado a partir dos princípios
da Escola Nova, do norte-americano John Dewey. Assim, Cecília Meireles propusera
uma escola moderna para o país, inclusiva por excelência, além de ser um lugar
privilegiado para o reconhecimento da cultura brasileira.
Ana Maria Domingues de Oliveira, em Estudo crítico da bibliografia sobre Cecília
Meireles, ressalta a dedicação que a poeta tivera pela infância, tanto que foi ela quem
fundou a primeira biblioteca de literatura infantil no país, mas, apesar de louváveis
intenções, a escritora não foi bem sucedida:
Sua preocupação com a infância fez dela (Cecília Meireles) uma pioneira a estudar e a produzir, no Brasil, a literatura infantil, levando para esta, além de seu talento poético, o renome alcançado em sua literatura dita adulta. Em 1934, funda e dirige a primeira biblioteca de literatura infantil no país, situada no antigo Pavilhão Mourisco, no Rio de Janeiro. A biblioteca foi fechada logo depois, durante o Estado Novo, sob a alegação de que continha livros perniciosos à formação das crianças (a título de curiosidade, a peça-chave da acusação foi um exemplar da obra As aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain)27.
A partir do projeto educacional proposto pelo movimento dos Pioneiros da Escola
Nova, durante a revolução de 30, Cecília Meireles também defendia uma escola laica e
inclusiva, sem discriminações de qualquer natureza. Afinal, uma educação libertadora.
Esse posicionamento da escritora foi expresso nos mais de 700 artigos escritos na
“Página de Educação”, uma seção cotidiana do jornal Diário de Notícias do Rio de
Janeiro, coordenada por ela, durante três anos.
Segundo a pesquisadora Valéria Lamego, em A farpa na lira, a “Página de Educação”,
de Cecília Meireles, teve importância fundamental naquele tempo, uma vez que
funcionou como porta-voz do movimento de modernização da educação brasileira e,
além disso, o meio que a “etérea” poetisa encontrou, concretamente, para se inserir no
drama histórico do seu tempo.28 A escritora informava aos leitores da capital do Brasil,
durante o período autoritário do governo de Getúlio Dorneles Vargas, assuntos
pertinentes ao movimento revolucionario de 1930, à política e à educação.
26 LAMEGO, 1996, p. 15. 27 OLIVEIRA, 2001, p. 28. 28 LAMEGO, 1996, p. 33.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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Valéria Lamego também registra que, pelas posições bem definidas da poeta, foi
inevitável que ela atraísse a atenção de vários desafetos de suas convicções sobre
liberdade, dentre eles o ministro da Educação, Francisco Campos e o crítico católico
Alceu de Amoroso Lima29, que anos depois, em seu livro de memórias, Companheiros
de Viagem, de 1971, reconheceu na poeta “uma grande figura feminina do
modernismo”.
Ainda no que diz respeito à atuação de Cecília Meireles no Magistério, é significativo
destacar que a poeta se posicionou de forma contrária ao oferecimento do ensino
religioso nas escolas públicas, em 1931, por um decreto de Vargas. Para ela, o que seria
ensinado nas escolas não seriam religiões, mas o pensamento hegemônico de uma
religião.30
É importante considerar a participação efetiva da escritora, que foi uma das signatárias,
no “Manifesto dos pioneiros da educação nova”, publicado em 1932, ao lado de
Fernando Azevedo, Afrânio Peixoto, Anísio Teixeira, Roquete Pinto, Paschoal Lemme,
Lourenço Filho, Hermes de Lima, dentre outros. O referido documento reivindicava
para o país uma educação pública, gratuita, laica e inclusiva, por meio das novas
diretrizes de uma nova política nacional de ensino, antecedendo, evidentemente, os
ideais de democracia que só ocorreriam de fato com a Constituição Cidadã, em 1988.
Afinal, segundo o “Manifesto”:
Toda a profunda renovação dos princípios que orientam a marcha dos povos precisa acompanhar-se de fundas transformações no regime educacional: as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação, e é só pela educação que a doutrina democrática, utilizada como um princípio de desagregação moral e de indisciplina, poderá transformar-se numa fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade social e de espírito de cooperação.31
Atuando na condição de jornalista no Diário de Notícias, Cecília Meireles, mesmo não
ocupando o lugar de poder governamental, evidenciou seu pensamento crítico em sua
“Página da Educação”, com apreço pela questão dos negros, inclusive lamentando a
29 Ibidem, p. 83. 30 Ibidem p. 92. 31 Disponível em http://www.histedbr.fae.unicamp.br/doc1_22e.pdf.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
30
abolição que ainda não ocorrera de fato, em um texto publicado em 13 de maio de 1932,
na ocasião da passagem do Dia da Abolição da Escravatura.32
Após informar, nesse artigo, intitulado “13 de maio”, que “Nem os próprios homens de
cor estão ainda completamente integrados na fraternidade de seus irmãos”33, Cecília
Meireles conclui o seu texto evocando o sonho e a esperança, sem perder de vista a
realidade da condição dos negros no Brasil naquela época: “[...] Mas o que é do sonho é
da esperança. Assim é o dia 13 de maio. Por enquanto, só verificamos a abolição de
uma escravatura cujo desaparecimento é ainda meio duvidoso e cuja gravidade, por isso
mesmo, não diminuiu.”34
Verificamos que, quando a autora escreveu o mencionado artigo no Diário de Notícias,
completavam-se quarenta e quatro anos da assinatura da Lei Áurea; e ela criticava o
processo inacabado da abolição por meio das palavras, já que estava em dúvida o
desaparecimento das relações servis que não foram diminuídas pela assinatura do
decreto. Essa atitude contestatória vivida pela autora, ao se preocupar com a questão
histórica do país, fez com que ela se posicionasse diante das condições sociais porque
passava a população negra durante o seu tempo de jornalista. Nesse sentido, verifica-se
o seu engajamento racial, corroborando o pensamento de Michel Foucault, de que o
poder é força exercida em contraposição a outras forças: “o que faz com que o poder se
mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz
não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma, saber, produz
discurso.”35
A poeta carioca evidencia a sua visão acerca da questão negra e, em seu texto
jornalístico, exerce o poder de seu discurso em prol da integração, da paz e do respeito
pelos povos, considerando também a importância do significado daquele Treze de Maio,
ocasião sempre propícia, até hoje, para reflexão sobre a liberdade.
Nessa linha de argumento, igualmente tem lugar de destaque a obra Batuque, Samba e
Macumba, que são desenhos feitos por Cecília a respeito do folclore afro-brasileiro.
Esses desenhos foram expostos na Sociedade Pró-Arte em 1933 e, em 1934, a poeta
32 LAMEGO, 1996, p. 199. 33 Ibidem, p. 200. 34 Ibidem, p. 200. 35 FOUCAULT, 1979, p. 8.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
31
realizou, em Portugal, a conferência de mesmo nome da obra, intitulada “Batuque,
Samba e Macumba”, acompanhada de seus desenhos que ilustravam a vestimenta das
baianas, o samba, e os movimentos dos passistas e o transe nos rituais da macumba. A
escolha do título da conferência sobre o folclore afro-brasileiro permite-nos verificar os
conhecimentos adquiridos pela escritora ao documentar em seus desenhos informações
sobre o que considerava ser, o batuque, o samba e a macumba, como importantes
processos identitários do povo brasileiro.
Apresentamos em seguida seis desenhos reproduzidos do livro de Cecília Meirelles
Batuque, samba, e macumba: estudos de gestos e ritmos. Ao resgatarmos essas imagens
buscamos exemplificar, ainda que brevemente, como a autora representou as baianas, os
sambistas e os praticantes da Umbanda e do Candomblé a partir das notas explicativas,
utilizadas em seus desenhos, que foram apresentados na conferência citada. A escolha
das cores primárias, a maioria delas aludindo a cores das bandeiras brasileira e africana,
merecem especial atenção, bem como os trajes e os movimentos das baianas, dos
sambistas e dos iniciados.
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32
FIGURA 1– MEIRELES, 2003, p. 29.
No primeiro desenho acima reproduzido, Cecília Meireles informa ao expectador que
essa “velha negra ou mulata”, é uma pessoa geralmente simpática e maternal. A autora
descreve os trajes da baiana e elabora comentários sobre as crenças afro-brasileiras,
explicando, por exemplo, que a função da “figa” (no meio dos colares) é proteger aos
seus portadores de toda a sorte do mal, pois serve como escudo. As figas mais famosas
para ela são as “de Guiné”. Nesse desenho, é imprescindível verificarmos a expressão
latina nigra sum sed formosa — na tradução “eu sou negra mas bela” —, retirada, muito
provavelmente, da bíblia, retomando a fala de Sulamita, a mulher inspiradora dos
Cantares de Salomão.
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33
FIGURA 2 – MEIRELES, 2003, p. 36. Cecília Meireles utilizou esse desenho para explicar a indumentária da baiana, a “bata”
para ser despida em dias quentes e o xale para resguardar o peito e as costas. Ela registra
que faltou a essa baiana o “berrenguendengue”, uma peça com vários talismãs para ser
carregada à cintura, segundo ela, utilizada antigamente como objeto de luxo.
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34
FIGURA 3 – MEIRELES, 2002, p. 51. “Samba do morro não é samba, não é nada...” Com esse lema, a autora apresenta um de
seus desenhos para representar o samba brasileiro. Aqui, Cecília Meireles trabalha com a
representação de um negro em trajes carnavalescos, certamente um dos integrantes de
bateria de escola de samba, tocando seu pandeiro. Observa-se a forma com que a
personagem porta o instrumento musical, representando, assim, o ritmo do batuque e, ao
mesmo tempo, a sua performance corporal.
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35
FIGURA 4 – MEIRELES, 2003, p. 53.
Com esse desenho, Cecília Meireles explica o uso do cordão que serve para isolar os
populares, certamente para que esses não dissolvam o grupo. A autora também informa
que, na segunda feira de carnaval, esse grupo passará pela Praça Onze, um dos sítios mais
velhos da cidade e, ali perto, no canal do Mangue, desenvolve-se a parte mais curiosa do
carnaval carioca, onde a multidão se reúne nas rodas de batuque e samba, dançando e
cantando “até as primeiras horas do amanhecer”.
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36
FIGURA 5 – MEIRELES, 2003, p. 75.
Ao lado dessa figura, Cecília Meireles elaborou considerações importantes acerca da
Umbanda. Segundo a autora, Oxalá é Deus e, para ela, certamente o nome foi uma
deturpação de Alá, por parte das tribos vizinhas da África muçulmana. Assim, ela explica
o significado de Exu e descreve os rituais de oferenda nas cerimônias religiosas de matriz
afro-brasileira.
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37
FIGURA 6 – MEIRELES, 2003. p. 81.
Com esse desenho, Cecília Meireles explica a formação dos terreiros de Candomblé,
fala sobre o uso dos atabaques, descreve que os praticantes dessa religião “preparam um
sítio bem escondido da polícia” — certamente denunciando a opressão que também
vitimou os negros naquela década de 30 — e informa que, agindo daquela forma, os
praticantes se reuniam “com tambores e trajes litúrgicos”. Por fim, a desenhista explica
os rituais, a invocação, o canto e como o “santo baixa”, já que “aquele ritmo é a própria
forma de vibração da sua divindade.”36
36 MEIRELES, 2003, p. 80.
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38
A partir das imagens apresentadas, confirmamos que o posicionamento da poeta carioca
vem ao encontro das teses de Roland Barthes, em sua Aula inaugural da Cadeira de
Semiologia Literária do Colégio de França, ao afirmar que “o poder (a libido
dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte
de um lugar fora do poder.”37
Seguindo essa linha de argumento, verificamos que Cecília Meireles, de certa forma,
exerceu o poder de representação da cultura afro-brasileira, no momento em que teve
oportunidade de apresentar o folclore do nosso país. Os traços artísticos percebidos nos
desenhos confirmam a valorização do povo negro, pois a perfórmance imagética é
demonstrada de forma positiva.
Devemos evidenciar que a experiência de Cecília Meireles com a Literatura,
propriamente dita, iniciou-se aos nove anos e, aos dezoito, publicou Espectro, seu
primeiro livro de poesias entre os mais de vinte que publicara posteriormente. Pelo fato
de, em seus escritos, serem reconhecidas, sem equívocos, características de várias
escolas literárias, desde o Romantismo até o Modernismo, não se pode considerar que
Cecília Meireles seja filiada a uma estética única.
Acerca da origem da obra em análise, a pesquisadora Ana Maria Domingues de
Oliveira, embasada em uma entrevista feita pela atriz Maria Fernanda, uma das filhas de
Cecília Meireles, ressalta que, em 1945, o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino
Kubitschek de Oliveira, sugeriu a Cecília Meireles escrever sobre a Inconfidência
Mineira. Assim foi escrito uma de suas obras mais célebres, o Romanceiro da
Inconfidência, publicado em 1953, “anunciado como o fruto de uma paixão dedicada da
poetisa pelo estado de Minas Gerais e de uma pesquisa exaustiva sobre o século XVIII
feita por Cecília.”38
Para melhor compreendermos a opção estética adotada por Cecília Meireles, é
importante verificarmos o conceito de romance desenvolvido por Vitor Manuel de
Aguiar e Silva, ao ressaltar que, na Idade Média, o vocábulo romance antes designava a
língua vulgar, a língua românica, depois ganhou significado literário denominando,
sobretudo, composições literárias de cunho narrativo. “Essas composições eram
37 BARTHES, 1990, p. 10. 38 OLIVEIRA, 2001, p. 30.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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primitivamente em verso — o romance em prosa é um pouco mais tardio —, próprias
para serem recitadas e lidas, e apresentam muitas vezes um enredo fabuloso e
complicado.”39
Nessa perspectiva, Luis da Camara Cascudo, em a Literatura oral no Brasil, afirma que
todos os romances populares no país vieram de Portugal, eram um dos gêneros mais
conhecidos aqui nos séculos XVI e XVII e que resistiu até princípios do século XX.
O romance tradicional era uma ação. Foi o modelo para a poesia heróica com que se cantou a valentia inútil dos cangaceiros, afoiteza dos ciclos do gado, derrubadas, ferras, batalhas anônimas dentro das capoeiras. O modelo era fácil e sugestivo. Dividiu-se nas quadras e pelos fins do século XVIII nas sextilhas de sete sílabas, o metro secular para os rimances e canções de gesta. Creio ter sido o romance o primeiro verso cantado pelo português no Brasil. E esses versos vieram aos nossos dias, numa persistência que denuncia a vitalidade da espécie popular no espírito coletivo.40
Assim, Cecília Meireles, resgatando “o espírito coletivo” escreveu o Romanceiro, obra
lírica e épica, de narrativas breves, não linear, dotada de um misto de elementos
históricos e fictícios, com um total de 96 composições poéticas, divididas em uma
serenata, um retrato, quatro cenários, cinco falas e oitenta e cinco romances.
A “Imaginária Serenata” tem seu foco narrativo em primeira pessoa, a Marília de
Dirceu, musa árcade por quem o poeta inconfidente, Tomás Antônio Gonzaga, se
apaixonara. Nesse texto, Marília dialoga com a ausência de seu amado, degredado em
terras africanas. O poeta é visto passando na rua, na igreja, na ponte, na sala. O eu lírico,
Marília de Dirceu, deseja a companhia, mas o amado não a ouve. Apesar de tudo, ela
descansa em seu sono e o amor por Gonzaga permanece, superando os obstáculos.41
O “Retrato de Marília em Antônio Dias” apresenta uma Marília envelhecida, de cabelo
destrançado, a subir vagarosa a ladeira da igreja. A Marília de agora era diferente da
Marília formosa, jovem e bela, dos poemas de Gonzaga, pois, sem a presença dele, ela,
em ruínas, preparava-se para sua sepultura, murmurando o nome de seu amado.42
39 AGUIAR E SILVA, 1983, p. 672. 40 CASCUDO, 1978, p. 232. 41 MEIRELES, 1989, p. 236. 42 Ibidem, p. 264.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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O “primeiro cenário”, narrado em primeira pessoa, descreve a trajetória de um eu
enunciador que, sabedor da história de Tiradentes, faz um retrospecto de suas passagens
pelas paisagens naturais e urbanas de Minas Gerais, retomando o passado do princípio
de Vila Rica, do Arcadismo, das musas dos poetas e da imagem do alferes Tiradentes a
se despedir do povo: “Adeus! que trabalhar vou para todos!.../ (Esse adeus estremece a
minha vida).”43
O “segundo cenário” marca a divisão da primeira parte da obra que congrega os poemas
dedicados a Chico Rei, Santa Ifigênia, a história de Chica da Silva e do contratador João
Fernandes de Oliveira, que inauguram o ciclo dos diamantes, com a segunda parte
marcada pelos fenômenos que antecederam a Inconfidência em Vila Rica. Nesse
cenário, o eu enunciador destaca a névoa densa que cobre a cidade, simbolizando a
atmosfera de tempos turvos que formam “nublados reinos de saudade e pranto”.44
No “terceiro cenário”, o eu enunciador discorre sobre um jardim que foi de Tomás
Antônio Gonzaga, metaforizando o ambiente em que viveu o poeta árcade. O ambiente
que outrora fora belo, agora estava em ruína total por causa do infortúnio que acometeu
o poeta inconfidente — o degredo para terras longínquas que o afastou de sua amada.45
No “quarto cenário”, o eu enunciador descreve o estado em que se encontrava a Rainha,
Dona Maria I, que assinou as sentenças de morte e o degredo dos inconfidentes. O
narrador textual questiona “as sombras que iam passando na memória escura” daquela
soberana portuguesa, envolta em sua loucura. Relata também a decadência dos tempos
áureos e uma forte tristeza, representada pela natureza, em tons reflexivos, sobre o
destino dos inconfidentes.46
A “Fala Inicial”, narrada em primeira pessoa, tem como foco reflexões sobre a
condenação de Tiradentes. Essa fala antecipa os fatos, pois parte do cenário da forca. O
eu enunciador questiona o meio dia confuso e o vinte e um de abril sinistro47. Afinal, é o
julgamento e a pena capital em evidência. Consideramos significativo verificar nessa
43 Ibidem, p. 42. 44 Ibidem, p. 92. 45 Ibidem, p. 214. 46 Ibidem, p. 266. 47 Ibidem, p. 36.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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fala a recorrência do emprego de antíteses como culpa e inocência, castigo e perdão,
ruína e exaltação que caracterizam a tragédia anunciada.
Na “Fala à Antiga Vila Rica”, o eu enunciador dialoga com aquela cidade a partir de
uma comparação do seu estado com os “rostos dos chafarizes”. A capital mineira da
época está paralisada no frio tempo. Uma cidade que não fala “ou fala?”. Assim, o eu
enunciador, num jogo de sinestesias, assume a voz da coletividade e lamenta a
incompreensão da história: “o nosso ouvido / na letra surda/ que os homens pisam/ já
nada entende/ do vosso longo,/ triste discurso”.48
Na “Fala aos Pusilânimes”, o eu enunciador, nos primeiros versos das quatro primeiras
estrofes, interpela que “se vós não fôsseis os pusilânimes”, os grandes sonhos, a ânsia
acordada, as palavras de esperança, as rezas, tudo faria deles um destino diferente. Mas
os pusilânimes escreveram cartas anônimas delatando os seus “amigos, irmãos,
compradores, pais e filhos...”49. Enfim, essa fala condena os covardes e os traidores que
fizeram com que a opressão vitimasse a todos, inclusive a eles mesmos, que, mesmo na
morte, saberão eternamente que são os pusilânimes.
A “Fala à Comarca do Rio das Mortes” indaga a falta dos elementos constituintes da
natureza árcade “onde, o gado que pascia/ e onde, os campos, e onde, as searas?”50.
Como nas falas anteriores, essa também relata o caos, a tragédia, a ruína nos campos e
na cidade. Aqui o eu enunciador relata as mágoas de Bárbara Eliodora, cujo esposo, o
poeta Alvarenga Peixoto, fora exilado para a África. O casal vivera, antes da
Inconfidência, na Comarca do Rio das Mortes, atual São João del-Rei, cidade
semelhante à Vila Rica, em abandono e tristeza.
Na “Fala aos Inconfidentes Mortos”, o eu enunciador afirma que tudo jazia em silêncio
“amor, inveja/ ódio, inocência”51 e menciona reflexões sobre o destino dos homens
antigos que fizeram parte da conjuração, quando tudo se dissolve na força implacável do
tempo, a memória e a eternidade, numa noite “suspensa em bruma”.52
48 Ibidem, p. 93. 49 Ibidem, p. 168. 50 Ibidem, p. 247. 51 Ibidem, p. 278. 52 Ibidem, p. 279.
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Os oitenta e cinco poemas narram a saga de Tiradentes, desde a descoberta do ouro até
as condições de trabalho, as lendas de Ouro Preto, Diamantina e São João del-Rei. A
conspiração dos poetas árcades, cuja história, vivida e imaginada, se entrecruza no texto
literário. Elementos da mitologia e da religiosidade cristã, os ideais de liberdade, as
paisagens que formam uma outra personagem na obra, as meditações acerca de várias
formas de traição pela riqueza, os tipos humanos, velhos tropeiros, mulheres, crianças,
ciganos, brancos, mulatos, negros, senhores e escravos, todos enredados pelo precioso
mineral.
Assim, Cecília Meireles repensa o imaginário da Inconfidência Mineira ao inserir o
elemento negro de forma inclusiva, pois estiliza o africano ao conceder-lhe voz na
narrativa. Nessa perspectiva, a postura enunciativa da escrita de Cecília Meireles
corrobora o pensamento de Walter Benjamin ao argumentar que:
No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, no meio em que ela se dá, não é apenas condicionando naturalmente, mas também historicamente.53
Podemos considerar, a partir do texto de Walter Benjamin, que Cecília Meireles
investigava, por meio da sua escritura, um dos grandes períodos da história mineira e
percebia, com uma visão literária mais ampla, a existência de uma outra história,
paralela, igualmente importante como o movimento dos poetas inconfidentes — a
história do povo negro.
Essa atitude da poeta que escreve sobre um grande período histórico de Minas Gerais,
inserindo a questão do outro, tem importância capital ao se considerar os estudos de
Jean Carvalho França, quando afirma que, durante o período colonial, os três primeiros
séculos que sucederam ao descobrimento, os africanos, apesar de serem numerosos,
não tiveram quase nenhuma atenção dos chamados homens das letras.54 No livro
Imagens do negro na literatura, França informa que o africano ocupa um lugar de
destaque em somente dois poemas do Arcadismo.
53 BENJAMIN, 1987, p. 169. 54 FRANÇA, 1998, p. 27.
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O primeiro lugar de destaque, observado pelo teórico, é o Caramuru, publicado em
1781, de autoria de Frei José de Santa Rita Durão, destinado a cantar os feitos de Diogo
Álvares, o Caramuru, quando aparece, no canto IX, a figura do herói negro Henrique
Dias, valoroso africano, que teve participação decisiva na guerra contra os holandeses
em Pernambuco.55
Por sua vez, o segundo lugar de destaque fica para o Quitubia, publicado em 1791, de
José Basílio da Gama, uma vez que o escritor traz, para a narrativa, um outro grande
herói negro: Domingos Ferreira da Assunção, o capitão angolano que, a serviço da
Coroa portuguesa, se destacara na Guerra Preta.56
Assim, o professor argumenta que, excetuando essas duas composições, o negro aparece
nas poesias dos mineiros apenas em referências esparsas. Tomás Antônio Gonzaga, por
exemplo, nos muitos versos que dedicou a Maria Joaquina Dorotéia de Seixas, a Marília
de Dirceu, só faz alusão aos negros em umas poucas estrofes, nas “Cartas chilenas”, nas
quais descreve os trabalhos por eles executados. Vejamos o que diz o autor:
No poema satírico Cartas chilenas (1788), ao contrário, o poeta põe em cena uma variada gama de tipos negros: são quitandeiras, que se vestem ricamente graças a alguns amigos bem nascidos, mulatas, que dançam lundus e fazem coisas mais feias que a moléstia oculta, negras e vis mulatas, que recebem visitantes em choupanas suspeitas, escravas já velhas, vendidas pelos senhores que ajudaram a criar, e escravos que lotam a grande e suntuosa cadeia mandada construir pelo governador.57
Nessa investigação, o autor ressalta que, nos escritos dos três restantes membros do
Arcadismo, a presença do negro é quase que acidental, à exceção de Alvarenga Peixoto.
Cláudio Manuel da Costa, por exemplo, nos poucos versos do poema épico Vila Rica,
publicado em 1773, que narra a descoberta do ouro e a fundação da Capital de Minas,
menciona, brevemente, o trabalho dos negros escravizados.
Manuel Inácio da Silva Alvarenga faz ao negro uma alusão distante no poema heróico-
cômico “O desertor das letras” (1774), uma sátira aos métodos e teorias da educação
55 Ibidem. 56 Ibidem, p. 28. 57 Ibidem, p. 30. (grifos nossos)
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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vigentes na Universidade de Coimbra antes da reforma levada a cabo pelo Marquês de
Pombal.58
É importante enfatizar que somente Inácio José de Alvarenga Peixoto, assegura o
pesquisador, dedica um espaço mais significativo aos negros no poema “Canto
genetlíaco”, escrito em 1782 por ocasião do nascimento do filho do governador de
Minas D. Rodrigo de Meneses.59
Dessa forma, França conclui seus estudos e faz uma comparação desde os escritos do
Padre José de Anchieta e dos poetas árcades, posicionando-se sobre a inserção dos
negros na literatura brasileira ao longo do período colonial:
Os escritos de José de Anchieta, Fernão Cardim, Gabriel Soares, frei Vicente do Salvador, Rocha Pita, na prosa, e da escola mineira, na poesia, concederam espaços diminutos aos negros e pardos. Os textos de Vieira e o curioso Diálogo das grandezas do Brasil foram um pouco mais generosos, generalidade (sic), no entanto, nem de longe proporcional à significativa presença desses indivíduos no seio da população colonial. Somente Gregório de Matos e Antonil não se mostraram indiferentes a esse fato numérico.60
Verificando a análise de França sobre o negro na literatura colonial brasileira,
comprova-se que inúmeros movimentos históricos, como a reação dos negros à
servidão, cuja referência maior é o Quilombo de Palmares, que durou quase um século,
poderiam ter servido como tema para a literatura brasileira inserir a questão do outro,
naqueles tempos.
Ressaltamos que Antônio de Frederico de Castro Alves, chamado de O Poeta dos
Escravos, escreveu “Saudação a Palmares”, um poema extremamente simbólico sobre a
questão da resistência negra que homenageia os guerreiros do maior quilombo
brasileiro, “Palmares! A ti meu grito!”61, mas isso ocorreu muito mais tarde,
aproximadamente cento e cinquenta anos após a existência do referido quilombo, em
plenos fins do Romantismo Brasileiro.
58 Ibidem, p. 31. 59 Ibidem, p. 31. 60 Ibidem, p. 32. 61 ALVES, 1995, p. 144.
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Com efeito, na dimensão espiritual, os santos negros, Santa Ifigênia, Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, tão presentes em nossa cultura religiosa, de igual forma,
poderiam ter sido objeto de estudo dos nossos poetas e escritores clássicos do período
colonial. O texto deles poderia ter sido diversificado também com a história de Chico
Rei e Chica da Silva. Mas, havia outros temas e outros assuntos que poderiam conceder
status quo para o que muitos desejavam. Havia os padrões hegemônicos da sociedade
marcadamente eurocêntrica. Enfim, após essas breves reflexões, poderíamos assegurar
que a Literatura, ao menos aquela produzida durante o período colonial, foi neutra?
Imparcial?
Barthes, também em sua Aula inaugural, enfatiza a importância da Literatura,
argumentando o saber que ela exerce sobre os homens “a literatura não diz que sabe
alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas —
que sabe muito sobre os homens.”62
É a partir desse viés que o texto escrito por Cecília Meireles, sobretudo no que concerne
à questão da alteridade e da identidade negra, confirma e legitima a importância da
literatura como força de representação, incluindo também as vozes negras, conhecidas e
anônimas, corroborando, assim, as idéias apontadas por Barthes.
Ainda nessa mesma linha de argumentação, Maria Nazareth Soares Fonseca, em “Vozes
em discordância na literatura afro-brasileira contemporânea”, assegura que a literatura
pode possibilitar um importante caminho para que a enunciação do outro possa assumir
a sua fala, sendo, portanto, sujeito de seu discurso:
No caso especifico do Brasil, a tensão entre os contrários é o caminho que se abre, também na literatura, para se avaliar os movimentos de assimilação/rejeição que caracterizam os projetos literários comprometidos com a valorização dos negros. Nesses projetos, segundo Bernd, a manifestação de um “eu enunciador” identificado com as questões dos negros caracterizaria uma enunciação em que o sujeito deixa de se ver como objeto e passa a assumir-se como dono do seu dizer. Essa mudança de focalização está de certa forma sinalizada pela ruptura do movimento modernista brasileiro, mas resta indagar se esse movimento conseguiu, realmente, inverter a situação e dar voz aos negros.63
62 Ibidem, p. 19. 63 FONSECA. In: FIGUEIREDO e FONSECA, 2002, p. 193.
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Dessa forma, Cecília Meireles, em muitos poemas dedicados aos negros no Romanceiro
da Inconfidência, apresenta um eu enunciador que tem a função de ser porta voz de
anseios coletivos, como os romances dedicados ao Negro nas catas, a Chico Rei, a Santa
Ifigênia e a Chica da Silva, o nosso objeto de estudo nos próximos capítulos.
1.3 – IDENTIDADES E NEGRITUDE: DIÁLOGOS MÚLTIPLOS
Considerando as possibilidades dialógicas entre identidades e negritude, os estudos de
Stuart Hall, Nilma Lino Gomes, Kabengele Munanga, Zilá Bernd, Mikhail Bakhtin e
Eduardo de Assis Duarte se constituem como um corpus relevante para confirmar a
questão da alteridade negra apontada e ressignificada por Cecília Meireles no
Romanceiro da Inconfidência.
Stuart Hall afirma, em A Identidade cultural na pós-modernidade, que identidade é um
conceito muito complexo, pouco desenvolvido e compreendido na ciência social
contemporânea.64 Na obra mencionada, Hall aponta três concepções de identidade, a
Iluminista, a Sociológica e a Pós-Moderna.
O sujeito do Iluminismo, apontado como a primeira concepção, é totalmente centrado,
unificado, dotado de razão, o centro essencial do eu. Assim, seria uma concepção
individualista do sujeito.65 A segunda concepção de identidade, desenvolvida pelo autor,
é o sujeito sociológico que refletia a complexidade do mundo moderno. Ele era formado
na relação com outras pessoas importantes para ele, pois a identidade era construída na
interação entre o eu e a sociedade. Assim, havia diálogo contínuo com os mundos
culturais exteriores e as identidades desses mundos.66 O último conceito de identidade
proposto é a do sujeito pós-moderno que não teria uma identidade fixa, essencial ou
permanente. O sujeito assume, assim, identidades que não são unificadas, pois há
identidades contraditórias.67
64 HALL, 2003, p. 8. 65 Ibidem, p. 11. 66 Ibidem, p. 12. 67 Ibidem, p. 13.
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A partir dos estudos de Hall, pode-se afirmar que a identidade não é, de fato, algo
completo, acabado, totalizado, mas que está em formação, uma vez que é construída nas
relações com os outros:
Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto na plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.68
Nessa perspectiva, no que tange à não unificação das identidades do sujeito pós-
moderno, é possível confirmar que o autor textual do Romanceiro da Inconfidência
assume esse papel, de um sujeito que não tem uma identidade fixa, pois narra a história
dos poetas, de homens e de mulheres anônimos que fizeram parte da Inconfidência
Mineira, além de representar um importante discurso sobre inclusão dos negros, tanto
em aspectos que dizem respeito às questões de gênero — Chica da Silva, de liderança
— Chico Rei, e de religiosidade — Santa Ifigênia. Nesse contexto, também registra as
formas de subversão e de dissimulação, como nos romances intitulados “O Negro nas
catas” e o “Negro que desce do Serro”.
Nilma Lino Gomes, no artigo “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre
relações raciais no Brasil: uma breve discussão”, afirma que nós, na condição de
sujeitos sociais, ou seja, de agentes capazes de intervir na cultura e história, podemos
vivenciar as múltiplas identidades que nos constituem:
Enquanto sujeitos sociais, é no âmbito da cultura e da história que definimos as identidades sociais (todas elas, e não apenas a identidade racial, mas também as identidades de gênero, sexuais, de nacionalidade, de classe, etc.). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que estes são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamento sociais.69
Dessa forma, a pesquisadora afirma, exemplificando os estudos do antropólogo
Kabengele Munanga, que a identidade negra no Brasil tem de ser considerada no
sentido político como tomada de consciência e compreender o significado do conceito
de raça na sociedade brasileira, pois pode ser definida em duas vertentes:
ressignificação política ou categoria social de exclusão.70
68 Ibidem, p. 39. (grifos do autor) 69 GOMES, 2005, p. 42. 70 Ibidem, p. 43.
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Nessa linha analítica, fica evidente a tomada da consciência acerca da necessidade de
inclusão do outro, uma vez que as personagens negras, no Romanceiro da
Inconfidência, são ressignificadas em sua história, desde a participação no trabalho
servil, perpassando pelas manifestações culturais e atuações políticas, até no discurso de
uma justa reivindicação para a liberdade ampla, não somente dos escravos negros, mas
também dos brancos que estavam prisioneiros da riqueza, conforme nas vozes de uma
das personagens em tela.
Confirmando as reflexões de Nilma Lino Gomes acerca dos papéis dos sujeitos sociais
na ressignificação da identidade negra brasileira, Maria Nazareth Soares Fonseca
destaca o papel de transgressão que os textos podem proporcionar:
Ao permitir que vozes discordantes entoem nos textos, a escrita se faz transgressora e se deixa atravessar por sentidos outros produzidos nos lugares em que os textos, como as possuídas de que fala Certeau, sustentam um outro dizer. Desnudando a revolta sufocada ou recuperando o mundo significado por ritmos e gestos, muitos textos da literatura afro-brasileira exibem-se em transgressão e exploram um léxico exploratório que vislumbra alcançar outros sentidos, outros dizeres, outras intenções.71
A partir das considerações de Fonseca a respeito da recuperação de um mundo
significado por ritmos e gestos, o Romanceiro da Inconfidência, na sua temática afro-
brasileira, transgride um discurso único e hegemônico que poderia ter excluído as
representações negras ao longo da história literária. Seguramente, com essa atitude
inclusiva, Cecília Meireles apresenta, conforme a teoria apontada por Fonseca, um novo
léxico que alcançou outras interpretações, colocando em evidência a negritude.
A palavra negritude, segundo a pesquisadora Zilá Bernd, é polissêmica, uma vez que
funciona como portadora de vários sentidos. Como conceito, a negritude surgiu na
França, na primeira metade do Século XX e está relacionada à reivindicação do homem
negro e também à característica de um estilo artístico ou literário e ao conjunto de
valores da civilização africana.
Atuando dentro dessa perspectiva, Bernd aponta o poeta antilhano Aimé Cêsaire, que
reconheceu que, por volta da década de 30, em Paris, havia surgido um movimento que
71FONSECA. In: FIGUEIREDO e FONSECA, 2002, p. 218.
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permitia reverter, a partir da literatura, o sentido negativo da palavra negro. Esse
movimento foi batizado com o nome de negritude, em 1939, “quando ele é utilizado
pela primeira vez em um trecho do Cahier d’um retour au pays natal (caderno de um
regresso ao país natal), poema de Césaire que se tornou a obra fundamental da
negritude.”72
A pesquisadora afirma que a consciência negra, em muitos escritores, ressurge num
discurso engajado contra qualquer tipo de opressão e aponta a literatura como um lugar
privilegiado em relação à afirmação e negação das identidades já que essa é feita do
intercâmbio de linguagens capaz de construir e desconstruir identidades. Em suas
palavras:
A literatura, que é feita do entrecruzamento de linguagens, é um lugar privilegiado de construção/desconstrução de identidades, exercendo em praticamente todas as culturas, a função sacralizadora de união da comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, contribuindo para solidificar os mitos de origem e do enraizamento e tendendo a projetar uma imagem homogênea de si própria. O texto literário pode ser, portanto, um poderoso agente ou pelo menos um excelente coadjuvante quando se trata de construção, expressão e solidificação de identidades de diferentes coletividades ou grupos etno-culturais.73
Considerando as proposições de Bernd, a participação de Cecília Meireles no
“Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova” e as reflexões sobre as questões sociais
apontadas em sua escrita, verificamos que uma das características da escritora em
análise vem ao encontro das considerações relacionadas ao escritor engajado apontadas
por Jean Paul Sartre em O Que é literatura:
O escritor ‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar. Ele abandonou um sonho impossível de fazer uma pintura imparcial da Sociedade e da condição humana. O homem é o ser em face de quem nenhum outro ser pode manter a imparcialidade, nem mesmo Deus. 74
A partir da teoria apresentada por Bernd, acerca da literatura, e de Sartre, sobre o
escritor engajado, mais uma vez podemos justificar e corroborar o fato de que a
escritura de Cecília Meireles se apresenta como um importante tecido que rediscute a
questão da identidade e da negritude, pois os poemas-romances que têm as personagens
72 BERND, 1988, p. 42. 73 BERND, 1988, p. 36-37. 74 SARTRE, 2004, p. 20-21.
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negras em destaque são mais que elementos de “uma pintura imparcial da sociedade e
das condições humanas”. É um texto que tem posicionamentos, que se tornou “um
excelente coadjuvante” na questão identitária.
Essa atitude inclusiva também foi reivindicada por Eduardo de Assis Duarte ao
assegurar que, desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente
em praticamente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre obtendo o
reconhecimento devido.75 No mesmo artigo, Duarte argumenta que, no caso específico
de nossa produção letrada, como observou Jean Carvalho França, em Imagens do negro
na literatura, existem empecilhos que “vão desde a estigmatização dos elementos
oriundos da memória cultural africana e o apagamento deliberado da história dos
vencidos até o modo explicitamente construído e não essencialista com que se
apresentam as identidades culturais.”76
Homi Bhabha, crítico literário indiano, considerando que a linguagem é o instrumento a
partir do qual as representações sociais são construídas, postula a possibilidade de os
discursos hegemônicos do pensamento colonial serem subvertidos quando a
multiplicação das diferenças ocupar o “lugar de enunciação”: “Da perspectiva da
minoria, a articulação social da diferença representa uma complexa negociação em
curso que busca autorizar os hibridismos que aparecem nos momentos de transformação
histórica.”77 Assim, Zilá Bernd ressaltou que a negritude pretendeu provocar uma
ruptura com o padrão cultural imposto pelo colonizador como único e universal.78
Com efeito, o Romanceiro da Inconfidência, sobretudo no que diz respeito à questão
afro-brasileira, provocou, também, uma ruptura com o padrão hegemônico do
pensamento colonial que, não raras vezes, excluiu os negros dos vários discursos de
representação. Ocupando o “lugar de enunciação”, Cecília Meireles apresentou os ex-
escravos Chico Rei e Chica da Silva como sujeitos que assumem, em seus diferentes
discursos, posicionamentos sobre as relações sociais da época.
Sendo assim, o plano da expressividade do Romanceiro da Inconfidência também é
definido pelo dialogismo textual proposto por Mikhail Bakhtin nos estudos sobre a
75 DUARTE, 2005, p. 113-114. 76 Ibidem, p. 118. 77 BHABHA, 1998, p. 2. 78 BERND, 1988, p. 52.
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interação verbal. Para esse teórico da linguagem, “as palavras são tecidas a partir de
uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em
todos os domínios.”79
Dessa forma, Cecília Meireles, ao transgredir as fronteiras do “pensamento colonial”
para ressignificar a questão da negritude, pela linguagem poética, permite compreender
“os fios ideológicos” em torno das personagens Santa Ifigênia, Chico Rei e Chica da
Silva, uma vez que essas representam também uma tessitura coletiva.
Santa Ifigênia remete à questão dos planos espiritual e material, pois ela é a entidade
protetora dos negros, que é evocada pelo eu enunciador do poema, a ela dedicado, a
descer à Mina do Chico Rei para assistir os escravos no trabalho. A história da Santa
Negra será ressignificada a partir da manifestação da memória coletiva, sobretudo
quando os negros, em ritual, vão subir a ladeira que dá acesso à Igreja para louvá-la.
Chico Rei faz parte, desde os primeiros tempos, da história de Ouro Preto. Ele, uma vez
líder africano, foi feito prisioneiro, chegou a ser escravo na antiga Vila Rica, mas,
subvertendo essa condição, retomou a sua liderança, no novo território, passou a
colaborar para a libertação dos irmãos e a fazer parte da história da construção da igreja
de Santa Ifigênia e Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, naquela cidade.
Chica da Silva superou a sua condição de escrava e se tornou amante do renomado
desembargador e contratador de diamantes no Arraial do Tejuco, atual Diamantina. Nos
versos do Romanceiro, Chica da Silva é uma mulher bela, vaidosa, sábia e ativa, que
acompanha o esposo João Fernandes de Oliveira em seus negócios.
Cecília Meireles reuniu informações sobre a história de Ouro Preto, Diamantina e das
personagens em destaque que existiram no contexto da Inconfidência Mineira. A
escritora fez justiça ao inseri-los de forma positiva em seu texto literário, confirmando
muito da memória popular, escrita e repassada por contos orais, de geração para
geração, até chegar ao tempo de sua pesquisa e escrita da obra que versa sobre um dos
grandes momentos da nossa história.
79 BAKHTIN, 1992, p. 41.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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Portanto, mais uma vez, fica evidente que a leitura do Romanceiro da Inconfidência
escrito no Modernismo brasileiro, mas com a narrativa ambientada no Século XVIII,
permite-nos analisar e refletir sobre a questão da expressão da alteridade e das
identidades negras, levando-se em conta a inclusão daquelas vozes outrora obliteradas.
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CAPÍTULO II
AS PERSONAGENS NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA
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2.1 – CHICO REI E A MEMÓRIA COLETIVA
A memória coletiva, segundo Maurice Halbwachs, é construída por grupos sociais que
definem a lembrança daquilo que é significativo para a sua coletividade e ela pode ser
descrita como uma reconstrução do passado80. Com base nesta retórica, Peter Burke
confirma que “As memórias são maleáveis, e é necessário compreender como elas são
concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade”.81
Halbwachs, em La mémoire colletive, define o recurso da lembrança como fonte precisa
para a reconstrução de um tempo pretérito, mas o presente é que redefine essas
reconstruções já que ele empresta dados para preparar aquelas, feitas em épocas
anteriores, e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.82
A partir dos estudos desenvolvidos por Halbwachs, os historiadores contemporâneos
enfatizaram a importância que assume a história oral para entender os fluxos do
passado, uma vez que os testemunhos e tradições são fundamentais para a escrita
documental. Dessa forma, a história não seria fechada no passado e nem seria o que
restou dele, pois, ao lado de uma história registrada, há uma história em movimento
dinâmico, que se eterniza:
A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que resta do passado. Ou, se o quisermos, ao lado de uma história escrita, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é possível encontrar um grande número dessas correntes antigas que haviam desaparecido somente na aparência.83
No artigo “A memória não é mais o que era”, Henry Rousso afirma que a memória tem
relação com a identidade da percepção do individual e do coletivo, pois seu (da
memória) atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à
alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida humana.84
Logo, a memória tem relação com a alteridade e com o tempo, sempre mutável, sendo
que as rupturas interferem em novos conceitos e valores, podendo confirmar, negar ou
redefinir fatos pretéritos. 80 BURKE, 2000, p. 70. 81 Ibidem, p. 73. 82 HALBWACHS, 1990, p. 71. 83 Ibidem, p. 67. 84 ROUSSO, 1998, p. 94-95.
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As teorias sobre a memória coletiva, possibilitam-nos observar, por exemplo, que, se na
chamada Primeira Geração Romântica, denominada de Indianista ou Nacionalista, os
nossos escritores propuseram uma retomada de nosso passado histórico, a partir de um
modelo medieval, idealizado, transferindo assim para o índio brasileiro o protótipo de
um cavaleiro desejado, já que não tivemos Idade Média, Cecília Meireles, escrevendo o
Romanceiro, retoma o passado da História de Minas e reconstrói, em tom épico e lírico,
os feitos do negro Chico Rei em Ouro Preto.
A autora, a partir de uma visão crítica e lúcida sobre o nosso nacionalismo, confirma o
pensamento de Jacques Le Goff ao assegurar que “A memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.
Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para a
servidão dos homens.”85
Assim, a poeta carioca apresenta, mais uma vez, um discurso inovador que retoma as
reminiscências do passado e recupera, pela força da literatura, a memória de uma voz
aparentemente individual, a de Chico Rei, mas que se faz coletiva, a do povo negro,
assumindo a enunciação por meio de rituais de culto e reflexão sobre o conceito de
liberdade, conforme apresentaremos a seguir.
Após a prisão na África e a perda da esposa e de quase todos os filhos na travessia do
Atlântico, Chico Rei, ao chegar ao Brasil, trabalha na mina da encardideira e liberta
outros irmãos do cativeiro. Ele participou de uma irmandade negra, a de Santa Ifigênia,
do atual bairro Alto da Cruz, e, junto com o seu povo afro-brasileiro, ergueu um
santuário para a Santa Negra e para Nossa Senhora do Rosário. Diogo de Vasconcelos,
em História antiga de Minas Gerais, registra a história de Chico Rei:
Francisco foi aprisionado com toda sua tribo, e vendido com ela, incluindo sua mulher, filhos e súditos. A mulher e todos os filhos morreram no mar, menos um. Vieram os restantes para as minas de Ouro Preto. Resignado à sorte, tida por costume na África, homem inteligente, trabalhou e forrou o filho; ambos trabalharam e forraram um compatrício; os três, um quarto, e assim por diante até que, liberta a tribo, passaram a forrar outros vizinhos da mesma nação. Formaram assim em Vila Rica um Estado no Estado; Francisco era Rei, seu filho o Príncipe, a nora a Princesa. Possuía o Rei para a sua coletividade a mina riquíssima da Encardideira ou Palácio Velho. Antecipou-se este
85 LE GOFF, 1994, p. 477.
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negro a era das cooperativas, e precursou o socialismo cristão. Como naquele tempo toda irmandade estava unida à idéia religiosa de um santo patrono, tomou esta o patronato de Santa Efigênia, cuja intercessão foi-lhes tão útil; e desse exemplo nasceu o culto ardente, que se volta ainda à milagrosa imagem do Alto da Cruz. Os irmãos erigiram um belo templo que existe sob a invocação do Rosário. No dia 6 de janeiro o Rei, a Rainha e os Príncipes vestidos como tais eram conduzidos em ruidosas festas africanas à igreja para assistirem à missa cantada e depois percorriam em danças características, tocando instrumentos músicos indígenas da África, pelas ruas. Era o Reinado do Rosário, festas que se imitaram em todos os povoados das Minas. Vem também daí a nomenclatura dos mesários do Rosário em todas as irmandades de pretos entre nós. No Alto da Cruz ainda se vê a pia de pedra na qual as negras empoadas de ouro lavavam a cabeça para deixá-lo naquele dia por esmola ou donativo.86
Dialogando com o texto de Vasconcelos, Cecília Meireles poetisa a história de Chico
Rei e passa a ressignificá-la. Apesar de, no Romanceiro da Inconfidência, haver apenas
um poema dedicado àquele líder negro de Ouro Preto, esse texto é significativo por
sintetizar a história do ex-escravo e elevá-lo à categoria de herói ao proporcionar
reflexões sobre o processo de escravidão, que, naquele tempo, segundo as percepções da
personagem, também vitimou os homens brancos. Chico Rei, ao ser estilizado por
Cecília Meireles, apresenta uma visão lúcida do contexto da Inconfidência de Minas e
antevê a sua percepção acerca dos fatos que serão narrados na obra nos poemas
posteriores.
O “Romance VIII ou de Chico Rei” é composto por sete estrofes de seis versos
(sextilhas) brancos. O foco narrativo é em primeira pessoa, quando o líder africano
evoca o seu povo para o trabalho e rememora a sua vivência na África, pois, em um
determinado momento, aquele continente foi o lugar de liberdade para ele.
É importante verificar que, nas sete estrofes do poema, aparecem repetidas as evocações
da palavra “povo” e, nas duas últimas, esse substantivo é acompanhado pelo pronome
possessivo “meu”, denotando o seu pertencimento, por meio de uma identidade que é
assumida. Dessa forma, o seu povo é conclamado a lutar pela liberdade e a refletir sobre
a situação de escravidão que aplacava a todos, inclusive aos brancos. Nessa linha
analítica, Francis Úteza afirma o seguinte:
86 VASCONCELOS, 1982, p. 162-163.
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No “Romance VIII” — sete sextetos de ritmo sincopado susceptível de evocar o batuque dos tambores —, o discurso de Chico destaca anaforicamente no final do terceiro verso de cada estrofe o vocativo “povo”, que, aliás, constitui a única rima da composição. Assim se exalta o carisma do chefe, bem como sentido da solidariedade que se baseia o sucesso da empresa coletiva. As referências a essa solidariedade acompanham estrofe após estrofe a transmutação progressiva dos escravos em homens livres, ao passo que os supostos “donos” se transformaram em cativos da própria cobiça.87
Na primeira estrofe do “Romance VIII ou do Chico Rei”, narrado pela personagem em
tela, há o exercício de uma memória africana, simbolizada no tigre que ruge nas praias
do mar. A metáfora do tigre no poema representa força, coragem, audácia, formando um
paralelo com a atitude do eu lírico88 que chama o povo para cavar a terra, entrar pelas
águas, obedecendo às ordens do império português, este sedento pelo precioso minério:
Tigre está rugindo nas praias do mar. Vamos cavar a terra, povo, entrar pelas águas: o Rei pede mais ouro, sempre, para Portugal. (p. 62)89
Na segunda estrofe, o eu lírico, Chico Rei, descreve um trono que certamente não é o
mesmo do Rei de Portugal citado na estrofe anterior. Fica em evidência um contraste
que subverte um modelo consolidado. O trono que o líder negro instaura reúne
elementos da natureza que representam a noite, expressa na palavra lua, e o dia, na
palavra sol, que também simboliza claridade e esclarecimento, além de mencionar a
estrela, metaforizada como esperança:
O trono é de lua, de estrela e de sol. Vamos abrir a lama, povo, remexer cascalho, guarda na carapinha, negra, o véu do ouro em pó! (p. 62)
Ainda com relação a essa estrofe, o povo é chamado a explorar o ouro, abrindo a lama e
remexendo o cascalho, e é também motivado a guardá-lo nos cabelos negros. Dessa
87 ÚTEZA. In: MELLO, 2002, p. 45. 88 Utilizamos a expressão “eu lírico” para designar a fala das personagens e “eu enunciador” em alusão à voz do narrador. 89 Os trechos das poesias de Cecília Meirelles citados nesta dissertação integram a obra Romanceiro da Inconfidência (1989). Com o objetivo de evitar a repetição excessiva de notas, decidimos indicar, no próprio corpo deste trabalho, apenas os números das páginas nas quais os fragmentos dos poemas analisados poderão ser encontrados.
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forma, o exercício da memória coletiva é praticado, pois, segundo contos populares,
Chico Rei guardara ouro nos cabelos para comprar a sua alforria.
Na terceira estrofe, o eu lírico apresenta um testemunho ao recordar a sua terra natal. Ao
descrever seu passado, nos dois primeiros versos, verifica-se Chico Rei se refere a uma
distância não apenas espacial, mas temporal, pois ele não vivia no mesmo tempo, e o
lugar narrado era demasiado longe:
Muito longe, em Luanda, era bom viver. Bate a enxada comigo, povo, desce pelas grotas! — Lá na banda em que corre o Congo eu também fui Rei. (p. 62)
Nos terceiro e quarto versos dessa estrofe, o eu lírico convoca o povo a descer pelas
grotas da mina e a bater a enxada em sua companhia a fim de explorar o ouro. O
exercício da re-memorização de seu território, de seu locus de origem, permanece, e
Chico Rei assume o seu lugar de liderança, igualando-se, na condição de poder, ao Rei
de Portugal, citado na primeira estrofe.
Na quarta estrofe, o personagem Chico Rei compara toda a terra com uma mina em que
o ouro seria facilmente encontrado. Seu filho, que viera do Congo junto com ele em um
navio negreiro e teria sido também escravizado, naquele momento estava livre, em
virtude da riqueza que aprisionava, mas que também poderia ser a possibilidade de
comprar a carta de alforria. Assim, Chico rei confirma a liberdade de seu filho e, a partir
desse episódio, porta uma voz de liberdade coletiva, na qual se incluía:
Toda a terra é mina: o ouro se abre em flor... Já está livre o meu filho, povo, — vinde libertar-nos, que éreis, meu Príncipe, cativo, e ora forro sois! (p. 62)
Na quinta estrofe, Chico Rei demonstra a necessidade insaciável dos exploradores das
minas e, ao mesmo tempo, pede ao povo que não se desespere, pois o cativeiro não era
tão pesaroso e estava a escorregar dos ombros:
Mais ouro, mais ouro, ainda vêm buscar. Dobra a cabeça, e espera, povo, que este cativeiro
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já nos escorrega dos ombros, já não pesa mais! (p. 63)
Na penúltima estrofe do poema, Chico Rei estimula o seu povo a contemplar a congada,
que aparece em ritual performático, metaforizada em suas cores vermelha e azul.
Estimula o povo a cantar e a dançar, naquele instante, naquele agora, naquele Carpe
Diem.
É imprescindível verificar que a expressão da identidade, nessas duas últimas estrofes,
se consolida de forma muito especial, tendo em vista que a palavra “povo”, nas estrofes
anteriores, aparecia isolada, sem nenhum qualificativo, em aposto, mas a palavra nesses
versos finais ganha um novo estatuto porque é acompanhada por um determinante, o
pronome possessivo “meu”, que vem enfatizar a etnicidade inclusa. Enfim, a
confirmação do lugar, sem entremeios, do sujeito agente, do sujeito que fala:
Olha a festa armada: é vermelha e azul. Canta e dança agora, meu povo, livres somos todos! Louvada a Virgem do Rosário, vestida de luz. (p. 63)
Assim, o eu enunciador expressa sua mensagem de conforto metafísico, pois estavam
livres — pelo menos nos rituais da congada. A liberdade idealizada, do plano das idéias,
poderia ser concretizada quando da louvação a Nossa Senhora do Rosário.
O ritual da congada é um lugar privilegiado de manifestação e de recuperação da
memória pessoal e coletiva, tendo em vista o ato performático que, representado em
toda essa estrofe, reconfigura a inclusão do povo negro, não unicamente na condição de
subservientes, tantas vezes apontada na literatura nacional, mas de subvertores do
pensamento hegemônico por meio da cultura religiosa. Assim a congada, o ritual
mencionado implicitamente, tem nesse sexteto a sua performance inscrita. Ato
significativo, pois, para Graciela Ravetti,
A performance revela experiências que fazem o percurso do pessoal ao comunitário e vice-versa. Esse trânsito está fortalecido por um impulso de resistência à dissolução de componentes culturais e ideológicos que atuam como resíduos culturais que integram as pessoas a uma religião, a uma paisagem, e que passam a ser pele, olhos, roupa, gestos, fala, em partituras que se percebem como restos de algo maior irrecuperável, reproduzível e passível de ser re-escrito,
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mas que, de alguma forma, deve ser restituído a um passado e, ao mesmo tempo, transmitido ao futuro e relido no presente.90
Se a performance, apontada por Ravetti, revela experiência que perpassa do “pessoal ao
comunitário” o poema dedicado a Chico Rei, é exemplar, uma vez que o texto apresenta
uma experiência singular do líder africano que a transmite com significado novo, não
somente ao seu povo, mas também aos “tristes cativos” que ocuparam o lugar, muitas
vezes, de anti-heróis.
Nessa mesma linha de argumentação, Florentina Souza corrobora a análise de Ravetti
no que tange à memória e à performance nas culturas afro-brasileiras:
Assim, as várias tradições culturais africanas da diáspora sempre lideram com esforço individual e coletivos de guarda e preservação, reconstituição e reorganização de pedaços, narrativos, cânticos e performances, tecidos e traços, plantas e costumes entre outras bagagens que, junto com os corpos e almas, atravessaram o Atlântico.91
A experiência transoceânica de um ex-líder africano que, no Brasil, recupera a sua
posição é emblemática, principalmente na memória cultural quando este incentiva o seu
povo a louvar à Virgem do Rosário, reconstituindo, na poesia, os rituais cristãos, que
muitas vezes foram utilizados como processo de interação e ruptura. A atitude de
Cecília Meireles é instigante, uma vez que Souza enfatiza que os modelos eurocêntricos
legitimados desprestigiaram produções culturais de origem africana:
A música, a voz, os gestos, os cantos e cantos sempre constituíram fundamentos das produções culturais de origem Africana e viram-se, por vezes, submetidos à depreciação pelos paradigmas críticos centrados na supervalorização dos modelos eurocêntricos fincados em discursos prestigiados por transitarem em espaços ditos da hegemonia do racional e da máxima objetividade.92
Dessa forma, fica mais uma vez evidente que a personagem Chico Rei vai muito além
de um simples representante do povo negro, principalmente no trabalho servil. O Chico
Rei, conforme apresentado na estrofe anteriormente analisada, é aquele líder que
convida as pessoas a participarem da festa cantando, dançando e louvando a Nossa
Senhora do Rosário, além de motivar todo o seu povo a se sentir livre. A liberdade que a
arte pode possibilitar. 90 RAVETTI. In: HILDEBRANDO, NASCIMENTO, ROJO, 2003, p. 34-35. 91 SOUZA. In: ALEXANDRE, 2007, p. 30. 92 Ibidem, p. 31.
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Na última estrofe, o eu enunciador retoma os dois primeiros versos do poema e
rememora a metáfora do tigre rugindo nas praias oceânicas. Ao concluir o poema, Chico
Rei, dialogando com o seu povo, demonstra explicitamente conhecer a escravidão do
ouro que vitimava não apenas os negros, mas os brancos, os tristes cativos.
A partir da leitura desses versos, verifica-se que Chico Rei, ao mencionar a questão do
processo de escravidão negra, no qual foi inserido por um determinado momento,
amplia a questão do outro, que não é somente o negro, mas a etnia dominante, que,
naquele contexto da Inconfidência, passava a ser vítima do próprio sistema:
Tigre está rugindo nas praias do mar. Hoje, os brancos também, meu povo, são tristes cativos! Virgem do Rosário, deixai-nos descansar em paz. (p. 63)
Nos dois versos finais do poema, o líder negro evoca a proteção de Nossa Senhora do
Rosário a quem pede o repouso para todos. Importante considerar que essa Santa tem
profunda relação com a identidade negra cristã, pois a sua história se interpenetra com o
mito fundador da Congada. Acerca desse fato, Leda Maria Martins relata que,
Uma das versões mais recorrentes em Minas nos conta que, no tempo da escravidão, os negros escravos viram uma imagem da santa vagando nas águas do mar. Os brancos a resgataram e entronizaram numa capela construída pelos escravos, mas na qual os negros não podiam entrar. Apesar dos hinos, preces e oferendas, no dia seguinte a imagem desaparecia do altar e voltava ao mar. Após varias tentativas frustradas de manter a santa na capela, os brancos rendem-se à insistência dos escravos e permitem que eles rezem para a imagem, à beira-mar. Uma guarda de Congo dirige-se, então, para a praia e com seu ritmo saltitante, sua coreografia ligeira, suas cores vistosas, paramentos brilhantes e fitas coloridas e dança pra a divindade. A imagem movimenta-se nas águas, alça-se sobre o mar, mas não os acompanha. Vêm, então, os moçambiqueiros, pretos velhos, pobres, com vestes simples, pés descalços, que trazem seus três tambores sagrados, os candombes, feitos de maneira oca e revestidos por folhas de inhame e bananeira. Com seu canto grave e glutal, seu ritmo pousado e denso, as gungas, seus patangomes e sua fé telúrica, cativam a santa que, sentada no tambor maior, a Santana ou Chama, acompanha-os, devagar, sempre devagar.93
93 MARTINS, 1997, p. 45.
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Cecília Meireles apresenta no discurso do líder africano a evocação da Virgem do
Rosário, numa atitude que faz confirmar a memória coletiva dos afrodescendentes em
um momento especial, o de integração dos povos que vieram de várias nações e que ali,
naquele ritual performático, formavam uma só unidade cujo desejo de ser livre igualava
a todos, pois, no festejo, não há espaço para as diferenças e hierarquias, é o lugar das
rememorações, uma possibilidade de unificar o passado e o presente, ressignificando-os.
Com base no exposto e a partir de todas as leituras possibilitadas pela análise do
Romance VIII, podemos confirmar que a cultura afro-brasileira, interligada com o
discurso da liberdade integradora, é característica preponderante nos versos dedicados a
Chico Rei.
Edimilson de Almeida Pereira afirma que o Estado português e a Igreja Católica
controlavam a população escrava94 e que, apesar da vigilância, os negros criaram
oportunidades para reinterpretar seus eventos, e o sagrado tivera “o papel de mediador
entre as origens em África e as realidades brasileiras. Assim como o controle exercido
sobre os corpos dos negros foi contestado fisicamente pelas fugas e suicídios, o controle
sobre suas almas foi contestado por sua rebelião metafísica.”95
Com base nas considerações de Pereira, verifica-se que a chamada rebelião metafísica
foi uma reação, uma resposta dada pelos negros à tentativa de controle de suas almas.
Dessa forma, a congada, por meio de seus rituais performáticos, possibilitou a
transcendência do plano material para o plano das idéias, de realidades imaginadas.
Assim, a rebelião metafísica, a apreensão da realidade desejada, ocorre nos rituais
performáticos da congada, a dança que, nas palavras de Marina de Mello e Souza, tinha
o seu mito fundador assentado na conversão ao cristianismo para alguns chefes
africanos. A dança-rito, inevitavelmente, para se consolidar no Brasil colonial, teve
apoio das irmandades que “forneceram o espaço para a constituição dessa festa
negra.”96
Portanto, ao escrever sobre os episódios marcantes da Inconfidência Mineira, Cecília
Meireles permite inserir em seu texto, além da história dos poetas árcades e outros 94 PEREIRA. In: FIGUEIREDO e FONSECA, 2002, p. 50. 95 Ibidem, p. 51. 96 SOUZA, 2006, p. 308.
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homens que tiveram o seu papel já consolidado, a participação dos negros como força
contestadora do poder exercido pelos colonizadores portugueses. Essa atitude fica
evidente nesse poema dedicado a Chico Rei, desde a escolha do foco narrativo para
apresentar o texto como um relato próprio, um testemunho, até o desfecho do poema em
que o herói negro é solidário à questão dos brancos.
É relevante registrar que, segundo Marina de Mello e Souza, a lenda de Chico Rei pode
ter sido inspirada em um episódio verdadeiro e ainda que se ele não tenha existido tal
qual conta a lenda, “poderia ter existido personagem semelhante que deu origem a ela,
que em tudo se adequa às informações históricas acerca de lideranças negras a quais era
atribuído o cargo de rei.”97 Portanto, Cecília Meireles reescreve um novo texto sobre
aquele contexto, mesclando informações históricas e contos populares, segura de que a
obra de arte não é capaz de totalizar as coisas e que o artista “poderá dizer a mesma
verdade do historiador, porém de outra maneira. Seus caminhos são outros para atingir a
comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de ritmos. Um problema de
composição.”98
Assim, com essa consciência de seu papel, a poeta carioca inseriu de forma muito
peculiar a presença dos afrodescendentes num escrito que, além de denunciar a
condição servil dos negros, apresenta um herói que tem a sua liderança recuperada. Um
líder que, no texto, ao invés de se conformar ou de se aliar ao sistema, já que ele possuía
o status quo de rei negro, incentiva o seu povo a trabalhar e a lutar pela liberdade. Uma
luta em que as armas eram outras: a perfórmance do corpo em movimento, buscando o
desprendimento da matéria e libertando a alma.
2.2 – SANTA IFIGÊNIA: O PLANO DIVINO ROMANCEADO NOS RITUAIS DA
CONGADA
O “Romance IX ou de Vira-e-sai” é o poema dedicado a Santa Ifigênia. Composto de
sete estrofes com quatro versos brancos, esse poema tem o foco narrativo centrado na
figura de um narrador onisciente.
97 Ibidem, p. 314. 98 MEIRELES, 1989, p. 21.
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Sobre a escolha do título desse poema, “Vira-e-sai”, Francis Úteza, com base nos
estudos desenvolvidos por Lúcia Machado de Almeida, registra que Cecília Meireles,
[...] integrava a outro contexto a lenda dos vira-saias, os bandidos que atacavam as caravanas transportando o outro destino à Coroa portuguesa — e cuja memória se perpetua até hoje em Ouro Preto através do nome de vira-saia sempre utilizado para identificar a ladeira de Santa Ifigênia, que leva ao santuário da virgem do Rosário dos Pretos. Informando por um cúmplice que era pessoa de confiança dos portugueses sobre o caminho que as caravanas iriam tomar, Antonio Alves respeitável negociante de Vila Rica orientava a imagem da virgem instalada no oratório do Alto da Cruz para certo lado: a direção que estivesse ligeiramente virada à imagem significa o caminho que a caravana iria tomar no dia seguinte. Os cúmplices de Antônio podiam então aguardar a passagem do ouro no lugar mais apropriado para roubá-lo. Desse estratagema teria vindo o apelido de Vira e Saia, transformado por corruptela em Vira e Saia.99
Dessa forma, Cecília Meireles se apropria de uma outra história para escrever um novo
texto sobre Santa Ifigênia, utilizando o espaço geográfico e cultural para prolongar a
saga de Chico Rei.
Nesse poema, Santa Ifigênia, protetora dos negros, tem o seu nome evocado, de forma
explícita, em seis estrofes, o que enfatiza a importância de sua evocação pelo uso da
repetição. Na primeira estrofe do poema, o eu enunciador evoca a personagem para
descer pelas encostas da mina do Chico Rei, com o seu poder espiritual, e trabalhar com
os negros mineradores:
Santa Ifigênia, princesa núbia, desce as encostas, vem trabalhar, por entre as pedras, por entre as águas, com seu poder sobrenatural. (p. 64)
Na segunda estrofe, o eu enunciador pede à Santa que levante o farol para encontrar a
mina de Chico Rei. A antítese, claro e escuro, recorrente nos versos, é muito expressiva,
uma vez que permite perceber a rede de significados em torno de uma entidade
espiritual que é negra e que, dentro de uma mina escura, propriedade de um líder negro,
quase não vê os negros que lá trabalham:
Santa Ifigênia levanta o facho, procura a mina do Chico-Rei: negros tão dentro da serra negra que a Santa negra quase os não vê. (p. 64)
99 ÚTEZA in: MELLO, 2002, p. 46.
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É importante verificar que o vocábulo “quase”, utilizado no último verso dessa estrofe,
confirma que, apesar da escuridão abissal da serra negra, Santa Ifigênia, a Santa negra,
não foi impedida de ver os negros que também por ela trabalham. Esta assertiva pode
ser explicada por meio dos argumentos de Úteza que, corroborando com Vasconcelos e
como já nos referimos anteriormente, registra que, ao entrar no Santuário de Santa
Ifigênia, “as mulheres negras lavavam na pia os cabelos impregnados de ouro em pó
que ficavam assim como oferenda.”100
Na terceira estrofe do poema, o eu enunciador descreve o pensamento dos homens que
estavam sempre voltados para Santa Ifigênia. Podemos afirmar que Ela ocupava um
lugar especial na memória dos escravos mineradores, uma vez que, enquanto sua
protetora, merecia todas as homenagens possíveis. Assim, a confecção dos ornamentos
para as festas de coroação do Rei do Congo tinha um ideal metafísico que integrava as
comunidades negras. Esse ideal metafísico que ocorre na congada propriamente dita,
conforme expõe Edimilson de Almeida Pereira, tem a função de transfigurar o corpo em
busca do etéreo, do vago, da libertação da prisão material para o mundo idealizado,
possível nas manifestações artísticas.
Nessa estrofe, o eu enunciador, de forma mais contundente, descreve o sofrimento dos
homens trabalhadores por meio do emprego do vocativo no primeiro verso. Dessa
maneira, fica evidente que o ouro, explorado na mina de Chico Rei, também vai
favorecer a Santa, confirmando a participação dos negros na construção da igreja:
Ai destes homens, princesa núbia, rompendo as brenhas, pensando em vós! Que as vossas jóias, que as vossas flores aqui se ganham com ferro e suor! (p. 64)
Na quarta estrofe, Santa Ifigênia é chamada a pisar na mina de Chico Rei, pois lá as
riquezas, em abundância, prender-se-ão nas vestes Dela. Aqui, consideramos
significativo verificar a elaboração das metáforas, relacionando elementos da vegetação
– “folhagens” e “raízes” – com o precioso mineral:
Santa Ifigênia, princesa núbia, pisa na mina do Chico-Rei.
100 ÚTEZA in: MELLO, 2002, p. 46.
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Folhagens de ouro, raízes de ouro nos seus vestidos se vêm prender. (p. 64)
O eu enunciador, numa posição rara, apresenta a riqueza proporcionada pela exploração
do ouro, de forma positiva, tendo em vista o processo de persuasão para convencer a
Santa a pisar na mina do Chico Rei.
Na quinta estrofe, o eu enunciador afirma que a proteção cotidiana de Santa Ifigênia se
dá por sua invisibilidade e relata a felicidade dos negros durante o resgate de sua
liberdade simbolizada em montanha de ouro em pó:
Santa Ifigênia fica invisível, entre os escravos, de sol a sol. Ouvem-se os negros cantar felizes. Toda a montanha faz-se ouro em pó. (p. 64)
Na penúltima estrofe, o eu enunciador afirma o poder oculto da Santa, que a deixa
imperceptível na extensa mina, mas que, ao passarem o tempo, os dias e as noites, Ela
passa também:
Ninguém descobre a princesa núbia, na vasta mina do Chico-Rei. Depois que passam o sol e a lua, Santa Ifigênia passa, também. (p. 64)
Na última estrofe do poema, Santa Ifigênia sobe a ladeira que faz parte do percurso
entre a mina de Chico Rei, plano baixo, e as Igrejas de Santa Ifigênia e Nossa Senhora
do Rosário do Alto da Cruz, plano mais elevado em Ouro Preto.
Devemos destacar que Cecília Meireles escreve no poema a subida da Santa Ifigênia,
sugerindo que ela de fato esteve na Mina de Chico Rei, que fica no Bairro do Antônio
Dias, situada nas imediações da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e do Largo de
Marília de Dirceu, que leva a uma ladeira íngreme, a ladeira de Santa Ifigênia, que
conduz à Igreja.
Nessa perspectiva, a imagem da ladeira no poema é dotada de significado. A ladeira é
uma espécie de entre-lugar que separa a Mina subterrânea, local de sofrimento, do
Santuário elevado, lugar da redenção. A ladeira é a travessia, o rito de passagem da
matéria para o plano espiritual.
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Santa Ifigênia, princesa núbia, sobe a ladeira quase a dançar, O ouro sacode dos pés, do manto, chama seus anjos, e vira-e-sai. (p. 65)
A festa, a congada, contagia a Santa que quase dança. A metáfora do ouro, que sacode
dos pés e do manto, sugere o próprio ritmo da dança ritual, a partir de um discurso
performático que dialoga com elementos de uma dança popular.
A Igreja de Santa Ifigênia do Alto da Cruz em Ouro Preto, ou Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos, tem sua história fundamentada a partir de Chico Rei, que,
segundo teorias, foi responsável por sua construção quando liderou uma comunidade
religiosa, a irmandade de Santa Ifigênia.
Úteza discorre sobre a alegoria representada nesse poema, explicitando que “A alegoria
é transparente: catalisador pelo qual opera a transmutação, a “Princesa Núbia” revela-se
como Princípio feminino da libertação dos negros. Os milagres de Santa Ifigênia
respondem aos do Princípio masculino em ação no Romance do Chico Rei.”101
Portanto, esse poema dedicado a Santa Ifigênia prolonga o texto anterior dedicado a
Chico Rei e confirma a questão do gênero já que, nas palavras de Úteza, a Santa tem um
“Princípio feminino da libertação dos negros” e apresenta o plano espiritual como forma
de contestação do sistema escravista. Santa Ifigênia é uma das possibilidades de
subversão da hegemonia do poder dos dominadores; inclusive, pelo fato de ela ser
também negra, podemos considerá-la como representante por excelência dos negros.
2.3 – CHICA DA SILVA: “A NEGRA QUE MANDA”
A partir do “Romance XIII ou do Contratador Fernandes”, o esposo de Chica da Silva,
até o “Romance XIX ou dos Maus Presságios”, verifica-se uma seqüência de sete
poemas dedicados ao romance da ex-escrava com o desembargador.
Segundo Júnia Ferreira Furtado, Chica da Silva nasceu entre 1731 e 1735, no Arraial de
Milho Verde, comunidade pertencente a Diamantina, e era filha de Maria da Costa,
101 ÚTEZA in: MELLO, 2002, p. 46.
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escrava negra, e de Antônio Caetano de Sá, homem branco.102 Ela, na condição de
escrava, primeiro foi propriedade de Domingos da Costa e depois escrava doméstica do
médico Manuel Pires Sardinha103, com quem tivera um filho, Simão Pires Sardinha. Em
1753, João Fernandes de Oliveira comprara de Manuel Pires Sardinha, por 800 mil réis,
a escrava Chica da Silva.104
Quando a ex-escrava adquirira a liberdade, passara a se chamar Francisca da Silva de
Oliveira. Casou-se informalmente, uma vez que a sociedade condenava a união de ex-
escravas com seus senhores, e, com o desembargador João Fernandes de Oliveira, tivera
treze filhos, Francisca de Paula Fernandes de Oliveira, João Fernandes de Oliveira
Grijó, Rita Quitéria Fernandes de Oliveira, Joaquim Fernandes de Oliveira, Antônio
Caetano de Sá, Ana Quitéria, Helena Fernandes de Oliveira, Luísa Fernandes de
Oliveira, Maria Fernandes de Oliveira, Quitéria Rita, Antônia Fernandes de Oliveira,
Mariana Fernandes de Oliveira e José Agostinho. Segundo Joaquim Felício dos Santos,
Chica da Silva foi uma mulher notável e “sua vontade era cegamente obedecida, seus
mais leves ou frívolos caprichos prontamente satisfeitos”105 pelo amado.
O primeiro romance da história de Chica da Silva é o “Romance XIII ou do Contratador
de Diamantes”. Esse poema é dividido em doze estrofes de doze versos cada. O foco
narrativo é em terceira pessoa, mas muitas vezes o narrador concede voz às
personagens.
Nesse romance, o eu enunciador descreve a chegada ao Serro do Frio, na época, distrito
do Tejuco, atual Diamantina, do Conde de Valadares, que adquire nos poemas o estatuto
de anti-herói, tendo em vista que recebera ordens de perseguir o desembargador João
Fernandes de Oliveira por causa da considerável riqueza acumulada pela exploração de
diamantes. Assim, na primeira estrofe, o narrador informa a chegada do Conde de
Valadares, definindo quem ele é e que objetivo pretende atingir no Serro do Frio:
Eis que chega ao Serro Frio, à terra dos diamantes, o Conde de Valadares, fidalgo de nome e sangue, José Luís de Meneses
102 FURTADO, 2006, p. 47. 103 Ibidem, p. 56. 104 Ibidem, p. 103. 105 SANTOS, 1976, p. 123.
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de Castelo Branco e Abranches. Ordens traz do grão Ministro de perseguir João Fernandes. Tudo pela febre e o medo do ouro — febre e medo que, antes, deceparam no ar a estrela dos contratadores Brantes. (p. 72)
Na segunda estrofe, o narrador informa ao leitor a dissimulação do Conde e expressa o
seu pensamento ao interpelar um informante para apontar a ele quem era o Contratador
Fernandes, que ficara podre de rico. Nessa estrofe, o narrador descreve as maneiras com
que o Conde cavalgava e seus desejos ocultos:
Chega o Conde mui cansado. Chega o Conde mui fingido. (Ai, quem possuíra a riqueza que borbulha no Distrito, — sem descer do seu cavalo... — sem meter os pés no rio... Quem, do dia para a noite, ficara podre de rico!) Lá vem cavalgando o Conde, com modo imponente e altivo. Lá vem cobrindo o Tejuco seu cobiçoso suspiro. (p. 72)
O conde, ao chegar, é bem recebido por João Fernandes de Oliveira, que se preocupa
com a tristeza do visitante. Afinal, o Contratador é o dono do lugar de riquezas várias. O
anfitrião recebe o Conde com toda honra possível e apresenta seu palácio de conforto.
Inclusive esse palácio tem a sua existência confirmada nos escritos de Santos, que
assegura que ali “nos dias festivos do Contratador se reuniam seus amigos e pessoas
importantes do Tijuco”106. Com tamanha hospitalidade, o anfitrião dispusera as suas
mulatas e negras para o visitante, com exceção de Chica da Silva.
— Conde, por que estais tão triste? Confessai-me a vossa pena. (Assim fala João Fernandes, dono da terra opulenta.) Aqui tendes meu palácio, os vinhos da minha mesa, os meus espelhos dourados, cama coberta de seda, o aroma da minha quinta, a minha capela acesa, e, fora a Chica da Silva, minhas mulatas e negras. (p. 72-73)
106 SANTOS, 1976, p. 124.
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Devemos ressaltar que, nessa terceira estrofe, Chica da Silva é mencionada pela
primeira vez no Romanceiro da Inconfidência. Essa primeira menção à ex-escrava de
Diamantina acontece de forma muito especial, pois, o seu amado demonstra por ela uma
clara fidelidade, uma vez que todas as mulatas e negras estavam à disposição do
visitante, o Conde de Valadares, mas a Chica da Silva não.
Na quarta parte do poema, o eu enunciador expressa, com as suas palavras, o discurso
monológico do Conde de Valadares diante do esposo de Chica da Silva. A ambição pela
riqueza mais uma vez é apresentada no poema, bem como o desejo do ouro e dos
diamantes. Na fala interior do anti-herói, as relações estabelecidas entre os nobres do
Reino e o povo da colônia ficam igualmente em evidência:
Poderoso e hospitaleiro, assim João Fernandes fala. Suspira o Conde enganoso. Já vos digo o que pensava:
"Deste Tejuco não volto sem ter metade das lavras, metade das lavras de ouro, mais outro tanto das catas; sem meu cofre de diamantes, todos estrelas sem jaça, ⎯ que para os nobres do Reino é que este povo trabalha!” (p. 73)
Na quinta estrofe do poema, João Fernandes continua tratando com dignidade o seu
amigo, apresentando a ele as suas riquezas, inclusive o seu navio que mandara construir
para Chica da Silva. Se o Burgalhau, a primeira rua do Tejuco não fosse atrativa para o
Conde, o anfitrião poderia conduzi-lo por outro caminho. Nessa estrofe, o imponente
esposo da ex-escrava também demonstrava, com suas ações, a força que o homem
exerce sobre a natureza ao poder “mudar o curso dos rios”, transpor as rochas e
abismos:
Continuava João Fernandes, tratando-o em termos de amigo: — Vinde ver minhas cascatas, minhas conchas, meu navio! Se o Burgalhau vos desgosta, cortá-lo-ei deste caminho, — pois damos ordens à terra, mudamos o curso aos rios, atravessamos as rochas, saltamos sobre os abismos,
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e, na vida que levamos, só temos certo — o perigo. (p. 73-74)
Na sexta e sétima estrofes, o Conde dissimulado e imóvel escutava o Contratador de
diamantes. Aqui, o eu enunciador expõe mais uma vez a idéia que o conde tinha de
prender João Fernandes caso ele se recusasse a prestar contas de sua riqueza. O
contratador, inocente, se torna amigo do visitante e fala com ele sobre a Fortuna:
Escutava o Conde, imóvel, como quem traz seu segredo. Bem sabe as ordens escritas que existem, para prendê-lo, caso resista ao convite de ir prestar contas ao Reino. Escutava o Conde infido, calculando voz e jeito com que comover Fernandes, subjugando-o a seu desejo, arrancando-lhe ouro e pedras como qualquer bandoleiro.
De cotovelo na mesa, e, grave, inclinando a face, ao Contratador responde o astucioso Valadares: — Pelas provas que já tenho da vossa honrosa amizade, dir-vos-ei que muito sofro a longura desta viagem. Com as inconstâncias do tempo, minha casa se debate: que a Fortuna raramente favorece os que mais valem! (p. 74)
Na oitava estrofe, o Contratador Fernandes prolonga o seu discurso dobre a Fortuna e
afirma que ela é sempre cega e modifica o Fado, o destino dos homens. Assim, nesse
discurso, é possível verificar a presença de um dialogismo textual com o Canto VII, de
A Divina Comédia, de Dante Alighieri, em que o eu lírico daquela obra descreve a
Fortuna: “Ela provê, ajuíza e rege em seu domínio, como sobre ela mesma impera a
vontade divina. Sem jamais cessar, vai promovendo as suas mudanças, pois ser veloz é
o imperativo da Fortuna. É por isso que no mundo tanta sorte tão rapidamente muda.”107
A personagem João Fernandes, ao dizer que “A Fortuna (grafada em maiúsculas como
em A Divina Comédia) é sempre cega / e vária, a sorte dos homens”, confirma as
mudanças apresentadas por ela nos versos dantescos. A riqueza estabelece as 107 ALIGHIERI, 2000, p. 45.
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circunstâncias e as vontades. Aqui, pode-se assegurar que a personagem, de forma
inconsciente, antecipa o seu destino, que já está bem definido pelo Conde de Valadares.
Os próximos eventos poemáticos confirmarão a fala insuspeita do amante da Chica da
Silva.
Pensativo, João Fernandes, dizem que assim lhe responde: — A Fortuna é sempre cega, e vária, a sorte dos homens. Inda que aos da vossa raça nem deslustre nem desonre o Fado, com seus contrastes, quero segurar-vos, Conde, que em mim tendes um amigo, entre os vossos servidores. Alegrai, porém, os olhos, que alegrareis tudo, ao longe. (p. 74-75)
Na nona estrofe, apresentada a seguir, o Contratador convida o Conde de Valadares a
prestigiar o seu teatro, onde são representados os dramas de Metastásio. A exuberância
das representações teatrais é mais uma vez confirmada por Santos que, segundo suas
pesquisas, no palácio de João Fernandes e Chica da Silva “havia [...], à noite, bailes e
representações teatrais: representavam-se os Encantos de Medéia, O Anfitrião, Porfiar
amando, Xiquinha por amor de Deus, e outras peças conhecidas naquele tempo.”108
— Vinde esquecer a tristeza ao calor do meu teatro, onde representam vivos os dramas de Metastásio glórias e vícios do mundo em luminoso retrato. Vinde espairecer os sonhos, e distrair os cuidados. Nas palavras dos poetas reclinai vosso cansaço. Estes sítios tornam doce o coração mais amargo! (p. 75)
Apesar de utilizar todas as formas de sedução para convencer o Conde a ficar à vontade
e a abandonar a sua tristeza e cansaço, na décima estrofe, fica evidente, na fala do
narrador textual, que as palavras do Contratador foram vãs:
Mas em vão fala Fernandes palavras de tanto acerto. Sério permanece o Conde,
108 SANTOS, 1976, p. 124.
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carregando o sobrecenho. E quando, à mesa, mais tarde, com Fernandes toma assento, não se lhe ilumina o rosto com o claro cristal aceso dos finos vinhos copiosos. Que desejo, que tormento ensombra a luz de seus olhos entre os dourados espelhos? (p. 75)
Nas duas últimas estrofes do poema, que são expostas na seqüência, o narrador,
utilizando trocadilhos, cita os alimentos oferecidos ao Conde e uma vasilha funda, a
terrina, folheada a ouro, objeto pelo qual o Conde demonstra interesse e ânimo. Assim,
o narrador, na última estrofe, retoma o contexto inicial do Romanceiro da Inconfidência
ao recuperar no texto as reflexões feitas sobre a ambição do ouro explorado nas florestas
espessas e nas margens dos rios. Pelo ouro todos labutam, pobres e ricos, e por ele o
mundo é modificado. Observa-se aqui mais uma vez a relação com a Fortuna,
apresentada em A Divina Comédia. As cartas, os alvarás, os decretos e os delitos nos
últimos versos antecipam a expulsão do esposo de Chica da Silva, do Tejuco, por causa
de sua riqueza acumulada, e a condenação futura dos inconfidentes.
Mas, depois de fruta e doce, mas, depois de doce e fruta, colocam diante do Conde uma terrina ampla e funda, para que os dedos distraia de saudades e de angústias... Agora, o jovem fidalgo descerra a máscara astuta: entre suspiro e sorriso, toma nas mãos e calcula os folhelhos de ouro, e acalma a fingida desventura. (Ai, ouro negro das brenhas, ai, ouro negro dos rios... Por ti trabalham os pobres, Por ti padecem os ricos. Por ti, mais por essas pedras que, com seu límpido brilho, mudam a face do mundo, tornam os reis intranqüilos! Em largas mesas solenes, vão redigindo os ministros cartas, alvarás, decretos, e fabricando delitos.) (p. 76)
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O “Romance XIV ou da Chica da Silva” é o mais representativo dos poemas sobre a
personagem em análise, uma vez que essa composição sintetiza a história da soberana
do Tejuco, sobretudo no aspecto positivo, inspirada por Cecília Meireles que, afinal,
recorreu como fonte de sua pesquisa, sobretudo no aspecto positivo, às Memórias do
Distrito Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos.109
Esse romance dedicado a Chica da Silva é composto por um total de vinte e duas
estrofes, sendo quatorze quadras e oito tercetos. As quadras são intercaladas, de duas em
duas, por um terceto, de cuja enunciação o narrador participa, orientando e esclarecendo
o leitor sobre o cenário e as características da protagonista.
Nas três primeiras estrofes, explicitadas a seguir, o eu enunciador apresenta o local onde
a história será descrita. A personagem é estilizada, inicialmente, em um andor enfeitado,
como se fosse uma santa, em sua varanda, no sentido metafórico que a leitura permite.
(Isso foi lá para os lados do Tejuco, onde os diamantes transbordavam do cascalho.).
Que andor se atavia naquela varanda? É a Chica da Silva: é a Chica-que-manda! Cara cor da noite olhos cor de estrela. Vem gente de longe para conhecê-la. (p. 77)
No próximo terceto, que apresentaremos a seguir, o eu enunciador descreve as
características físicas de Chica da Silva, que, de acordo com as informações de Santos,
“trazia a cabeça rapada e coberta com uma cabeleira anelada em cachos pendentes,
como então se usava.”110
A análise dos próximos versos permite concluir que Cecília Meireles, ao escrever sobre
Chica da Silva, teve como referência os escritos de Joaquim Felício dos Santos,
conforme mencionado. Mas a poeta subverte o texto utilizado e abstrai dele as
características positivas da ex-escrava, pois, se, para Santos, Chica da Silva “não
possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim não 109 FURTADO, 2006, p. 279. 110 SANTOS, 1976, p. 123.
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possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão”111, Meireles relativiza
esse discurso, colocando em dúvida essa afirmação com o verso: “e até dizem que era
feia”.
(Por baixo da cabeleira, tinha a cabeça rapada e até dizem que era feia.)
Vestida de tisso, de raso e de holanda — é a Chica da Silva: é a Chica-que-manda! Escravas, mordomos seguem, como um rio, a dona do dono do Serro do Frio. (p. 77)
Nos dois quartetos supramencionados, o narrador descreve as vestimentas da Chica da
Silva. Júnia Furtado confirma que ela “ostentava um vestuário rico e colorido.”112 A
informação acerca das doze negras que aparecem servindo-a, no próximo terceto, é
confirmada por Santos:
Dominadora no Tijuco, com a influência e poder do amante fazia alarde de um luxo e grandeza, que deslumbravam as famílias mais ricas e importantes; quando por exemplo ia às igrejas — e então era aí que se alardeavam grandezas — coberta de brilhantes e com uma magnificência real, acompanhavam-na doze mulatas esplêndidamente trajadas: o lugar mais distinto no templo era-lhe reservado.113
Assim, o narrador descreve a ex-escrava como o centro de um relógio, devido ao fato de
que as doze escravas poderiam ser comparadas às dozes horas114. Imponente, a nossa
personagem representava não somente o centro, mas o sol no meio do dia. Mais uma
vez, se verifica a importância da metáfora utilizada, pois a imagem construída de Chica
da Silva é de uma mulher elegante, altiva, uma rainha do Tejuco, que era acompanhada
por escravas e mordomos que a seguiam “como um rio”. Afinal, ela era “a negra que
manda”, comparada com o sol, no centro do sistema.
111 Ibidem, p. 124. 112 FURTADO, 2006, p. 139. 113 SANTOS, 1976, p. 123. 114 Por outro lado e seguindo a sugestão do professor Erisvaldo Pereira dos Santos, realizada durante a arguição na banca examinadora dessa dissertação, podemos considerar que a presença das dozes mulheres que acompanham a Chica da Silva estabelece uma relação analógica com os doze ministros de Xangô, no reino de Oyó, do povo Iorubá, na atual Nigéria.
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As relações de Chica da Silva com seus escravos são muito significativas, como
podemos observar nas palavras de Furtado ao confirmar que “Chica permitiu que seus
escravos recebessem todos os sacramentos cristãos, como o batismo, o casamento, a
extrema-unção, além de enterro em solo sagrado e participação nas irmandades locais
de negros e mulatos.”115
(Doze negras em redor, — como as horas, nos relógios. Ela, no meio, era o sol!)
Um rio que, altiva, dirige e comanda a Chica da Silva, a Chica-que-manda. Esplendem as pedras por todos os lados: são flechas em selvas de leões marchetados. (p. 78)
Nas próximas estrofes, o narrador confirma a preciosa pedra, o diamante sem defeito
que Chica da Silva traz. Era uma festa de diamantes e várias pessoas se curvaram diante
da ex-escrava:
(Diamantes eram, sem jaça, por mais que muitos quisessem dizer que eram pedras falsas.)
Mil luzeiros chispam, à flexão mais branda da Chica da Silva da Chica-que-manda! E curvam-se, humildes, fidalgos farfantes, à luz dessa incrível festa de diamantes. (p. 78)
No próximo terceto, a partir da expressão “marotinhos”, verifica-se o desprezo de Chica
da Silva pelos homens que prestavam serviços diretamente para o Reino. De certa
forma, representa o contraste entre o elemento colonizado e o colonizador, em suas
inúmeras facetas. Nas próximas estrofes, o narrador descreve a noite a girar como uma
“dourada ciranda”, em uma comparação com a Chica-que-manda:
(Olhava para os reinóis
115 FURTADO, 2006, p. 145.
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e chamava-os "marotinhos"! Quem viu desprezo maior?)
Gira a noite, gira, dourada ciranda da Chica da Silva, da Chica-que-manda! E em tanque de assombro veleja o navio da dona do dono do Serro do Frio. (p. 78-79)
Pelo fato de Chica da Silva não conhecer o mar, João Fernandes mandara construir um
tanque e um navio para que a amada pudesse ter uma percepção de como era o oceano.
Assim, Santos tem mais uma vez o seu texto confirmado na obra de Cecília Meireles.
Diz o pesquisador:
Francisca da Silva, que nunca tinha saído do Tijuco, por um capricho feminino, quis ter idéia de um navio; João Fernandes apressou-se em satisfazê-la: mandou abrir um vasto tanque e construir um navio em miniatura, que podia conter oito a dez pessoas, com velas, mastros, cabos e todos os mais aparelhos das grandes embarcações.116
Ao descrever a representação de uma paisagem marítima, quando o barco soçobrando
nas águas do tanque, o eu enunciador compara a personagem com a Vênus, a deusa do
amor, que nasce nas águas oceânicas. Chica é a Vênus altiva e contente, do Rio
Jequitinhonha.
(Dez homens o tripulavam, para que a negra entendesse como andam barcos nas águas.).
Aonde o leva a brisa sobre a vela panda? — À Chica da Silva: à Chica-que-manda. A Vênus que afaga, soberba e risonha as luzentes vagas do Jequitinhonha. (p. 79)
Nas últimas estrofes do poema, num grand finale, o narrador textual compara a
exuberância de Chica da Silva em seus diamantes com a Rainha de Sabá. Afirma que
116 SANTOS, 1976, p. 124.
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nem Santa Ifigênia, a padroeira dos negros, envolta nas festas da congada, poderia se
destacar mais que a Chica na sua fortuna.
É instigante o emprego do vocábulo “branca” no diminutivo, visto que a redução da
palavra não tinha a intenção de estabelecer relações afetivas no poema, mas, pelo
contrário, significava desprezo. Desprezo por outras mulheres brancas que
representavam a Europa no aspecto dominante. As branquinhas eram uma provocação
aos padrões hegemônicos de beleza que não permitiam e ainda não permitem, salvo
raras exceções, que os negros sejam retratados em suas características de negritude.
Mas, não se pode afirmar que o uso desse vocábulo seria uma forma de apresentar uma
espécie de preconceito às avessas, pelo contrário, seria um recurso estilístico para inserir
outro padrão de beleza até então não legitimado.
(À Rainha de Sabá, num vinhedo de diamantes poder-se-ia comparar.)
Nem Santa Ifigênia, toda em festa acesa, brilha mais que a negra, na sua riqueza. Contemplai, branquinhas, na sua varanda, a Chica da Silva, a Chica-que-manda!
(Coisa igual nunca se viu. Dom João Quinto, rei famoso, não teve mulher assim!) (p. 79)
Sobre essas estrofes que encerram o “Romance XIV ou da Chica da Silva”, Úteza
confirma que:
Vênus negra, comparada à Rainha de Sabá e a Santa Ifigênia, Chica anima um carnaval que subverte os valores do sistema colonial. Assim, exercendo o poder por delegação de seu amante, Chica encarnaria a revanche dos oprimidos, mas uma revanche cujo caráter provisório é enunciado já no primeiro terceto que abre o romance à maneira dos contos da carochinha: “(Isso foi lá para os lados/ do Tejuco, onde os diamantes/ transbordavam no cascalho)”.117
Portanto, Chica da Silva é representada nos poemas de forma significativa, uma vez que
a “negra que manda” está inscrita no contexto das poucas mulheres que conseguiram o
117 ÚTEZA. In: MELLO, 2002, p. 47-48.
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seu reconhecimento ao longo da história brasileira. Com efeito, as condições sociais do
país até hoje implicam, consideravelmente, nas questões de etnicidade e de gênero e,
Cecília Meireles, na década de 40, ao escrever sobre um dos grandes episódios da
história nacional, incluiu positivamente em seu texto uma mulher que demonstrou
“superioridade psicológica frente à ingenuidade de seu amante”.118
Chica da Silva representou também a mobilização dos negros, de forma peculiar no
Arraial do Tejuco, atual Diamantina. Representou não uma mobilização para depor as
armas do inimigo colonizador, mas, de forma inteligente, perceber, com uma leitura
atenta, o discurso opressor apresentado não na fala direta do Conde Valadares (nosso
próximo objeto de análise neste estudo), mas em seus gestos, nos olhares, nas intenções
implícitas de intimar o Desembargador Fernandes. Chica da Silva, como Chico Rei, ao
lado de Santa Ifigênia de Ouro Preto, simbolizou o papel ativo de diversas vozes negras
da história, o que será também confirmado com as análises dos próximos poemas.
A partir da leitura do “Romance XV ou das cismas da Chica da Silva”, pode-se verificar
que o eu enunciador caracteriza a personagem como uma mulher ativa e competente,
que participa dos negócios do marido.
O referido poema é constituído por seis estrofes de doze versos, com um narrador em
terceira pessoa. Na primeira estrofe, é apresentada a Chica da Silva insone em cama
dourada a analisar, cuidadosamente, o discurso do Conde. A desconfiança da mulher, ao
perceber o que estava implícito nas falas do visitante notável fez com que ela
aconselhasse o seu esposo a tomar cuidado com o “falso amigo”. Dessa forma, Chica
questiona junto ao seu amado o que de fato atraía o Conde de Valadares a um lugar tão
distante, o Tejuco, e quais seriam as ordens que ele realmente trazia. Assim, a Chica-
que-manda, do poema anterior, adquire nesse romance a personalidade de uma Chica
reflexiva e questionadora:
Na sua cama dourada, Chica da Silva não dorme. Pensa nas falas do Conde, pensa no ouro, e desta sorte aconselha a João Fernandes: — Hoje, todo o mundo corre, Senhor, atrás de riquezas: nem é doutro mal que sofre
118 Ibidem, p. 48.
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esse vosso falso amigo, esse Conde de má morte. Quem sabe o que o traz tão longe? Quais serão as suas ordens? (p. 80)
Assim, confirma-se nos versos mencionados o papel importante desempenhado por
Chica da Silva nos empreendimentos do seu esposo, o Contratador de diamantes. Chica
percebeu as reais intenções do interventor e João Fernandes responde às indagações da
mulher, de certa forma, tentando compreender que o Conde de Valadares estava
acometido por uma forte saudade da família e por ruínas financeiras. Portanto, João
Fernandes acredita que o conde foi estimulado pelo ouro e, se o estrangeiro era nobre,
não se podia dizer que Minas Gerais lhe negara socorro:
E o Contratador responde (imagino o que dizia): — O Conde de Valadares de mágoa e pesar definha, por ter a família ausente e a nobre Casa em ruínas. Aqueles folhelhos de ouro iluminaram-lhe a vista. Se é de pobreza que sofre, que custa, dar-lhe alegria? Não se há de dizer que a um nobre não deram socorro as Minas... (p. 80)
Na estrofe em análise, fica evidente que o eu enunciador interrompe a narrativa para
dialogar com o leitor, orientando-o para a leitura dos próximos diálogos das
personagens. O segundo verso “(imagino o que dizia)” exemplifica essa postura que, de
certa forma, além de confirmar a investigação das lendas e da história de Diamantina,
Cecília Meireles, utiliza em seu texto recursos da linguagem oral ao se remeter à
coletividade, o que também é confirmado no segundo verso da terceira estrofe, em uma
das falas de Chica da Silva “(assim, dizem que pensava)”.
Com efeito, o uso reiterado, nesse poema, do discurso direto, expressando a fala das
personagens, foi um importante recurso utilizado pela autora, uma vez que ela mescla o
dito popular com uma nova identidade, que se confirma e se impõe no contexto da
Inconfidência Mineira.
Na terceira estrofe dessas “Cismas da Chica”, a soberana do Tejuco denuncia a
exploração do colonizador ao enumerar as ações dos “marotos do reino” para com o
Brasil. É possível verificar que essa personagem do Tejuco apresenta um discurso
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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semelhante ao do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, que, em suas Cartas Chilenas,
protesta contra os desmandos de um governador português no Brasil. Dessa forma, a
personagem negra enfocada descreve a chegada dos forasteiros cuja finalidade é
recolher o ouro e o diamante dos vales profundos, das grutas e dos cascalhos — as
gupiaras.
Nessa perspectiva, o narrador também aponta o esbanjamento na corte e a morte nas
catas durante a extração dos preciosos metais. Aqui o substantivo simples “morte”
adquire importância capital pelo fato de ser grafado em maiúsculas, sugerindo a nova
significação dessa palavra, que passa a ser uma personagem que vitima os homens nas
valas, “desmoronando barrancos” e “engrossando as enxurradas”:
Responde a Chica da Silva (assim dizem que pensava): — Estes marotos do Reino só chegam por estas lavras para recolher o fruto das grotas e das gupiaras. Eles gastando na corte, e a Morte aqui pelas catas, desmoronando barrancos, engrossando as enxurradas... Não sei que tem este Conde: não gosto da sua cara! (p. 80-81)
Na quarta estrofe, o eu enunciador retoma a narrativa, discorrendo sobre a torrencidade
dos dias e o ar de mistério que o Conde de Valadares trazia. O Contratador Fernandes,
nos versos seguintes, mais uma vez, tem a personalidade de um homem bom e
hospitaleiro para com o interventor. Mas o narrador já confirma, no adeus ao seu lugar,
a antecipação da sua partida, o que de fato justifica a presença do Conde de Valadares
no Tejuco — levar o Desembargador e Contratador de diamantes, João Fernandes de
Oliveira, a prestar contas ao Reino Português acerca de sua demasiada riqueza:
E assim vão passando os dias. E o Conde de Valadares, que chegara tão sombrio, — pela liberalidade do Contratador Fernandes vai perdendo seus pesares. Em caçadas e passeios, galga serras, desce vales, manda lapidar diamantes por flamengo lapidário, e — ao ter a fortuna feita — adeus, formosos lugares! (p. 81)
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Chica da Silva, diferente de seu ingênuo amado, não se permitia enganar pela
dissimulação do Conde de Valadares. Ela, mulher inteligente, conseguia compreender
que, nas entrelinhas da fala do Conde, havia algo oculto que muito a instigava. Assim,
faz uma análise das relações femininas e masculinas, considerando que os homens,
durante o dia, apesar de olharem bem as coisas, não conseguem vê-las de fato, não são
capazes de retirar a sua essência, de compreendê-las e, somente as mulheres, dentro de
quatro paredes, num lugar fechado, oculto, sigiloso, seriam capazes de entender tudo:
E diz a Chica da Silva ao ricaço do Tejuco: — Eu neste Conde não creio; com seus modos não me iludo; detrás de suas palavras, anda algum sentido oculto. Os homens, à luz do dia, olham bem, mas não vêem muito: dentro de quatro paredes, as mulheres sabem tudo. Deus me perdoe, mas o Conde vem cá por outros assuntos. (p. 81-82)
Nos dois últimos versos dessa quinta estrofe, expostos na seqüência, o eu enunciador
apresenta uma fala coloquial no discurso de Chica da Silva que antecede a suspeita ao
Conde de Valadares. O pedido de perdão a Deus, além de confirmar a sua relação com o
plano espiritual, parece legitimar a afirmação de sua desconfiança sobre os interesses do
Conde.
Dessa forma, a fala de Chica da Silva é sustentada pelo narrador que elogia a
inteligência das mulheres. Diante da análise do comportamento do forasteiro, elaborada
por Chica da Silva, o seu amado escutava as suas palavras de uma simplicidade
tamanha, que se comparava com a inocência infantil. Chica se impunha pelo
convencimento:
Assim murmurava a Chica. E as mulheres não se enganam. João Fernandes escutava-a mais simples do que uma criança. Iam girando as bateias, ia crescendo a abundância, iam subindo as gupiaras: braço, almocafre, alavanca reviravam pela terra a sementeira de chamas
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para as futuras florestas de fogo que se levantam... (p. 82)
Na estrofe acima transcrita, mais uma vez é prolongado o significado do Romance
anterior ao ressaltar a inteligência, a altivez e a companhia sempre fiel de Chica da Silva
pelo seu amado, o Contratador de diamantes. Os oito versos que finalizam esse segundo
romance dedicado a Chica da Silva descrevem o cenário no qual se desenvolvia a
história e a relação dos homens com a natureza, quando esses giravam as bateias, as
gamelas de madeira, separando o ouro e os diamantes do cascalho e das areias. Assim, a
abundância da riqueza tinha lugar de destaque, e o narrador apresenta a imagem do
lugar, uma imagem projetada em partes do corpo, o braço — representando a força para
o trabalho, e o almocafre e a alavanca, os instrumentos que seriam manipulados pelos
homens.
O “Romance XVI ou da traição do conde” é formado por seis estrofes, sendo cinco de
doze versos e uma, a última, de dois dísticos. Este poema segue o mesmo tom narrativo
dos anteriores. Narrado em terceira pessoa, o romance versa sobre aquele que vem de
longe, a cavalo, entre pó, “montanhas de cascalho” e demais elementos que constituem
o cenário do Tejuco:
Já chega um próprio de longe: já chega um próprio a cavalo, por entre nuvens de poeira e montanhas de cascalho, e a negrada que se volve de almocafres levantados e a algazarra de protesto dos grandes cães alarmados sob o espanto dos tropeiros, e a alegria dos vassalos que esperam novas da Vila. Chega e apeia-se de um salto. (p. 83)
Assim, o Conde de Valadares chega ao palácio de João Fernandes e a ele engana. O
narrador, então, interrompe mais uma vez a enunciação para, no uso do discurso
indireto, questionar sobre as novidades que chegaram e o que de fato trazia aquele
homem, que andava pela sala, com estranha expressão facial:
À porta de João Fernandes, pára, em demanda do Conde. Sacode o chapéu e as botas, conta mentiras de longe, enquanto o cavalo bebe,
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na água, as nuvens do horizonte. Que novas serão chegadas? Que novas traz aquele homem? O Conde a andar pela sala, com um fundo sulco na fronte. Soam-lhe os passos nas tábuas como passadas de bronze. (p. 83)
Chica da Silva, servida por doze escravas, como confirmado nos versos do “Romance
XIV”, se preocupa com o que verdadeiramente trazia aquele homem. O narrador, nos
dez últimos versos da terceira estrofe, mais uma vez utiliza o discurso indireto para
reproduzir, entre aspas, a fala da Chica da Silva, que se apropria de uma interjeição para
expressar seus desejos de que as notícias de Vila Rica não fossem ruins. Chica, diante
de tamanha surpresa, dizia se sentir como se viva não fosse e, novamente, define o
Conde de Valadares como um “maroto do Reino”:
Mas, entre as doze mulatas que a servem, resmunga a Chica: “Oxalá não traga o próprio más novidades da Vila. Tenho o coração parado como se não fosse viva. Que este maroto, do Reino ao Tejuco, não viria, senão por algum segredo, por alguma fina intriga. Vamos a ver se minha alma fala verdade ou mentira.” (p. 84)
A partir da leitura dos últimos versos mencionados, podemos confirmar que Chica da
Silva acredita que haveria de fato um interesse pessoal do estranho em sair de Vila Rica
para chegar ao distante Tejuco. Apostava e acertava que havia uma “fina intriga”.
Então, queria que se confirmasse se estava certa ou errada sobre a sua suspeita.
Na próxima estrofe, o narrador enuncia novamente a figura do Conde de Valadares a
passear pela nobre casa do “ricaço do Tejuco”. Subitamente, aparece na narrativa a
condenação de João Fernandes por sua riqueza acumulada. O homem forte do Tejuco
questiona o porquê de seu degredo para Portugal, a fim de prestar contas ao Reino,
sendo que ele não se sentia recompensado, pois dera ouro e diamantes ao Conde. Aqui,
o eu enunciador apresenta a fala de João Fernandes a partir de um discurso direto e
sintetiza o seu descontentamento com a atitude daquele que julgava ser seu amigo:
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Na sala passeia o Conde, para trás e para diante. — Por que me levais, amigo? (Era a voz de João Fernandes.) Dei-vos o ouro que quisestes; ouro vos dei, mais diamantes, para a Casa dos Meneses de Castelo Branco e Abranches não soçobrar arruinada enquanto andáveis distante. Como me levais agora a prestar contas com os Grandes? (p. 84)
Na penúltima estrofe, o eu enunciador, fazendo uso do discurso direto, concede voz
final ao Conde de Valadares que, “mui fingido”, diz cumprir ordens do Reino
Português. O interventor confirma ser amigo do esposo de Chica da Silva, mas assegura
que era preferível arriscar ser leal à tarefa para a qual foi determinado. Diante disso,
João Fernandes recorda as advertências da sua amada, que suspeitava, firmemente, do
Conde de Valadares:
Fala o Conde de má morte: — Ordens são, que hoje recebo... Fala o Conde mui fingido: — Padece por vós meu zelo: de um lado, o dever de amigo, mas, de outro, a lealdade ao Reino... João Fernandes não responde: ouve e recorda em silêncio o que lhe dissera a Chica, em tom de pressentimento. Como as palavras se torcem, conforme o interesse e o tempo! (Como se fazem de honrados os Condes, de bolsos cheios!) (p. 84-85)
Dessa forma, o narrador, nos versos finais, discorre sobre a potencialidade das palavras
e o seu uso, a partir dos contextos e dos objetivos de quem as faz, a exemplo do Conde
de Valadares.
O “Romance XVII ou das lamentações do Tejuco” é constituído por quatro estrofes de
formato irregular, sendo a primeira formada por doze versos, a segunda por onze, a
terceira por nove e a última por quatro versos. Nesse romance, o foco narrativo
permanece em terceira pessoa como nos anteriores. O eu enunciador expressa o seu
sentimento de solidariedade para com o acontecido no Tejuco. Além da partida imposta
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pelo conde de Valadares ao Desembargador Fernandes, o narrador expõe, portanto, uma
voz coletiva às dores do e no Tejuco. Analisemos, dessa forma, a primeira estrofe do
poema:
Ai, que rios caudalosos, e que montanhas tão altas! Ai, que perdizes nos campos, e que rubras madrugadas! Ai, que rebanhos de negros, e que formosas mulatas! Ai, que chicotes tão duros, e que capelas douradas! Ai, que modos tão altivos, e que decisões tão falsas... Ai, que sonhos tão felizes... que vidas tão desgraçadas! (p. 86)
Percebemos que a natureza retratada nos versos é elevada à categoria de uma
personagem importante, pois nela há a síntese dos desejos e também da representação
dos prazeres e das belezas, manifesta pela voz que enuncia o texto, como muitas vezes
ocorrera no Arcadismo e no Romantismo, apesar de contextos distintos. Assim, a
natureza do Tejuco, descrita no poema, é idealizada. Os rios têm suas correntes
volumosas, as montanhas são imponentes e as “perdizes no campo” representam a fauna
brasileira em harmonia com o seu habitat. As madrugadas são vermelhas, antecipando a
aurora.
Os negros no Tejuco são comparados a ovelhas em conjunto, as mulatas são formosas,
mas duros são os chicotes, símbolo do castigo injusto, diante de “capelas douradas”. Há
modos arrogantes e decisões equivocadas. Os sonhos demasiadamente contentes se
opunham às trágicas vidas.
Na segunda estrofe dessas lamentações o eu enunciador confirma a saída imposta do
Contratador Fernandes do Distrito Diamantino para prestar contas à Corte Portuguesa.
A sua amada, Chica da Silva, entre as suas doze servidoras, ficava entregue à sorte:
E lá seguiu para a Corte o dono do Serro Frio. Com suas doze mucamas, ficava a Chica em suspiros. Grossas vagas tenebrosas nascem no humano destino! Uns, ali, nas rudes catas, a apodrecerem nos rios, — e outros, ao longe, com os lucros
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dessas minas de martírio. Ai, que o coração não mente! (p. 86)
Consideramos relevante destacar que, nos últimos cinco versos dessa estrofe, o narrador
denuncia a situação degradante pela qual vários mineradores eram submetidos no
trabalho nas catas, chegando a custar a própria vida, pois os corpos se desgastavam pela
força do frio, do esforço exigido, desde o quebrar as pedras e remexer as pesadas
bateias. Mais uma vez Cecília Meireles apresenta, em seu texto, um narrador que utiliza
em seu discurso, a comparação de classes e sujeitos antagônicos. Exemplificando,
verifica-se que o sofrimento dos trabalhadores do Tejuco, o lugar de enunciação, é que
sustentará o lucro dos portugueses ao longe, o lugar de poder contestado.
Na terceira estrofe, o Conde é amaldiçoado, porque o ouro cobiçado fez desumanas as
relações e trouxe a prisão. Assim, o narrador, utilizando-se da prolepse, antecipa a
imagem da condenação de Tiradentes que será confirmada em poemas bem posteriores.
Maldito o Conde, e maldito esse ouro que faz escravos, esse ouro que faz algemas, que levanta densos muros para as grades das cadeias, que arma nas praças as forcas, lavra as injustas sentenças, arrasta pelos caminhos vítimas que se esquartejam! (p. 86-87)
Na quarta e última estrofe, formada por quatro versos entre parênteses, a imagem de
Chica da Silva é retomada quando doze condolentes mucamas estão ao redor de sua
senhora. Aqui o poema se encerra, apresentando mais uma vez a Chica em seu
esplendor, apesar do pranto pela separação imposta ao marido:
(Doze mucamas em volta gemiam com surda pena. Pranto e diamantes caídos era tudo um mar de estrelas.) (p. 87)
O “Romance XVIII ou dos Velhos do Tejuco” é formado por nove estrofes, com rimas
alternadas, ABAB, nas cinco estrofes formadas por quadras, e ABA nas quatro estrofes
formadas por tercetos. O foco narrativo nesse poema está empregado na terceira pessoa,
que, além de descrever o cenário, conta as lamentações dos velhos, reproduz a fala e o
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pensamento das personagens anônimas no poema, por meio dos discursos direto e
indireto.
A primeira estrofe apresenta uma personagem anônima que projeta para o futuro a
lembrança da fama da Chica da Silva. A voz que antevê essa memória é remetida pela
coletividade, uma vez que o verbo está conjugado na primeira pessoa do plural:
Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: — Quem foi a Chica da Silva, que viveu neste lugar? (p. 88)
Na segunda estrofe, há uma reflexão do narrador sobre a fugacidade do tempo,
relacionando prazer e desgraça, num tom extremamente pessimista.
(Que tudo passa... O prazer é um intervalo na desgraça...) (p. 88)
Na terceira estrofe do poema, o narrador apresenta as condições em que o esposo da
Chica da Silva se encontrava ao ser deportado para Portugal. Aqui, a situação do
Contratador Fernandes é comparada à de um negro fugido:
Já vereis noutro navio, levado por homens grandes, igual a um negro fugido, o Contratador Fernandes. (p. 88)
Mas percebe-se que, ao negro fugido, poderia haver a esperança de se encontrar algum
quilombo, dentre tantos que eclodiram em Minas Gerais, para se refugiar. Ao
Contratador, só lhe restava aceitar ser levado por “homens grandes” para a Corte de
Lisboa, a fim de prestar contas de sua riqueza.
Na quarta estrofe, o narrador prolonga o discurso apresentado na segunda, na sexta e na
oitava estrofes, uma vez que todas essas são formadas por tercetos e têm o objetivo de
representar o pensamento do enunciador. Assim, se na segunda estrofe o narrador
apresentava reflexões sobre o tempo, na expressão “tudo passa”, aqui, “tudo acaba”
simboliza um discurso fatalista sobre a riqueza.
(Que tudo acaba!
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Quem diz que montanha de ouro não desaba?) (p. 88)
Na próxima quadra do poema, mais um dos elementos da natureza adquire importância
fundamental — o vento. Aquele que a tudo leva, desde uma coluna até a pessoa mais
especial, a Chica-que-manda:
Se o vento dá no Tejuco, leva coluna e varanda, leva a pompa, leva o luxo e mais a Chica-que-manda. (p. 88)
O tom de pessimismo, que aparece nas reflexões do narrador, ocorre de forma muito
contundente nesse poema, pois a morte é representada, metaforicamente, como
soberana. A morte, que mais cedo ou mais tarde, chegará para todos:
(Que tudo engana. Gente, só a morte, mesmo, é soberana!) (p. 88)
Na sétima estrofe, o eu enunciador assume a voz dos trabalhadores, que movem águas e
pedras, e diz que nada ficará, “nem o nome da caveira”, demonstrando a força
demolidora da natureza e das pessoas em busca dos tesouros:
Nós aqui movendo as águas e as pedras, desta maneira? — Pois não deixaremos nada: nem o nome da caveira. (p. 89)
Assim, a penúltima estrofe, constituída por um terceto, que evidencia o discurso de
sujeitos comunicantes, implícitos no enunciado “nossa vida”, retoma a metáfora da
morte que é vida:
(Que a nossa vida é a mesma coisa que a morte, — noutra medida...) (p. 89)
Apesar de tudo ser passageiro, apesar de a dor existir, apesar de a morte ser impetuosa e
ter seu significado confundido com a vida e vice-versa, homens e mulheres viviam em
loucuras e não havia febre como a do Serro do Frio. Assim encerra esse “Romance
XVIII ou dos velhos do Tejuco”:
Mas os homens e as mulheres vivem neste desvario...
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Não há febre como a febre que corta o Serro do Frio... (p. 89)
O último romance dedicado ao ciclo da Chica da Silva é intitulado “Romance XIX ou
dos maus presságios”. Esse poema, formalmente, foi dividido em quatro estrofes de sete
versos cada, com rimas alternadas. O foco narrativo, como na maioria dos poemas de
Meirelles aqui descritos, é em terceira pessoa.
Na primeira estofe, transcrita a seguir, o eu enunciador rememora um tempo e interpela
a um sujeito ausente por onde estará a exuberante Chica da Silva. Aqui, nesse último
poema, o narrador retoma a construção metafórica entre a esposa do contratador coberta
de brilhantes mais que a Santa Negra de Ouro Preto, como fizera no “Romance XIV ou
da Chica da Silva”.
Acabou-se aquele tempo do Contratador Fernandes. Onde estais, Chica da Silva, cravejada de brilhantes? Não tinha Santa Ifigênia, pedras tão bem lapidadas, por lapidários de Flandres... (p. 90)
É digno de nota que a Chica da Silva permanece sendo comparada com Santa Ifigênia
em sua ornamentação preciosa. Enquanto a Santa Negra não possuía tantas pedras bem
lapidadas, a esposa do Contratador de diamantes supera a Santa em seu esplendor.
Na segunda estrofe, o narrador reflete sobre a força do tempo que muda o destino dos
homens. Mas, nas relações de poder, os grandes sempre são os mandatários, inclusive
abusam dos instrumentos de exploração que são capazes de “roubar hoje como dantes”:
Sobre o tempo vem mais tempo. Mandam sempre os que são grandes: e é grandeza de ministros roubar hoje como dantes. Vão-se as minas nos navios... Pela terra despojada, ficam lágrimas e sangue. (p. 90)
Nos três últimos versos dessa estrofe, a metonímia utilizada na expressão “vão as minas
nos navios...” tem lugar de destaque, pois o ouro e o diamante foram retirados das minas
e, nessa espoliação da natureza, ficou para trás uma terra arrasada em “lágrimas e
sangue”.
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Na terceira estrofe, o narrador descreve além do Tejuco e apresenta reflexão sobre a
possibilidade de o caos incessante ter sido impedido. As donzelas “choram noivos
impossíveis”, pois esses não estavam ao seu alcance, o que demonstra a fragilidade do
amor diante da força impulsionada e incontrolável da riqueza.
Ai, quem se opusera ao tempo, se houvesse força bastante para impedir a desgraça que aumenta de instante a instante! Tristes donzelas sem dote choram noivos impossíveis, em sonhos fora do alcance. (p. 90)
Na última estrofe do poema, o tempo é retomado como tivera sido enfocado nos
primeiros versos das estrofes anteriores e a sua direção é inevitável. O tom é pessimista,
antevendo outras tragédias. O poder exercido pelos representantes da Coroa Portuguesa
no Tejuco, na ótica do narrador, aconteceu de forma mais abusiva que pela Rainha
Maria I, ao longe:
Mas é direção do tempo... E a vida, em severos lances, empobrece a quem trabalha e enriquece os arrogantes fidalgos e flibusteiros que reinam mais que a Rainha por estas minas distantes! (p. 90-91)
Assim, com esse “Romance XIX ou dos Maus Presságios”, encerra o ciclo dos sete
poemas dedicados a Chica da Silva ao lado de seu amante, o contratador João Fernandes
de Oliveira. Percebemos, a partir da leitura dos poemas aqui apresentados, o apogeu de
uma época muito significativa no Arraial do Tejuco. Um tempo que teve como fato
imprescindível o romance interracial em que a mulher negra obtivera posição de
destaque, não por sua sensualidade, mas por sua inteligência.
Portanto, utilizando-se da sabedoria, da beleza da “Vênus Negra” (grifos nossos) e do
esplendor dos diamantes é que Cecília Meireles ressignifica a questão de uma ex-
escrava que ascendeu socialmente. Chica da Silva é, possivelmente, um dos exemplos
dentre muitos outros que ocorreram com as mulheres negras na história do Brasil
colonial, mas que não tiveram o merecido reconhecimento.
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CAPÍTULO III
OUTRAS VOZES NEGRAS NO ROMANCEIRO DA
INCONFIDÊNCIA
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3.1 – O CANTAR DO NEGRO
Apresentamos, neste último capítulo, as personagens negras anônimas que fazem parte
do Romanceiro da Inconfidência. Aqui, distintamente dos romances que destacavam
heroicamente os feitos de Chico Rei e Chica da Silva e o plano espiritual representado
por Santa Ifigênia, Cecília Meireles escreve a situação à qual os escravos foram
submetidos. Portanto, torna-se significativo compreender como a autora representou os
escravos anônimos no contexto da Inconfidência Mineira, a importância de seus
trabalhos nas minas, no campo e na cidade; enfim, no espaço em que se desenvolveram
os episódios do drama de Tiradentes.
No “Romance VII ou do Negro nas Catas”, analisado nessa primeira seção, “O cantar
do negro”, Cecília Meireles contextualiza a situação do negro face à escravidão. Esse
poema foi dividido em seis estrofes, sendo as cinco primeiras formadas por seis versos,
com rimas alternadas e a última por um dístico que prolonga o discurso indireto,
iniciado na estrofe anterior, da personagem negra, pois a fala do narrador intercomunica
com a do sujeito narrado.
Segundo Maria José de Oliveira Santos, esse poema “transfigura a vida sofrida do negro
nas catas, lida acompanhada de esperança e saudade. A repetição que conduz o início de
cada estrofe reforça o lamento do negro que, ao trabalhar, canta. E esse canto sofrido
representa a busca de liberdade e menos sofrimento.”119
Dessa forma, apesar de a personagem negra ser retratada nas catas e, ainda, se levarmos
em consideração o seu anonimato, ela representa a voz da coletividade, pois os fatos que
antecedem sua história evidenciam as condições a que muitos negros africanos foram
submetidos no período escravista.
As cinco primeiras estrofes se iniciam com o mesmo verso: “Já se ouve cantar o negro”.
O uso do advérbio de tempo desperta a atenção no romance pelo fato de denotar uma
precipitação. Esta característica possibilita assegurar a esperança da liberdade de uma
voz anônima, nas catas, que aparece na primeira parte do Romanceiro e antecede o
119 SANTOS. In: MELLO, 2002, p. 101.
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próximo romance, o VIII, dedicado a Chico Rei. Também, sobre esse poema, Francis
Úteza ressalta que
[...] a repetição sistemática de “já se ouve cantar o negro” inscreve a totalidade do poema na espera da luz do alto prometido pela estrela d’alva em “raios de alegria” cuja dimensão pouco a pouco terá a ver com o simples sentimento humano. Assim, à esperança luminosa inscrita lá em cima corresponde cá embaixo o fogo de outra aurora (etimologicamente à hora áurea da realização) “ardendo” no anseio de descobrir cá embaixo o diamante arquétipo, reflexo do esplendor celeste, e motivando seres humanos literalmente apresentados em estado de desintegração física e psicológica.120
No processo de repetição do verso: “Já se ouve o cantar do negro”, Cecília Meireles,
utilizando aliterações e assonâncias, evidencia o contexto escravocrata, no qual o negro
se encontra a trabalho nas valas para a mineração, as catas.
Na primeira estrofe desse poema, apresentada a seguir, o eu enunciador afirma que,
apesar de o negro cantar, está longe o dia da liberdade para ele e questiona se seu canto
seria dedicado à estrela d’Alva, a metáfora símbolo da esperança, com sua iluminação
alegre, ou se seria também uma possibilidade de ele conseguir a sua libertação, expressa
na metáfora do diamante, que poderia ser encontrado em um frio amanhecer.
Já se ouve cantar o negro, Mas inda vem longe o dia. Será pela estrela d’ alva, Com seus raios de alegria? Será por algum diamante A arder, na aurora tão fria? (p. 60)
Na segunda estrofe, a música do negro é ouvida além do seu espaço, as catas, em uma
“agreste imensidão”. Os seus donos dormem e não é possível saber no que sonham.
Apesar de os proprietários do negro estarem dormindo não haveria a mesma
tranquilidade para ele, tendo em vista que a fuga seria difícil, pois os feitores estão
cumprindo o papel de vigiar, “olhos pregados no chão”:
Já se ouve cantar o negro, Pela agreste imensidão. Seus donos estão dormindo: Quem sabe o que sonharão! Mas os feitores espiam, De olhos pregados no chão. (p. 60)
120 ÚTEZA. In: MELLO, 2002, p. 43.
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O cantar do negro, na terceira estrofe, reporta aos tempos de liberdade na África. A
saudade do lugar de origem é marcada pelos elementos da natureza representados na
serra e nas águas, diferente de outras serras e águas que estavam servindo como o
espaço da mineração. A saudade das terras africanas é romantizada pelo forte
sentimento saudosista de uma serra. No terceiro verso dessa estrofe, a palavra “corpos”,
banhados em águas, forma uma antítese com a palavra “almas”, assim como “terra” e
“água” se completam.
Prosseguindo, o narrador, por meio do discurso indireto, mescla as suas reflexões com
as da personagem e fala de uma “perdida guerra”, aludindo aos conflitos étnicos que
marcaram (e ainda marcam) profundamente a África e outros continentes, que fizeram
com que, por meio da dominação de um povo pelo outro, se efetivassem diversas
formas de escravização:
Já se ouve o cantar do negro. Que saudade pela serra! Os corpos, naquelas águas, — as almas, por longe terra. Em cada vida de escravo, Que surda, perdida guerra! (p. 60)
Na quarta estrofe do poema, as estrelas sem mancha, sem falha, são a metáfora do
diamante que poderia livrar o negro da escravidão. Se os homens são capazes de
escravizar os seus próprios semelhantes, as pedras preciosas são melhores que eles,
porque elas poderão trazer a liberdade. Nessa perspectiva, a ambição humana por bens
materiais é questionada no poema, a partir da própria matéria, que, na metáfora
“estrelas/pedras” também pode ter dupla representação, sendo as estrelas o anseio de
redenção, a liberdade, e as pedras a escravidão, o trabalho opressor:
Já se ouve o cantar do negro. Por onde se encontrarão Essas estrelas sem jaça que livram da escravidão, pedras que, melhor que os homens, trazem luz ao coração? (p. 60)
Nas últimas estrofes do poema, transcritas a seguir, a natureza parece mais uma vez
comovida e solidária para com o sofrimento dos negros nas valas a retirar o ouro. A
metáfora da liberdade é representativa quando comparada a uma pedra volumosa.
Assim, o narrador concede voz à personagem e, por meio de um discurso indireto,
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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reclama o porquê de tanto sofrimento a troco de nada. A natureza, sempre personagem
nos poemas, tem seus elementos, terra e água, modificados para a exploração da
riqueza.
Aqui, nesse “cantar do negro”, a alvorada chora neblina, simbolizando, então, a
constante bruma de Ouro Preto. Nos últimos versos, que transcrevemos a seguir, a
autora retoma a preciosa pedra, um diamante metaforizado, cujas proporções não podem
ser pequenas porque a pedra tem de ser grandiosa para conquistar a liberdade. Nessa
parte, a voz do narrador se distancia para permitir que a personagem se enuncie,
apresentando, assim, o seu padecimento diante de tanto trabalho por não ter nada:
Já se ouve cantar o negro. Chora neblina, a alvorada. Pedra miúda não vale: Liberdade é pedra grada... (a terra toda mexida, A água toda revirada... Deus do céu, como é possível Penar tanto e não ter nada!) (p. 61)
Assim, encerra o poema dedicado a um negro nas catas, que, do seu plano terreno,
material, concreto, denuncia a sua situação de explorado ao Deus das alturas, que está
no plano elevado, celestial, redentor. Observemos, portanto, as conotações metafísicas
apontadas por Úteza nesse poema:
Agente e matéria de sua própria alquimia, na lama onde jazem as pedras preciosas, o negro canta a sua possível redenção pela Pedra da Liberdade. A este nível, o titulo do poema — Romance do Negro nas Catas — adquire conotações metafísicas. Aquele “negro” singular já não é apenas um coletivo com significativo étnico: ele remete para a Obra em Negro, primeira operação do Opus magnum alquímico, ao passo a que a palavra “catas”, além do termo técnico que designa os jazigos de diamante, revela seu étimo latino — captare: “prender, fixar”, ao que vem acrescentar-se o eco do prefixo grego kata, ou seja “para baixo”.121
Francis Úteza assegura então que o negro nas catas representa “um coletivo com
significado étnico”, certamente pelo fato de a experiência que ocorrera com ele ter-se
repetido com muitos outros negros. Dessa forma, verifica-se também, que o vocábulo
“catas”, escolhido como parte do título do poema, é expressivo enquanto significado de
121 ÚTEZA. In: MELLO, 2002, p. 44.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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“prender, fixar” no sentido de apoderar-se do diamante e, “para baixo”, no sentido de
superar o lugar de onde muito se sofria.
Assim, Cecília Meireles escreveu o primeiro poema romance dedicado a uma
personagem negra anônima no Romanceiro da Inconfidência. A personagem não
possuía nome, como a do próximo poema a ser analisado, o “Romance XXII ou do
Diamante Extraviado”, mas representava, por sua história, testemunhos coletivos.
3.2 – O NEGRO QUE DESCE DO SERRO
O “Romance XXII ou do Diamante Extraviado” é um poema dedicado a um negro
muito alto que desce do Serro — distrito de Diamantina —, lugar no qual houve muita
exploração mineral, e traz consigo um diamante contrabandeado para ser vendido, com
toda a tranquilidade, na capital Vila Rica.
O poema é constituído por oito estrofes, sendo que nas estrofes pares, formadas por
tercetos, há a intervenção da voz da narradora para explicar a sucessão de episódios.
Como no poema anterior, o “Romance do Negro nas Catas”, a autora utiliza-se da
repetição do primeiro verso: “um negro desceu do Serro”. A narradora, ao longo do
poema, descreve o negro, ressaltando que ele “era um negro alto bastante”, “tinha roupa
de encerrado”, “mais que os brancos arrogante” e estava “soberbamente montado”.
Nas duas primeiras estrofes, a personagem anônima é apresentada como um ser
imponente que levava “certo diamante” escondido e, mais uma vez, como no poema da
Chica da Silva, a cor do negro se interpenetra com a cor da noite. Uma noite que “leva
um luminoso planeta” estagnado em sua escuridão.
Um negro desceu do Serro. (E era um negro alto bastante.) Vinha escondido no negro Certo diamante.
(como a noite negra leva um luminoso planeta parado na sua treva.) (p.101)
Na terceira estrofe, Cecília Meireles prolonga a descrição do negro do Serro em diálogo
com as características apresentadas nos Autos da Devassa quando dois moradores de
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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Vila Rica teriam sido delatados por terem comprado diamantes contrabandeados. Esse
aspecto é corroborado por Lúcia Helena Sgaraglia Manna, em Pelas trilhas do
romanceiro da inconfidência, ao afirmar que “Os ditos suplicados se repartiram hoje,
pelas dez horas da manhã, uma partida de diamantes que compraram a um negro do
Serro, alto bastante, com uma vestimenta de encerado com forro de vaqueta azul [...]”122
A partir dessas informações, verificamos que o texto de Manna, que foi baseado nos
Autos da devassa, apresenta excertos que Cecília Meireles utilizou para descrever o
protagonista do poema como “alto bastante”, simbolizando imponência, trajava
“vestimenta de encerado com forro de vaqueta azul”, expressando elegância, por
exemplo. Além do mais, o negro que aparece nesse poema é alguém de personalidade
forte o bastante para desafiar o sistema se considerarmos que nem mesmo algum
soldado que pudesse detê-lo, não teria coragem suficiente para fazê-lo:
Um negro desceu do Serro. Tinha roupa de encerado, Com forro azul de vaqueta: E está provado Que o negro desceu do Serro Para vender o diamante. Sabe-se-lhe o peso e o preço, E que o viajante, Esse tal negro do Serro, pode ainda ser encontrado, se à vila mandam depressa algum soldado.
(Mas quem é que tem coragem De fazer parar o negro Nessa escandalosa viagem?) (p. 101)
Na quarta estrofe, o eu enunciador faz a segunda intervenção no texto para questionar se
alguém teria coragem de deter o negro numa viagem escandalosa de negócios ilegais.
Úteza, baseado nos estudos de Joaquim Felício dos Santos, aos quais Cecília Meirelles
também recorrera, sustenta a hipótese de que o negro que descia do Serro seria o
“mártir” Isidoro:
Ex-escravo condenado como galé no serviço de Extração, fugiu, tornando-se chefe de uma tropa de mais ou menos cinqüenta garimpeiros escravos. Como escravo de um minerador, conhecia os segredos da exploração. Mantinha contatos permanentes com pessoas importantes do Tejuco a quem vendia diamantes extraviados. Alto e corpulento, circulava com desenvoltura pelos arraiais e, apesar das
122 MANNA, 1985, p. 63.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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recompensas prometidas por sua captura, a população fingia não dar conta de sua presença. Preso e assassinado, após verdadeiro martírio pelo Governador Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt em junho de 1809, foi venerado como santo por muito tempo.123
Ainda no que diz respeito à personagem do “Diamante extraviado”, Úteza assegura que
“Retomando os dados da denúncia, o Romance centra-se na figura altiva do negro
contrabandista cuja atuação na Vila representa um desafio ao sistema escravocrata”124 e,
dessa forma, fica mais uma vez confirmado que Cecília Meireles baseou seus escritos
em uma outra história que merecia ser ressignificada no contexto da Inconfidência.
Com efeito, um escravo chamado Isidoro poderia ter sido de fato o negro que descia do
Serro, conforme discutido por Manna e Úteza. Esse último, ao considerar que os
quilombos mereciam considerações nas Minas oitocentistas, também registra que
“aquele negro ‘soberbo’ que desceu do Serro com um diamante de contrabando podia
muito bem ser uma figura emblemática daqueles grupos de foragidos (os quilombolas)
de quem a crônica pelo menos conservou a lembrança.”125
Na quinta estrofe, o eu enunciador descreve a reação do povo de Vila Rica com a
chegada do negro do diamante. Se todo o povoado tem conhecimento do extravio da
pedra preciosa, ninguém ousa deter o “infrator”. O negro deveria ser condenado, diz a
narradora, reproduzindo, com as suas palavras, a fala das personagens, mas, calados,
todos têm medo do negro que aparece mais arrogante que os brancos e vende a pedra
sossegadamente:
Um negro desceu do Serro. Toda a Vila, vigilante, Viu que brilhava no negro certo diamante. Se o negro o trouxe do Serro, devia de ser condenado. Mas todo o mundo tem medo, e está calado Que o negro desceu do Serro Mais que os brancos arrogante. Vende a pedra com sossego E passa adiante.
(E mais ninguém, lá na Vila, Por essa pedra extraviada, Pode ter vida tranqüila!) (p. 101-102)
123 UTEZA. In: MELLO, 2002, p. 51. 124 Ibidem. 125 Ibidem, p. 55.
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Pode-se verificar que o negro aqui representado subverte a ordem costumeiramente
imposta ao seu povo, e ninguém ousou interromper o seu objetivo, que foi o de vender o
diamante extraviado. Há um grand finale no poema, tanto que o relato será escrito por
invejosos:
Um negro desceu do Serro, soberbamente montado. Ninguém dorme, com desejo Alvoroçado...
(Com grandes penas de pato, Os mais invejosos fazem Seu minucioso relato...) (p. 102)
Portanto, podemos verificar que, nesse poema, Cecília Meireles representou o negro em
um contexto de ruptura, utilizando-se de estratégias subversivas, do próprio sistema que
o oprimia. Verifica-se também que, mais uma vez, a natureza tem papel fundamental em
sua obra, pois o diamante extraviado, primeiramente encontrado nas catas, era objeto de
desejo que mobilizava os sujeitos do texto, ou seja, o negro e a população do Serro,
Diamantina e Vila Rica. Afinal, o produto contrabandeado, extraído da terra, era o
resultado do trabalho não pago ao escravo, a quem a narradora transformara em membro
da mesma elite que o dominava.
3.3 – OUTROS PRETOS DE OURO PRETO
Essa última seção tem como título “Outros Pretos de Ouro Preto” devido à sonoridade
das palavras e por considerarmos que a maioria dos negros estava localizada na antiga
Vila Rica. Nestas páginas finais, apresentaremos vários exemplos retirados do
Romanceiro da Inconfidência, em que os negros foram situados nos poemas-romances
na condição de escravos — como uma massa dominada —. Aqui, apesar de eles terem
um papel secundário, são integrados no contexto da Inconfidência, sendo inevitável
esquecer daquele mais desumano de todos os regimes do planeta, a escravidão. É
significativo, portanto, certificar essas formas de representação, ainda que não sejam
exemplos claros de rupturas como em Chico Rei e Chica da Silva, por exemplo.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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No “Romance II ou do Ouro Incansável”, a autora apresenta as formas mais comuns de
exploração do ouro. Infinitas galerias vão-se abrindo entre as montanhas e, nos córregos
escuros, os escravos vão girando as bateias. Lá do esconderijo vem o ouro a trazer
poder, mas, apesar de esse metal ser claro, a tudo turva, inclusive a honra, o amor e o
pensamento. Dessa forma, a autora, denuncia a condição dos negros na quarta estrofe,
tecendo reflexões sobre as causas da morte em solo tão rico.
Pelos córregos definham Negros, a rodar bateias. Morre-se de febre e fome Sobre a riqueza da terra: Uns querem metais luzentes, Outros, a redradas pedras. (p. 47)
No “Romance IV ou da Donzela Assassinada”, é atribuída voz à personagem principal,
pois é ela quem conta a sua triste história. Essa protagonista é uma jovem que foi
assassinada em um dezembro, no período do natal pelo orgulho de seu pai diante da
riqueza trazida pelo ouro. A alma da moça/donzela vaga sozinha pelo quintal a pensar
em seu “triste corpo”. Os escravos aparecem nesse poema juntamente com os vizinhos
de seus familiares acompanhando, em solidariedade pela tragédia, o choro de seu
próprio pai.
Ouvi minha mãe aos gritos E meu pai a soluçar, Entre escravos e vizinhos, — e não soube nada mais. (p. 51)
No “Romance XXI ou das Idéias”, o amplo contexto da Inconfidência Mineira é
mencionado, perpassando da vastidão dos campos, dos diamantes, dos rios revirados, de
toda a sorte de pessoas, das igrejas, dos sonhos, das emboscadas, das mulheres, dos
banquetes, dos governantes até as “doces invenções da Arcádia”, os poemas escritos
pelos poetas, as verdades, as quimeras e as denúncias.
Consideramos relevante destacar que esse poema foi dividido em seis estrofes, todas
terminando com o verso “E as idéias”. Os negros e os mulatos aparecem de forma
explícita em duas estrofes, sendo que em uma delas verifica-se alusão clara a aspectos
culturais e sociais dessa etnia. Assim, nos versos iniciais do poema, os negros são o
primeiro povo a ser mencionado, seguido pelos índios e mulatos, certamente
confirmando os grupos étnicos responsáveis pelo trabalho braçal, o de revirar toda a
terra, explorando o ouro:
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A vastidão desses campos. A alta muralha das serras. As lavras inchadas de ouro. Os diamantes entre as pedras. Negros, índios e mulatos. Almocreves e gamelas, Os rios todos virados. Toda revirada a terra [...] (p. 97)
Na segunda estrofe do poema, o “batuque das mulatas”, demonstra orgulho e vaidade,
num momento de expectativas, já que as crianças recém-nascidas esperam o futuro:
[...] No batuque das mulatas, A prosápia degenera: Pelas portas dos fidalgos, Na lã das noites secretas, Meninos recém-nascidos Como mendigos esperam. [...] (p. 98)
A primeira menção ao negro na quarta estrofe explicita as relações familiares, muito
comuns durante o período colonial, da ama de leite, que cuidava dos brancos recém-
nascidos. Enquanto as mulheres abastadas ficavam em suas redes, as negras saudáveis
amamentavam as crianças brancas:
As esposas preguiçosas Na rede embalando as sestas. Negras de peitos robustos Que os claros meninos cevam. (p. 99)
A segunda menção aos negros se dá pelo contexto folclórico e religioso, os
candombeiros, que praticavam o candombe, uma dança agitada semelhante ao frevo e
acompanhada de ritmos da congada; contexto cultural na palavra unguentos, que reporta
aos valores medicinais transmitidos por um outro saber pela experiência e crença;
contexto social nas palavras senzalas, tronco e chibatas, prisão e instrumentos de castigo
o geográfico, pois, de vários povos africanos que se aportaram em terras mineiras, como
aparecem nos vocábulos: congos, angolas e benguelas. Então, tudo formava um “imenso
tumulto humano”, demonstrando a diversidade e o intenso movimento na região das
minas:
Candombeiros. Feiticeiros Ungüentos. Emplastos. Ervas Senzalas. Tronco. Chibata.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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Congos. Angolas. Benguelas. Ó imenso tumulto humano! E as idéias. (p. 99)
O “Romance XXV ou do Aviso Anônimo”, composto de dez estrofes, apresenta, no
início de cada estrofe (ao todo são dez), o verso “Veio uma carta de longe”. Essa carta é
um aviso anônimo que aterroriza toda a Vila de São João. O conteúdo da carta foi tão
bem divulgado que até os escravos “no fundo de suas brenhas” tomaram conhecimento
do fato, um “aviso de terror”, que prenunciava a derrota dos inconfidentes.
Veio uma carta de longe. — fortes ecos tem a dor! Que os escravos já souberam, No fundo de suas brenhas Desse aviso de terror. (p. 111)
No “Romance XXVII ou do Animoso Alferes”, Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes, personagem principal do Romanceiro da Inconfidência, tem a sua história
resumidamente contada em treze estrofes, sendo que a autora repete no último verso de
quase todas as estrofes, a expressão “o animoso Alferes”, enfatizando os feitos do herói.
Portanto, nesse poema de tom épico, as habilidades do “Mártir da Inconfidência” são
apresentadas desde o monte e a selva nos quais cavalgava até na sua sentença de morte.
O Tiradentes no poema é uma pessoa popular, “o povo o conhece”, e, no caminho da
sentença final, dá adeuses “a amigos, mulatos/cativos e chefes/coronéis, doutores/padres
e amolcreves”. Mas eis que “um negro demônio” fareja o sonho do herói e o persegue
em sombra. Imprescindível discutir a forma pejorativa que o vocábulo negro assumiu
nesta estrofe:
Adeuses e adeuses... Talvez não regresse. (Mas que voz estranha Para a frente o impele?) Cavalga nas nuvens. Por outros padece. Agarra-se ao vento... Nos ares se perde... (E um negro demônio Seus passos conhece: Fareja-lhe o sonho E em sombra persegue O audaz, o valente, O animoso alferes.) (p. 117)
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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O uso do vocábulo negro, nessa estrofe, é plenamente questionável, pois vem
acompanhado por um adjetivo pejorativo por excelência — “demônio” —,
principalmente nesse contexto cristão em que estamos inseridos. Mas, também, pode-se
verificar que a palavra “negro” não assume um qualificativo de raça, povo ou etnia, mas
de uma cor, uma cor das trevas, da escuridão.
No “Romance XXXVII ou de Maio de 1789”, constituído por treze estrofes, a autora
relata o momento da execução da prisão de Tiradentes e dos poetas inconfidentes
Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Devido à presença de forças policiais a
perseguir os inconfidentes, todos os moradores têm medo, um medo que não distingue
raça:
Fim de maio Andam as quatro comarcas Em grande desassossego: Vão soldados, vêm soldados; Tremem os brancos e os negros. Se já levaram Gonzaga E Alvarenga, mais Toledo! Se a Cláudio mandam recados Para que se esconda a tempo! (p. 142)
No “Romance XXXVIII ou do Embuçado”, a narradora relata a presença de alguém,
que portava uma mensagem a Tiradentes. Não se sabia se o que vinha embuçado era
homem ou mulher, porque usava chapéu e estava com o corpo todo encoberto. Havia
dúvida também se esse mensageiro enigmático era escravo. Dado o tom de mistério,
esse poema é fortemente marcado pela dúvida:
Fidalgo? Escravo? Quem era? De quem trazia o recado? Foi no quintal? Foi no muro? Mas de que lado? (p. 143)
O mascarado disse apenas ao Tiradentes “Fugi, fugi, que vem tropa,/que sereis
enforcado”, e retornou para o mistério. Quem teria essas informações para dizer ao
herói que viria a tropa e que ele seria punido? Quem era?
O “Romance XLV ou do Padre Rolim” é dedicado a um dos integrantes da
Inconfidência Mineira, que ficou preso por doze anos em um convento em Lisboa. O
Padre Rolim, muito provavelmente, tivera um envolvimento amoroso com uma das
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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filhas da Chica da Silva. Inclusive, Júnia Furtado, em sua obra Chica da Silva: o outro
lado do mito, aborda essa questão “Quitéria Rita (uma das filhas da Chica da Silva)
amancebou-se com o padre Rolim, com o qual teve cinco filhos”126. O amor do Padre
Rolim pela Quitéria Rita fica implícito no Romanceiro da Inconfidência no verso em
que diz que ele fora aprisionado, dentre tantos motivos, “por causa de uma mulata”:
Se me perguntam por que o prendem, Todos dão resposta vaga: Por ter arrombado a mesa De um juiz, em certa devassa; Por extravio de pedras; Por causa de uma mulata; Por causa de uma donzela; Por causa de uma mulher casada (p. 160)
No “Romance LX ou do Caminho da Forca”, em seu caminho para a morte, Tiradentes
é visto pelas donzelas, pelos meninos, pelos ciganos, pelas mulatas e pelos escravos,
dentre outras pessoas:
[...] E donas mais as donzelas Que nunca o tinham mirado, Os meninos e os ciganos, As mulatas e os escravos, Os cirurgiões e algebristas, Leprosos e encarangados, E aqueles que foram doentes E que ele havia curado — agora estão vendo ao longe, De longe escutando o passo Do Alferes que vai à forca [...] (p. 200)
No “Romance LXVII ou da África do Setecentos”, o continente negro aparece de uma
forma extremamente pejorativa. Assim, tem-se de discutir o porquê da escolha de uma
representação confirmada no verso “Ai, terras negras d’África”, que se repete nas cinco
estrofes do poema.
A leitura mais fiel aos nossos propósitos é de que se Alvarenga Peixoto e Tomás
Antônio Gonzaga foram punidos para o degredo na África, aquele lugar do castigo não
poderia ser representado de forma positiva, pois, nesse poema, o adjetivo “negras”, que
qualifica o substantivo “terras”, é eivado de um tom extremamente negativo,
126 FURTADO, 2003, p. 261.
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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considerando que a África estava sendo retratada de seu lado infeliz. Observa-se que o
qualificativo aqui não significa raça, nem etnia, nem povo, mas lugar, “terras”:
Ai, terras negras d’África Portos de desespero... — quem parte, já vai cativo; — quem chega, vem por desterro. (Ai, terras negras d’África! Ai, litoral dos medos...) (p. 221) Ai, terras negras d’África, Selva de pesadelos! Os presos lutam com os sonhos Como entre curvos espelhos... (Ai, terras negras d’África Noite grossa de enredos...) (p. 221)
No “Romance LXXXIV ou dos Cavalos da Inconfidência”, a autora fala de muitos
cavalos que viviam ao longo das grandes serras, das comarcas de Mariana, Serro do
Frio, Vila Rica e Rio das Mortes. A tudo esses cavalos transportavam e foram, assim,
testemunhas das coisas boas e ruins que aconteceram naqueles lugares. Nesse poema,
duas vezes são mencionados os escravos:
[...] Eles eram muitos cavalos Nas margens desses grandes rios Por onde os escravos cantavam Músicas cheias de suspiros. [...] (p. 273)
[...] Eles eram muitos cavalos, Entre sonhos e contrabandos, Alheios às paixões dos donos, Pousando os mesmos olhos mansos Nas grotas, repletas de escravos, nas igrejas, cheias de santos. (p. 274)
Portanto, nessa última seção, exemplificamos, por meio da leitura de excertos de onze
poemas-romances, a maneira como foram representados os negros a partir de outras
personagens principais do Romanceiro da Inconfidência. Verificamos que, ao apontar a
questão da escravidão negra, nesses poemas, apesar de a autora não denunciar
explicitamente e/ou combater as formas de opressão, o seu texto permitia (e, ainda hoje,
permite) compreender o papel que os negros escravizados tiveram naquele período da
história de Minas Gerais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Com a presente dissertação, buscamos discutir, sob a ótica da negritude e da alteridade,
as personagens negras no Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, numa
perspectiva inclusiva, sem pretender (e nem podíamos) totalizar o discurso – sobretudo
por se tratar de uma obra artística que, pela sua natureza, está aberta a outras leituras –,
mas, analisar, na medida do que nos foi possível, o significado daquelas representações
étnicas em um importante movimento da história de Minas.
Esses estudos possibilitaram-nos concluir que Cecília Meireles inseriu as personagens
afro-brasileiras em um novo evento de afirmação de identidade, ressignificando a
história de Chico Rei, na antiga Vila Rica; de Chica da Silva, no Tejuco, resgatando o
plano espiritual, em Santa Ifigênia, e denunciando as desigualdades históricas em vários
poemas que descreviam a situação dos escravos durante a Inconfidência Mineira.
A respeito da organização dos capítulos desse trabalho, optamos por reunir, em um
primeiro capítulo, as personagens Chico Rei, Santa Ifigênia e Chica da Silva —
principalmente por esses, de certa forma, serem personagens conhecidas — formando,
assim, uma sequência diversa da apresentada no Romanceiro da Inconfidência, mas sem
alterar, evidentemente, o conteúdo dos textos. Dessa forma, dois poemas, igualmente
expressivos, dedicados a um negro nas catas e a um negro que extravia um diamante,
bem como outras vozes anônimas do Romanceiro, foram reunidos em um segundo
capítulo.
As experiências adquiridas por Cecília Meireles — é importante destacarmos as
contribuições da crítica bibliográfica — nos escritos da “Página da Educação”, em que
defendia os assuntos relativos à democratização do ensino e aos negros, no importante
“Manifesto da Nova Educação ao Governo e ao Povo”, na fundação da primeira
biblioteca infantil do Rio de Janeiro; na conferência em Portugal intitulada Batuque,
Samba e Macumba, possibilitaram-na elaborar o Romanceiro da Inconfidência, como
um de seus escritos mais notáveis, principalmente ao empregar a memória coletiva
como reinterpretação do passado, dos negros, dos poetas inconfidentes e de outros
testemunhos que viveram na segunda metade do chamado Século das Luzes.
O conhecimento formulado pela autora acerca da cultura e da história das cidades
coloniais mineiras, Ouro Preto, Diamantina e São João del-Rei, fez com que o
Romanceiro da Inconfidência, sobretudo no que diz respeito à questão afro-brasileira,
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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provocasse uma ruptura com o padrão hegemônico do pensamento colonial que, não
raras vezes, excluiu os negros dos vários discursos de representação. Enfim, ocupando
o “lugar de enunciação”, Cecília Meireles apresentou os ex-escravos Chico Rei e Chica
da Silva como sujeitos que assumem, em seus diferentes discursos, posicionamentos
sobre as relações sociais da época.
Além de tudo, a autora fez justiça ao reconhecer a cultura do outro — aqui enfatizamos
a representação das identidades negras — quando retoma o cenário do Século XVIII em
seus poemas-romances e escreve sobre dois temas que os poetas árcades poderiam ter
escrito, já que viveram naquela época: o tema da escravidão como denúncia, O Negro
nas Catas, e a atuação de negros pós-escravidão, como Chico Rei e Chica da Silva, que
superaram a situação de oprimidos e se destacaram socialmente, exemplos do que,
muito provavelmente, ocorrera com outros afro-descendentes.
Nessa aurora de terceiro milênio, é necessário refletirmos acerca da História e da
Literatura do Brasil construídas por mais de cinco séculos. Na busca da compreensão da
identidade cultural, inevitavelmente, o nosso olhar voltará para o nosso passado, com
vistas a intervir no presente. Portanto, especialmente no nosso período colonial, não é
nenhuma novidade assegurarmos que os negros foram excluídos de vários lugares de
enunciação, desde a negação do reconhecimento da importância dos trabalhos mais
humildes desempenhados por eles, por exemplo, no corte do pau-brasil, nos canaviais e
nos engenhos de cana-de-açúcar, até nos trabalhos mais complexos, como no
desenvolvimento de técnicas de mineração, na construção das igrejas, dos casarões e
demais monumentos suntuosos que fazem parte do patrimônio histórico nacional.
Na perspectiva de um discurso que privilegia a questão do outro, o Romanceiro da
Inconfidência, voltado para o nosso período colonial, pode ser considerado uma obra
significativa no que se refere a novas práticas discursivas de inserção do negro, um
elemento que havia sido, por assim dizer, silenciado, em virtude de interesses
específicos das classes dominantes, aquelas produtoras e legitimadoras do que seria a
“boa” Literatura, como se essa pudesse, de fato, ter um qualificativo e, se isso fosse
possível, como seriam definidos os critérios para tal qualificação?
A Literatura, apesar de termos consciência de que não trata da “realidade”, pode refleti-
la. A título de exemplo, podemos fazer alusão a um fato histórico, como a Campanha de
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Canudos, registrada em os Sertões, de Euclides da Cunha; o romance São Bernardo, de
Graciliano Ramos, em que a Revolução de 30 é acontecimento importante na obra, e o
livro Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, escrito no contexto da
Segunda Grande Guerra. Assim, o Romanceiro da Inconfidência, além de reportar ao
período de autoritarismo no qual ele foi escrito, já que a sua autora se posicionava
claramente contrária às formas com que Getúlio Dorneles Vargas comandava o país,
aponta um discurso passado, num evento factual, pois a Inconfidência Mineira ocorrera
realmente, como a escravidão negra.
Cecília Meireles, na década de 1940, ao pisar em solo ouro-pretano, recontou em versos
a saga da personagem principal, o herói Tiradentes, que padeceu em martírio, e a
história dos poetas da Arcádia Ultramarina, em paralelo com as suas personagens e
musas. Uma das leituras possíveis dessa obra, escrita depois do acúmulo de tantas
experiências, tem um recorte que merece ser reconhecido: a forma positiva com que
descreve a situação de negros durante aquele período e a posição de destaque com que
muitos assumiram o discurso da coletividade. Ressalta-se que, em muitas vezes, as
personagens negras assumiram o discurso direto, outras vezes houve permuta dos
diálogos entre o sujeito narrador e a sujeito narrado, num importante jogo de fatos e
reflexões.
Nessa perspectiva, são notáveis, mais uma vez, os exemplos de Chica da Silva, que
representa muitas ex-escravas na condição de poderosas senhoras, cujas vontades eram
fielmente cumpridas pelos seus esposos. “A negra que manda”, nas palavras de Cecília
Meireles, foi retratada nos vários versos, a ela dedicados, como uma mulher ativa,
inteligente, que aconselha o marido sobre os perigos, as trapaças do poder e da fortuna.
Além de ser extremamente elegante, era acompanhada por “doze escravas como se elas
fossem as horas e ela o sol”. O sol negro de realidades possíveis.
Enfim, a Chica da Silva do Romanceiro é uma mulher idealizada, cuja beleza foi
comparada à da Rainha de Sabá, e a maneira como trajava era de um brilho mais intenso
que o da Santa Ifigênia em dias de festa. O seu elogio, feito pela poeta carioca, era tão
contundente, que nem um dos reis mais famosos de Portugal tivera mulher como ela.
Dessa forma, Cecília Meireles recuperou positivamente a imagem de Chica da Silva,
aquela mulher negada pelos árcades, esquecida no Romantismo e apresentada de forma
As personagens negras no Romanceiro da Inconfidência: uma escritura inclusiva | Adalgimar Gomes Gonçalves, 2009
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extremamente controversa na indústria cultural, ainda nos tempos da chamada pós-
modernidade, principalmente nos meios televisivos e cinematográficos, que, inclusive,
sucederam à publicação do Romanceiro da Inconfidência.
Chica da Silva, inserida na escritura com as características descritas por Cecília
Meireles, resgata a identidade da mulher negra do Século das Luzes, uma mulher que
confirma as possibilidades da retomada da dignidade humana e da subversão do
pensamento colonial.
Chico Rei, que representa uma liderança negra em Ouro Preto, teve papel importante no
Romanceiro da Inconfidência — mesmo se considerarmos que foi somente um poema a
ele dedicado — porque, além de superar a sua condição de escravo, recupera a sua
posição de líder africano. No poema a ele dedicado, a imagem do continente africano foi
também ressignificada como um lugar belo, extremamente agradável para se viver,
principalmente no encontro do homem com a natureza, mais uma metáfora que o
Arcadismo e o Romantismo poderiam ter afirmado. O Arcadismo, pelo desejo do fugere
urbem e procurar o Locus amoenus que reside na natureza. Esses campos procurados
não poderiam também ser os de África? O Romantismo, ao idealizar o índio como um
valoroso cavaleiro medieval, não poderia ter igualmente inserido a figura do negro,
representado em Chico Rei, nas Minas Gerais do Século XVIII?
Antonio Frederico de Castro Alves, o Poeta dos Escravos, é bem verdade, teve os seus
justos méritos de trazer o negro para a literatura de forma importante, uma vez que a sua
voz foi uma das que, mais firmes e contundentes, denunciaram a escravidão negra no
Brasil, mas não poderia ele, o poeta baiano, ter escrito, junto aos versos de “Saudação a
Palmares”, um poema a Chico Rei, considerando-o também como uma liderança
importante ao lado de Zumbi de Palmares? Não nos esqueçamos de que Castro Alves
escrevera a peça dramática “Gonzaga ou a Revolução de Minas” com espírito
libertador, classificando a Inconfidência Mineira como um prolongamento da Francesa.
Santa Ifigênia, a “Santa Negra” do Bairro Alto da Cruz de Ouro Preto, que tão bem
representou o plano espiritual ao lado de Nossa Senhora do Rosário nos rituais
performáticos da congada, não poderia ter sido retratada na religiosidade do
Romantismo e do Simbolismo? Registra-se que essa última escola literária teve,
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inclusive, como um de seus maiores representantes, o poeta ouro-pretano Alphonsus de
Guimarães, cuja obra poética foi marcadamente católica.
Esses questionamentos que fazemos não pretendem categorizar a Literatura, uma vez
que ela não pode estar comprometida inteiramente com os fatos históricos; isso seria
presumível e limitado, mas nos incomoda saber a respeito de tantos temas que por ela
foram tratados, desde suas primeiras manifestações até nos movimentos Modernista e
Pós-Modernista. Assim, não há dúvidas: a questão do negro não foi suficientemente
apresentada com justiça.
Portanto, eis diante de todos nós um dos grandes méritos da escritura de Cecília
Meireles ao escrever essa obra literária voltada para a História, não somente a de Minas,
mas a do Brasil e do mundo, já que a liberdade é um tema universal. Analisar as
personagens negras no Romanceiro da Inconfidência continuará sendo um exercício
importante, principalmente nos estudos de expressão da alteridade e da identidade,
como um dos diálogos permitidos nos estudos culturais.
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