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ASPECTOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NO DISCURSO DE FALANTES NATURAIS DA LÍNGUA ESPANHOLA
Vanessa Cruz Mantoani
Orientadora: Profa. Dra. Vanderci de Andrade Aguilera RESUMO Por ser o espanhol uma língua que teve sua origem próxima à do português, muitas vezes, brasileiros aprendizes de espanhol enfrentam dificuldades fonéticas, ou seja, acabam utilizando o registro do idioma materno em vez do idioma estrangeiro, como por exemplo, na pronúncia de [s], [z], [x], [r]. Assim, o objetivo de nosso trabalho é apresentar uma análise do discurso do português brasileiro utilizado por falantes naturais da língua espanhola que vivem em nosso país. Estabelecemos como foco a fonética e a fonologia para verificar as dificuldades na pronunciação de palavras que, aparentemente, têm os sons mais próximos aos de nossa língua materna, no caso dos registros fonéticos acima apresentados. Para tanto, constituímos um corpus com os dados de entrevistas realizadas por meio de perguntas diretas retiradas do questionário utilizado pelo Projeto Atas Linguístico do Brasil (ALiB, 2001) bem como narrações espontâneas por parte dos entrevistados. O estudo se fundamenta nos princípios da Dialetologia, da Sociolinguística e, em especial, da Linguística Contrastiva para abordar aspectos das duas línguas em questão. Palavras chave: Fonético-fonológico; discurso português; naturais da língua espanhola.
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1. Introdução
O presente trabalho tem como base os princípios teórico-
metodológicos da Dialetologia e da Sociolinguística no que diz respeito à
variabilidade da língua em seus aspectos diatópico, diastrático, diageracional e
diagenérico ou diassexual. Desta forma, apóia-se no instrumental de coleta de
dados do projeto Atlas Linguístico do Brasil cuja finalidade é descrever a
realidade linguística do Brasil referente à língua portuguesa para a elaboração
de um atlas linguístico nacional que, de acordo com a geolingüística observa e
identifica aspectos de variação diatópica, diagenérica e diageracional de vários
aspectos da língua: fonético-fonológico, semântico-lexical, morfossintático e
pragmático. Neste estudo, nos centraremos no primeiro deles, mais
especificamente, no que diz respeito à realização de [s], [z], [x] e [r].
Para tanto, apresentamos parte da história das duas línguas
abordadas: portuguesa e espanhola, além de um breve contraste entre os
alfabetos fonéticos de ambas as línguas como forma de ressaltar suas
divergências e convergências. Desse modo, pretendemos descrever e analisar
o discurso do português brasileiro por falantes naturais do idioma espanhol
verificando a ocorrência de tais pronúncias.
2. Um pouco de história
Para compreender melhor a relação entre as línguas espanhola
e portuguesa, neste tópico fazemos uma breve descrição da história de ambos
os idiomas, para sintetizar as origens que as conduzem. Atualmente são muitos
os escritos acerca dessa temática que apresentam suas origens a partir do
latim.
Estima-se que, por volta do século VIII a.C. ao III a.C., a língua
utilizada na região onde hoje está localizada Roma era o latim arcaico que
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depois se desmembrou em latim culto e latim vulgar, como podemos observar
no quadro de variedades do latim, apresentado por Castilho (2010, p.171).
Quadro 1 – variedades do latim
Fonte: Castilho (2010)
Como demonstrado acima, várias línguas utilizadas na
atualidade, como o espanhol (também conhecido por castelhano) e o
português, originaram-se do latim vulgar,
que foi uma variedade principalmente falada pelos soldados e comerciantes romanos que levavam às regiões conquistadas durante a formação do Império, e assim circulando por várias outras regiões passando de geração em geração sem ser ensinada formalmente. (OLIVEIRA, 2010, p.10)
Assim sendo, o espanhol teve uma expansão interna no
território da Espanha, ou seja, “1tornou-se a língua própria de Castela em todas
as suas manifestações escritas (literárias, jurídicas, científicas, etc.),
permanecendo o latim restrito ao âmbito da liturgia e a certas atividades
intelectuais” (AGUILAR, 2002, p.193).
1 No original: “el castellano se convierte en la lengua propia de Castilla en todas sus manifestaciones
escritas (literarias, jurídicas, científicas, etc.) quedando el latín restringido al ámbito de la liturgia y a
ciertas actividades intelectuales”.
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Entretanto, no decorrer dos anos, a língua espanhola não
permaneceu apenas na região de Castela,
2Por outro lado, o castelhano continuou a se expandir externamente, ocupando novos territórios, absorvendo e movendo as formas de linguagem destes e encurralando outros dialetos centrais. Isso teve relação com os fenômenos políticos, como a progressão da Reconquista contra os muçulmanos, a união definitiva com Leão e a gradual difusão castelhana, em Aragão, especialmente em áreas não catalães. (AGUILAR, 2002, p.194).
Além de ser uma língua que se expandiu dentro do território que
hoje pertence à Espanha, o idioma espanhol não permaneceu somente nessa
região e, a partir das grandes navegações, a conquista e a colonização de
novos territórios ocorreram de forma bastante rápida e foi em outubro de 1942
que Cristóvão Colombo chegou às ilhas caribenhas, logo ocupadas. Essa
ocupação incidiu em várias partes do continente americano, inicialmente no
México, e se estendeu por muitos territórios que hoje têm como língua oficial o
espanhol.
Atualmente, cerca de 400 milhões de pessoas distribuídas em
vinte e um países utilizam esse idioma como oficial: Espanha, México,
Nicarágua, Panamá, Porto Rico, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Guatemala,
República Dominicana, Guiné Equatorial, Equador, Honduras, Venezuela,
Colômbia, Chile, Argentina, Bolívia, Peru, Paraguai, Uruguai. Há também
outras regiões que não a têm como língua oficial, mas a empregam em
situações de comunicação como nos Estados Unidos e nas Filipinas.
2 No original: “Por otro lado, el castellano continuó su expansión externa, ocupando nuevos territorios,
absorbiendo y desplazando las formas lingüísticas de éstos y arrinconando a los otros dialectos centrales.
Ello se produjo en relación con fenómenos políticos tales como la progresión de la Reconquista frente a
los musulmanes, la unión definitiva con León y la paulatina penetración castellana en Aragón, sobre todo
en las zonas no catalanas”.
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Em relação à língua portuguesa, de acordo com Teyssier (2001,
p.3), surgem no século XIII os primeiros textos escritos em português (o
chamado galego-português). Mas, por motivos fronteiriços, é por volta de 1350
que o galego e o português se separam, permanecendo este como língua
oficial de Portugal. No entanto, sabe-se que a expansão desse idioma ocorreu
em razão das grandes navegações e, em 1500 Pedro Álvarez Cabral chega ao
Brasil.
Compreendemos assim que, da mesma forma que o espanhol,
este idioma passou por um processo de formação até se constituir no que hoje
é o português brasileiro. Atualmente, falado por cerca de 250 milhões de
pessoas, dos quais 80% estão no Brasil, o português é a língua oficial de
Portugal, Ilha da Madeira, Arquipélago dos Açores, Brasil, Moçambique,
Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Também é falada
em outras regiões de países que a não têm como oficial como, por exemplo,
Timor Leste. Por sua expansão, hoje a língua portuguesa é considerada a
quinta língua do planeta com maior número de falantes (veja em
www.ibge.gov.br).
É importante ressaltar que, por estarem o espanhol e o
português presentes em um vasto território geográfico, possuem variações
linguísticas nos vários estágios de sua evolução. Fato que se deve à
incorporação de palavras e aspectos culturais de outros idiomas como as
línguas indígenas dos povos que habitavam as regiões tanto da América como
da Ásia e África no período da colonização, bem como de outras línguas:
africanas, inglesa e árabe.
3. Convergências e divergências
De acordo com o exposto acima, o português brasileiro e o
espanhol seguiram rumos opostos, ainda que sejam línguas oriundas do latim
vulgar. Dessa forma, compreendemos que, para melhor evidenciar algumas
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diferenças existentes entre tais idiomas, seja importante utilizar os princípios da
Linguística Contrastiva, aquela que estuda o sistema linguístico de aprendizes
de língua estrangeira (LE) em relação a sua língua materna (LM).
Como há pronúncias distintas nas duas línguas para palavras
muitas vezes escritas da mesma forma, apresentamos um quadro comparativo
entre algumas pronúncias podendo observar as convergências e divergências
existentes:
Tabela 1 – Contraste português-espanhol
Português Espanhol
Pronúncia Letras 3Exemplo Letra Exemplo
C Céu C Celo
Ç Caça S Casa
X experiência X Texto
S, SC, SÇ,
SS
sala; nasce; cresça;
posso
[s]
Z fiz Z Zapato
S Casa [z]
Z Azar, asma
Pronúncia inexistente
G General [x] R roupa; carro
J Caja
[r] R Era R Era
Observamos que o espanhol não possui a pronúncia [z],
existente no português. Desse modo, compreendemos que um falante natural
do idioma espanhol possa ter dificuldades para pronunciar algumas palavras ao
aprender o português brasileiro.
3 Exemplos extraídos de BENEDETTI (2002).
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Com o objetivo de verificar se há interferência da língua materna (LM)
nos registros de português como língua estrangeira (PLE), analisamos o
discurso de alguns informantes.
4. A Pesquisa
Para a realização de nosso estudo, nos fundamentamos na
Dialetologia e na Sociolinguística. A primeira tem por objetivo “identificar,
descrever e situar os usos em que uma língua se diversifica, conforme a sua
distribuição espacial, sociocultural e cronológica” (CARDOSO, 2010, p. 15) e a
segunda, analisar os fatores sociais que podem influenciar a variação
linguística de um idioma como o gênero, a idade, e a escolaridade.
Sendo assim, entrevistamos informantes naturais de quatro
países que têm como LM o espanhol: Argentina, Espanha, Colômbia e Peru.
Lembramos que, por ser língua oficial de vinte um países, possui variações
linguísticas conforme a região na qual é falada, como observa Cardoso (2010,
p.15). Todos os informantes vivem no Brasil há mais de três anos, possuem o
superior completo, têm entre 40 e 50 anos e residem ou residiram na cidade de
Londrina e região.
Estabelecemos dois tipos de questões para a realização da
entrevista: narração e perguntas diretas. Na primeira, o informante deveria
narrar quais motivos o influenciaram a vir ao Brasil e como ele chegou ao país;
na segunda, selecionamos algumas questões diretas presentes no questionário
do ALiB (2001) para que o informante as respondessem com apenas uma ou
poucas palavras. Ambas as fases tinham como objetivo verificar aspectos
fonético-fonológicos referentes às pronúncias [s], [z], [x] e [r], como já
mencionamos. Entretanto, primeiramente o informante respondeu algumas
perguntas referentes à sua vida pessoal, tais como estado civil e profissão que
exerce.
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Tabela 2 – Questões
1 Casa
2 Terreno
7 Caminha
9 Luz
10 Lâmpada
21 Arroz
25 Colher
27 Fervendo
31 Casca
33 Clara
34 Gema
38 Rosa
48 Rato
57 Ano
59 Amanhã
61 Calor
68 Poça
75 Passagem
87 Borracha
90 Brasil
99 União
105 Certo
119 Coração
157 Hóspede
Fonte: ALiB (2001)
4.1 Entrevista: Informante 1
Neste trabalho, apresentamos dados referentes à entrevista
realizada com o informante 1, do sexo masculino e natural de Madrid, Espanha.
Neste tópico, descrevemos algumas palavras nas quais notamos a
interferência da LM ao pronunciá-las, tanto nas perguntas pessoais e diretas
como na narração espontânea.
4.1.1 Pronúncia de [s] e [z]
Ao responder perguntas pessoais baseadas no questionário do
ALiB no início da entrevista, foi possível notar que, em algumas palavras com
/s/ em contexto medial que em português teriam a pronúncia de [z] como, por
exemplo, casado, meses e aposentado, o informante pronunciou [s],
recorrendo ao espanhol: [ka’sado], [‘meses] e [apo’sentado]. A mesma forma
observamos em outras palavras na narração espontânea: onze [‘onse] e zero
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[‘sero]. O uso de [s] se manteve em outras palavras como em língua
portuguesa, um exemplo é a palavra casca [‘kaska].
Todavia, em respostas a perguntas diretas, este fenômeno só
esteve presente em apenas uma palavra: fusíveis [fu’siveis], que utilizou para
responder à questão dez. No caso das questões, casa [‘kaza], rosa [‘xoza] e
Brasil [bra’ziw], a pronúncia utilizada pelo informante 1 foi [z], sem
interferências da LM. Entretanto, observamos também, uma ligeira
palatalização na palavra arroz [a’xoΣ].
4.1.2 Pronúncia de [x]
Durante toda a entrevista percebemos que uma das pronúncias
do português brasileiro mais bem empregadas pelo informante 1 foi a de [x],
que pode ser facilmente utilizada por naturais do idioma espanhol por formar
parte do alfabeto fonético dessa língua. Terreno [te’xenu], rato [‘xatu], borracha
[bo’xaΣa], bem como rosa e arroz, descritas anteriormente, apresentaram um
padrão.
4.1.3 Pronúncia de tepe [r]
Das perguntas diretas selecionadas, somente em coração
[kora’sãw] o informante utilizou a pronúncia do /r/ brando ou tepe [r], além de
utilizá-la em sua narração espontânea. Dizemos somente, pois como em
espanhol há palavras que possuem dois erres, como em terreno e arroz, são
pronunciadas mais fortemente e, um falante natural desse idioma, poderia
utilizar [ř] ou [r] para pronunciá-las.
Notamos ainda, que em palavras como fervendo, certo e calor,
a pronúncia que o informante 1 usou foi a de [ɹ]: [feɹ’vendU], [ˈsԑɹtʊ], [ka’loɹ].
Compreendemos que o uso dessa pronúncia pode ser uma influência da
variante utilizada no norte do Estado do Paraná, como em Londrina.
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5. Considerações finais
De acordo com os dados apresentados, compreendemos que,
das pronúncias que nos propusemos analisar, [x] resulta mais fácil para um
falante natural do espanhol utilizar. Porém, quase não observamos o uso de [z],
principalmente em palavras com /s/ em contexto medial no qual o som em
português é de [s].
Na pronúncia de [r], identificamos a variante [ɹ], marca dialetal
da região em que viveu. Observamos também, a interferência do espanhol em
outras palavras como mil [‘miɫ], a nasalização em união e coração diferentes
em ambas as línguas abordadas neste trabalho e a pronúncia de [di] (muito
utilizada na língua espanhola) na palavra diária [di’aria], obtida no início da
entrevista.
Portanto, mesmo que o informante 1 consiga pronunciar bem
palavras com [x], [r] e apresente o uso de [ɹ], concluímos que há interferência
do espanhol, sua LM, principalmente na pronúncia de [z], conforme descrito no
tópico quatro desse trabalho. Verificamos também que a maioria das trocas de
[z] por [s] ocorreram em situações de fala espontânea referentes à sua vida
pessoal: narração e perguntas iniciais.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEDETTI, Ana Mariza. El portugués y el español frente a frente: aspectos fonético-fonológicos y morfosintácticos. Carabela, Madrid, n.51, p. 147-171, feb. 2002. CANO AGUILAR, Rafael. El español a través de los tiempos. 5. ed. Madrid: Arco Libros, 2002. CARDOSO, Suzana Alice. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Párabola Editorial, 2010. CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. COMITÊ Nacional do Projeto ALiB. Atlas Lingüístico do Brasil: questionário 2001. Londrina, Ed. UEL, 2001. OLIVEIRA, Daiana da Silva. Língua portuguesa: origens e influências. 2010. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras). Faculdade Alfredo Nasser, Instituto Superior De Educação. Disponível em: http://www.unifan.edu.br/ Acesso: 26 mar. 2012. SILVA, Thaís Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2003. TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Tradução Celso Cunha. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. www.ibge.gov.br Acesso: 03 maio 2012.