LUCAS DRUMOND MATOSINHOS
DCADENCE AVEC LGANCE: O DANDISMO HERICO DE CHARLES
BAUDELAIRE (1846-1867)
UFMG BELO HORIZONTE
2009
LUCAS DRUMOND MATOSINHOS
Dcadence avec lgance: o dandismo herico de Charles Baudelaire (1846-1867)
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Linha de pesquisa: Culturas polticas Orientadora: Prof. Dra. Adriana Romeiro
UFMG BELO HORIZONTE
2009
Dissertao de Mestrado apresentada em 02 de dezembro de 2009 Banca Examinadora constituda pelos seguintes Professores:
____________________________________________________
Prof. Dr. Georg Otte Faculdade de Letras - Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
____________________________________________________
Profa. Dra. Carla Anastasia Departamento de Histria -Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas - Universidade
Federal de Minas Gerais - UFMG
_____________________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Adriana Romeiro Departamento de Histria -Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas - Universidade
Federal de Minas Gerais UFMG
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a minha orientadora professora Adriana Romeiro pela generosidade e pela coragem de assumir a orientao desta pesquisa em um momento decisivo para os rumos do trabalho realizado.
Aos professores Georg Otte e Eliana Dutra que participaram do exame de qualificao contribuindo com crticas e sugestes enriquecedoras. A professora Carla Anastasia pelas contribuies fundamentais feitas durante a defesa da dissertao.
Imara devo quase tudo, mas gostaria de deixar claro minha gratido por seu companheirismo, pacincia, esforo e sensibilidade, alm de todo o carinho, sem os quais o texto desta dissertao jamais chegaria a um ponto final.
A Juliana Bemfica agradeo por todo apoio, ajuda sincera e gratuita na terrvel luta que travamos juntos contra o demnio do Prazo.
A Maria Juliana Gambogi pelo incentivo, orientao, amizade e inteligncia devo a existncia desta pesquisa desde os tempos de graduao.
Agradeo tambm a Henrique Estrada por todas as orientaes sbrias e pelos momentos no sbrios tambm , pela amizade e apoio que datam do tempo em que ainda nos debatamos contra a peste republicana.
Aos meus pais Hlio e Socorro pela pacincia e por me oferecerem as condies de terminar esta dissertao. A minhas irms Fbia e Izabella por me suportarem durante tanto tempo.
Ao Ricardo e ao Magela pelo suporte musical, incentivo e amizade que, como diriam os historiadores, enquadra-se num caso de longussima durao.
A todos amigos que contriburam direta e indiretamente para a realizao deste trabalho, minha sincera gratido.
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SUMRIO
RESUMO p. 6
RSUM p. 7
INTRODUO p. 8
CAPTULO I: Pequena histria da futilidade: o dandismo na Frana
p. 13
I .1 - Entre a Inglaterra e a Frana p. 14
I. 2 A fabricao das aparncias p. 26
CAPTULO II: O domnio das aparncias
p. 35
II. 1 O ltimo rasgo de herosmo nas decadncias p. 36
II. 2 Herana controversa p. 49
CAPTULO III: O dandismo e a esttica revolucionria
p. 55
III.1 Herana revolucionria p. 56
III. 2 Entre 1848 e o segundo imprio p. 76
CONSIDERAES FINAIS p. 100
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS p. 104
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Resumo:
Tomando por base a obra de Baudelaire, o objeto desta pesquisa se apresenta como uma proposta de reflexo sobre o dandismo entre a Revoluo de 1848 e as duas primeiras dcadas do Segundo Imprio na Frana. Procura-se discutir o vnculo, na teoria do dandismo de Baudelaire, entre esttica e poltica destacando, principalmente, as questes da revoluo e do herosmo, caros a esse contexto francs do sculo XIX.
Palavras chave: Histria da Frana; Sc. XIX; dandismo; Baudelaire; revoluo; herosmo.
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Rsum:
Tout en partant de loeuvre de Charles Baudelaire, lobjectif de cette recherche est dexplorer les rapports entre le dandysme, la Rvolution de 1848 et les deux premires dcennies du Second Empire. Plus prcisment, il sagit dexplorer les liens entre lesthtique et le politique dans le dandysme baudelairien, en particulier par le biais de deux questions chres lpoque: la Rvolution et lhrosme.
Mots-cl: Histoire Franaise; Sicle XIX; dandysme; Baudelaire; rvolution; hrosme.
INTRODUO
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Introduo
O dandismo pode ser compreendido como um fenmeno sociocultural, prprio
ao sculo XIX, que se manifestou em diversos mbitos e sob diversas formas: na arte,
na sociedade e na teoria.1 Na esfera da arte, a fico de autores como Byron, Stendhal e
Balzac, por exemplo, foi responsvel por familiarizar o pblico com uma certa esttica
do dandismo, criando personagens que se destacam, sobretudo, por seu carter diletante,
transgressor e sua repugnncia aristocrtica pelos valores burgueses.2 No nvel
histrico-social, encontramos os personagens reais, os homens que ostentaram ou a
quem foram imputados , a etiqueta do dandismo. Etiqueta essa cuja extenso abrangia
um complexo variado de atitudes e significaes, coincidentes, ou no, com os modelos
literrios: da elegncia, fatuidade e afetao, ao arrivismo e agressividade. J nos
domnios da teoria, o dandismo apreendido atravs de generalizaes conceituais que
articulam e do formas especficas a certas vises de mundo, expectativas e
experincias de alguns homens com seu prprio tempo. Nesse particular, se destaca
Charles Baudelaire, segundo Albert Camus, o terico mais profundo do dandismo.3
Assim, tomando por base a obra de Baudelaire, o objeto desta pesquisa se
apresenta como uma proposta de reflexo sobre a teoria do dandismo tal como
1 Essa distino em trs campos de manifestao do dandismo proposta por Emilien Carassus. A
esse respeito ver: CARASSUS, Emilien. Le mythe du dandy, p. 15-16. 2 Para maiores informaes sobre o dandismo literrio desses autores e de outros ver: PREVOST,
John C. Le dandysme en France; STANTON, Domna C. The aristocrat as art. 3 CAMUS, Albert. O homem revoltado, p. 72.
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concebida pelo poeta francs. Como veremos, essa teoria essencialmente moderna na
medida em que incorpora ao esteretipo do dndi alguns aspectos caros ao contexto de
idias que perpassam quase todo o sculo XIX: a fabricao de si, ou a construo de
um personagem, aliada a concepo do que viria a ser uma das manifestaes do
herosmo moderno. A esse respeito, vale observar que no dandismo de Baudelaire a
dimenso esttica no parece estar totalmente despida de trajes polticos. Antes pelo
contrrio, embora no apresente contornos delineveis que possibilitem classific-lo
entre as posturas convencionais, uniformes e bem delimitadas, o dandismo
baudelairiano carrega concepes polticas as quais aparecem estreitamente
relacionadas, ainda que de forma crtica, ao tema do herosmo revolucionrio.
justamente no escorregar de definies fixas e unvocas que se manifesta o carter
permanentemente ambguo com o qual o dndi desempenha seus papis.
O cenrio por onde procuramos seguir o dandismo de Baudelaire o da
turbulenta histria francesa entre os anos que precedem a Revoluo de 1848 e as duas
primeiras dcadas do Segundo Imprio francs, no qual o poeta desenvolve uma
reflexo original sobre o papel do herosmo em um contexto marcado pelas agitaes
revolucionrias e pelo advento da democracia. Os marcos cronolgicos desta pesquisa
foram delimitados pelo prprio objeto, sendo que a anlise sobre o dandismo
baudelairiano em suas relaes com os temas ora anunciados comea com alguns
ensaios do poeta de 1846 e termina com as suas reflexes sobre os eventos de 1848
assim como sobre o prprio tema da Revoluo nas dcadas de 1850 e 1860.
O Captulo I teve como objetivo definir um traado histrico para o dandismo
tendo em vista seu deslocamento entre a Inglaterra e a Frana. Durante esse percurso
pretendeu-se, na primeira parte, enfatizar no apenas as manifestaes literrias do
fenmeno mas, tambm, as repercusses polticas e sociais implicadas no trajeto entre
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os dois pases. Na segunda parte buscou-se desenvolver o vnculo entre a teoria
baudelairiana do dandismo e algumas questes prprias ao contexto de idias que
envolvem a modernidade. Assim, tomando por base, principalmente, as anlises de
Baudelaire e Hannah Arendt, procurou-se explicitar a ligao entre o fenmeno do
dandismo, a fabricao de si e a construo de um espao de aparncia. Dado o seu
carter fundamentalmente terico, esta parte do estudo faz um sobrevo geral sobre
alguns ensaios da obra de Baudelaire para pinar independentemente da ordem
cronolgica em que se encontram os elementos que permitem vincular o dandismo
tanto modernidade quanto ambgua questo suscitada pelo fenmeno do herosmo
revolucionrio na Frana.
No Captulo II, inicialmente procurou-se explorar o sentido dos caracteres
hericos reivindicados por Baudelaire para a teoria do dandismo. Os termos da relao
entre dandismo e herosmo so analisados por um recorte difuso na obra baudelairiana e
se baseiam, sobretudo, nos pressupostos estabelecidos pelo captulo anterior. Vale ainda
acrescentar que na primeira parte desse captulo pretendeu-se estabelecer de forma
introdutria as relaes ambguas que se anunciam entre os fenmenos do dandismo e
do herosmo. A segunda parte dedica-se atravs de uma breve discusso bibliogrfica
situar a perspectiva que informou a leitura sobre o dandismo baudelairiano. Tratou-se de
delimitar o enfoque deste do trabalho dando nfase ao tema da revoluo enquanto o
componente que imprime a especificidade do dandismo herico de Baudelaire.
J no que diz respeito ao Captulo III, a inteno da primeira parte foi a de
analisar, em perspectiva histrica, os caminhos do herosmo na Frana at 1848. Nesse
percurso ressaltaram-se as alteraes e a ambivalncia inerentes a este fenmeno
moderno que se divide entre dois plos fundamentais para a compreenso de alguns
aspectos da cultura poltica francesa do sculo XIX: a saber, revoluo e reao. A
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segunda parte foi dedicada anlise da obra de Baudelaire, comeando por alguns
ensaios de 1846, passando rapidamente pelo jornalismo poltico de 1848, e terminando
com algumas impresses do poeta sobre o tema da revoluo no contexto do Segundo
Imprio francs.
CAPTULO I Pequena histria da futilidade:
o dandismo na Frana
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Captulo I
Pequena histria da futilidade: o dandismo na Frana
I .1 - Entre a Inglaterra e a Frana
Impertinncia, elegncia, excentricidade e culto de si. O dandismo, fenmeno
que atravessou quase cem anos entre Inglaterra e Frana, procurou, desde sua origem,
amparar os filhos bastardos do sculo XIX: diletantes, artistas e escritores pretensos
herdeiros de uma aristocracia h muito lnguida que, procurando sobreviver a um
presente tido como aviltante, se autoproclamaram e se fizeram reconhecer enquanto
dndis. Mas o que significa isso? Quer dizer que homens das mais variadas estirpes e
carteres passaram a seguir uma espcie de doutrina esttica ou, ainda, uma filosofia de
vida que pressupunha um complexo cdigo de conduta e de artifcios mais ou menos
compartilhados: o apreo pela suprema elegncia no vesturio; o desprezo aristocrtico
pelo trabalho com sua nfase nos prazeres do cio e da lassido frente moral
utilitria do sculo ; o amor aristocrtico pela distino, enfim, a averso ao mundo
burgus.
Pode-se dizer que, para alguns dos adeptos do dandismo, tratou-se de investir em
um personagem, de assumir uma espcie de identidade cambiante para causar espanto e
admirao: o dndi, em meio produo em massa das mercadorias e da multido,
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tenta criar as condies de raridade, da individualidade.4 Ele pretende resistir ao
movimento inexorvel de massificao social radicalizando sua diferena, mostrando-se
excntrico e tentando transformar a si mesmo em uma espcie de obra de arte:
symbolisant la vocation de la nature humaine au plaisir de vivre, la joie, lamour et
la paix, ils invitaient lhomme sincarner lui-mme dans une belle oeuvre.5
Entretanto, essa estetizao de si, esse aristocratismo que cheira a Antigo
Regime num sculo convulsionado pelas revolues burguesas, paradoxalmente, no
perde seu carter moderno. Se confiarmos que a aliana dos contrrios revela o
moderno como negao da tradio, isto , necessariamente tradio da negao, 6
verificaremos que o dandismo remetido sua prpria contemporaneidade. Os mesmos
homens que afetam ares aristocrticos, se pretendendo elegantes modelos de uma classe
em vias de extino, e cuja peculiar caracterstica consiste em exibir seu cio entediado,
se traem: a encenao hipcrita da vida contemplativa dos filsofos antigos e a
ostentao de uma indolncia sem fim se do s custas de um esforo quase to rduo
quanto o do operrio na fbrica. No sculo que testemunhou a vitria do trabalho e, de
forma no menos decisiva, o domnio do homem sobre a matria, o dndi traz, na
fabricao de seu prprio personagem, as marcas das foras produtivas modernas: um
novo impulso criador que estimula o homem, na economia como na arte, a ultrapassar
o estado da sua naturalidade, para chegar, atravs do trabalho, a um mundo de que ele
4 MATOS, Olgria C. F. Um Surrealismo Platnico: Baudelaire. In: NOVAES, Adauto. (Org.). Poetas
que pensaram o mundo, p. 321. 5 PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 18.
6 COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade, p. 10.
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mesmo criador.7 No por acaso, tornaram-se clebres as palavras de George Bryan
Brummell, o arquetpico dndi ingls: its my folly, the making of me.8
Assim que os primeiros dndis, de origem inglesa, ainda que abominando a
sociedade do comrcio, foram capazes de incorporar na prpria encenao a frieza do
negociante que tinha de reagir perante as flutuaes da Bolsa londrina, sem trair suas
reaes.9 Mesmo o ar blas por eles afetado que pretende guardar traos de um
desdm aristocrtico forado pela vida burguesa , deixa escapar uma atitude altamente
intelectualizada e de pleno acordo com a vida psquica metropolitana na modernidade:
uma vida em perseguio desregrada ao prazer torna uma pessoa blas porque agita
seus nervos at o ponto de mais forte reatividade por um tempo to longo que eles
finalmente cessam completamente de reagir.10 A indiferena do tdio alimentada pela
impessoalidade da economia do dinheiro e pela exposio aos estmulos contrastantes a
que esto sujeitos os habitantes das grandes metrpoles no sculo XIX. Segundo Barbey
dAurevilly, o dandismo teria introduzido le calme antique au sein des agitations
modernes; mais le calme des Anciens venait de lharmonie de leurs facults et de la
plnitude dune vie librement dvelopp, tandis que le calme du dandysme est la pose
dun esprit trop dgout pour sanimer. 11
7 JAUSS, Hans Robert. Tradio literria e conscincia atual da Modernidade. In: OLINTO, Heidrun
Krieger. Histrias de literatura: as novas teorias alems, p. 85. 8 AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell, p. 21. Uma anedota ilustra bem o
esforo e trabalho empregados no processo de auto-fabricao dos dndis. O modismo recorrente de se passar goma na gravata de forma a endurec-la inveno que se atribuiu a Brummell, o dndi mais clebre da Regncia inglesa (1811-1820) , implicava numa limitao sensvel da mobilidade do corpo: cette innovation, rendit ncessaire un effort excessif pour tourner la tte. Bien ds anedoctes de lpoque en tmoignent, telle celle que racont Lord Byron propos de son ami Mathews, qui, lOper, ne put tourner la tte pour regarder son interlocuteur cause de son col de chemise doubl de bougran et (de) son inflexible cravate. A esse respeito ver: PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 16.
9 BENAJIMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo, p. 94.
10 SIMMEL, Georg. A metrpole e a vida mental. In: VELHO, Otvio (org.). O Fenmeno urbano, p. 30.
11 AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell , p.57.
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De origem semntica obscura, o dandismo nasce na Inglaterra ainda no incio do
sculo XIX.12 Seus primeiros adeptos eram aristocratas, mas tambm plebeus ricos, que
conviviam entre a high society londrina, reunindo-se em famosos clubes, como o
Watiers.13 Esses recintos exclusivos para homens e nos quais se praticavam ruinosas
jogatinas de cartas e dados eram freqentados por aqueles que se destacavam por seu
alto nvel de insolncia, uma extrema elegncia aliada a vrias doses de soberba,
paixo pelos esportes, por jogos e pelos cavalos. Essa primeira caracterizao conservou
alguns aspectos positivos aos olhos da tradicional nobreza londrina durante um curto
perodo de tempo. Ao que parece, na segunda dcada do sculo XIX que surge a
associao entre a figura do dndi e os clebres beaux da aristocracia inglesa.14 Segundo
John C. Prevost, a partir de 1813
le dandy est le fat qui se fait le plus remarquer dans la socit anglaise du XIX sicle. Ce type est la prolongation peu diffrencie du beau et du buck, et comme eux, il est sorti de nimporte quelle couche sociale. Pendant une cort priode (1813-1816), le terme semble avoir dsign un homme mis avec soin et lgance, et faisant partie de la socit
12 H um consenso entre os comentadores de que o termo dandy foi reapropriado do francs pelos britnicos. Em todo caso, especula-se sobre duas possveis origens etimolgicas da palavra. A primeira remete ao vocbulo dandin, do francs arcaico, que designaria um indivduo tolo cujo estranho modo de caminhar lembraria o movimento pendular do basto de um sino. A segunda origem estaria ligada ao vocbulo dandi-pratt: uma moeda de pouco valor corrente no sculo XVI, durante o reinado de Henrique VII. Por extenso, a palavra era ainda utilizada para designar indivduos simplrios e desprezveis da sociedade daquela poca. A esse respeito ver: CARASSUS, Emilien. Le mythe du dandy; PREVOST, John C. Le dandysme en France; STANTON, Domna C. The aristocrat as art.
13 Fundado em 1807, o Watiers se tornou o reduto mais clebre dos dndis durante a Regncia inglesa. Entre seus membros faziam parte Lord Byron e Georg Bryan Brummell.
14 De acordo com Frdric Schiffter, o termo Beau, tambm importado do francs pelos britnicos, designaria lhomme sachant se distinguer par sa mise impeccable, ses manires exquises, son esprit piquant. Le mot dandy, dune origine incertaine, finira par le remplacer. Acrescente-se a essa definio, o grau de proximidade dos Beaux com o poder real. Basta lembrar o caso de Brummell: freqentemente mencionado como Beau Brummell fato curioso, o dndi planejou seu epitfio com as insgnias The broken Beau , ele gozou durante um certo tempo da intimidade do futuro rei da Inglaterra, George IV. De acordo com testemunhas da poca, o Prncipe Regente chegou mesmo a bancar o caro custo de vida de alguns dos primeiros dndis nesse caso, tambm se inclui Brummell , que perdiam altssimas somas de dinheiro em suas jogatinas: They were generally midle-aged, some even eldery men, had large appetites and weak digestions, gambled freely and had no luck and had the most of them been patronized at one time or other by Brummell and the Prince Regent. A esse respeito ver respectivamente: SCHIFFTER, Frdric. Le dandy ou laplomb de la lgret. In: AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell, p.21; GRONOW apud PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 19.
18
aristocratique. Mais cest un usage qui na pas longtemps dur. [...] La mauvaiuse rputation des dandys se rpand dans toute la littrature de lpoque: on les prend pour ds imbciles, des lches, ds cratures inutiles.15
De 1816 em diante, a afetao e as excentricidades dos dndis bem como dos
seus imitadores j no eram novidades para os ingleses. Juntaram-se ento outros
esteretipos a essa figura arquetpica: novos praticantes do dandismo, agora tambm
fazendo parte das classes inferiores da sociedade, foram descritos andando pelas ruas
londrinas e viraram alvos fceis da pena satrica de diversas crnicas contemporneas.
Em uma das mais clebres publicaes The Hermit in London, artigo de vrios
colaboradores annimos que saiu pela Literary Gazette em julho de 1818 tem-se a
exposio de um dandismo que, alm de se destacar por sua vulgaridade e suas
pretenses arrivistas, recheado com um tempero de atuao e farsa:
These insects from Cheapside, and so on westwards, shut up their shops, cheat their masters, and font les importants about nine oclock (Saturday night at the Opera). The same party crowd the Park on Sunday; but on Black Monday return like school boys to their work, and you see them with the pen behind the ear, calculating how to make up for their hebdomadal extravagances, pestering you to buy twice as much as you want, and officiously offering their arm at your carriage door.16
As descries depreciativas de tal gnero foram as primeiras a cruzar o canal da
Mancha em direo Frana. Na dcada de 1820 o Hermit in London foi parcialmente
traduzido para o francs e, junto com alguns relatos de viagens notadamente o Voyage
historique et littraire en Anglaterre e en Ecosse publicado em 1825 , ajudou a
difundir o modismo britnico.17 Amde Pichot, autor do Voyage, satiriza os dndis
15 PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 25.
16 The Hermit in London apud PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 21.
17 O primeiro dndi mencionado na sociedade francesa teria aparecido em 1816 no salo da princesa Volkonski, e foi registrado por Lady Morgan na sua publicao, de 1817, intitulada La France. Na literatura, Stendhal, ainda que com muitas reservas, talvez o primeiro escritor francs a utilizar o
19
ingleses realizando um duplo movimento. Ele indica, por um lado, a decadncia da
aristocracia britnica cuja afetao frvola a sua prova cabal e reafirma, por outro,
a tradicional supremacia da Frana em matria de costumes aristocrticos:
Rien ne russissait Londres comme linsolence. [...] ses formes graves, son originalit naturelle, son indpendence et sa dignit pour affecter ces grces frivoles qui jusquici avaient fait exclusivement partie du caractre franais. Elle ne cache pas son admiration por les agrments parisiens, elle les croit indispensable pour le bonheur de la vie. [...] Les anglais de la nouvelle race sont infiniment plus frivoles que nous.18
A difuso do dandismo na Frana, que se deu sobretudo por essa primeira via
literria, foi ainda precedida pela derrota definitiva de Napoleo na batalha de Waterloo
e pela crescente influncia da Inglaterra sobre os franceses. Influncia que se fez sentir
de forma mais aguda a partir de 1815. A anglomania, como ficou conhecida, fortaleceu-
se pela volta dos emigrados franceses da Inglaterra e pela grande presena de jogadores
londrinos que, endividados, escondiam-se dos seus credores na Frana.19 De acordo
com Domna Stanton, nesse perodo the english perfumes, restaurants, and clothes
became the rage. Even the passion for sports found french imitators who proliferated
boxing matches, pigeon shoots, and esquestrian societies with appropriate texts on the
rules of racing.20 Entre parte dos aristocratas da elite francesa, sobretudo os partidrios
da Restaurao os ultra-monarquistas, to interessados quanto os ingleses em enterrar
a herana revolucionria da Frana , no foi difcil assimilar os sinais exteriores do
termo dndi para designar os homens ftuos da sociedade inglesa. Assim ele os descreve em seu Rome, Naples et Florence en 1817: Nos pauvres ladys sont abandonnes la socit de ces hommes frivoles qui, par leur peu desprit, se sont trouvs au-dessous de tout ambition, et par l de tout emploi (les Dandys). A esse respeito ver respectivamente: PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 69; STENDHAL. Rome, Naples et Florence en 1817.
18 PICHOT apud STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p. 33.
19 Sob ameaa de priso e dos seus credores, Brummell se torna o exemplo mais clebre desse tipo de caso. O dndi se exilou na cidade francesa de Calais em 1816, depois de romper sua amizade com um dos seus grandes patrocinadores, o Prncipe Regente ingls. A esse respeito ver: AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell.
20 STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p. 32.
20
estilo de vida da upper-class londrina: Manger, boire, se vtir, samuser comme les
anglais, ctait se distinguer de la foule.21
No entanto, conforme se pode notar nos relatos do Voyage en Anglaterre, essa
enxurrada de modas inglesas trouxe tambm em seu bojo um indisfarvel sentimento
de anglofobia. De acordo com William Fortescue, desde 1815 os franceses dotados de
conscincia poltica eram propensos a sofrerem um complexo de inferioridade em
relao Gr-Bretanha e a alimentar o desejo de reverter o veredicto de Waterloo.22
Assim, em um primeiro momento, escritores como Chateaubriant, Balzac, Stendhal e
Musset no viam no esteretipo ingls nada alm de excentricidades, futilidades e
vanglria.23 Para os filhos do Imprio napolenico e netos da Revoluo Francesa a
figura do dndi no parecia guardar nenhum caractere herico. Ou ainda, se lhe restava
algum, ento a sentena de Baudelaire, anos mais tarde, faria jus s desesperanas dos
primeiros anos de Restaurao e de dandismo na Frana: Aqui talvez esteja um homem
rico, mas, com maior probabilidade, um Hrcules sem emprego. Quem o atesta
Alfred Musset que, ao associar o tdio da Restaurao ao fim da glria militar oferecida
pelas conquistas napolenicas, previu uma ociosidade sem fim para os jovens da
Frana:
Condenados ao repouso pelos soberanos do mundo, entregues a bedis de toda espcie, ociosidade e ao enfado, os jovens viam-se distanciar-se as vagas escumantes contra as quais haviam preparado os seus braos. Todos esses gladiadores untados de azeite sentiam no fundo da alma uma misria insuportvel. [...] A hipocrisia mais severa reinava nos costumes. As idias inglesas juntaram-se devoo e a alegria desapareceu.24
21 PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 53.
22 FORTESCUE, William. Revoluo e contra revoluo na Frana 1815-1852, p. 83.
23 A esse respeito ver: CARASSUS, Emilien. Le mythe du dandy; PREVOST, John C. Le dandysme en France; STANTON, Domna C. The aristocrat as art.
24 MUSSET, Alfred. A confisso de um filho do sculo, p. 22-23.
21
Nos subterrneos desse quadro poeticamente pintado por Musset corria um
regime de reao que estabeleceu suas bases atravs da censura imprensa, da restrita
participao poltica nas eleies conseqentemente, no parlamento , alm do
fortalecimento significativo da Igreja Catlica.25 Contudo, a julgar pela anlise de
Baudelaire, o estado letrgico no qual os homens da Restaurao se encontravam seria
um terreno frtil para o desenvolvimento do dandismo. Segundo o poeta, so em pocas
de transio que alguns homens sem vnculo de classe, desiludidos e desocupados
ingressam na profisso da alta fatuidade: eles ento podem conceber o projeto de
fundar uma nova aristocracia, tanto mais difcil de destruir pois que baseada nas
faculdades mais caras do esprito, e nos dons celestes que nem o trabalho nem o
dinheiro podem conferir.26 Assim, para a gerao de Musset, espreitada por um
passado revolucionrio ainda vivo agitando-se sobre as prprias runas, com todos os
fsseis dos sculos de absolutismo e por um futuro poltico turvo, to logo o
dandismo se tornaria uma opo: le dandysme fut peut-tre un effort pour parvenir
une sorte de dosage entre lexcentricit et la monotonie, dosage dans lequel humour,
grossiret, fatuit, rigueur et self-control entrrent titre dingredints.27
Esses ingredientes comearam a fermentar entre alguns escritores franceses
medida que o regime da Restaurao ganhou contornos mais rgidos, j sob o comando
de Carlos X. nessa poca que surgem os primeiros escritos moldados Byron ou
Bulwer, dois dos principais autores ingleses responsveis por uma certa reabilitao do
dandismo na Frana.28 O romancista Stendhal nos oferece um bom exemplo a respeito
25 A esse respeito ver: FORTESCUE, William. Revoluo e contra revoluo na Frana 1815-1852; TALMON, J.L. Romantismo e revolta: Europa 1815-1848; WINOCK, Michel. As vozes da liberdade: escritores engajados do sculo XIX.
26 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 872.
27 CARASSUS, Emilien. Le mythe du dandy, p. 68.
28 A expresso de Baudelaire. BAUDELAIRE, Charles. Madame Bovary por Gustave Flaubert. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 567. Segundo os Crticos Lord Byron
22
da mudana de atitude em relao figura do dndi durante esse perodo. Se em 1817
ele definiu o tipo ingls de forma pejorativa, dez anos depois ele faria figurar em
Octvio Malivert, personagem principal de Armance, uma forte tendncia a um
dandismo inspirado em Byron.29 Em 1830 ele foi ainda alm. Em O vermelho e o negro,
a carreira meterica do personagem principal da trama, Julien Sorel, faz lembrar a um
s tempo Napoleo e Brummell. A trajetria do heri incluiu tanto uma dose necessria
de elegncia e hipocrisia ensinamentos de um dndi russo que tornaram Julien apto
vida dos sales parisienses , quanto um arrivismo recheado de tticas militares de
conquista inspiradas nas memrias de Napoleo, sua leitura predileta.30
Depois da Revoluo de Julho de 1830, responsvel por depor Carlos X do trono
e pela subida de Lus Felipe ao poder, o dandismo pouco a pouco abriu caminho entre
os franceses. A associao da figura do dndi a personalidades que, a essa altura,
encontravam-se em pleno processo de petrificao mtica notadamente Napoleo, o
pretenso ex-Imperador da Europa; e Brummell, o arruinado rei da moda inglesa ,
indicam duas tendncias para o dandismo na Frana. A primeira, vinculada ao
despertar da pica napolenica, conferiu ao dandismo francs um fundo terico de
auto-suficincia e aberta agressividade: Napoleo, the ultimate self-made hero,
inspired in his admires the desire to emulate the naked, [...] brutal aggression on which
he had founded his unparalleled carrer. In post-napoleonic society, this desire was all
teria sido o primeiro grande responsvel pelo acolhimento do dandismo na Frana, sobretudo aps a dcada de 1830, data a partir da qual poemas como Don Juan e Child Harold entraram em grande circulao entre os franceses. J Bulwer Lytton, apresenta em seu romance Pelham or the adventures of a gentleman, a primeira representao ficcional do Beau Brummell. O romance de Bulwer, tamanho o sucesso, foi reimpresso na Frana oito vezes entre 1828 e 1840. A esse respeito ver: CARASSUS, Emilien. Le mythe du dandy; PREVOST, John C. Le dandysme en France; STANTON, Domna C. The aristocrat as art.
29 STENDHAL. Armance. Para Domna C. Stanton, Stendhal um dos primeiros autores a fundir os traos de heris Byronicos com uma certa dosagem de dandismo: Octvio Malivert possuiria assim, simultaneamente, the Byronic heros misanthropy, somber melancholy, terifying outbursts and impassive coldness. The criminal tendences to which he confesses, are designed both to fascinate others and to prevent discovery of his monstrous secret, his impotence. A esse respeito ver: STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p. 230.
30 STENDHAL. O vermelho e o negro.
23
the more imperative in the abscence of meaningful military life.31 A segunda, chamada
dandismo de bom tom, que se desenvolve entre 1830 e 1836, demonstra a entrada do
esteretipo ingls na alta sociedade parisiense bem como nas revistas de moda: la
concepcion dun dandysme de bom ton admise, on accepta bien vite dandy et dandysme
pour caractriser ds individus appartenant la meilleure socit lgante de la
capitale.32 Pode-se dizer que a admisso do dndi nos crculos da moda parisiense ou
o uso do vocbulo, na falta de uma palavra melhor, para designar os ftuos elegantes da
alta sociedade no foi capaz de conferir uma significao profunda ao dandismo
francs. Tanto que, a partir da dcada de 1840, o esteretipo do dndi refinado ter que
dividir espao, entre as publicaes especializadas, com um novo adjetivo endereado a
mesma categoria de homens, os lions.
Em 1845, Barbey dAurevilly ser o primeiro autor a tentar conciliar com
verdadeira seriedade a vaidade e a fatuidade no dandismo com a auto-suficincia e a
ambio necessrias ao tipo. Em seu livro, Du dandysme e de George Brummell, a
nfase na elegncia do esteretipo atenuada, o dandismo pretende se tornar tout une
manire dtre. Ao refinamento do arqutipo ingls o autor anexa uma srie de
concepes morais. A vaidade, le dernier sentiment dans la hirarchie ds sentiments,
alada a uma condio estratgica: ce qui fait la valeur des sentiments, cest leur
importance sociale; quoi donc, dans lordre des sentiments, peut tre dune utilit plus
grande pour la socit que cette recherche inquiete de lapprobation ds autres. Assim,
o autor identifica em Brummell filho de plebeu cuja origem e riqueza no poderiam o
predestinar a tanto um personagem que se fez distinguir por mritos prprios e que
galgou degraus na sociedade londrina na medida que incorporou sua minuciosa toilette,
31 STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p. 66
32 PREVOST, John C. Le dandysme en France , p. 80.
24
bem como sua performance caricatural, a uma espcie de cincia ou filosofia dos
costumes sociais:
La caricature, cest loutrance exaspre de la ralit, et la ralit du dandysme est humaine, sciale et spirituelle... ce nest pas un habit que marche tout seul! Au contraire! Cest une certaine manire de le porter qui cre le dandysme. On peut tre dandy avec un habit chiffonn. [...] Et voil ce quoi George Bryan Brummell russissait mieux que persone. Cet homme, trop superficiellement jug, fut une puissance si intellectuelle quil rgna encore plus par les airs que par les mots. Son action sur les autres tait plus immdiate que celle qui sexerce uniquement par le langage. Il la produisait par lintonation, le regard, le gest, lintention transparent, le silence mme [...]. 33
No ano seguinte publicao do livro de Barbey, Charles Baudelaire escreve
uma resenha crtica sobre o Salo de 1846. Sugerindo a vitria da civilizao industrial
e burguesa no reinado de Lus Felipe, alm de um incipiente processo de massificao
social, Baudelaire lanar nesse ensaio sobre as obras de arte contemporneas as bases
da sua teoria da modernidade e do dandismo. A referncia ao texto de Barbey
explcita: Relendo o livro Du dandysme, do sr. Barbey dAurevilly, o leitor ver
claramente que o dandismo uma coisa moderna e que resulta de causas totalmente
novas. As causas sugeridas pelo poeta j se encontram esboadas na oblqua
dedicatria que ele faz aos burgueses: VS SOIS A MAIORIA nmero e
inteligncia; portanto, sois a fora que a justia.34 A associao entre inteligncia
e nmero, alm do poder de deciso que Baudelaire, j nessa poca, reconhece
maioria, sugerem que a teoria do dandismo do poeta, dali para frente, haveria de lidar
com o inevitvel fenmeno da democracia. Fenmeno este que ele, a maneira de
Tocqueville, anos mais tarde identificar enquanto um movimento quase providencial,
no qual a ditadura de opinio e a mediocridade cultural impostas pela fora do maior
33 AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell, p. 37-44-45-80. Esta nota tambm se refere s citaes anteriores.
34 BAUDELAIRE, Charles. Salo de 1846. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p.671.
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nmero ameaam a liberdade e a autonomia do indivduo. A concluso do autor em sua
dedicatria ironicamente bvia: portanto, a vs, burgueses, que este livro
naturalmente dedicado; porque todo livro que no se dirige maioria em nmero e
inteligncia um livro tolo.35
Ao princpio igualitrio e uniformizador, condensado simultaneamente na arte e
na opinio pblica, Baudelaire entrev uma tarefa herica para modernidade: descobrir
a beleza peculiar ao tempo presente, escapando, assim, da lgica de modelos e padres
absolutos. A atitude esttica no mbito da arte correlata questo democrtica: ela
incide sobre a necessidade imperiosa do indivduo esforar-se para se destacar, ou se
fazer reconhecer, em um quadro de uniformidade geral no qual a alma pblica se
ocultaria sob um vu de luto que testemunha a igualdade universal. Para Baudelaire, o
belo atemporal to absurdo e impalpvel quanto a igualdade absoluta: uma abstrao
empobrecida na superfcie geral das diferentes belezas na qual se perdem os indivduos
e suas especificidades.36
Durante o Segundo Imprio francs depois de Revoluo de 1848, com sua
Repblica malograda, e da ascenso de Napoleo III ao poder no incio da dcada de
1850 , Baudelaire se tornar, segundo Albert Camus, o terico mais profundo do
dandismo, um fenmeno de motivos atuais e de implicaes intensas com o tempo
presente. No por acaso nesse perodo o poeta inscrever sua teoria, de forma ainda
mais decisiva do que Barbey, no mbito da revolta e definir o dandismo por sua
inabalvel disposio para se opor banalidade do mundo burgus, tirania da maioria
e das convenes sociais. Na Paris do Segundo Imprio, aos poucos tomada por uma
arquitetura de fachadas que pretendia enterrar a memria da turbulenta capital francesa
35 BAUDELAIRE, Charles. Salo de 1846. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 672.
36 BAUDELAIRE, Charles. Salo de 1846. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 729.
26
em 1848 uma cidade voltil e anrquica, bem prxima daquilo que os socilogos
modernos chamariam de cidade vrus, expandindo-se e reagindo com
imprevisibilidade temerria, muito alm do controle racional37 , o dndi baudelairiano
no prescindir de uma cuidadosa performance e de uma profunda valorizao das
aparncias.
I. 2 A fabricao das aparncias
Em seu famoso ensaio sobre o aquarelista Constantin Guys, Baudelaire
pretendeu desenvolver uma teoria histrica e racional do belo. Um trao caracterstico
do seu estudo consiste na inverso da hierarquia filosfica entre essncia e aparncia.38
A procura por uma beleza abstrata, eterna e atemporal, deveria ceder lugar ao fascnio
pelo circunstancial, pela moral e pelos costumes do presente, pelo luminoso que salta
aos olhos quando refletidos, inclusive, pela moda:
O belo constitudo por um elemento eterno, invarivel, cuja quantidade excessivamente difcil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que ser, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a poca, a moda, a moral, a paixo. Sem esse segundo elemento, que o invlucro aprazvel, palpitante, aperitivo
37 CHRISTIANSEN, Rupert; RODRIGUES, Valria. Paris babilnia: a capital francesa nos tempos da Comuna, p. 95.
38 Em tom polmico, Hanna Arendt fornece um testemunho preciso dessa hierarquia: a pergunta refere-se mais a uma causa do que a uma base ou um fundamento; mas a questo que a nossa tradio filosfica transformou a base de onde algo surge na causa que a produz; e em seguida concedeu a este agente eficaz um grau mais elevado de realidade do que aquele atribudo ao que se apresenta meramente aos nossos olhos. A crena de que a causa deve ocupar um lugar mais alto que o efeito (de tal forma que o efeito pode ser facilmente diminudo quando se remonta sua causa) encontra-se entre as mais antigas e obstinadas falcias metafsicas. [...] Essa hierarquia foi recentemente desafiada de um modo que me parece altamente significativo. Em vez das aparncias serem funes do processo vital, no seria o processo vital funo das aparncias? J que vivemos em um mundo que aparece, no muito mais plausvel que o relevante e o significativo, nesse nosso mundo, estejam localizados precisamente na superfcie? ARENDT, Hanna. A vida do esprito, p. 21-23.
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do divino manjar, o primeiro elemento seria indigervel, inaprecivel, no adaptado e no apropriado natureza humana.39
Na opinio do poeta, essncia e aparncia quase se confundiriam:
[...] a idia que o homem tem do belo imprime-se em todo o seu vesturio, esgara ou retesa sua roupa, arredonda ou alinha o seu gesto e inclusive impregna sutilmente, com o passar do tempo, os traos do seu rosto. O homem acaba por se assemelhar quilo que gostaria de ser.40
Contra o gosto clssico e pedante dos acadmicos, sempre dispostos a
negligenciar os costumes do tempo presente, a nfase da anlise de Baudelaire recai
justamente sobre aquilo que ganha visibilidade no mundo contemporneo, seus
elementos transitrios, fugidios e em constante metamorfose, aos quais o poeta deu o
nome de modernidade:41 suprimindo-os, camos forosamente num vazio de uma
beleza to abstrata e indefinvel, como a da nica mulher antes do primeiro pecado.42
Segundo Olgria Matos, foi atravs do elogio das aparncias promovido por
Baudelaire deslocando a tradio para o moderno contracorrente da trajetria da
filosofia no Ocidente que cindiu essncia e aparncia que Walter Benjamin pde
reconhecer no poeta o sentimento de que a essncia retirou-se do mundo e dela s
39 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 852.
40 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 852.
41 Hans Robert Jauss lembra que o termo modernidade procede de uma longa histria filolgica e que foi confirmado, pela primeira vez, por Chateaubriand em 1849. No entanto, o autor afirma que o emprego do vocbulo por parte de Baudelaire teria sido decisivo para a criao de uma nova esttica. JAUSS, Hans Robert. Tradio literria e conscincia atual da Modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histrias de literatura: as novas teorias alems, p. 49.
42 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 859-860.
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restou sua ausncia, ausncia a ser presentificada pelo frvolo, pelo travestimento, pela
maquiagem.43
Pois bem, o tema do dandismo concerne ao lado mais ftil e aparente do
universo literrio baudelairiano: Que o leitor no se escandalize com essa gravidade no
frvolo, que se lembre de que h uma grandeza em todas as loucuras, uma fora em
todos os excessos44, avisa o poeta que no tardaria a dotar seu estudo sobre o dandismo
de caracteres hericos. No caso especfico, essa dimenso herica na teoria de
Baudelaire se fundar sobre uma ambigidade fundamentalmente nova: a tenso entre a
necessidade de autofabricao do indivduo de uma persona herica, da estetizao e
do violento constrangimento de si e a revelao do ator em sua apario ou
performance no espao pblico.
Assim, de um lado, a fabricao no dandismo corresponderia valorizao da
aparncia, construo de um personagem que, ao criar seus artifcios, mede foras
contra a natureza, rebelando-se contra a metafsica do belo, e do bom absolutos.45 J a
performance, por sua vez, corresponde atuao do dndi quando este se ope, em sua
revolta, mediocridade do mundo burgus. Esses dois elementos destacados na anlise
no podem ser pensados separadamente: o processo de fabricao de um personagem
dndi a preocupao com a elegncia, com a maquiagem e adereos, por exemplo
so as condies materiais indispensveis para que essa figura pretensamente herica
ganhe luminosidade no espao pblico, exercitando, assim, seu amor aristocrtico pela
distino.
43 MATOS, Olgria C. F; Aufklrung na metrpole: Paris e a via Lctea. In: BENJAMIN, Walter. Passagens, p. 1136.
44 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 871.
45 JAUSS, Hans Robert. Tradio literria e conscincia atual da Modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histrias de literatura: as novas teorias alems, p.80.
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No que tange atividade de fabricao e sua ntima conexo com esta
revalorizao das aparncias, Hannah Arendt nos oferece algumas importantes
sugestes. Em sua obra A condio humana, a autora confere atividade da fabricao
a dignidade de construir os artifcios durveis do mundo humano e de atenuar os
esforos dos homens envolvidos no labor ocupao cuja principal caracterstica
consiste no seu total condicionamento pelas necessidades vitais. Arendt destaca que os
gregos buscaram na fabricao um remdio para a fragilidade dos seus negcios: os
muros da polis, bem como suas leis, eram vistos como ocupaes pr-polticas,
destinadas, de um lado, a controlar a imprevisibilidade da ao humana; de outro, a
assegurar as oportunidades para que os homens adquirissem fama imortal, ou seja,
multiplicar para cada homem as possibilidades de distinguir-se, de revelar em atos e
palavras sua identidade singular e distinta.46
Hannah Arendt reconhece na nfase dada pelos filsofos socrticos fabricao
o desejo de inibir as aes dos homens, assim como uma forte tendncia
instrumentalizao da poltica tendncia essa cujo catastrfico resultado consistiria
numa progressiva reduo do poltico s categorias de meios e fins. Contudo, a autora
no desdenha dos servios do homo faber, especialmente em sua mais nobre habilidade,
a fabricao das obras de arte:
Se o animal laborans precisa do homo faber para atenuar seu labor e minorar o seu sofrimento, e se os mortais precisam do seu auxlio para construir um lar na terra, os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta capacidade, isto , a ajuda do artista, de poetas e historigrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o nico produto de sua atividade, a histria que eles vivem e encenam no poderia sobreviver.47
46 Segundo Arendt, antes que os homens comeassem a agir, era necessrio assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual se pudessem exercer todas as aes subseqentes; o espao era a esfera pblica da polis e a estrutura era a sua lei; legislador e arquiteto pertenciam mesma categoria. ARENDT, Hannah. A condio humana, p. 207.
47 ARENDT, Hannah. A condio humana, p 187.
30
Sendo os produtos mais durveis da atividade de fabricao, as obras de arte
galgaram um lugar especfico no conjunto dos artifcios humanos medida que
venceram o efeito corrosivo do tempo, emprestando ao mundo dos homens uma
representao prpria: como se a estabilidade humana transparecesse na
permanncia da arte, de sorte que certo pressentimento de imortalidade no a
imortalidade da alma, ou da vida, mas de algo imortal feito por mos mortais adquire
presena tangvel para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido.48
Uma vez que a teoria baudelairiana do dandismo admite uma espcie de
estetizao de si traduzida pelo desejo que os dndis nutrem de cultivar a idia do
belo em suas prprias pessoas, ou ainda, pelo esforo de parecerem ininterruptamente
sublimes , ela tambm deve pressupor um pblico espectador. Portanto, essa espcie
de autofabricao est intimamente ligada criao de condies materiais capazes de
dotar um dndi de aparncia. Segundo Bethnia Assy, respeito de Hannah Arendt, o
homem confirmaria o seu aparecimento no mundo atravs de uma operao de duplo
carter: tanto por meio da fabricao, da produo do mundo, por sua poesis, o assim
denominado mundo dos artefatos, quanto, por conseqncia, pelo prprio espao de
ao, de movimento, de posicionamento, de prxis, que este mundo manufaturado torna
possvel.49
Partindo dessa concepo, podemos comear a entender porque a moda no
desempenha um papel menos importante no dandismo de Baudelaire. A pele
manufaturada do heri moderno deve imant-lo de uma beleza singular e distinta.50
48 ARENDT, Hannah. A condio humana, p 181.
49 ASSY, Bethnia. Hannah Arendt e a dignidade da aparncia. In: DUARTE, Andr; LOPREATO, Christina da Silva Roquette; MAGALHES, Marionilde Brepohl de. A Banalizao da violncia: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt, p.164.
50 Esse aspecto no passou desapercebido por Walter Benjamin. Em sua obra Passagens, o autor anota: Sobre a teoria do dandismo. A confeco ltimo ramo de negcios no qual o fregus ainda tratado individualmente. Histria dos doze fraques. O papel comitente torna-se cada vez mais herico. BENJAMIN, Walter. Passagens, p. 413.
31
Enquanto o poeta ressaltava ironicamente no Salo de 1846 o costume das vestimentas
negras e da sobrecasaca no sculo XIX, argumentando sobre sua beleza poltica e
potica, smbolo de um luto irreparvel da alma pblica,51 ele era descrito, em algumas
das suas aparies em pblico, usando uma cala preta bem apertada sobre a bota de
verniz, um bluso gola rul azul de pregas novas bem esticadas; [...] a roupa branca de
algodo brilhante, rigorosamente sem goma, e luvas cor-de-rosa bem novas.52 Por esse
ngulo, mesmo a valorizao baudelairiana da extravagncia artstica revela uma ntima
conexo, operada pelo poeta, entre a fabricao do indivduo e a necessidade da sua
distino. Necessidade essa que depende, fundamentalmente, de que a sua aparncia se
apodere dos sentidos de algum espectador:
[...] essa dose de extravagncia que constitui e define a individualidade, sem a qual no existe belo, desempenha na arte [...], o papel do gosto ou do condimento nos pratos, j que estes s se diferem uns dos outros abstrao feita de sua utilidade ou da quantidade de substncia nutritivas que contm pela idia que apresentam lngua.53
O exotismo nesse caso, sem dvida, se configura como a garantia de distino
em meio massificao da sociedade. Massificao, alis, que caminha lado a lado,
para Baudelaire, com a democracia no sculo XIX. a resistncia a esse movimento
inelutvel que compele o sujeito a reinventar-se, a munir-se de uma couraa ou
mesmo transformar-se em um ator, um mmico caricato. Segundo Michel Foucault, o
homem moderno, para Baudelaire, no algum que vai em busca de si mesmo, de seus
segredos e de sua esquiva verdade; algum que procura inventar-se a si mesmo. Esta
51 A ver os seguintes fragmentos: um imenso desfile de coveiros, coveiros polticos, coveiros burgueses. Todos ns celebramos algum enterro. Uma libr uniforme de desolao testemunha a igualdade universal. BAUDELAIRE, Charles. Salo de 1846. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa , p. 729.
52 Descrio de Nadar recolhida por Walter Benjamin. BENJAMIN, Walter. Passagens, p. 277.
53 BAUDELAIRE, Charles. Exposio universal (1855). In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 774.
32
modernidade no libera o homem em seu prprio ser, mas o constrange a enfrentar a
tarefa de se produzir a si mesmo.54
No caso do dandismo, essa reinveno torna-se algo de uma natureza ainda mais
radical, uma vez que transformar a si mesmo em um objeto artstico significa submeter-
se violncia inerente a todo processo de fabricao, tanto mais que, como lembra
Arendt, o processo de reificao da obra de arte em muito ultrapassa uma mera
transformao: transfigurao, verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza,
que requer que tudo queime at virar cinzas, fosse invertido de modo que at as cinzas
pudessem irromper em chamas.55
Esse processo de carter quase alqumico no por acaso Arendt cita um poema
de Rilke cujo ttulo Mgica parece reter alguma proximidade com o elogio da
maquiagem promovido por Baudelaire. Na opinio do poeta, o uso da maquiagem se
impe como uma necessidade imperiosa de corrigir a natureza e no de ressalt-la ou
coloc-la em evidncia. A mulher, atravs desse artifcio, deve se esforar em parecer
mgica e sobrenatural, qualidade que poderia lhe ser atribuda, por exemplo, pelo uso
do p-de-arroz, cujo efeito tende a fazer desaparecer da tez todas as manchas que a
natureza nela injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na textura e na cor da
pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima o ser humano da esttua
[...].56 Domna C. Stanton reconhece no elogio da maquiagem baudelairiano o elemento
mais bem sucedido no processo de autofabricao do dndi:
Among the available instruments of the transformative principle, none achieves the passage from subject to the object more dramatically or more radically than makeup, a metonymy for the entire process of the
54 FOUCAULT apud MATOS, Olgria C. F. Baudelaire: antteses e revoluo. In: ALEA Revista de estudos neolatinos da faculdade de Letras da UFRJ, p. 88.
55 ARENDT, Hannah. A condio humana, p. 182.
56 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 876.
33
making oneself up, making up for ones natural deficiencies, or better, making one self into naturally is not.57
O dndi, como o homo faber, trava uma incessante luta contra tudo o que
natural. Submete-se a uma srie de violentas transformaes no seu processo de
autoconstruo, para afastar-se da natureza animalizada e criminosa do homem: tudo
quanto belo e nobre o resultado da razo e do clculo, pensava Baudelaire. Se para
o homo faber, como lembra Arendt, o fim justifica a violncia cometida contra a
natureza para que se obtenha o material, tal como a madeira justifica matar a rvore e a
mesa justifica destruir a madeira, para Baudelaire, todo o emaranhado de condies
materiais aos quais um dndi se submete tambm possui uma finalidade: conformam
uma espcie de ginstica moral apta a fortificar a vontade e disciplinar a alma. As leis
dessa doutrina da originalidade, apesar de no se encontrarem escritas, so to rgidas
quanto as regras do estoicismo, religio que, para Baudelaire, possuiria apenas um
sacramento, o suicdio.58 Uma espcie de sacrifcio simblico no qual o ser natural do
indivduo cede lugar a um ser artificioso de uma espcie totalmente nova: self-
consumption is the precondition to self-consummation. In the baptism of fire, the
dandy-martyr is (re)born.59
Atravs desse processo, o dndi aspira auto-suficincia, encena a conquista de
um poder transformador contra o qual a natureza estaria em clara desvantagem. Tais
elementos de violao, que no dandismo so dirigidos contra o prprio ser, encontram-
se, de acordo com Hannah Arendt, em todo processo de fabricao: o homo faber,
57 STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p.183.
58 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 871.
59 STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p.195.
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criador do artifcio humano, sempre foi um destruidor da natureza.60 No entanto,
mesmo que um dndi se valha de todo esse complexo processo de autoconstruo e
mesmo que ele afete uma postura blas, esse heri desocupado no se apresenta ao
pblico como um fabricante, nem mesmo suporta as dores do mundo atravs de um
isolamento estico de toda a realidade terrena. Talvez o papel mais adequado a essa
figura seja o de um ator.
60 ARENDT, Hannah. A condio humana, p. 152. Jean Paul Sartre observou com perspiccia o desdm baudelairiano pelo mundo natural em suas ralaes com o moderno mundo do trabalho. Assim o filsofo anota: A la origine de cet anti-naturalisme, bien plus que le doctrine perime de la grce, il y a la rvolution industriele du XIX sicle e lapparition du machinisme. Baudelaire est emport par le courant. Certes, louvrier ne lintetresse gure; mais le travail lattire car il est comme un pense imprime dans la matire. A esse respeito ver: SARTRE, Jean Paul. Baudelaire, p. 119.
CAPTULO II O domnio das aparncias
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Captulo II
O domnio das aparncias
II. 1 O ltimo rasgo de herosmo nas decadncias
Segundo Baudelaire, pode-se considerar o dandismo uma instituio vaga e
estranha na qual seus adeptos compartilham do mesmo carter de oposio e revolta
contra a banalidade do mundo moderno. Uma casta rica, ociosa e distinta, que prima,
sobretudo, pelas faculdades mais caras ao esprito humano: cultivar a idia do belo em
suas prprias pessoas, satisfazer suas paixes, sentir e pensar. A altivez do esprito,
junto com o tempo e dinheiro disposio, confere ao dndi um ar aristocrtico, uma
expresso singular digna de um homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido
desde a juventude.
Forjando seu carter artificialmente, sob as duras penas de uma incansvel
ginstica moral, o dndi podia entregar-se ao refinamento do esprito e da cultura.
Assim, para Baudelaire, o dandismo conformaria uma nova espcie de aristocracia.
Esses homens, certo, dependiam do dinheiro para dispor de tempo para contemplao
das artes, do esprito e da vida em geral. Entretanto, no era a riqueza a miragem guia
de suas aes, mas to-somente um meio. Como notou Baudelaire, ecoando Barbey
dAurevilly, um dndi
no aspira ao dinheiro como uma coisa essencial; um crdito ilimitado poderia lhe bastar: ele deixa essa grosseira paixo aos vulgares mortais. O dandismo no sequer, como parecem acreditar muitas pessoas pouco sensatas, um amor desmesurado pela indumentria e
37
pela elegncia fsica. Para o perfeito dndi, essas coisas so apenas um smbolo da superioridade aristocrtica de seu esprito.61
Para o poeta francs, o dandismo representaria ainda o ltimo rasgo de
herosmo nas decadncias, foco de resistncia mar montante da democracia que
tudo invade e que tudo nivela.62 Nesse ponto, nos permitido perguntar a respeito do
tipo de herosmo do qual nos fala Baudelaire. Talvez seja necessria uma pequena
digresso para melhor determinar o que permitiria ao poeta conformar o arqutipo do
dndi ao de um heri, formulando a peculiar imagem para represent-lo no sem
alguma ironia de um Hrcules sem emprego.
De acordo com Miguel Abensour, a Revoluo de 1789 teria reintroduzido na
Frana a dimenso herica da grandeza. Em seu artigo O herosmo e o enigma
revolucionrio, Abensour procura nos arqutipos de heris encarnados por alguns dos
personagens da Revoluo, um foco de inteligibilidade de um modo de agir poltico
que, de outra maneira, correria o risco de permanecer opaco.63 Para o filsofo, o
arqutipo do heri uma pea chave para a compreenso da enigmtica identidade de
um novo ator no cenrio poltico moderno: a figura do revolucionrio, a qual
Tocqueville no deixou de notar com um certo misto de espanto e admirao.64
Ancorado na tese de Walter Benjamin a saber, do heri como sujeito da
modernidade e numa definio sbria de herosmo, inspirada em Hannah Arendt
a excelncia, a distino, o consentimento em agir e falar na cena pblica 65
61 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 870-872. Esta nota tambm se refere s citaes anteriores.
62 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 872.
63 ABENSOUR, Miguel. O herosmo e o enigma do revolucionrio. In: NOVAES, Adauto. Tempo e historia, p. 208.
64 ABENSOUR, Miguel. O herosmo e o enigma do revolucionrio. In: NOVAES, Adauto. Tempo e historia, p. 208.
65 Walter Benjamin, inspirado em Baudelaire, pensa que para viver a modernidade, preciso uma constituio herica. Assim, o autor entende que o herosmo do poeta se fundaria na necessidade da
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Abensour procura analisar um conjunto de caracteres especficos, no apenas ticos e
polticos, mas tambm estticos, para destacar no herosmo moderno um plo
magntico dos tempos revolucionrios que
suscetvel de engendrar uma rea de atrao ou de repulso mal determinada, que pode ir do entusiasmo ao horror. O herosmo, dimenso constitutiva e no ornamental, faz referncia a um certo modo de ser, de um complexo de atitudes especficas que do forma poltica revolucionria e lhe imprimem sua singularidade.[...] No se trata apenas de uma dimenso constitutiva da cena revolucionria, porm mais ainda, se se quiser ir mais profundamente, de uma verdadeira disposio efetiva (Stimmung), da tonalidade da poca, da tonalidade efetiva de fundo. Por isso, no se trata de uma disposio subjetiva, mas de um clima, de uma tonalidade que emana fenomenologicamente das coisas, do mundo. 66
Considerando que a Revoluo Francesa no permaneceu confinada no sculo
XVIII mas, ao contrrio, se desdobrou em inmeros conflitos durante todo o sculo
seguinte, fatalmente essa tonalidade efetiva de poca tambm atravessou o tempo.
Alxis de Tocqueville, em suas memrias sobre a Revoluo de 1848, nos d uma clara
demonstrao de como a Revoluo de 1789, com seu esprito encarniado de luta,
invadira o sculo XIX disseminando uma srie imprevisvel de conflitos:
Nossa histria, de 1789 a 1830, vista de longe e em seu conjunto, manifestava-se a mim como o quadro de uma luta encarniada, travada durante 41 anos, entre o Antigo Regime suas tradies, lembranas, esperanas, seus homens representados pela aristocracia , e a Frana nova, conduzida pela classe mdia. Parecia-me que 1830 tinha fechado esse primeiro ciclo de revolues ou melhor, da nossa Revoluo, porque h apenas uma, aquela que se mantm inalterada
construo de um artifcio que permitiria ao individuo munir-se de uma couraa contra o mundo coisificado e impessoal das mercadorias. Abensour destaca ainda em seu ensaio, o fato de que Hannah Arendt preteriu o sentido tardio de heri como um semi-deus, pela definio de um herosmo sem qualidades hericas. Segundo a autora, originalmente, isto , em Homero, a palavra heri era apenas um modo de designar um homem livre que houvesse participado da aventura troiana e do qual se podia contar uma histria. A conotao de coragem, que hoje reputamos indispensvel em um heri, j est, de fato, na mera disposio de agir e falar, de inserir-se no mundo e comear uma histria prpria. A esse respeito ver respectivamente: BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo; ARENDT, Hannah. A condio humana, p. 199.
66 ABENSOUR, Miguel. O herosmo e o enigma do revolucionrio. In: NOVAES, Adauto. Tempo e historia, p. 215-216.
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atravs de fortunas e paixes diversas, que nossos pais viram comear e, segundo toda probabilidade, ns no veremos terminar.67
No entanto, aquela tonalidade herica acomodou-se a uma sociedade que
rapidamente ganhava contornos burgueses, enquanto espreitava o dilema entre a
liberdade de zelar por seus afazeres privados e o cuidado com as coisas do mundo
pblico.68 Sob a gide desse novo conflito interno poderia se inscrever, por exemplo, a
participao de Baudelaire nos eventos de 1848. Durante a Revoluo de fevereiro, ele
teria integrado ativamente as barricadas e abraado a causa republicana. Porm, como se
sabe, o poeta tinha mais do que boas intenes e esprito pblico: alm de lhe interessar
a morte do seu padrasto, o general Aupick, durante o conflito, o escritor, endividado,
experimentava a sensao excitante de que tudo permitido, de que os credores iro
rasgar as inteis promissrias, de que os oficiais de justia no causaro medo a
ningum, de que os pagamentos esto suspensos, de que a justia est de frias.69
Ao que parece, os eventos da Revoluo de 1848 tero de fato uma importncia
decisiva para composio de certos caracteres hericos presentes na teoria do dandismo
de Baudelaire. O conflito inteiro recheado de descries de pretensos heris e mrtires
da causa operria ou republicana. Dolf Oehler lembra que vrios atores de 1848 entre
eles poetas laureados como Victor Hugo e Lamartine , tendem a representar a si
mesmos como mrtires e a transfigurar romanticamente suas aes efetivas ou seus
sofrimentos.70 O dndi baudelairiano preservar a hipocrisia dos novos tempos
67 TOCQUEVILLE, Alxis. Lembranas de 1848, p. 34.
68 Ainda na primeira metade do sculo XIX, Benjamin Constant, em seu artigo Da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos, argumenta que a liberdade dos homens da antiguidade de exercer continuamente seus direitos polticos, e de discutir diariamente os negcios do estado, no convinha mais aos tempos modernos. Na sociedade comercial, onde cada indivduo est absorvido por suas prprias especulaes, por seus empreendimentos, as liberdades individuais, privadas, no devem ser obscurecidas pela devoo integral s questes pblicas. A esse respeito ver: Da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos. In: CONSTANT, Benjamin. Escritos de poltica.
69 TROYAT, Henri. Baudelaire, p. 127.
70 OEHLER, Dolf. O Velho mundo desce aos infernos, p. 48.
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forando a simulao metdica e calculada de alguns valores, ou mesmo de convenes
sociais, aos limites de uma encenao teatral: O homem de esprito, aquele que nunca
estar de acordo com os outros, deve esforar-se em apreciar a conversa dos imbecis ou
a leitura dos maus livros. Disso extrair amargas alegrias que amplamente compensaro
sua fadiga, pensava o poeta.71 O manejo das tcnicas necessrias a esse tipo de
atuao, que envolve ainda uma srie de detalhes para compor um personagem,
aproxima, parcialmente, o dandismo de Baudelaire a uma espcie de herosmo
identificada por Miguel Abensour durante a Revoluo Francesa: o herosmo de
domnio das aparncias,
no qual o trabalho da auto-fabricao do heri est inteiramente subordinado ao domnio exercido sobre a opinio de outrem. J no se trata de lutar contra a mentira das aparncias, de a destruir em nome da verdade da natureza, mas, pois que essa mentira social pensada como um dado irrecusvel, ontolgico, pois co-extensivo ao ser do social, trata-se antes de a se inscrever, de servir-se dela para melhor a dominar, controlar. No se trata mais, para o heri, de erigir-se em encarnao da sinceridade e da autenticidade, mas de forjar para si a melhor mscara, a saber, a mscara mais eficaz, aquela que assegure o poder de se separar dos homens ordinrios e de se fazer reconhecer por eles como um homem extra-ordinrio, isto , um heri.72
Pode-se dizer que, no caso de Baudelaire, de fato, estamos diante de um
herosmo assumidamente hipcrita: ao mesmo tempo em que o poeta define o dandismo
enquanto uma instituio margem das leis, ele no deixa de reconhecer nos dndis
uma necessidade intensa de alcanar a originalidade dentro dos limites exteriores da
convenincia.73 O dndi desempenha um papel oblquo entre os valores por ele
representados e, simultaneamente, negados. Assim, se a sociedade do espetculo das
Exposies Universais e da ufania em torno do Progresso e da democracia, por
71 BAUDELAIRE, Charles. Meu corao a nu. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 547.
72 ABENSOUR, Miguel. O herosmo e o enigma do revolucionrio. In: NOVAES, Adauto. Tempo e historia , p. 228.
73 BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 873.
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exemplo, foi implantada pelo regime napolenico do Segundo Imprio e, com ela,
uma alta dosagem de tdio um dos grandes males do sculo , o dndi baudelairiano
ser naturalmente entediado ou, por razes de casta, tambm fingir s-lo.
Se um dndi aspira insensibilidade e indiferena, no lhe custar acusar
criticamente no burgus seu sangue frio e o seu dandismo orgulhoso por no ter cado
to baixo como aqueles que passam pela rua.74 E se, ao mesmo tempo, o Progresso por
ele definido como uma fora cruel sempre negadora de si mesma, cuja marca
principal seria a de um suicdio sempre renovado,75 o suicdio, por sua vez, exaltado
como uma paixo herica, uma das quintessncias da beleza moderna e um emblema
simblico para todo o dandismo.
Durante os Segundo Imprio francs Baudelaire assumir cada vez mais uma
postura dndi. Em um dos seus fragmentos ntimos ele anota: O que penso do voto e
do direito a eleies. So direitos do homem. O que em qualquer funo h de vil. Um
dndi limita-se a no fazer nada. Poder-se-ia imaginar um Dndi falando ao povo a no
ser para o espezinhar?76 Tal atitude seria, para alguns crticos, correlata sua decepo
com a poltica e com mundo pblico:
A agitao das ruas e dos clubes no lhe diz mais respeito. Seu destino est na miragem, no na ao; na poesia, no poltica. Quem quer ser um dndi deve, segundo ele, renunciar a toda convico que o aproxime dos seus concidados. Os seres de exceo so conhecidos por aquilo a que se apegam, haja o que houver, acima das idias herdadas e dos acontecimentos da vida pblica. Um regime s lhes pode convir se no perturbar os seus sonhos de estetas solitrios e de perscrutadores do absoluto.77
74 BAUDELAIRE, Charles. Projteis. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 517.
75 BAUDELAIRE, Charles. Exposio Universal (1855). In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 775-776.
76 BAUDELAIRE, Charles. Meu corao a nu. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 530.
77 TROYAT, Henri. Baudelaire, p. 142.
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Para Jean Paul Sartre, o dandismo baudelairiano conformaria, praticamente, um
ideal de esterilidade absoluta: a figura arquetpica do dndi, le parasite des parasites,
no faria mais do que criar em suas potenciais excentricidades, atos vazios de
substncia e gratuitos que, dado sua natureza efmera e o seu af de originalidade
exclusiva, esto fadados ao desaparecimento. De acordo com o filsofo, o dandismo de
Baudelaire seria gratuit, sans doute, mais il est aussi parfaitement inoffensive. Il ne
bouleverse aucune des lois tablies. Il se veut inutile et, sans doute, il ne sert pas [...].78
Assim, em grande parte dos comentadores a pose de revolta propagada por
Baudelaire enquadra-se, essencialmente, numa postura conservadora ou, at certo ponto,
ingnua. Por esse vis interpretativo, o contedo da revolta no dandismo do poeta se
torna um clich contra o qual ele dramatiza sua originalidade, uma oposio frvola e
de carter eminentemente privado, desprovida de qualquer inteno ou impacto
politicamente subversivo.79 No mesmo sentido pejorativo, Henri Troyat anota que,
aps o sombrio desfecho dos eventos de 1848, a maior preocupao de Baudelaire
quando saa rua era tornar-se um personagem, iludir seus contemporneos, e, se
preciso, provocar um pequeno escndalo. A um funcionrio que lhe censura
timidamente os temas, to pouco amveis, dos seus poemas ele replica: Senhor,
para assustar os tolos.80
78 SARTRE, Jean Paul. Baudelaire, p. 154.
79 STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p. 75-76. Jean Paul Sartre nos oferece, ainda, um outro claro exemplo desse tipo de interpretao ao comentar sobre o papel do Mal na potica baudelairiana. De acordo com o filsofo, a escolha deliberada de Baudelaire pelo Mal, no faz mais do que afirmar o Bem, ou, se quisermos, a ordem vigente, negando-o: Pour que la libert soit vertigineuse, elle doit choisir, dans le monde thocratique, davoir infiniment tort. Ainsi est-elle unique dans cet univers tout entier engag dans le Bien; mais il faut quelle adhre entirement au Bien, quelle le maintienne e le renforce, pour pouvoir se jeter dans le Mal. [...] En un certain sens il cre: il fait apparatre, dans un univers ou chaque lment se sacrifie pour concourir la grandeur de lensemble, la singularit, cest--dire la rbellion dum fragment, dum dtail. Par l, quelque chose sest produit qui nexistait pas auparavant, que rien ne peut effacer et qui nntait aucunement prepare par la conomie rigoureuse du monde: il sagit dune oeuvre de luxe, gratuite et imprvisible. SARTRE, Jean Paul. Baudelaire, p. 81
80 TROYAT, Henri. Baudelaire, p. 216.
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No entanto, esse elemento cnico e provocador, apontado no dandismo de
Baudelaire e reconhecido pelo prprio poeta, parece guardar um acentuado trao de
intersubjetividade cujo impulso criador e condio de existncia dependem, no mnimo,
da presena de outros homens: ou seja, da constituio de um espao de aparncia, no
qual a sua performance possa se realizar, no se inscrevendo simplesmente numa atitude
passiva.
Por esse ngulo, a significao da revolta no dandismo do poeta ultrapassa o
mero sentido de uma obra de luxo e gratuita: se a afirmao implcita em todo ato de
revolta estende-se a algo que transcende o indivduo, na medida em que o retira da sua
suposta solido, fornecendo-lhe uma razo para agir,81 tambm o carter performtico
do dndi pressupe a composio de um espao pblico como um palco no qual ele
possa desempenhar o seu papel. As mincias da sua preparao, a preocupao com a
prpria imagem, com o texto corporal a linguagem dos gestos, das roupas e da
maquiagem , e com a sua performance caricatural, aproximam a figura do poeta dndi
de um ator no imenso teatro da cidade:
No dado a todo mundo tomar um banho de multido: gozar da presena das massas populares uma arte, e somente ele pode fazer, s expensas do gnero humano, uma festa de vitalidade, a quem uma fada insuflou em seu bero o gosto da fantasia e da mscara, o dio ao domiclio e a paixo por viagens. 82
Nesse sentido especfico, poderamos associar o elemento de atuao presente no
dandismo ao conceito de ao, desenvolvido por Hannah Arendt. Segundo a autora, as
artes de realizao, ou artes performticas, guardariam uma grande afinidade com a
poltica, uma vez que a possibilidade da sua efetivao estaria inteiramente
81 CAMUS, Albert. O homem revoltado, p. 28.
82 BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 289.
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condicionada presena de um pblico. sempre na companhia de outros homens que
o agente, no sbito e curto momento do seu ato, se revela. Essa revelao fruto de
uma iniciativa livre e individual, da disposio em aparecer na presena de outros
homens como um ser singular, distinto em atos e palavras uma opo pela prpria
condio humana, cuja garantia se encontra na pluralidade do mundo:
[...] a ao e o discurso so os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, no como mero objetos fsicos, mas enquanto homens. Esta manifestao em contraposio mera existncia corprea, depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano.83
A questo da aparncia aqui novamente colocada em jogo. Aquele que aparece
no revela uma essncia anterior ao ato que foi capaz de cobri-lo de distino. luz de
uma pluralidade de percepes, inerente a uma pluralidade de espectadores, que se
define a identidade oculta de um agente. Se, na opinio de Arendt, Ser e Aparecer
coincidem, logo, todo processo de revelao tambm atravessado por uma dimenso
intersubjetiva: nada e ningum existe neste mundo cujo prprio ser no pressuponha
um espectador. Nada do que , medida que aparece, existe no singular; tudo que ,
prprio para ser percebido por algum.84 Sob esse ngulo, podemos compreender a
comparao de Hannah Arendt entre a ao poltica e as artes performticas. De acordo
com a concepo da autora, mesmo a polis grega pode ser representada por uma
singular metfora, uma espcie de anfiteatro no qual a liberdade podia aparecer:
As artes de realizao [...] tm, com efeito, uma grande afinidade com a poltica. Os artistas executantes danarinos, atores, msicos e o que o valha precisam de uma audincia para mostrarem seu virtuosismo, do mesmo modo como os homens que agem necessitam da presena de outros ante os quais possam aparecer; ambos requerem
83 ARENDT, Hannah. A condio humana, p. 189.
84 ARENDT, Hannah. A vida do esprito, p. 18.
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um espao publicamente organizado para a sua obra, e ambos dependem de outros para o desempenho em si.85
A virt na ao poltica lio que Arendt aprendeu com Maquiavel consiste
em agarrar a fortuna pelos cabelos, isto , em responder pelo chamado do mundo,
concentrando toda a sua energia no desempenho do ato. De forma parecida, a
virtuosidade artstica no tem outro fim seno a excelncia da sua prpria encenao.
Muito embora essa performance seja capaz de revelar um princpio no caso do
dandismo, o que sempre salta aos olhos o amor pela distino , isso no imuniza uma
ao do seu contato com o pblico, nem com as contingncias prprias ao espao de
aparncia. Mesmo Baudelaire, por mais que conhecesse a solido no seio da multido, e
por mais que afirmasse a auto-suficincia do dndi, no dispensava seu pblico e nem
as circunstncias da atuao:
Aquele que desposa a massa conhece os prazeres febris dos quais sero eternamente privados o egosta, fechado como um cofre, e o preguioso, ensimesmado como um molusco. Ele adota como suas todas as profisses, todas as alegrias, todas as misrias que as circunstncias lhe apresentem.86
As contingncias oferecem ao dndi a melhor maneira de desempenhar o seu
caracterstico papel. Criando uma esttica de negao do progresso e da democracia, o
dndi ope-se ao ardil social criado por essas duas foras da modernidade. Ele procura
fugir da regularidade comportamental imposta pela atmosfera parisiense. No seu af de
produzir sempre o imprevisto, s o que possui uma ligeira deformidade nos desperta
profundamente os sentidos: donde se pode concluir que a irregularidade, isto , a
85 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 200-201.
86 BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p.289.
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surpresa, o espanto e o inesperado constituem parte essencial e caracterstica da
beleza.87
Este elemento de imprevisibilidade, to caracterstico do conceito de ao
desenvolvido por Hannah Arendt, j se encontrava em outros dndis das letras
francesas. Julien Sorel, personagem do romance stendhaliano O vermelho e o negro,
aprendera o grande princpio do sculo: ser o contrrio do que esperam de si.88 Barbey
DAurevilly, em seu j citado tratado sobre o dandismo, acena para essa mesma
particularidade:
[...] une des consquences du dandysme, un de ses principaux caractres pour mieux parler, son caractre le plus gnral , est-il de produire toujours limprvu, ce quoi lesprit accoutum au joug des rgles ne peut pas sattendre en bonne logique. Lexcentricit, cet autre fruit du terroir anglais, le produit aussi, mais dune autre manire, dune faon effrene, sauvage, aveugle. Cest une rvolution individuelle contra lordre tabli, qualquefois contre la nature: ici on touche la folie.89
Assim, mesmo que o processo de autofabricao de uma personagem dndi
correspondesse a uma tentativa do ator de forjar parte da sua prpria identidade, e
mesmo que ele se sirva de estratgias mais ou menos definidas em sua encenao
nunca demais lembrar que Baudelaire cultivava as condutas de mau gosto com uma
espcie de prazer aristocrtico [...] em chocar os outros , a revelao desse
personagem no espao pblico necessita de uma platia. Ainda que, como em um jogo
de espelhos, o dndi explore uma srie de antteses e paradoxos revelando e
ocultando, afirmando e negando atravs do parecer a presena e a ausncia do ser90
o que o define sempre ser a reao extrada de seu pblico, que, por sua vez, capaz de
87 BAUDELAIRE, Charles. Projteis. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p. 508.
88 STENDHAL. O vermelho e o negro, p.424.
89 AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell, p. 47.
90 STANTON, Domna C. The aristocrat as art, p. 189.
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apreend-lo em sua extica e surpreendente apario. Como nos lembra Barbey
dAurevilly, dans le monde, tout le temps que vous navez pas produit deffet, restez.
Si leffet est produit, allez-vous-en!.91 Albert Camus, autor que reconhece no dndi
baudelairiano sempre um opositor, tambm no deixou escapar essa caracterstica
fundamental:
Disperso, na qualidade de pessoa privada de regra, ele ser coerente como personagem. Mas um personagem pressupe um pblico; o dndi s pode desempenhar um papel quando se ope. Ele s pode assegurar-se de sua prpria existncia reencontrando-a no rosto dos outros. Os outros so o seu espelho. Espelho logo ofuscado, bem verdade, pois a capacidade de ateno humana limitada. Ela deve sempre ser despertada, incitada pela provocao. O dndi, portanto, sempre obrigado a impressionar.92
Charles Baudelaire, poeta que dominava a arte de transformar sua mscara
como um criminoso que fugiu da priso, que recitava seus versos mais escandalosos
criando um surpreendente contraste entre a violncia das imagens e a placidez afetada,
a pronncia suave e precisa da dico, homem que se esforava diariamente para
provocar um pequeno escndalo, ele mesmo teria sido, para alguns dos seus crticos,
aquele que mais se revelou para o seu pblico:
Ele foi o primeiro a falar de si de forma moderada, como num confessionrio, e no representou o papel de poeta inspirado. O primeiro que falou de Paris como um condenado cotidiano da capital (os bicos de gs, que se acendem nas ruas e que atormenta o vento da Prostituio, os restaurantes e suas clarabias, os hospitais, o jogo, a madeira cerrada em lenha que recai no calamento dos ptios, e a lareira, e os gatos, camas, meias, bbados e perfumes de fabricao moderna), mas isso de maneira nobre, longnqua, superior... O primeiro que no se faz triunfante, mas se acusa, mostra suas chagas, sua preguia, sua inutilidade entediada, no meio deste sculo trabalhador e devoto. O primeiro que trouxe nossa literatura o tdio na volpia e seu cenrio bizarro: a alcova triste ... e nela a doena (no
91 AUREVILLY, Jules Barbey. Du dandysme et de Georg Brummell, p. 67.
92 CAMUS, Albert. O homem revoltado, p.70-71.
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a Tsica potica, mas a neurose), sem ter escrito este termo uma s vez.93
Se o poeta das Flores do Mal buscava algum sentido herico para o dandismo,
este deveria residir nas mesmas qualidades que tanto o impressionaram em um dos seus
escritores favoritos, Edgar Allan Poe. Firme na convico de que em todas as naes
os grandes homens sempre nasceram sem serem desejados,94 Baudelaire localiza o
herosmo do poeta americano na sua singular resistncia a uma atmosfera altamente
antiptica: um pas democrtico, cuja benvola mscara de liberdade escondia uma
tirania bem mais cruel e mais inexorvel que a de um monarca, a tirania da opinio.
Em circunstncias como essas, para que os homens sobrevivam ao aviltamento
nivelador da modernidade, torna-se necessria uma perfeita e distinta atuao:
Nesse fervilhar de mediocridades, nesse mundo carente de aperfeioamentos materiais, [...] apareceu um homem que no foi grande apenas por sua sutileza metafsica, pela beleza sinistra ou arrebatadora das suas concepes, pelo rigor de sua anlise, mas grande tambm e no menos grande como caricatura. O autor que, no Conversa entre Monos e Una, mostra em abundncia seu desprezo e seu desgosto pela democracia, pelo progresso e pela civilizao, esse autor o mesmo que, para eliminar a credulidade, para maravilhar a babaquice dos seus, foi o que mais energicamente colocou a soberania humana, foi o que mais engenhosamente fabricou os jornais mais elogiosos para o orgulho do homem moderno. Poe aparece para mim como um pria que quer fazer o seu senhor envergonhar-se. Enfim, para afirmar meu pensamento de uma maneira ainda mais clara, Poe sempre foi grande, no apenas em suas concepes nobres, mas ainda enquanto um farsante.95
93 Essa descrio e as demais acima foram recolhidas por Walter Benjamin. BENJAMIN, Walter. Passagens, p. 302 -291- 286.
94 BAUDELAIRE, Charles. Projteis. In: BARROSO, Ivo. (org.) Charles Baudelaire, poesia e prosa, p.507.
95 CHARLES, Baudelaire. Notes nouvelles sur Edgar Poe. In: Oeuvres completes, p. 321.
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II. 2 Herana controversa
Antes de avanarmos cumpre assinalar que, muito embora o dandismo possua
uma origem histrica definida sendo gerado no interior da aristocracia inglesa no
incio do sculo XIX , sua entrada na Frana ser marcada por significativas
transformaes. Se confiarmos em Jonh C. Prevost, as modas e gostos vindos da
Inglaterra no constituram nada alm do aspecto mais superficial do dandismo
francs.96 No entanto, essa afirmao nos parece excessiva, pois determinados
caracteres herdados do tipo britnico, tais como a frieza e o calculismo, por exemplo,
integram parte fundamental nas diversas manifestaes do fenmeno na Frana.97
De certa forma, alguns crticos que se dedicaram ao dandismo procuraram
ressaltar a originalidade francesa, amenizando a influncia exercida pela Inglaterra, ao
encontrarem outros ancestrais para os dndis em solo ptrio. Esses ancestrais no
deixariam nada a desejar em se tratando de uma conduta esttica e uma tica
aristocrtica de vida quando comparados com os homens ftuos da alta sociedade
londrina. assim, por exemplo, que Domna C. Stanton descreve os honnets hommes e
os prcieuses do sculo XVII; enquanto Jonh C. Prevost lembra tipos como o petit-
matre, rou, muscadin e o fashionable, entre os sculos XVIII e XIX.98 Emilien
Carassus, por sua vez, afirma que apesar de todas as influncias inglesas, a
originalidade nacional subsiste.99
Entretanto, este no o ponto que mais nos chama a ateno. No caso deste
estudo, no se trata de decidir sobre uma possvel disputa entre Inglaterra e Frana. Se o
96 PREVOST, John C. Le dandysme en France, p. 163.
97 Alm das caractersticas citadas acima, Barbey dAurevilly considera a vaidade, o orgulho e a excentricidade esse outro fruto do terror ingls , como traos fundamentais herdados dos