BIOEXPRESSÃO: NOVOS RUMOS PARA UMA EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL
NO CURSO DE PEDAGOGIA
Lucia Helena Pena Pereira - UFSJ
Cintia Lucia de Lima – UEMG
Resumo: Considerando-se a necessidade de, no processo de formação de professores,
que o educador, além dos saberes necessários à sua prática, tenha um conhecimento maior
de si mesmo, esta pesquisa teve como um de seus objetivos analisar possibilidades que
despertem os educadores para o contato com sua própria corporeidade, além do cuidado
consigo e com o outro, abrindo caminhos para uma educação que privilegie a
sensibilidade e valorize o ser humano de forma integral. O foco deste estudo foi a
Bioexpressão, disciplina eletiva do Curso de Pedagogia, que possibilita a vivência da
corporeidade, uma vez que trabalha pensamentos sentimentos, ações e inter-relações,
tendo seus fundamentos na teoria de Wilhelm Reich, em sua visão de unicidade soma-
psique. Considerar a corporeidade significa compreender o ser humano como um ser
complexo; um ser racional, mas também envolvido pela afetividade, que age e se inter-
relaciona. Os estudos teóricos tiveram como fundamento autores como Freire (2004);
Maffesoli (2005); Morin (2000; 2001); Nóbrega (2010) e Reich (1995; 1998) entre outros.
Como instrumentos para a coleta de dados no campo, foram utilizadas entrevistas
semiestruturadas e análise dos relatos de experiência da disciplina. Pôde-se concluir que
trabalhar a corporeidade é abrir caminhos para ir além da razão instrumental, valorizando
as múltiplas nuances da razão sensível. É poder investir em uma escola em que não só o
pensamento tenha vez, em que os corpos não fiquem, simplesmente, ocupando as
carteiras, imóveis, inexpressivos. Trabalhar a corporeidade é propiciar que a vida pulse
nas salas de aula, abrindo um leque de possibilidades.
Palavras-chave: Corporeidade; Bioexpressão; Razão sensível.
Para começar...
Este texto apresenta a síntese de uma pesquisa, que teve como um de seus
objetivos analisar possibilidades que despertem os educadores para o contato com sua
própria corporeidade, além do cuidado consigo e com o outro, abrindo caminhos para
uma educação que privilegie a sensibilidade e valorize o ser humano de forma integral.
Para tal, foi analisada a disciplina eletiva Bioexpressão, cuja básica teórica está ancorada
nos estudos de Wilhelm Reich.
Há muito mais que conhecimentos circulando em uma sala de aula. Através de
palavras, gestos, olhares, expressões e atitudes são transmitidos valores e crenças, o que
singulariza cada contexto escolar. Faz-se necessário que o educador, além dos saberes
necessários à sua prática, tenha um conhecimento maior de si mesmo, considerando sua
corporeidade, pois o processo ensino-aprendizagem não se dá somente através da
linguagem verbal, todo o corpo do educador está envolvido nesse processo. Em qualquer
situação,
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[...] o que eu não compreendo em meu corpo não posso compreender em
nenhuma outra parte, por isso o educador precisa adquirir na universidade
conhecimentos que possam ser integrados a sua vida, possibilitando o
desenvolvimento de seus potenciais e descoberta de si mesmo e do mundo que
o cerca (LEPAGNEUR apud PEREIRA, 2011, p. 49).
A partir da necessidade de trabalhar nossos futuros professores para a
compreensão e prática da corporeidade, para que possam ir além da racionalidade, esta
pesquisa se propôs a analisar mais detidamente uma disciplina oferecida regularmente:
Bioexpressão: uma pedagogia do movimento e da expressividade em que o exercício da
razão-sensível se dá de forma sistemática. A razão é uma das dimensões fundamentais
do sujeito, através da qual o ser tem condições de conhecer, aprender, se comunicar e
gerar significados, entretanto há outras dimensões não menos significativas como os
afetos, o cuidado e a sensibilidade nem sempre consideradas.
Maffesoli (2005) aponta dois polos da inteligência humana. “O primeiro, abstrato,
que deriva infalivelmente para o dogmatismo, a intolerância, a escolástica; o segundo,
mais encarnado, atento ao sensível, à criação natural, e que se empenha o mais possível
em evitar a separação” (p. 40-41). E enfatiza que optar pelo segundo não significa abdicar
do intelecto, e sim prevenir-se do “estreitamento da faculdade de compreender”. A razão
sensível é aquela em que o intelecto é desafiado a encontrar um modus operandi que lhe
permita transitar da abstração à imaginação, ao sentimento, ou seja, unir o inteligível e o
sensível.
No âmbito da Educação, a razão sensível se manifesta na proposta da educação
integral, que defende o desenvolvimento das várias dimensões do sujeito, sentir, pensar e
agir. A educação integral implica que o ser seja visto em sua totalidade, o que inclui suas
relações com o seu meio – as interações grupais e com os aspectos socioculturais.
Morin (2000) enfatiza que “uma educação só pode ser viável se for uma educação
integral do ser humano. Uma educação que se dirige à totalidade aberta do ser humano e
não apenas a um de seus componentes” (p. 11). Complementando esta ideia, Pereira
(2011) afirma que a falta de conhecimento e a desvalorização do corpo em relação ao
intelecto têm interferido na relação ensino-aprendizagem e causado limitações ao
desenvolvimento integral do ser humano. Além de uma hipertrofia do pensamento, as
relações sofrem pela ausência da afetividade, do cuidado e do desenvolvimento dos
sentidos e a consequente dificuldade de percepção de si, do outro e do mundo. As
Diretrizes Curriculares para a Educação Básica apontam:
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Cuidar e educar significa compreender que o direito à educação parte do
princípio da formação da pessoa em sua essência humana. Trata-se de
considerar o cuidado no sentido profundo do que seja acolhimento de todos
[...] Educar exige cuidado; cuidar é educar, envolvendo acolher, ouvir,
encorajar, apoiar, no sentido de desenvolver o aprendizado de pensar e agir,
cuidar de si, do outro, da escola, da natureza, da água, do Planeta. Educar é,
enfim, enfrentar o desafio de lidar com gente, isto é, com criaturas tão
imprevisíveis e diferentes quanto semelhantes, ao longo de uma existência
inscrita na teia das relações humanas, neste mundo complexo. Educar com
cuidado significa aprender a amar sem dependência, desenvolver a
sensibilidade humana na relação de cada um consigo, com o outro e com tudo
o que existe, com zelo, ante uma situação que requer cautela em busca da
formação humana plena (BRASIL, 2013, p. 17-18).
Freire (2004, p. 114) enfatiza que “a liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem
sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas, de maneiras de ser, em relação
às quais somos avaliados”. Alguns educadores privilegiam a racionalidade para ensinar,
embora a aprendizagem ocorra também através do sensível, do lúdico, do afetivo.
Seguindo essa mesma linha de pensamento, Kenski (2000) concorda que os corpos falam
a linguagem do impedimento e da restrição no espaço da escola; corpos encolhidos,
troncos fechados, braços e pernas cruzadas, corpos caídos, encostados, parados,
sonolentos e cansados e sem muita perspectiva de ação e escolha, revelam a identidade
do indivíduo e sua posição no contexto educativo.
As práticas educativas rotineiras tornam, muitas vezes, as salas de aula palco da
insensibilidade, desarmonia e desprazer. Kenski afirma ser possível modificar a prática
e a linguagem dos corpos na escola, a partir de atividades lúdicas e corporais, à medida
que essas têm a capacidade de tornar os “corpos dóceis” em corpos cheios de vida,
movimentos e coreografias criativas, que dão um significado diferente à trama escolar.
Uma educação integral visa ao trabalho com o ser em sua totalidade, ou seja,
implica uma visão não dicotomizada do ser, um trabalho que integra suas várias
instâncias, implica trabalhar a corporeidade. Mas o que é isto?
Corporeidade e a configuração da complexidade humana
O corpo é nossa possibilidade de existência no mundo, através dele percebemos o
mundo e com ele nos relacionamos. É um espaço de liberdades e proibições, onde se
revelam a sociedade e a cultura de que fazemos parte. O corpo é fonte de potencialidades,
de expressão, de ação e reação.
Na sociedade capitalista, o corpo pode ser comparado a uma máquina, que deve
funcionar a todo vapor para produzir e agir da forma esperada pela sociedade. Monteiro
(2004) ressalta que esses “corpos-máquinas” são aqueles que vivem para executar,
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obedecer ao que lhes é imposto, seguindo um padrão de sociedade, mais preocupados
com a aparência e com os modismos, sem uma autonomia própria, sem possibilidades de
flexibilização. São esses aspectos frutos de uma construção histórica de visão de corpo e
que são enfatizados na sociedade capitalista. O autor ressalta a necessidade de fazer
surgirem os “corpos-vivos’, capazes de se proporem a mudar, leves, flexíveis, autônomos.
Que conseguem integrar o que sentem e pensam com o que fazem. Estes “corpos-vivos”
se relacionam ao conceito de corporeidade.
Considerar a corporeidade significa compreender o ser humano como um ser
complexo, dotado de intenções, vontades e desejos; um ser racional, mas também
envolvido pela afetividade e motricidade. Este conceito “integra tudo que somos: corpo,
mente, espírito, emoções, movimento, relações com o nosso próprio ‘eu’, com outras
pessoas e com o mundo a nossa volta” (FIORENTIN, ROCHA E LUSTOSA, 2004, p.
336). Como aponta Olivier,
O paradigma da corporeidade vem romper com o modelo cartesiano, não
havendo mais distinção entre essência e existência, ou razão e sentimento. O
cérebro não é o órgão da inteligência, tampouco o coração a sede dos
sentimentos, pois o corpo inteiro é sensível. O homem deixou de ter um corpo
e passou a ser um corpo. Por meio do corpo, ele pode aprender, agir e
transformar seu mundo (1995, p. 62).
Pensar a corporeidade, como ressalta Nóbrega (2010), exige atentar para a
multiplicidade de sentidos e saberes do corpo, “buscando não reduzir o fenômeno a
categorias simplificadoras, mas permitir diferentes olhares, diferentes aproximações e
abordagens, primando pelo diálogo, pela comunicação entre elementos que configuram
esse universo multifacetado” (p. 36), o que compõe sua complexidade. Gallo (2007)
enfatiza que “sendo corpo, relacionamo-nos, comunicamo-nos, convivemos e
produzimos nossas organizações e conhecimentos. Ao manter contato com outras
pessoas, revelamo-nos pelos gestos, pelas atitudes, pelo olhar” (p. 65). É através do nosso
corpo que somos e estamos no mundo.
Acreditamos que a prática é fundamental, que as vivências devam ser
possibilitadas porque as experiências trazem um saber que é, de fato, in-corporado, que
manifesta a corporeidade: sentir, pensar, agir e interagir. Uma questão importante a
apreender é que a realidade não é estática, ao contrário, está em permanente mutação, e é
necessário estarmos abertos para analisar, questionar, observar, criticar, pesquisar,
transformar. A cada dia, o novo se manifesta nas mais diferentes áreas com uma rapidez
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que desafia nossa capacidade de adaptação, nossa flexibilidade diante da vida, diante do
mundo em que vivemos. Isso, sem dúvida, é extremamente inquietante e desafiador.
Formar professores sem uma visão dissociada de teoria-prática e do corpo em
relação ao intelecto é um desafio enfrentado hoje pelas universidades. Morin (2000)
enfatiza que o século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano
pela racionalidade, pois o homem da racionalidade é também o da afetividade, o que
também é manifestado por Freire (2004), que afirma que “a afetividade não se acha
excluída da cognoscibilidade” (p. 141).
À medida que o educador começa a se conhecer melhor, a perceber o seu corpo
e suas próprias dificuldades, a compreender que as emoções fazem parte do seu ser, que
precisam ser olhadas, e não escondidas sob o tapete, alguns entraves de sua prática
podem ser reconhecidos e superados. As dificuldades em compreender o aluno e de se
relacionar com ele são vivenciadas por muitos educadores que ainda não aprenderam a
lidar com suas próprias emoções. Alguns conflitos que acontecem na relação professor-
aluno geram marcas profundas, tanto na vida do professor, quanto na do aluno. Os
educandos por serem submissos ao educador, principalmente as crianças mais novas, são
as mais atingidas por essas marcas. Como afirma Freire,
o professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério,
o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das
gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas,
frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar
sua marca (2004, p. 66).
Porém, pode-se afirmar que o professor que tem bom relacionamento com seus
alunos e consigo mesmo, que tem maior percepção de sua corporeidade e da de seus
alunos, facilitará a apreensão mais plena do saber ensinado. E como isso pode ser feito?
Bioexpressão e a vivência da corporeidade
A Bioexpressão, que possibilita a vivência da corporeidade, uma vez que trabalha
pensamentos sentimentos, ações e inter-relações, tem seus fundamentos na teoria de
Wilhelm Reich. Segundo esta teoria, que tem como grande eixo a unicidade soma-psique,
trabalhar o corpo significa atuar no indivíduo em sua totalidade. Corpo e psique são faces
do ser humano em sua totalidade, o que implica que o corpo expressa os afetos da psique
e a psique expressa a fluidez ou rigidez corporal (REICH, 1995).
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Partindo dessa premissa, se permitimos mudanças na relação com o nosso corpo,
tais mudanças reverberam na nossa forma de pensar e sentir. Perceber o próprio corpo,
suas reações, seus avisos, seus queixumes é uma maneira de nos conhecermos mais e de
compreender melhor a realidade que nos cerca. Se a percepção de nós se desenvolve, o
que significa estar em maior contato conosco, é mais fácil desenvolver atitudes de
cuidado. E este é aspecto fundamental tanto em relação a nós mesmos, quanto em nossas
relações com os grupos sociais e a natureza. Cuidar é assumir a responsabilidade pela
própria vida.
A Bioexpressão, através do movimento expressivo e atividades variadas
(exercícios de respiração, relaxamento, meditação ativa, danças circulares, entre outras)
tem como um de seus focos trabalhar a percepção de si e do outro, caminhos para que a
sensibilidade seja estimulada e para que as inter-relações se tornem mais equilibradas, de
forma que o cuidar de si e do outro sejam incentivados, gerando, também, possibilidades
aos futuros educadores de uma prática mais dinâmica, sensível e significativa (PEREIRA,
2011).
A Bioexpressão oferece uma rica possibilidade de trabalhar a corporeidade e a
relação teoria-prática, tendo como recurso fundamental a ludicidade. Através dela, os
educandos têm acesso a vivências e reflexões. Como ressalta Maffesoli,
[...] ater-se à vivência, à experiência sensível, não é comprazer-se numa
qualquer delectatio nescire, ou negação do saber, como é costume crer, por
demais freqüentemente, da parte daqueles que não estão à vontade senão
dentro dos sistemas e conceitos desencarnados. Muito pelo contrário, trata-se
de enriquecer o saber, de mostrar que um conhecimento digno deste nome só
pode estar organicamente ligado ao objeto que é o seu (2005, p. 176).
A ludicidade, contrariamente ao que muitos pensam, não se restringe apenas ao
jogo ou à brincadeira, implica o envolvimento mais profundo do sujeito, um encontro com
ele mesmo. Segundo Pereira (2011), a atividade lúdica propicia uma experiência de
vivenciar plenamente o aqui-agora; quando nos entregamos a ela, nos envolvemos por
completo, integrando pensamentos, sentimentos e ações. Esta visão mais ampla de
ludicidade pode ser mais facilmente entendida quando vivenciada, como o depoimento de
DB, uma de nossas pesquisadas, atesta: “Pra mim, ludicidade envolvia necessariamente
confusão, desordem. Quando tivemos vivências pude compreender as possibilidades
lúdicas e o quanto algumas podem nos envolver, seduzir e sensibilizar”.
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As atividades bioexpressivas, assim como as lúdicas, uma vez que aquelas são
pautadas na ludicidade, são as que nos permitem vivenciar o momento com entrega e
integração com os envolvidos, vivendo o momento presente. Podem ser uma dinâmica,
um jogo ou qualquer outra atividade que possibilite instaurar um estado de inteireza,
unindo pensamento, sentimento e ação: uma dinâmica de integração grupal ou de
sensibilização, exercícios de relaxamento e respiração, uma ciranda, movimentos
expressivos, atividades rítmicas, entre outras.
Santin (1994) considera que a ludicidade é uma ação vivida e sentida, não
definível pelas palavras e, sim, compreendida pela fruição. A ludicidade não está presente
nos prazeres estereotipados, pré-fabricados, que não possuem a marca da singularidade
do sujeito lúdico. É um momento não imposto, onde a espontaneidade se apresenta, e
consequentemente, abre espaço para a expressividade e a criatividade. Luckesi (2007) vai
além, quando considera que esse contato é curativo, na medida em que pode ordenar ou
reordenar o campo energético, estabelecendo experiências que irão se refletir em
transformações ao longo da vida.
A Bioexpressão, priorizando a ludicidade, norteia-se em três eixos: centramento,
grounding e autoexpressão. O centramento envolve vivências que privilegiam a
respiração, levando-se em conta que, a respiração gera uma conexão direta entre o meio
externo e o nosso meio interior, através da absorção do ar e sua expulsão. Quando
respiramos com mais consciência, possibilitamos um contato maior com a nossa
realidade, fortalecendo nossa forma de responder às demandas do nosso meio. Como
frisa Reich (1995), o oxigênio fornece a energia que move o organismo, sendo
fundamental para o equilíbrio orgânico e emocional; logo, quando a respiração é
inadequada, o nível de vitalidade do organismo tem uma queda sensível.
O termo grounding foi criado por Lowen, um dos discípulos de Reich. As
atividades de grounding (atividades de base), conforme Pereira (2011), trabalham a
autoconfiança, aumentam o senso de segurança, descarregam tensões, trazendo-nos para
o aqui-agora. Essas atividades propiciam o fortalecimento de nosso contato com a
realidade. Através de exercícios que priorizam o trabalho com as pernas e os pés, o
indivíduo mantém um contato mais concreto com sua base e com seu eixo. Quando esse
indivíduo pisa mais firme no chão, consegue transportar para a sua vida possibilidades
de lidar com as situações cotidianas com mais firmeza e mais segurança.
A autoexpressão se dá através das possibilidades de vivências que incluam o
contato visual e a linguagem verbal. O contato visual propicia um reconhecimento do
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outro e, assim, abrem-se oportunidades de o outro reconhecer-nos. Daí pode surgir uma
relação que tende a se tornar verdadeira, quando é permitido um diálogo autêntico entre
os envolvidos (PEREIRA, 2011).
Os passos da pesquisa...
A primeira etapa da pesquisa foi de cunho bibliográfico; na segunda etapa, a sala
de aula da disciplina Bioexpressão no Curso de Pedagogia, oferecida pela Profª. Drª.
Lucia Helena Pena Pereira, foi o espaço pesquisado; o tempo, o semestre letivo de 2012;
os sujeitos da pesquisa, 13 alunas que se dispuseram a responder duas entrevistas – uma
inicial e outra final, gravadas em áudio. Além das perguntas da entrevista
semiestruturada, um material muito rico utilizado foram os relatos de experiência, o que
envolveu toda a turma. Estes relatos são um recurso permanente da disciplina usado pela
professora, que tem por finalidade saber o que os alunos têm a dizer sobre o trabalho
teórico e a prática, o que pensam que poderia ser mudado, o que foi mais significativo,
o que foi bom ou o que causou incômodo, o que as atividades geraram: desajeitamento,
alegria, tristeza, incômodo, paz, mãos formigando, calor, ... São uma forma de todos se
colocarem sem o risco de se exporem diante da turma, e de terem respostas sem que seus
nomes sejam identificados pelos colegas.
A Bioexpressão e um pouco dos dados analisados
A partir do conhecimento de que o corpo guarda as marcas do vivido (REICH,
1998) e que o desenvolvimento do ser humano se dá através das experiências vivenciadas
pelo seu corpo, constatamos que as vivências bioexpressivas trouxeram, entre outros
ganhos, maior percepção de si e autocuidado aos seus participantes.
Uma das pesquisadass, dizendo em seu relato inicial que “não adianta forçar o
corpo a querer fazer, quando ele não aguenta”, mostra quantas vezes ultrapassamos o
limite permitido em função das obrigações cotidianas. E isto foi percebido, após as
atividades bioexpressivas, quando nossos educandos em suas falas apontam aspectos
importantes quanto à maior percepção de si, do outro e das inter-relações:
Eu parei de ser muito rigorosa com meu corpo. Inclusive depois daquela
conversa que nós tivemos num dos dias fundamentais da disciplina, que eu
lembro que eu até chorei, né? [...] eu parei, falei assim: Nossa! Eu tenho que
prestar mais atenção em mim, nos limites do meu corpo. Eu estava numa
situação que eu já não estava aguentando mais, o extremo. E eu parei para
pensar e sentir mais. Hoje não estou tão assim, claro que eu me cobro as coisas,
mas eu estou tentando tratar mais do meu corpo (NF).
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No início, ficava o tempo todo preocupado se iria esbarrar em alguém, achava
que o espaço era insuficiente. Percebia minha rigidez corporal, me sentia
limitado. Parecia um robô enferrujado. Aos poucos fui me soltando, me
sentindo mais capaz de me movimentar e interagir... mais feliz (JF).
A gente passa a perceber mais as coisas. Sentir mais as pessoas (...) a gente
vive num mundo muito corrido, muito automático... E quando a gente está na
Bioexpressão, a gente aprende a parar, a perceber, a sentir que a outra pessoa
também sente as coisas... Que a pessoa também tem um sentimento, do mesmo
jeito que a gente tem. Então a gente consegue... dar uma chance pro outro,
sabe? E se dar uma chance também. Achei isso muito bom (FV).
Com base no pensamento que cuidar é um princípio que deve orientar a vida,
pôde-se constatar a pouca preocupação com o cuidado de si e do outro, tendo como
exemplo a fala de CL: “eu não respeito nem os meus limites nem os limites dos outros.
Os meus eu só vou perceber quando não deu tempo, quando não sobrou tempo, no limite
de horário para cumprir, e o dos outros também, você sempre acha que vai dar conta […]”.
Após as atividades bioexpressivas: “cuidar de mim mesma? Acho que sim. Acho que eu
já estou conseguindo fazer isso. Antes, era mais fisicamente, né? Mas agora,
interiormente também é; o corpo mesmo, aliviar as tensões”.
Na busca do autocuidado, nos é permitido ampliar o exercício da liberdade, da
decisão e do próprio equilíbrio, criando assim o espaço da individualidade, de expressão
da subjetividade. Dessa forma, podem-se delinear os contornos dos limites e,
possivelmente, estes serão mais bem respeitados.
Através da prática do cuidado é possível atingir patamares mais concretos de uma
convivência mais equilibrada com os nossos pares, pois vivemos em um mundo onde o
tempo acelera as ações. O corre-corre do dia a dia faz diminuir o contato com as conexões
internas. Pode-se perceber isso nas falas de LP:
[...] reparo as pessoas que estão à minha volta muito pouco, [...] só as que eu
tenho, realmente, uma convivência. E, assim, uma coisa que eu acho muito
ruim é que, às vezes, nossa rotina é tão estressante que a gente vai descontar
nas pessoas que não têm nada a ver com a nossa rotina, com os nossos assuntos
de trabalho, de estudo, né? [...] (Antes da prática bioexpressiva)
Eu acho que eu tenho preocupação com as minhas colegas de sala. Acho que,
agora, percebo muito as coisas. A Bioexpressão deixa a gente muito unida, a
gente percebe as pessoas. Você percebe a pessoa, o dia que ela não está bem.
E preocupa e quer saber o que aconteceu. Quer cuidar! (Após a prática
bioexpressiva)
O cuidado requer respeito e envolve sentimentos. Cuidar supõe colocar-se no
lugar do outro, ser empático. Conforme Pereira (2011, p. 82), “é o cuidado que humaniza,
que faz com que surja o ser humano com toda a sua complexidade, sensibilidade e
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solidariedade. O cuidado, essência da vida humana, precisa ser continuamente
alimentado”. E esta atitude deve ser priorizada no espaço educacional.
Alguns de nossos alunos que já se encontram na prática da sala de aula, assim, se
manifestaram:
A primeira coisa que faço na escola é respirar e procurar soltar o corpo cada
vez que me sinto muito tensa, que tenho vontade de dar uns gritos. É
impressionate como uma parada nos faz “voltar para o próprio corpo” (FF).
Passei a entender melhor meus petitinhos de dois anos. E agora quando eles
estão, assim, agitados, estão nervosos, eu pego e paro tudo. Vamos relaxar! Aí
coloco uma música, no outro dia deitei todo mundo no tapete e quase todo
mundo dormiu. Então, assim, muito significativa a Bioexpressão pra mim e
pras minhas aulas (CR).
O contato com a própria corporeidade favorecido pela Bioexpressão, permite que
cada um, a partir da percepção de si, busque mudanças, possibilidades de se cuidar:
Agora, percebo quando estou mais tensa, percebo o porquê de dores de cabeça
e no pescoço, e faço exercícios pra me soltar, procuro resolver a causa da
melhor maneira possível. Antes vivia com o piloto automático ligado, nem me
olhava, nem sabia o porquê de estar irritada ou zangada, pois não parava pra
refletir sobre o que estava acontecendo (DF).
Morin (2000) afirma que a educação para a compreensão está ausente no ensino.
Isso pode ser observado nas dificuldades de compreensão de si e do outro, enfrentadas
pelo educador na sua prática; o professor só será capaz de vivenciar a compreensão, à
medida que se apropriar dela. A fala de FR aponta para uma situação que pode gerar
muitos atritos se não for entendida, e que pode ter repercussões prejudiciais nas relações
pessoais e profissionais: “Os trabalhos com sons me ajudaram a liberar algo que estava
entalado, preso na minha garganta, que não tinha coragem de expressar, que nem
percebia como me incomodava, como dificultava minhas relações”.
Larrosa (2013) nos ajuda a complementar, enriquecer e iluminar as análises aqui
apresentadas:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer
um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (2002, p. 24).
Finalizando... por enquanto
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É importante percebermos que há momentos em que devemos nos defrontar com
um processo de mudança que exige que abramos mão da segurança das respostas
existentes, que nem sempre podemos ter respostas objetivas, que é necessário buscar
novas soluções, outras explicações. A proposta trazida mostra a construção de um
caminho novo em que está presente a poesia da vida, um caminho que traz múltiplas
possibilidades de trabalhar a razão sensível, à corporeidade. Consideramos fundamental
a aquisição dos conhecimentos teóricos, mas, também, a prática e a vivência do sensível.
O trabalho desenvolvido na Bioexpressão estimula a autonomia, a capacidade de refletir,
de criar possibilidades, sensibilizar-se, abrindo espaços para a formação de um
profissional que não seja reprodutor do que está posto, mas transformador.
A Bioexpressão abre espaços para a vivência da corporeidade. É uma tessitura de
pensamentos, sentimentos e ações, de estímulo à criatividade, à expressão pessoal, ao
contato e cuidado consigo e com o outro. Envolve cada grupo com suas peculiaridades e
necessidades expressivas, gerando entrega e integração, estimulando a percepção
sensorial, possibilitando que se soltem amarras, e preconceitos sejam deixados para trás.
“Corpos-vivos” precisam de experiências sensíveis que os tragam à vivência da
amorosidade, da ética, do cuidado, da alegria e do respeito necessários à compreensão do
outro e de si mesmos. Precisam ir além do intelecto, da objetividade, do repetitivo,
precisam descobrir a poesia e a beleza da vida, trazendo-as para as relações cotidianas.
Precisam, portanto, da imaginação, da criatividade, da possibilidade de transmutar a
dureza do dia a dia; criar saídas, possibilidades de transformação, acender luzes e se
deixarem iluminar de esperanças; se contaminarem com a coragem e a vontade de agir.
Trabalhar a corporeidade é abrir caminhos para a razão sensível. É poder investir
em uma escola em que não só o pensamento tenha vez, e em que os corpos não fiquem,
simplesmente, ocupando as carteiras, imóveis, inexpressivos. Trabalhar a corporeidade é
propiciar que a vida pulse nas salas de aula, abrindo um leque de possibilidades. E é isso
que a Bioexpressão possibilita.
Referências
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EdUECE - Livro 301233