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Calada Noite Preta- A Noção Imaginária do Movimento Punk de
acordo com a Mídia brasileira na virada dos anos 1990 e 20001
Hellen Cristina Silva de Oliveira (IESP-UERJ)2
Resumo
A musicalidade punk foi recebida no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980, ganhando
força e circulação na mídia durante as décadas de 1990 e 2000. Seu retrato interno e externo
mobilizou os sentidos de ruptura, revolta e violência próximas à sua emergência como
movimento. Os transgressores, como eram chamados, tornaram públicas a degradação diária da
juventude, com menos recursos e oportunidades nas grandes metrópoles brasileiras, sendo
recebidas com o enquadramento midiático do crime e da desordem. As "criaturas da noite"
assustaram famílias mais conservadoras e chocaram as estruturas, principalmente de afiliação
religiosa, das classes altas brasileiras. A opinião pública vinculada ao "perigo dos punks" no
Brasil é capaz de revelar temores sobre a saturação de um tipo específico de sistema. Dito isso,
o objetivo do presente artigo – parte integrante de pesquisa de tese de doutorado – é dissecar
como a retração da mídia sobre essa coletividade pode revelar os medos de quebra do status
quo.
Palavras-chave: Punk; Música; Vida Noturna; Mídia; Medo
Introdução
O punk é um gênero musical e um movimento artístico e cultural emergido no Norte
Global durante a década de 19703. Enquanto gênero pode ser relacionado à matéria musical
mais ampla elencada como rock, sendo por vezes apresentado e nomeado sob o título de punk
rock. Porém, como também configura um movimento artístico plural e de matrizes culturais
peculiares, - que apresenta, inclusive, ramificações de caráter político, o punk possui
sonoridades, estéticas e articulações próprias que o destacam dentre as outras correntes musicais
1 44º Encontro Anual ANPOCS, GT01 - Arte, Cultura e Ciências Sociais: diferenças, agenciamentos e políticas. 2 Bacharel em Ciência Política pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestra e
doutoranda em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (IESP-UERJ). Bolsista CAPES. 3 O presente texto compõe os esforços de pesquisa de tese de doutorado, oriundos principalmente das discussões
do projeto de qualificação aprovado em outubro de 2020.
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imbricadas enquanto rock. Assim, sua definição enquanto simplesmente “punk” interessa mais
ao presente artigo, que tratará tanto de sua forma musical, quanto de sua repercussão enquanto
movimento no mundo social. Este suscita interpretações do senso comum, bem como no âmbito
acadêmico.
Sabe-se que a difusão global do movimento punk é perceptível durante os anos 1980
(Caiafa, 1989; Guerra e Straw, 2017; Pieri, 2017), e isto inclui sua recepção no Sul Global,
inclusive no Brasil. Neste fluxo, consolidavam-se agrupamentos identificados como punk, com
as mais diversas diretrizes narrativas e práticas contidas nesta classificação. Por meio da cena
musical, da produção literária e audiovisual, e da constituição de um aparato estético próprio,
o movimento underground chega aos anos 1990 como um estrato social juvenil notório,
suscitando reações diversas na sociedade civil e na opinião pública.
Durante tal década, a recepção gradativamente dá espaço ao processo de adaptação e
produção local punk, que costura as peculiaridades conjunturais brasileiras com o que a
literatura compreende enquanto princípios punks: ruptura e contestação (Guerra e Straw, 2017).
E de fato, desde suas primeiras manifestações, “o punk avoca-se como uma movimentação
contestatária nas dimensões artística, econômica e social” (Guerra e Straw, 2017, p. 5). Ao
somar este posicionamento ao temperamento político da época, que apresentava tendências
maiores de transição que ruptura (Codato, 2005), percebe-se que as noções realizadas entorno
desta “novidade” apresentavam conteúdo temeroso e estigmatizante, e sua forma não era
desmotivada.
No presente artigo, procuro destrinchar as retratações produzidas sobre o movimento
punk durante entre as décadas de 1990 e 2000, a fim de compreender como tais narrativas
informam sobre a conjuntura política e social brasileira da época. Procuro também investigar
de que forma o movimento punk apresentava seu potencial de ruptura, e quais os efeitos
sociológicos desta correlação de forças. Para tal, primeiramente elaboro uma avaliação da
conjuntura política e social brasileira dos anos 1990, e quais os efeitos da consolidação do punk
nos grupos juvenis, e principalmente, noturnos, neste cenário. Em um segundo momento trato
da reação da opinião pública ao movimento por meio da avaliação da produção midiática,
principalmente televisiva, sobre o punk.
A fim de captar estes processos, adotei como perspectiva teórico-metodológica a
sociologia interacionista e a observação de áudio visual para fins de análise de discurso.
Observei uma série de programas televisivos exibidos na grade aberta brasileira que trataram
do movimento punk enquanto problema central entre os anos 1990 e 2000.
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Foram analisadas enquanto retratação: entrevistas, matérias e edições. Nestes, atenção
foi dada aos momentos de interação entre apresentadores e audiência para a noção da relação
primordial entre veiculação de narrativas e formação da opinião pública. No que tange o relato
orgânico, foram observados materiais produzidos pelo próprio movimento punk: músicas – sua
constituição lírica e harmônica –, zines e cartazes. Por fim, atenção foi dada também ao
processo de adoção da retórica e estética punk nos programas ficcionais exibidos à época.
Subversão em continuidade – Os anos 1990 e medo da inquietude
A década de 1990 no Brasil corresponde aos primeiros anos de experiência democrática
como conhecemos atualmente. Após 21 anos de ditadura civil militar, seguidos pela chamada
transição democrática, degustava-se o sentimento público de rompimento com o regime
autoritário, sustentado pela promulgação da Constituição Federal (1988) e realização de
eleições diretas (1989). Entretanto, como aponta Codato (2005), a própria natureza da transição
não foi capaz de transformar completamente as bases sociais e políticas do país, uma vez que
seu “objetivo final não era exatamente revogar o autoritarismo e instituir “a democracia”, mas
tornar a ditadura militar menos conservadora politicamente” (Codato, 2005, p. 84). Assim,
inscrevia-se uma época de tensões, em que as pretensões democráticas de grupos progressistas
da sociedade civil eram, em determinada medida, maiores do que as o governo vacilante
articulava.
Não obstante, os esforços para atenuar as características reacionárias do período
ditatorial surtiram efeito sobre o extrato populacional menos afetado por suas políticas
econômicas e de segurança pública, carregando para o novo regime uma determinada nostalgia
escorada fundamentalmente nos valores conservadores da sociedade brasileira. Dentre estes o
apego pelas noções de família, moral e propriedade tem papel fundamental para o
comportamento da opinião pública da época.
Foi neste contexto, que o movimento punk brasileiro, qualificado enquanto um
movimento underground, atingiu a “superfície” (mainstream) e foi reconhecido como parte
integrante dos agrupamentos juvenis pela opinião pública. relevante colocar que “a sociedade
não estava preparada para este tipo de reflexão e a mídia contribuiu sobremaneira para a
criminalização desses grupos ao difundir de forma sensacionalista os confrontos envolvendo os
punks” (Gallo, 2008, 754).
Tal visão, do punk enquanto perigoso, desviante ou, ainda, criminoso, também ecoa dos
resquícios conservadores que adentraram os anos 1990, e isto se deu por duas questões
principais: a relação entre a repressão e os movimentos musicais contestatórios, e o conteúdo
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da contestação proposta pelo movimento punk. É relevante dizer que “os primeiros grupos punk
apareceram no final dos anos 1970 como mais uma reação artística a uma hegemonia estética”
(Guerra, 2014, p. 112), mas as ramificações políticas desta postura de contestação ajuntaram-
se continuamente aos agrupamentos punks de forma que seus posicionamentos se tornaram tão
plurais quanto suas ramificações sonoras.
O ponto comum entre estas diferentes expressões do universo punk, se relaciona
diretamente ao que o torna tão “temido”: sua potência de transgressão. Como bem coloca Caiafa
(1989), o movimento punk não poderia se importar menos com a auto preservação e as
convenções sociais, não veio salvar a ninguém, muito pelo contrário. A produção musical punk
“traduz a vertigem da condição moderna em que o indivíduo é tragado pela multidão anônima
das cidades, em que no jogo acelerado de construção e destruição do espaço a memória vai
sendo tragada” (GALLO, 2008, p. 787).
A música enquanto suspeita
Sabe-se que durante o período ditatorial, a obstinação em conter o comportamento
“subversivo” guiava boa parte das escolhas políticas do regime, expressando-se principalmente
na forma da “vigilância” (Napolitano, 2004). Suas entidades burocráticas, por meio de
funcionários públicos, investigadores e oficiais de segurança pública, buscando atender as
expectativas deste regimento, “acabavam produzindo um fenômeno que é típico de regimes
autoritários e totalitários: mais importante do que a produção da informação em si, era a
produção da suspeita” (Napolitano, 2004, p. 104).
Neste processo, a narrativa produzida por agentes do governo ditatorial concentrava-se
em uma “representação do inimigo interno que poderia estar oculto no território da política, e
principalmente da cultura” (Napolitano, 2004, p. 104). A partir desta caracterização do
“inimigo”, diversas esferas da vida pública passaram a chamar atenção da estrutura vigilante, a
música era vista como um meio de propagação de ideias subversivas, e os eventos dedicados a
ela eram momentos chave de difusão destas noções “perigosas”. Assim, músicos, compositores,
instrumentistas, e mesmo ouvintes, eram considerados partes constituintes de uma articulação
suspeita.
Napolitano (2004) aponta que as estratégias para a produção de suspeita sobre a classe
artística “obedeciam a uma lógica perversa, apesar da aparente improvisação e falta de critérios”
(Napolitano, 2004, p. 105). De forma geral, os vigilantes “superdimensionavam” atitudes
consideradas controversas, tais como a relação dos artistas com o movimento estudantil, e sua
participação em eventos promovidos por universitários ou nas dependências das universidades.
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Destaca-se nas análises sobre este fenômeno o gênero musical MPB – Música Popular
Brasileira –, responsável pela produção de muitas das canções de protesto vinculadas ao
movimento estudantil, principalmente durante a década de 1970. No entanto, outras
manifestações musicais e culturais foram objetos de interesse da vigilância, como o samba, a
black music4, e o punk. Inclusive, um dos episódios notáveis de embate entre as forças policiais
do Estado ditatorial e os coletivos musicais se deu durante a apresentação da banda punk
Inocentes, em agosto de 1982, no Salão Beta da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Na ocasião, oficiais da polícia militar invadiram a instituição interrompendo o evento,
agredindo estudantes e punks5.
Dada a transição democrática, boa parte dos movimentos artísticos considerados
suspeitos, como a MPB, foram incorporados à sociedade enquanto resistentes ao período
ditatorial, recebendo certa avaliação positiva de forma geral. Suas produções foram
interpretadas como um legado das respostas juvenis aos anos de governo autoritário, não
gerando muito mais controvérsia a partir de 1985. Isso não é observado quando tratamos do
movimento punk.
Os anos seguintes à transição foram de intensificação dos confrontos entre os
agrupamentos punks e as forças de segurança do Estado, no cerne de um período de
agravamento das desigualdades sociais e econômicas. Justamente "nesse cenário, cinza,
industrial, urbano, opaco e violento que começam a surgir as primeiras manifestações
espontâneas de uma "cultura punk" na cidade." (Pieri, 2017, p. 86). Esta correlação de forças
se deu principalmente pelo caráter da contestação produzida pelo movimento em questão, que
não se conteve apenas com a dissolução do regime autoritário das décadas anteriores, mas que
questionava a falha das “promessas em termos de metamorfose dos quotidianos juvenis”
(Guerra e Straw, 2017, p. 5).
4 Tais como Soul, R&B e Charme. 5 A situação é narrada na obra “Meninos em Fúria – E o som que mudou a música para sempre”, de Marcelo
Rubens Paiva e Clemente Tadeu Nascimento.
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Figura 1 – Zine O Autruísta, janeiro de 1994
Fonte: Acervo CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo6.
Na figura acima, é possível observar a perspectiva política alguns dos eixos críticos do
movimento punk, construída a partir da alegoria do circo. Seus antagonistas são apresentados
enquanto palhaços. O primeiro destes seriam as forças de repressão do Estado, ilustradas pelo
oficial militar; o segundo seria o modo de produção capitalista, representado pelo banqueiro; o
terceiro, seria o aparato institucional liberal democrático, representado na figura do político; e
o quarto, por fim, seriam as instituições religiosas, que não aparecem ilustradas, entretanto a
partir da descrição7 é possível apreender a imagem de um líder religioso cristão.
Ainda insatisfeitos, ainda inquietos
Os primeiros registros do movimento (Caiafa, 1989) datam a recepção da sonoridade
punk na América Latina ao final dos anos 1970, mais precisamente no Brasil, suas primeiras
6 Acesso disponível em: http://www4.pucsp.br/cedic/semui/colecoes/movimento_punk.html 7 Segue transcrição: “O “show” acaba com o 4º palhaço, de batina e bíblia na mão, abençoando a todos enquanto
passam a “sacolinha””.
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grandes manifestações se passam durante os primeiros anos da década de 1980. Sua proposta
era de uma produção musical que “arremessava o rock para novas direções”, embebidos em um
sentimento de esgotamento explícito em suas produções. Gradualmente, a perspectiva presente
nas músicas tomou corpo de forma que o punk passou a abarcar, além de um gênero musical,
uma perspectiva política, uma atitude pública peculiar, e uma forma de organização social.
Se na Europa de 1970, a emergência do movimento se deu “num momento de ascensão
dos conservadores ao poder e de recessão econômica” (Gallo, 2008, p. 750), no Brasil tal
proposta encontrou terreno num momento de decadência da estrutura autoritária institucional,
em que “nem todos se sentiam incluídos pelo projeto de redemocratização que se ensaiava."
(Pieri, 2017, p. 85). Ressalto como importante a postura inclusiva do ritmo desde suas bases
musicais, um projeto do qual qualquer pessoa interessada poderia ser integrada: “O som é muito
simples, e muito rápido. Basicamente percussivo, com vocal violento. Contra a complicação do
“rock progressivo” que se fazia na época, o punk é o uso imediato do instrumento”. (Caiafa,
1989, p. 9).
Uma vez que o punk se desenvolve por meio de “uma cena local, virtual, global e
translocal” (Guerra e Straw, 2017, p. 11), o problema da desigualdade e da insatisfação política
– comum aos dois territórios – entrecruzou-se no processo de recepção. Entretanto, isto não se
deu como simples reflexo. O gênero musical, bem como suas expressões políticas, foi adaptado
e rearticulado. As produções do punk nacional procuram dialogar com os dilemas caros aos
cotidianos brasileiros, um país inscrito no Sul Global8, com uma democracia jovem que, àquela
época, ainda se desenhava.
Se para algumas coletividades musicais o estabelecimento de uma democracia liberal
correspondia aos seus anseios militantes, pode-se perceber que para uma parte significativa do
movimento punk, as necessidades de participação política, integração social e reestruturação
das bases institucionais ainda não haviam sido atingidas. Na virada entre os anos 1980 e 1990,
diversos coletivos de juventude se organizavam no entorno desta cena underground, visando
dar continuidade às pressões da sociedade civil frente ao Estado, como relatado no trecho da
entrevista abaixo.
“É, existia um grupo específico em São Paulo que chamava Juventude Libertária, a
sigla era JULI. Esse grupo era um grupo anarquista de discussão política
principalmente direcionada para a galera do punk. E quando eu comecei a dar rolê, as
bandas que eu comecei a escutar de São Paulo, a galera era desse rolê (sic). A gente
se encontrava uma vez por semana, [...] uma pessoa tinha a chavinha da caixa postal,
ia lá na caixa postal e trazia um monte de carta e falava: “ó, tem carta aqui do
8 O termo Sul Global é utilizado como forma de oposição à noção terceiro mundista. Como argumentam
Hollington, Andrea et al (2015), “não é apenas um termo; há também um peso político” (Hollington, Andrea et al
(tradução nossa, 2015:1).
8
interior”. Deixava lá, cada um pegava duas, três e aí era tipo lição de casa.”
(Entrevistado 1, instrumentista, membro de duas bandas da cena punk)9.
Ainda, de acordo com o entrevistado, as redes iam se fortalecendo conforme o avanço
de algumas tecnologias, como a entrada da internet e da utilização de e-mails para a
comunicação. Apesar da dificuldade de acesso inicial às ferramentas tecnológicas, quando um
ou uma integrante da determinada organização tinha a possibilidade de escrever e trocar
comunicações digitais, estas eram circuladas entre os demais. Dentre os conteúdos circulados
destacavam-se referências literárias, musicais e divulgações de encontros ou festivais voltados
ao movimento punk.
A continuidade da inquietação juvenil, profundamente alimentada pela esfera cultural,
não foi bem recebida pelas instituições políticas da época, ainda que democráticas. Este
comportamento diz respeito, em certo nível, à permanência da “natureza conservadora do
processo de transição no Brasil, seus meios autoritários e seus objetivos restritos” (Codato,
2005, p. 99). Ainda que as formas de governo tenham sido fortemente transformadas pelo
firmamento das eleições diretas e de um Estado Democrático de Direito, tal processo foi
“dirigido e executado pela mesma associação de políticos profissionais e generais autoritários”
(Codato, 2005, p.99). Desta forma, suas perspectivas quanto a possibilidade de insurgência
social, principalmente juvenil, reavivavam o passado, uma lógica de busca obsessiva pelos
potenciais subversivos (Napolitano, 2004).
E a nova “perfilação” dos indivíduos, supostamente subversivos, diz respeito a como a
sociedade se comporta diante de um comportamento, ou de um conjunto de comportamentos,
desviantes. O deslocamento da noção do que é normal ou anormal, inofensivo ou perigoso,
confiável ou suspeito, está expresso justamente na característica situacional do desvio. Como
coloca Becker (1991) o desvio em si “não é uma qualidade que reside no próprio
comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a
ele." (Becker, 1991, p. 27), e na década de 1990, passada a instauração do regime democrático,
outros coletivos musicais como a MPB não ofereciam desafios ao ordenamento vigente, ao seu
status quo, como o movimento punk.
Isto se deve em boa parte a conduta evocada por boa parte dos que se consideravam
punks, baseada no interesse de subversão, não só das estruturas visivelmente autoritárias do
regime anterior, mas também aquelas quase imperceptíveis, presentes nas estruturas liberais
capitalistas da jovem democracia. Tratou-se de um chamado ao “reposicionamento da estrutura
9 Entrevista realizada pela autora com integrante do movimento punk, integrante de duas bandas paulistanas
relevantes no cenário punk nacional, realizada no dia 15/06/2019.
9
social existente [...] foi uma atitude insubmissa que desafiou o status quo, dando visibilidade a
um jovem insatisfeito (Colegrave e Sullivan, 2002 apud Guerra, 2014 p. 111-112).
Figura 2 – Zine Focos da Humanidade, março de 1997
Fonte: Acácio Augusto10.
Como demonstra a imagem acima, havia um esforço em manter a produção artística
alinhada aos princípios políticos prezados pelo movimento, dentre estes destaco a rejeição total
a qualquer configuração de Estado e a recusa do modo de produção capitalista. A crítica ao
aparato institucional conformado pós abertura política ameaçava em determinado nível a
manutenção do status quo e da governança de caráter liberal. Por conseguinte, as organizações
anarcopunks eram de interesse especial desta nova forma de vigilância, materializada nas
figuras das polícias militares e civis, este estrato historicamente “sofre tanto da mídia tradicional
quanto de instituições políticas, as centenas de grupos que compõem esse movimento [...]
representam um dos mais importantes laboratórios urbanos de experimentação política e
autogestão” (Poma e Gravante, 2016, p. 438).
A mídia tradicional, principalmente televisiva, tem papel fundamental na congregação
de narrativas negativas a respeito dos punks, sua retratação hiper dimensionada e
sensacionalista (Gallo, 2008) dos eventos, encontros e comportamento dos integrantes do
movimento. Este tipo de enquadramento cumpriu parte da formação de um arquétipo, ou perfil,
10 Utilização da imagem autorizada por Acácio Augusto, um dos editores da zine Focos da Humanidade.
10
da subversão ao governo da época. Não tardou para que reportagens cujas pautas alertavam
para os “perigos” do punk fossem veiculadas em programas de grande audiência.
Considerando que o movimento punk “representou, nas sociedades ocidentais, um
marco de ruptura e de reposicionamento face à estrutura social existente [...] assumiu-se como
uma atitude insubmissa que quebrou o status quo” (GUERRA E STRAW, 2017, p. 6),
argumento que este coletivo musical foi alvo de uma nova dinâmica de “produção de suspeita”
(Napolitano, 2004). Tal dinâmica encontrou sustento nas ações políticas, principalmente no
campo das políticas de segurança pública, mas também nas noções produzidas pela opinião
pública. E neste sentido, perfis subversivos não justificavam a criminalização do movimento,
houve uma inflexão do enquadramento que se adaptou à conjuntura política da época,
constituindo o que se pode identificar enquanto estigma.
O “perigo” dos punks – estigma e representação
A emergência do movimento punk à superfície da sociedade brasileira foi acompanhada
de uma série de práticas e discursos considerados controversos, e em certa medida, perigosos
para os estratos sociais conservadores, responsáveis em boa parte pela organização social e
política da sociedade. Tal emergência gerou uma reação na forma de categorização do grupo
com o intuito de identificá-los enquanto contrários à ordem e normatividade vigente. Tratarei
destas enquanto estigmas, que são as qualificações que indivíduos em situações interativas
atribuem a outros indivíduos ou grupos.
Este artifício classificatório hierarquiza de maneira geral as propriedades daqueles que
são analisados. Em uma circunstância em que os analisados estão em posição condenável por
uma parte social significativa, o estigma “será usado em referência a um atributo profundamente
depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos”
(Goffman, 1988, p.6). E no cenário de apreciação dos punks pela mirada da mídia brasileira, a
linguagem mobilizada não foi apenas pejorativa, mas amplamente circulada, principalmente
pelos meios de comunicação televisivos.
A retratação midiática sobre a sociedade civil é tratada por Chomsky (2013) como uma
articulação de grande importância no desenvolvimento dos comportamentos políticos. De
acordo com o autor, a mídia seria um “monopólio coletivo” responsável por recortar interesses
públicos de acordo com um ordenamento hegemônico. Tal ordenamento julga a população
como incapaz de decidir o foco de seus próprios interesses, de forma que Se tentar participar
na administração de seus próprios interesses, só vai causar transtorno. Por essa razão, seria
imoral e impróprio permitir que faça isso.” (Chomsky, 2013, p. 17-18)
11
Ainda, seguindo este caminho lógico, a propaganda política veiculada pelos meios de
comunicação seria uma forma de manter o controle e o posicionamento, favorável ou contrário,
da opinião pública a determinada situação ou coletividade. Na conjuntura política como a
brasileira após a reabertura, tal “propaganda política está para uma democracia assim como o
porrete está para um Estado totalitário." (Chomsky, 2013, p. 21).
Ao observar a correlação de forças entre o movimento punk e o Estado, o esforço para
a “produção de suspeita” (Napolitano, 2004) se torna mais palpável para a investigação social.
A maneira como os meios televisivos produzem narrativas que estigmatizam o punk contribui
para sua má recepção pela sociedade civil. Isto porque ao tratar um grupo sob seu estigma,
“deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e
diminuída. [...] Um estigma, é então, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo”
(Goffman, 1988, p. 6-7).
O suposto perigo nas noites – Os punks enquanto desordeiros
Um exemplo da retratação midiática sobre o movimento durante a década de 1990 está
registrado em uma edição do programa “Globo Repórter” que foi ao ar em 09 de agosto de
1991, sob o título de “Gangues de Rua”. A fala de abertura do repórter Celso Freitas indica o
tom do roteiro de exibição: “Os jovens revoltados e violentos estão nas três reportagens do
Globo Repórter de hoje”11.
Figura 3 – Frame da edição “Gangues de Rua” do programa Globo Repórter,
exibido originalmente em 1991
Fonte: Reprodução – YouTube. Canal do usuário Ricardo Cayres. Frame recortado pela autora.
11 Todas as falas de Celso Freitas e Caco Barcellos citadas neste artigo são retiradas da edição do programa Globo
Repórter disponível no YouTube, o vídeo está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vs61OHs2g-w
12
Nesta edição, são apresentadas à audiência diferentes agrupamentos juvenis
considerados underground, tais como os góticos, os punks, os headbangers12, os rockabillies13,
os frequentadores de bailes funk, os carecas, entre outros14. A afiliação entre estes determinados
grupos, e ou movimentos, com a música é explícita, orbitando majoritariamente pelo gênero
musical rock, cada um destes é identificado por um diferente seguimento rítmico e estético.
Adiciono que, “por "estética" eu entendo não apenas elementos relacionados a vestuário ou
adornos corporais, ou mesmo corporalidades, mas também sonoridades, de bandas ou de
"subgêneros" [...]" (Pieri, 2017, p. 86).
Este tipo de narrativa, não fixa a música apenas como fator de diferenciação entre
grupos, mas como engajamento social primário para a participação em atividades expostas de
acordo com sua periculosidade. Não por coincidência, ao apresentar a questão da rivalidade
juvenil nas grandes cidades brasileiras, o signo linguístico de escolha da produção é “gangue”,
dando a ideia de um comportamento violento, e ainda, criminal, conforme as intepretações de
senso comum sobre esta palavra tão polissêmica. Isto pode ser observado no título da edição, e
também no seguinte fragmento: “Em São Paulo, cada uma dessas gangues tem um gosto
musical, e uma maneira própria de vestir, de pensar e de defender as ideias”.
A partir do acompanhamento do vídeo, é perceptível como estes coletivos musicais são
dados como desviantes, ou ainda má influência, entretanto a forma como isto se desenvolve não
é linear, ou equiparável. De início, chama a atenção o enquadramento de alguns dos
movimentos na fala do apresentador. Enquanto headbangers, rockabillies e góticos são
apresentados de acordo com seu “mundo louco” (sic), os demais movimentos são introduzidos
enquanto violentos, como segue a fala: “carecas e punks matam uns aos outros [...]” e ainda
“[...] a violência dos bailes funks, 600 mil jovens em guerra nos salões e nas ruas”.
Por fins de recorte neste trabalho, me atenho às elaborações produzidas especificamente
sobre os punks, registradas na reportagem “Tribos de Rua”, do repórter Caco Barcellos, que
integrou a edição do programa supracitado, na chamada da mesma, o apresentador do programa
anuncia que o repórter teria descido aos “porões” para documentar as “tribos da noite”.
12 Categoria referente aos ouvintes do subgênero musical de rock chamado Metal, ou ainda, Heavy Metal, cuja
estética envolve, além da sonoridade musical acelerada, a adoção de cabelos longos e roupas majoritariamente
pretas. 13 Categoria referente aos ouvintes de um determinado subgênero musical de rock de emergência datada nos
anos 1950. A sonoridade e estética deste grupo envolve a rítmica das décadas de 1950 e 1960, bem como a
adoção de indumentária referente ao período, como saias rodadas, jaquetas de couro, cabelos bem arrumados
com produtos fixadores e óculos escuros no estilo “retro”. 14 Relevante colocar que os gêneros musicais contidos no roteiro pouco se relacionam com aqueles tidos como
“suspeitos” durante a ditadura civil-militar, cujo panorama foi apresentado brevemente na primeira sessão deste
artigo. Isto ressalta a questão da suspeita e do desvio como aportes situacionais.
13
Nesta reportagem, as falas são direcionadas à periculosidade do movimento punk em
relação a sociedade civil, mas também se concentram no risco de compor este determinado
movimento. Ao tratar do cotidiano de alguns dos integrantes, o roteiro recorta uma situação de
briga entre gangues que culminou no assassinato de um jovem punk, de início Barcellos coloca:
"Longe dos palcos e do centro da cidade, outros crimes acontecem envolvendo gangues de São
Paulo". Durante a elaboração, o entrevistado Otto Subúrbio, que se identifica como punk, tece
uma fala impactante sob um close dramático: "Punk morre assim, por isso que existe punk: pra
mostrar a morte”.
A reportagem segue, apontando como o movimento em questão vive situações de alto
risco em seus momentos de sociabilidade, o roteiro é desenhado de forma que o perigo das
gangues é parcialmente reduzido ao perigo dos punks e seus supostos rivais. Em suma, tratam
as situações interativas como majoritariamente conflituosas e fisicamente violentas, dando foco
menor às apresentações musicais. Estas, por fim, não escapam da narrativa do perigo, sendo os
encontros de apreciação das bandas momentos de potenciais embates.
Entretanto, não é possível negligenciar a ocorrência, ainda que esporádica, destes
encontros conflitivos. Mas sobre a rivalidade apontada entre punks e carecas, é necessário
ponderar que muito se deve à postura política dos movimentos. Para os anarcopunk, por
exemplo, não é incomum a disputa – por vezes física – travada entre este agrupamento e grupos
outros, também engajados politicamente em campos ideológicos opostos – a maior parte
alocados à direita, de caráter autoritário. No Brasil, os grupos skinhead possuem diferentes
posturas políticas, sendo muito controversos. A sua afiliação à direita, de caráter nacionalista,
constitui o estrato reconhecido por “carecas”15.
Com emergência localizada nos bairros ingleses de classe média baixa e ou classe
trabalhadora, o movimento considerado precursor dos carecas seria o skinhead, que não se
tratava de uma estética e perspectiva de vida imbricada ao punk rock, mas “evoluiu de outros
estilos juvenis durante a década de 1960” (Cotter, 2007, p. 115). O estilo, composto por cabeças
raspadas, uso de suspensório e coturno, cultuava a masculinidade proeminente na classe
trabalhadora da época. Durante a década de 1970 se fundiu ao comportamento anti-sistêmico
do punk onde se alocou desde então.
Seus constituintes adotaram uma variação “do punk rock chamada British OI!, [...] com
músicas que expressavam frustração da classe trabalhadora e exaltavam a camaradagem
15 Informação retirada de entrevista com Entrevistado 1, realizada em 15 de junho de 2019 com um integrante de
bandas de hardcore e punk, no trecho: “E eu falava assim “mano eu quero distância dessas bosta (sic) aí, eu não
quero ser associado com punk, porque punk pode ser perseguido por careca”.
14
masculina. No início dos anos 80, uma proporção substancial de skinheads havia se afiliado a
organizações extremistas de direita britânicas” (Cotter, 2007, p. 115). Sua recepção no Brasil
se deu majoritariamente dentro deste espectro político16. Justamente por sua tentativa de
aproximação aos coletivos punks, os cenários de confronto se tornaram possíveis.
A recusa dos punks frente a entrada de carecas em seus espaços costurou uma atitude
de defesa e enfrentamento, uma animosidade profundamente política, cuja retratação da
reportagem é incapaz de suprir. Há um nivelamento horizontal que dinamiza as particularidades
dos dois grupos, numa tentativa de equiparação da suspeita e julgamento dos “extremos”, que
visava erroneamente colocar posturas anarquistas e ultra nacionalistas em uma mesma
comunidade, isto se evidencia no trecho já citado em que o apresentador Celso Freitas afirma
que punks e carecas se atacam e cometem assassinatos, apontando uma causa desconhecida
para o suposto fenômeno.
Durante entrevista com outro integrante do movimento punk, que participa de outras
duas bandas paulistanas, o tema das brigas e das gangues é tratado pelo entrevistado como
secundário. Este reconhece a existência de embates físicos, mas os destaca como proeminentes
dos anos 1980, relatando que as gangues são pré-existentes ao movimento punk, e que na maior
parte das vezes não apresentam correlação direta com o gênero musical ou a coletividade a ele
afiliada.
"A grande imprensa normalmente, dá pra se entender, porque é dessa forma, porque
você vai noticiar o que chama mais atenção. Mas se você comparar com a quantidade
de shows que existem e a quantidade de briga que tem, a quantidade de shows é muito
maior do que os shows que tiveram treta." (Entrevistado 2, instrumentista, membro de
duas bandas, uma da cena punk e outra da cena hardcore)17.
Avaliando o enquadramento da reportagem de Caco Barcellos após a realização da
entrevista acima citada, evidencia-se a espetacularização das situações violentas, como uma
metonímia de senso comum sobre o movimento punk. A violência é utilizada como mecanismo
descritivo de um agrupamento plural, esvaziando toda a propriedade política envolvida nos
embates, e omitindo as demais experiências vivenciadas por seus integrantes. O
estabelecimento dos estereótipos, na figura do estigma, tem um efeito de exclusão sobre os
16 Apesar da preponderância das congregações de extrema direita no skinhead brasileiro, é necessário destacar a
existência de alas contrárias ao nacionalismo e ao supremacismo branco dentro do próprio movimento. O grupo
reconhecido como sharp – skinheads against racial prejudice “surge na metade dos anos 1980 com o objetivo de
difundir para a população o que eles consideravam ser a verdadeira cultura Skinhead, ou seja: seu fundamento
era elucidar que a ideologia da vertente White Power não representava a verdadeira ideologia Skinhead".
(Matias, 2018, p. 38). Em razão do foco do presente trabalho, não tratarei das divergências internas deste
determinado movimento, entretanto julgo importante ressaltar a existência de diferentes polos políticos inseridos
no mesmo. 17 Entrevista realizada pela autora com integrante do movimento punk, integrante de duas bandas paulistanas
relevantes no cenário punk nacional, realizada no dia 08/11/2020.
15
indivíduos, uma vez que quando este não se enquadra ao esperado, neste caso particularmente,
ao status quo estipulado por uma norma comportamental, estética e social.
O mito do perigo punk e o “herói de farda” – A Novela Vamp
A novela Vamp, exibida pela Rede Globo de Televisão entre 1991 e 1992, tem como
enredo principal o enfrentamento entre o bem e o mal, representados na figura do personagem
capitão Jonas e vampiro Vlad, respectivamente. De acordo com a sinopse, capitão Jonas tem
sua rotina de vida, retratada enquanto pacífica e ordinária, desestruturada pela chegada de um
grupo de vampiros à cidade que habita – a ficcional “Armação dos Anjos”. O grupo responsável
pela desordem teria se deslocado até o local em razão da gravação de um videoclipe da
personagem Natasha, descrita enquanto cantora famosa do gênero rock, que teria feito um
acordo com o vampiro Vlad. Neste acordo, a cantora teria entregado sua alma em troca de
sucesso, reconhecimento e dinheiro.
A razão da rivalidade entre o capitão e o vampiro seria uma relação amorosa do primeiro
com Natasha, que passa a ser perseguida por um grupo comandado pelo vilão da telenovela.
Apesar da proposta comum, num enredo pautado no triângulo amoroso entre protagonista e
antagonista, a caracterização das personagens, de seus ambientes, suas identificações coletivas,
e sua indumentária, chama atenção pela conjuntura narrativa da época.
Como colocado anteriormente, durante os anos 1990 as correlações de força entre os
agrupamentos juvenis envolvidos em movimentos musicais underground e o Estado eram
amparados pela opinião pública. Assim, a relação com o movimento punk não é dada de forma
óbvia, mas é sugerida. Considerando que apresentavam uma peculiaridade “estética, cultural,
política e simbólica” (Guerra e Straw, 2017, p. 10), o movimento pode ser apontado como uma
das inspirações da trama para construir a noção do que é o normativo, e do que é o “outro”.
A categorização do grupo de vilões enquanto “rockeiros” mobilizava uma estética
específica, que transitava entre a indumentária punk e gótica. São utilizados como recursos de
montagem de personagem os jeans rasgados, em calças ou jaquetas, peças de tons escuros
combinados com peças de tons vibrantes – isto quando personagens não apresentavam
vestimenta completamente preta, como um simbolismo do seu compromisso com o espectro
maléfico e perigoso da trama.
16
Figura 4 – Grupo de Vampiros
Fonte: Jornal O Globo18.
Este mesmo enquadramento pode ser observado na apresentação dos punks na edição
de 1991 do Globo Repórter, analisada anteriormente. Colocando as duas produções, uma
documental e outra ficcional, em espectro comparativo, é possível perceber algumas
similaridades, dentre estas a representação negativa das “tribos” de hábito noturno,
principalmente quando relacionadas a algum gênero musical “desviante”.
Figura 5 – Frame da reportagem “Tribos Urbanas”, 1991
Fonte: Reprodução – YouTube. Canal do usuário Ricardo Cayres. Frame recortado pela autora.
18 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/novela-vamp-sera-reprisada-no-canal-viva-2818608
17
Em uma elaboração sinestésica, o enredo apresentava para a opinião pública os
rockeiros, ali trajados de forma próxima aos punks e góticos, como vilões, criaturas
potencialmente temerárias, cujo julgamento moral inicial enquadrava como mal. Isto corrobora
com a argumentação de Gallo (2008), que apontava o movimento punk enquanto detentor de
“uma estética própria que aparecia à sociedade como francamente ameaçadora” (Gallo, 2008,
p. 750).
Há ainda um outro elemento do enredo que chama atenção, em busca de se desvencilhar
do vilão, o vampiro Vlad, a cantora Natasha precisa utilizar de um artefato considerado sagrado,
que na trama diz respeito à “Cruz de São Sebastião”. Este, deve ser manuseado pelo personagem
do capitão Jonas, sendo este o responsável pela libertação da cantora das “forças do mal”. Este
desenvolvimento da trama, coloca em oposição ao grupo de “rockeiros” duas entidades
criticadas na materialidade pelo grupo punk, a instituição religiosa e as forças militares, como
visto na capa da Zine O Autruísta, apresentada anteriormente neste artigo.
Há uma oposição simbólica, cujos efeitos na opinião pública detém capacidade de
estigmatização sobre grupos que possuam uma estética similar aos antagonistas da novela, bem
como aqueles que se opõem aos signos simbólicos responsáveis pela resolução dos conflitos da
trama. Trata-se de uma possível apropriação deturpada do comportamento punk enquanto
coletividade em oposição à normatividade, sabe-se que sua “agressividade objetivava retratar o
próprio universo violento no qual se dava a socialização dos jovens pobres” (Gallo, 2008, p.
753), entretanto, pelas lentes desta determinada produção fictícia, sua agressividade e
contrariedade assume uma posição de perigo deslocada, que não afetaria apenas o aparato
institucional, mas a preservação das rotinas comuns e ordinárias da sociedade civil.
Importante colocar que apesar deste desenho, a novela teve boa recepção de audiência,
e mesmo seus violões “caíram nas graças” da opinião pública. Vamp foi reprisada pelo canal
Viva, do Grupo Globo, durante os anos de 2011 e 2012.
Desdobramentos de uma narrativa
Cabe mencionar quer o esforço de imposição de estereótipos por meio da formulação
de estigma perdurou durante o período das décadas de 1990 e 2000, culminando em produções
como a reportagem exibida em 28 de outubro de 2007 durante o programa Fantástico19, da Rede
Globo de Televisão. Nesta, punks são mais uma vez colocados em patamar de equidade aos
skinheads, e a discussão dos fatores motivadores da violência e dos confrontos são
19 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HY3JGW4dx6s&t=13s
18
negligenciados, frente à narrativa de periculosidade. Isto pode ser percebido na fala da então
apresentadora Glória Maria ao introduzir a reportagem: "Nossos repórteres mostram agora
quais são os grupos mais perigosos de punks e skinheads, os carecas que pregam a violência
contra homossexuais e nordestinos na capital paulista". O tom é complementado pela fala do
repórter César Galvão: "Os punks e os skinheads têm hábitos parecidos".
Assim, apesar das disparidades políticas e práticas entre os dois grupos expostas acima,
há uma continuidade no esvaziamento de retratação, que não auxilia a elucidar e solucionar a
questão da violência entre jovens nas metrópoles brasileiras, e contribui para a exclusão
completa de determinadas coletividades musicais a partir de eventos extraordinários, passíveis
de localização precisa no espaço-tempo. O processo de pesquisa para tese de doutorado, nos
quais os esforços do presente artigo se inscreve, buscam compreender os fundamentos e efeitos
desta representação, bem como de que forma os punks apresentam seu potencial de ruptura ao
status quo nos anos que sucedem o espaço temporal coberto pelo presente texto.
Figura 6 – Frame do programa Fantástico, exibido originalmente em 2007
Fonte: Reprodução – YouTube. Frame recortado pela autora.
Conclusão
O punk caracterizou uma virada estética, sonora e prática. Sua atitude coletiva compõe
a oposição e o questionamento às estruturas sociais e políticas hegemônicas dos locais onde se
organizam, através do espaço e do tempo. Desde sua recepção no final da década de 1970, além
de inaugurar tipos outros de interação - como a forma de dançar e performar - apresentaram um
tipo de som com efeito imediato, que teve como objetivo produzir música com poucos recursos
e pouca preocupação com a "limpeza" de seu produto.
19
Acompanhada da musicalidade, há um aparato indumentário peculiar ao movimento,
que complementa a estética de seus membros: jeans rasgados, paletós, roupas propositadamente
puídas, colares feitos de correntes, cintos com espinhos, além dos cortes e penteados nos
cabelos. Sua situação de sua emergência, o agrupamento composto majoritariamente por
jovens, se colocava como um estrato social de poucas perspectivas devido ao cenário de
retração e austeridade.
No presente trabalho, avaliei os processos interativos entre o movimento punk, parte do
Estado, e a opinião pública nos anos posteriores de sua recepção, referentes à década de 1990.
Tratou-se de um tempo em que o recorte midiático sobre os coletivos musicais underground
era em boa parte negativo, utilizando elementos sinestésicos para evocar a ideia de
periculosidade e desordem aos ambientes de encontro, práticas e discursos deles.
O movimento punk, em especial, foi retratado sob o mote da violência e do conflito,
muitas vezes reduzido às situações de briga em que alguns de seus integrantes se envolviam. A
gangue, inclusive, foi interpretada como uma metonímia do movimento como um todo,
esvaziando sua pluralidade rítmica, estética e política. Mesmo as brigas, que receberam grande
foco midiático, não eram compreendidas desde seus engajamentos e particularidades, fadando
os punks ao status de “rebeldes sem casa”.
A partir da avaliação dos materiais de pesquisa para elaboração de tese de doutorado,
recortei para o presente texto duas Zines anarcopunks e dois programas televisivos, um destes
documental, e o outro ficcional. Estas retratações, internas e externas, foram pareadas com
entrevistas realizadas com integrantes do movimentos e de bandas importantes para o cenário
do gênero no Brasil.
Ao destrinchar os símbolos e discursos das produções supracitadas, foi possível
constatar que o “perigo dos punks”, ou das “tribos noturnas”, pouco conferia com a
representação hiperbólica dos eventos extraordinários de confronto com outros agrupamentos
juvenis, tampouco o temor de uma aura “maléfica” ou “macabra” que supostamente emanava
do movimento. O que é materialmente verificável é a oposição política dos punks frente ao
modo de produção capitalista, as instituições religiosas, as instituições de repressão do Estado,
e articulação da democracia liberal – instaurada após a transição democrática, de caráter
conservador.
O movimento punk de fato buscava subverter o status quo por não se contentarem, ou
se sentirem incluídos, na organização política das instituições contemporâneas ao espaço e
tempo analisado – Brasil entre as décadas de 1990 e 2000. O uso de estigmas pejorativos foi
um recurso de controlar a apreensão da coletividade underground pela superfície (mainstream),
20
visando que suas perspectivas e princípios circulassem, e ganhassem maior corpo, pela
sociedade civil.
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