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Carla Maria de Souza
Cegueira, Estigma e Preconceito: percepção de professores cegos sobre o tema
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro Teologia e Ciências da PUC-Rio
Orientador: Prof. Marcelo Sorrentino Co-Orientadora: Profª. Giovanna Marafon
Rio de Janeiro
Julho de 2016
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Carla Maria de Souza
Cegueira, Estigma e Preconceito: percepção de professores cegos sobre o tema
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro Teologia e Ciências da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Marcello Sorrentino
Orientador
Departamento de Educação – PUC-Rio
Profª Giovanna Marafon
Co-Orientadora
Faculdade de Educação da Baixada Fluminense – UERJ
Profª Vera Maria Ferrão Candau
Departamento de Educação – PUC-Rio
Profª Marcia Oliveira Moraes
Departamento de Psicologia – UFF
Profª Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 18 de julho de 2016
3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo
integral ou parcial deste trabalho sem autorização expressa da
autora, da universidade e de seu orientador.
Carla Maria de Souza
Graduou-se em Letras-Português/Literatura pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (1992). Tem pós-graduação lato sensu em
Literatura Brasileira pela UERJ (1992). Foi professora da Rede
Municipal de Ensino. Atualmente é professora de Ensino Técnico e
Tecnológico do Instituto Benjamin Constant.
Ficha catalográfica
Souza, Carla Maria de
Cegueira, estigma e preconceito : percepção de
professores cegos sobre o tema / Carla Maria de Souza ;
orientador: Marcelo Sorrentino ; co-orientadora: Giovanna
Marafon. – 2016.
150 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Departamento de Educação, 2016.
Inclui bibliografia
1. Educação – Teses. 2. Cegueira. 3. Preconceito. 4.
Professores. 5. Instituto Benjamin Constant. I. Sorrentino,
Marcelo. II. Marafon, Giovanna. III. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. IV.
Título.
CDD: 370
4
A meus alunos para quem desejo uma sociedade mais disponível
para receber o outro como um ser humano, sem rótulos ou atribuições
preestabelecidas.
5
Agradecimentos
Agradeço, em primeiro lugar, a meus pais por terem apoiado sempre minhas
decisões, estimulando-me mesmo quando não concordavam comigo, na certeza de
que eu era capaz de fazer minhas escolhas e suportar as consequências.
A Yedda Prudêncio Martins, professora de grande sabedoria e sensibilidade que,
ao perceber que as janelas de meus olhos se fechavam para os estímulos visuais,
abriu-me as portas de um caminho cheio de maravilhas com o Sistema Braille.
A Maria Adelaide Azevedo Gomes, que, sempre disponível com seus olhos e sua
voz, desvendou para mim os textos que não se convertiam pelo computador às
minhas primas Renilda e Caroline que, em muitos momentos, foram fundamentais
para a realização deste trabalho.
Aos meus colegas do Instituto Benjamin Constant, cegos e videntes. Os primeiros
pela disponibilidade para responder às entrevistas, para as observações e pela
confiança depositada em mim; os segundos pelo auxílio nas observações, pelo
incentivo e força durante estes dois anos.
A Ana Paula Souza e Raquel Chagas da DDI pela disponibilidade e presteza no
auxílio aos que vão à busca de apoio em suas pesquisas.
Ao pessoal do GECEC com os quais aprendo a cada encontro.
Para minha turma do mestrado, agradecimentos especiais: Dimas, nossas tardes de
estudo na Pastoral foram fundamentais para que eu tivesse os instrumentos de que
tanto precisava para me desenvolver no curso.
Carolina Barroca e Rômulo, verdadeiros anjos no meu caminho, parceiros de
verdade. O estímulo a crítica sem agressão os companheirismos estão
representados em vocês.
Cintia, as contingências da vida acabaram por nos afastar um pouco, porém sei
que você sempre torceu por mim da mesma forma que sempre torci por você. Na
fase mais difícil, o início do curso, sua força foi muito importante.
Jéssica, Roberta e Élio, como não se contagiar com a alegria de vocês e, ao
mesmo tempo, não amá-los por estarem sempre atentos a todos buscando ser
gentis sempre?
Larissa sempre assertiva e firme. Todos precisamos um pouco de criaturas como
você.
Érica, eu é que te admiro muito por ser tão doce sempre. Muito obrigada por fazer
parte da minha vida!
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Rosa, Lili, Carol Gonçalves, Calu, João, Elisa, Renata, Ângela, ainda somos uma
turma e, cada um à sua maneira deixou suas marcas nas vidas uns dos outros.
Agradeço a Frances e Waldívia da Sociedade Pró-Livro-Espírita em Braille
(SPLEB) pelo material produzido sempre a tempo dando-me o suporte necessário.
A Alina Yukari pelo empenho e colaboração nas pesquisas quando meus
conhecimentos de informática limitados pediam socorro.
Agradeço aos professores da PUC com quem muito aprendi inclusive no quesito
respeito, desde a minha chegada à universidade até hoje.
Ao pessoal do NAIPD (Núcleo de Apoio à Inclusão da Pessoa Deficiente) que
buscou os instrumentos possíveis para me assessorar.
Aos demais funcionários sempre disponíveis.
Aos membros da banca, Marcelo e Márcia que, de alguma forma, também
influenciaram na construção deste trabalho.
Aos meus orientadores, Marcelo Sorrentino e Giovanna, pela paciência pelos
ensinamentos, pela confiança e por sempre acreditarem que eu podia mais do que
eu mesma acreditava, exigindo-me sempre para que o trabalho ficasse sempre
melhor.
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Resumo
Souza, Carla Maria de; Sorrentino, Marcelo; Marafon, Giovanna. Cegueira
Estigma e Preconceito: percepção de professores cegos sobre o tema.
Rio de Janeiro, 2016. 150p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta pesquisa analisou a percepção de professores cegos sobre o preconceito
e o estigma ligados à condição da cegueira. Para isso, contou com o Instituto
Benjamin Constant (IBC) como campo de pesquisa, entrevistou professores cegos
dessa instituição e observou estes professores em atividades como: aulas
ministradas, reuniões assistidas, festividades institucionais, encontro de
professores na hora das refeições. Constatou ainda a importância de professores
cegos na vida de alunos cegos. A pesquisa de campo foi realizada por mim,
professora cega, contando com registros sonoros e observações diretas em sala de
aula. Foram entrevistados 17 professores que correspondem ao total de
professores cegos da instituição excluindo-se a pesquisadora. Os referenciais
teóricos principais foram Goffman, Martins e Belarmino. Constatou-se na
pesquisa o peso do estigma na percepção dos sujeitos nela envolvidos, o valor de
um professor cego na trajetória da maior parte deles, bem como as diferentes
formas de agir diante do preconceito.
Palavras-chave
Cegueira; Preconceito; Professores; Instituto Benjamin Constant.
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Abstract
Souza, Carla Maria de; Sorrentino, Marcelo; Marafon, Giovanna.
Blindness, stigma, and prejudice from the perspective of blind teachers.
Rio de Janeiro, 2016.150p. MSc. Dissertation - Departamento de Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This research analyzed the perceptions of blind teachers regarding the
prejudice and stigma related to the condition of being blind. To that end, the
Benjamin Constant Institute (IBC) was selected as the fieldwork site in order to
interview and observe blind faculty members during classes, meetings, festivities,
and daily activities. This dissertation has also investigated the role blind teachers
play on blind students' lives. Fieldwork was conducted by myself, a blind IBC
teacher, making use of sound recordings and direct observations. Using Goffman,
Martins, and Belarmino as its main theoretical references, this research hás
focused on the stigma experienced by the blind IBC teachers, the importance of
contact with other blind teachers in their own trajectories, and their different
strategies in dealing with prejudice.
Keywords
Blindness; Prejudice; Blindteachers; Benjamin Constant Institute.
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Sumário
1. Como surgiu o tema 13
1.1. Pelo direito de ser cega 13
1.2. A Pesquisa 20
1.3. A Metodologia 22
2. No campo da pesquisa, percepções e descobertas 26
2.1. A História 26
2.2. Relações entre cegos e videntes hoje 32
2.3. Grupos, linhas de pensamento e correntes na instituição 40
2.3. O Lugar do Professor Cego 44
3. Conceitos 52
3.1. A Cegueira e a história 52
3.2.Valor da Visão 62
3.3. Estigma 68
3.3.1. Estigma Segundo Goffman 68
3.3.2. Bengala e braille, elementos de estigmatização ou identificação? 78
3.4. Estereótipo 87
3.5. Preconceito 90
3.5.1. Superproteção e preconceito 92
3.6. Exclusão 96
3.6.1. Exclusão escolar 97
3.6.2. Exclusão social 105
4. As Falas dos professores cegos no IBC 108
4.1. Situações que mereceram destaque na infância 108
4.2. Compreensão da condição de pessoa cega 112
4.3. O indivíduo cego e outros cegos 115
10
4.4. Situações de preconceito vivenciadas 121
4.5. Opinião dos professores sobre o trabalho realizado na escola 127
4.5.1. Autonomia 127
4.5.2 O que transmitir aos alunos? 131
4.5.3. Esperando pelo outro 134
4.6. Características do discurso 139
5. Considerações finais 141
6. Referências bibliográficas 144
Anexo A - Modelo de entrevista 147
Anexo B – termo de consentimento livre e esclarecido 149
11
Lista de siglas
ULAC - União Latino Americana de Cegos
IBC - Instituto Benjamin Constant
OM - Orientação e Mobilidade
PEVI - Práticas Educativas para a Vida Independente
PREA - Programa Educacional Alternativo
OMC - Organização Mundial dos Cegos
ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação
DTE - Departamento Técnico Especializado
MEC - Ministério da Educação
NFB - National Federation of Blinds
ACAPO - Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal
AVD - Atividade da Vida Diária
12
“A cegueira não é a morte, mas a preparação para a construção de uma nova
vida”.
(Kenneth Jernigan, 1970)
13
1. Como surgiu o tema
Desde os apaixonantes banquinhos da escolinha até as temidas bancas das
pós-graduações, sem afeto, não haveria interesse necessidade ou
motivação. Consequentemente, perguntas não seriam feitas e problemas
nunca seriam investigados (MIRANDA, 2007, p. 330).
A escolha deste trecho deu-se pelo fato de ele ser bastante
apropriado, uma vez que dos muitos temas que me motive, para a pesquisa creio
que a percepção que os próprios cegos têm do preconceito é o que me chama
mais a atenção. O fato de ser pouco investigado já bastaria para despertar o
interesse, no entanto, considero também que os pensamentos, as palavras e
atitudes são resultado, é claro, das experiências de vida dos indivíduos. Estas
experiências sofrerão também o efeito do preconceito e do estigma, caso o
indivíduo tenha convivido ou conviva com eles.
Vamos, porém, começar do surgimento da ideia, de como o tema se
tornou algo importante para mim, pois sem isso, a pesquisa não teria sentido.
1.1. Pelo direito de ser cega
Nasci com baixa visão, ou seja, possuía um pequeno resíduo visual e
necessitava de auxílios óticos apropriados ao meu caso, já que os óculos comuns
não eram suficientes para corrigir a visão a contento.
A peregrinação pelos consultórios e clínicas médicas perdurou
durante
toda a infância, pois aquele médico que não tinha tanta experiência com o caso
transferia para outro, sem contar as indicações de amigos que falavam de
oftalmologistas maravilhosos que deram solução a problemas que ninguém
solucionou. Até que, um dia, chegamos ao profissional que indicaria as lentes
adequadas e o lugar onde fazê-las.
Em meio a tudo isso, eu crescia cercada pelo carinho dos parentes e
de meus pais, em sua inexperiência de como lidar com uma criança que estava
14
na condição de pessoa com baixa visão, sem muita segurança de o que eu
realmente via ou não via.
Estudei na Rede Municipal do Rio de Janeiro em escola
convencional, como prefiro chamar, adotando o padrão da ULAC (União Latino
Americana de Cegos) com atendimento oferecido pela Rede a alunos com
deficiência. Foram mesmo os professores deste serviço de suporte que tudo
resolveram quando, ao ingressar no que seria hoje o segundo ano do Ensino
Fundamental, a escola próxima à minha casa, escolhida para minha matrícula,
tudo fez para que eu não me matriculasse lá. Vários empecilhos foram
apresentados a meus pais e a equipe do Instituto Helena Antipoff, responsável
pelo suporte aos alunos com deficiência, optou por convencer meus pais a fazer
minha matrícula em outra escola, onde fui acolhida sem maiores entraves e
onde, academicamente, desenvolvi-me sem problemas. Vários fatores
contribuíram para este bom desenvolvimento acadêmico:
● as turmas eram menores, permitindo ao professor atender com mais
qualidade aos alunos;
● minha professora de sala de aula possuía apenas uma turma, podendo
assim, dedicar-se mais a nós;
● minha mãe tinha boa instrução e não trabalhava fora, podendo estudar
comigo, ler os textos cujas letras não estivessem em tamanho acessível e
podendo, também deslocar-se comigo, sempre que necessário, para o apoio que,
inicialmente, era oferecido na própria escola por professor itinerante1, mas
depois passou a ser oferecido no contra turno em Núcleos de Apoio;
● meus pais tinham condições de custear uma auxiliar para responder pela
faxina e os cuidados com as roupas, deixando minha mãe mais livre para
dedicar-se a mim. Além disso, eu só possuía uma irmã mais velha e bastante
independente.
1Professor itinerante: professor que visita a escola para atender ao aluno com deficiência, o que
faz em sala à parte, na quantidade de dias e tempos que forem necessários àquele aluno.
Também é esse professor o responsável por orientar o professor de sala de aula na melhor forma
de trabalhar com o aluno. (SILVA, 2013).
15
Por outro lado, a parte social não se desenvolvia com a mesma facilidade. Os
amigos que brincavam comigo sem problemas na escola nunca me convidavam
para frequentar suas casas mesmo que eu soubesse que havia as festas de
aniversário e que os outros eram convidados, assim como também não
aceitavam meus convites.
Cabe ressaltar aqui, a dualidade de sentimentos que isso provocava, pois,
entre os meus primos, por exemplo, não havia essa distinção e eu me sentia
acolhida para as brincadeiras e até para as repreensões quando era necessário,
completamente incluída, mas o mesmo não acontecia entre os colegas de escola.
Nesta situação, o estigma da cegueira – nesta hora o resíduo visual não
modificava a percepção do grupo – aparecia com força fazendo com que eu
passasse de desacreditável2, o que já era nas percepçãode colegas e seus
familiares, para desacreditada. A confusão estava formada. Afinal, eu podia ou
não participar do que os outros participavam?
No antigo ginásio, hoje Ensino Fundamental II, a situação melhorou um
pouco, havendo colegas com quem eu saía e mantinha um relacionamento de
amizade fora dos muros da escola.
Nesta época, começou a mudar também a situação visual, pois um
descolamento de retina provocou uma sensível perda no resíduo de visão que eu
possuía e que os médicos haviam garantido a meus pais que eu jamais perderia.
Durante todo aquele tempo, a família, os médicos, todos tinham apregoado a
mim que nunca admitisse que alguém dissesse que eu era cega, pois eu não era.
Demonstravam ser esse fato a coisa mais importante. Eu Não era cega. Porém eu
não compreendia porque isso era tão importante já que havia muitas coisas que
eu realmente não conseguia ver.
Se avaliarmos o peso que a visão tem em nossa sociedade, como somos
educados para considerá-la um sentido superior aos outros e como a vida em
2 Conceito criado por Goffman (2004) em que define desacreditável como aquele que é atingido
pelo estigma, mas não tem consciência disso e desacreditado como aquele que tem noção da
influência do estigma.
16
nossa sociedade nos orienta para isso, fica mais fácil entender essa atitude. Em
uma fala de Verine (2013) podemos constatar que esta percepção não é só nossa:
Há alguns anos, a psicologia experimental acumulava provas da
cooperação cognitiva entre dois, muitos ou todos os sistemas perceptivos
na experiência humana. (...) Em contrapartida, não há necessidade de
experiência científica para atestar a pregnância da visão nos artefatos e nos
discursos das sociedades ocidentais contemporâneas (VERINE, 2013).
Membros desta mesma sociedade, aqueles que me educaram e me cercaram,
transmitiram os valores que consideravam os melhores para mim, desejando que
eu me impusesse, acima de tudo como alguém que não é cega. Isto era
importante para eles.
Mas a trajetória seguiu seu curso e a realidade mudou, obrigando o discurso a
mudar também.
Por conta do descolamento de retina, iniciou-se um processo gradativo de perda
visual que durou dos 13 aos 15 anos, durante o qual minha família envolvida
pela educação que sempre teve e que todos nós temos, juntamente com alguns
profissionais da medicina, empenhou-se o quanto pode para me "fazer
enxergar". Para eles, os parentes, esta era a maior manifestação de amor que
podiam me dar. Não entendiam que estavam metolhendo em meu "direito de ser
cega" já que a pouca visão que me restava em quase nada atendia às minhas
necessidades.
Vale destacar aqui o senso de observação e a sensibilidade da professora do
atendimento especializado que, então, entendeu que trabalhar na perspectiva do
uso da visão não me traria maiores vantagens e começou a me estimular a
curiosidade para conhecer o Braille e o sorobã3. Aprendi os dois rapidamente,
pois me eram mais confortáveis e úteis.
Enfim, após uma cirurgia de glaucoma e um segundo descolamento de retina, os
médicos assumiram para minha família que não havia mais nada a se fazer pela
minha visão, embora eles tenham dito por mim como se estivessem assinando
minha sentença de morte.
3 Aparelho semelhante ao ábaco japonês utilizado para cálculo. Joaquim Moraes, 1965.
17
Se minha família sentiu-se arrasada, e por mais que o adjetivo pareça exagerado
é exatamente isso que ocorre com aqueles que estão próximos de alguém que
perde a visão, senti-me aliviada, pois finalmente, havia ouvido deles o que eu já
sabia: que eu era uma pessoa cega. Via o Braille e o sorobã como possibilidades,
como portas abertas para eu prosseguir em minha vida.
O processo lento de perda da visão tornou meus pais, sobretudo minha mãe, um
tanto super protetores nas questões de ordem prática, jamais permitindo que eu
mexesse com fogo, tolhendo o uso de facas e tesouras, sempre fazendo uso da
famosa frase "Deixa que eu faço para você." Quando eu pedia para me ensinar
como fazer alguma coisa.
Esse fato não impediu, sobretudo minha mãe, de ser alguém que foi essencial no
meu desenvolvimento acadêmico principalmente daí por diante, gravando e
lendo textos e livros, acompanhando-me a todos os lugares onde eu precisasse ir
para estudar, já que me locomover com independência era outra dificuldade,
pois sentia muito medo de me perder. Não acreditava, apesar das aulas de
manejo da bengala, que fosse capaz de ir e voltar de algum lugar sem ter
problemas. O fato é que eu não conhecia outros cegos e não tinha oportunidade
de conviver com as pessoas que andavam sozinhas, cozinhavam e faziam toda a
sorte de coisas que diziam que eu podia fazer. Diziam, mas não provavam.
O atendimento oferecido pela Rede Municipal era individualizado e não nos
permitia, por isso, contato com os outros alunos com as mesmas características
que nós; ao estudar em escola estadual, deixei de ter o apoio especializado. Isso
me tornava um ser único em todos os lugares. Eu era a diferente.
É evidente que precisamos estar em todos os lugares e o contato com aqueles a
quem somos ligados por qualquer vínculo é importante para nosso
desenvolvimento, afinal uma pessoa cega não é apenas uma pessoa cega. Ela
também é alguém que nasceu em tal família, pertence a tal religião, fala tal
língua, é da etnia tal... Mas em meu caso, faltava a ligação com as pessoas
cegas, faltava o contato com a cegueira que era uma marca muito forte, que
chamava a atenção em qualquer ambiente em que eu estivesse. Goffman (2004)
fala dessa importância ao afirmar:
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o primeiro grupo de pessoas benévolas é, é claro, o daquelas que
compartilham o seu estigma. Sabendo por experiência própria o que se
sente quando se tem este estigma, em particular, algumas delas podem
instruir o indivíduo estigmatizado quanto aos artifícios da relação e
fornecer-lhe um círculo de lamentação no qual ele possa refugiar-se em
busca de apoio moral e do conforto de sentir-se em casa, em seu ambiente,
aceito como uma criatura que, realmente é igual a qualquer outra normal4
(GOFFMAN, 2004, p 24).
Descontados os exageros do período desta escrita, com palavras como
lamentações ou refugiar-se, de fato, o que eu buscava sem o saber, era um
ambiente onde alguém tivesse vivido experiência similar às minhas.
Isto suscitava, ainda, outra situação bastante incômoda, mas só tive
noção do incômodo que ela causava depois de longo tempo. Eu não podia ver e
estamos por demais habituados a atribuir à visão um valor além do seu real,
praticamente vital às pessoas, o que aumenta a dependência dos indivíduos
cegos. Assim, com o intuito de me proteger, minha mãe desejou convencer-me a
mudar de ideia, ser uma profissional da informática, que por sinal detesto. Ela
acreditava que isto me daria melhores recursos financeiros do que o magistério
que sempre desejei. É importante ressaltar que as escolhas profissionais de
minha irmã jamais foram questionadas. Ninguém desejou saber o que era
melhor para ela.
As alegações contra minha escolha eram que eu não teria como controlar
a turma, como corrigir seus trabalhos, como escrever no quadro. Todas da
ordem da pressuposição, obstáculos criados pela sociedade em geral.
Apesar da minha "escolha errada", não deixei de ter o apoio da minha
família para tudo e, um dia, cheguei ao Instituto Benjamin Constant para
estagiar, durante o antigo curso Normal. Depois fiz lá um curso de
especialização e passei a acreditar que todos os cegos bem resolvidos do mundo
estavam concentrados lá, desejando sempre retornar um dia como professor para
partilhar daquele universo onde eu me sentia tão mais segura de minhas ações e
onde o fato de eu ser cega, se era uma realidade óbvia e inegável, não me
4A palavra "normal" é utilizada por Goffman referindo-se àquele que não tem o estigma. O
próprio autor explica a necessidade de usá-la para demarcar a diferença entre o estigmatizado e o não estigmatizado -- expressões, em nossa opinião preferíveis – porém mantivemos o texto do autor, já que nos valíamos de um extrato de seu livro.
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diminuía. Após seis anos de trabalho no atendimento especializado da Rede
Municipal, prestei concurso para o IBC e fui aprovada, atuando lá até hoje.
Descobri que parte do que eu pressupunha quanto à segurança e afirmação dos
indivíduos cegos era real.
A convivência com outras pessoas cegas, a troca de experiências, ter
professores cegos que sirvam como modelo auxilia muito aos alunos, faz com
que mesmo os cegos adultos descubram similaridades entre eles e outros
indivíduos em condições análogas e estas experiências modificam nossa
maneira de nos relacionarmos mesmo com pessoas videntes. No entanto percebi
o que parece óbvio, mas para mim, não era. Os indivíduos cegos são antes de
tudo, indivíduos e têm maneiras diferentes de encarar as situações que
vivenciam. A generalização, portanto, pode trazer uma interpretação não
condizente com a realidade criando expectativas e outros vieses de preconceito,
pois passamos a supor que aqueles que não atendem as nossas expectativas
estão “fora do padrão”.
Conforme destaca Goffman em trecho já citado, o contato com pessoas
que vivem situação similar, que estão na mesma condição faz o indivíduo sentir-
se igual aos outros e creio que isto vai além. Sentindo que nos identificamos
com algum grupo, em alguma coisa, temos melhores condições de trabalhar para
que nossas diferenças sejam mais bem aceitas e nos empoderemos.
Compreendemos que o que nos torna diferentes não nos torna inferiores e este
fato pode modificar a percepção que os grupos dos quais fazemos parte têm de
nós. Mas e os outros cegos, pensavam como eu?
Comecei a notar, com o tempo, que poucos cegos eram afeitos a discutir
a própria cegueira e que isso fazia com que só compreendêssemos o que se
passa conosco pelo olhar de pesquisadores que enxergam. Entendi que queria
compreender melhor o que o próprio cego pensa de sua situação, sobretudo
sobre o preconceito tão comum em nossas experiências de vida. Queria ouvir a
voz do próprio cego e não os livros e teóricos.
Precisava da informação de quem vivencia em casa, no trabalho, nas
ruas, situações de preconceito para buscar entender qual é a percepção dessas
pessoas sobre o assunto e entender se esse preconceito as envolve a ponto de
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julgarem a si e a outros cegos incapazes para certas tarefas e se isso é uma forma
de preconceito.
Por observar situações tão diferentes no Instituto Benjamin Constant e
por ser esta uma escola especializada na área da deficiência visual, considerei
este o melhor lugar para desenvolver esta pesquisa. Existe ainda uma
concentração de professores cegos nesta instituição que não se encontram em
nenhuma outra e atualmente ela é a única escola de ensino fundamental que
atende a alunos cegos até o nono ano. Suas características pouco comuns a
tornaram o campo de pesquisa ideal para o trabalho que pretendia desenvolver.
1.2. A Pesquisa
Assunto bastante discutido em muitos meios, porém ainda muito
controvertido, pois nem sempre sabemos o que constitui realmente, uma ação
preconceituosa ou não, o preconceito pode aparecer na violência, numa tentativa
de gentileza, na superproteção ou esconder-se atrás de uma máscara de
civilidade que hoje as pessoas se impõem para não ferir suscetibilidades. No
entanto, há situações tão subliminares que nem aquele que pratica o preconceito
consegue perceber o que está embutido em sua atitude.
Fazer esta pesquisa fez-me compreender que isto é mais comum do que
pensamos. Muitas vezes, na tentativa de auxiliar, recursos são criados para
facilitar o acesso das pessoas cegas a materiais, no entanto, nem todos
compreendem os objetivos e usos desses recursos, continuando o indivíduo cego
alijado de uma série de informações.
Com o tempo, a antiga máquina de datilografia, que eu usava para fazer
as provas e trabalhos na graduação, foi substituída pelos computadores com
sintetizador de voz, o que trouxe muitas vantagens.
Porém, nem tudo estava resolvido. Muitos artigos por mim encontrados
para a preparação deste trabalho não aceitavam a conversão necessária para
21
serem lidos pelos sintetizadores, obrigando-me a recorrer à outra pessoa, fosse
para reeditar o texto de maneira acessível, fosse para ler e gravar o texto em
áudio.
Textos que falavam sobre cegueira apresentavam esta dificuldade, textos
que falavam em acessibilidade não eram acessíveis. Eu queria falar sobre o cego
adulto, aquele que já foi envolvido em situações de preconceito e agora tem uma
posição sobre o assunto, pois os sujeitos de minha pesquisa são professores
cegos do IBC, porém todos os trabalhos que falavam sobre educação de pessoas
cegas envolviam apenas o aluno. É bastante raro encontrarmos trabalhos em que
o cego apareça como professor, como atuante e responsável pelo processo de
aprendizagem de uma forma mais ativa e marcante.
Compreendi que somos, ainda, vistos como objetos e não como sujeitos
de pesquisa. Ninguém se preocupou em colocar os textos em formato acessível
porque ninguém pensou em um cego como pesquisador, apenas como
pesquisado. Mesmo ao se preparar o material para ser usado por uma criança
cega, não se pensa na possibilidade de aquela criança vir a ser um adulto que
atuará profissionalmente, precisando de materiais que o tornem autônomo e isto
ficará mais evidente no próximo capítulo, quando falarmos da adaptação dos
livros didáticos.
A cada passo que o indivíduo cego tenta dar, descobre o paradoxo em
que vive. A propagação da inclusão como discurso encontra como forte
oponente a realidade de uma sociedade onde não se pensa no acesso das pessoas
cegas à informação, aos espaços, ao conhecimento e onde sequer se cogita que
ela possa ser agente das mudanças que ela mesma busca.
E quantos cegos antes e depois de mim têm enfrentado diariamente, estas
barreiras? Como isto os afeta e como julgam que podem lidar com estas
situações?
Eu não queria apenas falar sobre mim, se o desejasse, bastaria escrever
minha autobiografia. Considerava importante saber como cegos com
experiências diferentes das minhas viveram, vivem e superam ou não superam
as situações do dia-a-dia e se o preconceito de alguma forma os afeta.
22
São objetivos de esta pesquisa compreender a relação do cego com a
cegueira em uma sociedade visuocêntrica e analisar a importância de um
professor cego na vida de um aluno cego.
No segundo capítulo, falaremos do campo de pesquisa, o Instituto
Benjamin Constant. Traremos um breve relato sobre sua fundação, sua trajetória
e como funciona hoje, enfatizando a relação entre profissionais, o trabalho e a
atuação dos professores cegos e como são vistos dentro da instituição.
No terceiro capítulo terá lugar o enfoque teórico do trabalho, abordando
os conceitos mais importantes para este tema como preconceito, exclusão,
estigma, além de trazer a trajetória dos cegos no contexto histórico, a questão da
valorização da visão em nossa sociedade é importante neste caso, porque ela
interfere também na maneira como o cego se insere nesta mesma sociedade.
No quarto capítulo, traremos a análise dos dados colhidos, a fala dos
professores cegos do Instituto Benjamin Constant sobre vários períodos de suas
vidas, sua entrada na instituição, seu trabalho em outros estabelecimentos, sua
percepção de situações de preconceito vividas ou presenciadas e o que pensam
de seu trabalho com os alunos.
Além disso, traremos o observado destes professores em sala de aula,reuniões e
outros espaços. Mesmo nos capítulos anteriores, aparecerão extratos das falas
dos professores e de situações observadas que se liguem ao que estiver sendo
abordado.
Esperamos poder dar voz ao indivíduo cego para refletirmos todos, cegos
e videntes, sobre as oportunidades reais dadas a cada um, oportunidades sem
superproteção, sem concepções desnecessárias, porém com o acesso justo a
todos, sem as ideias preconcebidas, todavia com a certeza de que estamos
lidando com seres humanos com peculiaridades, interesses e direitos.
1.3. A Metodologia
A observação do campo em que se desenvolveu a pesquisa é de suma
importância, pois o IBC (Instituto Benjamin Constant) é em parte o que os
sujeitos desta pesquisa fizeram dele e estas pessoas são também resultado da
23
influência desse espaço, num entrelaçamento óbvio e constante. Muitas delas
estiveram lá como alunos e depois como professores. Algumas apenas como
professores, mas indiscutivelmente, todas circulando por esse espaço construído
durante mais de 160 anos com relações de todo tipo, com os seus aspectos
positivos, falhas e divergências, seja por causa do preconceito que qualquer um
de nós pode desenvolver, seja pelo enfoque muito diverso que cada um traz para
dentro da instituição.
Era preciso, portanto, abandonar nossa postura de profissional da
casa e observá-la "com percepção de pesquisadora". Pesquisar um ambiente que
conhecia dava a ele outra conotação diante de mim e isto trouxe vantagens e
desvantagens. Se por um lado a maior parte das pessoas mostrou extrema boa
vontade em colaborar, abrindo-me as portas sem dificuldade, também foi
possível perceber que, sem que alguns se dessem conta, houve momentos de
inibição e constrangimento em que colegas, agora focos de observação, sentiam-
se vigiados, por mais que eu esclarecesse que aquilo não lhes traria nenhum
prejuízo. Isto acontecia principalmente com os videntes, de alguma forma
envolvida na observação, mesmo não sendo o foco principal da pesquisa. A todo
o momento, eles queriam dar-me esclarecimentos não solicitados sobre suas
atitudes com colegas e alunos cegos como se eu estivesse ali para censurá-los.
Isto acontecia naturalmente, apenas porque me viam no ambiente, já que
não era segredo o meu tema de pesquisa, mesmo que eu não estivesse
observando. Não era necessária, de minha parte, nenhuma pergunta, sinal de
aprovação ou reprovação.
Havia situações, porém, em que, por já estarem habituados à minha
presença, já que trabalho na instituição há mais de vinte anos agia naturalmente,
sem maiores preocupações comigo, o que garantia uma observação com dados
excelentes. Os indivíduos agiam com espontaneidade sem manifestações
planejadas para atender a uma pesquisa e sim mantendo as atividades cotidianas,
parecendo mais tranquilos.
Alguns cuidados foram tomados para garantir a não identificação dos
informantes, como o uso de nomes fictícios tanto para os informantes como para
qualquer indivíduo observado cuja fala fosse registrada ou pessoas citadas pelos
24
informantes. Além disso, cada um dos informantes recebeu cópia em Braille do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido junto com as cópias no sistema
comum a serem preenchidas. Desse modo,todos tiveram acesso autônomo ao
texto do documento.
Houve situações em que contei com a colaboração de videntes para me
transmitirem dados que escapassem à minha percepção. Devidamente instruídos
por mim, meu "vidente de confiança" observava e depois, em momento
oportuno, eu o interrogava sobre o que havia visto. Procurava pessoas isentas,
sem qualquer envolvimento com o indivíduo observado e, de hábito, ouvia até
três descrições da mesma situação para que nada escapasse e para que não
ficasse com uma única percepção do fato, correndo o risco de algo tendencioso.
A maior parte do que se verá, no entanto, foi obtida por mim mesma
através dos demais sentidos, sobretudo a audição, principalmente nas
entrevistas, quando não contei com a cooperação de ninguém, mesmo porque
isto poderia inibir o entrevistado.
Com base em Bakhtin (1997) e sua proposta de análise de discurso,
momentos de silêncio bastante significativos, mudanças de tom de voz e
interrupções abruptas de um interlocutor por outro, além de situações de
excitação, hesitação, medo, contentamento, mesmo uma mudança na respiração
não escaparam à percepção durante os momentos de entrevista e observação,
bem como o desvio de atenção do indivíduo entrevistado ou observado para algo
não relacionado à atividade do momento.
Foi utilizado o modelo de entrevista semi-estruturada com base em
Duarte (2008) e Szimanski (2004), além do apoio em Vianna (2003) para as
observações.
Creio que o fato de ser cega permitiu que os entrevistados se sentissem
mais à vontade em falar, pois em momento algum pareceram, durante as
entrevistas, preocupados com a divulgação de informações confidenciais ou a
interpretação de histórias narradas de uma maneira bastante diferente daquela
que eles gostariam de atribuir a essas histórias. Cheguei a ouvir frases como:
“para você posso contar por que sei que você como cega vai me entender”.
25
Ciente da importância do rigor da pesquisa procurei permitir que o
entrevistado falasse com o mínimo de intervenção às respostas, usando o
modelo de entrevista semiestruturada, pois algumas situações peculiares dos
entrevistados exigiam outro roteiro, como aconteceu ao professor Pilar13. Não
opinava durante aulas e atividades observadas, pois não estava ali como
professora da instituição e sim como pesquisadora.Busquei outros autores, cegos
e videntes, que embasassem o que pretendia dizer, na certeza do quanto esse
afastamento é necessário para que a pesquisa seja sólida e transmita com o
máximo de fidedignidade ao campo,o real do grupo pesquisado.
Em seu trabalho intitulado “Pesquisa acadêmica e deficiência
visual:resistências situadas, saberes partilhados”, Bruno Sena Martins (2013)
ressalta o valor de envolver as pessoas com deficiência nas pesquisas que dizem
respeito a elas. Baseando-se em Oliver (1997 apud MARTINS, 2013) fala na
maneira como a pesquisa, muitas vezes, vê a pessoa com deficiência apenas como
objeto sem entendê-la como alguém que pode ser ativo neste processo declarando:
“esse reconhecimento deve-nos incitar a uma participação ativa na construção de
uma sociedade crescentemente autora da nas vozes das pessoas com deficiência”
(MARTINS, 2013, p. 2).
Como pessoa cega, apoiando completamente esta afirmação, decidi
tornar-me ser participante e ativa neste universo de pesquisas que envolvem a
cegueira e os cegos.
Foram entrevistados 17 professores. Desse total, dois já estavam
aposentados, tento prestado serviços como voluntários na instituição até 2012,
um aposentou-se durante o período da pesquisa e outros dois eram contratados e,
atualmente, não prestam mais serviços à instituição.
A pesquisa de campo ocorreu de novembro de 2014 a dezembro de 2015,
período em que foram coletados os dados.
Que este trabalho possa trazer reflexões que acrescentem algo depositivo
às nossas práticas educacionais e nos faça pensar em como o preconceito pode
trazer consequências ao comportamento daqueles que são membros de grupos
oprimidos e que tão pouca oportunidade têm de se expressarem.
26
2. No campo da pesquisa, percepções e descobertas
O ambiente onde trabalham e trabalharam os professores e as professoras
sujeitos desta pesquisa, e onde a maior parte deles (delas) estudou, tem suas
peculiaridades, que pesam na observação dos dados desta pesquisa. Por isso, é
importante que sejam apresentadas.
2.1. A História
O surgimento do Sistema Braille constitui a revolução tecnológica mais
importante que a Modernidade trouxe à vida das mulheres e homens
privados do sentido da visão. Através dele, se efetivou o acesso à literacia,
ao conhecimento e à comunicação das pessoas cegas (MARTINS, 2006, p.
62).
A observação do autor tem muito sentido quando se vai falar na história
do Instituto Benjamin Constant, sobretudo no caso da história da sua fundação,
já que foi através dela que o Sistema Braille, meio até hoje, insubstituível de
leitura e escrita dos cegos, entrou no Brasil e é, ainda hoje, para muitas pessoas
cegas, um símbolo de identidade e de libertação. O fato de ter sido este sistema
criado por um cego o torna ainda mais marcante, pois demonstra que o próprio
cego foi capaz de encontrar os meios de que precisava para solução de questões
como escrita, escolarização.
O Instituto Benjamin Constant teve sua história marcada por opiniões
controversas. Havia e há os que julgavam e julgam que ele sempre se constituiu
em um espaço para "depósito dos cegos", considerando inclusive as
preocupações com saúde pública que começavam a surgir no século XIX, época
em que foi fundado. Outros, no entanto, sempre o viram como divisor de águas
na história dos cegos brasileiros que, então, passaram a ter acesso à instrução e à
escolarização.
Fato é que a entrada do Sistema Braille no Brasil e na América Latina
deu-se através desta instituição que, com elementos de inovação e outros de
controvertido interesse, ainda é uma instituição importante na escolarização do
cego brasileiro, mesmo daquele que jamais estudou nela.
27
Vale, portanto, para melhor embasamento do trabalho, apresentar, de
forma resumida, um pouco de sua história. Nos anos 40 do século XIX um
menino cego brasileiro chamado José Alvares de Azevedo teve a oportunidade
de estudar em Paris, em um instituto para cegos lá existente. É importante
ressaltar o peso que a cultura francesa tinha à época, portanto tudo o que havia
na França em termos de educação tinha bom crédito em terras brasileiras.
Neste instituto os cegos aprendiam música, ofícios manuais, línguas ena
época em que Azevedo lá chegou (precisamente 1844), havia uma disputa entre
dois sistemas de leitura e escrita: o que ainda era oficial era o criado por
Valentin Haüi, fundador da escola e que trabalhava com os alunos através de
letras em alto relevo, talhadas em madeira; o outro havia sido criado por um ex-
aluno e, à época, professor da escola, Louis Braille e constituía-se de seis pontos
que, combinados formavam todas as letras e pontuações necessários para
garantir ao cego leitura e escrita independentes. No entanto, as combinações
geradas pelos pontos não formavam letras nos desenhos já conhecidos, o que
faria com que os professores da casa precisassem aprender o código, caso o
sistema se tornasse oficial.
Oficial ou não, o sistema difundia-se entre os alunos, pois se mostrava
mais eficiente do que o das letras em relevo. As letras apresentam muitas curvas
o que prejudica sua identificação com rapidez e pelo tato. A escrita, também era
mais rápida pelo sistema de pontos e por isso, entre os cegos do próprio Instituto
dos Jovens Cegos de Paris ele se impôs pelo uso corrente e entusiasmado de
alunos e professores cegos, além de alguns videntes que compreendiam o
quanto ele trazia de benefício ao aprendizado dos alunos.
Azevedo também o aprendeu e dominou em pouco tempo e, em
1851,chegando de volta ao Brasil, buscou meios de conseguir para os cegos
brasileiros uma escola nos moldes do instituto francês. Tendo a oportunidade de
conhecer Adélia, jovem cega filha do médico Francisco Xavier Sigaud que
atendia ao imperador D. Pedro II, apresentou a ela o Sistema Braille e, ao ver
que a filha se alfabetizava pelo novo método, o médico tornou-se o caminho do
jovem Azevedo até seu objetivo. Após diversos entraves e tramitações políticas,
finalmente, em 1854, foi inaugurada na Gamboa, a primeira escola para cegos
da América Latina: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Azevedo havia
28
falecido seis meses antes da inauguração, mas isso não impediu a continuidade
do processo de instalação da escola. O Sistema Braille, que então já se tornara
oficial na escola de Paris, era oficial neste estabelecimento e, inicialmente, todo
o material vinha da França, já que aqui não havia gráficas para tanto. Daquele
endereço, a escola transferiu-se para a Praça da Aclamação - hoje Praça da
República e, posteriormente, graças às muitas instâncias de Benjamin Constant
Botelho de Magalhães, um de seus mais renomados diretores, transferiu-se para
o endereço em que está até hoje, na Urca. A insistência deveu-se ao fato de ter
sido prometida a doação do terreno para a construção da escola há muito tempo
e nunca este projeto vir a sair do papel.
Era empenho de Benjamin Constant construir oficinas de trabalho paraos
alunos, ter uma imprensa que produzisse muitos materiais em Braille, abrigar
mais alunos e para isso, era necessário mais espaço. Assim a sede na Praça da
Aclamação tornava-se pequena.
A escola que primeiro chamou-se Imperial Instituto dos Meninos Cegos,
passou a chamar-se Instituto Nacional dos Meninos Cegos, com o advento da
República. Por ter sido Benjamin Constant, na qualidade de diretor o
responsável pela primeira política para educação de cegos de que se tem registro
no Brasil, e pelos muitos benefícios que fez por esta escola, ela recebeu o nome
de Instituto Benjamin Constant, após sua morte.
Registros encontrados em Lobo (2008) indicam que o governo demorava
muito a atender às solicitações da instituição que, por isso demorava a cumprir
com tudo aquilo que foi idealizado inicialmente. No entanto, fato é que, de
alguma forma, o Instituto educou gerações e gerações de pessoas cegas e, nos
anos 20 do século XX, ex-alunos da casa iniciaram a criação de outras
instituições similares em outros estados, permitindo assim que mais jovens e
crianças cegas pudessem ser educadas...
De 1937 até 1944, o IBC ficou fechado, a fim de que fosse finalmente,
construída a chamada "ala nova" referente à parte que hoje abriga, no segundo
andar, das salas 202 até 252 (apenas salas pares) e que, na época, além de trazer
maior número de salas, permitiria também que houvesse mais dormitórios e as
meninas pudessem ter um espaço só para elas no terceiro andar.
29
Até ali, a fim de evitar que se misturassem com os meninos, elas
ocupavam um espaço no segundo andar, porém muito inferior aos dormitórios
masculinos do terceiro.
As construções foram surgindo, a fim de proporcionar cada vez melhores
condições aos estudantes. Surgiram a Imprensa Braille, a piscina, o Jardim de
infância, as oficinas para aprender empalhação, estofaria, noções de eletricidade,
marcenaria, bem como espaços para as chamadas aulas de economia doméstica e
atividades do lar.
Conforme se verifica em Silva (2013), o pós-guerra trouxe a realidade
das pessoas que adquiriam alguma limitação e entre elas estavam os cegos.
Assim, o cego adulto apareceu de forma mais contundente e, com o passar dos
anos, teve de ser criado um setor próprio para atender a essa categoria. Antes
disso, estes homens eram atendidos junto com as crianças, aprendendo a ler em
Braille como quem se alfabetiza.
Algumas informações encontradas em Lobo (2007), bem como registros
dos arquivos do próprio IBC e entrevistas arquivadas em seu setor de pesquisas
(Projeto Memória), informam que havia alunos matriculados em idade
avançada, já em situação irregular dentro da instituição, mas é certo que muitos
chegavam tarde à escola pela falta de informação, de conhecimento dos pais e
falta de condição destes para trazer seus filhos. Não se pode esquecer o fato de
que vivíamos e talvez ainda vivamos, em um tempo em que a pessoa cega é
desacreditada.
Lembremos que o IBC era uma escola mista, isto é, educava meninos e
meninas, foi a única escola especializada na deficiência visual durante muito
tempo e que as distâncias dentro de nosso país são imensas. Como o pai de uma
jovem cega dos anos trinta, por exemplo, poderia conceber a ideia de que sua
filha estudasse em um espaço repleto de meninos? Como uma família que,
como tantas outras, julgava seu filho cego um ser extremamente vulnerável,
poderia aceitar a ideia de deixá-lo na escola para vê-lo apenas nos fins de
semana, quiçá apenas nas férias de fim de ano?
Vale lembrar, ainda que, na época, os internatos eram bastante comuns, porém
não nas condições que o IBC oferecia. O simples fato de uma pessoa cega
30
estudar ainda era uma exceção e era difícil que as informações sobre a escola
chegassem à família, o que explica, em parte os alunos chegarem e se manterem
em idade avançada na instituição, já que era o lugar onde poderiam ter a
instrução necessária.
A permanência por mais tempo do que o necessário devia-se, muitas
vezes, ao fato de o indivíduo cego precisar de um trabalho e não ter outro
suporte para obtê-lo senão o próprio Instituto. Então ele lá permanecia até que
fosse encaminhado a outra instituição, pois muitas surgiram com o fim de apoiar
o indivíduo cego adulto.
Outro fator era o abandono de algumas famílias que, ao deixarem seus
filhos na escola, davam endereços falsos a fim de não serem mais encontradas,
fato comum até os anos cinquenta do século XX na instituição. Estes últimos
fatos mostram o peso do estigma da cegueira em nossa sociedade e o quanto ele
marcou a história da pessoa cega, seja pela dificuldade em obter uma função
remunerada, uma colocação que sustente o indivíduo, seja pelo fato de a família
não desejar ter a presença de um elemento com deficiência entre seus membros.
Seguindo a abordagem histórica desse tópico, nos anos 50, o ensino da
escola foi equiparado ao do colégio Pedro II, o que deu condições para que seus
ex-alunos pudessem continuar seus estudos ao terminarem o chamado primeiro
grau e, posteriormente, chegar às universidades.
Nos anos 50 e 60, ganhou força um movimento conhecido como
educação integrada que tinha como foco a inserção de alunos com deficiência
nas escolas convencionais. Até ali, as experiências nesse sentido eram isoladas e
sem respaldo. Nessa época, as escolas começaram, paulatinamente, a receber
alunos com deficiências sensoriais e motoras. O caso da chamada deficiência
mental trazia mais discussão.
Neste contexto, o IBC teve aumentada sua importância, já que passou
também a formar professores para atenderem a alunos cegos na chamada Rede
convencional de Ensino. Nos anos noventa, as declarações de Jomtien e de
Salamanca5 impulsionaram o movimento da nomeada Escola Inclusiva, que,
5 As declarações de Jomtien e Salamanca abordam a questão da educação de maneira mais
democrática preocupando-se com a inclusão independente de raça, credo, convicção política ou
31
segundo Silva (2013) traz a ideia da igualdade para todos independente de
quaisquer distinções que possam existir, inclusive as questões ligadas às
limitações. Para desenvolver este modelo educacional, surgiram as salas de
recursos multifuncionais, onde alunos com tipos diferentes de deficiência ou
transtornos recebem o apoio necessário para acompanharem as aulas.
Por essa razão, professores do IBC vão a diversos pontos do país
instrumentalizar os profissionais de todas as regiões para o trabalho realizado
com alunos cegos já que é o Instituto Benjamin Constant a única instituição
Federal de Ensino nesta área. Muitas das instituições surgidas, inspiradas no
modelo desta, ou não existem mais, ou tiveram sua função completamente
modificada havendo hoje apenas o Instituto como escola especializada na
educação de alunos cegos e com baixa visão.
Há algumas instituições que atendem ao aluno cego em atividades
específicas como OM (Orientação e Mobilidade), PEVI (Práticas Educativas
para a Vida Independente), além de orientações básicas ao aluno e ao professor
de sala de aula. Apenas o Instituto oferece o ensino regular com turmas da
Educação Infantil ao 9º ano, além da chamada Estimulação Precoce, que atende
a crianças de 0 a 4 anos e grupos de crianças atendidas no PREA (Programa
Educacional Alternativo) que visa a atender alunos com outras deficiências
associadas à cegueira.
Atualmente, a procura pelo ensino no IBC permanece. O trabalho
completamente voltado para atender às necessidades dos alunos, as turmas com
número reduzido de crianças são elementos que atraem.
Observemos agora a declaração de um aluno em sala de aula:
Quando eu estudava lá fora, eu só ouvia a professora falar nos lugares,
decorava as capitais, mas nunca tinha posto a mão num mapa. Essa é a
primeira vez que estou vendo um" (DEPOIMENTO DE J, 20156) recém
chegado à escola, em uma aula observada. "- A sexta está chegando - Que chato, diz Priscila. - Por que você não gosta da sexta? Pergunta a professora.
quaisquer outros fatores e enfatizam a necessidade de os sistemasducacionais adaptarem-se para
atender a todos os alunos. O Brasil é signatário dos dois documentos. (DECLARAÇÃO DE
JOMTIEN, 1990;DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). 6 SOUZA, Carla Maria de. Depoimento de aluno em sala de aula. Rio de Janeiro: Instituto
Benjamin Constant, 2015.
32
- Por que em casa, é chato. Minha avó não deixa eu brincar com as
meninas na rua e só posso ver televisão. Aqui é mais legal. A gente
brinca no pátio, no dormitório...", responde Priscila. (DEPOIMENTO DE
PRISCILA, 2015).
Estes depoimentos exemplificam a diferença que uma escola
especializada fez e faz na vida de alguns alunos, dando-lhes oportunidades de se
expandirem, socializarem-se, aprenderemmelhor os conteúdos através de
recursos próprios. Esta socialização, então, não ficará restrita aos muros da
escola, estendendo-se pelos demais espaços em que o indivíduo cego venha a
circular.
Ela servirá de apoio para que ele se encontre e possa aprender regras
básicas, sem superproteção ou rejeição, pois ali será como todos os outros e nem
as crianças o protegerão. Observemos na entrevista de Andreia (2015) como as
crianças videntes aprendem a se comportar diante de uma criança cega:
"Às vezes, na hora do pique, alguém avisava a um recém chegado: - A Andrea é café-com-leite. Eu demorei um pouco a entender o que queria
dizer aquilo, mas quando entendi que era uma situação mais protegida,
confesso que me incomodou. Mas eu tinha que aceitar ser café-com-
leite... O que é que eu ia fazer?”(ENTERVISTA ANDREIA, 2015).
As situações são aprendidas em nossa vida a todo o momento e as
demais crianças que participavam do grupo de brincadeiras dessa professora
aprenderam que uma pessoa cega deve ser protegida, mesmo porque não
encontravam outra solução para que ela disputasse, em iguais condições, a
brincadeira. A professora, por sua vez, aprendia que em alguns espaços, em
algumas situações, não encontrava meio de rejeitar a proteção. Ou aceitava ou
estaria sempre em situação de desvantagem. Daí considerarmos que seja
importante haver situações em que a pessoa cega não se veja em desvantagem e
saiba encontrar soluções para seus problemas e enfrentar e conhecer os limites
que nascem da convivência e não de uma limitação.
2.2. Relações entre cegos e videntes hoje
"A maioria dos negros, inclusive na África, está obcecada em fixar-se. Esta
obsessão sugere a argumentação de Fanon, é resultado da impotência
social. Não conseguindo exercer um impacto sobre o mundo social, eles se
voltam para dentro de si mesmos. O principal problema desta atitude está
33
na contradição em buscar a liberdade escondendo-se dela. A liberdade
requer visibilidade, mas para que isso aconteça, faz-se necessário um
mundo de outros" (GORDON, 2008, p 15, grifo nosso).
Em alguns aspectos, a situação vivida pelas pessoas cegas é similar à
vivida por outros grupos que sofrem opressão, como negros, mulheres,
homossexuais e, por isso, buscar referências junto a esses grupos nos ajuda a
analisar situações e compreender comportamentos.
Lewis Gordon (2008), prefaciando a obra Pele Negra de Frantz Fanon
(2008), no trecho em destaque, fala na contradição no comportamento dos
negros que querem se fazer respeitar como negros, mas, ao mesmo tempo, se
escondem e, segundo ele, escondem-se não simplesmente, isolando-se, mas
tentando negar sua cultura, sua cor, assumindo uma identidade que não é sua por
inteiro (GORDON, 2008 apud FANON, 2008).
Será que os cegos do campo pesquisado apresentam características
similares? Será que para integrar-se, incluir-se, o indivíduo cego no IBC abre
mão de suas ideias, opiniões e atitudes assumindo um papel que tenta, de
alguma forma, mascarar o seu estigma?
A relação com colegas videntes dentro da instituição faz com quealguns
cegos se vejam em total dependência destes colegas, escondendo assim seu
modo de ser para agir como os outros esperam que ele aja?
Estas informações são preciosas para que entendamos melhor como o
professor cego do IBC percebe o preconceito.
Será possível observar se há distintos tipos de relação entre indivíduos
cegos e videntes e, em alguns desses casos, poder-se-á perceber a tentativa do
indivíduo cego de fazer-se notar o mínimo possível, de não chamar a atenção.
Então, se há o que observar e comentar da relação entre cegos e videntes
dentro da instituição isso deve ser observado para reflexão e discussão, a fim de
estabelecer uma relação onde a falta de um sentido não seja motivo de
imposições ou de submissão. Que nem os indivíduos cegos sejam submetidos às
vontades de outras pessoas, nem estas, para proteger indivíduos supostamente
frágeis, aceitem assumir posturas paternalistas junto aos indivíduos cegos. Que
com esta análise possamos conhecer melhor o cotidiano de uma instituição
34
especializada com suas características próprias, compreendendo como os
indivíduos cegos que ali atuam agem diante das situações com que se
defrontam, pois, estes comportamentos ajudaram a obtermos melhores
informações sobre questões fundamentais para compreensão do tema proposto.
Nosso aprendizado, sejamos cegos ou não, é de que o indivíduo cego éo
assistido, o que deve receber e não tem como colaborar. Por mais que o trabalho
se desenvolva em uma instituição especializada na educação de pessoas cegas e
com baixa visão, cabe avaliarmos se, de fato, a instituição demonstra acreditar
nesta educação, já que ela é formada por pessoas que aprenderam a acreditar de
formas distintas.
Como cegos e videntes, cumprindo as mesmas funções, recebendo os
mesmos salários, se vêem dentro desta instituição é o que queremos observar.
Para se entender como o cego percebe o preconceito, é preciso entender
como se dão as relações entre cegos e videntes no ambiente pesquisado, o
ambiente onde atuam e atuaram os sujeitos da pesquisa.
Relações estas que, com toda a certeza, sofreram e sofrem alterações
dependemos, no entanto, no que pude observar do ambiente atual. Para tanto,
também é importante que se conheça, ainda que superficialmente, o ambiente
físico do prédio onde se dão essas relações. Isto ajudará a entender certas
atitudes tanto de cegos como de videntes, formando uma ideia de como é o
espaço onde essas relações acontecem.
Construído no século XIX, seguindo os padrões arquitetônicos da época, o
prédio principal do IBC possui pilastras no meio do saguão do segundo andar,
janelas que se abrem para dentro, pilastras no meio do pátio. Estes itens estão em
total desacordo com as normas de acessibilidade vigentes no país atualmente,
porém nem sempre podem ser alterados, devido ao tombamento do prédio.
Conhecedores desta situação é comum que ao indicarem algum lugar a
um cego, os videntes especifiquem informações como "junto ao busto de Louis
Braille", referindo-se à estátua do saguão, ou "Depois do Pedro II". Entre os
cegos, isto é ainda mais usual. "Encontramo-nos depois do almoço no banco que
fica depois da segunda pilastra" referindo-se ao pátio, por exemplo, é algo
comum. Para proteção diária, é normal que nem cegos nem videntes usem o lado
35
das janelas dos corredores. Sendo os espaços bastante largos, não há
impedimento em que se use apenas o lado da parede, no máximo o meio do
corredor sem maiores conflitos.
No dia-a-dia, os videntes usam até mesmo entre si, pelo costume, o
cumprimento verbal e não apenas o de cabeça. É considerado falta de educação
cumprimentar apenas com a cabeça, já que isso não permitiria ao cego saber
quem o cumprimenta e retribuir. No início, é comum que, pela força do costume
social, algum vidente o faça inadvertidamente, mas logo é informado por algum
colega sobre a necessidade de mudar este gesto e se insiste nele, vira alvo de
comentários entre cegos e videntes.
Em espaços de uso coletivo mais informal como sala dos professores e
espaços para refeições, é comum que cegos e videntes se sentem juntos e que
haja solidariedade entre uns e outros, com algumas exceções habituais em
qualquer ambiente de trabalho, onde nem todos conseguem integrar-se da
mesma forma. Se uma pessoa cega demonstra dificuldade em encontrar algum
utensílio de cozinha na copa, por exemplo, poderá solicitar a ajuda de algum
vidente próximo e será prontamente auxiliada.
Boa parte dos videntes ainda se constrange em receber ajuda de uma
pessoa cega. Pude observar, por exemplo, que uma professora vidente havia
esquecido o tempero da sua salada e hesitou em aceitar o tempero que a colega
cega lhe ofereceu, mas antes de hesitar, havia perguntado a uma outra colega
vidente se ela teria tempero, o que significa que desta ela aceitaria. Vale ressaltar
que a colega vidente não é mais íntima dela do que a colega cega que lhe
ofereceu o tempero.
O exemplo trivial pode suscitar uma importante pergunta.
Que sensação teria a pessoa vidente que aceitasse a ajuda de uma pessoa
cega? De estar explorando “covardemente” a alguém? De que é muito
vulnerável, já que dependeu momentaneamente de alguém com extrema
vulnerabilidade, segundo seu conceito?
Há pessoas cegas que contam com a ajuda de colegas videntes para
muitas coisas como: aquecer comida no forno micro-ondas, partir a carne, servir
36
o café, ir a locais que funcionam no terreno do Instituto, porém em outro prédio,
acionar tomadas para ligar aparelhos elétricos etc. Isso faz com que muitos
videntes acreditem que todos os cegos terão as mesmas necessidades.
Quando um colega cego age com independência dispensando esta ajuda,
há certo atrito, embora não uma discussão. Frases insistentes como "Você tem
certeza de que não quer que eu faça?" ou aquele "Ai meu Deus!" dito na
suposição de que o cego não ouviu, por ele estar fazendo algo que o outro julga
perigoso, são comuns. Em resposta a isso, alguns cegos insistem educadamente,
em agir de forma independente, outros demonstram certa irritação com
respostas como: "Fulano, faço isso na minha casa e aqui muito antes de você me
conhecer" Ou, ainda, "Qual é o espanto, gente?!”
Muitos videntes, com o tempo, vão-se acostumando e aprendendo a não
generalizar, separando os cegos mais acomodados e com mais dificuldade dos
mais independentes, oferecendo ajuda aos que mais a procuram ou aos novos
que eles ainda não conhecem. Sabem que os outros solicitarão se realmente
precisarem. Da mesma forma, os cegos aprendem também quem são os
videntes mais solidários, disponíveis e até aqueles que fazem coisas
desnecessárias, estimulando a acomodação e se utilizam desta informação para
atender a seus interesses, quando querem coisas que poderiam perfeitamente
fazer sozinhos.
Nas reuniões de trabalho, é comum que cegos e videntes sentem-se
separadamente, bem como em eventos festivos maiores. Em ambos os casos,
não existe qualquer tipo de reclamação contra quem descumpre esta regra tácita,
mas se um vidente senta-se junto aos cegos, isto pode ser visto com espanto pelo
grupo e às vezes, até pelos outros videntes que fazem comentários como: "Tem
lugar aqui com a gente. Você não quer vir?" ou ainda "Ah, você vai ajudá-los?"
Se supõe que haverá necessidade de algum tipo de auxílio aos cegos,
compreendendo que o colega vidente postou-se ali apenas para isso e não por
amizade. Se ocorrer o contrário, isto é, se o cego senta-se onde estão mais
videntes, ou apenas videntes, pode ser bem recebido, participando das rodas de
conversa e integrando-se ou, pode simplesmente acontecer de ele ficar ali, mas
37
ser colocado à margem dos assuntos, ou de ele mesmo se fechar e não querer
participar.
O mais comum, no entanto, é que, ao chegar ao espaço, o cego procure
ou pergunte por outros colegas cegos, ou seja direcionado para junto deles, seja
porque já tem este hábito e os videntes pressupõem que esta é a sua preferência,
seja porque acham que isso é melhor para ele e ele não reage.
Não se verificam casos de discriminação em tarefas desempenhadas na
instituição entre cegos e videntes de forma ostensiva, mas senota em dinâmicas
de grupo, por exemplo, que há pessoas videntes que procuram sempre outros
colegas videntes para participarem de seus grupos. Um fato chamou bastante
atenção.
Aconteceu em três grupos dos quatro que tive a oportunidade de
observar na elaboração do planejamento anual. Era necessário que os
professores se reunissem, em alguns casos por série, em outros por disciplina, a
fim de elaborarem o planejamento anual do trabalho com os alunos. Em três dos
quatro grupos observados, simplesmente os professores videntes disseram:
"Pode ficar tranquilo. A gente faz o plano e depois te mostra. Não precisa vir à
reunião". Um dos professores cegos protestou: "Ah, então vocês querem que eu
assine e use um plano sem que eu tenha concordado com ele. Por quê?"
Respondido com: "Não se trata disso. É que pensamos que seria mais prático.
Não é por nada..." E a posição do professor cego: "Não, muito obrigada. Virei à
reunião".
O professor cego foi, participou ativamente, integrando-se com seus
colegas. Nas outras duas situações em que isto ocorreu, o professor cego aceitou
a ideia "prática" dos colegas videntes. Quando algum colega cego é alçado a
um cargo um pouco mais elevado, seja uma coordenação ou uma chefia de
divisão, logo surge a pergunta por parte dos videntes: "Quem vai auxiliar
fulano?". Não se pode afirmar que ela seja feita pela totalidade do grupo, porém
por grande parte deles, podemos dizer que sim. Poder-se-ia dizer que esta
preocupação refere-se às questões ligadas a documentos e outros detalhes que
são essencialmente visuais.
38
No entanto, ela não se justifica, havendo secretários, auxiliares
administrativos e sendo o trabalho realizado por uma equipe onde não há apenas
cegos. Além disso, estão ligados a esses aspectos alguns posicionamentos da
instituição com relação ao profissional cego, que abordarei mais à frente.
Uma situação chamou-me a atenção durante a pesquisa: há momentos
em que pessoas videntes que, de hábito, não buscam maior proximidade com
qualquer pessoa cega procuram alguma pessoa cega para compor um trabalho
que seja de seu interesse, uma composição de chapa para alguma associação, ou
para concorrer a algum cargo da instituição, por exemplo.
A partir desse momento, ela começa a ser vista regularmente
acompanhando pessoas cegas como se fossem colegas próximos e até amigos, o
que causa espanto em alguns pela brusca mudança de comportamento. Daí
podem decorrer alguns fatos: se ela atingir seu objetivo alcançando o cargo que
deseja, junto à ela, a pessoa cega pode manter-se como figura decorativa,
legitimando sua posição por ser uma instituição especializada no atendimento a
pessoas cegas. Podem ser formuladas algumas hipóteses: “o indivíduo que é
cego está apoiando o indivíduo vidente e vai trabalhar com ele"; ou, ainda: o
indivíduo vidente procurou apoio em um indivíduo cego apenas para legitimar
seu interesse no cargo, pois nunca se envolveu espontaneamente com qualquer
colega cego. Ambos os discursos podem vir tanto de cegos como de videntes.
Fica bastante evidente, neste caso, que existe uma discussão sobre a
possível instrumentalização das pessoas cegas por pessoas videntes dentro da
instituição.
Vale ressaltar que isto não quer dizer que a pessoa cega envolvida seja
absolutamente isenta no processo. Como em qualquer relação de interesses que
se desenvolva em qualquer lugar, neste caso, pode ocorrer de o cego envolvido
estar plenamente satisfeito com a situação de poder, ainda que aparente que lhe
é dada, ou pode crer que, estando nesta posição, poderá obter algo realmente
interessante para o grupo como um todo. Mas é fato que esta situação ocorre de
forma bastante comum e, muitas vezes, causa espanto entre os pares saber quem
foi o cego escolhido ou com quem aquela pessoa cega está andando, já que em
39
anos de instituição, nunca se viu aquela pessoa vidente envolvida com qualquer
pessoa cega, exceto quando obrigada pela força do trabalho.
Há grupos envolvendo videntes e cegos em que as relações de amizade
ou, pelo menos de coleguismo, estendem-se para fora da instituição. Relações
em que a falta de visão não tem maior peso e onde nem os cegos se consideram
engessados pela superproteção de colegas videntes, nem os videntes sentem-se
sobrecarregados pela presença de cegos. Nesses casos, pode-se observar que os
videntes não se importam em aceitar ou mesmo solicitar favores que possam ser
feitos por pessoas cegas e, em contrapartida, os indivíduos cegos sentem-se com
liberdade para protestar até mesmo com veemência e de forma jocosa quando
um colega vidente tem uma atitude em que o indivíduo cego pode ser
considerado excluído, como quando se propõe um passeio a uma exposição de
fotografias, por exemplo. As desculpas são pedidas pelo colega distraído e
tranquilamente o grupo reformula sua proposta de passeio.
Outra situação que chama a atenção diz respeito ainda ao envolvimento
da pessoa cega com situações de destaque. Há pessoas, videntes e cegas, capazes
de concordar com a escolha de um indivíduo para um cargo pelo fato de ele ser
um indivíduo cego, não levando em consideração seu envolvimento com aquela
função, seu preparo para ela. Consideram que o ideal é que a instituição ou
qualquer órgão de alguma forma a ela vinculado deva ter em seu comando
pessoas cegas, sejam elas preparadas ou não para o cargo.
Por outro lado, há mesmo cegos que têm reserva em concordar com a
presença de cegos em certas funções. Comentários como: "Será que não vão
passar fulano para trás?" ou "Não sei se um cego, sem alguém de confiança do
lado dele, dá conta." Surgem às vezes de outros cegos, no caso de trabalhos em
que a confiança é sim importante para qualquer pessoa, e não apenas para os
cegos. Há mesmo pessoas cegas que acham que todo professor cego deveria ter
um auxiliar de turma, isto é, um vidente que ficasse na sala observando o que os
alunos fazem em dia de aula.
Podemos, então considerar as ações de cegos e videntes dentro do campo
pesquisado como pertencentes a dois grupos, a saber: as ações inclusivas que
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trazem a aproximação entre cegos e videntes e as ações de exclusão que trazem o
afastamento entre esses dois grupos.
No primeiro caso, estão aquelas ações em que os saberes de cegos e
videntes são respeitados e acatados com igual consideração e não existe uma
tutela sobre o indivíduo cego. Direitos e compromissos são respeitados e exigidos
tanto de cegos como de videntes, considerando-se as peculiaridades de cada grupo
para o cumprimento desses compromissos, fazendo-se as adaptações necessárias
para que o indivíduo cego possa desenvolver seu trabalho com o máximo de
autonomia.
No segundo caso, podemos agrupar as ações que geram preconceito tanto
por parte dos videntes como dos próprios cegos. Ações que alijam um indivíduo
cego das discussões, projetos, trabalhos e até mesmo das atividades de
entretenimento dentro da instituição, bem como aquelas em que ele é submetido a
uma tutela que não se justifica com a falta do sentido da visão. Neste caso, cegos e
videntes acabam por afastar-se e esta situação só terá possibilidade de modificar-
se com a desconstrução de ideias pré-concebidas.
2.3. Grupos, linhas de pensamento e correntes na instituição
Pude observar, claramente, a presença de duas correntes marcantes e que
sempre se manifestam com relação à educação e à preparação dos alunos do
IBC. Professores parecem ter opiniões distintas sobre aspectos ligados à
educação de cegos, portanto divergem em pontos fundamentais do trabalho que
realizam dentro da instituição.
Voltando à questão do aspecto físico, já abordada no item anterior,
aparece aqui a primeira divergência. Um grupo considera um absurdo que o
tombamento seja superior às necessidades de acessibilidade da instituição e acha
que se deveria fazer de tudo para alterar este tombamento, permitindo que se
façam as obras que facilitariam a acessibilidade de todos. Pessoas cegas recém-
chegadas à casa poderão ter problemas para adaptar-se em espaço tão
inapropriado, segundo eles, e se a instituição não for capaz de assegurar a
acessibilidade em seu próprio espaço, como pleiteará que ela aconteça em outros
41
espaços? Este grupo também defende a colocação de indicações em Braille em
todas as portas e quaisquer recursos que facilitem a acessibilidade, sobretudo
dos cegos, mas também de pessoas com outras deficiências.
Outro grupo concorda que há questões de acessibilidade que podem e
devem ser resolvidas, porém é radicalmente contra as alterações na arquitetura
do prédio antigo e principal. Este grupo defende que não se conseguirá isto nos
demais logradouros públicos que o cego venha a frequentar e que, na realidade,
não existe um mundo adaptado. Portanto, a experiência em um espaço tão cheio
de obstáculos como o IBC pode ser favorável para preparar a pessoa cega para a
realidade que irá enfrentar. Defendem eles que adaptação demais torna a pessoa
cega mais vulnerável. Quando ela se vir no mundo real, com suas dificuldades,
não saberá como contornar as situações que surgirem porque está habituada a
um mundo ideal que, então, só existirá dentro do IBC.
Nas reuniões de professores surge outro tema que causa impasse.
Quando ensinar o Braille aos alunos tidos como com baixa visão? Um grupo
defende que estes alunos só devem aprender o Sistema Braille quando e se
vierem a perder a visão. Pelo menos se estiverem em processo de perda do
resíduo visual que possuem. Segundo eles, é mais importante incentivar o uso do
resíduo visual e o aprendizado do Braille pode torná-los acomodados neste
aspecto, não querendo mais fazer esforço para ver o que podem ver se forem
treinados.
Outro grupo não acredita na possibilidade de uma pessoa não utilizar o
resíduo visual que possui e acha que sempre que for possível o indivíduo fará
uso desta visão. Acredita, no entanto, que o Braille deve ser ensinado desde
cedo a todos os alunos, inclusive os com baixa visão. Segundo eles, isto daria a
esses alunos a opção de utilizarem o sistema que lhes for mais confortável, pois
é comum que até pelo nervosismo de algumas situações, alunos com baixa visão
com quadros mais instáveis tenham dificuldade de ler em momentos de tensão,
como provas, por exemplo. Defendem eles que, neste caso, se vierem a perder a
visão um dia, estes alunos não sentirão o aprendizado do Braille como uma
tragédia, pois este aprendizado já terá ocorrido e eles verão o sistema como algo
mais natural.
42
O grupo lembra ainda, que, em outros tempos, a casa já trabalhou assim,
ensinando os dois sistemas a quem tinha resíduo visual, mesmo porque no
Segundo Segmento do Ensino Fundamental, estes alunos teriam professores
cegos e estes professores não admitiam receber trabalhos de alunos feitos no
sistema de escrita comum. Todos precisavam, portanto, dominar o Braille. Isto,
segundo o grupo, jamais impediu que nenhum deles usasse a visão.
Ainda com relação ao ensino do Braille, há outra questão que divide
opiniões. Constatada a perda da visão como inevitável, concluindo-se que o
resíduo visual que o aluno possui é insuficiente para seu desenvolvimento
utilizando o sistema comum, ele deve aprender Braille, mas permanecer na
turma de baixa visão, ou deve ser imediatamente transferido para uma turma
onde se utilize o Sistema Braille?
Um grupo defende a permanência desse aluno na turma que utiliza o
sistema comum com tipos ampliados, alegando que entre os colegas de quem já
era mais próximo, o aluno poderá se sentir mais confortável. Eles defendem que
mesmo lá o professor tem condições de estimular este aluno a usar o Braille e
apenas quando ele dominar o novo sistema deve ser transferido, principalmente
se a iniciação ao novo sistema ocorrer no meio do ano letivo. Outro grupo
defende que, tão logo se decida pelo aprendizado do Sistema Braille que passará
a ser utilizado como sistema de leitura e escrita pelo aluno, ele deve ser
transferido para uma turma que utiliza esse sistema.
Segundo este grupo, é evidente que essa transferência deve ser tratada
com a família, com o próprio aluno, com a equipe de Orientação educacional da
escola e acompanhada pela mesma, bem como deve envolver tanto o professor
que está passando o aluno como o que está recebendo, no sentido de apoiar a
criança e compreender suas possíveis dificuldades de adaptação, no entanto
entende que quanto mais rápido o aluno puder ver o Braille em funcionamento
diário, mais se sentirá estimulado a usá-lo e os próprios colegas poderão ajudá-
lo, pois é bastante comum que os alunos tenham esse empenho em ajudar novos
colegas. Isso os faz sentirem-se importantes.
Acreditam, ainda, que o professor que já está lidando com o Braille terá
mais oportunidades para incentivar seu uso até propondo, aos poucos, que o
43
aluno comece a fazer as mesmas atividades que seus colegas, respeitando seu
ritmo de domínio do sistema, enquanto na turma de baixa visão ele terá, de
alguma forma, a ilusão de que poderá voltar a utilizar o sistema comum.
O grupo lembra ainda que, se tratando o IBC de uma escola
especializada e ficando as duas turmas na mesma escola, o aluno não perderá o
contato com seus antigos colegas e nem os novos serão pessoas totalmente
estranhas.
Apenas a colocação do aluno em uma turma ou outra tem como objetivo
seu melhor aproveitamento e por isso, propõe logo a transferência para a turma
que utiliza o Sistema Braille e não a separação entre ele e seus amigos, mesmo
porque não faltarão oportunidades para que estejam juntos. Os próprios
professores de ambas as turmas podem proporcionar isso.
A cada vez que se discute a transferência de um aluno para uma turma
por causa de significativa perda visual, estes pontos voltam a ser discutidos sem
que o grupo chegue a uma conclusão. O assunto se estende reunião afora, e
aqueles que coordenam a reunião comprometem-se a marcar uma nova reunião
para discutir isso e essa reunião nunca acontece, o que faz com que cada caso
tenha um desfecho próprio e a instituição não tenha uma posição definida a
respeito do assunto.
Os tópicos aqui levantados são uma amostra, não só do momento de
divisão vivido pela casa como da percepção de muitos de seus professores do
trabalho que se realiza. Se atentarmos para a questão das barreiras
arquitetônicas, podemos ser levados a pensar em itens como proteção,
preparação para a vida, igualdade de condições, atenção às necessidades do
outro, confiança na capacidade do outro de se adaptar às situações.
Os itens ligados ao aprendizado do Sistema Braille por parte dos alunos
que possuem baixa visão, remetem-nos a discussões como: opinião dos
profissionais sobre o sistema de leitura e escrita usado pelos cegos,
posicionamento desses profissionais diante da cegueira, consequente valorização
da visão, preocupação com a aceitação do aluno de sua real situação, atenção ao
desempenho do aluno e à forma como está incluído no ambiente escolar.
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Podemos perceber, ainda, na posição de alguns profissionais o aspecto
estigmatizante do Sistema Braille que será mais bem abordado no próximo
capítulo, pois sendo uma marca registrada da pessoa cega, é visto por alguns
como identidade e por outros como elemento de estigmatização e, tanto um
aspecto quanto outro, podem aparecer nos posicionamentos dos profissionais ao
discutirem a situação do aluno que acaba de perder a visão, por exemplo.
2.3. O Lugar do Professor Cego
Jorge Luiz Borges, um dos mais renomados escritores argentinos, Ditou grande parte de sua obra. Ele soletrou cada palavra de Cegueira. Um relato
de sua vida como escritor cego. A cegueira foi considerada como uma das
fontes de inspiração de Borges. Como não enxergava, sua inspiração viria de sentidos pouco explorados pelas pessoas com visão. Essa possível
explicação para a genialidade de Borges é a que mais agrada às pessoas não
deficientes. (...) Mas não era assim que Borges descrevia sua deficiência.
Para ele, a cegueira deve ser vista como um modo de vida, um dos estilos de vida dos homens. Afirmar a cegueira como um modo de vida é reconhecer
seu caráter trivial para a vida humana (DINIZ, 2007, p. 7-8).
Em que pese o impacto que a palavra trivial possa causar neste caso,
creio ser importante observar a colocação sobre alguém que conviveu com a
cegueira como algo não espantoso, não trágico. Esta ideia ganhou força no
pensamento de Kenneth Jernigan, que foi grande representante dos movimentos
de cegos nos Estados Unidos e no mundo. Jernigan defendia uma "Filosofia
Positiva da Cegueira", não com o intuito da negação da situação, mas com o
objetivo de que houvesse mais preocupação com o como as pessoas cegas
participam da vida e agem no mundo do que com aquilo que elas não podem
fazer. Por anos presidente da National Federation of Blinds e representante
americano na OMC (Organização Mundial dos Cegos), Jernigan é, hoje, pouco
discutido e pouco lembrado em nosso país. Apenas conseguimos referências a
ele nas obras de Martins - estudioso português das questões da cegueira -
Hildebrandt (1998) e Zeni (2004), não havendo discursos ou artigos deste autor
no acervo do IBC ou em algures.
No entanto, sua postura com relação à cegueira inspirou Borges e, por
certo, muitos outros indivíduos cegos que, longe de negarem suas realidades,
acreditam nelas como um modo de vida próprio sem se considerarem inferiores
pelos meios de que se utilizam para relacionar-se com o mundo.
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Observar o lugar do professor cego dentro do IBC passa por observar
amaneira como a instituição considera, na prática, o trabalho desse profissional
e como ele se permite ser visto. Nem todos os cegos terão a mesma percepção
de Borges sobre sua condição e, muito menos as pessoas não cegas concordarão
plenamente com ele. Porém, esta é uma maneira que afasta a cegueira da
questão da tragédia pessoal, pois como estilo de vida, deve ser aceita e
contemplada entre os modos de viver dos muitos grupos que compõem a
sociedade e, como tal, também indica que o cego pode e deve contribuir com a
sociedade e ser respeitado como membro ativo dela, não sendo apenas um
assistido como, muitas vezes, acaba sendo visto.
Essa percepção do cego como assistido pode aparecer nas próprias
autoridades dentro da instituição, na maneira como lidam com tudo o que diz
respeito ao cego e à cegueira.
Se o objetivo é compreender como o professor cego vê o preconceito
elida com o estigma, nada mais importante do que trazer o que foi observado
por mim da forma como o campo se relaciona com o professor cego e, neste
caso, não falo mais do relacionamento informal, entre colegas e sim do exercido
pela presumível liderança daqueles que exercem vários cargos. Individualmente,
estas mesmas pessoas poderão ter maneiras distintas de lidar com a pessoa cega
e com a cegueira, porém o que nos interessa neste item é a abordagem do
oficial. Em uma instituição especializada para o atendimento a crianças cegas e
de baixa visão, qual é o lugar do professor cego?
Em primeiro lugar, é importante apresentar um dado sobre a direção
geral da instituição. Em 161 anos de existência, a casa teve apenas dois diretores
cegos: O professor Renato Malcher, nos anos 70 e o professor Jonir Bechara que
assumiu o cargo interinamente, atuando de 1992 até final de 1994. Nem durante
o período das nomeações, nem depois, com as eleições para o cargo, cegos
foram eleitos. O diretor atual, eleito em 2014, possui baixa visão e é ex-aluno da
casa. Pessoas cegas já ocuparam chefias de gabinete, de departamento e de
divisão. No quadro atual, temos a seguinte situação: dos cinco cargos do
gabinete, um é ocupado por cego e um por pessoa de baixa visão; das quatro
direções de departamento, nenhuma é ocupada por pessoa cega; das dezesseis
chefias de divisão, nenhuma é ocupada por pessoa cega.
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Dos três postos de supervisão existentes, nenhum é ocupado por pessoa
cega. Conforme será possível perceber no capítulo da análise de dados, há,
atualmente, treze dos professores cegos ativos na casa, sendo uma deles a
pesquisadora em um universo de mais de cem professores, considerando-se o
quadro efetivo.
Este número foi bastante elevado em outros tempos, o que se pode
concluir através de entrevistas em que professores que são ex-alunos da casa
declaram ter tido apenas um ou dois professores videntes em seu período de
escola. Esta queda no número de professores cegos está relacionada a inúmeros
fatores, alguns até apontados em algumas entrevistas.
A existência da atual lei de cotas que, se permite a entrada de pessoas
com deficiência em vários órgãos, limita sua entrada nos órgãos especializados
já que estabelece um teto exigido.
Questões de interpretação da lei são discutidas, pois há quem defenda
que não há impedimento legal a que se absorva pessoas com deficiência acima
deste limite e outros dizem que para essa absorção acima do limite seria
necessário que a nota da pessoa com deficiência fosse superior à nota do
próximo candidato sem deficiência a ser chamado, havendo ainda, quem diga
que não se pode ultrapassar aquele limite de pessoas com deficiência.
Se tomarmos por base a possibilidade de que a primeira corrente esteja
correta, ou seja, preenchidas as vagas estabelecidas por lei, só podem ser
chamados candidatos com deficiência que tiverem notas superiores às dos
candidatos sem deficiência que aguardam chamada, encontraremos outra
situação: o nível de escolaridade.
As exigências dos concursos são cada vez maiores e é muito mais raro
encontrarmos cegos candidatos com níveis de escolaridade como os que se vê
entre os videntes.
Um estudo apresentado na 36ª Reunião da ANPED (2013) mostra as
dificuldades da pessoa cega para escolarizar-se apesar das tecnologias bem mais
favoráveis. Selau e Damiani (2013) mostram em estudo apresentado na ANPED
que a existência das tecnologias não é o bastante, considerando que a maior
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parte das pessoas cegas possui poucos recursos e tudo o que existe em termos de
acessibilidade é custoso e não tem subsídio governamental, sobretudo para os
níveis de escolarização mais adiantados.
Discutir a possibilidade da permanência e da conclusão da educação
superior por uma pessoa com cegueira somente à luz da disponibilização
de recursos tecnológicos é como olhar para um iceberg observando apenas
a parte que está para fora d’água, imaginando que aquela imensa massa de
gelo flutuante é somente o que se vê, sem consciência de que a parte
imersa é muito maior do que a emersa. (SELAU; DAMIANI, 2013, p.1)
Os autores ressaltam ainda, a dificuldade de acessibilidade física, os
materiais inacessíveis por meios utilizados pelos cegos e outros entraves, o que
nos faz concluir que atingir a um nível de escolaridade mais elevado tem seus
obstáculos e nem todos têm condições para transpô-los. Algumas entrevistas que
serão apresentadas neste trabalho apontarão, também, aspectos que dificultam
esta caminhada. O fato é que atualmente, em um universo de cerca de 100
professores ativos, apenas treze são cegos.
Isto gera polêmica, pois há os que consideram que numa instituição
especializada, deveria haver mais professores cegos. Há os que entendem que
determinadas atividades são mais bem feitas por pessoas cegas principalmente
no que se refere ao ensino de crianças cegas e há os que não veem qualquer
questão nisto, entendendo que o importante é que o professor aja acreditando no
trabalho que faz e no aluno que tem.
No entanto, mesmo sem considerar um problema o fato de a casa
terpoucos professores cegos, um ponto que ainda não foi bem aceito pela casa
foi olfato de em seu último concurso a instituição não exigir conhecimento do
Sistema Braille. A preparação foi oferecida aos professores tão logo eles
tomaram posse não só com o aprendizado da codificação, mas também com o
conhecimento de outros recursos utilizados na educação especializada, porém,
muitos docentes acreditam que não há empenho por parte da direção em exigir o
que é realmente importante para a casa.
Outro assunto que traz constantes discussões entre os professores é a
dificuldade do professor cego em ser independente para executar certas tarefas
como enviar suas notas para a secretaria ou qualquer documento à sua chefia
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imediata. Os formulários não estão digitalizados e são sempre preenchidos à
mão, não sendo aceito seu envio via computador.
Recentemente, houve o caso de um professor que entregou seu diáriode
classe todo em Braille. Foi sugerido que este professor repassasse o diário para
o sistema comum com a ajuda de um secretário do departamento, mas o
professor recusou-se a fazê-lo alegando estar em uma instituição especializada.
A partir daí, autorizou-se que, aqueles professores cegos que o desejassem,
entregassem seus diários em Braille. Agora, como forma mais recente de
acessibilidade, ficou estabelecido que os professores podem enviar seu diário
por computador direto para as chefias.
Porém, no caso dos outros documentos, nada mudou e ainda é necessário
que se peça ajuda a um colega. A própria instituição não se organiza para
receber material digitalizado pelos professores no que se referea documentação,
relatórios, fichas de notas.
Isso pode demonstrar que, no entender da instituição, o papel do
professor cego é o daquele que sempre deverá ser auxiliado no preenchimento
dos documentos mais cotidianos. Se não existe acessibilidade, não é necessário
criar recursos para que ela exista, já que sempre se pode dispor de alguém
realize para o professor cego aquilo que ele não pode realizar sozinho.
É possível perceber a insatisfação de alguns professores cegos com esta
situação, embora nem todos se pronunciem a respeito. Há aqueles que,
simplesmente, solicitam a um colega vidente que preencha suas fichas e não
discutem o caso com as autoridades.
Outro tema bastante polêmico no que se refere ao lugar do professor
cego está vinculado aos livros adaptados no IBC. A adaptação de livros é a
transcrição e "adaptação" de exercícios de livros didáticos já existentes a fim de
que a criança cega possa utilizá-los em qualquer sala de aula, tendo em mãos o
mesmo material de que seus colegas videntes dispõem.
Até aproximadamente vinte anos atrás, o IBC trabalhava da seguinte
forma: transcrevia livros já existentes substituindo exercícios que exigissem o
uso da visão por outros com o mesmo objetivo, sendo esta substituição sempre
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feita por um professor da área. Para Matemática, considerada matéria
extremamente visual, utilizava livro próprio, feito por professores da casa.
No final dos anos 90 do século passado, a inclusão escolar ganhou mais
força e o IBC precisou trabalhar em sua parte gráfica com a adaptação de livros
que atendesse à chamada escola inclusiva, ou seja, aquela em que o aluno com
deficiência estuda na mesma turma com outros alunos sem deficiência ou, ao
menos, sem a mesma deficiência. Então o modelo de adaptação teve de mudar,
ganhou normas mais rigorosas e precisava atender ao que se espera em uma
escola inclusiva.
A produção feita no Departamento Técnico Especializado (DTE) ganhou
outro caráter, atendendo às exigências o MEC. Os livros ganharam descrições de
fotos, desenhos, esquemas, o que, na opinião de muitos cegos, torna sua leitura
enfadonha e faz com que por vezes, o aluno se perca, já não saiba mais porque
está lendo tudo aquilo e esqueça o objetivo da atividade. Exercícios que exijam
o uso da visão são mantidos recebendo ao final a instrução: "Peça ajuda ao
professor" para que o aluno cego solicite a colaboração do professor de sala de
aula, a fim de realizar o exercício. Caberá então ao professor decidir a melhor
estratégia para trabalhar com aquele aluno.
O grande problema, segundo o que pude observar, está no trabalho
comestes livros por professores cegos. Darei como exemplo uma atividade para
que se entenda a dificuldade.
O livro6 diz: "Descrição da figura: O Jogo de Xadrez, de Maria Helena
Vieira da Silva, 1943". A seguir, são feitas várias perguntas sobre a imagem
que, suponho, seja uma pintura. Na tentativa de fazer descrições sucintas, o
adaptador não forneceu mais informações para não tornar a leitura enfadonha
para o aluno e para não responder com sua descrição a algumas das perguntas,
porém tornou a realização da atividade inviável para o professor cego, que
precisaria conhecer o quadro, o que nem sempre acontece.Assim, no dizer
inclusive dos professores cegos que trabalham como consultores no setor de
adaptação, esta forma de trabalhar exclui o profissional cego.
6 A fim de preservar o trabalho de adaptação feito no IBC bem como os responsáveis pela
adaptação de cada livro não será citado o título do livro em que consta a atividade que serve
como exemplo.
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Alguns professores dizem abertamente que não se pensa no cego senão
como "clientela", aquele que vai receber o serviço, e nunca como alguém que
possa opinar sobre ele, o que explica a não preocupação com o cego professor.
Discordando de muitos itens da adaptação em geral, a maioria dos
professores, mesmo os videntes, ao trabalharem com turmas de alunos cegos, não
se valiam dos livros adaptados preferindo preparar seu próprio material.
O segundo segmento do Ensino Fundamental optou por uniformizar seu
trabalho com apostilas, mesmo porque trabalha com turmas mistas7 e julgou
que, sendo uma escola especializada, seria o ideal para atender a todos os alunos
- cegos e com baixa visão - que os professores preparassem atividades em que
ambos os grupos pudessem desenvolver-se com o máximo de independência
possível.
No primeiro segmento, as opiniões divergem. Há os que usam o livro e
suprimem certas atividades, há os que preparam seu próprio material e não se
utilizam dos livros adaptados pela própria casa.
Há professores cegos que atuam no setor como consultores, isto é, sua
unção é justamente, dizer se a adaptação feita está atendendo às necessidades da
pessoa cega permitindo que ela acompanhe as atividades e atinja aos objetivos
propostos pelo livro. Porém o que alguns destes professores alegam é que se
suas propostas de adaptação modificarem a estética do material, elas acabam
não sendo seguidas. Muito menos eles têm permissão para substituir qualquer
atividade por mais visual que seja e, em suas opiniões, isto não é adaptação.
Vale ressaltar que, segundo relatos de alguns profissionais da adaptação,
questionou-se durante muito tempo, a presença de professores cegos em um
serviço que adapta materiais para cegos.
Este embate deixa esta questão ainda não resolvida e a instituição, mais
uma vez, não tem posição fechada sobre o caso pois, como órgão do governo,
7 Turma mista, neste caso, refere-se às turmas onde há alunos cegos e com baixa visão. Do
Primeiro ao quarto ano do Ensino Fundamental, as turmas no IBC são classificadas como turmas
para uso do Sistema Braille e turmas para alunos que usam a escrita comum ampliada - alunos
com baixa visão. A partir do quinto ano, considera-se que as questões de domínio da escrita e
das técnicas de cálculo no sorobã já estejam bem conhecidas, permitindo que os alunos possam
frequentar as mesmas turmas. Então, formam-se as turmas mistas.
51
deve seguir os parâmetros de adaptação determinados pelo MEC, porém como
centro de referência nacional na área da deficiência visual - título que o próprio
MEC lhe atribui e que está em seu Regimento Interno - é questionada sobre
olfato de se não deveria ser ela (a instituição) e não o MEC que é um órgão
geral, a determinar a melhor forma de se fazer a adaptação e se não deveriam as
direções, que se sucedem a cada quatro anos, lutar por essa atribuição.
Vale ressaltar, no tocante à adaptação de materiais, que a legislação
permite que sejam transcritos e adaptados materiais para garantir a
acessibilidade a deficientes sensoriais, sem necessidade de se solicitar
autorização ao autor, desde que isto seja feito com o objetivo único de atender
às pessoas com deficiência.
Podemos perceber, portanto, as questões que atravessam o trabalho nesta
instituição, questões que fazem parte da rotina de professores e professoras
sujeitos da pesquisa e que fazem com que cada um tenha sua forma de vê-las e
vive-las, já que, por mais que tenhamos características semelhantes, há
particularidades de nossa criação, de nossas experiências que não podem ser
generalizadas.
Quando estamos diante de grupos oprimidos e, sobretudo, quando não
pertencemos a eles, julgamos poder definir como seus membros devem
comportar-se. Como a mulher deve agir, onde o negro pode estar, como a pessoa
com deficiência deve ser conduzida. Estas atitudes estão relacionadas ao
preconceito que construímos de acordo com a maneira como aprendemos a ver
estes grupos, e com os indivíduos cegos não é diferente.
Eles mesmos moldados por esta educação podem aceitar esta postura ou
reforçá-la já que são participantes da mesma sociedade em que todos os outros
indivíduos desenvolveram ideias sobre as pessoas cegas.
Através das informações deste capítulo somos capazes de avaliar o lugar
que o professor cego tem hoje no Instituto Benjamin Constant. Um lugar que
precisa ser revisto, redimensionado e reavaliado. Um espaço que ainda necessita
de mais discussão a fim de que pessoas cegas e com baixa visão,para quem a
institui.
52
3. Conceitos
Alguns conceitos nos ajudam a compreender melhor a questão da
deficiência em geral e da cegueira em particular. Conceitos como estigma,
preconceito e estereótipo aparecem, de alguma forma, entrelaçados e precisam
ser mais bem colocados. O conceito de exclusão precisa compor este capítulo
devido à sua relação com o tema da deficiência visual.
A maneira como a pessoa cega percebe o preconceito está
relacionadacom as situações de exclusão, de preconceito ou ligada ao estigma
que ela já viveu ou presenciou e como aprendeu a negociar com as outras
pessoas diante dessas situações.
No entanto, é mais consistente iniciar esta análise com uma amostra de
como a situação da pessoa cega mudou com o tempo. Como ela era vista na
Antiguidade e como é vista hoje. Vale compreender o quanto da percepção que a
sociedade sempre teve da cegueira influencia ainda hoje o modo como todos,
cegos ou não, se comportam diante da cegueira.
3.1. A Cegueira e a história
A história dos cegos é a história da estigmatização da cegueira. Ainda que
nem sempre disso os cegos se apercebam, são eles dela importantes
agentes, pois sua postura diante da sociedade e de sua limitação conforma
suas transformações. (ZENI, 2004).
Ainda que se possa questionar a maneira contundente como o autor
afirma que "A história dos cegos é a história da estigmatização da cegueira", é
fato que, nos registros encontrados sobre a história dos cegos e a percepção da
cegueira, sempre estes indivíduos são colocados à margem. São raras as
situações em que um cego ocupa um lugar diferente ao da estigmatização e
quando tal acontece, acaba por chamar a atenção por ter sido ali posto a prova
um conceito já cristalizado.
No entanto, é importante ressaltar, ainda, que o trecho em
destaquelembra o papel do próprio indivíduo cego nesta maneira de se ver a
cegueira.
53
Façamos um breve retrospecto da situação dos cegos na história. Pelas
informações encontradas em Belarmino (2004), Martins (2006) e Zeni (2004),
tomando como ponto de partida a Antiguidade, veremos algumas situações em
que o indivíduo cego é colocado como pedinte ou como ser cheio de poderes
especiais.
Belarmino (2004) nos apresenta essa realidade bipolarizada da situação
do indivíduo cego, que teria começado ainda na antiga Grécia e ganhado mais
força na Idade Média.
As apreciações forjadas sobre a cegueira ao longo das culturas humanas,
tendencialmente organizaram-se em dois pólos principais, tendo como
apreensão fundante uma ideia patológica da cegueira. Num primeiro plano,
aparece a noção da cegueira como desgraça, castigo a ser expiado, criando-se
um em torno de clara demarcação social no qual os indivíduos cegos são vistos
como não pessoas, ocupando as bordas da cultura.
No segundo, há representações que envolvem a pessoa nesta condição
em uma espécie de aura de mistério e de magia. Aqui, o “estigma negativo se
transforma em estigma aparentemente positivo à medida que se associa à
cegueira saber e poder” (BELARMINO, 2004, p. 103, grifo nosso).
Pode-se observar nas constatações trazidas pelo texto a situação já
apresentada, vivida durante largo tempo pelas pessoas cegas. Ou eram
completamente abandonadas, mesmo porque não se conheciam as causas da
cegueira e as suposições de castigo e maldição cercavam estes indivíduos;ou
possuíam grande valor como é apresentado por Sófocles na tragédia Édipo Rei,
em que o cego Tirésias é o responsável por desvendar as causas de toda a
tragédia que cerca o reino. Ele pode ver o que ninguém vê.
Avançando cronologicamente, na Idade Média, o Cristianismo
dominante pregava a caridade e o asilamento de todos os que precisassem de
assistência. Assim começaram a aparecer os tiflocômios, isto é, instituições onde
eram abrigadas pessoas cegas. Estas deixavam os tiflocômios para pedir em
favor do próprio sustento dentro das instituições.
Zeni (2004) registra que, embora em menor escala, são encontrados
registros de cegos que tinham a função de rezar antes dos duelos, nas exéquias
54
de pessoas importantes ou de liderar os terços, o que está em conformidade com
a visão dicotômica da cegueira apresentada por Belarmino (2004), já presente
desde a Antiguidade. São encontrados ainda registros de mulheres cegas que
auxiliavam nos serviços domésticos, costurando e bordando.
Ainda que parcos, Zeni (2004) traz registros de cegos que se sustentavam
com a confecção de vassouras, cestos de vime e outros trabalhos em que se
podia prescindir do uso da visão.
Ainda, com relação a este período, Martins afirma:
Em todo o caso, poderemos afirmar que o exercício da caridade, nas suas
múltiplas vertentes, terá constituído uma das formas centrais de
objetivação sócio cultural da experiência da cegueira na Idade Média. A
assunção que aporta nos nossos dias, tanto ao nível das instituições
presentes nas sociedades civis como nos valores que permanecem ligados à
cegueira à vivência da vulnerabilidade, da piedade e da dependência
(MARTINS, 2006, p. 55).
De fato, é bastante comum que, ainda hoje, a imagem da pessoa cega
seja relacionada às questões da caridade, da piedade e da fragilidade, o que
ainda é agravado pelo super valor que é dado à visão. O fato de vivermos em
uma sociedade onde tudo é preparado pressupondo basicamente o uso da visão,
não só marginaliza realmente o indivíduo cego como cria nos videntes uma ideia
de dependência da pessoa cega que vai além do real, pois somos todos
preparados para usar a visão acima de tudo, esquecidos de que há situações que
podem ser analisadas e resolvidas por meio de outros sentidos.
Esta percepção do indivíduo cego como ser frágil dependente e, em
alguns casos, incapaz de pensar e ter vontade própria chega até nossos dias,
embora com muito menos força, dadas as mudanças ocorridas na sociedade e os
avanços tecnológicos que contribuíram para diminuir essa dependência e
vulnerabilidade.
Porém, saindo da era medieval, vamos começar, lentamente, a encontrar
situações um pouco diferentes, ligadas ao surgimento das fábricas, com a
necessidade de mais trabalhadores.
No artigo intitulado “O Trabalho como Categoria de Análise”, Neres e
Corrêa (2008) abordam tanto histórica como sociologicamente, inúmeros
55
aspectos da relação entre o cego e o mercado de trabalho e, ao abordarem a
questão da ascensão do capitalismo, afirmam:
"Aqui, pode-se destacar que a divisão do trabalho também permitia a
incorporação dos deficientes visuais na produção. Uma pesquisa realizada
por Neres (1989) mostra que, ainda hoje os postos de trabalho ocupados
por cegos são aqueles em que, tradicionalmente, a visão é dispensável.
Com a divisão do trabalho, o desempenho de cada tarefa vai impor as
especialidades. De cada trabalhador exigir-se-á apenas sua eficiência para
aumentar a produção. Desse modo, na medida em que o trabalho se torna
parcelado e simplificado, a pessoa com deficiência pode ser aproveitada
para o trabalho, passando a ser mais uma força de trabalho disponível ao
capital" (NERES; CORRÊA, 2008, p. 155).
Aqui, pelo próprio contexto do período, podemos encontrar pessoas com
deficiência atuando em várias funções nas fábricas e os cegos estão incluídos
neste grupo. Vale ainda notar que, com a saída do homem do trabalho agrícola
para o trabalho nas fábricas e com a absorção de mulheres e crianças neste
trabalho, o número de pessoas que ficaria nas residências para "tomar conta do
parente cego" era bem reduzido. A vida nos meios urbanos exigia cada vez mais
recursos financeiros. Tudo isso estimulava a que se aceitasse um pouco melhor
o trabalho de pessoas com cegueira.
No século XVIII, mais precisamente em 1749, Diderot publicou a "Carta
sobre Os Cegos para Uso dos que Vêem", citada por Martins (2006) e Zeni
(2004). Neste documento, o enciclopedista francês relata experiências já
registradas por outros e também aquelas vividas por ele para conhecer melhor a
maneira como estes indivíduos viviam. Ao referir-se a esta carta, Martins
declara:
A carta em causa constitui a mais significativa reflexão sobre a cegueira
realizada num espaço de muitos séculos, pelo caráter precursor de seu
conteúdo e pelo simples facto de ter colocado o tema da cegueira entre as
elites culturais (MARTINS, 2006 p. 59).
O texto do enciclopedista francês usa como base informações sobre
Sanderson, cego que teria lecionado em Cambridge, e observações feitas pelo
próprio Diderot na vida cotidiana de um indivíduo cego que ele registra apenas
como Cego de Puissaux, por causa da cidade onde vivia.
"Gostava dos cuidados domésticos e o fazia sozinho nas horas em que
todos descansavam. Gostava de trabalhar à noite para não incomodar ninguém,
56
já que prescindia da luz para estas atividades." (DIDEROT, 1979, p. 3 apud
ZENI, 2004).
A observação fez Diderot perceber outras maneiras de se conhecer e
relacionar-se com o mundo, concluindo ele pela capacidade do cego e pela
constatação de que certos pormenores no modo de vida podem auxiliar o
desenvolvimento destes indivíduos. Esta postura poderia apontar para uma
percepção de que o modo de vida, as escolhas para organização das pessoas
cegas não são inferiores às feitas pelos videntes e sim diferentes. Em nenhum
momento, Diderot refere-se de maneira pejorativa aos costumes do Cego de
Puissaux, o que pode nos levar a entender que, para ele, era apenas uma
diferença de hábitos. Este caminho pode levar a uma ideia de uma cultura cega,
com seus hábitos e modos de perceber e integrar-se no mundo.
Falando sobre a questão do trabalho com relação ao Cego de
Puissaux,revelando preocupação com o trabalho remunerado, acrescenta:
sabe um pouco de química e acompanhou com algum hêsito as aulas de
botânica nos Jardins do Rei. Nasceu de um pai que professou com aplauso
a filosofia na Universidade de Paris. Desfrutava de uma fortuna honesta
com a qual teria facilmente satisfeito os sentidos que lhe restam, mas, o
gosto pelo prazer arrastou-o na mocidade, abusaram de seus pendores, seus
assuntos domésticos atrapalharam-se e ele retirou-se para uma cidadezinha
na província de onde faz, todos os anos, uma viagem a Paris. Traz, então,
licores que destila e com os quais a gente fica muito contente (DIDEROT,
1979, p. 3 apud ZENI, 2004).
Aqui fica claro que, pela origem, o cego de Puissaux não era, em
princípio, candidato à mendicância. Teria condições de sustentar-se e antes que
fosse necessário recorrer às esmolas, buscou outro meio de vida em local mais
modesto, no qual, levando vida mais simples, conseguiria sustentar-se, além de
ter como tarefa a destilação de bebidas.
O texto mostra o indivíduo cego como alguém útil e capaz. É um
elemento importantíssimo na história das pessoas cegas, já que apresenta
indivíduos com qualidades e falhas, pessoas capazes de solucionar problemas,
vencer obstáculos com o uso da inteligência, como as pessoas têm feito ao longo
da história.
A escassez de indivíduos cegos que se destacassem, a dificuldade na
difusão de informações à época, decerto justificam o fato de haver poucos
57
sujeitos na pesquisa de Diderot. No entanto, há um ponto importante a se
destacar: o cuidado em estar junto ao indivíduo cego observando o seu dia-a-dia
para falar do que se presenciou e não do que se ouviu dizer, comprovando-se o
que era registrado. Além disso, como bem destacou Martins (2006), o simples
fato de trazer o tema à discussão e mostrar as possibilidades da pessoa cega faz
deste documento algo marcante na história dos indivíduos cegos.
A carta de Diderot aparece numa época em que os indivíduos cegos
começam, lentamente, a ser encarados como força de trabalho, elemento útil
dentro do sistema capitalista crescente.
Martins (2006) ressalta que, nesta época, começa a cair aquilo que ele
chama de mundo encantado, referindo-se à ideia que a maioria das pessoas
fazia de que o cego estava ligado ao sobrenatural. Surgem novas ideias e
perspectivas para este segmento da sociedade e a carta de Diderot tem
contribuição importante nessas mudanças, já que é também na França que outras
mudanças ainda maiores terão lugar.
É no mesmo século de sua publicação, o XVIII, que surge o Instituto dos
Jovens Cegos de Paris, criado para ensinar ofícios manuais a cegos, dando-lhes
alguma educação.
Após assistir a indivíduos cegos em uma exibição humilhante e ridícula
em uma praça parisiense pedindo esmolas, Valentin Haüi decide buscar uma
forma de oferecer àqueles indivíduos um meio de sobrevivência mais digno. Se
não fosse possível exatamente fazer algo por aqueles cegos adultos que, pelo
menos, se fizesse pelas crianças. Após trâmites e entraves, ele fundou e dirigiu
por anos o Instituto dos Jovens Cegos de Paris, que serviu de modelo para
outras instituições similares na Europa, dada a força que a cultura francesa tinha
à época. Em 1818, cerca de vinte anos depois da fundação da escola,
matriculou-se nela o pequeno Louis Braille, que ficara cego aos três anos. Lá,
como todos os alunos, Braille aprendeu ofícios manuais, música e seus estudos
de escrita e leitura deram-se com o uso de letras do sistema comum talhadas em
madeira para que o relevo permitisse a leitura. Este sistema, no entanto, tornava
a leitura muito lenta, os textos por demais volumosos e a escrita muito
dependente.
58
Certo militar de nome Charles Barbier havia criado um método
desinalização em relevo através de pontos para que mensagens fossem lidas no
escuro pelos soldados, evitando, assim, que os inimigos percebessem a
movimentação dos militares. O sistema jamais foi adotado pelo exército francês,
porém Barbier pensou na possibilidade de o sistema ser de utilidade para a
escrita e leitura de pessoas cegas.
Apresentado à direção do Instituto de Paris, não foi considerado
importante, mas ao saber da existência dele, o ainda aluno Braille quis conhecê-
lo. Pelo sistema de Barbier, a combinação de pontos fazia um sinal que
transmitia uma mensagem completa como "Atacar pela direita", por exemplo. A
partir daí, então, Braille elaborou um sistema mais complexo em que cada sinal
simbolizava uma letra, permitindo assim que se escrevesse qualquer coisa.
A primeira versão do Sistema Braille de leitura e escrita saiu em
1825,ano que ficou marcado como da sua criação, porém o Braille, com todos os
símbolos que possuímos hoje, foi concluído em 1837.
Segundo Hippolyte Coltat (1853 apud CERQUEIRA, 2009) biógrafo de
Braille, este já era professor da casa e, mesmo assim, a direção não permitiu a
implantação do sistema, alegando sua dessemelhança do sistema comum de
escrita e a dificuldade dos professores videntes em aprendê-lo. Apesar disso, por
atender muito melhor às necessidades dos alunos, o sistema tornou-se popular
entre eles e tanto o chefe de ensino como alguns professores videntes da casa o
aprenderam e permitiram seu uso corrente. A notícia da existência do sistema se
espalhou. Cegos de outros países iam a Paris não só pela estrutura da escola - a
melhor à época - mas também para conhecer o sistema, que foi aprovado como
oficial em outros lugares antes que o fosse na própria terra de seu inventor, o
que só aconteceu após sua morte8.
Pode-se observar o caráter revolucionário do sistema, bem como a
preocupação da administração da casa em manter os alunos ligados a um
conceito de normalidade que não atendia às suas necessidades, fazendo com que
o sistema se impusesse pela sua excelência no uso por pessoas cegas.
8 CERQUEIRA, Jonir. Informações sobre a vida e obra de Louis Braille, 2009, p. 6
59
O Instituto Benjamin Constant foi pioneiro na difusão do Braille entreos
cegos em terras latino-americanas e a ideia de uma escolarização de pessoas
cegas concretizou-se nele, pelo menos para os cegos brasileiros.
Alguns, conforme registram Silva (2013) e Lobo (2008), mostram o
caráter controvertido da criação de instituições de ensino para pessoas com
deficiência, pois foram também vistas como espaços onde se podia isolar estes
indivíduos até mesmo por questões de saúde pública, partindo da perspectiva da
deficiência como doença.
Apesar disso é impossível negar as conquistas obtidas pelos cegos apósa
criação do Sistema Braille, criado por um cego, impondo-se pelo uso entre
cegos, permitindo acesso mais independente a textos, jornais e toda forma de
comunicação escrita. Com ele, os estudos de línguas e ciências tornaram-se mais
aprofundados e a música passou a ter seu registro teórico, podendo o indivíduo
cego ter acesso às partituras. Então, veio também a necessidade de se criar
outros instrumentos para melhor desenvolvimento da Matemática, da Química,
da Geografia etc.
Sobre a importância do sistema Braille no desenvolvimento dos
indivíduos cegos e ressaltando que todas as tecnologias criadas até hoje, se
muito auxiliam não o substituem, Belarmino (2004) afirma:
Se quisermos, ao mesmo tempo, sutilizar e evidenciar ainda mais a
importância desse processo, diremos que o Sistema Braille permitiu que os
indivíduos cegos saíssem do seu mundo específico para compartilharem de
forma mais abrangente esferas comuns de realidade com os outros
indivíduos da cultura. Proprietários de um competente sistema simbólico
manejado por eles próprios, os indivíduos cegos encontraram no Braille a
ferramenta fundamental que lhes permitiu uma nova individualidade
histórica, todo um mundo amplo a se descortinar nas pontas de seus dedos,
numa revolução semiósica levada a cabo por apenas seis pontos em relevo
(BELARMINO, 2004, p. 91).
Levanta-se aqui, ainda, outro aspecto. O da comunicação entre
ospróprios cegos. Trocas de informações, instruções, ideias tornaram-se muito
mais viáveis com o uso do Braille, nunca deixando de lado o caráter inclusivo
do sistema que garante ao indivíduo cego receber e transmitir informações por
escrito a qualquer pessoa cega ou não. O trecho toca, ainda, na questão da
60
formação de uma cultura própria, o que poderíamos nomear como uma cultura
cega.
Essa linha de pensamento poderia apontar para uma percepção do modo
de vida do indivíduo cego não como desviante de um padrão estabelecido, mas
como cultural, apontando outra maneira de o grupo ser visto. Uma maneira
menos estigmatizante, não tão carregada de preconceitos e não tão
inferiorizante. Essa ideia ganha sentido na medida em que, para muitos
aprendizados e para o desempenho de várias tarefas, para a compreensão e
relação com o mundo, enfim, a postura do indivíduo cego é bastante peculiar e
pode ser vista como uma forma de cultura. Se observarmos o Sistema Braille,
por exemplo, já notaremos algumas questões únicas.
Para que se compreenda melhor a que se referem aqueles que falam nas
particularidades do sistema, apresentam-se, aqui, dois exemplos simples sobre a
escrita Braille.
Embora ele não se constitua numa língua e sim num código, apresenta
peculiaridades como um sinal para indicar a letra maiúscula, já que não é
possível fazer a mesma letra em dois formatos - o maiúsculo e o minúsculo - ou
um sinal para transformar as letras em número usando-se as letras de a até j.
Colocando-se este sinal diante das dez primeiras letras do alfabeto, seguindo a
sequência do alfabeto, cada uma delas, da a até j, torna-se um algarismo de um a
zero. Assim, para formar o número dez, usa-se o sinal de algarismo.
A visão de uma cultura cega pode ganhar contornos na medida em que
os cegos de várias partes do mundo puderam se comunicar e o Sistema Braille
foi fundamental neste processo.
No entanto, não podemos ter a ingenuidade de acreditar que com o
advento do Braille a realidade das pessoas cegas modificou-se por completo em
tão pouco tempo, já que o sistema ainda não completou duzentos anos. A
mudança é clara mas não brusca nem tão plena como se poderia desejar, pois há
outros componentes sociais envolvidos e alguns, até hoje, não foram alterados.
Ao falar sobre o surgimento do Braille, Martins (2006) analisa esse
contexto da seguinte forma:
61
"O percurso emancipatório em que há sempre o reconhecimento da
viabilidade e importância da educação das crianças cegas, sublinhado pelo
advento do Braille, permitia vislumbrar um porvir em que as suas
expectativas e possibilidades deixassem de estar irrevogavelmente
constrangidas pela sua limitação sensorial e pelas interpretações
exotizantes da sua condição. Tal não aconteceu. Isto sim que as sucessivas
conquistas desde a carta de Diderot se vieram a confrontar com os tenazes
obstáculos criados pelo modo como a Modernidade, a mesma que
consagrou o nascimento do Braille, reinvestiu de significado a experiência
da cegueira. Portanto importa ceder à leitura sociocultural que o
pensamento moderno faz da experiência da cegueira. Aí se funda a
persuasão de que o desencantamento da cegueira, longe de dar lugar a
qualquer neutralidade, objectiva, se deu a par com o processo de
objectificação que, embora imbuído da novidade moderna, criou as
condições para a perpetuação do que vinha a marginalização e
subalternização das pessoas cegas (MARTINS, 2006, p. 63, grifo nosso).
Destaque para a expressão desencantamento da cegueira reportando
novamente à questão do mundo encantado, expressão já utilizada pelo autor.
Assumindo a concordância com o texto acima, constata-se a dificuldade, ainda
hoje, da pessoa cega em deixar o espaço da subalternidade em todos os grupos
sociais, desde a família até a sociedade mais ampla, bastando para isso que
observemos a dificuldade de acesso independente a logradouros públicos, a
tantos recursos que possuímos na atualidade, à instrução etc.
Se pudermos perceber neste breve retrospecto, pontos de avanço na
história das pessoas cegas e, decerto eles são importantes, cabe uma reflexão
quanto às mudanças na maneira como a sociedade lida com a questão da
deficiência em geral e da cegueira em particular.
As observações feitas e as entrevistas colhidas nos levam a concluir
queas questões de subalternidade, caridade recebida e descrença ainda fazem
parte da vida do cego atual de formas distintas.
Por vezes, o indivíduo cego julga importante garantir seu direito às
suaspróprias ações e colocar-se diante da sociedade porque percebe na atitude
dela o mesmo gesto comiserativo de antes. O extrato de uma entrevista
exemplificará esta afirmação:
“Houve um concurso para professor do estado. Fiz o concurso e passei.
Mas não me permitiram tomar posse. De alguma forma, uma importante
emissora de televisão ficou sabendo e resolveu comprar a minha briga. O
estado entendeu que era melhor não brigar com a tal emissora e nem
precisei brigar muito para ser empossado. No dia da minha posse houve
muita repercussão e uma repórter me perguntou o que eu achava de o
62
governo estar me dando aquela grande oportunidade. Disse a ela que o
governo não nos dava nada; nós é que conquistávamos”. (ENTREVISTA
HAROLDO, 2014).
O posicionamento do professor está pautado no fato de que ele, como os demais
já
empossados, foi aprovado no concurso. Portanto, o estado havia sido apenas
justo dando-lhe a vaga que já era sua por direito.
Esta ideia de dádiva da sociedade com relação à pessoa cega pode ser
bem ilustrada na letra do Hino à Instalação do Instituto, composto no século
XIX para celebrar a fundação da escola e que foi executado no IBC durante
muito tempo, embora hoje, não seja mais. Vejamos apenas o refrão.
Salve pátria que ao cego teu filho Não recusas da escola o favor Possa o cego rival de Castilho9 No Brasil ser da pátria cantor (AUGUSTO JOSÉ RIBEIRO).
Acreditava-se na bondade de se conceder a educação aos cegos como se
esse não fosse um direito de qualquer cidadão e, ainda que hoje esta ideia não
seja tão corrente, pode ainda permear o pensamento e a ação de cegos e
videntes. A percepção do indivíduo cego como alguém mais vulnerável em tudo,
necessitado de ajuda e muitas vezes incapacitado, não pela falta da visão, mas
por uma ideia preconcebida de suas reais condições está também relacionada à
valorização excessiva do sentido da visão, tema que será mais bem abordado no
próximo tópico para que se discuta como são avaliadas pessoas que prescindem
deste sentido, em uma sociedade na qual o visual é sinônimo de tantas coisas
que, na prática, não estão ligadas a ele.
3.2.Valor da Visão
Nossa sociedade é organizada tendo a visão como eixo principal de todo
o conhecimento e desenvolvimento. Aparelhos, utensílios domésticos, eventos
para entretenimento, tudo é projetado e organizado tendo em mente aqueles que
9 António de Castilho foi um poeta português cego do século XIX. Letra de um trecho da música
de Augusto José Ribeiro.
63
podem ver. Segundo Colin Barnes (2013) a maneira como a sociedade se
organiza e suas exigências são exatamente o que cria a situação de limitação dos
indivíduos, o que fará com que esta limitação seja maior ou menor, dependendo
do tipo de organização social que se tenha.
A supervalorização da visão está entranhada em nós desde que nascemos
e nos habituamos tanto a ela que não percebemos o quanto nossas atitudes,
palavras e movimentos estão vinculados a esta supervalorização.
Um exemplo literário pode ilustrar esta nossa tendência. No livro “Um
Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago (2000), o autor cria uma situação
em que todos os moradores de um local fictício ficam cegos. Desconsiderando,
neste momento, toda a representação política que esta imagem possa abordar,
percebe-se que o grupo principal do livro possui um vidente. Apenas este grupo
tem um vidente, nenhum outro. É o grupo que consegue escapar de todas as
situações, solucionar todos os problemas e o vidente torna-se o líder. O autor
não conseguiu criar situações em que o cego encontrasse soluções sozinho.
Houve breves momentos em que pessoas que já eram cegas antes que a epidemia
que tomou conta do lugar surgisse, tomaram a liderança, mas foi por pouco
tempo e o grupo principal, sempre liderado por um vidente, conseguia melhores
resultados do que os demais.
Levando-se em consideração o excessivo valor que sempre aprendemos
a dar à visão, pode-se depreender que um texto como este, em que pese seu
indiscutível valor literário, pode alimentar este peso, reforçando a posição do
cego em nossa sociedade como a de alguém inferior, com menos capacidade
pela cegueira, mesmo em situações que nenhuma relação tenha com a visão.
Em seu artigo intitulado “Pesquisa acadêmica e deficiência visual:
resistências situadas saberes partilhados”, Bruno Sena Martins (2013), após
algum tempo de pesquisa entre deficientes visuais, propõe que as realizações
dessas pesquisas visem a uma maior integração com participação dos indivíduos
cegos como sujeitos e agentes, pois lhe parece bastante claro que ele, como
alguém que nunca viveu a realidade dos cegos, não conseguirá transmitir da
forma mais fiel o que um cego transmitiria.
64
Fica clara aqui sua intenção de mostrar que há coisas impossíveis
deserem descritas por ele com exatidão, pelo simples fato de nunca as ter vivido,
embora seja inegável a seriedade e consistência de seu trabalho, bem como a
fidelidade a muitas situações vividas por indivíduos cegos. Reconhece, porém, o
limite do pesquisador que está fora de um campo conhecido e vivenciado.
Vivendo situação inversa, falando de dentro do campo e cuidando
paraque outros limites não dificultem a pesquisa, verifica-se até mesmo nas falas
dos entrevistados o quanto estamos impregnados do valor da visão.
BertranVerine (2013) linguista francês da Universidade de Mont Pelier,
apresentou em sua fala no II Colóquio Ver e não ver, no IBC, uma afirmação
importante ligada à maneira como mesmo os cegos valorizam mais a visão do
que os demais sentidos, quando no fundo, aliás, no óbvio, é deles que dependem
e é com eles que conseguem relacionar-se com o mundo e no mundo. Verine
mostra em seu trabalho a pregnância da visão na vida das sociedades e as
possibilidades de reavaliação dessa pregnância.
Vejamos, no entanto, como ele se reportou a esta situação em que o
próprio indivíduo cego parece se esquecer do valor dos demais sentidos e a
sociedade não consegue avaliar como eles podem ser importantes nas relações
com os indivíduos cegos:
O silêncio sobre as sensações não visuais aparece como um duplo
paradoxo: em primeiro lugar, na identidade individual, pois os outros
sistemas sensoriais, além da visão são aquilo que constitui os deficientes
visuais em sujeitos perceptivos; em segundo lugar, na relação interpessoal
pois nas percepções assim construídas deveriam ser a prerrogativa mais
comum, mais facilmente compartilhável entre deficientes visuais e
videntes. (VERINE, 2013, p. 8).
O supervalor que se dá à visão, com construções sociais todas baseadas
neste sentido, acabam por excluir o indivíduo cego sem que se busque observar
quantas formas existem, através de outros sentidos, de se obter conhecimento,
informação e expressão.
Estamos tão arraigados à visão que nossa língua está repleta
deexpressões onde ela e tudo o que se liga a ela, como a luz, por exemplo,
parece positivo e tudo o que é ligado à cegueira, à escuridão, parece negativo.
65
Dar uma luz 10= dar uma ideia; Ponto de vista = opinião, pensamento;
Lúcido = com raciocínio em ordem; Pessoa de visão = pessoa que pensa, que
tem boas ideias à luz de conforme o pensamento de = esclarecer = explicar; faca
cega = sem utilidade; Fé cega = fé que não admite raciocínio; Idade das trevas=
tempo em que o conhecimento, o pensamento não eram valorizados; Obscuro =
aquilo que está oculto, que não se conhece.
Estes são apenas alguns exemplos da maneira como a luz e a falta dela,a
cegueira e a visão aparecem em nosso vocabulário, sem que tenhamos
consciência disso e sem que possamos, a esta altura, mudar toda esta realidade.
Eu mesma, neste trabalho, usei e ainda voltarei a usar muitas vezes expressões e
palavras nesta mesma linha, porém creio importante pensarmos em como nossa
língua foi construída valorizando tanto um sentido, esquecendo-se de que temos
outros e no quanto esta ideia de que o indivíduo cego não é capaz ainda está
implícita em nós.
Elas não se atem apenas ao nosso vocabulário. Estão nos pensamentos eatitudes
diários.
Jacques Lusseyran (1924-1971), que nasceu enxergando e se tornou
cego, apresenta um posicionamento importante de ser destacado, pois seria a
colocação da visão em equipolência com todos os demais sentidos, libertando o
pensamento, da ideia de um sentido preponderante para todos e permitindo que
ele possa ser expresso por qualquer um deles.
Os olhos nos proporcionam muitas vitórias magníficas sobre o tempo e o
espaço e essa é a vantagem fundamental da visão. Ela nos coloca no centro
de um mundo que é muito maior do que nós. Todavia, não são essas as
qualidades de um instrumento ou de uma ferramenta? Suas vantagens são
óbvias, porém não dependem, exclusivamente, do uso que fazemos delas?
Em resumo, possui a visão um poder próprio ou ela nada mais é do que
uma ferramenta? (LUSSEYRAN, 1983, p. 3).
Todos os sentidos têm suas peculiaridades. Nada nos dará a percepção
do mundo que a visão dá, assim como nada nos dará a percepção do mundo
como obtemos pela audição, pelo tato etc. Portanto a questão é apenas a
10 Entenda o sinal de = como sendo a tradução na integra do sentido que a palavra tem quando
utilizada na inclusão social do deficiente visual. Tais palavras não se atem apenas ao nosso
vocabulário. Está nos pensamentos e atitudes diários.
66
diferença na maneira de apreender o mundo. O cego se relacionará com o
mundo e descobrirá tudo o que há à sua volta sem usar a visão, mas nem por isso
ficará à margem daquilo que o cerca.
É fundamental, portanto, para que se compreenda melhor a situação do
indivíduo cego, que se entenda o fato de que sua maneira de aprender e
apreender não são visual, o que não significa que ele seja menos capaz.
Voltamos à questão do respeito ao diferente, da supervalorização da
visão, pois habitualmente se vê outras formas de aprender como não corretas,
não adequadas, como se apenas a visão pudesse conectar o homem ao mundo.
O ser humano, através da inteligência, sempre encontra meios de
aprender, descobrir e os meios podem variar de acordo com as necessidades e
possibilidades de cada um.
Daí a defesa de uma cultura cega, que não afastaria os indivíduos
cegosdas demais culturas que fazem parte de sua vida e sua história, mas o
colocaria na posição de alguém que tem suas diferenças culturais, nem melhores
nem piores do que as de outros indivíduos.
Criado por um cego, o Sistema Braille é bastante eficaz porque utiliza
outro sentido completamente independente da visão, embora os videntes que o
dominem façam a leitura com os olhos. Isto só mostra que as condições para
integração dos dois sentidos visão e tato acontecem promovendo a comunicação,
sem problemas quando compreendemos os vários caminhos que podem ser
usados para a comunicação.
Povoar o mundo apenas com recursos visuais afasta os indivíduos cegos
do conhecimento, alija-os do desenvolvimento social e demonstra preconceito
por supor que não é importante que eles estejam nesse processo.
Compreender as necessidades do outro como tão importantes quanto as
nossas e buscar junto com ele a melhor forma de encontrar os caminhos
possíveis para a apreensão do mundo, sem restringir esses caminhos à nossa
compreensão e sim os ampliando é o que o indivíduo cego espera para que
possa estar cada vez mais incluído de fato.
67
Quanto à nossa compreensão de um mundo ao qual não pertencemos, por
mais que dele nos aproximemos, vale trazer ainda as palavras de Lusseyran
quando diz:
Se não estivermos prontos para renunciar, pelo menos temporariamente, às
impressões que recebemos através dos olhos, nenhuma cognição
verdadeira, em minha opinião, será possível. Esse simples fato deveria
prevenir-nos contra uma grande e ilusão, a ilusão de que as formas são
onipotentes (LUSSEYRAN, 1983, p. 12).
Embora possa parecer, à primeira vista radical, a fala do professor
francês busca trazer a reflexão sobre se é possível que dotados de cinco sentidos,
nos prendamos a um somente, já que há tanto o que explorar.
Envolvidos nesta atmosfera de supervalorização de um único sentido,os
próprios cegos acreditam-se não tão capazes, dando à visão uma primazia que
não lhe cabe.
Sem se esquecer de que a falta do sentido é uma realidade, é importante
que não se avalie um indivíduo apenas pelo que ele não pode e sim pelo que ele
tem de potencial. Observemos a fala de um dos entrevistados durante a pesquisa
para
melhor compreender esta ideia:
A gente sabe que a limitação existe. Ela é nossa e sem a visão, tudo fica
mais difícil. Então, é a gente quem tem que se superar. O mundo não vai
nos dar nada. Ele não tem culpa de sermos cegos. Por isso defendo muito a
questão da autonomia das pessoas." (ENTREVISTADA MELISSSA,
2016).
Pode-se notar nesta fala a questão da tragédia pessoal levantada por
Barnes (2013), ou seja, a limitação, ou condição passaria a ser um problema da
pessoa que a possui. Mas muitas vezes, se esquece de que essas limitações são
maiores ou menores dependendo do contexto social em que elas aparecem. Se
vivemos em sociedade, não há como conviver nela sem provocar algum tipo de
modificação ou nada se consegue a favor dos grupos oprimidos. Se há aspectos
que precisam ser resolvidos pelo próprio cego, existem também aqueles que
estão relacionados ao seu convívio social.
A visão tem seu lugar, é importante, não resta dúvida. Porém não é única
e aqueles que assim sentem o fazem porque foram educados para isso e não
68
porque não tenham os demais sentidos. Tudo está ligado à maneira como nos
conduzimos durante toda a vida e não a uma atribuição genética ou a um dom.
Nosso contexto social é que nos impõe o uso excessivo da visão e a supressão
dos demais sentidos, e não uma característica biológica.
Compreender a realidade das pessoas cegas a partir das próprias pessoas
cegas, buscando entender sua forma de relacionar-se com o mundo não como
inferior, mas como diferente, pode auxiliar na desconstrução de preconceitos e
na perda da força do estigma que as cerca.
3.3. Estigma
A cegueira é algo de fácil percepção se não por alguma diferençamesmo
nos olhos da pessoa cega, pela sua maneira de conduzir-se e localizar-se no
ambiente. Não é possível esconder a cegueira por muito tempo e várias
situações ligadas ao estigma surgem assim que se percebe a presença de uma
pessoa cega, ou durante o convívio com ela.
Os muitos aspectos históricos ligados à cegueira e já abordados
nestecapítulo ajudam a perceber a força do estigma, ainda hoje presente na vida
e trajetória das pessoas com deficiência, em geral e cegas, em particular, já que
este é o foco do trabalho. Por isso é importante conhecer o conceito de estigma e
compreender com base em alguns autores, como o estigma é visto e pode ser
analisado.
3.3.1. Estigma Segundo Goffman
Os gregos que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram
o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se
procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o
estados de quem os apresentava. Com o tempo, este conceito foi ganhando
sentidos metafóricos diferentes e hoje, é empregado de forma bem próxima
à original. (GOFFMAN, 2004, p. 4).
69
Este conceito de estigma traz consigo não só a ideia do que salta aos
olhos, mas também de toda a carga do estigma, ou seja, todas as ideias que vem
à mente de cada um assim que se entra em contato com o indivíduo
estigmatizado. Que ideias nos vem quando falamos sobre um indivíduo cego? O
que pensamos imediatamente quando nos deparamos com uma pessoa cega se
não tivermos o hábito do contato com pessoas nessa condição?
Essas ideias preconcebidas que trazemos sobre aqueles que possuem
determinada marca, criam na sociedade o que Goffman chama de os
desacreditáveis - aqueles que não têm consciência do peso do estigma, ainda
que sofram suas consequências - e os desacreditados - os que sabem exatamente
como a sociedade reage diante deles por causa do estigma.
Os primeiros podem ter este tipo de comportamento por uma série de
motivos. A superproteção é um deles, fazendo com que, nem sempre, se tenha
noção da real condição.
Observando o trecho abaixo extraído de uma entrevista, será mais
fácil
entender como isto pode dar-se com a pessoa cega.
"Uma vez, todos nós ganhamos aqueles kites de fazer bolinha de sabão.
Mas eu achava aquela brincadeira muito chata porque, afinal, eu não via as
bolinhas e disse isto para minha mãe. Ela ficou zangada comigo e me de
uma bronca. - Não tem nada disso! Você é igual às suas irmãs e pode fazer
tudo o que elas podem. Não repita isso de que você não consegue ver."
(ENTREVISTA MARILÍA, 2015).
Esta fala mostra a postura de alguém que era preparado pela família
para comportar-se como um desacreditável, pelo menos na primeira infância.
Mas é impossível ocultar a cegueira por muito tempo de outro e mais ainda de si
mesmo e essa mudança de desacreditável para desacreditado pode trazer mais
complicações se não for orientada de forma a que o indivíduo compreenda sua
real situação e siga no processo de formação de sua identidade como pessoa
cega. A própria família, no intuito de preservar o indivíduo cego, passa a negar a
situação.
O modelo social da deficiência pode, em parte, abordar esta questão,pois
Barnes (2013) coloca que a questão não é negar a limitação. Ela é real e não
pode ser escondida. O ponto é como abordá-la não transformando o fato de
haver a limitação em um obstáculo que não possa ser minimizado. Aliás, a
70
questão da minimização do problema trouxe, segundo Martins (2006)
contestações ao modelo social da deficiência e à ideia de uma "filosofia positiva
da cegueira" esta representada por Kenneth Jernigan, líder de relevância nas
causas dos cegos nos Estados Unidos, presidente da NFB (National Federation
of Blinds) por 18 anos. Esta filosofia não visava a esconder a cegueira, mas tirar
dela o peso trágico que sempre carregou, reconhecendo-a como uma
característica, o que reforçaria a ideia de uma cultura ou modo de vida cega.
A atitude que se viu no extrato de entrevista apresentado mostrao quanto
os pensamentos expostos por esses líderes tem significado. A maneira como a
sociedade vê a deficiência em geral e a cegueira em particular pode criar
situações de marginalização da pessoa cega e neste caso, patenteia ainda a
materialidade corporal, ou seja, o indivíduo é inferior porque tem uma
característica física diferente. Para que fosse igual às irmãs, Marília tinha que
ser igual em tudo, sem que fossem respeitadas suas reais necessidades. Não
bastava que ela tivesse os mesmos direitos que as irmãs.
Segundo Martins (2012), essa materialidade corporal que envolve as
pessoas com deficiência envolve também a outros grupos oprimidos e devia ser
tratada com o mesmo nível de atenção.
Em particular, as pessoas com deficiência encontram nos discursos
antiracistas e feministas uma assunção fundamental do incontrolável
encargo ocupado pelos discursos opressivos retificados nos corpo se nas
suas diferenças, surgindo como absolutamente central a possibilidade de as
pessoas definidas como deficientes debaterem as concepções essencialistas
que ancoram a deficiência na incapacidade (MARTINS, 2012, p. 243).
O conceito de corpo normal vigente traz a ideia de normalidade e acaba
por "empurrar" os grupos sociais que pretendem proteger a pessoa com
deficiência para o caminho de fazê-lo "normal" a qualquer custo, visando à
garantia de sua inclusão social e aceitação.
O autor português, no entanto, acredita na possibilidade de, a partir desta
ligação com outros movimentos de grupos oprimidos, se buscar um caminho
para a desconstrução dessa imagem de inferioridade da pessoa com deficiência
que está fundada no preconceito, afinal a ideia de inferioridade é anterior ao
conhecimento do indivíduo que já é incapacitado por ser cego ou lhe faltar um
membro etc.
71
O aparente, o estigma, traz consigo um grupo de ideias de inferiorização
para muitos grupos oprimidos que a ideia de igualdade sem respeito às
diferenças pode alimentar ao invés de reorganizar.
Costa (2001), em seu artigo “Diferença Desvio Preconceito e Estigma”,
aborda este tema, lembrando que, segundo a autora, no caso das pessoas com
deficiência, o estigma vem de um desvio corporal, pois existe uma característica
física "fora do normal", algo "fugindo aos padrões estabelecidos". Isto fará com
que o indivíduo tenha atitudes "fora do padrão" esperado pela sociedade.
Aponta, ainda, para a necessidade que essa ideia produz de procurar apoio
médico para a correção do desvio corporal. Esta é sempre nossa maior busca e
quando tal solução não é possível, consideramos que a pessoa com deficiência
será sempre alguém "fora do normal".
Zeni (2004) ao buscar estudos sobre a cegueira e verificaras áreas que
mais se empenharam em entender e apoiar, de alguma forma,os indivíduos nesta
condição, afirma: "A ciência não se empenha em estudar a cegueira; busca
preveni-la" (ZENI, 2004). Conclui ele que apenas a educação empenhou-se em
apresentar algo que favorecesse a inclusão das pessoas cegas, ainda que se possa
questionar os métodos utilizados para esta inclusão, cabendo à ciência,
sobretudo à medicina prevenir ou curar a cegueira.
Apesar disso, os serviços de atendimento aos cegos adultos chamados de
reabilitação estão, habitualmente, pelo menos no Brasil, vinculados a serviços
de saúde, com destaque para o aspecto médico, e não a escolas ou serviços
educacionais.
A medicalização da deficiência sempre foi algo de caráter forte e neste
caso, cabe normalmente à esfera da saúde não só estudar uma possível doença
que possa ter gerado uma condição limitante, mas estudar a própria condição e
até mesmo oferecer programas de reabilitação.
Uma prova disso está na distribuição departamental dentro do IBC. As
aulas oferecidas àqueles que perdem a visão depois de adultos e que virão a
auxiliá-los na retomada de suas vidas ativas - domínio do Sistema Braille,
técnicas de cálculo no sorobã, domínio dos leitores de tela para computadores,
72
Orientação e Mobilidade (referente à locomoção autônoma) - não são oferecidas
pelo Departamento de Educação e sim pelo Departamento de Estudos e
Pesquisas Médicas e de Reabilitação, embora aqueles que ministrem estes
conteúdos sejam professores. Tudo isso provoca uma grande mescla em que não
se sabe onde começa e termina o papel de cada um.
O IBC não é o único órgão que funciona neste padrão. É uma orientação
geral, como se não fosse agora o objetivo reeducar aquele indivíduo que precisa
aprender a viver sem um sentido e sim continuar a tratá-lo.
Nesta mescla entre educação e saúde, os profissionais da educação que
atuam nesses serviços acabam subordinados a serviços ligados à saúde, onde as
perspectivas são distintas das que possui a educação e o que o indivíduo cego
precisa, neste caso, é de alguém que o oriente para conhecer e dominar o modo
de viver deste grupo em que agora está inserido, ou seja, ser educado e não
tratado. Confunde-se uma doença que possa ter gerado a cegueira e que precise
continuar a ser tratada com a cegueira em si que precisa ser assimilada.
No que se refere à educação de pessoas cegas, outro aspecto deve ser
lembrado, pois está diretamente ligado à questão do estigma. O quanto esta
educação busca aproximá-lo ao máximo das pessoas que veem.
As colocações de Costa (2001) remetem-nos a um ponto importante: de
hábito, ao se educar o indivíduo cego, há um desejo de a sociedade prepara-lo
ao máximo para que se assemelhe, tanto quanto possível, aos que não são cegos,
seja na postura, na maneira de andar, nos gestos.
Esta seria uma forma de amenizar o estigma, fazendo com que o
indivíduo não pareça cego, sem respeitar sua individualidade e sem permitir que
ele seja diferente, tenha sua própria identidade.
De hábito, a sociedade espera que qualquer indivíduo, cego ou não,siga
seus padrões e nosso convívio social nos ensina a respeitar e seguir certas regras
de convivência e até de respeito. Todavia, alguns aprendizados tendem a tornar-
se invasivos. Se quisermos, por exemplo, que uma pessoa cega caminhe pelo
centro de um corredor, sem lhe permitir aproximar-se das paredes,
73
dificultaremos enormemente sua localização no espaço e diminuiremos suas
possibilidades de localizar sozinho o que deseja.
Baseando-se na noção de estigma de Goffman, a autora aborda
especificamente, a cegueira, declarando:
A deficiência visual, objeto deste trabalho, apresenta-se como algo que
representa uma ameaça para as pessoas que a portam e para as não deficientes, que não sabem como lidar com aqueles que apresentam uma
diferença significativa que trazem consigo a ideia do estigma (COSTA, 2001, p. 3).
Esse trecho mostra como é vista essa marca que traz consigo a ideia do
estigma. Mostra também a dificuldade que algumas pessoas têm de lidar com o
estigmatizado pelas ideias que criam a priori sobre ele e que nem sempre
condizem com o real.
Há um padrão a ser cumprido e elas não sabem como ele reagirá diante
das situações que surjam, tenham estas situações algum vínculo com a visão ou
não. O simples fato de ser um indivíduo cego já traz uma série de ideias que,
muitas vezes, não condizem com a realidade ou não têm nenhuma ligação com a
falta de visão, mas estão arraigadas nas pessoas como comportamentos que
podem vir de um indivíduo cego.
Esse desconforto, essa ameaça, no dizer de Costa, traz situações comuns
na vida de pessoas cegas como aquelas em que alguém que deveria dar alguma
informação ou obter alguma informação do indivíduo cego prefere fazê-lo
através de alguma pessoa vidente que o esteja acompanhando. Para
exemplificar apresentamos uma fala de Marília:
"Uma vez, eu estava com a Sílvia comprando bijouterias para dar de presente e perguntei: - Você tem argolas? - Embora eu tivesse falado com
a vendedora, em português claro, ela virou-se para a Sílvia e disse (Sempre um pouco mais baixo, imaginando que eu não ia ouvir):
- Eu não sei se ela procura argolas pequenas ou grandes.
Respondi: - Pequenas. Eu falei para ela entender como o negócio funciona. A conclusão não podia ser melhor. Segundo a Sílvia, ela fez cara de espanto e ouvi quando ela perguntou:
- Ela entendeu o que eu falei?"(ENTREVISTADA MARÍLIA, 2015).
74
Por peculiar que possa parecer, esta situação é bastante comum e um
grande número de indivíduos cegos terá histórias análogas para contar,
mostrando como as pessoas videntes têm dificuldade em lidar com a cegueira.
Dificuldades criadas a partir do estigma, já que a pessoa cega em questão
demonstrou sua capacidade de falar, ouvir, compreender, mas, a despeito disso,
continuou a ser tratada como incapaz.
A partir desse ponto, com base em Amaral (1993), Costa
(2001)apresenta aquilo que intitula como deficiência secundária. A deficiência
primária seria aquela que advêm da dificuldade ou falta de funcionamento do
órgão ou membro. Falta de visão, imobilidade das pernas, de um braço.
A deficiência secundária, segundo a autora, é aquela que é atribuída ao
estigmatizado, caso ele seja pessoa com deficiência, por uma ideia
preconcebida. Supor que uma pessoa cega não é capaz de acompanhar o que se
conversa próximo a ela, por exemplo, ou que não é capaz de fazer sua higiene
sozinha e outras situações comuns na vida cotidiana do indivíduo cego
configuram aspectos de outra ordem: a da deficiência secundária. Para ilustrar o
conceito de deficiência secundária apresentamos um extrato da entrevista de Léa
(2015):
- "Então, ele achava que podia tomar decisões sobre a minha turma sem
me consultar, sem nem mesmo, me comunicar." (ENTREVISTA LÉA, 2015).
No trecho acima, a professora comenta a atitude de um diretor de escola
que agia dentro da sala enquanto ela dava aula, sem informar da retirada de
alunos ou do ingresso de outros, sem informar sequer que estava presente
assistindo a aula. Podemos atribuir a situação a uma tentativa do diretor de,
supostamente, proteger a professora, garantindo que os alunos a respeitassem,
porém isso não diminui a questão principal ali embutida. Ele concluiu que a
professora não era capaz de resolver o problema, não consultou a professora
sobre a melhor maneira de agir com os alunos que estivessem burlando algum
tipo de norma e, de alguma forma, implicitamente, sugeriu à turma: "Eu estou
aqui para defender a professora que não pode controlá-los sozinha". Criou para
esta professora outra deficiência que, em princípio, ela não possuía pois tinha
excelente domínio e manejo de classe.
75
Fica ali patenteada uma fragilidade atribuída à pessoa cega que nem
sempre corresponde à realidade, sobretudo quando é atribuída apenas à pessoa
cega. Na situação exposta acima, por exemplo, quantos alunos não tentam enganar
professores videntes e conseguem em inúmeras circunstâncias? Não teria sido
melhor que ele consultasse a professora sobre a necessidade ou não de ter alguém
em sala, ou de que tipo de apoio a escola poderia lhe oferecer, enfim, qual seria a
melhor atitude da escola para tornar seu trabalho viável?
O estigma faz com que as pessoas não saibam como agir ou o que
dizer,antecipando, muitas vezes, decisões em respostas sobre codificadas. Já não
é mais tão comum que os indivíduos se afastem temendo serem atingidos por
alguma maldição ao se aproximarem de uma pessoa cega, porém ainda é
bastante usual o uso de expressões excessivamente comiserativas, mesmo em
voz alta (muitos supõem que o cego é também surdo), desde supor que a pessoa
não sabe o que busca, o que quer, o oferecimento de esmolas que, em momento
algum a pessoa manifestou estar buscando. Além disso, ele provoca reações
diferentes no estigmatizado, comoveremos no trecho abaixo:
Em vez de se retrair, o indivíduo estigmatizado pode tentar aproximar-se
de contatos mistos com a agressividade, mas isto pode provocar nos outros
uma série de respostas desagradáveis. Pode-se acrescentar que a pessoa
estigmatizada, algumas vezes, vacila entre o retraimento e a agressividade,
correndo de um para outro, tornando manifesta, assim, uma modalidade
fundamental na qual a interação "face to face" pode tornar-se muito
violenta (GOFFMAN, 2004, p 17).
É possível percebermos em muitas pessoas cegas reações de toda ordem
quando percebem que o estigma as afasta daquilo que desejam e não raro esta
reação pode sim ser mais contundente, o que se explica pelas muitas situações
de opressão que o indivíduo já viveu. O indivíduo estigmatizado, quando
desacreditado, já não espera da sociedade atitudes que lhe permitam agir sem o
peso do estigma, exceto quando se imponha pela força e, antes mesmo que o
outro lhe dê qualquer resposta, busca impor-se, por vezes de forma agressiva, o
que pode gerar outras respostas agressivas a se sucederem de parte a parte.
Este tipo de comportamento desencadeia por parte dos videntes também
um "pisar em ovos" por nunca saberem como agir sem ofender, sem parecerem
estar interferindo demais na liberdade do outro e ao mesmo tempo, não
quererem parecer desinteressados de situações em que poderiam ser úteis. É
76
comum que pessoas que enxergam temam praticar atitudes que um indivíduo
cego considere desrespeitosas e isso ajude a paralisar as atitudes dos videntes
em torno dos cegos, preferindo, muitas vezes, transferir, o lidar com o indivíduo
cego a um informado -- denominação usada por Goffman ao referir-se a pessoas
habituadas ao convívio com pessoas que estão envolvidas por determinado
estigma.
Esta constatação pode levar a outros raciocínios ligados à questão do
estigma. Pode-se concluir daí o que gera em muitos a ideia de que os indivíduos
com deficiência, sobretudo o cego, são ansiosos ou nervosos. Alguns indivíduos
cegos reagem de forma agressiva a situações que consideram como
mantenedoras do estigma e, por generalização - o que faz parte da atitude social
com o estigmatizado - conclui-se que todos os cegos reagirão da mesma
maneira.
Assim, conforme reforça Costa (2001), o estigmatizado está sempre
sujeito a situações de preconceito, discriminação, por mais que sua vida, seu
trabalho deem conta de que ele não se encaixa no perfil de homogeneização e
generalização que a sociedade faz dele.
Muitos indivíduos, contudo, acomodam-se à posição que o estigma lhes
confere, ou podem até se utilizar dela para obterem uma suposta vantagem, seja
porque não encontram meio de reverter esta situação, seja porque entendem que
ela lhes é vantajosa em determinado momento, supondo que ali encontram uma
compensação da sua condição de pessoa com deficiência, se este for o caso.
Com os indivíduos cegos não será diferente. Observemos o trecho
abaixo:
"Com a física, no Ensino Médio, foi assim. No primeiro ano, o professor
chegou e me disse: - Bicho, não tem como te avaliar não. Vem sempre que
eu te dou presença e nota. Era até um cara muito legal, a gente batia altos
papos, mas naquele ano foi isso." (ENTREVISTA MARLON, 2016).
O fato de o professor acreditar que não era possível avaliar o aluno ou
mesmo ensinar-lhe fez com que o mesmo aluno aceitasse receber nota sem
passar por qualquer processo avaliativo, ao contrário dos demais colegas,
aceitando assim a ideia de que o indivíduo cego não é capaz de aprender física e
de que, ao invés de descobrir meios de apreensão daquele conhecimento, o mais
77
importante é obter a aprovação, pois ninguém lhe cobrará aquele aprendizado ou
questionará sua nota, afinal ele é um indivíduo cego.
Estas observações sobre o estigma nos levam a pensar na maneira comoa
sociedade é construída e organizada, mas também nos lembram que os
indivíduos cegos fazem parte dela e têm sua colaboração nesse processo. Seria
exagero afirmar que tudo o que ocorre é responsabilidade dos indivíduos cegos.
Seria o mesmo que dizermos que todos os grupos, de alguma forma, oprimidos
são os responsáveis por tudo o que lhes acontece em termos de marginalização,
violência e outras formas de opressão. No entanto, é forçoso reconhecer que
certas atitudes de acomodação por parte das pessoas cegas podem realimentar
este tipo de pensamento. Também é preciso reconhecer que há situações em que
o indivíduo não tem outra opção senão aceitar o peso do estigma, nem sempre
de forma ativa. Ao lado disso, devemos reconhecer que alguns indivíduos cegos
julgam-se "merecedores" de certos benefícios, mesmo que eles nenhuma ligação
tenham com a falta da visão, simplesmente como forma de compensação, o que
pode reforçar certas ideias de incapacidade ou limitação.
Como podemos concluir, não há fórmulas prontas, uma resposta únicae
fechada para se entender qual é, realmente, o papel do indivíduo cego diante do
estigma que, em geral, lhe acomete. Porém temos uma certeza. Seja qual for
esse papel, ele jamais deve ser passivo.
É importante que as demais pessoas entendam que a pessoa cega pode
decidir sua vida e deve fazê-lo, dissociando a ideia de cegueira da de falta de
raciocínio e incapacidade de decisão.
Os indivíduos cegos são responsáveis por suas ideias. Esta
estigmatização acompanha o indivíduo cego em qualquer lugar. Em casa, na sala
de aula, no local de trabalho, no edifício onde mora, não há como a figura do
cego passar despercebida e ele poderá ser alvo de situações envolvendo o
estigma ou mesmo que não envolvam situações em que ele supõe algum tipo de
afastamento ou isolamento do grupo.
Se dentro de uma sala, por exemplo, há uma pessoa cega e outras quesão
videntes e um dos videntes faz um gesto ao outro vidente, eles se comunicam.
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Se ocorrer o silêncio repentino em meio a uma conversa, é comum que o
indivíduo cego procure saber o que ocorreu e, por vezes, fique desconfiado.
O peso do estigma variará de pessoa para pessoa. Dependerá de como a
criação e o contexto familiar, escolar e de todos os grupos dos quais fez e faz
parte levou o indivíduo a perceber a cegueira e lidar com ela. Em alguns casos,
ele pesa tanto que até mesmo elementos que deveriam servir, na interpretação de
alguns, para emancipar e identificar o indivíduo cego, componentes de sua vida
cotidiana que deveriam funcionar como seus aliados na aquisição de
conhecimentos e na movimentação segura, aparecem como elementos de
estigmatização.
3.3.2. Bengala e braille, elementos de estigmatização ou identificação?
A bengala e o Sistema Braille talvez sejam os elementos que mais
identificam o indivíduo cego. O próprio símbolo internacional da pessoa cega
mostra alguém segurando uma bengala branca e o Braille, ainda que possa ser
lido com os olhos, apresenta características de um sistema criado para favorecer
a leitura tátil e não a visual. O tamanho padrão das letras encaixa-se
perfeitamente com a parte mais sensível de nossos dedos, não podendo exceder
aquela medida; seu formato, sem curvas, facilita e agiliza a leitura tátil. Tudo
nele favorece ao indivíduo cego, fazendo com que seja bastante comum que
cegos o leiam mais rapidamente do que pessoas que veem, ainda que muito
versadas nesta leitura.
Essas características dão tanto ao Braille quanto à bengala branca uma
carga simbólica dúbia. Para alguns cegos eles constituem a identificação do
indivíduo como pessoa cega, quase que uma marca. Analisemos o comentário da
professora Andreia na entrevista:
- "Na minha família, tem muito cego como você sabe. Então, quando eu
ganhei a minha primeira bengala, quando eu entendi que ia poder começar
a sair com a minha própria bengala, isso foi como meus pais dizerem que
eu estava me tornando uma pessoa adulta, independente. Eu agora era
como os cegos adultos. Quase um ritual de iniciação (risos)"
(ENTEVISTA ANDREIA, 2015).
79
Percebe-se, claramente, que para este indivíduo, o uso da bengala
representou algo positivo. Era algo esperado por ele em algum momento, já que
há outros indivíduos cegos em sua família e, segundo o que expõe, o uso da
bengala é bem aceito por todos. Ela não se importa com a questão do estigma,
ou seja, com o fato de ser vista usando um objeto que as pessoas "normais" não
usam. Não vê incômodo em caminhar de modo distinto do das pessoas videntes,
mesmo porque, ao dizer que em sua família há muitas pessoas cegas, está
revelando que este uso é habitual.
É de se presumir que antes os adultos que o conduziam o faziam
utilizando a bengala, o que a fez crescer acreditando que um dia, ele faria o
mesmo. Por isso utiliza de forma jocosa a expressão "ritual de iniciação". Vê na
bengala um elemento de identificação, em seu caso específico, inclusive com a
família. Pode-se observar, porém, que este sentimento é confuso e não tem uma
unanimidade entre os indivíduos cegos. Tomemos agora por base este diálogo
observado entre um aluno da reabilitação e seu professor:
Vicente: "está saindo de uma aula na reabilitação e pergunta à professora: -
Meu pai está aí? - Sim, está vindo te encontrar. - Ela responde. Ele dobra a bengala rapidamente e comenta aliviado. - Ainda bem. Não
vou precisar ficar batendo isso por aí. A professora questiona: - Mas ela não devia te incomodar. É ela quem te
orienta. - Mas me incomoda. A senhora já reparou que até a gente que é cega sabe
quando tem outro cego perto, por quê? “Por causa do barulho dela”.
(DEPOIMENTO OBSERVADO DE VICENTE, 2015).
Podemos, aqui, observar alguns elementos como o fato de o
indivíduo cego não chamar a bengala de bengala e sim de isso e ela. Além disso,
sua preocupação não está na facilidade de localizar-se com independência que
ela oferece e sim no fato de ela fazer com que todos, inclusive outros cegos,
percebam sua presença. Ele não quer ser visto, não quer ser notado porque sabe
que seu estigma "saltará na sua frente" e isso incomoda. A bengala ajudará a
reforçar este estigma.
É importante que levemos em conta, no caso citado, que o sujeito
observado Diogo é um reabilitando, ou seja, alguém que perdeu a visão depois
de adulto e está se adaptando à sua nova condição, não sabemos há quanto
80
tempo. Este fator, comumente dificulta a aceitação de tudo o que está
relacionado à cegueira até que o indivíduo, realmente, se sinta parte daquele
grupo, o que leva mais ou menos tempo, de acordo com cada um ou não
acontece nunca. A título de análise, cabe observar situações dignas de nota
entre alunos que já cresceram convivendo com a situação da cegueira:
"A professora pergunta Diogo:
Por que você e sua família acham tão difícil sair de onde moram para você
vir para a escola? O acesso é ruim?
- É porque a minha mãe enxerga e o meu pai não. Então a minha mãe dormiu no hospital com uma moça que ela acompanha e não tinha ninguém para ir comigo e o meu pai no ponto do ônibus. - Alega Diogo.
- Mas então, se a sua mãe não estiver em casa, seu pai não sai? É difícil achar alguém para ajudar?
- É que aí ele tem que usar a bengala e aí ele não gosta não. Como ele é
assim nervoso eu nem insisto, mas ele não gosta de usar a bengala. Lá
perto de casa, ele só sai com a minha mãe para ninguém ver ele de
bengala. Só depois é que “ele usa.” (DEPOIMETO OBSERVADO DE
DIOGO, 2015).
Vale ressaltar que, no caso acima, o aluno também possui outra pessoa
cega na família, como acontece a Professora Andreia. No entanto, este indivíduo
já não convive bem com a necessidade de uso da bengala, fato que é observado
pelo filho. O pai da aluna que prestou depoimento observado evita o quanto
pode usar a bengala, sobretudo perto de casa, onde, provavelmente, todos o
conhecem. Longe dali ele será mais um cego sem grande identificação e, de
qualquer forma, não poderá ter a mulher sempre em sua companhia, sendo
obrigado a valer-se do instrumento.
Goffman (2004) fala sobre esta necessidade que o indivíduo
estigmatizado tem de passar o mais despercebido possível para que não se
lembre, constantemente, de sua condição. Martins (2006) aborda este tema em
sua pesquisa junto a cegos da ACAPO (Associação de Cegos e Amblíopes de
Portugal)
“quando procurei compreender em que medida as representações
impactantes à cerca da cegueira aportavam na vivência das pessoas cegas,
verifiquei, na inibição ou na resoluta recusa em utilizar a bengala branca
por parte de alguns indivíduos a mais expressiva demonstração da
dificuldade de que se pode revestir o confronto com as construções
culturais hegemônicas constituídas em torno da cegueira." (MARTINS,
2006, p. 150).
81
O estigmatizado sabe que ser diferente de alguma norma corporal
estabelecida é algo difícil de ser aceito pela sociedade em que vive. Nosso
pensamento, em geral, é o de repelir o diferente e não o de aceitá-lo como é. Daí
a necessidade que o indivíduo cego, como todo estigmatizado, tem de se tornar o
mais igual possível a quem não tem este estigma, constituindo, para muitos
indivíduos cegos, até mesmo certo status mais elevado o assemelhar-se ao
máximo aos videntes, mesmo que isto lhe custe abrir mão de alguma autonomia.
Neste embate entre a identidade e a exacerbação do estigma, alguns
indivíduos cegos tendem a aprender o manejo da bengala e não utilizá-la
preferindo o braço de um companheiro que enxerga, mesmo que para isso
tenham que aguardar a disponibilidade de outra pessoa ou deixar de ir a lugares
que gostariam de frequentar.
Entre os entrevistados, isto é, professores cegos do IBC,foi verificado
que: um deles não se utiliza da bengala em circunstância alguma,
terminantemente; aqueles que foram alunos do Instituto só a utilizam em
espaços que não tinham o hábito de frequentar quando crianças como a Divisão
de Imprensa Braille ou o Departamento Administrativo, por exemplo; os que
não foram alunos tendem a usá-la em todos os espaços sem que isto constitua
constrangimento para eles. Todos, exceto aquele que não utiliza bengala em
hipótese alguma, a utilizam na rua, mesmo aqueles que têm pequeno resíduo
visual, pois alegam que não se sentem seguros para caminhar sem ela e que a
presença da bengala os protege, fazendo com que os transeuntes tenham mais
atenção nos caminhos e desviem das pessoas cegas, sem esperar que elas o
façam.
Um dos entrevistados, embora ex-aluno e usuário da bengala demonstra
grande dificuldade em orientar-se, mesmo com ela, nas dependências do próprio
Instituto, sempre perguntando a quem esteja no caminho se tomou o rumo certo
para algum lugar aonde queira ir, o que pode ser decorrência de alguma outra
dificuldade não oriunda à cegueira.
Minhas observações podem sugerir na sua maneira de locomover-se
algum comprometimento auditivo que dificultaria sua orientação, porém não há
comprovação deste fato. Sou levada apenas pela experiência, o que, embora
tenha valor, não pode ser considerado conclusivo.
82
Acrescente-se a isso o fato de que este sujeito não tem o hábito de se
fazer acompanhar por pessoa cega. Por mais que outros colegas cegos se
disponham a ir com ele a lugares que conhecem bem, alegando que podem
ensinar a ele como chegar lá, ele sempre encontra uma maneira de fugir a esta
ajuda preferindo valer-se de um colega vidente, o que pode demonstrar
insegurança no uso da bengala, por parte dele, e falta de confiança no uso feito
pelos demais indivíduos cegos.
Se tal atitude não significar exatamente uma inibição pelo uso da
bengala, demonstra, no mínimo, que ele não se sente seguro ao ser orientado por
alguém que a use. Considera que a orientação dada por uma pessoa que enxerga
é sempre superior, mais correta. Ao sair com uma pessoa que enxerga, ele
também não se empenha em aprender o caminho. Apenas apoia-se no braço de
seu companheiro e deixa-se guiar, sem procurar compreender o itinerário que
está sendo feito, sem usar a bengala para reconhecer o percurso, o que significa
que de outra vez em que precisar retornar ao lugar, precisará novamente de
ajuda.
Tal insegurança pode estar relacionada a uma série de fatores, a saber:o
aspecto estigmatizante da bengala; um possível comprometimento orgânico que
prejudique sua orientação e o faça sentir-se inseguro; a superproteção da família
que costuma limitar suas ações, aumentando suas dificuldades em tomar
decisões por si mesmo.
A importância de destacar este caso em particular é porque nossa
tendência a estabelecer normas não traz apenas os estigmas já consagrados pela
literatura. É mesmo comum entre os cegos que, simplesmente, se aponte o
indivíduo que não usa a bengala como alguém acomodado, sem buscar
compreender as reais razões que podem ter levado aquele indivíduo àquela
situação.
Entre os profissionais, pode, ainda, aparecer a tendência de se atribuir
tudo à superproteção, culpando a família, sem se lembrar de que há um conjunto
de fatores que geram mesmo esta superproteção, como será abordado no item
sobre o preconceito.
83
É comum que pessoas cegas com posturas mais independentes observem
com estranheza atitudes que denotem dependências vindas de outras pessoas
cegas, praticando, assim, uma espécie de observação desconfortável. Neste caso,
um professor cego, ex-aluno da casa que não consegue manusear a bengala é
visto com preocupação ou, pior, de modo pejorativo.
No entanto, há outro aspecto que pode ser relacionado diretamente à
questão do estigma. O que compreende o senso comum. Numa postura
absolutamente paradoxal com relação à cegueira, pessoas que têm contato
superficial ou pouco afeitas ao contato com pessoas cegas podem tender a dois
tipos de interpretação sobre elas: ou são criaturas incapazes, ou têm uma
capacidade acima do normal naquilo que fazem.
Assim, se essas pessoas tiveram contato com pessoas cegas que andavam
com desenvoltura, não conseguem entender por que uma pessoa cega em
particular não o consegue.
A generalização não permite que elas vejam o indivíduo como um
indivíduo, ou seja, alguém que não é igual ao outro que ela conheceu e que pode
ter outras questões limitantes além da cegueira.
Esse ver o outro como outro diferente de nós, com suas próprias questões
traz uma maior compreensão do peso do estigma e até do quanto isto interfere na
formação de nossa personalidade, já que esta dependerá do contexto social em
que vivemos.
As exigências de cada grupo social, o conceito de sucesso dentro de cada
sociedade e de cada comunidade são fatores que preparam ou não o indivíduo
para as situações de negociação ou enfrentamento do preconceito e do estigma,
o lidar com situações em que o estigma aparece com força exige, muitas vezes,
uma convicção muito grande de quem se é. Cabe ainda falar sobre a situação do
Braille que tem suas diferenças em relação à da bengala.
Se alguns consideram o Braille estigmatizante, nem sempre as causas
serão as mesmas que trazem o estigma sobre o uso da bengala. A bengala
remete à certa liberdade de movimentos. Usar a bengala significa ir para a rua,
enfrentar os obstáculos do mundo, expor-se a perigos como atropelamentos,
84
assaltos, quedas em buracos. É, sem dúvida, um momento que mescla temor e
satisfação para qualquer indivíduo cego. E a bengala fica sempre à vista de
todos. Não há razão para se ter uma bengala se for para ficar dentro de casa. Sua
maior utilidade está nos espaços desconhecidos e nas ruas. Relatos e histórias
correntes no IBC dão conta de que até os anos 60, poucas eram as mulheres que
usavam bengala, pela simples razão de que poucas trabalhavam fora e a elas
bastava saírem acompanhadas por pais, maridos ou filhos11. O uso deste
instrumento por parte das mulheres, portanto, está ligado um período em que
elas buscavam um espaço maior, movimentando-se, construindo estratégias para
uma emancipação.
No caso do Braille, pode haver um uso mais recluso. O indivíduo cego
pode utilizar-se do sistema na escola, em casa, em locais onde outras pessoas
que, em seu modo de pensar, não devem atentar para o fato de que ele é cego,
não vão vê-lo lendo. Um diálogo entre duas professoras cegas pode ilustrar o
tema:
“Melissa pergunta: - Como você costuma registrar anotações na
faculdade?Júlia responde: - Bem, eu ainda prefiro o registro na reglete.
Acho que o som do computador me dificulta acompanhar as discussões.
Sou rápida na escrita e prefiro levar a reglete que é mais leve do que o
computador. -- Ah não! Reglete não, gente. Chega disso! Levo meu
computador ou gravo e depois anoto tudo em casa. É muito papel com o
Braille e sempre acho que perco alguma coisa e fica aquele barulho na sala
de aula. Mesmo que ninguém “reclame, acho que estou incomodando.”
(DEPOIMENTO OBSERVADO, 2015).
Melissa é professora do IBC enquanto Júlia não é.
Uma das professoras demonstra constrangimento por ter que usar o
Sistema Braille junto de pessoas videntes e considera que os registros neste
sistema não são suficientes, mesmo que o uso de computador torne seu trabalho
mais cansativo pelo peso que é obrigada a transportar.
Observando a atuação dos professores, constata-se que três deles têm o
hábito de levar material de escrita Braille para as reuniões e registram durante
elas os avisos dados. Dois registram no computador ou celular, em algumas
situações, atrapalhando-se para fazer o registro, solicitando que a informação
11 Informações obtidas nos arquivos Memória IBC.
85
seja repetida várias vezes, fato que não ocorre com aqueles que fazem os
registros em Braille. Cinco optam por tentar reter as informações com o auxílio
da memória e, como nem sempre isso é possível, acabam por consultar os
colegas repetidas vezes. Um alega que o registro em Braille é mais interessante,
porém por sofrer de tendinite e não poder escrever muito, prefere não registrar,
contando, também com a memória. Não houve oportunidade de registro dos
demais.
Nas observações, foi possível perceber que mesmo alguns alunos evitam
o uso do Braille em certas situações, embora dentro da escola que é
especializada, não o façam. Porém, alguns relatam inibição em ler na condução,
por exemplo, julgando que a leitura no computador substitui em todos os
aspectos, a feita pelo tato.
Esta dificuldade no lidar com o Sistema de leitura e escrita pode estar
também relacionada às questões citadas no capítulo anterior quanto ao momento
de se ensinar Braille a alunos com baixa visão, pois isto significaria dizer que
estes alunos estão entrando em um caminho sem volta, o caminho dos cegos.
Vale analisarmos que perspectivas os professores em geral e aqui, mais
especificamente, os professores cegos veem neste caminho. Se encontram nele
uma forma de emancipação, de garantia da qualidade da leitura e da escrita, de
identificação e, no ver de alguns, até de marcação de um espaço político, a
resposta dada aos alunos será uma e as atitudes desses professores diante do
Sistema Braille demonstrarão isto.
Se, por outro lado, eles percebem o sistema como mais uma forma de
estigmatização, como mais uma característica que coloca o indivíduo cego como
alguém diferente do "normal", então isto também ficará patente e suscitará
análises e leituras diferentes dos alunos que perceberem este comportamento nos
professores.
Como último ponto deste tópico. É importante conhecer a fala de
Belarmino (2004), uma vez que o trabalho desta pesquisadora tem como base,
justamente a questão do Braille x tecnologias assistivas, como muitas vezes foi
colocado. O fragmento de texto, embora extenso, deve ser registrado na íntegra,
86
pois mostra as reais possibilidades que se tem com o uso do Sistema criado por
Louis Braille e a tecnologia como sua substituta:
Estamos, na verdade, vivendo um período de transição, o linear do que
poderíamos chamar, numa aproximação à concepção sistêmica, de um
ponto de bifurcação. Os sistemas de codificação utilizados pelas
coletividades cingidas pela condição da cegueira em cujas culturas
alfabéticas, por mais de cem anos, predomina a centralidade do código da
escrita pontográfica. De fato, há algumas décadas este cenário vem se
modificando de tal forma que reflexões novas e fundamentais vêm sendo
colocadas no círculo do debate técnico científico, suscitadas por um
conjunto de modificações substanciais no modo como as comunidades
cegas utilizam a escrita Braille. (...) O uso dessas ferramentas poderia
promover uma subutilização do Braille como escrita mecânica por uma
escrita digital, o que provocaria um fenômeno denominado e estudado
pelos tiflologistas como desbraillização? (BELARMINO, 2004, p 136,
grifo nosso).
A pergunta ao fim do texto terá sua resposta na atitude daqueles cegos ou
videntes que julgarem viável que as tecnologias substituam o contato da pessoa
cega com o texto escrito.
Vale lembrar que o contato do indivíduo cego via computador com o
texto não é igual ao do indivíduo vidente. Quando o indivíduo vidente lê usando
a tela do computador ele vê o que está escrito assim como em um livro, tomando
contato visual com a disposição do texto, a ortografia, a acentuação, a
pontuação.
No caso da pessoa cega, o computador "lê para ela", isto é, funciona
como alguém que lê o texto, sem que ela tenha contato com a escrita do texto e
nem sempre, a entonação da leitura é a mais adequada, por mais aperfeiçoados
que sejam os leitores de tela.
Muitas são as vantagens do uso desses sistemas, porém é discutível seu
uso como substituto de uma leitura em Braille, havendo quem os coloque como
apoio, sem prescindir do texto que possibilite o contato via tato com a escrita.
Cabe, ainda, indagar se esta substituição do Braille por tecnologias
assistivas, ao invés de uso delas como auxiliares e complementares, seria
vantajosa para o indivíduo cego como cego ou se irá apenas atender a uma
supressão de um elemento de estigmatização, no caso o Braille. A resposta a este
87
questionamento dependerá da maneira como encararmos o uso de um sistema
tão peculiar e tão demarcador de um grupo.
3.4. Estereótipo
Mesclado ao conceito de estigma, o de estereótipo se não
necessariamente afasta os indivíduos daqueles de quem se espera certos
comportamentos, pelo menos pressupõem estes comportamentos. Está ligado a
uma representação social do indivíduo, a uma imagem que se tem de pessoas que
pertençam ao mesmo grupo que ele.
Segundo Houaiss (2001), é algo que se adequa a um padrão fixo geral.
Esse próprio padrão é, geralmente, formado de ideias preconcebidas e
alimentado pela falta de conhecimento real sobre o assunto em questão.
Ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo
resultante de expectativa. “Hábito de julgamento ou falsas generalizações."
(HOUAISS, 2001).
A definição do dicionário, embora não seja nosso único ponto e
argumentação, é o bastante para que entendamos onde se encaixa este conceito.
Justamente nas ideias que se tem a respeito das pessoas cegas.
Neste caso, o estereótipo é apresentado como limitante gerador de uma
expectativa que pode trazer uma compreensão equivocada da realidade.
Vejamos alguns exemplos relativos a indivíduos cegos. Cegos,
obrigatoriamente, têm bom ouvido para música, identificam vozes mesmo que
há muito tempo não tenham contato com o indivíduo dono da voz, têm uma
memória prodigiosa etc.
No caso da deficiência em geral e da cegueira em particular, oestereótipo
torna-se um fator que dificulta a relação entre os cegos e os videntes tanto pela
expectativa que cria como porque não se reflete nas causas geradoras daquele
comportamento que se espera do indivíduo.
A música era algo que os cegos podiam aprender sem necessitar
daescrita, prova disso é o fato de já existirem cegos músicos antes que existisse
88
o Sistema Braille. Alguns cegos destacaram-se em suas comunidades pelo seu
talento musical. Isto acabou desenvolvendo no pensamento geral a associação,
hoje estereotipada, de que todo cego tem bom ouvido para a música.
Negligenciando as idiossincrasias e os diferentes contextos em que todos
nos relacionamos, tendemos a nos surpreender positiva ou negativamente
quando alguém não tem o comportamento que prevíamos, sobretudo se esse
alguém é cego.
Em certos casos, ainda que a realidade mostre que aquele indivíduocego
foi capaz de comportar-se de modo diferente do previsto, mantemos a ideia já
cristalizada em nós pelo estereótipo. Por vezes, é preciso provar que certa ideia
não condiz com a realidade,como no caso a seguir extraído da entrevista com a
professora Melissa:
- Eu resolvi levar a máquina de datilografia para a escola. Pegava ônibus
cheio com aquele peso, mas levava porque uma vez, eu entreguei um
trabalho datilografado e quando a professora me perguntou quem
datilografou para mim e eu disse que tinha sido eu mesma, ela falou: - Sim você fez isso! (Afirmou num tom bem irônico). Achei aquilo um
absurdo e resolvi provar para ela que eu podia fazer sim. (ENTREVISTA
MELISSA, 2016).
A atitude do professor, neste caso, mostra não só a crença na
incapacidade do indivíduo cego para fazer a atividade como também à
associação da visão a tudo o que se pratica.
Naturalmente, este professor não pensou na falta de coerência de sua
ideia, pois nos cursos de datilografia e, atualmente, de digitação, o operador não
pode olhar o teclado, deve decorá-lo. Portanto, datilografar sem enxergar
deveria ser algo habitual entre os datilógrafos profissionais.
Porém isto serve para mostrar como os estereótipos podem envolver a
pessoa cega, atribuindo-lhe capacidades que ela não possui ou retirando dela
capacidades que pode possuir. Aliás, esta incoerência no raciocínio da
professora é outra característica do estereótipo. Mesmo que ele venha de uma
experiência já vivida com uma pessoa cega, é normalmente, um conceito que
trabalha com a generalização - todos os indivíduos daquele grupo agirão da
mesma maneira - e suas conclusões não apresentam lógica.
89
No texto “Os Estereótipos e O Viés Linguístico Grupal” (PEREIRA etal,
2003), pode-se notar como as relações entre grupos estão também vinculadas à
maneira como um grupo que se julga superior avalia o comportamento do outro,
esperando dos membros do grupo avaliado sempre o mesmo comportamento.
"Os membros do in group tendem a ver e a tratar os membros do grupo
externo de uma forma eminentemente negativa. As concepções a respeito
do grupo externo são, geralmente, formuladas a partir do uso do
pensamento categórico e são expressas através de crenças estereotipadas
compartilhadas por, praticamente, todos os membros do grupo" (PEREIRA
et al, 2003, p. 128).
Os estereótipos não são um pensamento isolado. Ninguém cria
estereótipos para os outros sozinhos. E, geralmente, ninguém sabe dizer como
aquela ideia estereotipada surgiu ou desde quando se sabe aquilo. Parece
natural. É como se tivesse nascido com a pessoa, porém isto não é verdade. Ele
é aprendido no meio social em que se vive.
Se houver empenho em se investigar as causas do estereótipo, elas
provavelmente aparecerão em algum momento da história do grupo que é
envolvido pelo estereótipo criado. É bastante possível que em muitas situações
indivíduos com tais características tenham se comportado da maneira como os
que criam expectativas estereotipadas esperam que o outro haja e por isso essa
ideia. Segundo Pereira &Valla (2011) há situações em que o estereótipo é
conveniente quando se busca a manutenção de uma situação. "As pessoas
tendem a justificar o status quo ao invés de questionar a legitimidade do sistema
que produziu essas diferenças entre os grupos." (PEREIRA; VALLA, 2011, p.
367).
Assim o estereótipo é um comportamento que ajuda nesta justificativa e
pode ser usado na manutenção de uma situação se isso interessar ao grupo
dominante. O estereótipo reforça a noção de que sabemos tudo sobre alguém ou
algum grupo fazendo com que o indivíduo acredite já obter elementos que o
informam sobre o outro. O trecho abaixo mostra como o estereótipo está ligado
ao que pensamos do outro e como julgamos que podemos saber
antecipadamente como o outro deve agir.
"Se a atitude como definida por Krech, Crutchfied e Ballachey (1975) tem
uma parte cognitiva, outra afetiva e uma tendência para a ação, os
90
estereótipos dizem respeito à parte cognitiva do preconceito e são
percepções empobrecidas e deformadas do alvo que servem para justificá-
lo." (CROCHÍK, 2006, p. 55).
Vemos aqui, o estereótipo como a ideia formada que se tem sobre
determinado grupo de indivíduos, o que vai culminar no preconceito em muitos
casos. É comum que, formada a percepção estereotipada, o indivíduo tenha
dificuldade de se permitir outros aprendizados. Vejamos o exemplo a
seguir:"Acontece muito. O familiar chega aqui com o aluno para conhecer
agente e quando vê que eu sou cego, pergunta: - Mas é você quem vai ensinar a
ele? Isso vai dar certo?" (ENTREVISTA RAFAEL, 2015).
O depoimento acima mostra a percepção que, de hábito, as pessoas têm
de que o cego não pode ensinar principalmente a outra pessoa cega, o que gera
atitudes preconceituosas e que podem culminar em rejeição.
A fim de explicitar melhor a ideia do preconceito, será necessário entrar
mais a fundo na esfera do preconceito propriamente dito.
3.5. Preconceito
Gerador de atitudes de discriminação, segregação e até superproteção, o
preconceito está relacionado a tudo o que julgamos saber sobre o outro sem que
o observemos pessoalmente. É uma ideia socialmente aprendida, incorporada e
que temos dificuldade de mudar. Nada mais comum na história de indivíduos
cegos do que pessoas que tudo sabem sobre como estes indivíduos se
comportam, do que gostam, como agem sem jamais terem convivido com quem
não tem visão.
Bartolo (2007), no livro “Nos Limites da Ação”, falando sobre alteridade
e preconceito, afirma:
para Martin Buber, a vida humana é relação. O ente não é, relaciona-se.
Existe na relação como um eu apto para dois modos relacionais
fundamentais, com um eu que se relaciona com um tu ou um eu que se
relaciona com um isto (BARTOLO, 2007, p. 41).
Apoiando-se o pensamento de Buber, o autor defende que só existe
formação, seja ela qual for, na relação e tudo o que o indivíduo faz é relacional.
91
Diante disso, levanta algumas questões éticas no relacionamento humano e
aponta como sendo o preconceito uma forma de manutenção do poder.
Assim o indivíduo que age a partir do preconceito mantém o que é
atingido por ele sob controle. Ele não conhece nem deseja conhecer o outro,
pois prefere manter as ideias que traz a respeito de sujeitos cujo comportamento
lhe parece questionável.
Pode-se encontrar reforço dessas ideias em Sidanius e Pratto (1999) ao
apresentarem a teoria da dominância social.
"A sociedade cria consensos sobre as ideologias que promovem a
superioridade de alguns sobre outros. As ideologias que promovem as
desigualdades são usadas pelos atores sociais para legitimação das
desigualdades sociais" (SIDANIUS; PRATTO, 1999 apud PEREIRA;
VALLA, 2011, p. 366).
Assim, o preconceito torna-se instrumento de dominação e manutenção
do poder. É o grupo dominante que decide o que o outro pode ou não fazer,
como deve se comportar. Se observarmos aqueles grupos que passam por
opressão perceberemos que, de alguma forma, os homens heterossexuais,
brancos com corpo íntegro e em funcionamento de todos os órgãos dominam as
propagandas, os postos de comando, os espaços de destaque, cabendo geralmente
aos que não estão nesta situação os lugares de subalternidade.
Voltemos, ainda uma vez ao texto de Bartolo para analisar a atitude
daquele que age movido pelo preconceito:"O preconceito é, por definição, o já
sabido por mim por um saber prévio e independente a qualquer escuta
interpessoal. No preconceito, evito a confrontação face a face com o rosto do
outro." (BARTOLO, 2007).
Reformular ideias, ouvir o outro, aquele outro que, de fato, pode lhe
transmitir algo sobre o indivíduo atingido pelo preconceito, abrir-se é o melhor
meio para modificação de uma situação de preconceito. Se não nos
aproximarmos do alvo do preconceito, sempre ficaremos com as ideias
adquiridas de maneira distorcida e essa aproximação deve ser uma aproximação
disposta a ouvir para que nossas ideias passem a ter coerência.
No tópico anterior, sobre estereótipo, Rafael relatou que é comum que
pais e outros familiares não confiem em um professor cego quando chegam à
92
sua sala trazendo um aluno e descobrem que ele é o professor. Esse não confiar
é uma atitude prévia, sem conhecer o trabalho do professor, ou seja, é da ordem
do preconceito. O pensamento “é cego, portanto incapaz” supõe-se que se o
professor também é cego, não terá como ensinar o aluno a ser "normal", afinal,
espera-se que o professor "normalize" o indivíduo cego que tem um corpo
considerado desviante.
Além disso, pode estar aí embutida a ideia da superproteção. Na maioria
das vezes, o pensamento pode girar em torno do "risco" de se deixar alguém
"incapaz e desprotegido" nas mãos de outro alguém "incapaz e desprotegido",
pensamento que as famílias não expressam em palavras, mas em atos, sobretudo
no caso dos cegos adultos que vão em busca da reabilitação, como é o caso do
trabalho de Rafael.
3.5.1. Superproteção e preconceito
As formas de manifestação do preconceito podem ser tão variadas que,
por vezes, nem mesmo aquele que o pratica tem consciência de que o faz. A
superproteção é uma dessas situações em que o indivíduo acredita que aquele a
quem protege pode menos, é mais frágil e incapaz, daí a necessidade de ser tão
protegido. "Assim a superproteção à pessoa com deficiência, por exemplo, pode
significar o desconhecimento da real potencialidade que ela tem, mediada pelo
preconceito." (CROCHÍK, 2006, p. 56).
Associar sempre a ideia do preconceito a pessoas perversas é outra
distorção. Não necessariamente o preconceito estará ligado a ideias de violência
e perversidade, sobretudo de perversidade, pois o conceito de violência é muito
amplo e pode, para alguns, abranger também a superproteção.
Quando superprotegemos alguém, ainda que seja por amor a esta
pessoa,estamos dizendo que ela é incapaz, que ela depende de nós para tudo,
que ela não pode decidir fazer sem nós. Estamos colocando este indivíduo numa
posição inferior à nossa.
93
Se dermos a uma pessoa cega algo que não damos ao outro, mesmo que
esta doação não tenha nenhum vínculo com sua questão visual, isto é um ato
preconceituoso, pois entendemos que ela não pode conquistar o que lhe foi dado.
"Então, eu estudei o semestre inteiro e sempre perguntava ao professor: -
Como vai ser a minha prova? Os outros professores vão fazer oral. - Depois a
gente vê, minha filha. Chegou o dia da prova e ele disse: - Ficamos assim. Você
não precisa fazer nada. Eu te dou 10 pelo seu esforço.
- Ah, não ficamos não, professor. Eu quero fazer prova, se precisar, farei a
final e vou ter minha nota como todo mundo, seja ela qual for. Passei sim,
com 8,5. O meu 8,5. (ENTREVISTA GABRIELA, 2015).
Esta situação, bem mais comum na trajetória de indivíduos cegos doque
se possa imaginar, assim como aquele que não acredita ser possível ensinar aos
cegos ou coisa parecida, revelam até certa culpa como se o indivíduo dissesse:
"Não tenho como livrar você deste enorme peso, portanto vou compensá-lo com
isso."Observemos um extrato de entrevista em que a superproteção fica bem
evidente:
"Meus pais não me deixavam ir para a casa de nenhuma colega. Era
comum as meninas irem para as casas umas das outras, mas eu nunca ia. A
única que ia lá em casa e para a casa de quem eu ia às vezes era a Luciana,
que é minha amiga até hoje." - Mesmo sabendo que um monte de gente no
Instituto fazia isso. [...] meus pais não queriam que eu fizesse normal
porque não tinha ninguém que fosse fazer e isso ia me obrigar a ir sozinha
para a escola. Tive que fazer o Formação Geral, no início, porque assim eu
ia com todo mundo para a escola." (ENTREVISTA LAILA, 2015)
Os sinais da superproteção da família aparecem de forma tão incoerente
que no caso relatado, os pais da professora permitiam que ela fosse para a escola
com outros colegas cegos, mas não permitiam que fosse sozinha. Era nela que
não confiavam embora não tivessem consciência disso. Essa superproteção pode
trazer consequências para toda a história e o percurso do indivíduo, afastando-o
de outros amigos, mantendo-o isolado longe de seus pares, o que impede que ele
aprenda no convívio com eles.
Aparece, em situações como essa, uma preocupação eterna com a
fragilidade do indivíduo e a certeza de que só os membros da família sabem o
que é bom para ele. No entanto, chegará o momento em que esses membros não
poderão mais suprir suas necessidades, não terão condições de arcar com toda a
94
sua vida de pessoa adulta e, talvez, seu comportamento já esteja comprometido
pela falta de oportunidades para desenvolver-se como indivíduo.
Pode ocorrer uma mudança na vida do indivíduo superprotegido ao
ponto de ele superar esta situação de superproteção e tornar-se uma pessoa que
enfrentará as situações que surgirem buscando soluções. No entanto, o mais
comum nos relatos é que a pessoa acabe por enfrentar dificuldades maiores
quando a superproteção cerceia suas oportunidades. Observemos um diálogo
entre os professores Andreia e Ruth falando de outra pessoa, uma ex-aluna da
instituição:
"Andreia:: - Eu fui na casa da Vania, ontem. Ruth: - Como ela está? Andreia: - Ah, como você acha? Ela fica lá dentro de casa, a irmã sai para
trabalhar e ela fica com os sobrinhos adolescentes. Na verdade, são eles
que tomam conta dela. Sem a ajuda deles ela nem come. Não mexe no
fogo. Aí ela lava a louça para a irmã dela porque isso ela faz, pede para a
gente levar tudo o que tiver de livro para ela se distrair... Ruth: - Ela não sai para lado nenhum? Andreia: - Só com a irmã E agora é complicado para ela retomar o tempo perdido porque para qualquer desses centros de reabilitação que ela vá a irmã tem que levar, mas como se a irmã trabalha? Ruth: - A avó dela fez de tudo por ela mas protegia demais e depois o pai e
a madrasta não foram diferentes." Pela superproteção da família, o
indivíduo cego perdeu as oportunidades que teve de apreender o mundo na
perspectiva de indivíduos cegos como ele e agora está posta uma situação
em que tudo é mais difícil para ele. As condições atuais não favorecem sua
autonomia e ele é obrigado a aceitar as condições na casa da irmã. Ainda
que possa ser muito amado, é fato que este indivíduo está em uma situação
de dependência desnecessária já que indivíduos cegos podem preparar sua
refeição, trabalhar e prover seu sustento, locomover-se sozinhos.
(ENTREVISTA ANDREIA; ENTREVISTA RUTH, 2015).
Nos relatos feitos em entrevistas, há poucas demonstrações de
superproteção provocada pela família, porém no comportamento dos
entrevistados a superproteção fica patente, pelo menos em mais dois casos.
No primeiro caso, o professor demonstra dificuldade na realização de
tarefas simples, como usar o microondas, lavar a própria louça. Fala,
constantemente, em receitas culinárias e equipamentos de casa que deixam a
pessoa cega mais independente, no entanto não usa nenhum deles, preferindo
valer-se de alguém que execute todas as tarefas em sua casa.
95
No segundo caso, qualquer convite feito ao professor suscita o
comentário "Tenho que ver lá em casa como vão ser as coisas para eu dizer se
vou ou não." É fácil observar que a mãe o acompanha a qualquer reunião
informal e somente o deixa só se souber com quem ele vai retornar.
Nas reuniões de professores observadas no IBC, constatou-se que a
maior reclamação dos professores cegos está ligada à atitude dos pais que
procuram sempre uma oportunidade de aproximar-se da sala de aula de seus
filhos para vigiar o que está acontecendo lá dentro, caso o professor seja cego.
Não é um comportamento absoluto, porém há pais que, a qualquer saída do
inspetor do corredor, aproximam-se da sala observando seus filhos se estes
estiverem sob responsabilidade de um professor cego. É como se não
confiassem que este professor tenha condições de cuidar de seu filho durante o
tempo em que está em aula.
Indagados sobre se não acreditam que um dia seus filhos serão capazes
de cuidar de si mesmos estes pais costumam ter atitudes escapistas para não
responder, pois sabem que este comportamento inferioriza seus próprios filhos,
no entanto a imagem da pessoa cega como frágil e incapaz está forte demais
neles e é difícil de ser substituída por uma outra de alguém que pode se valer de
outros recursos que não os visuais para desenvolver tarefas.
Como uma forma de preconceito, de inferiorização do indivíduo, a
superproteção ainda carrega um problema maior porque temos todos muita
dificuldade de escapar dessas situações, visto que as pessoas que superprotegem
alguém o fazem visando ao bem deste indivíduo. É, portanto, delicado e
complexo contrapor-se a alguém que parece nos amar, por mais que possamos
contestar as formas de amar. Para isso, é preciso que o indivíduo tenha
construído sua identidade como pessoa com deficiência e conheça suas
possibilidades, estando certo de seu modo de agir e solucionar situações que
fatalmente surgirão, mostrando a todo o tempo que é capaz mais para os mais
próximos do que para os outros.
96
3.6. Exclusão
Desenvolver este tópico é, de alguma forma, reavaliar os anteriores.
Quando não entendemos o diferente, quando de alguma forma ele pode ameaçar
o já estabelecido, nem que seja porque teremos de mudar nossa forma de
trabalhar, faz com que prefiramos nos afastar do outro.
Além do fato de que o outro não nos interessa. No tópico sobre
preconceito, Bartolo (2007) traz a reflexão de Buber sobre nossas relações que
podem ser da ordem do eu-tu -- eu vejo o outro como alguém como eu, com
necessidades e capacidades -- ou da ordem do eu-isto -- o outro está aí para me
atender e não é importante. É qualquer coisa. Quando excluímos, é assim que
estamos vendo o outro.
Segundo Bartolo (2007), em nossa sociedade as relações têm sido
prioritariamente da ordem do eu-isto. As necessidades alheias não me
interessam e o outro só é importante para satisfazer aos meus interesses. O
trecho de Xavier e Canen que aparece a seguir mostra um aspecto desta
exclusão:
"A exclusão leva a uma suposta, imposta dolorosa invisibilidade, como se
o excluído não existisse. Suas necessidades, sua cultura e realidades
parecem distantes, irreais ou, talvez, mais do que isso, sejam
incomodativas e provocativas em demasia para a preservação da nossa
pretensa estabilidade pessoal e social." (XAVIER; CANEN, 2008, p. 225).
O texto acima não nos remete a uma situação antiga, a algo que se
perdeu na poeira dos séculos. Ele fala do presente, ainda que vivamos numa
sociedade que prega incluir a todos. Atentando para a situação das pessoas
cegas, uma caminhada por nossa cidade nos mostrará que a inclusão é desejada,
porém está longe de fazer parte de nossa realidade.
Quantos sinais sonoros existem para que a pessoa cega possa fazer sua
travessia com independência? Em quantos estabelecimentos comerciais, ao
ouvir a orientação "Digite sua senha", a pessoa cega pode fazê-lo com
independência? Em quantos edifícios comerciais ela consegue, de forma
autônoma, encontrar a sala que procura?
97
Estas situações, aparentemente simples, são uma pequena mostra do
processo de exclusão em que estamos, no entanto, há muitas outras questões a
serem levantadas e pensadas, pois como diz o texto de Xavier e Canen, há
fatores que incomodam a sociedade pois pressupõem uma modificação que ela
não está disposta a fazer, ajustes que ela não se dispõe a compreender e, talvez
admissão de falhas que não convém que sejam reconhecidas.
Esta invisibilidade de que fala o texto pode trazer prejuízos nas mais
diversas situações já que ao se aproximar de um grupo, o indivíduo cego poderá
precisar de ajustes para ser membro ativo desse grupo, não podendo, assim,
permanecer invisível. Mas ela é real, a tal ponto que na maioria dos textos,
quando se fala em diversidade, cita-se diversidade de gênero, etnia, religião,
nacionalidade e poucos falam em condição física. Esta aparece em textos
específicos, porém nos textos gerais sobre diversidade são raras as referências a
qualquer forma de deficiência.
A escola, espaço em que todas as situações de diversidade acabam por
surgir, é um lugar que merece atenção especial neste assunto.
3.6.1. Exclusão escolar
A escolha de uma escola especializada como campo de pesquisa faz
entender que a abordagem deste tópico será diferente da que teria alguém que
não conhece internamente as características de uma instituição nesses moldes,
apresentando resultado, por certo, diverso do que teria uma pesquisa feita em
uma escola convencional.
Para os alunos cegos ou com baixa visão, o espaço do IBC é, em geral, o
do acolhimento, onde podem realizar o que não realizam em outros espaços, de
acordo com o que se observa. É o local dos textos e dos materiais preparados
pensando nestes alunos, das atividades voltadas para eles, embora haja situações
em que este fato possa ser questionado.
Pode-se observar, em alguns depoimentos que há professores que
questionam se o IBC está preparando seus alunos para a entrada na escola
convencional, o que fatalmente acontecerá.
98
"Acho que o Instituto não está preparando os alunos para lidarem lá fora,
quando saírem. Passa muito a mão na cabeça em certas situações."
(ENTREVISTA RAFAEL, 2016).
Há questões que dividem os professores quanto ao melhor procedimento,
pois uns alegam que até na preparação de atividades, o IBC é paternalista e
deveria permitir um maior contato do aluno com as atividades como são feitas
em qualquer escola; outros defendem a adaptação e até substituição de
atividades, a fim de que o aluno acompanhe o que está sendo feito, alegando que
este conhecer da atividade como é em outros lugares não lhe acrescenta nada.
Existe ainda o grupo da moderação que julga importante que o aluno
conheça as atividades como são feitas em outros lugares, porém que conheça,
também, maneiras de adaptá-las ou substituí-las para que ele mesmo possa
sugerir estas adaptações quando elas forem necessárias, pois isto fatalmente
acontecerá. Em algum momento de sua trajetória, ele terá oportunidade de
estudar fora da escola especializada, afinal é um indivíduo que pertence à
sociedade e precisa ocupar seu lugar nela, mas é importante, segundo defende
uma corrente dentro da instituição, que o próprio IBC o instrumentalize para esta
situação.
Nesta discussão, está novamente evidente uma situação já abordada. O
modo de apreensão do mundo do indivíduo cego é formador de uma cultura cega
ou ele deve adaptar-se ao modo de apreensão do mundo dos videntes? Desta
pergunta surgem as correntes que debatem a maneira como a escola
especializada prepara seus alunos e os auxilia a caminhar com a convivência dos
três posicionamentos acima citados que variarão de professor para professor.
Discutir a exclusão na perspectiva do IBC, buscando compreender como
a instituição lida com estas situações, pressupõe compreender, antes de tudo,
que ela possui dois vieses: o dos alunos que chegam ao IBC oriundos de escolas
convencionais e o dos alunos que deixam a instituição por terem concluído seus
estudos nela, partindo para as escolas convencionais, já instrumentalizados e
com a base que a escola especializada oferece.
99
No caso do primeiro grupo, os dos alunos que vem de escolas
convencionais comecem lembrando um trabalho de Bader Sawaia, intitulado
“As Artimanhas da Exclusão”, em que ela aponta o caráter extremamente
racional da educação como um dos fatores da exclusão percebida por diversos
grupos oprimidos. Tomando como base a filosofia de Espinoza, a autora sugere:
Propomos a substituição dos dois conceitos centrais à praxes psicossocial
clássica "conscientização e educação popular pelo conceito de potência de
ação por causa do excesso de racionalidade, instrumentalização que
aqueles foram aprisionados. Potencializar significa atuar ao mesmo tempo,
na configuração da ação, significado e emoção coletivas e individuais.
(SAWAIA, 1999, p. 113).
É, portanto, tarefa daquele que pretende incluir dar ao aluno
condições
para que ele forme sua própria personalidade, sinta-se um ser humano com
direitos, características, ações próprias e sinta-se integrado a algum grupo.
No trecho observado e apresentado abaixo nota-se o aspecto mais comum da
exclusão vivida pelo indivíduo cego na escola:
"É que na outra escola, a professora não me ensinava as contas que nem a
senhora está fazendo. Ela só botava tudo lá no quadro e ensinava para os
outros alunos. Eu aprendia alguma coisa quando ia para a sala da outra tia,
a que me ensinava Braille." (DEPOIMENTO OBSERVADO, 2015).
O depoimento acima mostra como a maioria dos alunos oriundos das
escolas convencionais chega ao IBC. Nem sempre o que as leis preveem é
exequível e assim, em muitos casos, o aluno é colocado em uma sala de aula
onde permanece sem desenvolver atividades, atuando apenas quando é atendido
em sala de recurso12.
A despeito de leis e decretos, necessários e embasadores de outra
política, existe um sentimento que nem sempre foi transmutado, aprendizados
que nem sempre foram desconstruídos, dando lugar a este tipo de inclusão em
que o aluno está na mesma sala que aqueles que não possuem limitações físicas
12 Espaço em que os alunos com deficiência recebem apoio nas áreas em que apresentam maior
dificuldade. FONTE: BRASIL. NOTA TÉCNICA Nº 42 / 2015/ MEC / SECADI /DPEE. Brasília,
DF: / MEC / SECADI /DPEE, 2015. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=17656-secadi-
nt42-orientacoes-aos-sistemas-de-ensino-sobre-destinacao-dos-itens-srm&Itemid=30192> .
Acesso em: 13 mai de 2016.
100
ou, pelo menos, não possuem as mesmas que ele, porém não tem proveito nas
atividades escolares. Pereira e Valla (2011) tratam este tema como preconceito
implícito, quando se preconiza o cumprimento das leis, mas não há preocupação
com a real desconstrução das matrizes da exclusão. Segundo esses autores, a
preocupação com a igualdade, que é diferente do respeito às diferenças, pode
visar ao escamoteamento dessas diferenças dando a aparência de uma sociedade
sem questionamentos recheada de aparente harmonia.
Há que se considerar ainda que existem exceções a tudo isso. Espaços
onde, realmente, existe o empenho em incluir, porém mesmo nestes há
obstáculos que os sistemas não conseguiram ainda resolver: as turmas são muito
inchadas, o que não permite que o professor possa dar ao aluno cego ou com
baixa visão a atenção necessária, além de haver um grande despreparo por parte
destes professores. E parte deste despreparo não se resolve apenas com cursos
que são, decerto, muito importantes. Mas pode ser amenizado se, além dos
cursos, houver uma escuta maior das reais necessidades das pessoas cegas, das
suas demandas mais sérias, se cada deficiência ou limitação for vista
particularmente, sem que sejam todas unidas como se as necessidades de todos
os indivíduos com deficiência fossem iguais.
A generalização e a homogeneização que se crítica no caso de pessoas
que veem o outro a partir do estigma podem ser também percebidas em algumas
situações em que se busca trabalhar no viés inclusivo. A pesquisa mostra que a
maioria dos textos que versavam sobre diversidade e inclusão estavam voltados
para a questão da deficiência intelectual, sem atentar para o fato de que nem
mesmo é possível contemplar a cegos e surdos com os mesmos modelos de
adaptação, já que cada um desses grupos se vale, justamente, do sentido que
falta ao outro.
Observemos o trecho a seguir para melhor entender o ponto em
discussão:
“Assim, linguagem em Braille pode ser importante para os que têm
deficiência visual; linguagem de sinais pode ser importante para os que têm
deficiência auditiva." (CROCHÍK, 2012, p. 41).
101
A preocupação do autor em atender a todos os níveis de limitação é
nítida, no entanto sua ponderação fere por colocar, de início, Braille e língua de
sinais em um mesmo grupo quando são maneiras de comunicar com
características distintas. O primeiro é um código que pode expressar qualquer
língua e o segundo é uma língua com sua própria sintaxe. Este poderia ser um
detalhe pouco significativo, não fosse o fato de o autor fazer a seguinte
afirmação: "Com o progresso, a eficiência no mundo do trabalho pode ser obtida
em boa medida, pelas máquinas. Essas podem ver, ouvir e pensar, formalmente,
melhor do que muitos homens. A formação poderia ser, predominantemente,
para a vida." (CROCHÍK, 2012, p. 43).
A proposta de escola apresentada não visa à formação de indivíduos para
o mundo do trabalho, ou a inserção em qualquer atividade na qual possam
colaborar na sociedade em que vivem. Ela não atende às necessidades do mundo
real e da sociedade como ela está organizada hoje.
No caso do indivíduo cego, especificamente, seria preciso que a escola
atendesse às suas necessidades como pessoa cega, com os recursos necessários
às suas aspirações de aprendizado. O modelo acima apresentado preconiza a
igualdade, mas não destaca o respeito à diferença. Contempla aspectos
importantes para qualquer grupo social, no entanto, abre mão de outros sob o
risco de não atender às necessidades dos alunos no sentido da instrução que,
então, não se sabe em que espaços seriam atendidas.
O essencial neste modelo é que não se pode perceber a presença de
elementos que contemplem as especificidades de cada deficiência, nem as falas
de indivíduos nestas condições. Fala-se em textos em Braille, porém, em que
condições e em que situações, não se sabe.
Tudo aponta para aspectos vinculados a uma inclusão social na qual, por
certo, o Sistema Braille e a língua de Sinais deveriam estar mais evidentes,
contudo não aponta para o aprendizado e o crescimento da pessoa com
deficiência.
Em verdade, colocando-se todos juntos e "iguais", a invisibilidade de que
fala Canen e Xavier (2008) continuaria a existir agora sob uma máscara de
tolerância e inclusão aparentes em que nenhum segmento sairia contemplado no
102
aspecto da instrução. A escola é, por certo, um espaço em que se precisa
trabalhar a convivência e a tolerância, porém onde será trabalhado o
conhecimento?
Já o texto de Sawaia nos reporta à necessidade de em poderar a pessoa
com deficiência, em nosso caso, o indivíduo cego, para que ele se articule e
trabalhe, movimentando-se no mundo à sua volta, compreendendo-o, alterando
o que for possível, convivendo com o que não puder alterar, aceitando suas
características de indivíduo cego.
É possível estabelecer no texto “As Artimanhas da Exclusão” a
reocupação com a afetividade que pode ser traduzida como empatia, já que a
aprendizagem ocorre com melhores resultados quando se tem empatia com o
ambiente e todos os elementos envolvidos nela. Essa busca pela empatia faria,
segundo a autora, com que a inclusão ocorresse, pois, o indivíduo sentiria aquele
espaço como seu também.
Ao receber o aluno que já conviveu com a exclusão, portanto, é papel do
IBC instrumentalizá-lo para que possa descobrir outra forma de relacionar-se
com a escola e com os elementos que compõem a estrutura da educação,
preparando-o como indivíduo cego para conviver e atuar em todos os grupos
que frequente.
É, por isso, responsabilidade do IBC, neste caso específico,
auxiliar o aluno a estabelecer uma empatia entre ele e a escola. É preciso que o
aluno perceba na escola um espaço em que ele é importante. Este processo
implicará na relação da instituição com as famílias, com o próprio aluno, na
relação que a escola vai estimular entre o aluno recém-chegado e os demais e na
relação com os professores. É importante, portanto, que o aluno descubra
pessoas com características semelhantes às dele e, neste caso, como instituição
especializada, o IBC tem condições de oferecer esta possibilidade.
Observemos um extrato de entrevista e um de observação para
compreender melhor em que medida isto pode ser favorecido.
Primeiro, eu fiz o Jardim perto da minha casa. A minha lembrança desse
período é só da minha irmã do meu lado o tempo todo me ajudando nas
tarefas. Não tenho lembrança da professora ou de outros colegas. Sei que
eles estavam lá, mas nenhuma característica, sabe, nenhuma festinha...
Acho que se aquilo tivesse sido importante para mim eu me lembraria.
103
Daqui não. Eu me lembro do meu primeiro dia de aula. "Eu já estudei lá fora mas é muito ruim porque tudo o que você faz chama a
atenção. Professor: Como assim? Explica melhor. (ENTREVISTA MELISSA,
2016); Júlia: Ah eles ficam lá falando da curva do g, do c mas eu não sei nada
disso. Então eu pergunto e a professora diz que para mim é diferente que é
para eu ficar quieto. Aí, todo mundo quer saber por que para mim é
diferente e dá até vergonha porque fica parecendo que a gente é assim que
nem uma atração, porque fica todo mundo fazendo um monte de pergunta.
Aí, “dá vontade de não perguntar mais nada, de ficar só sentado lá quieto”.
(DEPOIMENTO OBSERVADO DE JULIA, 2015).
Destacam-se nos dois trechos respectivamente, a pouca ou nenhuma
importância da escola na vida de alguém que contava com a irmã para todas as
atividades, isto é, não conseguia ganhar autonomia e uma suposta distância da
professora e dos colegas, tanto que sequer são lembrados e a inibição do aluno,
constrangido por se tornar o centro das atenções, além da pouca ou nenhuma
empatia com o que era transmitido, já que as letras em Braille não seguem o
padrão das letras do sistema comum.
Por isso é tão importante a opinião do professor cego. Busca-se, entre
outros aspectos, entender se e como ele instrumentaliza o aluno cego para atuar
nessa inclusão que, em algum momento ocorrerá, mesmo porque a inclusão não
precisa, necessariamente, ser do aluno cego entre alunos videntes. Ela poderá ser
mesmo do aluno cego com outros colegas cegos, o que nem sempre é algo que
aconteça sem a intervenção mais contundente de um adulto.
Vários fatores como: a superproteção ou outra situação limitante podem
trazer sinais de exclusão entre alunos dentro do próprio IBC. Por ser a única
escola especializada na área da deficiência visual, sendo a única opção para
inúmeras famílias de todas as classes a procurar nela o ensino para seus filhos,
se por um lado ela integra indivíduos de várias classes sociais, por outro também
surgem situações em que a classe social causa exclusão, fazendo, por vezes,
com que, em alguns casos, os alunos de classe social menos privilegiada,
maioria na escola, isolem os de poder aquisitivo melhor ou que as próprias
famílias destes últimos não aceitem o contato de seus membros com pessoas das
outras classes sociais.
104
Assim a exclusão social dentro do IBC aparece não só no aspecto da
criança que chega já tendo enfrentado situações de exclusão pela cegueira, mas
também nas situações surgidas internamente, envolvendo outras limitações,
questões de classe e questões específicas da deficiência visual, podendo ocorrer
entre alunos cegos e com baixa visão. A escola, como instituição, pode não
excluir a nenhum desses grupos, porém estas separações afetam o trabalho e
precisam ser discutidas a fim de serem mais bem compreendidas.
Por vezes, alunos cegos e com baixa visão vivem situações de exclusão
dentro da instituição, havendo sempre comparações entre um grupo e outro e,
mesmo quando passam a estudar na mesma turma, há alunos cegos que não
criam vínculo de amizade com os com baixa visão e vice-versa.
No caso de alunos com outras limitações associadas, percebe-se a
dificuldade por parte das famílias dos demais, de alunos e de professores que
ainda não têm um consenso sobre a melhor forma de atender a esses alunos,
havendo os que julgam que o rendimento deles seria melhor em classes
especiais dentro do próprio IBC, atendendo às questões ligadas ao visual e às
demais demandas que o aluno possa trazer e os que consideram ideal que eles
sejam incluídos com outros alunos que tenham apenas a deficiência visual, o
que, segundo eles, traria progresso ao seu aprendizado.
Finalmente, há a questão do aluno que conclui o ensino fundamental e
parte para outra escola. Este indivíduo deixa o IBC instrumentalizado e
preparado para a sequência de seus estudos acadêmicos em escolas não
especializadas, no entanto a falta de estrutura para os atendimentos necessários
provoca reações diversas nos então ex-alunos como se observa nas entrevistas.
Alguns negociam com os professores os melhores procedimentos, outros
aguardam a decisão dos professores a respeito deles e outros, ainda, recorrem a
instâncias superiores dentro das escolas a fim de obter o apoio necessário.
Todos, contudo, acabam por encontrar alguma solução quando sentem que sua
capacidade foi reconhecida dentro do instituto e que a instituição espera
resultados deles.
O fato é que existem aspectos relativos à exclusão dentro do espaço para
serem trabalhados por ser esta uma questão complexa para o ser humano, mas
105
que precisa ser encarada pela escola a fim de que se possa avançar nessa
discussão.
3.6.2. Exclusão social
"As pessoas deficientes são aquelas identificadas, de uma forma ou de
outra, como social, biológica ou intelectualmente inadequadas. De todo
modo, isso é um julgamento de valor porque quanto mais sofisticadas
ficam as sociedades, mais impedimentos nós criamos." (BARNES, 2013,
p. 238).
Na percepção de Barnes, sociólogo inglês cadeirante, pode-se inferir que
a exclusão é, portanto, um processo que está relacionado ao julgamento de cada
um ou de cada grupo. No caso dos indivíduos cegos, se o grupo em que ele está
a atentar para o fato de ele ser cego, poderá com a participação dele, encontrar
maneiras de mantê-lo como membro participante do grupo.
A questão é que, como o próprio autor ressalta, a sociedade não atenta
para as necessidades de seus membros. Uma pessoa cega ou surda não pode
escolher qualquer filme ou peça para assistir a não ser que esteja acompanhada
de um vidente ou ouvinte versado em LIBRAS,sob pena de perder boa parte do
espetáculo no qual, fatalmente, não haverá áudio-descrição ou intérprete. Em um
espaço onde cada vez mais tudo se movimenta a partir das famosas senhas, as
máquinas têm teclado imperceptível ao tato, impedindo que os cegos possam
acessá-lo.
A lei obriga a identificação das embalagens de remédio com o Sistema
Braille, porém não houve orientação aos laboratórios para este procedimento e
as fitas adesivas, por vezes, cobrem a identificação, não sendo possível ao cego
ler o que está por baixo. Esses exemplos são apenas um indicativo de alguns
dados: a dificuldade que a sociedade tem ainda em ver o diferente como
diferente mesmo, porém com direitos, necessidades e aspirações, a consequente
invisibilidade a que estão submetidos os indivíduos cegos.
Diante da exclusão social, o mais difícil é contar com a manifestação do
próprio indivíduo cego contra ela. O lugar da subalternidade que lhe é imposto
permanece sendo dele quando não participa das decisões que o envolvem, que
106
lhe dizem respeito e, assim, continua não sendo ouvido e suas necessidades
permanecem não atendidas. Todos falam por ele, mas ele pouco fala.
Daí a defesa de Martins (2013) dos saberes partilhados, pois acredita na
consistência maior de um trabalho sobre a cegueira com participação ativa dos
próprios indivíduos cegos como sujeitos.
Barnes (2013) defende ainda a questão econômica como fator de
exclusão. Segundo ele, o mercado preocupa-se com quem tem poder aquisitivo
para obter o que se produz e por isso as pessoas com deficiência, em sua maioria
colocada em empregos de menor poder de compra, não conseguem modificar a
situação vigente.
Assim, fabricar equipamentos que atendam aos cegos, por exemplo,
torna-se mais caro pela lei da oferta e procura o que afasta estes indivíduos
ainda mais de materiais que poderia proporcionar-lhes maior autonomia e
oportunidades.
Todos esses aspectos se encadeiam já que sem acesso a uma instrução
que seja inclusiva, considerando suas necessidades como pessoa cega, o
indivíduo nesta condição não se instrui com qualidade ou acaba por desistir da
instrução e quando consegue superar esta barreira e adquire uma formação que
lhe permite posição favorável, está lhe é negada por ser ele considerado incapaz,
sem que lhe seja dada a oportunidade de mostrar por si mesmo sua real
potencialidade.
Assim as colocações mal situadas no mundo do trabalho trazem a pouca
renda à maior parte dos indivíduos cegos, como em verdade, ocorre com a maior
parte da população mundial.
Neste contexto, a escola trabalhando sobre as questões da exclusão, pode
auxiliar formando cidadãos com outra percepção dos grupos oprimidos,
contribuindo com a desconstrução das matrizes do preconceito e a presença de
cegos em funções nas quais o aluno possa entender que ele pode de fato realizar
um trabalho tem seu lugar de importância.
107
No caso do IBC, vale destacar que o indivíduo cego pode ser visto
também em outras funções e a instituição com seu centro de reabilitação acaba
por atuar na entrada de pessoas cegas no mundo do trabalho fora de seus muros.
Por tocar, de alguma forma, em importantes aspectos da exclusão e do
preconceito, traremos a fala de Tunis (2007) sobre o tema já que aquela não
teria sentido sem este.
"O rótulo é palavra-ato. Já o preconceito é o obstáculo inaugural ao ato
verdadeiramente inclusivo. O conceito de deficiência serve, pois à
exclusão. Eis aí o pré-conceito da deficiência. É, portanto um contra censo
falar da inclusão de excluídos, quando basta apenas não excluí-los
chamando-os apenas pelo nome próprio." (TUNIS, 2007, p. 54).
A classificação de indivíduos como deficientes já é o primeiro passo para
a exclusão e é uma classificação que parte de um julgamento. Deficiente para
quem? Em que esfera de ação?
A autora aponta para o fato de que muitas vezes, o termo deficiente, ou
cego ou, mesmo, ceguinho se sobrepõe à identificação do indivíduo, fazendo
com que seja conhecido apenas por aquilo que lhe falta.
Sem negar o fato de que as limitações, a falta de algum sentido ou
movimento são reais, é importante lembrar o quanto todos os conceitos aqui
lembrados influenciam na trajetória de um indivíduo cego, conforme vem sendo
apontado e ficará patente no próximo capítulo.
108
4. As Falas dos professores cegos no IBC
Neste capítulo analisaremos os dados obtidos no trabalho de
campo,tomando por base as observações feita se as entrevistas dos informantes
afim de verificar o que mais marcou a infância desses sujeitos, como eles
formaram a compreensão de que eram pessoas cegas, se houve situações
desuperproteção, como negociaram diante de situações de exclusão e preconceito
(caso estas tenham surgido em suas trajetórias) e o que pensam a respeito do
trabalho do professor cego dentro do IBC.
4.1. Situações que mereceram destaque na infância
Laila: "Eu já nasci cega. Sou pernambucana e meu avô, que era descendente de índios, achava que era melhor que eu morresse. Que meus pais dessem
um jeito em mim. Quando meus pais resolveram vir para cá foi ruim em
parte porque meu avô, aquele mesmo, já estava muito apegado a mim. (...)
Aqui, a realidade mudou. É claro que havia os que olhavam os que evitavam se aproximar, mas não era como lá. Não parecia que eu tinha
uma doença contagiosa. Aos poucos, “eu fui fazendo amizade com as
crianças da vizinhança.” (ENTREVISTADO LAILA, 2015).
Pode-se constatar na fala acima a presença forte do estigma, levando-se
em consideração os aspectos culturais que envolvem a família do sujeito
entrevistado e o local onde ele vivia (o interior de Pernambuco). É possível
perceber ainda a possibilidade de desconstrução ou, ao menos, de transformação
de um estigma quando a entrevistada revela que quando veio para o Rio, seu avô,
o mesmo que queria que os pais”dessem um jeito" na filha, havia se apegado a
ela.
A convivência permitiu o estreitamento de laços entre avô e neta,
modificando a percepção original do avô, o qual não fazia mais do que agir
segundo a tradição de seu povo segundo a informante, mas que permitiu que ele
desse lugar à construção de outro tipo de relacionamento. A professora revela
ainda que ao chegar ao Rio de Janeiro foi mais bem aceita do que em sua terra, o
que faz perceber que o estigma e o preconceito marcavam sua infância em
Pernambuco não permitindo que a mesma interagisse plenamente com outras
crianças.
Em alguns casos, a falta de informação podetrazer prejuízos às relações
mais simples:
109
Marília: “Desde criança, eu tinha uns problemas de visão, mas ninguém descobria o que era. Então minhas primas achavam que eu era lerda ou
preguiçosa. “Minha avó me achava desastrada porque eu derrubava as
coisa se quase não me deixava fazer nada”.Professora começam em torno dos anos cinquenta, em sua infância, e havia muita desinformação e
poucos tratamentos. Ao dizer que "minhas primas achavam que eu era
lerda ou preguiçosa", a professora revela a tendência da família em sempre
atribuir uma característica pejorativa ao indivíduo cego ao invés de primeiro verificar ao invés de antes. Aqui não havia negação da cegueira e,
sim, desconhecimento dela. As histórias dessa buscar informações e
subsídios para lidar com a situação. Tende-se a crer que é o indivíduo quem está fazendo algo inapropriado. É muito comum que a pessoa com
baixa visão tenha dificuldade em explicar o que vê e pense que todos vêem
o que ela vê.De acordo com profissionais especializados, há várias formas
de ver e a baixa visão tem inúmeras peculiaridades. Dessa forma, um dos professores entrevistados vivia uma situação em que nem ele conseguia
compreender o que lhe estava ocorrendo, muito menos sua família, que
não atentava para o fato de seu problema ser de ordem visual (ENTREVISTADO MARÍLIA, 2015): Andreia: "Eu brincava com as crianças da minha rua sem problemas. Só
tinha uma coisa que eu não gostava muito. É que, em algumas brincadeiras, tipo pique, sempre alguém avisava se tivesse um colega
novo: - A Andrea é café-com-leite, que é uma situação mais protegida. Eu
demorei mas um dia, entendi o que era café-com-leite. Eu não. gostava de
ser café-com-leite, mas também não queria me dar mal sempre. Então tinha que aceitar. O que é que eu ia fazer?" (ENTREVISTADO
ANDREIA, 2015).
O relato acima ilustra a necessidade de se compreender a limitação real
causada pela cegueira. É o momento em que se questiona o modelo social da
deficiência que, se traz inúmeras possibilidades de crescimento que devem ser
valorizados pelas pessoas com deficiência, traz também aspectos que precisam ser
tratados com cuidado a fim de que não se chegue a negar a realidade manifesta de
uma limitação sensorial.Se os seres humanos possuem cinco sentidos e os cegos
possuem quatro, um deles está faltando.Porém, a própria entrevistada afirma que
brincava com as outras crianças da sua rua, o que nos leva a crer que esta falta da
visão não impedia uma série de possibilidades de socialização em conjunto. As
demais crianças, ao contrário das que fizeram parte da infância da Laila em
Pernambuco, dispuseram-se a conhecer a pessoa antes de ter ideias preconcebidas
sobre as possibilidades de sua vizinha e ela pode, assim, ser mais incluída.
Em seu texto Sobre Crocodilos e Avestruzes (completar) Lígia Amaral
(1998) conta uma história semelhante à de Andréia, reportando-se a seu próprio
caso, pois por ter se que ela de poliomielite, as brincadeiras de pique também
110
eram difíceis para ela. Por conta disso, em alguns momentos, ela preferia estar em
casa, ouvindo rádio ou lendo, com a proteção do lar, segundo ela, como uma
avestruz que enterra a cabeça na areia para se esconder do mundo exterior.
Conclui que isso não faria a sua limitação desaparecer e que, afinal, não havia
outra solução senão enfrentá-la: ou aceitava ser café-com-leite ou não poderia
brincar sem ser apanhada sempre.
A falta da visão é real e inegável, porém as relações baseadas nesta falta
são construídas socialmente, priorizando aquilo que o indivíduo não pode fazer ou
novas possibilidades da condição, dando maior valor ao que ele pode fazer sem o
apoio da visão. São estas escolhas que vão demarcar o espaço do preconceito, do
estigma e do pouco valor que se atribui às pessoas cegas, como explicita X:
"Eu tinha loucura por escola e queria saber tudo o que meus irmãos
estavam aprendendo. Procurava prestar atenção a tudo e confesso:embora não fosse culpa minha nem de ninguém, eu tinha vergonha de não estar na
escola como os outros." (ENTREVISTADO GILMARA, 2015).
O relato acima pode apontar para certa preocupação com a própria
imagem. A própria entrevistada diz que tem consciência de que ninguém era
culpado, mas tinha vergonha como se fosse responsável pela própria condição.
Ela sentia-se diferente, já que todos estavam na escola, e queria aproximar-se dele
são máximo; por isso, era importante saber tudo o que eles estavam aprendendo.É
evidente que a falta da visão não diminui, forçosamente, a curiosidade inerente às
crianças, e pode mesmo aguçar, como no caso do informante acima, essa expressa
sede de aprender.
Goffman (2004) mantém que os "informados", isto é, aqueles que por
conviverem com os envolvidos pelo estigma, têm uma melhor compreensão de
suas situações. A fala do informante X exemplifica o argumento do autor:
Eu sempre brinquei solto. Morava no interior e isso me fazia contar com
mais espaço. Minha mãe era um pouco mais tensa sobre as coisas que eu
aprontava, como subir em árvores, correr para todo o lado... Meu pai não. O fato de eu ter um irmão mais velho que também era cego, acho que fez
minha família lidar melhor com a situação.Neste caso, a existência de outro
irmão com a mesma característica evitou a superproteção e, segundo a fala
apresentada, garantiu ao entrevistado uma infância mais autonôma.
Marlon: "Logo no meu primeiro ano aqui, teve uma coisa que me marcou.
Eu entrei para fazer o antigo CA e achei que estava aprendendo bem tudo. Quando chegou no fim do ano, recebi a notícia de que tinha sido
reprovado. Aquilo me chocou. Na verdade, ninguém da turma ia para a
111
primeira série, mas no meu caso, a minha família correu atrás e eu estudei
com a professora Selma durante as férias. Na volta, fiz novas provas e
passei." (ENTREVISTADOMARLON, 2015).
Aqui, cabe uma informação sobre o processo de alfabetização da criança
cega. Como o Sistema Braille exige uma grande orientação espacial, boa noção de
lateralidade e precisão, sobretudo na escrita, pois a letra tem um tamanho padrão,
não podendo ultrapassar o espaço da cela Braille, é exigido de quem está em
processo de alfabetização o desenvolvimento dessas habilidades que ainda estão
em formação nas crianças. Por isso é bastante corrente que crianças cegas passem
mais de um ano nas classes de alfabetização, não significando isto um
atraso.Algumas podem alfabetizar-se em um ano, mas não é considerado atraso
olfato de a criança precisar de mais tempo nesta fase. O que Marlon chama de
reprovação refere-se exatamente a esta prática, aceitável para os estudiosos da
alfabetização de crianças cegas, porém não aceita pela família do sujeito.
Como houve a busca por parte da família de outro recurso, a instituição
acabou por conceder apenas a ele, segundo seu próprio relato, a oportunidade de
fazer a prova de um nível de escrita que ainda não lhe havia sido transmitido, com
fonemas e dificuldades da língua ainda não transmitido, tanto que ele precisou
estudar nas férias para preparar-se. No ano letivo regular, ele havia sido aprovado
para cursar o nível seguinte da alfabetização. Com a prova feita em março do ano
seguinte, ele foi aprovado para a antiga primeira série.
Chamamos a atenção para o regime de exceção concedido pela escola ao
aluno, já que ele mesmo diz que toda a turma estava na mesma situação, porém
ele teve a oportunidade de preparar-se para fazer nova prova e seguir para a
primeira série.
Esta situação pode gerar no indivíduo a perspectiva de ser sempre a
exceção, o protegido, aquele que poderá agir de acordo com regras criadas apenas
para ele, sem a necessidade de cumprir com aquilo que todo o grupo deve
cumprir, mesmo que não haja uma razão concreta para o não cumprimento dessas
regras. No caso em questão o aluno estava em condições de igualdade com os
outros alunos e não haveria razão para que não fosse submetido ao mesmo regime.
112
4.2. Compreensão da condição de pessoa cega
A consciência da cegueira, bem como o momento e a forma como
essa consciência é adquirida variam, uma vez que diverso também é o que cada
grupo dentro de uma sociedade maior entende por indivíduo cego. As
consequências de se assumir esse lugar são vistas de formas distintas e
transmitidas distintamente através das gerações. Se há outros cegos na família ou
se os indivíduos nunca lidaram com a cegueira isso terá implicações no tomar
dessa consciência.
Os extratos de entrevistas a seguir serão comentados com vistas a se
fazer inferências sobre essa consciência e a forma e a forma como ela é adquirida.
MARÍLIA:"Uma vez, todos nós ganhamos aqueles quites de fazer bolinha de
sabão. Eu comecei a achar aquilo muito chato e fui falar com a minha mãe que aquela brincadeira era muito chata porque eu não estava vendo as bolinhas.
Minha mãe me deu uma bronca.
- Não repita isso de que você não pode ver. Você é igual aos seus
irmãos. Pode fazer tudo o que eles fazem.Meus pais não tinham nenhuma informação de como lidar com uma criança como eu e achavam que negar era
o melhor caminho. Quando bem criança, a gente não tem noção de como as
coisas realmente são.Eu achava que todo mundo via com a mão feito eu até meus cinco seis anos. Não acredito que uma criança nesta idade tenha
consciência de que não enxerga. (ENTREVISTADO MARÍLIA, 2015).
AROLDO: "Desde os meus quatro anos eu entendia, na medida em que isso
pode ser entendido por uma criança de quatro anos, que eu tinha uma situação de desvantagem. As maneiras admiradas como as pessoas se referiam à minha
cegueira perguntando se era verdade que eu não via nada mesmo e outras
coisas do gênero me faziam notar que algo em mim era, no mínimo,diferente, embora eu convivesse com quatro cegos adultos." (ENTREVISTADO
AROLDO, 2015).
Dentre todos os entrevistados, são estes os que demonstram mais
atenção à questão da percepção da cegueira desde criança. Os outros informantes
não abordam este fato como algo importante, como se isto tivesse acontecido sem
que eles se dessem conta de como ocorreu. Por exemplo, a citação de X
supramencionada guarda continuidade com o que diz em outro momento da
entrevista, quando se reporta a um convite feito para assistir um filme mudo:
MARÍLIA: "Era uma coisa estranha. Um grupo de meninas, irmãs, primas,
ia ao cinema, mas era para ver um filme que era mudo e eu falei que não ia
porque aquilo não tinha graça para mim. Isso eu já adolescente. Minha mãe argumentou:
‘Você tem que ir. Você tem que estar com as outras da sua idade.
113
Todo mundo falava.Eu achava aquilo uma chatice porque estar com as
outras era legal,mas para participar de um programa que fosse divertido
para mim também.As pessoas acham que basta estar junto para estar
incluído e não tem nada a ver." (ENTREVISTADO MARÍLIA, 2015).
A negação da cegueira pode trazer dificuldades para que o indivíduo
compreenda sua condição de pessoa cega. No caso de Aroldo, apesar de conviver
diariamente com pessoas cegas, ele sabia que havia algo diferente nele, alguma
marca, alguma coisa que o diferençava das demais pessoas.
Os relatos de dois outros informantes merecem destaque pois tiveram
condições de acompanhar o processo que as tornou cegas.
Marlon: "Eu fiz o Jardim em uma escola perto da minha casa, porque então
eu enxergava. Depois veio o acidente e eu fiquei cego. Fiquei um tempo
sem estudar porque meus pais não sabiam o que fazer comigo e porque fiquei um tempo hospitalizado também. Então, ficamos sabendo do IBC e
meus paisme trouxeram para cá e as coisas foram-se desenvolvendo."
(ENTREVISTADO MARLON, 2015). Gilmara: "Eu tinha seis anos quando comecei a ter um problema muito
sério que ninguém descobria o que era. Eu desmaiava, passava muito mal,
estava definhando até que chegou um ponto em que eu só andava no colo.
Um dia,uma pessoa amiga disse que conheceu um caso semelhante e que parecia que eu estava tendo um problema neurológico. Veio a procura
pelos neurologistas e descobriu-se um tumor no cérebro. Foi feita a
cirurgia e após ela, fui me restabelecendo, mas a visão eu perdi em consequência da cirurgia." (ENTREVISTADO GILMARA, 2015).
Nestes dois casos, a cegueira veio quando os indivíduos já tinham
contato com o mundo visual e eles tiveram de acompanhar todo o processo de
aceitação da sua nova condição junto às famílias, além do seu próprio processo de
aceitação e adaptação.
Marlon narra um processo mais leve onde não se fala em traumas ou
sofrimento. Gilmara faz uma narrativa de anos de busca de cura junto a todos os
tipos de médico, embora frize que durante todo esse período, até mesmo por
orientação médica, a família empenhava-se por lhe oferecer excelente qualidade
de vida e por ensinar-lhe tudo o que fosse possível através da audição e do tato, a
fim de que houvesse o mínimo de prejuízo neste quesito. Mas destaca a
participação específica do médico que indicou à sua família o IBC, dizendo:
"Então, cheguei com minha família a um médico que me deu o que chamo
de "minha primeira aula de lealdade."Após me examinar, ele me sentou e
disse à minha mãe que daria o diagnóstico na minha frente e falou que para o meu caso, na época, a medicina não tinha uma solução.
- Você vai ter que fazer sua vida dentro das condições que você tem e pode
fazer isso muito bem’. ele disse. E “nos indicou o Instituto Benjamin Constant.” (ENTREVISTADO GILMARA, 2015).
114
Após anos de preocupação com a cura, um profissional orientou a
família a buscar o melhor caminho para que o indivíduo cego compreendesse sua
condição e se desenvolvesse dentro dela. Isso foi importante para o professor
entrevistado, pois lhe deu a oportunidade de descobrir que havia outros na mesma
situação que ele, de interagir com outros cegos, e de aprender e crescer em outros
espaços que não o da sua casa.
Além das quatro falas já destacada, observa-se na fala de 12 dos
professores que a percepção da cegueira foi um processo que não sabem descrever
como ocorreu, com expressões como: "Acho que sempre soube." ou "Sei lá. Não
precisei que ninguém me dissesse que eu era cego. Simplesmente entendi isso".
Simplesmente, sabiam que eram cegos. No caso de dois desses doze professores já
havia cegos na família, e com os outros dez a família foi informada ao nascer da
criança sobre a cegueira. Em um caso, o problema visual só foi descoberto na
adolescência e a cegueira completa só chegou na juventude.
Pode-se depreender que para a maior parte dos membros do grupo
pesquisado a cegueira foi algo que entrou em suas vidas sem que eles
percebessem. Em alguns casos, mesmo que tenha sido possível ao indivíduo
acompanhar o processo de perda da visão, isto não se constituiu em uma
“tragédia” apenas um dos informantes sinaliza grande dificuldade com a aceitação
desta característica falando nisto textualmente.
Embora a maioria dos entrevistados não tenha dado maior destaque ao
processo de conscientização sobre a sua cegueira, consideramos importante
apresentar casos em que o próprio indivíduo, de alguma forma, o acompanhou
gradativamente. Vale notar também o fato de que, no caso das falas de Aroldo e
Marília, as ideias são justamente opostas:em uma delas, o entrevistado afirma que
já sabia que havia algo diferente do padrão socialmente aceito ou esperado, ao
passo que no outro o entrevistado afirma que não tinha consciência de que sua
condição era diferente da dos demais e não acredita que qualquer criança possa
perceber as suas condições de forma diferente disso.
Disso se depreende o que tende a ocorrer quando a condição do
indivíduo é negada e quando não é. No caso de Marília, a família nega a cegueira
e procura criar no indivíduo cego a ideia de que aquela cegueira não existe. No
entanto, o sujeito não fala sobre como era a relação dele com outros indivíduos
115
videntes que não fossem da família.No caso de Aroldo, ele mesmo nos informa de
que esta relação com pessoas que perguntavam sobre sua cegueira o faziam notar
que havia algo naquele que era diferente da maioria das pessoas ou do padrão
esperado.
O fato de conviver estreitamente com cegos adultos não tirou de Aroldo
a possibilidade de compreender sua condição, conforme seu desenvolvimento e
maturidade permitiam, já que é cego congênito. Ele não estava isolado entre
cegos, mas, sim, convivendo diariamente com cegos entendo contato com
videntes. De fato, ele mesmo revela na entrevista que passava férias na casa da
avó no interior e lá não havia outras pessoas cegas.
Na casa onde ele vivia, havia uma empregada que também não era cega.
Assim ele foi ganhando consciência de suas condições físicas e, ao mesmo tempo,
aprendendo como viver dentro de uma cultura cega, isto é, como os indivíduos
cegos agiam diante de situações em que precisariam de uma visão que não
possuíam.
No caso de Marília não houve nem a convivência nem a aceitação. A
hora de entrar para a escola foi, segundo ela, o momento da descoberta, do
entendimento da real situação e, ao mesmo tempo, o momento em que o estigma
apareceu com força, conforme se observará em outros trechos da entrevista, já que
não havia uma estrutura de apoio ao aluno com deficiência.
Tomando por base alguns detalhes observados nos discursos desses dois
sujeitos (Aroldo e Marília) pode-se perceber que Aroldo utiliza frequentemente, o
termo cego, enquanto Marília o evita. Situações semelhantes a vivida por Marília
aparecem no IBC quando ocorre de os pais ao matricularem seus filhos de cinco
ou seis anos pedirem que evite-se usar o termo cego ou falar que eles não
enxergam pois em casa estão habituados a pensar que todos enxergam como eles.
Neste caso, a instituição deixa claro que iniciará um trabalho com o
aluno para que ele se reconheça como um indivíduo cego, o que, por vezes, traz
problemas com a família. Existem, no entanto, aquelas que até agradecem e
solicitam à escola que faça o trabalho que eles não têm coragem de fazer.
4.3. O indivíduo cego e outros cegos
116
Nesta parte serão apresentados extratos que mostram a percepção que os
indivíduos cegos que atuaram como informantes nesta pesquisa têm ou tiveram
em algum período, em relação a outros cegos. Poder-se-á depreender daí, se estas
percepções trazem indícios de preconceito com relação a outros cegos, de cegos
apresentando possíveis consequências deste preconceito.
Rafael: "Perto da minha casa eu brincava sem medo porque eu morava numa rua sem saída e por ali quase não passava carro e sempre tinha
alguém para avisar se tivesse perigo. Eu passei a ter medo logo que entrei
aqui porque todo mundo gostava muito de correr e eu achava que iam me derrubar e me machucar." (ENTREVISTADO RAFAEL, 2015).
Andréia: "Meus pais eram cegos, tinha outros cegos na minha família. Eu
ia no IBC porque a minha mãe trabalhava lá. Então eu acho que por isso não senti tanto a perda da visão. Eu sabia que isso ia acontecer um dia.Era
questão de tempo. Já estava no Benjamin..."
"Acho que sempre quis ser professora. Minha mãe era professora e eu brincava de dar aula feito ela. Me lembro que com minha primeira turma
eu me apoiava do que tinha aprendido com a Ignez e a tia Dulce. As duas
eram cegas, tinham sido minhas professoras e eu queria ser como elas. A influência permaneceu, mas com o tempo, fui dando minha própria cara às
minhas aulas." (ENTREVISTADO ANDRÉIA, 2015).
Marlon: "Olha, eu aqui dentro só tive dois professores videntes: o seu
Antônio dos Santos em OSPB e a Marieta em Geografia. O resto foi tudo cego. É claro que aí não incluo os de Educação Física. Acho que tive uma
excelente preparação e fica até difícil comparar porque, no caso, os cegos
foram maioria. Mas como antes eu não convivia com nenhum cego, acho que isso me fez aprender muito além da sala de aula. Não tenho o que
questionar da minha formação aqui." (ENTREVISTADO MARLON,
2015).
Gilmara: "às vezes, quando a gente fala, não é preconceito e as pessoas interpretam errado. Não é que eu não queira que as pessoas cegas tenham
as profissões que escolhem, mas acho que existe uma diferença entre
direito e conveniência. Não vejo sentido em uma pessoa cega estudar engenharia química, por exemplo. Ela não poderá sequer realizar todas as
atividades sem alguém que entenda do assunto juntoa a ela e muito menos
exercer a profissão. A lei dá o direito e o bom senso deveria avaliar a conveniência disso." (ENTREVISTADO GILMARA, 2015).
Magali: "Bem a professora que me trouxe para o Instituto era cega;logo
que eu cheguei, meu primeiro professor era cego. Ele percebeu que eu
aprendia rápido porque tinha uma noção oral de alfabetização, quer dizer, eu sabia que b com a fazia-la, que o h era uma letra sem fonema.
Só precisava aprender o Braille e as dificuldades da língua. Então começou
a investir mais em mim e me acelerar. Acho que estas duas pessoas foram importantes para me fazer continuar porque eu sentia muita saudade de
casa, mas eu pensava: "Eles estão aqui trabalhando levando a vida deles.
Se eu voltar pra casa, o que é que eu vou fazer lá?Eu já estava fazendo muitos amigos também. Muita gente que, como eu, tinha vindo de longe e
estava longe de casa.” (ENTREVISTADO MAGALI, 2015).
117
Os trechos em destaque referem-se à maneira como os entrevistados
avaliam a presença de outras pessoas cegas ao seu redor e na sociedade em
geral.Pode-se nelas perceber o indivíduo cego como modelo de outros indivíduos
cegos (MAGALI; ANDRÉIA, 2015), a importância do primeiro contato com
indivíduos cegos para a criança cega (Marlon), a insegurança diante de outros
indivíduos cegos gerada pela falta do contato com estes indivíduos (RAFAEL,
2015) e o questionamento sobre a admissão do limite ou a colocação de limites
preconcebidos (GILMARA, 2015).
A percepção do cego adulto como modelo é bastante presente nas
entrevistas, já que dos 17 entrevistados, dez citam como professores que os
marcaram positivamente professores cegos, e outros quatro mencionam pelo
menos um professor cego como influência importante em sua história devida.
Entre os mesmos dez que citaram professores cegos como presenças positivas,
dois também citaram algum professor cego como influência negativa; isto é, para
estes entrevistados, professores cegos os influenciaram tanto positiva quanto
negativamente na sua trajetória acadêmica. O importante, entretanto, é frisar o
protagonismo da influência de um professor cego sobre um aluno cego,
independentemente do caráter específico desta influência.
Vale ressaltar ainda que esse destaque negativo não tem vinculação
com a cegueira, mas com outros aspectos do professor, como mostra a citação
abaixo do professor Vanderley:
Ele era o terror de toda a minha turma porque ele tinha prazer em dar dever
para o fim de semana numa quantidade absurda. Era uma aluna interessada, mas o que ele fazia era quase sádico. Ele fazia questão de nos humilhar e o
dia da aula dele já era um dia de passar mal. (ENTREVISTADO ANDRÉIA,
2015).
Neste caso, a presença do professor não foi negativa por qualquer
vinculação com a cegueira, mas pela sua postura, destacada pelo informante como
mantenedora de um autoritarismo desnecessário.
Um dos entrevistados, que não foi aluno do IBC, destaca a importância
do professor cego em sua trajetória em dois episódios: quando aborda a sua
necessidade de desenvolver-se em matemática, já que é uma matéria que se baseia
muito na visão, e quando da sua entrada para o Instituto como professor. Ele
declara em dois momentos distintos da entrevista:Era muito complicado estudar
118
matemática porque eu não conseguia acompanhar o que os professores estavam
fazendo. Então o Paulino, marido da Luzia, ele já morreu, ele não era professor de
matemática, mas sabia a matéria muito bem e me ajudou à beça. A bem da
verdade foi ele quem me ensinou e não os professores da escola.Quando eu passei
no concurso, expliquei logo ao Ancelmo que não tinha nenhuma experiência com
criança cega embora eu fosse cega. Não conhecia as técnicas, a didática para o
trabalho, porque nunca tinha trabalhado no Benjamin nem feito cursos lá. Então
ele conversou com a Ignez, de quem eu já tinha ficado amiga, e nos seis primeiros
meses eu fiz uma espécie de estágio na turma dela. Depois, tive minha própria
turma, mas sempre com a sala do lado da dela, o que me ajudou muito porque ela
me dava muitas dicas.
Os professores Paulino e Ignez, citados nos trechos acima
são,evidentemente, cegos, e no dizer do entrevistado, contribuíram de maneira
muito significativa em sua trajetória. Dentre os17 entrevistados, três destacaram
também professores videntescomo referências positivas em suas vidas dentro do
Instituto e dois destacaram professores videntes como presenças positivas fora
dele.
A interpretação da diferença na quantidade de professores que destacam
a presença de professores cegos e a de professores que destacam a presença de
professores videntes como positivas em suas vidas requer algumas informações
importantes. A maioria dos entrevistados (14) fez todo o seu Ensino Fundamental
no IBC, onde, durante muito tempo, os professores cegos foram maioria.
Justamente por pretender compreender a percepção do cego adulto do preconceito
e por buscar a opinião de outros cegos, as perguntas da entrevista realizada
voltavam-se para saber que professores haviam marcado os sujeitos enquanto
eram alunos do IBC, já que este era o campo de pesquisa. Houve, no entanto,
entrevistados que quiseram dar destaque positivo a mais de um professor dentro
da instituição, e houve também aqueles que não estudaram lá mas citaram, ao falar
de suas experiências fora dela, um professor que também foi importante em suas
trajetórias.
Contudo, a mera quantidade de entrevistados que se referem aos
professores cegos como pessoas importantes em sua trajetória mostram o peso da
presença de alguém com as mesmas características para que se desenvolvessem.
119
Ao mencionar que queria ser como as professoras Ignez e Dulce, que também
eram cegas, professora Andréia estão se referindo aos modelos quea dotou para
sua trajetória profissional e isto envolve as condutas dessas professoras. De
maneira semelhante, ao apontar que teve como primeiro professor um cego e que
a professora que a trouxe para estudar era cega, professora Magali os utiliza como
estímulo para uma trajetória que considera ter sido difícil em termos sentimentais,
pois sentia saudades de casa ao mesmo tempo que sabia que, se retornasse, não
teria estrutura e recursos para continuar seu desenvolvimento acadêmico a fim de
atingir sua independência financeira, como seus modelos já haviam atingido.
Retomando a fala de professor Rafael, pode-se observar uma situação
em que este sujeito se sentia mais protegido na presença de videntes, tendo, no
princípio, receio da presença de crianças cegas como ele. Ele não considerava a
possibilidade de ele machucar um colega, apenas o contrário. Ele se colocava em
uma posição de maior vulnerabilidade do que as demais crianças. Embora fossem
todos do mesmo tamanho e idade. O fato de ser, como se apurou pela entrevista, a
única pessoa cega em sua família de origem colocou-o num ambiente de maior
proteção, já que o próprio entrevistado diz que alguém sempre avisava se
houvesse perigo enquanto brincava. Isto fez com que sua chegada a uma
instituição especializada trouxesse muitas situações inesperadas, uma vez que até
ali,conforme seu próprio relato, nunca havia sido privado do contato com outras
crianças cegas.
Situações semelhantes são reveladas pelos alunos no que toca casos de
maior proteção na instituição, como no que se apresenta a seguir:
"Eu prefiro ficar com a minha mãe na hora do recreio porque às vezes,
vem uma criança correndo e me machuca. Lá, eu brinco só com os meus amigos
e nossas mães estão perto."(DEPOIMENTO OBSERVADO DE CRISTIANE,
2015).
A fala de C remete ao mesmo receio apontado por Rafael quando da
sua entrada para a escola. O fato de que C tem a oportunidade de ficar com sua
mãe na hora do intervalo, já que hoje o IBC possui um espaço para que as mães
aguardem seus filhos até a hora do término das atividades – devido à distância
da residência da maior parte das famílias e ao fato de a instituição, atualmente,
atender também a alunos com outras deficiências associadas à cegueira. C é
apenas uma criança cega, não havendo, a princípio, outras limitações ou
120
comprometimentos que a tornem mais vulnerável do que os demais. Entretanto
apresenta receio de brincar livremente com outras crianças como ela preferindo
estar no espaço reservado às mães onde outras crianças também ficam o que
mostra ser esta uma prática de algumas famílias. Ali sua mãe não permitirá que
nenhum acidente lhe aconteça, nem as mães dos demais colegas.
Embora a instituição demonstre não ser favorável a esta prática da
presença dos alunos no espaço reservado aos pais durante o horário das
atividades da escola, não consegue ainda inibir este costume, o que acaba por
afastar alguns alunos do contato com outras crianças como eles, sem a presença
das famílias, o que pode ser considerado superproteção. O contato no pátio da
escola poderia incentivá-los a descobrir as soluções para seus problemas, a
aprender com colegas novas brincadeiras, a defenderem-se sozinhos e a buscar
as ajudas adequadas (inspetores e autoridades escolares) para resolver
problemas.
É evidente que a família é importante na vida de qualquer indivíduo.
No entanto, por suas características peculiares e por não haver outra escola
similar, o IBC recebe crianças de muitos lugares diferentes. Assim, aqueles
familiares que trazem seus filhos e não os deixam internos, se não trabalharem,
podem optar por permanecer na escola aguardando a saída das crianças. Esta
situação tão peculiar provoca um imbricamento entre o espaço da família e o
espaço da escola na existência da criança cega. No caso de Rafael, ao chegar na
escola, tornou-se aluno interno e não teve, portanto, a presença da família.
Como ele mesmo infere isto fez com quem modificasse sua postura e não se
fechasse ao contato com as demais crianças.
Quando se nota uma situação em que o contato com outras crianças
cegas longe da presença da família é evitado, pode-se percebera presença do
preconceito e do estigma. Isto está patente na própria fala de Cristiane, que
revela ter medo que outra criança cega a machuque. A premissa silenciosa que
subjaz essas instâncias de proteção é a de que o cego é um centro de risco, tanto
para si próprio quanto para os outros, e que machucar e se machucar não é
apenas possíveis, mas muito provável
121
4.4. Situações de preconceito vivenciadas
As situações apresentadas pelos informantes foram trazidas quando
asperguntas sequer versavam sobre o preconceito. Assuntos como: entrada
naescola, procura de emprego trouxeram à baila quadros que
denotavampreconceito e que o informante fazia questão de relatar, por
considerarmarcante, o que mostra o quão marcante é o preconceito na
trajetóriadesses indivíduos.
Valcir: "Quando meus pais resolveram vir para o Brasil, não tiveram
autorização para me trazer. A cegueira era considerada doença e eu não
podia entrar. Tive de ficar em Portugal com meus tios. Só alguns anos depois é que eu vim. O caso da Ignez foi um pouco diferente do meu
porque como a família dela só descobriu a dificuldade já aqui, na hora de
desembarcar, o episódio gerou comoção nacional e até o João Goulart
entrou na história; e aí resolveu rápido. Mas comigo não foi assim." (ENTREVISTADO VALCIR, 2015)13
Observa-se, neste caso, de maneira bem concreta, o que Costa (2001)
sinaliza em seu trabalho: a questão da medicalização da cegueira e o quanto esta
medicalização, em outros tempos, trouxe situações até mesmo de separação dos
indivíduos cegos de suas famílias. Nas palavras do autor, "tradicionalmente, o
indivíduo desviante tem sido encarado a partir de uma perspectiva médica
preocupada em distinguir o "são" do "não são" ou "insano" (COSTA, 2001, p.4).
Fica assim evidente a preocupação, em primeiro lugar, em classificar as pessoas,
e depois educá-las. O indivíduo em questão não poderia entrar em terras
brasileiras, pois além do risco de doenças, segundo as autoridades da época,
havia outro problema: quem seria o responsável pelo indivíduo cego? Ele não
podia ser responsabilidade do Estado (suposição de que o indivíduo cego será
um eterno tutelado).
O pensamento comum de que a cegueira estivesse sempre vinculada a
doenças contagiosas provocava este tipo de comportamento, que chegavam às
13Tanto na época da vinda de P. 8 (aproximadamente 1957) como na época da colega que ele
cita (1961) a cegueira estava mais ligada à área médica e daí a necessidade do afastamento e
impedimento da entrada das duas crianças. No caso da outra professora, que não está entre
nossos entrevistados, a família só soube da impossibilidade de ficar com a menina, então com
8 anos, em Pernambuco quando ia desembarcar. O fato de uma menina cega tão pequena ter
sido deixada em terra estranha, num hospital sem parentes para ser vigiada até que se
resolvesse o caso, causou certa comoção e óbvia piedade, fazendo com que a situação fosse
resolvida com mais presteza.
122
restrições legais, sem uma avaliação real do caso, fazendo, assim, com que
crianças fossem separadas de seus pais. É uma evidência significativa de como
a cegueira e o indivíduo cego eram vistos. A ênfase institucional estava como
vimos, na questão médica, como na possível associação a uma doença, por
exemplo. A preocupação com o desenvolvimento daquela criança não era a
prioridade, mas uma questão subsidiária. No caso de Valcir, a criança, que era
portuguesa, permaneceu em Portugal enquanto os pais vieram tentar a sorte no
Brasil, só podendo trazer o filho anos depois, quando já estavam estabelecidos.
Outro aspecto que pode denotar preconceito está relacionado à
capacidade do indivíduo cego. As situações em que a despeito de o indivíduo
cego provar sua capacidade para a execução de uma tarefa, ela é questionada,
como no exemplo a seguir:
Leia: "A gente chega para dar curso nos lugares e o pessoal pergunta se o
Benjamin mandou a gente para dar ou para fazer o curso. Não é sempre,
mas já me aconteceu. E os caras ficam perguntando:- Mas como é que você vai fazer para dominar a turma se são todos videntes?
(ENTREVISTADO LEIA, 2015).
E uma semana depois o curso termina você conseguiu bom resultado
com a turma e ainda tem alguém que pergunta:- Foi ela mesma quem deu o
curso ou veio outra pessoa?"A fala da professora Leia mostra uma situação em
que um professor cego, apesar de ter demonstrado domínio não só dos
conteúdos que deve ministrar mas também de como fazê-lo, ainda assim tem a
sua capacidade posta em dúvida. Leva-se muito tempo para se construir
conceitos. Por isso tem-se tanta dificuldade em desconstruí-los. Os preconceitos
fazem parte deste conjunto que se constrói internamente.
Nota-se que o professor em questão não desiste de seu trabalho por
isso, já que em outros pontos da entrevista ele mantém que
Leia: “o preconceito dói, mas vai doendo menos conforme a gente vai se firmando e lutando contra. (...) A gente não pode desistir quando sabe que
é capaz de fazer algo, de ser independente. Mas é fato que a gente precisa
mostrar nossa capacidade a cada passo por mais que o nosso currículo fale
por nós porque sempre tem alguém para contestar mesmo que seja com argumentos vazios. (ENTREVISTADO LEIA, 2015).
O professor percebe o trabalho de desconstrução do preconceito como
algo constante e que deve ser feito coletivamente pelas pessoas cegas, pois
sempre coloca tudo no plural.Além disso, há outro aspecto a se destacar na fala
desse professor sobre o fato de os alunos do curso ser videntes. A pessoa que
123
questionou a capacidade de Leia em dominar a turma por serem todos videntes
parece supor que se os alunos fossem cegos teria sido mais fácil regulá-los,
apontando para uma concepção dos indivíduos cegos como mais dóceis e
passivos do que indivíduos videntes.
Durante a pesquisa de campo, pude observar que muitos visitantes que
vêm à escola (IBC) pela primeira vez se admiram do que vêem, tipicamente
dizendo algo como:"Eu pensei que eles fossem mais quietinhos.". Isso ocorre
porque lá se vê, constantemente, os alunos correndo, gritando, pulando,
chamando uns aos outros, batucando nas horas de intervalo e, por vezes, até em
horário de aula, conforme a atividade que esteja sendo realizada ou a capacidade
de manejo de turma do professor, o que aconteceria em qualquer espaço escolar.
Por que a criança cega seria mais quieta do que as crianças videntes?
O prazer pelo barulho, a energia, o gosto pelas atividades que exigem
movimento é de qualquer criança. Estas características não têm relação com a
cegueira e sim com características individuais, não se justificando, portanto, que
o fato de não ver faça com que alguém seja mais ou menos agitado.
Nos dados coletados pode-se encontrar também situações em que o
indivíduo cego sequer teve a oportunidade de demonstrar sua capacidade.
Atitudes que podem ser interpretadas como superprotetoras aparecem e nem
sempre o indivíduo cego tem como reagir contra elas ou estar disposto a fazê-lo.
Vejamos a citação abaixo:
Marlon: "Na faculdade, chegou a acontecer também de haver
professores que diziam:“- Não tem como te avaliar, mas eu te dou uma nota.“E
era isso.” (ENTREVISTADO MARLON, 2015).
A situação aqui apresentada mostra outra faceta do preconceito.Um
certo viés de superproteção. Como não se acredita na capacidade do indivíduo
de executar certa tarefa ainda que com adaptações, opta-se por liberá-lo da
tarefa, porém dando-lhe uma nota, pois não se vai impedir o indivíduo de seguir,
ou seja, "não tenho como avaliar sua capacidade, mas vou atestar para todos que
você é capaz".
A situação observada no item 4.1 quando a informante Andreia fala de
seu incomodo em ser “café com leite” reaparece de alguma forma nesta citação
de Marlon. A diferença é que neste caso a situação protegida é proporcionada
por um professor. Depreende-se daí que em qualquer ambiente ela poderá
124
aparecer, estando presente em todos os níveis da sociedade, o que explica
porque as crianças amigas de Andreia (4.1) têm este comportamento.
Não há na situação exposta por Marlon nem por parte do professor e
nem da parte do indivíduo cego o empenho em solucionar o problema, buscando
talvez outras pessoas que já tivessem vivido a experiência para que elas
apresentassem propostas para solucionar a situação. Quando Marlon diz"Era
isso", está dizendo que aceitou a situação sem maiores contestações, sem buscar
uma alternativa que permitisse ser avaliado.Aceitou que não havia como avaliá-
lo em determinado tema. Quando o professor afirma que não há como avaliá-lo
ao invés de perguntar se haveria um modo de avaliá-lo, está decretando que o
sujeito não pode expressar seu conhecimento naquela área.
Vejamos este outro exemplo em que o indivíduo cego adotou postura
diferente.
Magali:"Então eu perguntei uma porção de vezes: - Professor, como vai ser a minha prova? Será com o senhor mesmo ou
com alguém da secretaria?
Ele sempre me dizia que ia ver isso depois. Chegou o dia da prova e ele me chamou e disse:
- Olha, minha filha, vamos fazer assim: você repete esta matéria para eu
ver uma forma de te avaliar no outro período. Pulei na hora:
- Ah não, professor! Eu estudei, assisti às aulas li os textos, estou
preparada para fazer a prova e o senhor não pode fazer isso. Todos os
professores estão me dando as avaliações e eu vou fazer a sua também. - E se você for para a final?
- Todo mundo não tem direito de fazer final? Se minha nota não for boa e
eu tiver que ir para a final, vou exercer meu direito de fazer final. Ele marcou a prova que fiz com ele mesmo. Estava muito bem preparada e
sabia que passaria direto. Foi o que aconteceu."
"Logo que começamos o normal, eu e outra colega do Benjamin, no
primeiro trabalho de grupo a gente ficou sem grupo. Todo mundo deu desculpa e a gente teve que fazer o trabalho sozinhas.
- Vamos pesquisar e fazer nosso trabalho. -- eu disse a ela. Corremos atrás.
Os ledores14 da biblioteca nos ajudaram. Apresentamos nosso trabalho lá na frente para a turma toda. Depois disso, foi fácil conseguir colega para
fazer trabalho. Modéstia à parte, estava muito bom. Com “justiça, nossa
nota foi maior do que a de alguns outros e ninguém protestou (risos).”(ENTREVISTA MAGALI, 2015).
No primeiro caso narrado por Magali, o professor queria protelar o
problema já que não encontrava solução para ele. Julgava não haver problema
em que a aluna repetisse um período, sem atinar para o fato de que aquilo não
estava previsto em nenhuma instituição. Não havia motivos suficientes e
14 Pessoa habitualmente voluntária que lê ou grava textos para pessoas cegas.
125
bastantes para impedir a aluna de fazer prova. Já a aluna entendeu que não
deveria deixar que a situação fosse resolvida sem sua participação e contrapôs-
se ao professor, deixando claro que não queria simplesmente a nota sem uma
avaliação, reivindicando tão somente os mesmos direitos dos seus colegas.
Deixou claro que se era um direito seu fazer a prova final, ela também poderia
exercer esse direito.
Nota-se o empenho da aluna cega em corresponder ao que se espera
de qualquer aluno quando diz: "Eu assisti às aulas, eu li os textos, estou
preparada".Ou seja, ela fez o que deveria ser feito e esperava agora o direito a
ser avaliada em igualdade de condições. Segundo o seu relato, em nenhum
momento ocorreu ao professor perguntar à própria aluna como aconteciam, de
hábito, suas avaliações ou saber através de algum colega como contornava
aquela situação.
O segundo episódio, reportado acima por Magali,revela uma
situação em que o estigma se faz presente ostensivamente e gera o preconceito,
tais como o definiram no capítulo 3. Se forem cegas, seriam menos capazes,não
poderiam colaborar, vão querer "encostar" no grupo. Neste caso,ninguém quis
fazer o trabalho com elas para não ter que fazer por elas,pois era isso o que a
turma achava que iria acontecer.
Ela e a colega tiveram de mostrar que eram capazes, que poderiam
colaborar no grupo em que estivessem. Neste caso, demonstrar capacidade fez
com que a turma percebesse que tinha uma ideia infundada sobre as alunas e
que passasse a aceitá-las em grupos.
Pode ainda ocorrer de o indivíduo aguardar que a solução para a
transposição de obstáculos parte de outros, considerando um compromisso da
sociedade fazer de tudo para acolhê-lo sem que ele precise manifestar-se
apresentando suas necessidades e questionamentos. Observemos a seguir a fala:
Laila:" Lá só tive problema com um professor de Física que explicava
todos os esquemas no quadro sem se importar se eu estava acompanhando. "Mas você não se colocou para ele?"
"Ué, ele não sabia que eu estava ali? Eu simplesmente, no dia da prova
perguntei como eu ia fazer prova se não tinha tido aula? A partir dali, passei a receber até apoio dele no contra turno." (ENTREVISTADO
LAILA, 2015).
Neste caso, a reação do sujeito foi esperar que o professor se
interessasse em ajudá-lo passivamente. Ele supunha que, como o professor tinha
126
consciência de sua presença, devia ter se aproximado, mas não o buscou em
momento alguma essa aproximação.
Na hora da avaliação, porém, Laila teve de mostrar-se e aguardar um
posicionamento do professor que, neste caso, optou por mudar de atitude e
receber o indivíduo cego como aluno.
Clarice: "Só um professor criou problemas para nós porque como a matéria exigia muitos gráficos a gente pediu que ele soltasse o material
antes da aula para dar tempo de alguém adaptar para a gente. Ele dizia que
só dava o material no dia da aula. Mas nós éramos sete e fomos lá na coordenação explicar nossas razões. A gente não queria proteção, não
queria resposta de questão, só ter condição de estudar. O material passou a
vir direitinho para nossa mão antes da data." (ENTREVISTADO
CLARICE, 2015).
Algumas situações exigem que aquele que sofre o preconceito, ou
seja,submetido a uma situação marcada pelo estigma ou procure outros canais
de escuta. Bartolo (2007) com base em Martin Buber apresenta uma
característica da relação humana que nos é relevante aqui. Para Martin Buber, “a
vida humana é relação. O ente não é relaciona-se Ele existe na relação como um
eu que se relaciona com um tu, ou como um eu que se relaciona com um isso".
(BARTOLO, 2007, p.41). De acordo com Bartolo, tendemos a ter dois tipos de
relações humanas: uma em que o outro importa, pois ele é um indivíduo com
necessidades e características próprias como eu; e outro em que o outro
é"qualquer coisa", não importando suas necessidades e peculiaridades.Vale
sempre que eu continue sem precisar mudar minha maneira de agir,não
importando as necessidades de quem está à minha volta.
Embora pareça reduzido demais classificar as relações entre
indivíduos em apenas dois tipos, pois há muitos tipos de relações de
convivência, para algumas certas abordagens esta classificação pode esclarecer
algumas atitudes. Nem sempre estamos prontos para observar as necessidades
do outro e isto ficou patente no caso em questão, tanto que o grupo de
estudantes cegos não voltou a ter problemas com o mesmo professor.
No caso apresentado por Clarice, o professor não estava preocupado
com seus alunos, apenas em manter uma posição que, na verdade, não estava
sendo questionada. Como foi dito pelo próprio sujeito, os alunos não queriam
facilidade para obter nota, apenas ter acesso ao material para estudar.
127
Muitas situações de exclusão podem vir dessa dificuldade de escutadas
necessidades do outro, desse modo de vida que, segundo Bartolo (2007),cresce
exponencialmente em nossa sociedade.
Marília: "Não faltava, na escola gente para me levar para o pátio na hora do recreio, ou para ditar alguma coisa na sala. Mas, chegando no pátio, eu
ficava num canto sentada sozinha. Então ninguém te convida paraas
brincadeiras, para os papos." (ENTREVISTADO MARÍLIA, 2015).
No caso de Marília havia o auxílio, mas não o coleguismo. Nota-se,
neste caso, que não existiu a violência como ocorre em algumas situações de
preconceito, mas sim o isolamento.
4.5. Opinião dos professores sobre o trabalho realizado na
escola
Tópico bastante discutido quando o assunto envolve pessoas com
qualquer deficiência, a autonomia também e discutida entre os cegos,seja nas
questões que envolvem a vida diária, nas profissionais ou nas que envolvem
independência das próprias ideias, permitindo que se pense sem ter de estar
atrelado a ninguém.
Os professores entrevistados têm, portanto, opiniões nem sempre iguais
sobreo modo como a instituição trabalha ou não trabalha esta autonomia nos
alunos.
4.5.1. Autonomia
O aspecto da autonomia na formação do indivíduo cego traz opiniões
divergentes e uma discussão que envolve não só a forma como o indivíduo
aprende a valorizar-se como pessoa cega como também a maneira como aqueles
que o educaram o estimulam a buscar soluções e instrumentos para o
enfrentamento das dificuldades inerentes a sua situação de pessoa cega.
Laila:" Penso que a questão da independência é muito importante. Preparar
o aluno para quando ele sai daqui. E acho que para isso as aulas de OM e
PEVI com a participação de um professor cego são importantes. Acho que
essas aulas deveriam ser uma parceria entre o professor cego e o vidente, pois há detalhes que, por mais que o vidente seja bom não saberá
128
transmitir como o cego. E os ex-alunos, sejam bolsistas ou não, sempre
retornam à casa, o que é bom. É importante a gente ter esse porto seguro,
esse local onde a gente se encontra, mas é preciso que esse local seja o
nosso espaço de preparação para a vida com seus preconceitos e suas dificuldades no mundo fora daqui." (ENTREVISTADO LAILA, 2015).
Observa-se acima a preocupação com a preparação para que o
indivíduo cego saia o mais independente possível do Instituto e uma vocação do
IBC para ser um local de apoio, uma espécie de porto seguro para o ex-aluno.
Nota-se também a valorização do profissional cego como algo importante em
disciplinas que são específicas do trabalho com o aluno cego por prepararem-no
para o cotidiano mais independente. Aquelas tarefas que o vidente em geral
aprende por imitação são ensinadas ao indivíduo cego na disciplina PEVI
(Práticas Educativas para a Vida Independente), a qual abrange desde amarrar
os sapatos até cozinhar. Daí a preocupação de P. 15 em ter um profissional cego
participando dessas aulas, pois julga que há particularidades na maneira de o
cego agir para realizar essas tarefas que são mais bem desenvolvidas e
adaptadas pelo próprio cego. O mesmo ocorre nas aulas de OM que apresenta ao
indivíduo cego técnicas de manejo da bengala e de orientação e localização nos
espaços.
Entretanto, isso gera preocupações ulteriores a respeito da autonomia
do indivíduo cego em outros espaços menos adaptados ao indivíduo cego, como
se nota na passagem abaixo extraída de uma entrevista com o Rafael:
Acho que o aluno aqui é muito superprotegido. Eles saem daqui sem saber como vão se virar nas outras escolas e isso não são boas. O Instituto devia
se preocupar mais com a questão da autonomia. É por isso que depois por
tudo, o ex-aluno precisa ficar voltando, ficar amarrado aqui a toda hora. A escola tinha que preparar o cego para se libertar dela. (ENTREVISTADO
RAFAEL, 2015).
“Nota-se que o informante acima acredita, ao contrário de Laila, que o
ideal seria que o ex-aluno se desapegasse da instituição, se” libertasse” dela.
No capítulo anterior abordamos um trecho da entrevista de professora
Laila em que relata que ela não podia, como as outras meninas, ir para a casa das
amigas nos fins de semana, bem como outro trecho sobre a necessidade de ir para
a mesma escola onde estudariam outros alunos cegos recém-saídos do IBC como
ela, pois os pais não queriam que ela fosse para a escola sozinha. Já neste capítulo,
professor Rafael sinaliza a questão do receio de que outras crianças cegas o
129
derrubassem enquanto corriam e que brincando perto de casa, sempre havia
alguém para avisar se houvesse perigo.
Percebe-se, portanto, entre os entrevistados, que aqueles que viveram
situações mais protegidas na infância e no contexto familiar têm maior
preocupação com a autonomia esperando que a escola tenha a mesma
preocupação e oriente seus alunos para que este aspecto traga o mínimo de
problemas ao indivíduo cego que lá vier a estudar.Consideram este um assunto
importante como foi marcante a proteção quetiveram durante a infância e
adolescência.Há uma questão que também se manifesta na fala desses sujeitos e
que traz certa divergência entre eles.
Em trechos já citados tanto da entrevista de Laila como da de Rafael
pode-se perceber uma tendência das famílias desses informantes em protegê-los.
A família de Laila não permitia que ela frequentasse as casas das colegas
enquanto Rafael julgava, até chegar ao IBC, que o contato com outras crianças
cegas lhe traria riscos. Assim, ganhar autonomia pode ter representado para estes
indivíduos algo marcante a ponto de eles mesmos apresentarem em seus relatos
grande preocupação com este tema.
Quanto ao fato de o ex-aluno retornar de hábito ao Instituto, Laila acha
que, embora possa haver, em alguns casos, uma dependência excessiva, a
preocupação da instituição deve ser em oferecer atividades que o tornem
independente e garantir a participação do profissional cego na construção de sua
autonomia. Acha importante que haja esse retorno do ex-aluno e que ele encontre
uma instituição que lhe dê suporte, mas crê que para isso a presença do professor
cego é importante.
Tópico bastante discutido quando o assunto envolve pessoas com
qualquer deficiência, a autonomia também e discutida entre os cegos, seja nas
questões que envolvem a vida diária, nas profissionais ou nas que envolvem
independência das próprias ideias, permitindo que se pense sem ter de estar
atrelado a ninguém.
Os professores entrevistados têm, portanto, opiniões nem sempre iguais sobre
o modo como a instituição trabalha ou não trabalha esta autonomia nos alunos.
130
A questão da autonomia é algo controvertido para os sujeitos da
pesquisa, poisas suas narrativas demonstram que, mesmo no IBC, a situação pode
ser bem diferente da já apresentada, como revelam os professores Rafael e Laila:
Magali:"A gente ia aprendendo uns com os outros como se virar para usar
bengala e se localizar na rua. Depois vinham as aulas de OM, mas
normalmente, os colegas já tinham ensinado muita coisa para a gente. “Sempre tinha o pessoal mais enrolado que mesmo fazendo um ano de
aula, não saía sozinho, mas aí, ou era porque era enrolado ou porque a
família não deixava, e aí a escola não podia fazer nada.”
"O que hoje a gente chama de PEVI era AVD -- Atividades da Vida Diária. Então eu me inscrevi na aula porque era mais por idade do que por
série. Mas a dona Luísa só ensinava as coisas que eu queria aprender para
as meninas que tinham alguma visão. Ela me mandava lavar a louça para não dizer que não participei e isso eu vim da minha casa sabendo. Eu
queria aprender a cozinhar que isso minha mãe não tinha me ensinado.
Então eu pedi para trocar pela aula da dona Mirtes, que, por sinal era cega.
Talvez por isso, não tivesse medo de nos ensinar a cozinhar, passar a ferro e com ela eu aprendi e muito bem, modéstia à parte." (ENTREVISTADO
MAGALI, 2015).
Magali: "O Instituto me deu muita base, não só nos estudos, mas também para eu me virar fora dele. Era eu quem orientava os professores qual era a
melhor forma de trabalhar certos conteúdos comigo com base nas
adaptações que o IBC fazia, então eu acho que isso sempre me ajudou. A gente vai com medo estudar fora daqui, mas se valorizar tudo o que
aprendeu, tem boa chance de dar certo." (ENTERVISTADO MAGALI,
2015).
Os dois depoimentos acima mostram o outro lado da mesma situação.
Esses professores atribuem parte de seu processo de autonomia à escola,
alegando que foi nela que adquiriram a independência necessária nos aspectos
levantados. É possível que a época em que cada professor estudou na instituição
teve influência neste tópico, já que as diferentes gestões porque passou a
instituição podem ter dado distintos graus de importância à questão da
autonomia. Entretanto Magali é contemporânea de Laila e Rafael é
contemporâneo de Clarice. Isto mostra que estas questões têm variáveis ligadas
aos professores com os quais cada um teve a oportunidade de lidar, bem como
na maneira como em outros grupos sociais, cada sujeito aprendeu a lidar com a
sua própria autonomia.
Com vimos acima, dentre os 17 professores entrevistados, dois avaliam
a instituição como superprotetora em seus procedimentos com os alunos cegos.
Sete lamentam que, atualmente, segundo eles, a instituição não priorize aulas que
trariam mais independência a seus alunos, ressaltando que em seu período como
131
estudantes este aspecto era mais importante, e que por isso conseguiram superar
obstáculos e negociar situações adversas. Os demais, ainda que enfatizando a
importância da autonomia do aluno, não teceram comentários diretos sobre a
instituição neste quesito.
Disso podemos concluir que, para 9 dos 17 informantes, esse assunto tem
grande importância e deve receber mais atenção por parte da instituição.
4.5.2 O que transmitir aos alunos?
Por ser uma escola muito peculiar, considerou-se importante saber oque os
professores julgam fundamental no ensino oferecido aos alunos.
Quais devem ser seus objetivos mais importantes e a seguir, serão
apresentadas estas perspectivas.
Marília "Acho que, além dos conteúdos, que são importantes de serem
trabalhados em qualquer escola, é importante que ensinemos aos nossos
alunos que eles têm os mesmos direitos que qualquer pessoa e que precisam trabalhar todos os dias para obter esses direitos. A gente mata um
leão por dia se quiser mudar a situação e não pode abaixar a cabeça. Eles
precisam entender que são iguais a todo mundo só não enxergam." (ENTREVISTADO MARÍLIA, 2015).
Melissa: "Penso que se ele compreender que tem direito a um espaço, que
pode comandar sua própria vida, que precisa sustentar-se, enfim que deve de alguma forma, empenhar por viver a vida dentro da sociedade e não à
margem dela, é isso que ele deve fazer e para isso a escola deve prepará-
lo. Não é o caso de ser igual a quem enxerga. Quem é cego tem sua
maneira própria de fazer as coisas, de aprender, de organizar-se, tem até suas prioridades. É o caso de ter suas peculiaridades respeitadas e para
exigir esse respeito, primeiro precisamos será demitidos dentro da
sociedade." (ENTREVISTADO MELISSA, 2015). Aroldo: "Os alunos precisam valorizar o Braille como uma conquista,
valorizar os avanços da informática, ainda que falte bastante a ser feito,
como conquistas nossas e tudo isso como caminhos para a instrução, a informação, a comunicação. Esse é o caminho para que os cegos sejam
valorizados como cegos. Temos que usar o Braille, os sintetizadores de
voz, a bengala com orgulho pois eles nos identificam e nos auxiliam a
obter algum nível de inclusão social, embora haja outros aspectos a serem considerados para isso. Mas penso que, no momento em que o IBC
entender que o Braille deve ser para todos os alunos, quando as políticas
de informática dentro do Instituto visarem a realmente, prepararem os alunos para usá-la para obter e transmitir informações, quando elas
servirem para instrumentalizarem o cego, então o IBC estará cumprindo
bem melhor o seu papel." (ENTREVISTADO AROLODO, 2015).
132
As falas desses informantes nos remetem à questão de conquista de
espaço e direitos pelos cegos na sociedade, trazendo a questão da igualdade e do
respeito à diferença que, neste caso, parecem contrárias. Para dois dos três
professores, esse respeito é importante, pois é ele a garantia de que a pessoa
cega poderá agir com autonomia. Eles parecem ir em direção à defesa de uma
cultura cega, como discutimos no capítulo 3, do espaço do não visual como uma
alternativa e não como algo a ser corrigido, como um desvio (COSTA, 2001).
Para os professores Melissa e Aroldo o indivíduo cego precisa ver-se
como pessoa capaz de tomar decisões, assumir responsabilidades e conquistar
aquilo de que necessita sem que seja necessário que os outros sejam
“benévolos” com ele. Aroldo enfatiza as conquistas já obtidas pelos indivíduos
cegos, pois assim considera tudo o que se tem até hoje e que favorece a inclusão
deste seguimento. Melissa ressalta a importância de que o indivíduo cego seja
independente em todos os aspectos, tendo uma profissão, um trabalho, enfim
possa colaborar na sociedade em que vive a vim de que assim possa também
reivindicar. Para Marília o mais importante é a questão da igualdade, isto é que
o indivíduo cego tenha tudo o que os outros têm. Ela não demonstra
preocupação em que se tenha aquilo de que se necessita, mas sim que se seja
igual aos outros.
No caso de Marília, são apontadas as questões que devem ser
priorizadas, mas sem indicar caminhos ou propostas. Ela acredita quea questão
do preconceito é importante, mostra-se disposta a enfrentá-la, porém não expõe
em que aspectos se sentem atingidos.
Enquanto isso, Melissa e Aroldo levantam mais a questão do que pode
ser feito pelo próprio cego. Qual deve ser sua atitude, como a escola pode
empoderá-lo, através de que instrumentos.
Além desses três professores, mais quatro falaram na questão de
instrumentalizar o aluno cego para ser dono da sua própria história.
Dois como já foram expostos, enfatizaram a questão da autonomia e os
demais versaram sobre pontos variados como priorizar o conteúdo para que o
aluno esteja em péde igualdade com os outros ao sair da escola,estimular o
estudo constante, educação, saber se portar nos ambientes para ser bem recebido
etc.
133
Pode-se inferir que há de alguma forma, preocupação de todos os
professores com o futuro dos seus alunos, sobretudo quando estes deixam o
IBC. Pode-se perceber também que a maneira como o indivíduo cego é visto
pela sociedade tem grande importância e que o professores tem uma
preocupação mais acentuada com esta colocação do que com a questão dos
conteúdos escolares. A preocupação com o lugar ocupado pelo indivíduo cego
envolve mais a questão dos estigmas, do preconceito e da necessidade de o
próprio cego se ver como alguém capaz e enfatiza-se a necessidade de que uma
escola especializada como é o Instituto Benjamin Constant priorize estes temas.
A fala de Andreia chama a atenção pela sua singularidade. Ela remete
a um aspecto que resume tudo o que se espera quando se valoriza a inclusão e se
critica o preconceito e o estigma.
Andreia: “Acho que o mais importante é a gente conseguir fazer o aluno
entender que ele é uma pessoa. Antes de ser branco ou negro, cego, surdo,
homem, mulher, ele é uma pessoa e por isso, apenas por isso, não importando o resto, ele tem direito a ser ouvido, a não ser igual nem mesmo a outras
pessoas que tenham alguma característica marcante como a dele. Quem disse
que todos os cegos são iguais? Se ele internalizar essa ideia, saberá onde e
como buscar o que precisa para firmar-se como cidadão e ser cego será apenas uma característica. Não dá para esquecer essa característica e nem é
para esquecer, mas a cegueira não pode vir na frente do homem.
(ENTREVISTADA ANDREIA, 2015).
O trecho aponta para uma realidade em que se padroniza o indivíduo e
os conceitos de normalidade e correção ainda hegemônicos que acabam também
penetrando a realidade das pessoas cegas, pois mesmo aqueles que observam
esta realidade com cuidado correm o risco de novas generalizações e novos
padrões de normalidade dentro do grupo.Aliás, o próprio grupo pode agir desta
forma, considerando como fora da regra o indivíduo cego que não faz aquilo
que outros cegos fazem.
É possível observar-se este fato quando alguém não aceita o uso da
bengala, quando alguém demonstra certa dificuldade com o Braille
e,atualmente, até quanto à escolha do melhor sintetizador de voz, pois há
correntes ideológicas que preferem um ou outro. As justificativas dessas
escolhas particulares suscitam reações diversas pela adesão ou não do uso
desses artefatos como se houvesse uma maneira certa de nós cegos
trabalharmos, um modo que fosse o "normal" entre os cegos,confundindo-se,
mais uma vez o normal com o comum.
134
Neste caso, nota-se que entre grupos de cegos também existe um
comportamento esperado e aquele cego que foge ao padrão é alvo de certa dose
de preconceito. Não existe, neste caso, a mesma força, o mesmo peso que há
com relação à sociedade e o cego em geral, entretanto há certa diferença que
nem sempre é vista com respeito. É como aquele indivíduo que não se adéqua a
determinada cultura e será sempre marginalizado.
Todos os cegos são diferentes na abordagem à cegueira, apesar de
existir uma espécie de padrão de expectativa do qual, se ele ou ela se
distanciarem, podem gerar e enfrentar preconceitos.
4.5.3. Esperando pelo outro
Há indivíduos que tem por hábito esperar sempre por uma atitude do
outro sem dar qualquer indicio daquilo que esperam. Pessoas que acreditam que
precisam apoiar-se sempre em alguém. Pelas muitas questões que envolvem a
cegueira isto pode acontecer com frequência entre indivíduos cegos que, por
vezes, esperam de videntes ou mesmo de outros cegos que consideram “pessoas
de mais personalidade” do que eles, este tipo de apoio.
Alguns extratos de entrevistas podem esclarecer a questão do cego eo
que ele espera nem sempre buscando.
Marlon: "Quando fui para o Segundo Grau15 foi muito interessante porque,
na verdade, ao contrário do que eles apregoavam não existia uma estrutura
para a gente. Mas tenho que reconhecer que meus colegas de turma foram fundamentais pois eles exigiam dos professores que falassem ao invés de
só usar o visual por minha causa. Eles correram atrás das coisas para mim.
Nas matérias mais visuais, eles se revezavam para ir na minha casa estudar
comigo. Era uma turma muito legal." (ENTREVISTADO MARLON, 2015).
Murilo: "Tive um problema com o professor de Química. Aliás, havia dois
problemas ali: o fato de a matéria ser extremamente visual e o fato de ser nos últimos tempos de sexta-feira. O professor fazia os esquemas no
quadro e ia apontando as coisas me deixando bem perdido. Eu falei com
ele ainda uma vez, mas como não adiantou achei que era melhor para mim não ir mais às aulas que eu ganhava mais descansando.
- Você não recorreu a nenhum ex professor para te dar uma força, ou a um
ex-aluno mais velho que já tivesse passado pela matéria?
- Os professores daqui do IBC eram muito bons, mas também não dominavam esta parte mais visual e não teriam como me ajudar. Ele “não
15 Segundo grau - atual Ensino Médio
135
estava preocupado comigo, eu parei de me preocupar com ele e não fui
reprovado por isso.” (ENTREVISTADO MURILO, 2015).
No primeiro caso, o sujeito mostra-se reconhecido aos colegas que
se empenharam por ajudá-lo, por tornar tudo mais acessível para ele enquanto
não se vê, de sua parte, nenhuma tentativa de negociação ou adaptação à nova
situação. Ele não demonstra nem neste trecho, nem em outros momentos da
entrevista, o empenho em contornar a situação junto aos professores,
aguardando que parta de alguém o movimento por lembrar-sede sua existência
como aluno. Não lhe cabe, segundo ele, sequer a iniciativa de ir à casa dos
colegas para obter as explicações que lhe são oferecidas.
No segundo caso, houve ainda uma tentativa por parte do informante
de negociação. Não tendo ela surtido efeito, ele optou por aceitar a exclusão que
lhe foi imposta. Não buscou outros recursos para aquisição dos conhecimentos
de que precisaria para será provado na disciplina e, como se viu, isto não
acarretou problema para sua aprovação. Cabe lembrar que, quando foi indagado
sobre a possibilidade de apoio com ex-professores, sinalizou que eles não teriam
condições de apoiá-lo neste caso. Em pelo menos nove entrevistas, os sujeitos
deixaram claro que os ex-professores tinham sido de grande ajuda, sobretudo
nas matérias de cunho muito visual e, quando isto não era possível, os ledores
resolviam a situação, pois o IBC sempre tinha em seu quadro de ledores
voluntários pessoas que dominavam bem a matemática, a física e a química,
justamente por serem áreas de maior dificuldade de adaptação. No entanto
apenas para Murilo este recurso não foi válido, pelo menos considerando o
grupo entrevistado. O sujeito preferiu optar pelo afastamento, pela acomodação,
pela nota sem o empenho.
Pode-se perceber que a atitude de alguns professores que preferem não
se responsabilizar pelo real ensino e avaliação de alunos cegos, seja por
acomodação, seja por desconhecimento da melhor forma de fazê-lo, seja por
piedade, pode suscitar nesses alunos a acomodação e até mesmo a crença e que
não são capazes de transpor obstáculos relativos a matéria onde sempre se
considerou o grande peso da visão. É possível que o indivíduo cego desenvolva
a ideia de que estes conteúdos são incompreensíveis para ele e aceite a
aprovação sem mérito para livrar-se de tais matérias.
136
É possível ainda que, consciente ou inconscientemente ele opte por
assumir a postura de vítima pelo fato de ser cegas e aceitas todas as conceções
que lhes são feitas como uma forma de compensação.
Atitudes como essa tendem a alimentar um processo de acomodação
tanto de cegos que esperam a atitude do outro, como de videntes que acreditam
que devem sempre eles a "doar" alguma coisa ao outro. Consequentemente
aparece com força na citação do professor Marlon o modelo do cego que deve
aguardar a iniciativa de um vidente para ajudá-lo a realizar tarefas, e a atitude
condescendente e de não de cumprimento de uma obrigação por parte do
vidente, quando seria função do professor buscar meios de atender ao aluno e
um empenho do aluno em propor meios de avaliação, o qual poderia ter
estimulado uma atitude diferente por parte do professor.
Martins (2012), ao discorrer sobre os desafios encontrados pelas
pessoas com deficiência no sentido da desconstrução da subalternidade que as
rodeia, aborda esta questão quase cultural que se insere na realidade das pessoas
com deficiência em geral quando diz:
"Um outro elemento que singulariza os desafios que se estabeleceram e se estabelecemos movimentos políticos das pessoas com deficiência é, sem
dúvida, o modo como a opressão social das pessoas com deficiência tende
a ser escamoteada por uma atitude condescendente e paternalista por parte
dos poderes e da sociedade num sentido mais amplo." (MARTINS, 2012 p. 245).
Quem concede mantém o poder e aquele que recebe a "dádiva" fica
submisso e dependente em relação ao que concedeu, pois não encontra meios de
obter por si o que precisa ou deseja. Assim, se o professor opta por agir como se
o aluno cego não tivesse direito de ter acesso ao conhecimento, como os demais.
Mas lhe dá uma nota que lhe permite ser aprovado, se o aluno aceita esta
situação, o professor poderá manter-se em sua posição e, de hábito, o aluno não
percebe isso como uma forma de opressão.
O professor então poderá dar ao aluno a nota que desejar sem que este
possa questionar, já que não foi devidamente avaliado, contentando-se com a
aprovação.
Voltando brevemente a um trecho da entrevista de Aroldo apresentada
no capítulo anterior, em que esta conta sobre sua entrada como professor para a
Rede Estadual de Ensino, a repórter lhe pergunta o que ele achava daquele
137
benefício que o estado lhe concedia. Ele responde que o estado não concede, as
pessoas conquistam, pois, em seu caso, foi feito o concurso,ele foi aprovado por
mérito próprio e, portanto, tinha plenas condições de dizê-lo.
Observa-se, neste caso, que o informante não concorda que tenha sido
beneficiado, afirmando que, como todos os candidatos que se se saíram bem no
concurso teve sua vaga garantida. Se um grupo se considera na obrigação de
conceder e o outro no direito de sempre aceitar, ainda que isso possa representar
a supressão de certos direitos do segundo grupo, as duas atitudes alimentam-se
mutuamente.
Outro caso que surgiu durante a pesquisa traz um certo paradoxo entre
a fala do informante e as atitudes observadas do mesmo informante. Em sua
entrevista Ruth afirma ter tido um comportamento ativo ao procurar professores
para negociar a melhor forma de ter acesso aos materiais e as aulas. No entanto
nas atividades observadas notou-se que este informante sempre espera que
alguém deseje saber do que ele precisa, qual é a sua opinião e o que ele deseja.
Se não for interpelado diretamente durante as reuniões, não opina. Em sua sala
de aula, os alunos discutem entre si sem que ela consiga interferir e conduzir a
discussão para que ela se encerre. Observemos o diálogo abaixo extrato de uma
reunião observada.
“Coordenador: Então, pessoal. Agora que várias falas já foram
apresentadas contra e a favor do livro, acho que afinal temos que decidir.
Vamos à votação. Os que são a favor de se solicitar o livro, levantem a mão. Agora os que são a favor de que cada um faça suas apostilas
levantem a mão.
Colega vidente responsável pela contagem de votos: Ruth, qual é o seu voto?
Coordenador: Por que você está perguntando só a ela?
Colega vidente responsável pela contagem dos votos: Porque ela não votou
em nenhum dos dois. Coordenador: Então, Ruth. Você ficou quieta o tempo todo. Qual é sua
opinião?
Ruth: ah... livro... é melhor..." (REUNIÃO OBSERVADA, 2015)
Pressionada, a professora acaba se pronunciando, embora sem
convicção, pois esperava passar despercebida e não ter que se posicionar.Esta
atitude é demonstrada por ela em outras situações, sempre que sua fala
pressupõe ter de assumir um posicionamento. Aguarda que lhe informem
pessoalmente dos acontecimentos, como a chegada de documentos ao
138
departamento a que pertence, não demonstrando estar atenta quando estes avisos
são dados coletivamente. Ademais, ela não participa voluntariamente de
nenhum tipo de comissão ou trabalho dentro da instituição que não seja,
exclusivamente, a sala de aula; e quando o faz,por insistência de alguém,surgem
comentários por parte de colegas cegos e videntes, comentários estes que são
feitos, sem reserva, desde que ela não esteja presente.
Os colegas não a percebem como alguém que colabore ativamente
em comissões ou grupos considerando-a responsável com o trabalho em sala de
aula, porém nunca disponível ou em condições de realizar qualquer outra
atividade na instituição.
Diante disso, observando o comportamento de Ruth no cotidiano do
IBC e devidamente informada por ela de que, ao cursar o ensino médio,
estudava com mais três colegas cegas, surge uma dúvida: ela, de fato, procurava
os professores e negociava com eles ou a negociação era feita por algum outro
colega?
A dúvida suscitada vem do fato de que a atitude cotidiana desta
professora não se coaduna coma fala da entrevista. Sendo o IBC uma instituição
que ela conhece bastante bem por ser ex-aluna, é de se esperar que tivesse nele
mais liberdade do que em outra escola, portanto não se justifica que não se
manifeste nas situações surgidas dentro da instituição em que trabalham.
Estes exemplos caracterizam uma posição de maior passividade de
alguns informantes cegos, posição esta que pode alimentar as atitudes
paternalistas que acabam por reforçar a situação de subalternidade, como vimos
nas citações de Marlon, Murilo e Ruth. Se existe alguém que atende as minhas
necessidades não havendo necessidade de que eu me manifeste permito que este
alguém decida tudo por mim já que ele atende as minhas necessidades.Kenneth
Jernigan, tem em um de seus discursos um trecho que destacamos por ter
ligação com a questão da imagem do indivíduo cego, imagem que para a
sociedade ainda é daquele indivíduo que aguarda a tutela.
"O que nós esperamos da sociedade não é uma mudança de coração --
nosso caminho para o asilo tem sido, sempre, pavimentado de boas
intenções -- mas uma mudança de imagem, uma troca de velhos mitos por
novas perspectivas." (JERNIGAN, 1970).
O líder americano acredita que ainda há um importante trabalho aser
feito no sentido de se perceber o cego como ele realmente é: como umindivíduo
139
que pode se colocar, pensar, agir e responder por suas ações.Um indivíduo que
não deve ser dirigido e, sim,um agente ativo de sua própria história.
4.6. Características do discurso
Algumas características nos discursos são marcantes, no entanto,
apenas uma predominou em todo o grupo: o uso da palavra cego evitado apenas
por um entrevistado que não a usou nem uma vez. Os demais a usaram sem
maiores dificuldades e em pelo menos três das entrevistas ela é usada até com
orgulho.
A palavra preconceito aparece em 13 entrevistas. Exclusão e termos
correlatos (excluído excluir) aparecem em 12 delas.
Dois dos entrevistados usam, constantemente, expressões como "Não
podia", "não sabia" "não conhecia" "nunca tentei" "nunca aprendi" "não sou
bom em" "não faço".
Outros cinco utilizam mais estas expressões quando se referem a uma
fase da vida anterior aos estudos no IBC.
Nove deles usam alguma dessas expressões, no máximo duas vezes.
Um deles revela-se nas entrevistas sempre capaz e desembaraçado,
mas nas observações seu comportamento indica outra coisa.
Embora cite nas entrevistas histórias de sua infância, frisando olfato de
andar com desembaraço pelas ruas, e comente todos os momentos sem que
assumisse liderança dentro e fora do Instituto, o professor Valcyr admite
dificuldade para localizar-se nos mapas táteis, apontando falhas no mapa,
mesmo que outras pessoas cegas os tenham utilizado sem nenhuma dificuldade.
Não tem anotadas as informações de que precisa, nem em Braille, nem com o
uso de qualquer outra tecnologia. Além disso, o professor fala entusiasticamente
do uso da informática e apregoa suas vantagens para as pessoas cegas, porém
admite erros primários m seu uso, sempre alegando defeito das máquinas. Em
suma, o informante dá indícios de que gostaria de ter certas habilidades, porém
tem dificuldade em adquiri-las.
A palavra "enfrentar" e a expressão "lutar contra" aparecem em 15
das17 entrevistas. A palavra negociar aparece em 11 entrevistas. A expressão
140
imagem social em duas. A palavra conquista e correlatas(conquistamos
conquistaríamos) em cinco.
Julgamos que os dados aqui apresentados podem fornecer um
panorama das ideias expressas pelos professores cegos que atuam e atuaram até
muito recentemente no Instituto Benjamin Constant. As respostas ligadas a
períodos diferentes na história da instituição e na história em geral acabam,
obviamente, por serem distintas como consequência dos diferentes estilos de
vida que cada indivíduo teve. A maneira como o indivíduo foi criado, a
constatação da cegueira, a reação de cada grupo social ao qual pertenciam e as
suas condições particulares de cegueira influencia, necessariamente, os
comportamentos e ideias que voluntariaram em seus depoimentos, apontando
para a questão de generalização e homogeneização (dos cegos?) que ainda
perpassam a história dos estudos sobre indivíduos cegos.
De hábito, ao se considerar estes indivíduos, pensa-se na cegueira
como se ele fosse apenas um indivíduo cego, esquecendo-se dos outros
elementos formadores de sua trajetória e personalidade, assumindo, assim, que
todos os indivíduos cegos agem e pensam da mesma maneira. Conforme já
abordado em 3.3. e em 4.5.2.
Esperamos, portanto, compreender o pensamento deste grupo e
trabalhar para que ele seja mais ouvido. É importante que a invisibilidade que
hoje atinge aos cegos possa ser transformada em visibilidade e em espaço de
respeito à diferença em oportunidades e, sobretudo, em desejo de manifestação
do próprio indivíduo cego, conscientes de que um grupo é o resultado de vários
indivíduos, isto é,de que todos, com suas particularidades, contribuem para a
formação deste grupo dentro da instituição. Cada um tem sua maneira de
responder ao preconceito que o cerca, ao estigma que pode atingi-lo e parte
significativa dos professores cegos do IBC acredita que seu comportamento,
assim como o de outros colegas cegos pode, sim,influenciar os alunos.
141
5. Considerações finais
Após analisar os dados obtidos e observar o comportamento dos
professores cegos do Instituto Benjamin Constant, pude perceber que, como
ocorre em qualquer grupo, a reação e o comportamento diante de situações de
preconceito e estigma são variados, não havendo uma postura única. No entanto,
quinze dos dezessete entrevistados demonstraram a importância de se fazer
algum tipo de trabalho contra o preconceito e no sentido de eliminar o estigma.
Um demonstrou não ter encontrado situações em que o preconceito o tenha
atingido exceto uma já relatada no capítulo 3, porém considera que, em geral
essas situações são esparsas nos dias atuais e no IBC acredita que seu trabalho é
respeitado como o de qualquer outro colega. Outro não faz referências às formas
de lidar com o preconceito, mas acrescenta que em sua trajetória já lidou com
ele inúmeras vezes. Acredita que ele sempre vai existir e que cabe ao indivíduo
cego reagir sempre que se deparar com situações em que esteja evidente que o
preconceito o está prejudicando.
Onze sinalizaram a existência de preconceito com relação à cegueira
dentro do IBC, criticando, de alguma forma, a postura adotada pela instituição
com relação a temas ligados à condição dos indivíduos cegos.
Pude observar a que tipo de situação estes professores se referem nas próprias
observações e na pesquisa de campo. Situações como formas de adaptação de
livros, documentos pouco acessíveis, política de ensino do Sistema Braille
dentro da instituição podem explicar esta percepção dos professores.
Não há, atualmente, um indicativo de que o IBC, enquanto
instituição,esteja preocupado em discutir e posicionar-se no que diz respeito a
preconceito, estigma e imagem social das pessoas cegas.
A aproximação com os alunos por conta das observações e da pesquisa
de campo trouxe a resposta de que os professores cegos influenciam o
comportamento de seus alunos. Em verdade, todos influenciam, no entanto, a
influência do professor cego é mais forte no aluno cego que tende a mudar de
comportamento em muitos aspectos quando teve professores videntes durante
anos seguidos e passa a ter um professor cego.
142
Pude perceber que, em alguns casos, mesmo este aluno sendo da
instituição desde tenra idade, se ele tiver tido apenas professores videntes, traz
noções sobre codificadas sobre a cegueira, não se permitindo experimentar suas
próprias habilidades. Cabe ressaltar, contudo, que uma das conclusões mais
importantes, para mim foi a do surpreendente. Iniciei este trabalho com uma
hipótese, julgando que saberia as possíveis respostas de alguns dos
entrevistados.
No entanto, esquecer o previamente conhecido, isto é, meus preconceitos
e dar espaço às respostas que vinham do campo fizeram com que descobrisse
lados de meus colegas de trabalho que jamais poderia imaginar, apontando para
um IBC com suas novidades. Fez ainda com que muito do que via meus colegas
fazerem no dia-a-dia ganhasse outra conotação, vendo com outros olhos certas
reações que apresentavam. Reações ao preconceito e até reações que temos o
hábito de julgar como mantenedoras do preconceito, mas que espelham uma
vida inteira cercada pelo preconceito e o estigma com tal força que pode ser
difícil conseguir libertar-se desta situação e romper com valores tão solidamente
construídos.
Ter acesso a momentos em que eles se sentiram magoados, excluídos,
indignados, vitoriosos trouxe-me a certeza de que o trabalho na desconstrução
do preconceito é árduo e não será feito se nós, cegos, não estivermos à frente
dele, pois apenas aqueles que enfrentaram as situações buscando negociar e
solucionar problemas sejam de forma contundente, seja de forma mais amistosa,
apenas estes conseguiram amenizar os efeitos do preconceito em suas histórias.
Reconheço, entretanto, que a confiança depositada por alguns pesou um
pouco. Com frases como "Quero que você fale nisso" "Não deixe de abordar
este ponto" "Confiamos em você para levar este tema para frente". "O tema é
fundamental, mas você vai mexer em vespeiro" os sujeitos da pesquisa, meus
colegas, depositaram em mim uma confiança de que espero ter sido merecedora.
O tempo, talvez, não tenha sido longo o bastante para se verificar tudo o
que a curiosidade aguçada gostaria de investigar, porém foi o bastante para
confirmar a necessidade de apontar para os indivíduos cegos a necessidade de
143
que todos nós que possuímos esta condição busquemos de alguma forma atuar
de maneira a eliminar o preconceito com nossas ações.
É fundamental que estejamos atentos para o fato de que não podemos
ficar de fora de quaisquer ações que visem ao trabalho na desconstrução do
preconceito e se minha pesquisa contribuir nesse sentido, ela terá sido útil.
144
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147
Anexo A - Modelo de entrevista
● Fale sobre sua infância:
- Do que você gostava de brincar?
- Quem eram seus companheiros nessas brincadeiras?
● E sua vida em família?
- Com quem você morava?
- Onde?
● E na escola?
- com quantos anos você começou a frequentar a escola?
- No seu tempo de escola, que tarefas eram importantes que um aluno
desempenhasse para ser considerado bem-sucedido como estudante?
- como era a escola em que você estudou?
- houve professores que te marcaram positiva ou negativamente? Em quê?
- e sobre seus colegas? Há alguma coisa marcante sobre eles, seja positiva ou
negativa, que você possa nos contar?
● Você já pensava em ser professor desde criança? Em que fase da sua vida
surgiu esta ideia?
● E sua vida fora da escola? Onde você costumava passar as férias e os fins de
semana?
● Um dia, você chegou ao ensino Médio.
- Você contou com algum tipo de apoio oferecido pela escola?
- Alguma instituição especializada deu apoio à continuidade de seus estudos?
- Os colegas costumavam ser solidários? Em caso positivo, como?
- E os professores? Costumavam ajudar? Em caso positivo, como?
148
- Como era a postura daqueles que não auxiliavam?
● E na universidade? Conte como funcionou seu estudo nessa fase.
● Falando, agora, sobre trabalho, você tem outro trabalho além do IBC? Qual?
● E o trabalho aqui? Como começou?
● Você já desenvolveu outras atividades dentro do Instituto? Quais?
● O que você considera mais importante que seja transmitido aos alunos?
● Você acha que na sua vida acadêmica, houve diferença no trabalho feito por
professores cegos e por professores videntes? Fale a respeito.
● Você considera importante para um aluno cego ter professores cegos? Por
quê?
● Sobre a continuidade de sua formação:
- De que cursos ou congressos você já participou e gostou?
- Em que área você mais gosta de se aperfeiçoar?
149
Anexo B – termo de consentimento livre e esclarecido
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
Programa de Pós-Graduação em Educação
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO | PROFESSORES
Prezado/a: ______________________________________________________________________
__
Vimos, por meio deste, convidar-lhe a participar voluntariamente da pesquisa
apresentada a seguir.
Pesquisa: “Cegueira e preconceito, percepção de professores cegos sobre o tema”.
Pesquisadores: Mestranda: Carla Maria de Souza| [email protected] | Tel. (21) 2576-1766 Orientador: Prof. Dr. Marcelo Sorrentino| [email protected] | Tel. (21) 99797-7511
Justificativas: A pesquisa busca identificar as diferentes percepções de professores
cegos diante de possíveis situações de preconceito que fizeram parte de suas trajetórias
de vida.
Objetivos: O objetivo geral da pesquisa é identificar como os professores cegos agem
diante de situações de preconceito e que influências este preconceito trouxe para suas
vidas.
Metodologia: Entrevistas através de áudio-gravação, com duração média de 60 minutos
e observação de atividade desenvolvida pelo professores.
Riscos e Benefícios: Há probabilidade de constrangimento uma vez que, serão
abordados assuntos que podem trazer à baila questões sobre as quais nem sempre o
entrevistado sentirse-á à vontade para falar. No entanto, ele terá total liberdade para
desviar-se de pontos da entrevista que não deseje abordar e será respeitada a sua
vontade de não ver divulgado certos assuntos que considere de foro intimo. Tanto os participantes quanto seus alunos, bem como outros alunos que sejam
atingidos pelo preconceito podem ser beneficiados com a discussão do tema a partir de
informações dadas por pessoas que já vivenciaram situações análogas.
Eu, ______________________________________________________________________
__ __________________, de maneira voluntária, livre e esclarecida, concordo em
150
participar da pesquisa acima identificada. Estou ciente dos objetivos do estudo, dos
procedimentos metodológicos, dos possíveis desconfortos com o tema, das garantias de
confidencialidade e da possibilidade de esclarecimentos permanentes sobre os mesmos.
Fui informado(a) de que se trata de pesquisa de mestrado em andamento no Programa
de Pós-Graduação em Educação da PUC-Rio. Está claro que minha participação é
isenta de despesas e que minha imagem e meu nome não serão publicados sem minha
prévia autorização por escrito. Estou de acordo com a áudio-gravação da entrevista a
ser cedida para fins de registros acadêmicos. Estou ciente de que, em qualquer fase da
pesquisa, tenho a liberdade de recusar a minha participação ou retirar meu
consentimento, sem nenhuma penalização ou prejuízo que me possam ser imputados.
____________________________________________________________________ Carla Maria de Souza, mestranda.
Prof. Dr. Marcelo Sorrentino, orientador.
__________________________________________________ [assinatura do/a professor/a voluntário/a]
Nome completo: ______________________________________________________________________
__
E-mail: _______________________________________________________
Tel. ______________________________
Identificação (RG): __________________________ |
Rio de Janeiro, _____ de ____________ de 2015.
OBS.: Este termo é assinado em 2 vias, uma do/a voluntário/a e outra para os arquivos
dos pesquisadores.