RAZO INTOLERANTE EM UMA F ILUMINADA: IMAGINRIO PROMETEICO NA INQUISIO
MODERNACarlos Andr Macdo Cavalcanti1
Afrnio Carneiro Jcome2
Para a rica histria do imaginrio ocidental, os mitos gregos exercem uma
influncia fundadora. Numa aproximao, dois deuses gregos so apontados como
hegemnicos para o mundo ps-moderno: Prometeu, que trouxe o fogo do
conhecimento para os homens, disputa com Dionsio, divindade da festa. Na
regulamentao racionalizadora do ato inquisitorial, a marca do conhecimento aponta
para uma apropriao, pelos inquisidores, deste mitologema prometeico to recorrente
no Ocidente Cristo. Neste texto, desenvolvido na Graduao em Histria da UFPB,
apresentamos um olhar histrico sobre esta tendncia da mentalidade inquisitorial.
Os regimentos inquisitoriais portugueses de 1640 e 1774 so documentos que
nascem em meio a experincias distintas vivenciadas pelo Estado portugus. Portugal
apresenta uma srie de grandes transformaes econmicas, sociais, nas relaes
internacionais, comerciais e administrativas no perodo que marca o aparecimento do
regimento de 1640 at o surgimento do seu sucessor, o regimento de 1774. Esses
regimentos surgem em perodos de reformas da mquina administrativa lusitana e
transformaes nas relaes de poder entre Estado e Igreja. No caso analisado por este
trabalho, focaremos as mudanas na atuao da instituio inquisitorial e suas relaes
com o Estado portugus. Analisaremos como a inquisio se reformou durante o sculo
XVII na Pennsula Ibrica, especificadamente em Portugal, e como, neste mesmo pas,
ela foi novamente alvo de remodelaes por parte do despotismo ilustrado pombalino.
Para isto, examinaremos minuciosamente os regimentos de 1640 e 1774 como
documentos-chave para interpretar esses perodos distintos da inquisio lusitana.
O regimento de 1640 pode ser considerado um dos mais importantes
documentos jurdicos do sculo XVII. Foi elaborado em meio s conturbaes do fim
1
1
Historiador da UFPB. Doutor em Histria pela UFPE.
2
2
Licenciado em Histria pela Universidade Federal da Paraba.
Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011
da Unio Ibrica e demonstrou a autonomia e fora da inquisio portuguesa em relao
inquisio espanhola, conseguindo manter sua influncia e estrutura independente por
todo territrio portugus mesmo no auge da unificao das coroas ibricas. A inquisio
moderna surge quando o Papa Sisto IV assina a bula Exigit sincerae devotionis affectus,
em primeiro de novembro de 1478. Essa bula veio atender s peties dos Reis
Catlicos que ansiavam maior controle e fiscalizao dos judeus e cristos novos
habitantes dos reinos de Castela e Arago. A bula permitia aos Reis Catlicos nomear,
destituir e revogar do cargo os trs inquisidores de um tribunal inquisitorial. Esse poder
concedido aos prncipes era um acontecimento indito: at ento, a nomeao dos
inquisidores, cuja jurisdio se sobrepunha jurisdio tradicional dos bispos em
matria de perseguio de heresias, estava reservada ao papa.3 Para preenchimento do
cargo de inquisidor, a indicao dos prncipes deveria obedecer a algumas exigncias:
ser bacharel ou mestre em teologia; ser clrigo ou religioso de ordem secular; ser
licenciado ou doutor em direito cannico, alm de ter a idade mnima especificada pelo
regimento inquisitorial. A bula representa uma ruptura com a organizao inquisitorial
medieval restrita jurisdio eclesistica; a partir de ento, esta jurisdio eclesistica
iria imiscuir-se jurisdio civil alterando, deste modo, as relaes de fidelidade desses
personagens histricos.
A experincia inquisitorial da era moderna rompe com o controle exclusivo da
Igreja sobre a inquisio. Na inquisio medieval, o Papa centralizava as decises
acerca dos procedimentos e diretrizes dos tribunais, alm de nortear os funcionrios e
suas prticas fiscalizadoras. Os regulamentos no apresentavam um carter geral,
variando de local para local, e os tribunais no procediam de acordo com uma
jurisprudncia ou legislao geral, que servisse como exemplo para avaliao de casos
smiles. Apesar de a inquisio medieval ter sido, essencialmente, uma instituio
idealizada e dominada pelo papa, isto , dirigida por uma entidade supranacional,
contava, em todos os pases onde atuou, com o auxlio e a aprovao dos soberanos.4
Quando, na Idade Moderna, os estados ibricos decidem estreitar os laos com a
3
3
BETHENCOURT, Francisco. Histria das inquisies: Portugal, Espanha e Itlia, sculos XV-XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17.
4
4
NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisio. So Paulo: Brasiliense, 1982. p. 15-16.
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instituio inquisitorial, todo o funcionamento dessa nova prtica se modifica e passa a
responder, tambm, aos anseios dos prncipes e de seus projetos polticos, de modo mais
direto. Os regulamentos e regimentos passam a ser mais completos e abrangentes, as
leis civis a se confundir com a legislao eclesistica. Convm lembrar que o tribunal
inquisitorial moderno flagrante apenas em poucas reas da Europa: na Espanha, em
Portugal, na Pennsula Itlica, alm da atuao em territrios coloniais, como o Brasil.
As prticas dos tribunais tornaram-se mais complexas e os regimentos passaram a exigir
uma maior obedincia aos rituais jurdicos. Um exemplo disso o Regimento do Santo
Ofcio da Inquisio dos Reinos de Portugal de 1640. Segundo Francisco Bethencourt,
tratava-se de um monumento jurdico.5 Os regimentos que surgiam de tempos em
tempos eram criados por autoridades eclesisticas para resolver novos conflitos e
interesses. Cada nova regulamentao tornava-se cada vez mais especfica, meticulosa e
detalhista. Os regimentos passavam a regular horrios dos funcionrios, seus
vencimentos, o procedimento jurdico e a etiqueta interna, descreviam de maneira muito
cuidadosa como deviam transcorrer as fiscalizaes e as visitaes aos rus, mesmo os
familiares dos funcionrios eram alvo de regulamentao especfica.
A administrao inquisitorial moderna era complexa e hierarquizada,
apresentando uma vasta rede de funcionrios e uma burocracia monumental. Os
regimentos ordenavam a estrutura do tribunal e seu proceder; os funcionrios, as
documentaes, a etiqueta e o comportamento dos representantes e familiares da
inquisio (familiares de funcionrios); o tratamento dos processos, dos rus e dos
autos da f estas so algumas das reas de ordenamento dos regimentos inquisitoriais
modernos. Cada novo regimento que surgia tentava atualizar-se para suprir as
necessidades que as novas situaes exigiam e compensar as falhas do anterior. Os
redatores da Inquisio reuniam o pensamento jurdico inquisitorial de uma poca,
compilando-o no novo texto. Os tribunais inquisitoriais modernos no funcionavam de
maneira equnime e sincronizada e novas prticas e regulamentos surgiam em
diferentes perodos e em cada nao em que o tribunal atuou. Os primeiros
regulamentos da Inquisio moderna aparecem na Espanha, em 1484. Os cristos novos
adquirem papel relevante nas finanas dos Estados ibricos durante os sculos XVI e
5
5
BETHENCOURT, op. cit., p. 47.
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XVII, inclusive no comrcio de ultramar. Passam a ter participao intensa para no
falar em monoplio no trfico de escravos, no comrcio do acar, de especiarias e
outros produtos coloniais, alm da facilidade que tinham de comercializar ao redor do
mundo, devido s vastas ligaes familiares que facilitavam os contatos e transaes
financeiras. Com a inteno de confiscar os bens desses grupos e barrar sua ascenso na
sociedade, a nobreza e o clero destes estados passam a criar instrumentos para coibir a
livre atuao dos indivduos nos setores produtivos do pas. As perseguies e
condenaes, muitas vezes, era uma forma do Santo Ofcio e das coroas espanhola e
portuguesa levantarem grandes somas de riqueza em forma de terras, produtos e
dinheiro. Limitao dos direitos dos descendentes de convertidos e aplicao dos
estatutos de pureza de sangue foram artifcios usados para interromper o progresso dos
cristos novos na sociedade ibrica. Apenas na administrao pombalina, j no sculo
XVIII, que Portugal haveria de dar um fim distino de tratamento jurdico entre
cristos novos e cristos velhos.6
O Regimento do Santo Ofcio da Inquisio dos Reinos de Portugal data de
1640. Foi ordenado por mandado de Dom Francisco de Castro, o Inquisidor Geral do
Conselho de Estado do rei de Portugal. Este documento da maior importncia para se
entender o funcionamento interno e externo dos tribunais do Santo Ofcio daquele pas,
no sculo XVII.
Os regimentos tiveram papel fundamental na consolidao e no estabelecimento
da Inquisio portuguesa. Esses documentos mostram uma notvel prtica jurdica e
administrativa por parte dos funcionrios do Santo Ofcio e revelam o elevado nvel de
centralizao e burocracia dos tribunais. As primeiras instrues datam de 1541,
quando da criao de novos tribunais em Coimbra, Lamego, Porto e Tomar.7 As
normas inquisitoriais em Portugal mantiveram a prtica de se renovar ao longo do
tempo. Aps as instrues de 1541, houve os regimentos de 1552, 1570 e 1613, antes de
chegarmos ao regimento de 1640.
6
6
Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marqus de Pombal: paradoxo do iluminismo. Traduo de Antnio de Pdua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 99.
7
7
BETHENCOURT, Francisco. Histria..., p.44.
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O regimento de 1640 fruto de intensos debates e do trabalho de comisses que
averiguavam questes como judasmo e reformas de servios nos tribunais, durante as
dcadas de 1620 e 1630, alm da publicao, em 1624, do volumoso catlogo de livros
proibidos.
O regimento um monumento jurdico em que so includas
numerosas regras e deveres de conduta para funcionrios, a par
de uma definio pormenorizada do processo penal, bem como
de uma caracterizao da tipologia de casos possveis e das
respectivas penas.8
A obra cinco vezes maior que o seu precedente, apresenta uma descrio
minuciosa da organizao administrativa, da sistematizao dos ritos (autos da f,
investidura, ditos, visitas e abjurao) e da etiqueta interna. a primeira vez que um
regimento vai se preocupar em abordar questes como etiqueta dos funcionrios e exigir
explicitamente a condio de nobre para inquisidor. Alm disso, sero reforados os
cuidados com o segredo do tribunal, com a qualidade da origem social dos
funcionrios e o alargamento de atribuies dos inquisidores e do Conselho Geral,
aumentando seus poderes e tarefas. Esse regimento complexo e soube resistir ao
tempo, orientando as funes inquisitoriais portuguesas at ser substitudo em 1774 pelo
ltimo regimento inquisitorial portugus, no perodo final do governo pombalino.
Sobre a estrutura do regimento de 1640, observa-se uma diviso em trs livros: o
primeiro livro trata dos ministros, oficiais e demais funcionrios do Santo Ofcio e suas
respectivas funes; o segundo livro discorre sobre as ordens judiciais e das prticas
processuais, e o terceiro, das penas que recebiam os culpados nos crimes conhecidos
pelo Santo Ofcio. Cada livro dividido em ttulos que apresentam o tema a ser
explicitado; esse tema, por sua vez, pode ser subdividido em pargrafos. O primeiro
livro possui vinte e dois ttulos, em setenta e trs pginas; o segundo apresenta vinte e
trs ttulos, em sessenta e nove pginas, e o terceiro livro vem com vinte e sete ttulos,
em cinquenta e trs pginas. Esses nmeros do idia do tamanho do documento.
O sculo XVII uma poca curiosa da histria portuguesa e a inquisio de
Portugal afetada pelos acontecimentos e mudanas ocorridas nesse perodo. no
8
8
BETHENCOURT, Francisco. Histria..., p.47.
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sculo XVII, por exemplo, que se verifica o fim da Unio Ibrica, iniciada em 1580,
com o desaparecimento de Dom Sebastio na batalha de Alccer-Quibir e finalizada, em
1640, com a chegada de Dom Joo IV ao poder.9 A inquisio portuguesa lana seu
terceiro regimento no ano que marca o fim da Unio Ibrica, para que o Santo Ofcio se
adequasse as novas realidades socioeconmicas que estavam sendo configuradas
durante esses processos de mudanas nas estruturas de poder. Apesar desse momento de
sobrepujana de Castela sobre Portugal, durante o perodo de controle da dinastia
filipina, a inquisio lusitana conseguiu agir com certa autonomia em relao
inquisio espanhola, o regimento de 1640, escrito nos fins do perodo da unio das
coroas ibricas, demonstrava essa autonomia em alguns dos seus artigos, como, por
exemplo, nesse trecho do artigo trinta e um do ttulo trs do primeiro livro em que o
Conselho da inquisio portuguesa ordena que as correspondncias para as inquisies
na Espanha passem primeiro por seu crivo:
Os Inquisidores tero boa correspondncia nos negcios que
tocarem a outras Inquisies, procurando com toda a diligncia
dar fcil expedio s cousas que lhe forem pedidas; e quando
houver nelas dilao, o faro saber aos Inquisidores por carta
sua, declarando a razo que h pra se dilatarem; e esta mesma
correspondncia guardaro com as Inquisies de Castela,
advertindo porm, que se delas lhe mandarem pedir culpas de
pessoas que estejam delatas em alguma das Inquisies deste
Reino, lhas no remetero sem primeiro darem conta ao
Conselho, e no havendo culpas, mandaro passar certido, que
lhe enviaro com resposta da mesa.10
O regimento de 1640 apresenta uma preocupao clara em distinguir os cristos
novos dos cristos velhos e de incluir, com exclusividade, a nobreza do reino na
administrao da inquisio, do seu conselho e dos tribunais. Em Portugal do sculo
9
9
Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. As estruturas... p. 139 - 147
10
1
Regimento do Santo Officio da Inquisio dos reynos de Portugal. Ordenado por mandado do illustrissimo e reverendssimo senhor bispo dom Francisco de Castro, inquisidor geral do Conselho de estado de Sua Magestade. Lisboa-Estaos, Manoel da Sylva, 1640. Livro I, Ttulo III, art. 31, p.18.
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XVII, o poder do Estado estava intimamente relacionado com as aes da Igreja, e a
instituio inquisitorial era uma ala forte da igreja nesse papel com o Estado. Vrios
clrigos que exerciam funo na inquisio, frequentemente, exerciam algum cargo
poltico de grande relevncia. Como foi o caso do cardeal Dom Henrique, que se tornou
rei de Portugal, sucedendo Dom Sebastio no trono portugus; o arquiduque Alberto,
que foi vice-rei e inquisidor-mor de Portugal; Dom Jorge de Almeida, arcebispo de
Lisboa e inquisidor-mor, foi um dos cinco governadores do reino portugus aps a
morte de Dom Henrique; Dom Pedro de Castilho, inquisidor-mor que ordenou o
regimento de 1613, foi duas vezes nomeado vice-rei; o cardeal Nuno da Cunha,
inquisidor-geral por quarenta e trs anos e membro do Conselho do Estado, funes
idnticas foram acumuladas por Dom Incio de So Caetano. Outro caso curioso a do
bispo Francisco de Castro, inquisidor-geral que ordenou o regimento de 1640. Este
bispo era originrio da primeira nobreza portuguesa, foi bispo da Guarda, nomeado
inquisidor em 1630, era neto do vice-rei da ndia, Dom Joo de Castro. Chama ateno
o seu poder durante a Restaurao da independncia do Reino, em 1640, quando foi
detido, em 1641, junto com outros nobres e clrigos de alta hierarquia, acusado de
conspirao. No somente escapou da execuo, como lhe foram restitudos todos os
ttulos e dignidades em 1643, aps presso do Conselho Geral da inquisio e
convencimento do tribunal rgio de seu esprito de obedincia. Em seus ltimos dez
anos de vida, manteve srios atritos com o rei, pelo modo como este utilizava o tribunal
inquisitorial para perseguir cristos novos e angariar recursos para seus projetos e
conflitos blicos. O rei nunca conseguiu demiti-lo do cargo. Francisco de Castro chefiou
o tribunal de 1630 at a sua morte, em 1653. Francisco Bethencourt analisa a
independncia dos inquisidores portugueses nas decises polticas do reino, neste
trecho:
O envolvimento poltico dos inquisidores-gerais portugueses
ainda maior do que o de seus colegas espanhis: num total de
vinte dignitrios, catorze exerceram funes polticas e
administrativas na Monarquia, enquanto Espanha a relao de
dezessete em um universo de trinta inquisidores-gerais
nomeados entre 1483 e 1717.11
11
1
BETHENCOURT, Francisco. Histria..., p.116.
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Em Portugal, o clero era ativo em todos os estamentos sociais. Os nobres e os
religiosos recebiam privilgios e tratamentos especiais da inquisio em relao s
camadas populares, pessoas de outras crenas e estrangeiros. O regimento de 1640
legisla de forma clara sobre esses privilgios e tratamentos especiais. Iniciando na
contratao de funcionrios, no qual o regimento ordena que os ministros e oficiais do
Santo Ofcio sero naturais do Reino, cristos velhos de limpo sangue, sem raa de
Mouro, Judeu, ou gente novamente convertida nossa Santa F, e sem fama em
contrrio, que no tenha incorrido em nenhuma infmia pblica de feito, ou de direito,
nem fossem presos, ou penitenciados pela Inquisio, nem sejam descendentes de
pessoas que tiverem algum dos defeitos sobreditos, sero de boa vida e costumes,
capazes para se lhe encarregar, qualquer negcio de importncia, e de segredo. 12
Alm dos altos funcionrios a fidalguia poderia contar com privilgios em audincias,
confisses e outras matrias processuais. No artigo treze do primeiro livro, ttulo trs, o
regimento ordena sobre a audincia dos inquisidores nas mesas dos tribunais. Segundo
este artigo, as pessoas comuns no poderiam depor seno na mesa inquisitorial, no
sendo permitido, a inquisidor nenhum, recolher depoimentos e confisses fora da mesa
do tribunal, salvo nos casos em que se tratar de bispos, mulheres que residam em
mosteiros ou clausura, mulheres fidalgas ou casadas com homem de qualidade e
fidalgos que estejam doentes em casa, nestes casos um deputado e um notrio do
tribunal seriam encarregados de cumprir a diligncia nas residncias de tais pessoas. No
caso de pessoas ordinrias doentes, o regimento ordena que a diligncia seja feita por
apenas dois notrios do tribunal, quando o caso for de grande importncia para o
processo. O artigo quarenta do primeiro livro do ttulo trs legisla sobre a alimentao
dos presos. Neste artigo, dito que era responsabilidade dos inquisidores cuidarem das
cobranas de todas as receitas do tribunal, para que o mesmo cumprisse com suas
dvidas e exerccios da casa, essas cobranas eram efetuadas pelo tesoureiro do tribunal
quando se tratava dos presos pobres e se tratando dos presos ricos a cobrana era feita
com o passar de precatrios para ao Juiz do Fisco.
O documento inquisitorial descreve como as relaes da sociedade crist com
estrangeiros e pessoas de outra f devem se efetuar como, por exemplo, no artigo trinta
12
1
Regimento do Santo..., Livro I, Ttulo I, art. 2, p. 1-2.
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e oito do primeiro livro, ttulo trs: Vindo a este Reino algum Judeu de sinal, os
Inquisidores o mandaro chamar mesa, e lhe ordenaro com graves penas, que traga
sempre chapu amarelo, e no se comunique em segredo com a gente da nao, e s fale
com aquelas pessoas com que tiver negcios, e tanto quando for noite se recolha sua
casa, e ordenaro a um familiar de confiana que acompanhe, e faa cumprir o
sobredito, e por este trabalho lhe assinaro o salrio que parecer, que o mesmo Judeu lhe
pagar.13 Alm disso, o documento tambm controlava a vida privada dos funcionrios,
como no caso do artigo cinquenta e um do primeiro livro, ttulo trs. Este artigo ordena
o que um funcionrio do tribunal (oficial ou familiar de funcionrio) deve fazer caso
resolva casar-se. Segundo o regimento, essa pessoa deve informar mesa inquisitorial a
sua inteno de contrair matrimnio, fornecer informaes sobre a pessoa com quem se
casar, incluindo informaes sobre os pais e avs da mesma. Recolhiam-se detalhes de
onde a famlia da futura possvel esposa natural, investigavam-se moradores do local e
fazia-se o levantamento das informaes de pureza de sangue desta pessoa. Aps todo
este processo o funcionrio era autorizado a casar-se. Caso o pedido fosse negado e,
mesmo assim, se casasse, era exonerado do seu posto no Santo Ofcio. No caso de
contrair matrimnio sem informar mesa, o funcionrio era suspenso do cargo, at o
fim da investigao. No havendo provas contra o matrimnio, a suspenso era anulada.
E, no sendo o matrimnio aprovado pela mesa inquisitorial, o funcionrio era privado
do seu cargo.
Na estrutura do tribunal, se verifica o cuidado do regimento em deixar claro o
privilgio nobilirquico, mesmo quando se trata dos mveis do lugar. As cadeiras onde
assentavam os fidalgos deveriam possuir espaldas, j as pessoas de baixo status social
deveriam sentar-se em bancos ou cadeiras rasas. O quinto artigo, do segundo livro,
ttulo quatro ordena:
Os Inquisidores no mandaro prender Clrigo, ou Religioso
algum, nem pessoa secular, a que conforme a este Regimento na
mesa se deve dar cadeira de espaldas, ou mercador de grande
cabedal, nem pessoa alguma pelo crime de sodomia, sem
primeiro enviaram as culpas ao Conselho; e mesmo faro
13
1
Regimento do Santo..., Livro I, Ttulo III, art. 38, p. 20.
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quando houver dvida, se o culpado mercado de grande
cabedal, ou de qualidade, que na mesa se lhe houver de dar
cadeira de espaldas; contudo se houver temor de fuga, fazendo-
se dela informao judicial, quem se ajuntar s culpas, se
poder proceder a prises nos sobreditos casos sem ordem do
Conselho.14
Na rea das sentenas penais o regimento elenca uma srie de heresias e crimes
contra a Santa F. Nesta parte do regimento, aparecem ordenamentos sobre quando se
efetivar a tortura dos rus, relaxamentos e procedimentos finais dos autos da f. A
tortura deveria ser sempre acompanhada por um mdico, para avaliar a condio do
preso e se aguentaria os tormentos. Os mdicos e cirurgies do Santo Ofcio eram
chamados sempre que havia um preso doente. Deviam sempre passar informaes sobre
a situao clnica dos presos para a mesa inquisitorial. Alm dos presos esses
profissionais zelavam pela sade dos oficiais, ministros e familiares do tribunal
inquisitorial e prestavam assistncia no fim dos autos da f. A cada visita feita aos
presos ricos, o artigo trs do primeiro livro no ttulo vinte e um, define que, os mdicos
e cirurgies tinham direito a um ordenado extra, pago pelo tesoureiro do tribunal. No
caso das visitas aos presos pobres ou visita aos presos ricos que tiveram seu patrimnio
confiscado, no receberiam nenhuma proviso extra quela que j recebia mensalmente
do tribunal. O documento bastante rgido no caso dos herticos confessos. Para os rus
clrigos o exerccio da ordem suspenso para sempre, perdendo todos os benefcios e
honras do cargo, alm de sofrerem degredo. No caso de pertencer a ordens regulares,
eram reclusos nos crceres dos mosteiros. Os rus comuns, herticos confessos,
deveriam comparecer aos autos da f e declararem publicamente os seus pecados, usar o
sanbenito perpetuamente, no poderiam exercer ofcios pblicos, era proibido andar a
cavalo, usar jias ou peas de metais preciosos, vestidos de seda e portar armas sem
autorizao dos inquisidores. Os filhos e netos dos condenados eram proibidos de
exercerem cargos pblicos definidos pelo regimento e receberem qualquer honra real ou
eclesistica. Estas medidas esto definidas pelos artigos onze, doze e treze do terceiro
14
1
Regimento do Santo..., Livro II, Ttulo IV, art. 5, p. 89.
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livro, ttulo trs. Nos casos de blasfmia, o regimento ordena aoites e degredo, alm
das penas espirituais. Em caso de pessoa plebia blasfema, alm de abjurao pblica
no auto da f, o mesmo ser aoitado em pblico e condenado ao exlio nas gals, no
caso dos homens, ou degredada a Ilha do Prncipe, So Tom ou Angola, no caso das
mulheres. As pessoas nobres, por sua vez, ao praticarem o ato da blasfmia, eram
condenadas a abjurar em local pblico, escolhido pelos inquisidores, e deviam pagar
uma multa pecuniria. Aos eclesisticos, o crime de blasfmia incorre em abjurao leve
e recluso em local escolhido pelos inquisidores. Todas as pessoas presas por blasfemar,
que negavam sua culpa, eram colocadas em tortura. Esses dados esto definidos no
terceiro livro, ttulo doze, artigos de um a seis. Todas as prticas herticas ordenadas no
regimento de 1640 apresentam ressalvas nas penas para pessoas fidalgas e clrigos.
O cenrio histrico durante o sculo XVII em Portugal, marcado por diversas
crises e conturbaes no campo internacional. Durante 1640 at 1668, Portugal trava
uma longa batalha para desvencilhar-se da Espanha, so as guerras da Restaurao. O
tratado de Tordesilhas questionado por potncias emergentes, como: Inglaterra, Frana
e Holanda. Portugal perde o monoplio comercial em alguns mercados importantes,
como nos continentes asitico e africano, por exemplo. Chegando mesmo a perder
alguns territrios na sia e na frica. um perodo turbulento, marcado por agitaes
sociais e aumentos exagerados nas despesas do Estado. Apesar da crise do sculo XVII,
o Estado portugus ainda figurava entre as principais potncias da poca e a inquisio
portuguesa continuou forte e presente na sociedade lusitana.
O sculo XVIII no animador para as pretenses lusitanas. A segunda metade
do sculo das luzes sofre pela desorganizao das contas pblicas, uma administrao
necessitada de reformas urgentes, uma burocracia lerda e ineficiente, uma queda
significativa nas riquezas oriundas das colnias, como no caso da minerao de metais
preciosos em Minas Gerais que passa a produzir muito menos a partir desse perodo,
uma desvalorizao vertiginosa do preo do acar nordestino, um afastamento de
Portugal dos avanos polticos e tecnolgicos que comeavam a despontar em alguns
pases concorrentes e a nova ameaa ao absolutismo lusitano, que influenciava de foram
latente a classe intelectual portuguesa: o iluminismo.
No sculo XVIII, a idia do "bom governo" ganhou fora e se instituiu como pr-
requisito para o julgamento a ser feito sobre um governante. Bem diferente dos valores
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absolutistas, o "bom governo" surge ligado ao Despotismo Esclarecido (Bobbio, 1983, p. 345).
Como se sabe, o Despotismo Esclarecido o regime que caracteriza a fase final do
funcionamento de sociedades baseadas na hierarquia e governadas por um monarca absoluto
que tem na nobreza de nascimento a sua base de sustentao. Este quadro foi se tornando
incompatvel com as necessidades de crescimento e de criao de oportunidades de
enriquecimento e acumulao para pessoas que no tinham privilgios de nascimento.
nesta incompatibilidade que surge como indispensvel para a continuidade do Poder Real um
princpio que permitiria manter o convvio entre instituies da velha ordem absoluta e as
novas determinantes polticas e econmicas. No caso especfico de Portugal, do qual falaremos
mais adiante, o Despotismo permitiu enfrentar tambm um srio problema de dependncia e
inferioridade em relao s potncias estrangeiras. Para Portugal, buscar o crescimento
econmico seria indispensvel para fazer face, na medida possvel, ao poderio das duas
grandes potncias da poca. Neste cenrio, coube ao Brasil um papel importante: o
Despotismo Esclarecido portugus via nesta colnia a possibilidade para financiar as reformas
e o crescimento de que Portugal necessitava. O iderio do Despotismo Iluminado bastante
interessante. A palavra despotismo designa um regime autoritrio e encerrado em seus
interesses de domnio e poder totais. "A idia do Despotismo de bom sentido um elemento
importante da teoria e da ideologia poltica da fisiocracia" (Bobbio,1983, p. 345). Em princpio,
parece impossvel cunhar a idia de um despotismo que seja positivo. O fundador da
fisiocracia, Franois Quesnay, advogava a existncia de leis objetivas presentes na natureza.
Estas leis deveriam guiar a condio da poltica e dos governos. Legisladores e governantes no
poderiam agir segundo sua vontade ou suas convices, mas sim em funo da ordem natural
das coisas. Adaptar as leis humanas a esta ordem maior seria a funo da poltica. Para
justificar as reformas propugnadas pelo Despotismo Iluminado, foi preciso transformar a
prpria justificativa do poder: ao invs da origem divina da autoridade monrquica, teremos
a razo como base explicativa da nova forma de constituir o domnio. As leis necessrias para a
implantao da nova ordem vem do Direito Natural e no do Divino. Para permitir esta
transio sem provocar o questionamento da autoridade real, era preciso um monarca forte e
de autoridade incontestvel. Do contrrio, a separao de poderes defendida por
Montesquieu seria a nica sada. E isto em nada interessaria ao rei.
O atraso econmico foi, sem dvida, um fator determinante para o
Despotismo Esclarecido em Portugal. O pas afundou-se num modelo econmico retrgrado
quando outras naes europias (que haviam ficado atrs de Portugal na corrida das grandes
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navegaes do sculo XVI) comearam a aflorar com suas revolues na agricultura (sculos XVII e
XVIII) e com uma poltica de investimentos em manufaturas a partir do incentivo do Estado. O
atraso tornou-se cada vez maior ao ponto que os portugueses mergulhavam num modelo baseado
nos privilgios do clero e da nobreza enquanto Inglaterra e Frana tomavam o rumo de uma
sociedade burguesa.
As duas potncias passaram a disputar a hegemonia sobre pases que haviam ficado para trs
na corrida da acumulao de capital. Portugal e Espanha enfrentaram srios revezes sendo
obrigados a acordos desvantajosos com uma e com outra potncia. Os tratados assinados por
Portugal com a Inglaterra no incio do sculo XIX so um captulo deste processo. Com estes
acordos, ocorria uma transferncia do capital vindo das colnias para as mos das naes mais
ricas. Enquanto os franceses garantiam sua hegemonia no continente, os ingleses tratavam de
consolidar-se no Atlntico. A posio geogrfica favorvel, o domnio de algumas reas
remanescentes da expanso colonial e a fragilidade de sua economia colocava os lusos como
caa a ser disputada pelas naes mais fortes econmica e militarmente. Assediado pelos
franceses e pelos ingleses, o pequeno reino ibrico acabaria por se decidir pelos ltimos.
Contudo, antes disso, viveu dificuldades que chegaram a pr em dvida a sua prpria
independncia. o Despotismo Esclarecido do reinado de D. Jos I era uma tentativa de
recuperar o pas. D. Joo V havia deixado uma monumental crise a ser superada. O
Despotismo deveria manter a independncia e superar o atraso. No logrou o segundo intuito
plenamente, mas foi o caminho para recuperar a firmeza do Estado, abalada pelo poder do
clero (principalmente os jesutas) e da nobreza.
Para implementar as reformas que eram necessrias, o novo rei foi buscar um
desprestigiado auxiliar do governo anterior. Sebastio Jos de Carvalho e Melo Conde de Oeiras e
Marqus de Pombal chegou a ser considerado incompetente no governo de D. Joo V. Em 1749 foi
demitido da diplomacia, tendo de retornar de Viena para Lisboa. Sebastio Jos era filho da pequena
nobreza. Seu prestgio no era grande. Teve, entretanto, a sorte de se identificar com os que estavam
descontentes com o reinado que se findava. Talvez por isso, foi convocado para participar do
novo reinado.
Com o tempo, na conduo das reformas, ficou claro o seu talento para o mando e
para a poltica. Sua poltica baseou-se na reorganizao do Estado e do comrcio. Protegeu
abertamente os grandes mercadores ligados ao governo, chegando mesmo a perseguir pequenos
comerciantes. Como se tentasse "criar" a burguesia que Portugal no tinha, o Marqus partiu
para uma poltica de interveno e conduo do crescimento. Para isso, tratou de diminuir o
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poder da nobreza (O clssico Processo dos Tvoras um exemplo disto) e do clero (com a
expulso dos jesutas de todo o Reino).
Alm disso, partiu Pombal para uma ampla reforma na educao. Dentro de uma poltica
tpica do Despotismo Esclarecido, procurou incentivar o estudo das cincias exatas e da
natureza promovendo uma ampla modificao na Universidade de Coimbra. Criou o Real
Colgio dos Nobres, a Aula de Comrcio e a Real Mesa Censria. Esta ltima deveria tratar de
administrar e direcionar todas as escolas do Reino, inclusive o Real Colgio, mas
principalmente as escolas bsicas. Retirou os jesutas do ensino (o que ocorreu antes da
expulso propriamente dita) atravs do "Subsdio Literrio" e criou um imposto para financiar
a educao.
Na economia, implementou-se a criao de diversas companhias de comrcio que
protegiam o comrcio colonial das leis do livre mercado. Estas organizaes eram monopolistas,
mantidas por aes, abertas a participaes de estrangeiros. Estas companhias recebiam monoplios
para determinados produtos em certas regies do Imprio. A liberdade de comrcio se tornou
restrita a poucos produtos. Com isso, Pombal procurava garantir a renda do Estado e criava, em
teoria, as condies para o florescimento de uma burguesia slida. Os cristos-novos que
participavam das companhias tiveram
o capital participante isento do confisco inquisitorial. Portugal tinha pressa em recuperar
o tempo perdido. Foram criadas as seguintes Companhias: Companhia da sia
(1753), Companhia do Gro-Par e Maranho (1755), Companhia da Agricultura
dos Vinhos do Alto Douro e Companhia da Pesca da Baleia (ambas em 1756) e Companhia de
Pernambuco e Paraba (1759).
Enquanto, por um lado, incrementava ou tentava o crescimento econmico, por
outro se garantia a presena do Estado nas alfndegas e na cobrana de impostos. A poltica
pombalina tinha uma lgica interna bastante evidente, mas suas ambigidades eram as
ambigidades inerentes ao Despotismo Esclarecido e, ainda mais, as contradies da realidade
portuguesa. Por isso, as reformas enfrentaram muitas dificuldades. Aps 1760, a conjuntura
foi se degenerando para os interesses portugueses. Os diversos problemas que enfrentava o
comrcio portugus colonial e o despencar da produo de ouro do Brasil levaram Pombal a
uma poltica de incentivo indstria. Com isso, tentava fazer face s importaes,
promovendo sua substituio. No houve tempo para tanto. A concorrncia, a falta de capital
e a debilidade do Estado lusitano impediram a concretizao plena das mudanas. Se, por um
lado, a poltica pombalina permitiu alguma estabilidade e impediu que a crise se aprofundasse,
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o seu objetivo maior de colocar Portugal na rota de alcanar as naes mais ricas no pde ser
alcanado. Com a morte de D. Jos I, Pombal foi afastado e parte das reformas, esquecida.
Quando, em 1591, o visitador Furtado de Mendona aportou na Bahia para
inquisitoriar a colnia, representava um Tribunal forte e poderoso nas suas cinco dcadas de
existncia. Era "um Estado dentro do Estado", como diz Antnio Jos Saraiva (Saraiva, 1969,
p. 159). Seu poderio era tanto que "em certas ocasies se pretendeu, mesmo, acima do
Estado" (Saraiva, 1969, p. 159). Mais tarde, no sculo das luzes, o Tribunal portugus foi
obrigado a se ajustar. A legislao pombalina acabou com velhos preceitos que eram bsicos
para a ao inquisitorial. Note-se, entretanto, que Pombal no agiu para acabar com o
Tribunal, mas para torn-lo um instrumento de Estado, uma arma para a execuo de sua
poltica de reformas.
"Contrariamente ao que se tem escrito, o Marqus
de Pombal no restringiu as atividades do Tribunal da
Inquisio, mas, ao contrrio, ampliou-o visando a
reforar o poder do Estado. Transformou a Inquisio
num Tribunal Rgio, e deu-lhe o ttulo de
'Magestade'. Nomeou-se a si prprio e a seus
parentes 'familiares' do Santo Ofcio. E de seu irmo
fez "inquisidor'." (Novinsky, 1982, p. 147).
A Inquisio passou, ento, a depender do rei e no do Papa. A distino entre
cristos-velhos e cristos-novos foi extinta. Paulo de Carvalho, irmo de Pombal, foi nomeado
Inquisidor-Geral. Um novo Regimento seria promulgado em 1 de setembro de 1774. Neste
perodo se daria o que seria o ltimo auto-de-f de Portugal. Seriam queimados a o Cavaleiro
de Oliveira e o Pe. Gabriel Malagrida. Ambos haviam dito que o terremoto de Lisboa sucedera
por causas divinas. Na sentena se declara que tanto um como outro so hereges, porque o
terremoto se deve no a castigo divino, mas a causas naturais (Saraiva, 1969, p. 169). O
inverso desta culpa talvez fosse possvel algumas dcadas antes. A sentena tem um papel
quase didtico ao tentar impor um conceito natural diante de uma convico mstica. S que
no se conseguiu disfarar a ambigidade: tentou-se usar a fora para impor a luz do sculo
XVIII. As luzes que deveriam triunfar por fora da razo, em Portuga1, pareciam faz-lo
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aliando-se ao terror das fogueiras inquisitoriais. Era a poltica de Pombal, a "poltica
impossvel" de que nos fala o Cnego Antnio Ribeiro Sanches.
"O ministro tentou seguir uma poltica impossvel:
quis civilizar uma nao e, ao mesmo tempo,
escraviz-la; quis espalhar a luz das cincias
filosficas e, ao mesmo tempo, elevar o poder real
at ao despotismo (...)" (Antnio Ribeiro dos Santos,
in Boxer, 1969, p. 190).
Esta forma de "civilizar" a nao era bastante contraditria. Para Pombal, era a sada
de uma nao mergulhada em valores do passado e acossada pelo presente. As potncias
vizinhas eram o modelo do futuro para Portugal. Afinal, segundo o ilustrado Pe. Verney,
"tem-se notado que o diabo tem muito medo dos
pases onde se sabe bem Filosofia, Medicina, Leis e
Teologia, pelo que no se atreve j em tais lugares a
fazer pacto com homem nenhum" (In Saraiva, 1969,
p. 203).
Neste contexto de transformaes ambguas chega ao Brasil uma nova visitao do Santo
Ofcio: o Pe. Giraldo Jos de Abranches vem inquisitoriar o norte do Brasil. No se pode dizer
que as reformas do Tribunal j estivessem em vigor, pois a Visita se encerra em 1769 e o novo
Regimento s entrar em vigor cinco anos depois. Mesmo assim, o quadro de reformas
caracterstico do perodo pombalino j dava ao Estado autoridade sobre o Tribunal. At que
ponto essas modificaes se fizeram sentir em tal visita? Este visitador, bem diferente do
primeiro, ter um trabalho lento e difcil pela frente. Sua autoridade j no tem a fora do
"Estado dentro do Estado". Amaral Lapa chega a dizer, referindo-se ao enfraquecimento
paulatino que experimentou a autoridade do visitador, que "a presena do Santo Ofcio
acabara entrando para a rotina da vida paraense" (Amaral Lapa, 1979, p. 64). Isto no significa
obrigatoriamente que as reformas do Marqus de Pombal estivessem diminuindo o poder
inquisitorial. Ser preciso que se pesquisem melhor as especificidades da Visita ao Par para se
ter uma posio definida. Vimos no captulo anterior que o "abrandamento" da Inquisio
pode ser uma iluso.
Em 1763, ano em que se inicia a visita ao Par, as transformaes j
estavam em curso. Somente em 1774 que estas modificaes se consolidaram num
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Regimento novo, mas que no ser to inovador quanto se pode imaginar. este
Regimento que analisamos neste item.
Utilizaremos o Regimento de 1774 na edio do Excelsior de Lisboa de 1971 com
introduo e atualizao de Raul Rego (1971). As circunstncias em que se elaborou este
Regimento transformam-no num importante referencial para uma das mais complexas pocas
da Histria de Portugal. Redigido em pleno perodo pombalino em conseqncia das reformas
do todo-poderoso ministro do rei, o documento apresenta at hoje um insondvel mistrio:
quem o teria escrito? Muito j se discutiu a este respeito, mas ns no pretendemos entrar em
tal discusso aqui. Apesar de no considerarmos este problema de todo irrelevante,
acreditamos que o contexto se torna mais importante do que saber se foi o Cardeal da Cunha
ou o Marqus de Pombal o autor das novas regras pelas quais se guiaria o Tribunal a partir
da. No volume se pode ler ordenado com o Real Beneplcito, e Rgio Auxlio pelo
eminentssimo, e reverendssimo Senhor Cardeal da Cunha" (Rego, 1971, p. 4).
Entender o sentido da reforma do Tribunal do Santo Ofcio dentro do contexto
das reformas pombalinas um estudo rido. No s pelo tema, mas pelo pouco interesse dos
historiadores em mergulhar no assunto. Nosso interesse central aqui outro: pretendemos
compreender a influncia do Regimento na atuao do Tribunal. Apesar disso, dedicaremos
algumas observaes a respeito, como introduo a anlise do texto do Regimento em si.
Criou-se certa simplificao neste processo de entendimento do papel do
Santo Ofcio nos tempos de Pombal. Tem-se estudado muito a Inquisio, mas 1774 aparece
como uma barreira a partir da qual o tema j no desperta maiores interesses. "Uns supem
que tudo tenha continuado como dantes e outros julgam que deixa de interessar este objeto
Inquisio como tema de pesquisa e de estudo" (Falcon, CII, 5). Este ltimo argumento no
procede. No I Congresso Internacional sobre Inquisio, realizado em So Paulo, o historiador
portugus Reis Torgal trouxe uma interessante informao a este respeito. Segundo ele,
durante os movimentos revolucionrios que sacudiram Portugal na segunda dcada do sculo
passado, se construiu uma viso da Histria do Tribunal do Santo Ofcio, dividindo-a entre dois
perodos aparentemente conflitantes: antes e depois de 1774 (Torgal, CII, 14). Aps esta data,
o Tribunal teria evoludo para melhor, tornando-se uma instituio positiva. Esta viso
maniquesta, surgida tantos anos depois das reformas pombalinas, demonstra a vitalidade que
ainda movia a instituio naquele incio de sculo. A Inquisio continuou, s que agora
revestida de uma nova funo: passou a ser um instrumento do despotismo esclarecido
instalado no trono. Nos tambm consideramos que 1774 marca uma nova fase para a
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Inquisio portuguesa, s que de modo algum a reputamos boa ou m. Constatamos apenas
que o Santo Ofcio tornou-se ainda mais ambguo, passando a ser instrumento do Estado,
mantendo plenamente sua viso herica do mundo e, ao mesmo tempo, sendo incapaz de
modificar substancialmente a forma de ao do corpo burocrtico e denunciador que possua
em todo o Imprio. Como se fosse um monstro cujos membros se movem mesmo aps a
cabea ter sido cortada, o Tribunal continuou agindo at em desrespeito a algumas reformas.
No item 3.3 veremos o caso de Matias Guizanda, muito ilustrativo a este respeito.
Assim, tambm de uma continuidade que estamos falando. A Inquisio
mantm parte de suas tradies de um tribunal da f, enquanto o Estado tenta transform-la
em instrumento prprio. Ao mesmo tempo, o Estado busca construir sua mquina
repressora. Para que a mquina estatal se impusesse como instrumento de represso, o
aparato policial cresce e se consolida no ltimo quartel do sculo XVIII. Relacionar as condies
de ao da Intendncia Geral de Polcia com o funcionamento do Santo Ofcio, aps as
reformas pombalinas, a nica forma de permitir a compreenso do processo que pode ter
levado ao esvaziamento do Tribunal1. Sem ter uma funo clara, a Fortaleza do Rocio veio
abaixo. Seguindo esta hiptese, podemos chegar concluso que o Estado fracassou ao tentar
assimilar a Inquisio sua mquina repressora. Contudo, acreditamos que o Tribunal
desempenhou um importante papel na transio iniciada por Pombal. Dialeticamente, esta
transio acabaria por dispensar o prprio Tribunal.
Como j vimos no capitulo anterior, a intolerncia inquisitorial "abrandou-se"
no sculo XVIII. Este processo de "abrandamento" anterior efetivao do Regimento
pombalino, que s se daria em 1774. Diante de casos que j citamos (Anselmo da Costa em
1764, Maria Francisca em 1758, Gabriel Malagrida e o Cavaleiro de Oliveira em 1761)
possvel deduzir-se que as mudanas ocorreram em dois sentidos: abrandava-se a ao
inquisitorial em relao a culpas tradicionais, mas mantinha-se a intransigncia para com uma
nova culpa: a de ir contra a "luz do sculo". O Regimento foi antes um esforo do Marqus de
Pombal para sintonizar Portugal com aquilo que ele considerava ser a contemporaneidade do
mundo de ento. Mesmo mergulhado nas suas ambigidades e, muitas vezes, nas dificuldades
que tinha para solucionar muitos dos problemas do Reino, o ministro acabou por impor um
iluminismo portuguesa sobre a Inquisio. A funo de suas reformas era dupla: servir para
combater o atraso, ao mesmo tempo, promover mudanas sem romper completamente com o
passado. Na necessidade de compatibilizar essas duas coisas reside o dilema das reformas.
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O texto do Regimento se divide em trs partes: um prembulo assinado pelo Cardeal
da Cunha (possvel autor de todo o texto), o corpo principal das disposies e princpios
(divididos em trs livros dos quais falaremos adiante) e o alvar do rei, confirmando em 01 de
setembro de 1774 a sua validade e dando incio vigncia oficial do Regimento.
O prembulo se destina a recriar, de uma perspectiva ideolgica, a Histria de
Portugal. Da mesma forma que fazem os regimes totalitrios de nosso tempo, o pombalismo
deu ao povo portugus sua justificativa "histrica" para agir. E tambm, como no
totalitarismo, criou-se um culpado um "bode expiatrio" que por tudo foi responsabilizado
ao longo de quase trs sculos da vida do povo lusitano. Trata-se dos jesutas. Neste
prembulo, tenta-se explicar como os "scios" da Companhia (como so chamados
pejorativamente os jesutas) estiveram sempre por trs das tragdias que infelicitaram o povo
portugus. Nesta grande conspirao, teriam submetido a Inquisio e os reis. A Inquisio,
por sua vez, fora originalmente muito boa. Sua funo fora desnorteada pelos "scios" que a
transformaram num instrumento de aniquilamento da inteligncia dos portugueses atravs da
promoo de crenas fanticas e irreais como o feitio e as prticas mgicas. V-se aqui a
razo de Pombal ter extrado do novo corpo de regras do Tribunal a culpa de feitiaria. No h,
no prembulo, uma Histria real, h os fatos reais recriados luz de uma verso fantstica e
absurda que abarca todos os fatos, explicando a Histria de forma total. Em contraposio aos
jesutas e suas aes negativas, tudo de bom que se passara em Portugal teria ocorrido apesar
dos seguidores de Loyola. A brava resistncia dos monarcas teria dado a Portugal alguns anos
de crescimento e prosperidade, mas a situao de atraso em que o Reino estava mergulhado
no final do sculo XVIII era conseqncia da ao nefasta dos jesutas. Era preciso, ento,
apagar o passado e redirecionar o futuro. Para isso, tornou-se urgente reformular as
instituies portuguesas. A Inquisio, neste contexto, deixaria de ter no cristo-novo seu alvo
principal. Pombal considerava que a perseguio aos cristos-novos tinha provocado a fuga de
capital e que no fora razovel perseguir e processar conversos. O judasmo permanecer
como culpa, mas a proibio de se processar cristos-novos esvaziara uma das principais
fontes de rus para o Santo Ofcio. Em lugar do antijudasmo, a nova ideologia inquisitorial
passou a ser uma complexa retrica que justificava as reformas pombalinas. Seus pontos
principais dizem respeito trama jesutica, a necessidade de impr a luz e a perseguio aos
inimigos do Estado. Esta nova retrica no tinha a fora e o apelo popular da antiga. Sem
apelo, o Tribunal no mais empolgaria as multides que marcaram seus autos-de-f. O papel
de canalizador das insatisfaes populares, que havia marcado o Tribunal aps a sua fundao,
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por mais de dois sculos, estava se exaurindo. diante deste novo e envelhecido Tribunal
que estariam os denunciadores, denunciados e confitentes da Visita ao Par em 1763 e, alm
deles, o jornalista Hiplito Jos da Costa e o prisioneiro Matias Guizanda esses ltimos no
incio do sculo passado.
O novo Regimento, oficializado em 1774, reflete a fase por que passava o
Tribunal naquele momento. O volume era dividido em trs partes, conforme o esquema a
seguir:
ESTRUTURA DO REGIMENTO DE 1774
Prembulo
Livro I - 9 Ttulos
Regimento Corpo Principal Livro II - 15 Ttulos
Livro III - 23 Ttulos
Alvar do Rei
O corpo principal do Regimento se divide em trs livros: o primeiro composto por
nove ttulos e designa as pessoas que estavam a servio do Tribunal; o segundo est
subdividido em quinze ttulos especficos e trata da prtica judicial do Tribunal do Santo Ofcio;
o terceiro se compe de vinte e trs ttulos e determina as penas aplicveis e os casos a serem
punidos. Abaixo, apresentamos os ttulos referentes a cada captulo. Em seguida, explicaremos
o papel de cada um dos trs livros do Regimento.
COMPOSIO DO REGIMENTO DE 1774 TTULOS POR LIVRO
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Livro 1: Dos Ministros e Oficiais do Santo Ofcio e das cousas que nele h-de haver para
expedio do seu Ministrio. TTULOS: I, II- Dos Inquisidores, III- Dos Deputados, IV-
Do Promotor, V- Dos Notrios, VI- Dos Procuradores dos reis, VII Dos
Qualificadores, VIII- Dos Comissrios e Escrives do seu cargo, IX- Dos Familiares do
Santo Ofcio.
Livro II: Da forma e ordem por que ho-de ser processados os rus de delitos que pertencem
ao conhecimento do Santo Ofcio.
TTULOS: I - Da forma por que se ho-de tomar as denuncia, II - De como se ho-de
tomar as confisses aos presos, III - Dos Tormentos, IV- Das provas que se ho-de
somente reputar legitimas para a convico dos diminutos. V- De como ho-de ser
requeridos os Ordinrios para o final despacho dos processos, VI - Dos
apresentados e forma que se deve guardar em seus despachos, VII - Do despacho
final dos processos e votos que neles deve haver, VII - Como se h-de proceder com
os rus convictos ao crime de heresia, IX - Dos Hereges Afirmativos, X - Dos presos
que endoidecem na priso, XI - Dos defuntos, XII- Dos absentes, XIII - Das
suspeies, XIV - Das Apelaes, XV - Do que se h de observar nos casos em que,
pelas circunstncias que concorrem, se fizer indispensvel a publica demonstrao
dos autos-de-f.
Livro III: TTULOS: I - Dos apresentados, II - Dos negativos, III - Dos confitentes, IV - Dos
confitentes diminutos, V - Dos que revogam as confisses judicialmente feitas, VI
-Dos relapsos, VII - Dos apostatas, arrenegados e hereges que delinqirem nestes
Reinos, VII - Dos blasfemos e dos que proferem proposies herticas, temerrias
ou escandalosas, IX - Dos que desacatam o Santssimo Sacramento, ou as imagens
sagradas, ou recebem o mesmo Santssimo Sacramento no estando em jejum, X
Do jacobinismo, XI - Dos feiticeiros, sortlegos, advinhadores, astrlogos judicirios
e malficos XII - Dos bgamos, XIII - Dos que dizem Missa ou ouvem confisses, no
sendo sacerdotes, XV - Dos confessores solicitando ao sacramento da Confisso, XVI
- Dos sigilistas; XVII - Dos que do o culto devido aos Santos, aos que no so
beatificados e canonizados pela Igreja; dos livros que tratarem dos seus milagres ou
revelaes e dos que fingirem, XVIII - Dos que impedem e perturbam o ministrio
do Santo Ofcio, XIX - Dos que se fingem Ministros e Oficiais da Inquisio, XX - Dos
que fogem dos crceres e dos que no cumprem as penitencias que lhes foram
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impostas, XXI - Das testemunhas falsas, XXII - Dos que cometem o nefando crime
de sodomia, XXIII - Dos absentes e defuntos que morreram antes ou depois de
presos; dos que se mataram ou endoideceram nas prises. (Rui Rego, 1971, pp.
235-236).
OBS: Entre os ttulos XI e XII do Livro III, constam dois Captulos que pertencem
ao ttulo XI: I - Das pronncias e ordem dos processos. II - Das sentenas e
penas que nelas devem ser impostas aos rus (Raul Rego, 1971, p. 236).
Na concepo dos inspiradores do novo Regimento, a Inquisio sob influncia
jesutica teria representado as trevas da ignorncia e da superstio diante das luzes da
alvorada humanista e renascentista. Esta forma maniquesta e distorcida de ver a Histria do
Santo Ofcio se assemelha dicotomia luz x trevas que marcou a viso com que os prprios
renascentistas viam a Idade Mdia. Nesta viso, os renascentistas consideravam-se
portadores da luz diante do que Petrarca denominou de "barbarismo medieval" (Sevcenko,
1984, p. 14). Este "barbarismo" teria feito submergir a idade de ouro do pensamento antigo.
Com o advento do Renascimento, o mundo medieval caiu por terra. A concepo reformista
da Inquisio portuguesa tomou uma atitude parecida para explicar os erros (?) do Tribunal,
s que a ordem teria sido inversa: as trevas se sobrepuseram s luzes, pois os jesutas teriam
imposto ao Tribunal um caminho distorcido em oposio a um incio bom e puro. A funo da
reforma seria restabelecer a luz. Esta concepo serve duplamente aos seus criadores: (1)
justifica as reformas diante da constatao de que o Tribunal estava desvirtuado; (2) permite
evitar reformas exageradamente radicais, pois o Santo Ofcio original teria sido bom e a
funo das mudanas era recuperar o objetivo inicial do Tribunal. A extino no era do
interesse dos reformadores, mas uma mudana muito radical poderia tomar rumos
inesperados. Em Portugal, ento, as trevas tomaram o lugar das luzes e as reformas
pombalinas haveriam de inverter o processo colocando-o no mesmo sentido da dicotomia
luz/treva que inspirara o Renascimento trs sculos antes. Este resgate da "ordem natural"
est implcito na concepo reformista do Regimento de 1774. uma volta ao passado, mas
com o sentido de retomar o caminho certo e prosseguir novamente. Ao mesmo tempo, era a
vitria final do bem sobre o mal. Seria um caminho de volta travestido de inovao, seria uma
continuidade aparentando ruptura. No difcil imaginar a fora do apelo reformista para um
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pas ibrico e catlico to prximo das grandes potncias econmicas da poca, necessitando
acompanhar o ritmo de seu crescimento.
A partir desta oposio entre bem e mal surgem, ao longo do texto regimental,
opositores "menores", sempre dentro do contexto descrito no pargrafo anterior. Dentre estas
oposies, podem-se destacar trs: poder real x papado; tribunal legtimo x tribunal ilegtimo e
tribunal rgio x tribunal eclesistico. Ao longo do texto essas idias vm sempre em oposio
umas s outras. Esta forma de apresentar o problema tem como funo fazer o leitor assumir
uma posio idntica do texto em relao s questes levantadas. Como num regime
totalitrio o(s) autor(es) do Regimento pretende(m) induzir e convencer quanto pertinncia
de suas razes e validade das mesmas. Fosse um sculo depois e poderamos supor uma
influncia positivista nesta concepo de retorno ao Tribunal puro dos primeiros anos, com
uma adequao simultnea ao sculo XVIII, como se estivesse em busca de reencontrar o
caminho da evoluo.
O discurso desenvolvido no Regimento de 1774 permite falsear as mudanas
promovidas e limita estas mudanas, quase sempre, ao formal e exterior, sem promover
transformaes de fundo. O texto fala em sculo das luzes, mas mantm vivas caractersticas
indubitveis da Inquisio tradicional, como o antijudasmo, nem sempre disfarado, de busca
da pureza de sangue para os pretendentes a integrantes do corpo de agentes do Santo Ofcio.
Para estes de sangue impuro a exigncia clara:
"3 - Para constar das qualidades sobreditas, que ho
de ter os Ministros e Oficiais do Santo Ofcio, se faro
(precedendo os competentes depsitos) informaes
por despacho Nosso ou do Conselho Geral nos
lugares onde eles e seus pais e avs foram naturais e
moradores, principalmente os Inquisidores por
mandarem fazer diligncia nos secretos se neles h
culpas de judasmo provadas contra os pretendentes,
ou se os cometeram seus pais ou avs paternos, e
por elas foram processados e condenados nas
penas estabelecidas nos (sic) Leis do Reino. E,
achando culpas e sentenas desta qualidade,
suspendero nas informaes e Nos daro conta, e,
no as havendo, se passaro disso certides que
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mandaro juntar s diligncias" (Raul Rego, 1971, p.
38).
O descendente de cristo-novo condenado pelo Tribunal no seria mais vtima
da Inquisio, mas tambm no poderia fazer parte dela. A qualidade do indivduo continuava
a ser medida pelo sangue. A tradio cedia algum terreno, mas no deixava de influenciar. Em
vrias partes, o Regimento de 1774 repete o de 1640 (Francisco Falcon, CII, 5). Alguns
pargrafos so condensaes de vrios pargrafos do Regimento de 1640. Entre os ttulos, dois
novos surgem no texto de inspirao pombalina: o 10, do Livro 2, sobre os sigilistas e o 16, do
mesmo Livro, sobre os jacobinos. Por jacobinos, o Regimento entende uma "coligao de
indivduos dos cleros secular e regular e de seqazes leigos que, ligados a um particular e
inventado mtodo de vida espiritual" (...) se atrevessem a constituir na Lei da Graa uma
seita formal em tudo semelhante dos fariseus na Lei Escrita que pela do Evangelho se acha
reprovada" (Raul Rego, 1971, p. 173). J o termo sigilista designa os religiosos que quebraram
o sigilo sagrado da confisso (Raul Rego, 1971, p. 202). Paradoxalmente, apesar de repetir em
boa parte o de 1640, o de 1774 nega a validade do velho Regimento ao negar a prtica
inquisitorial que teria sido inspirada por ele, mas como sendo o resultado da influncia do
plano diablico dos jesutas. Mesmo assim, os reformadores do sculo iluminado no ousaram
atingir por completo o auto-de-f e a pena de morte. O auto recebe uma severa crtica no
Ttulo XV do Livro II, mas logo em seguida reabilitado com algumas modificaes. Neste
sentido, o texto comea a qualificar o auto como obra dos jesutas.
"e at autorizados com as armas da sua perversa e
j extinta Sociedade, foram outro invento da
malignidade dos mesmos regulares, para mais
fomentarem a ignorncia e o fanatismo que tinham
introduzido nestes Reinos com geral escndalo das
naes estrangeiras, as quais, sabendo, como
iluminados, que no havia na boa e sua Filosofia, na
Moral Crist, na Religio ou na Poltica razo ou
fundamento algum com que se pudessem coonestar
aquelas pblicas ostentaes de horrores e misrias,
viam caminhar to numerosos e miserveis rus em
solene e pomposa procisso para um teatro
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levantado dentro de uma Igreja, para a ouvirem
suas sentenas" (Raul Rego, 1971, p. 136).
Ao mesmo tempo em que condenava com tanta veemncia a realizao dos autos-de-
f, o Regimento recriava-os alguns pargrafos depois, camuflando-os:
"Porm, sendo presos e convencidos alguns rus ou
de heresiarcas ou de dogmatistas, ou de hipcritas ou
de sigilistas, ou culpados em outros delitos que, pela
sua extraordinria gravidade, escndalo, perigo de
grassarem e pelas agravantssimas circunstncias de
que se revestirem, peam satisfao, ordenamos que
na Inquisies, a que os ditos rus tocarem, depois
de os terem processado, consultem ao Conselho
Geral com os processos, substanciando na consulta
as culpas que se acharem provadas contra os ditos
rus e as circunstncias delas, para determinarmos o
tempo e o lugar em que devem ouvir as suas
sentenas os sobreditos perniciosos delinquentes"
(grifo nosso. Raul Rego, 1971, p. 138).
Mudava o local, mas continuava a existir uma cerimnia pblica onde o penitenciado
poderia, inclusive, ser relaxado justia secular (Raul Rego, 1971,
p. 139) terminologia inquisitorial que significa ser morto ou garroteado e, depois,
ser queimado.
No reino das ambigidades, essa era apenas mais uma.
Apesar das semelhanas, o Regimento de 1774 guarda tambm diferenas em relao
prtica dita tradicional da Inquisio. A aparente supresso do segredo do processo e o fim
da culpa de ser cristo-novo representariam, em conjunto, grandes modificaes para o
funcionamento do Tribunal. De agora em diante, o ru teria informaes mais precisas e
especficas sobre sua culpa e o desenrolar de seu processo. Afloram tambm outras
preocupaes que do uma amostra da mentalidade que inspirava o novo Regimento. Ao
longo do texto pede-se insistentemente que os processos sejam ilustrados com provas cabais e
definitivas. A culpa de feitiaria deixa de ser aceita por considerar-se pura e simplesmente que
no se pode prov-la. Em outros casos, o texto incisivo na necessidade de provas para
condenar os culpados. Esta preocupao no existe na prtica da Inquisio tradicional. Nela, o
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ru era preso, s vezes sem nenhuma prova ou culpa formada, mas apenas por determinao
da Inquisio. Neste caso, o segredo do processo permitia que se mantivesse preso algum
que no tinha nenhuma denncia oficial, mas a culpa poderia ser "construda" leia-se forjada
dentro da priso com as denncias mesmo falsas dos espias do Santo Ofcio que se fingiam
de presos (e mesmo os presos aceitavam participar desta tarefa humilhante). Outra
preocupao que no caberia no esprito da velha Inquisio era a de "buscar a luz do sculo".
Esta preocupao gera um preconceito contra o prprio povo portugus ao se comparar,
constantemente, este com outros povos j iluminados. Isto demonstra um sentimento de
inferioridade que far parte do caldo ideolgico que constituiu a poltica pombalina. Este
sentimento inerente s reformas, pois estas partem do princpio de que Portugal estava
ficando para trs em relao s outras naes do continente e, em funo disso, precisaria de
uma profunda mudana que envolvesse tanto os aspectos materiais quanto mentalidade
sustentadora do atraso. Enfim, tambm em relao ao tormento eufemismo para a tortura
a Inquisio mudou, mas conservou, mantendo esta prtica de investigao atravs de um
tenaz exerccio de camuflagem do velho dentro do novo. Desde a antigidade, a tortura vem
sendo considerada a "Rainha das Provas" (Peters, 1985, p. 51). Neste sentido, a tortura no
uma pena, pois antecede a prova da culpa. O tormento serve para criar a prova e alimentar o
processo. Entretanto, o sculo XVIII vai assistir a um perodo de abrandamento do uso da
tortura nos processos. A concepo geral que se tem hoje em dia de que a tortura tem uma
histria linear ao longo dos tempos. Na verdade, a prtica do suplcio para extrair confisso
tem passado por altos e baixos. Nos dias de hoje, estamos assistindo a um "renascimento"
frentico da tortura para as mais diversas funes. No sculo das luzes havia um
abrandamento. Naquele momento, "o fluxo de movimentos abolicionistas bem-sucedidos (...)
conseguiu acabar com a tortura, principalmente como parte dos processos penais" (Peters,
1985, p. 13). Em Portugal, contudo, a tortura mantida para crimes contra o Estado,
mascarados de crimes de religio. No Ttulo III do Livro II, a tortura posta de lado e, em
seguida, trazida de volta pelo artifcio jurdico da exceo. Diz o texto:
"Sendo a tortura uma crudelssima espcie de averiguao de
delitos, inteiramente estranha dos pios e misericordiosos sentimentos da
Igreja Me, a mais segura inveno para castigar um inocente fraco e para
salvar um culpado robusto ou para extorquir a mentira de ambos, a mais
exorbitante das regras ordinrias do Direito que no sofrem a imposio de
uma pena certa e to forte por um delito ainda duvidoso; abandonada do foro
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secular destes Reinos por um uso contrrio s Leis deles, legitimamente
prescrito com cincia e aprovao dos Augustssimos Senhores Reis dos
mesmos Reinos, permitida somente nos casos (que nunca aconteam) das
conjuraes de muitos contra a vida e estado dos Monarcas, em que a
indispensvel necessidade de se extirparem as razes de pestes to nocivas
faz prevalecer a segurana pblica contra o cmodo particular do delinquente
atormentado (...)" (Grifo nosso. Raul Rego, 1971, p. 89).
Diante de tanta nfase, possvel que o leitor apressado no veja o que vem logo a
seguir. Admitindo a tortura somente para conjuraes contra o Estado, o Regimento trata logo
de incluir como conjurao os crimes de religio dos novadores, heresiarcas e espritos fortes
que tenham difundido e disseminado as suas perniciosas seitas, em que, tambm para se
arrancarem entram as regras do maior bem comum de todos os Estados, que, consistindo na
conservao da Religio pura e ilibada de seitas, cismas e heresias que abalem e arruinem os
seus firmssimos fundamentos, se fazem igualmente superiores a toda a considerao
particular a favor dos atormentados (...) (Raul Rego, 1971, p. 90). Mesmo notando que
assuntos do Estado no fariam parte das preocupaes da Inquisio (no havendo destes
casos no Santo Ofcio, Raul Rego, 1971, p. 89), o Regimento nega-se a si mesmo e acaba
deixando as coisas quase como estavam. Parece-nos que houve uma tentativa de transferir a
funo do tormento para crimes contra o Estado, mas, como no simples adaptar o interesse
do Estado na legislao inquisitorial, acabou por haver uma manuteno da tortura para
crimes de religio que agora seriam tratados como assunto de Estado. Uma contradio que
custou a clareza do texto e deixou espao para que se abrissem tantos precedentes quantos
fossem de desejo do Estado ou do Tribunal. O melhor aliado de um sistema totalitrio uma
legislao generalista e pouco precisa na definio dos crimes que pretende punir. Um
exemplo clssico temos entre ns com a famosa Lei de Segurana Nacional usada pelo
Regime Militar que se implantou com o golpe de 1964.
Mais adiante, no item 3 do Ttulo III, Livro II, o texto deixa bem claro que "heresiarcas
ou dogmatistas" que disseminaram erros e que no os confessassem nem aos nomes de seus
cmplices,
"sero postos a tormento proporcionando a
qualidade da prova e dos indcios que contra eles
houver pelo muito que importa arrancar de entre os
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fiis to venenosas e pestferas razes" (Raul Rego,
1971, p. 91).
A dualidade do Regimento de 1774 servia com perfeio aos interesses de Pombal e da
sua poltica reformista. Na verdade no era o Regimento, mas a prpria poltica que era
ambgua e contraditria. Reflexo da sociedade portuguesa da segunda metade dos anos
setecentos.
CONSIDERAES FINAIS
Os Regimentos Inquisitoriais de 1640 e 1774 apresentam ambos um nascimento em
meio conturbaes polticas, sociais e econmicas. As caractersticas do Regimento de 1640
so tpicas de um estado mercantil, de uma coroa centralizadora e de uma inquisio presente
nas aes estatais. Em 1640, comparando com 1774, podemos dizer que havia uma maior
interao da Igreja com os assuntos dos Estados nacionais ibricos, enquanto que o regimento
posterior, engloba funes e atividades antes restritas a clrigos unicamente. O cristo novo
no mais o alvo central do sculo XVIII, como era no sculo XVII. A ameaa dos discursos
inflamados dos iluministas, dos jacobinos e a constante ameaa externa oriunda das novas
potncias emergentes, marcam o tom do sculo XVIII portugus. Juridicamente podemos
observar no regimento de 1640 um direito mais conciso, denso, com poucas margens para
interpretaes variadas. Este regimento preso ao direito cannico e a elaborao deste
documento passou pelo crivo de vrios funcionrios da Igreja que faziam parte do Conselho
Inquisitorial. Ao contrrio do seu sucessor de 1774. Apesar de possuir diversas passagens
idnticas ao regimento anterior e preservar muito de sua estrutura bsica, o regimento de
1774 possui muitas ambigidades, elaborado deixando-se influenciar pela cultura jurdica
portuguesa. Sua elaborao misteriosa e a corpo de funcionrios inquisitoriais nesse perodo
demonstravam grande subordinao para com as decises estatais. Em muitos momentos,
mecanismos do Estado portugus, como: tribunais rgios, fora policial e administradores
eram colocados disposio da inquisio, no sendo raro tambm, quando a inquisio era
colocada a merc de interesses deste Estado. Um Estado que tentava trazer para a realidade
lusitana a ilustrao iluminista, sem que com isso, a Coroa no fosse corroda pelas
modernidades trazidas por esta filosofia. Essa luz, esse afastamento das trevas, foi levado
at os pores inquisitoriais.
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