Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
Centro de Ciências Jurídicas e Políticas - CCJP
Disciplina: Introdução à Jurisprudência
Professor: Rodolfo Noronha
Competição de julgamento simulado em Direito dos povos indígenas perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos
CASO HIPOTÉTICO – Aldeias Indígenas de Macondo, Ítaca e Lilipute X República de La
Mancha, representada por FUILM
A) CONTEXTO
1- A República de La Mancha situa-se na América do Sul. Sofreu colonização espanhola no
século XVI, porém, antes da chegada dos espanhóis, já era habitada por diversos grupos de
etnias indígenas. Em 1822 tornou-se independente, estabelecendo a cidade de Santa Fé de La
Mancha como sua capital. O país é o segundo mais populoso da América Sul, com 81 mil
habitantes, dos quais apenas aproximadamente 3.000 são de origem indígena. Atualmente,
são identificadas somente 10 aldeias espalhadas pelo país. La Mancha passou durante muitos
anos vivendo diante da arbitrariedade de governos autoritários. Porém, a partir de 1988, La
Mancha estabeleceu-se como uma república constitucional, fundada sobre regras, princípios
e garantias fundamentais que servem de parâmetro de validade a todas as outras normas do
ordenamento jurídico. Além disso, tal Carta Constitucional recebeu o apelido de Constituição
Cidadã, pois resguardava garantias personalíssimas como a da Dignidade da Pessoa Humana.
Nesse sentido, é importante saber que a República de La Mancha ratificou tratados
internacionais de Direitos Humanos, bem como diversas convenções das Nações Unidas,
incluindo a Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e
Tribais e a Declaração das Nações Unidas Sobre Direitos dos Povos Indígenas.
2- A República de La Mancha é um país litorâneo e tropical, seu relevo é caracterizado como
planalto. A capital, Santa Fé de La Mancha, é uma cidade costeira de clima tropical quente,
com estiagem de dois meses por ano. Sua flora é predominantemente da floresta tropical,
com solo propício ao cultivo de aroeiras e pinhão. Devido à instalação de uma indústria de
celulose (Santa Fé Celulose), as plantações de eucalipto tornaram-se predominantes na
paisagem vegetativa da cidade, reduzindo em montes a vegetação tropical que existia. Além
disso, devido à capital estar localizada no litoral, ela abriga em sua costa regiões de
manguezal, um ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestre e marinho. O
interessante da cidade é que a população de Santa Fé de La Mancha inclui o maior
contingente indígena que restou no país.
3- A população indígena de Santa Fé divide-se em duas etnias diferente (tupiniquim e guarani) e
em três aldeias, denominadas Macondo, Ítaca e Lilipute. Suas terras foram homologadas
apenas em 2007, após 40 anos de disputas de terra com a empresa SF Celulose. Na década de
1960, a sociedade empresária nacional instalou-se nas terras indígenas e implantou extensas
monoculturas de eucalipto, destruindo aldeias e recursos naturais. Após intensos movimentos
sociais dos grupos indígenas para reaver suas terras, a Fundação Indígena de La Mancha
(FUILM), órgão nacional que estabelece e executa a política indigenista em La Mancha, fez
estudos para identificação do território indígena. A partir desses levantamentos geográficos, a
Justiça definiria os hectares pertinentes aos índios. Porém, a demarcação era sempre menor
do que a estudada, ou até mesmo que a reivindicada. Foram diversas negociações entre a SF
Celulose, os índios e a FUILM. Algumas, inclusive, descompassadas com as normas
constitucionais.
4- Por fim, os índios de Macondo, Ítaca e Lilipute tiveram suas terras demarcadas pela FUILM
devolvidas pela SF Celulose e homologadas pela presidenta de La Mancha. Dessa forma, foi
ajustado um acordo entre a empresa, os índios e o governo, representado pela FUILM,
denominado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com o intuito de estabelecer os
meios mais adequados para a devolução e recompensa do que não podia mais ser devolvido.
Após longos anos de lutas pelas próprias terras, as aldeias ainda travam difíceis relações com
outros macro-empreendimentos da região; a mais recente é com a Sociedade Empresária
Porto Seguro.
B) DOS FATOS DO CASO
5- A República de La Mancha passou nos últimos anos por grandes investimentos públicos e
incentivos ao capital privado em diversas áreas, tais como as de infraestrutura e habitação na
construção civil, e a revitalização de setores importantes da indústria naval. Houve, portanto,
um grande estímulo à construção de navios, principalmente, petroleiros e setores portuários.
A Cidade de Santa Fé de La Mancha foi incluída nestes investimentos, devido à sua extensa
faixa costeira e por não apresentar porto com infraestrutura adequada para acolher o
crescimento da indústria naval. Um dos maiores investimentos é o empreendimento da
empresa Porto Seguro. Esta é especializada em gestão portuária, comércio marítimo e
soluções logísticas integradas de grande porte e pretende fazer a instalação de um novo
terminal portuário no litoral da Cidade de Santa Fé.
6- Todavia, essa grande construção, prevista para ser concretizada na região norte costeira da
cidade, terá, de acordo com o layout das instalações portuárias da empresa, uma
infraestrutura projetada que avançará em um pedaço de terra pertencente aos povos indígenas
de Santa Fé. Esse é exatamente o imbróglio, entre a sociedade empresária e as populações
indígenas da cidade de Santa Fé, que foi intercedido pela FUILM.
7- De acordo com a Lei Nacional sobre Meio Ambiente, qualquer empreendimento que possa
causar degradação a recursos naturais precisa de licenciamento ambiental. O licenciamento
ambiental é um ato administrativo pelo qual o órgão federal responsável pelo meio ambiente
estabelece as condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser
obedecidas pelo empreendedor. Porém, quando se trata de terra indígena, o procedimento de
licenciamento divide-se em duas faculdades. Primeiramente, o licenciamento ambiental, que
continua sob a análise e emissão de licença pelo órgão federal responsável pelo Meio
Ambiente. Em segundo lugar, surge a necessidade da licença cultural, responsável por
analisar os impactos sobre a vida sociocultural da população indígena em questão. Uma lei
complementar interna de La Mancha determinou que cabe à FUILM a faculdade de emiti-la
separadamente à licença ambiental, mas com a mesma importância para a viabilização do
empreendimento.
8- A licença seria emitida pela FUILM por meio de um procedimento administrativo. Para tanto,
é da responsabilidade do empreendedor formular um Estudo de Componente Indígena (ECI),
com o intuito de analisar os requisitos e aspectos essenciais relacionados à questão indígena
para a identificação e análise dos impactos nos componentes sociais, culturais e ambientais,
decorrentes da interferência da atividade ou empreendimento.
9- Para a formulação do ECI, a empresa Porto Seguro contratou uma empresa de consultoria em
conjunto com antropólogos e estudiosos do Direito. A equipe teve como objetivo estabelecer
diretrizes de adequação e viabilidade do empreendimento, por meio de audiências com as
aldeias de Santa Fé. O estudo deve considerar o conjunto de medidas mitigatórias,
compensatórias e de participação devida, frente aos impactos socioambientais e culturais do
empreendimento.
10- De acordo com o relatório do ECI, foi constatado como impacto cultural a integridade das
Terras Indígenas, desconhecimento sobre a cultura Tupiniquim, afetação direta da Terra
Indígena de Macondo e a expectativa sobre a parceria com o empreendedor. Para tanto, será
estabelecido como medida mitigatória ou compensatória para os respectivos impactos os
seguintes projetos: cercamento das áreas expostas da TI Macondo e monitoramento da
integridade da TI, Programa de Comunicação Etnoambiental e Código de Conduta
Responsável, Grupo de Acompanhamento Lilipute – GAL – para acompanhamento da obra e
definição de procedimentos que assegurem segurança jurídica a todas as partes.
11- Haverá também impactos sobre o meio socioeconômico, tais como a interferência sobre as
atividades pesqueiras, o adensamento populacional e da demanda sobre a infraestrutura
pública, a pressão sobre o consumo local, aumento do volume de tráfego e do fluxo
migratório, alteração no uso e ocupação do solo e geração de emprego e renda. Para todas
essas afetações citadas, houve a negociação de um projeto ou programa de medida
compensatória. A proposição destes projetos fora realizada com o intuito de viabilizar o
empreendimento em conjunto com apreciação cultural. Esta, por sua vez, fora atestada pela
manifestação em conformidade, por escrito dos caciques e principais lideranças das Terras
Indígenas, com o empreendimento portuário.
12- Porém, mesmo com o sucesso das tratativas, a concessão da licença prévia cultural foi
negada pela FUILM, com a justificativa de que terra indígena é um bem indisponível e
inalienável, não podendo ser negociada. Com esta resposta, os índios de Macondo, Ítaca e
Lilipute sentiram-se violados. Para eles, a decisão da Fundação ignorou a autonomia indígena
sobre suas terras. Sendo assim, baseando-se na garantia fundamental de serem partes
legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, os índios das três
aldeias ingressaram em conjunto com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos.
C) DO DIREITO
13- A República de La Mancha tem uma longa história de políticas indigenistas, que, para o
presente estudo, tornam-se mais importantes os acontecimentos da década de 1970 em diante.
Em 1973, foi sancionada a Lei 6.001, mais conhecida como Estatuto do Índio. Tal lei
regulava a situação jurídica indígena e, seguindo preceitos da Lei Civilista em vigor da
época, considerava os índios relativamente capazes, e, por esse motivo, deveriam ser
tutelados por órgão estatal. Atualmente, essa tutela cabe à Fundação Indígena de La Mancha.
Além disso, o Estatuto prevê a integração harmoniosa e progressiva do índio e de sua cultura
à comunhão nacional. Com base nesse dispositivo, pode-se identificar uma gama de opiniões
e tratamento que o Estado conferia à população indígena completamente opostas aos
princípios atuais que versam sobre o assunto.
14- Em 1988, com a aprovação da nova Constituição, a população indígena recebeu outro
tratamento. Primeiramente, a multietnicidade e a pluralidade cultural são reconhecidas e,
posteriormente, a identidade propriamente indígena, o que inclui as organizações sociais,
línguas, costumes, tradições indígenas, devendo o Poder Público protegê-la e incentivá-la.
Dessa forma, é assegurado aos índios o direito à diferença, vale dizer, o direito de serem
diferentes e tratados como tais. Além disso, versando sobre a propriedade fundiária, a
Constituição garante o usufruto indígena das terras que ocupam, ou seja, os direitos
originários sobre as terras são reconhecidos. Dispõe ainda que suas “terras são inalienáveis e
indisponíveis, e seus direitos imprescritíveis, destinando-se à posse permanente dos índios
que tiveram garantido o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela
existentes”. Portanto, a tutela indígena deixa de ser uma tutela direcionada a pessoas e passa
a ser uma tutela de direitos, garantindo aos indígenas o uso de suas terras para fins de
subsistência e de reprodução física e cultural e, acima de tudo, o direito de ser índio.
15- Como analisado, o Estatuto de 73 está completamente destoante dos princípios e leis trazidos
pela Constituição de 1988, não obtento, pois, eficácia. No entanto, o novo projeto de Estatuto
não foi aprovado e ainda está em análise. Dessa forma, La Mancha apresenta apenas uma
legislação que regula a situação indígena no país em conformidade com a Constituição. Esse
Enunciado, proveniente da ratificação, através de Decreto Legislativo, da Convenção nº 169
da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, vai de encontro à
política do integracionismo, defendendo o multiculturalismo. Portanto, o indígena, nos dias
atuais, possui direitos expressos em documentos legais que garantem a proteção de sua
cultura e a participação em atos ligados à sociedade La Mancha, se assim o desejarem.
16- Além de outras garantias essenciais para a autodeterminação dos povos indígenas, um
princípio bastante em voga atualmente no que tange aos Direitos desses povos é o dispositivo
da Convenção nº 169 da OIT referente ao “Direito de Livre Consentimento e
Conhecimento”. Este mecanismo jurídico reafirma a independência e autonomia do índio nos
conflitos referentes à suas terras, ao assumir a necessidade de haver o consentimento
informado dos povos indígenas para qualquer negociação pública ou particular que influencie
diretamente o direito de usufruto da terra. A presença deste Princípio tornou-se uma
constante influenciadora nas decisões do Poder Judiciário sobre os conflitos diante de terras
indígenas. Por isso, é possível analisar, juntamente com outros dispositivos legais e
tendências jurídicas, o novo formato que negociações entre índios e empresários públicos ou
privados têm desenvolvido.
D) DO PROCESSO PERANTE O SISTEMA INTERAMERICANO
17- Em fevereiro de 2013, as associações das tribos de Macondo, Ítaca e Lilipute ajuizaram uma
ação diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na inicial, consta a alegação
de que a decisão negativa da Fundação Indígena de La Mancha, representando a República
de La Mancha violara:
i. O reconhecimento efetivo ao direito de negociação
coletiva;
ii. O direito de autodeterminação, no que tange à
autonomia para o próprio desenvolvimento
sociocultural;
iii. O direito ao livre consentimento e conhecimento
indígena sobre suas terras, cultura e modo de vida,
ao aceitar e firmar a implementação dos projetos de
medida compensatória, conjuntamente, à construção
do terminal portuário.
Ambas as alegações tinham fulcro no dispositivo legal da Convenção 169.
18- A Comissão, por sua vez, considerou admissível a petição das Associações, estabelecendo o
prazo de quatro meses para que a FUILM respondesse a alegação. Dois meses depois, a
Fundação manteve sua posição, sustentando que a negação da licença cultural se dava pela
proteção das terras indígenas, que não podiam ser objeto de venda, troca ou penhor de acordo
com lei nacional.
19- Para solucionar o caso, a Comissão propôs um acordo de mediação entre as partes, para que
ambos tivessem uma compreensão mais abrangente da situação e, com isso, uma possível
solução amistosa poderia surgir. No entanto, a Comissão não foi bem sucedida e, assim, o
caso foi apresentado à Corte Interamericana.
20- O caso ainda encontra-se tramitando no sistema interamericano, e no final será exposta uma
sentença definitiva e inapelável que irá resolver a situação das Aldeias de Macondo, Ítaca e
Lilipute.