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Page 1: Charles Chaplin x Buster Keaton

Universidade de São Paulo Escola de Comunicação e Artes - Departamento de Cinema, Rádio e TVAndré Eiji de Azevedo MuraiHistória do Audiovisual IProf. Dr. Cristian BorgesEntrega: 08/05/12

Comparação entre os estilos cômicos de Charles Chaplin e Buster Keaton

Charles Chaplin, na cenafinal de “Luzes da Cidade” (1931).

Buster Keaton em “The Cameraman” (1928).

- “A diferença entre Keaton e Chaplin é a mesma que entre prosa e poesia, o aristocrata e o vagabundo, a excentricidade e o misticismo, entre o homem como

máquina e o homem como anjo." Não é ruim, é?- Não, só que, para mim, não há comparação.

- Por quê? Porque Chaplin é incomparável?- Não. Porque Keaton é incomparável.

[...]- Ninguém é mais engraçado que Chaplin.

- Keaton é. Até quando não faz nada. Ele parece com Godard. Keaton é um cineasta de verdade. Chaplin

só liga para sua atuação, seu ego. [...]

- Escute. Chaplin sabia fazer uma bela tomada quando queria. Melhor que Keaton; melhor que

qualquer um. Lembra da última cena de Luzes da Cidade? Ele olha para a vendedora de flores, ela

olha para ele. Não esqueça que ela era cega, que o está vendo pela primeira vez. É como se, através de

seus olhos, nos também o víssemos pela primeira vez. Charles Chaplin, Charlot, o homem mais famoso do

mundo. É como se nunca o tivéssemos visto antes.Diálogo do filme “Os Sonhadores” (2003),

de Bernardo Bertolucci

Uma das comparações mais antigas que existem no Cinema é a que se estabelece entre os comediantes cineastas Buster Keaton e Charles Chaplin. Não apenas os cinéfilos de hoje discutem a respeito de quem dos dois era o mais engraçado e o mais genial. O público e a crítica da época, inclusive de quando seus primeiros longas foram lançados, também sempre comparavam Chaplin e Keaton. De um lado o palhaço vagabundo, que irradiava um amplo espectro da natureza humana, da pura e ingênua felicidade ao ódio às injustiças sociais do dia-a-dia, e do outro, o impassível ser humano, cheio das nuances, que tinha que lidar com os infortúnios do mundo físico. Contudo, tal comparação não se restringe apenas a discussão cinematográfica, ela foi importante também para a carreira de ambos cineastas, que, mais tarde em suas carreiras, juntaram-se no filme “Luzes da Ribalta”, em um raro e sublime momento da história do Cinema.

No filme, um dos últimos dirigidos pelo próprio Chaplin, vemos um dueto de piano e violino que mais parece um duelo. As personalidades dos personagens parecem refletir o conflito a respeito de quem eram Chaplin e Keaton na vida real. Chaplin toca loucamente o violino, quase suplicando por atenção, e parece implorar que o reconheçamos como o melhor, mais engraçado, enquanto Keaton fica no piano, com um olhar triste e assustado, atrapalhado com as partituras. Chaplin, não abandonando o espírito do velho “Carlitos”, ainda se mostra aquela criança invejosa que faz birra e caretas para chamar atenção, e Keaton se mostra o Keaton de sempre, aquele que baseia sua graça em sua seriedade, em sua impassividade quase alienante, à par da situação.

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“Charlie's tramp was a bum with a bum's philosophy,'” he once said. “Lovable as he was, he would steal if he got the chance. My

little fellow was a workingman, and honest.” That describes his characters, and it reflects their creator.

Assim termina o crítico americano Roger Ebert sua crítica sobre “A General”.“The General (1927)”, por Roger Ebert / 31 de Maio de 1997

Dueto de violino e piano no filme “Luzes da Cidade”. Keaton, com um olhar triste e assustado, atrapalha-se com as partituras. Chaplin espera com impaciência e realiza um número antes de começar a tocar o violino loucamente.

Como o filme é dirigido pelo próprio Chaplin, é certo que ele é o protagonista do filme. Assim, a cena foi realizada e parece funcionar mais como uma homenagem à rivalidade entre ambos comediantes, que existia bem antes do filme. Entretanto, é nessa cena que fica evidente outra diferença entre os dois. Enquanto Chaplin conseguiu continuar uma gloriosa carreira após o período do cinema mudo, sendo aclamado como o maior gênio do mundo, tanto por crítica quanto por público, Keaton ficou mais esquecido, como um reflexo de toda extensão que representara em seu auge. Dessa forma, tal duelo parece mais uma questão pessoal de Chaplin, a ser resolvida em uma homenagem ao rival (com Keaton sempre simpaticamente apático, alheio ao mundo).

No que se refere aos estilos cômicos que cada um possui, tanto Chaplin quanto Keaton se aproveitam bastante de movimentos corporais para estabelecer uma relação um tanto quanto conflituosa com o mundo material. Ambos se atrapalham quando se relacionam com os objetos ao seu redor ou mesmo com os corpos das pobres pessoas que estão próximas. Chaplin parece não estar em sintonia com o ambiente físico ao qual está inserido e, dessa forma, ao tentar se movimentar por ele, parece se destacar na tela e na situação representada nesta, como se ele fosse um ponto brilhante sobre um fundo escuro. E Keaton, de forma semelhante, parece se encontrar subjugado pelas inflexíveis leis da física e da natureza, atrapalhando-se, por sua vez, ao tentar lidar com objetos difíceis de serem manipulados ou por estar sujeito às forças da natureza e do homem, como uma forte tempestade ou uma construção prestes a desabar; ele tem que se virar para se adaptar à situação. Enfim, ambos criam ou tem que lidar com o caos que causam e que os envolve, e essa é uma característica bem marcante para os dois. Ambos criam situações inimagináveis de caos e confusão, com as quais têm que lidar.

Apesar dessa semelhança (ambos abordam a relação do homem com o mundo material), tanto Chaplin quanto Keaton não poderiam ser mais diferentes um do outro. Chaplin se aproveita mais de sua influência do espetáculo teatral e circense e, dessa forma, sua abordagem é mais exagerada e admitidamente espirituosa. Quando vemos o vagabundo, sabemos que sua

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performance é engraçada; ele se expressa e nos encanta com o corpo e com o rosto e a partir disso apreendemos a graça ou o sentimento da situação. E Keaton se aproveita mais de uma característica pessoal sua, que é uma inexpressividade natural. Projetamos indiretamente nossos sentimentos na expressão fria de Keaton e nisso surge um personagem sensivelmente humano. Uma pessoa comum, que tem que lidar com situações frustrantes, os pesadelos do dia-a-dia. Keaton é engraçado não porque seu desempenho é engraçado, mas porque ele permanece sério durante todo o tempo.

É por tal motivo, que se pode dizer que o público se identifica mais facilmente com Keaton. Chaplin é encantador com seus movimentos e com as situações de incrível sensibilidade que ele cria, e Keaton permite que o espectador se imagine mais facilmente em sua posição, fazendo as coisas que ele faz. Cada um possui uma base diferente para o seu humor e ambos conseguem afetar, de certa forma, o espectador, tornando única a experiência de assisti-los. Nos encantamos com Chaplin e nos identificamos com Keaton.

Para indicar essa diferença entre os dois cineastas, é valido recorrer a uma comparação entre um filme de cada um. Entretanto, visto que a filmografia significativa de Chaplin é um tanto quanto mais extensa que a de Keaton, parece um pouco injusto realizar uma comparação fílmica entre trabalhos que eles tenham realizado. Assim, parece justo pegar um trabalho que represente bem a essência de Keaton, que seja uma obra aclamada e tida como a mais importante de sua filmografia, e compará-lo com um trabalho de Chaplin que seja da mesma época. Assim, é possível apreender o que eles representavam em determinado período (seria fora de propósito comparar, por exemplo, o Chaplin de “O Grande Ditador” com o Keaton de início de carreira, com curtas como “One Week”, ou o Keaton de “A General” com o Chaplin ainda em experimental de “Kid Auto Races at Venice”).

Partindo desse ponto, “A General”, de 1927, é o trabalho mais importante e reconhecido de Keaton, que sobrevive ao tempo como uma história mais universal e atemporal. E uma obra importante de Chaplin do mesmo período é o conhecido “Em Busca do Ouro”, de 1925 (poder-se-ia recorrer a “O Circo”, de 1928, mas o outro trabalho representa melhor a aclamada genialidade de Chaplin). Ao se tomar esses dois filmes como referência e compará-los, observa-se um equilíbrio um tanto quanto interessante. Não apenas “A General” é o melhor representante de Keaton. “Em Busca do Ouro” é também uma das obras mais importantes da carreira de Chaplin, inclusive, o trabalho pelo qual ele gostaria de ser lembrado.

“A General” é um dos filmes históricos mais admirados da época (que ainda hoje impressiona), apesar do fracasso inicial, e é um dos poucos exemplos do cinema mudo que sobreviveu ao tempo. A premissa do filme se baseia em uma longa perseguição de trem e tem como pano de fundo o resgate de Annabelle, a amada de Keaton, e o conflito entre o exército do norte e o lado sulista. Diversas gags são criadas e Keaton demonstra sua incrível habilidade como dublê em seqüências fisicamente bem arriscadas envolvendo os trens, canhões apontados para direções erradas, obstáculos sendo colocados nos trilhos e pontes explodindo [!] (ele exerceria grande influência sobre Jackie Chan, que também realizaria diversas proezas físicas, em situações perigosas).

Nesse filme, pode se observar, além de sua habilidade como dublê, toda a personificação de Keaton e seu estilo cômico. Todas suas principais características estão presentes e diversas

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situações podem demonstrar a forma como Keaton lida com o seu redor e com a natureza. Em um momento, Keaton se senta na locomotiva e não percebe que ela começou a se mover. Ele acabou de ser rejeitado pela amada e seu olhar permanece distante e desolado, apesar de o trem o estar levando. Outro exemplo é o momento em que ele tenta obter mais lenha para a locomotiva. Ele tenta jogar as toras de madeira no vagão, mas elas insistem em não entrar, ou em derrubar outras que já estão lá, ou em passar para o outro lado da locomotiva. Nesse caso, seu maior inimigo são o peso das madeiras e as próprias leis da física!

Entretanto, a melhor seqüência para exemplificar a essência da comédia de Keaton é a qual ele tenta acertar o trem inimigo, à sua frente, mas acaba se tornando alvo do próprio canhão que carregara. Ele coloca uma lata de pólvora e depois os projéteis de canhão. Entretanto, seu pé faz com que o vagão do canhão se solte da locomotiva. Pronto. A tensão e o caos já estão estabelecidos. De atacante, ele vira alvo. Ele tenta atacar o canhão com pedaços de madeira (a forma em que ele reage faz parte de sua graça) e foge até a frente da locomotiva. Keaton estabelece essa tensão e o caos característico das situações em que seu personagem se insere e o resolve de uma maneira brilhante, na forma de uma curva, que faz com que o canhão aponte não mais para Keaton, mas para o trem perseguido do inimigo, logo à frente. A cena é uma situação absurda, e a seriedade com que Keaton reage é a responsável pela graça. Ele não faz graça, mas permanecendo sério, consegue ser engraçado.

Keaton carrega o canhão, mirando o inimigo, mas logo a situação se volta contra ele.

Ele joga pedaços de madeira contra o canhão e se protege na parte superior da locomotiva, mas logo se safa, quando

o canhão, em uma curva, acerta o trem inimigo.

“Em Busca do Ouro”, por outro lado, é uma comédia que representa com perfeição o estilo cômico de Chaplin. Além de trazer o personagem que tornara Chaplin em um dos homens mais conhecidos do mundo, o vagabundo Carlitos, o filme é ainda uma coleção de cenas antológicas. Varias situações da aventura no Alasca (que Chaplin filmou em locação) são bem conhecidas, sendo a mais importante e a mais lembrada a dança dos pãezinhos. Entretanto, apesar de essa seqüência ser bastante graciosa, a cena em que a casa de Carlitos vai parar na beira de um precipício é a que melhor representa o estilo cômico de Chaplin. É uma das cenas cômicas mais

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carregadas de tensão já realizadas. Nela, Chaplin explora o terror da situação, sem nunca deixar de ser o velho Carlitos, com sua característica linguagem corporal.

Após ser levada por uma tempestade que ocorrera de noite, a casa se encontra a um palmo de desabar precipício abaixo. Carlitos e seu companheiro se dão conta da situação e, fazendo com que a casa não caia, precisam equilibrá-la, além de arranjar um jeito de sair da mesma e resolver o problema. É dessa forma que Chaplin cria o seu caos, a tensão que precisa ser resolvida. Tal tensão depende bastante da situação em si, e isso serve como uma brecha à graça de Carlitos, que tenta se equilibrar. Seus movimentos são exagerados e a própria situação é construída para ser exagerada e acentuar o desespero dos personagens.

Carlitos tenta desesperadamente se equilibrar e estabilizar a casa.

Quando tenta abrir a porta lateral, fica pendurado, de cara para o precipício.

A corda é o único ponto que não permitiu que a casa caísse.

Chaplin e seu companheiro tentam permanecer imóveis, mas a casa continua cedendo.

Em ambas sequências apresentadas, a de “A General” e a de “Em Busca do Ouro”, é possível observar as diferenças e as semelhanças nos estilos de Keaton e Chaplin. Ambos constroem tensão e estabelecem um ponto de desordem que desestabiliza o mundo e age contra os personagens. No caso de Keaton, isso se concretiza a partir da própria dramaticidade da situação, de certa ironia dramática. Como o personagem vai se livrar da situação é o mais importante, e a resolução é o clímax da gag. O personagem reage à situação com bastante seriedade e essa é a graça da cena. Já no caso de Chaplin, a tensão não consiste exatamente na dramaticidade, mas no próprio absurdo desesperador da situação. O importante não é o realismo, mas sim o exagero. Os movimentos de Carlitos e sua reação são engraçados. E a performance de Chaplin é o mais importante.

Em suma, ambos cômicos deixaram sua marca na História do Cinema, e ambos ainda conseguem dialogar com o público, mesmo que seus trabalhos tenham sido realizados há quase um século atrás. Ambos possuem diferenças e semelhanças, mas é certo que tanto um quanto outro ainda comovem as pessoas. Ainda é possível que elas se empolguem e riam de seus personagens, tão humanos e próximos de nós. Talvez por tratarem de assuntos tão universais, de forma bastante pessoal e sincera. Enfim, são dois grandes nomes que não perderam sua força e que ainda hoje conseguem emocionar e divertir.


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