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introdução
Fernando Quintana
Os cientistas políticos devem ocupar-se com aquilo que os comovem: a relação ética e política.
Esta introdução mostra o lugar da teoria política diante de outros enfoques que se
ocupam do estudo da política: “Quem nas ciências humanas fala de teoria está
condenado a enfrentar sempre e repetidamente a questão da relação entre a ciência
e a filosofia” (grifo nosso) (Brandão, 1998: 271). Além do mais, aborda aspectos
metodológicos sobre o tema de nossa disciplina: a relação ética e política.
A teoria política tem se defrontado com outras formas de saber: a filosofia e a ciência
política, a primeira procura responder uma questão especulativa: a razão de ser da
política enquanto a segunda uma questão prática: o que deve prever o estudo da
política. Duas abordagens, metafísica e empírica, que nem sempre dialogam entre si
tornando difícil a desejada comunicação entre ambas:
[...] a filosofia política permite ao politólogo adquirir uma maior consciência sobre as categorias filosófico-políticas empregadas em lugar de outras. Por seu turno, a ciência política oferece à filosofia política uma ajuda nada desdenhável derivada do que as explicações causais permitem para a reflexão filosófica (Cansino, 2008: 38).
Seguindo o ensaio do cientista político Giovani Sartori, ciência e filosofia política
(1981), podemos dizer que a filosofia política é um exercício formal argumentativo,
uma especulação teórica da política, um saber inclusivo, geral ou abrangente
enquanto a ciência política um exercício empírico demonstrativo, uma verificação da
realidade, um saber exclusivo, limitado ou especializado.
A filosofia política se ocupa de “grandes temas” ou, segundo o filósofo político Leo
Strauss de “questões perenes” - o seu interesse é, portanto, retrospectivo, ex ante,
voltada para o passado e, isso à diferença da ciência política que se ocupa de objetos
de estudo concretos, o seu interesse é prospectivo, ex post, voltada para o futuro.
A filosofia política é uma reflexão exógena da política que se funda em orientações
prescritivas, normativas, um conhecimento não aplicado mas que consegue, contudo,
levantar questões essenciais e, portanto “difícil de ser compreendida” em contraste
com a ciência política, uma reflexão endógena do político que se funda em evidências
ou constatações empíricas, um conhecimento aplicado que visa sobretudo resolver
problemas concretos e, portanto “difícil de ser feita”.
A filosofia política usa uma linguagem conotativa, um sentido subjetivo das palavras,
no dizer de George Sorel “ultrarepresentantivo” das palavras, em que estas podem
ter vários significados - fecundidade das palavras -, procedendo assim a filosofia
política transfigura os fatos por ser uma reflexão que se afasta da realidade em
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contraste com a ciência política que usa uma linguagem denotativa, um sentido
objetivo das palavras, em que estas indicam o que representam - fecundidade dos
fatos -, procedendo assim a ciência política configura os fatos por ser uma reflexão
mais próxima da realidade.
A filosofia política, baseada numa linguagem abstrata, se interessa pelo por que dos
fenômenos políticos - o conhecimento especulativo, filosófico, busca a essência das
coisas enquanto a ciência política, baseada numa linguagem perceptiva, se interessa
por como são os fenômenos políticos - o conhecimento empírico, científico, busca
responder como é a realidade.
A filosofia política, com sua capacidade preventiva, é uma abordagem mais engajada
e apaixonada na medida em que procura prever, em nível teórico, o que pode
acontecer colocando algo como desejável ou indesejável em contraste com a ciência
política que, com sua capacidade preditiva, mais pragmática e desapaixonada, visa
antecipar, em nível concreto, o que vai acontecer.
Do exposto, podemos concluir dizendo que a filosofia política é uma abordagem
prescritiva, idealista, abstrata, compreende conceituando, conceptum, valoriza as
ideias em relação a outras ideias no mundo intelligibilis enquanto a ciência política é
uma abordagem descritiva, realista, empírica, explica observando, perceptum,
privilegia os fatos em relação a outros fatos no mundo sensibilis.
Com base neste contraste, importa trazer a metáfora do cientista político americano
Gabriel Almond: Teoria política - a cafeteria do meio (1990) com o intuito de mostrar
que a teoria política, tertium genus, permite aproximar “mesas separadas”: a filosofia
e a ciência política e, isso pelo fato de ser “um lugar de encontro” (Cansino, 2008: 38)
entre ambas. O “novo” lugar - intermediário - da teoria política sendo destacado por
vários autores contemporâneos que resistem a decretar o fim da teoria política ou,
mesmo que esteja moribunda (Berlin, Plamenatz, Wolin, etc).
Importa destacar que o estudo da política não foi acompanhado de um método
científico como acontece com a ciência política contemporânea em que hipóteses
são testadas com base em dados rigorosos coletados da realidade através do uso de
métodos quantitativos e estatísticos. As ciências políticas, afirma Norberto Bobbio, já
existia antes da ciência política, ela compartilhava o campo de investigação com a
história, direito, filosofia (Pinto, 1997: 89). Em outras palavras: o estudo da política
aconteceu sem ela contar com métodos rigorosos mas nem por isso incapaz de ter
contribuído para o conhecimento.
Esta observação é importante se levamos em conta que nossa disciplina gira em
torno do tema ética e política - o que implica lançar mão da teoria política, tertium
gens, na medida em que dialoga com outros campos do saber: a história. Trata-se,
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portanto, de trazer a teoria política, a cafeteria do meio, enquanto reflexão que
aproxima a visão especulativa ou filosófica da política, os “grandes temas”, com uma
visão fatual (histórica) da política que permita inserir tais temas no contexto em que
são produzidos.
Tal empreitada apela aos clássicos do pensamento político e moral que levantam
questões de importante alcance heurístico, questões que preocupam a comunidade
no seu conjunto (Wolin, 2001:12); questões que qualquer comunidade deve formular
e procurar responder; questões que, no dizer de Michael Oakshott fazem parte de
“teorizações de primeira ordem”: como está ou deve estar ordenada uma sociedade?
(Ball, 2004: 11), sendo tais questões não são “questões perenes” (Strauss) já que os
conceitos e linguagens usados pelos autores mudam com o contexto.
Na relação ética e política trata-se de questões do tipo: como devemos viver? Como
levar uma vida feliz? Como devem ser as instituições e normas que organizam a vida
coletiva?, ou, segundo o debate contemporâneo que se debruça sobre a prioridade:
moral ou ética, justiça ou boa vida? (Fraser, 2007: 103).
Questões velhas e atuais em que a contribuição dos clássicos se assevera importante
pela capacidade criativa que demonstram em formulá-las e pela coerência e rigor
que demonstram em respondê-las:
O que distingue os “grandes” não é só a escolha, “introdução” ou reelaboração de problemas, mas a forma como o fazem: o rigor analítico, sua capacidade de para observar procedimentos lógicos e, em fim, para articular um discurso coerente dentro de um sistema de pensamento, tanto para seus contemporâneos como para a doutrina posterior (Vallespín, 2002: 41).
Mas, importa insistir, trata-se de questões que devem ser abordadas em seu próprio
tempo - que faz da história da teoria política não uma história de diferentes respostas
para um mesmo problema mas a história de um problema que se modifica segundo
como os autores o vem e as soluções que elaboram (Herman, 2005: XVII). Em outras
palavras: que muda segundo os conceitos e linguagens usadas em cada época.
As questões levantadas pelos clássicos não podem ser separadas da experiência por
eles vividas; dos desafios que enfrentam; dos objetivos que perseguem - o que leva a
conhecer as estruturas, instituições, práticas sociais, etc, em que desenvolvem os
argumentos. Sendo assim, os “grandes temas” devem ser inseridos nas vicissitudes
concretas da realidade e não tomados como mero nevoeiro de ideias abstratas. Tal
empreitada implica tomar distância de “teorizações de segunda ordem” (Oakshott)
que se limitam a comentar os clássicos não conseguindo ir além de uma “história das
ideias”.
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Sendo assim, trata-se de “teorizações de primeiro e segundo nível” e, também de
“aprender com”, ou seja, fazer teoria política como cidadãos engajados com os
problemas reais e concretos do mundo em que vivemos aprendendo com autores de
primeiro nível porque “somos de segundo nível tentando fazer o melhor”; e, não só
estudiosos preocupados com adquirir informação (Ball, 2004: 20).
As “grandes questões” que serão abordadas adquirem maior densidade e interesse
quando inseridas no contexto histórico. Única maneira, em nosso entender, de ir
além de uma abordagem especulativa, anistórica ou atemporal de textos, autores e
problemas que fica limitada ao sobrevoo de ideias. Única maneira, também, de evitar
aquilo que se conveio chamar de falácia do presentismo: avaliar a partir de categorias
do presente o que somente é inteligível dentro do próprio contexto.
Apesar de seguir o método textualista baseado na reconstrução dos argumentos dos
autores, com especial ênfase nos problemas e questões que levantam, não por isso
descuidamos o contexto que contribui para um melhor entendimento dos mesmos.
Tal postura, textualista/contextualista, implica então relacionar o texto com a época
em que foi elaborado ou, como sustentam os membros da New History, “todo texto
deve compreender-se em relação com algo” (grifo do autor) (Vallespín, 2002: 25).
Convém acrescentar que os temas a serem estudados em nossa disciplina podem ser
objeto de uma abordagem valorativa ou pragmática: como devem ser as normas e
instituições da sociedade ou como funcionam as normas e instituições na realidade,
etc.
Assim, as avaliações morais (bom/mau) podem ser usadas pragmaticamente segundo
valores relativos ou normativamente segundo valores absolutos cabendo descobrir
em que sentido elas são empregadas. Tal tarefa é necessária se levamos em conta a
“mudança imperceptível” que se dá nos teóricos e filósofos da política e da moral
que passam de uma linguagem descritiva, pragmática, baseada na cópula apofântica
(“é/não é”) para uma linguagem prescritiva, normativa, baseada na cópula deôntica
(“deve/não deve”):
Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar (...) fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Mas já que os autores não costumam usar essa precaução, tomarei a liberdade de recomendá-la aos leitores; estou persuadido de que essa pequena atenção seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre vício (mau) e virtude (bom) não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão (grifo do autor) (Hume, 2001: 509).
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A advertência humiana, “o que é justo, bom, toma posse de nosso coração, o que é
inteligente, evidente provoca apenas o frio assentimento da razão”, é relevante
porque permite detectar, segundo o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, quando
a “linguagem sai de férias”, isto é, quando a linguagem vai além da sua capacidade
descritiva-pragmática para uma linguagem prescritiva-normativa. Dois tipos de juízos
- fáticos e valorativos - dos quais não é possível extrair dos primeiros os segundos.
Cientes que a passagem do ser ao dever ser exige grande cuidado (MacIntyre, 1994:
170) haverá então que detectar àqueles argumentos que extrapolam a linguagem,
que mudam de juízos fáticos para preferências subjetivas. Tal tarefa é mais difícil se
levamos em conta que as questões relativas à relação ética e política são permeadas
de proposições descritivas e prescritivas, daí a necessidade de inseri-las no contexto
histórico em que são usadas com o intuito de melhor elucidar o seu alcance.
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referências
BALL, T. Aonde vai a teoria política? Sociologia Política. Curitiba, 2004, n. 23, p.9-22.
BRANDÃO, G.M. Teoria política e institucionalização acadêmica. In: QUIRINO, C.G.; VOUGA, C.; BRANDÃO, G.M. Os clássicos do pensamento político. São Paulo: Edusp, 1998, p.271-277.
CANSINO, C. La muerte de la ciencia política. Buenos Aires: Sudamericana, 2008.
FRASER, N. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n.70, p. 101-138, 2007.
HERMAN, B. Prefácio. In: RAWLS, J. História da filosofia moral. Trad.A.A.Cotrin. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.XI-XX.
HUME, D. Tratado da natureza humana. Trad.D.Danowski. São Paulo: Unesp, 2001.
MACINTYRE, A. Historia de la ética. Trad.do inglês R.J.Walton. Buenos Aires: Paidós, 1994.
PINTO, J. (Comp.). Introducción a la ciencia política. Buenos Aires: Eudeba, 1997.
SARTORI, G. Ciência e filosofia. In:______. A política. Trad.Sérgio Bath. Brasília: Editora da UnB, 1981, p.23-43.
VALLESPÍN, F. (Comp.). Historia de la teoria política,1. Madrid: Alianza, 2002.
WOLIN, S. Política y perspectiva: continuidad y cambio en el pensamiento político occidental. Trad.do inglês A.Bignami. Buenos Aires: Amorrortu, 2001.
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ética política - a politéia
Fernando Quintana
Refletir sobre ética e política não pode prescindir da antiguidade clássica na medida
em que deixa como um dos principais legados que a política não pode ser pensada fora
da moral - o que implica a posta em prática da melhor forma de governo: a república
ou politéia (Aristóteles) 1.
À volta ao pensamento da antiguidade clássica, em particular aos escritos do estagirita,
obedece também ao fato que sua reflexão contribui ao debate contemporâneo em
que teóricos políticos liberais e filósofos morais deontológicos acreditam que o correto
tem prioridade sobre o bem enquanto comunitaristas e teleologistas que o bem tem
prioridade sobre o correto (Fraser, 2007: 104) ou, parafraseando autores desta última
corrente: a ética grega se interessa pelo que devo fazer para viver bem enquanto a
ética moderna que devo fazer para atuar corretamente (MacIntyre, 1994: 89).
Tal contraste faz que liberais defendam uma moral e ética baseada em princípios
universais enquanto comunitaristas, como Alasdair MacIntyre, uma moral e ética
particular ligada ao êthos ou costume de cada sociedade ou, como diria Aristóteles, ao
tipo de temperamento e comportamento dos homens que compõem cada pólis.
Além do mais, a moral e ética aristotélicas estão baseadas na virtude da qual depende
a vida boa em comunidade em contraste com filósofos modernos e contemporâneos
que afirmam que a justiça não deve basear-se numa “concepção particular de virtude”
ou da “melhor forma de vida” - a sociedade justa é àquela que “respeita a liberdade de
cada indivíduo para escolher a própria concepção do que seja uma vida boa” (Sandel,
2012: 16-17). Trata-se do conflito sobre a melhor maneira de viver: livremente para
escolher a melhor forma de vida, virtuosamente para promover o modo de vida de
uma boa sociedade (Aristóteles).
Acompanhando vários estudiosos procuraremos mostrar como Aristóteles não separa
a política da moral (Prélot, 2006: XVI), que a política depende da ética tanto em seu
direcionamento quanto em seus meios (Wolff, 1999: 20), que a ética enquanto
conhecimento do justo faz que a política tome sob sua responsabilidade visando o bem
(Darbo-Peschanski, 1992: 35), que a política é um terreno de reflexões sobre a conduta
humana, as instituições e a sociedade, num marco teórico ligado à ética (Gual, 2002:
150), que a política enquanto doutrina de uma vida boa e justa é a continuação da
1 Os termos moral e ética correspondem, em Aristóteles, ao “costumeiro”, “adquirido” - o que significa que as pessoas não nascem morais ou éticas, mas tornam-se através do hábito e a educação (paidéia). As virtudes morais dizem respeito à “disposição da alma”, caráter ou temperamento enquanto as virtudes éticas dizem respeito ao “agir”, conduta ou comportamento. Sendo assim, a ética pode ser tida como a externalização da moral: o êthos diz respeito à “maneira de ser e de se conduzir”, ao “modo de ser e de fazer”, ele “se traduz pelos hábitos” (Foucault, 2012: 264).
2
ética (Habermas, 1990: 49), que as decisões e práticas políticas promovem e realizam
valores morais ou éticos (Ribeiro, 2006: 9). Em definitivo, como no estagirita:
A ciência política deve ser a ética de toda uma sociedade, cuja consistência deriva de um propósito moral comum; ela deve determinar o que é o ‘bem’ para a sociedade, qual a estrutura que vai assegurar a melhor maneira para alcançá-lo, as ações que melhor contribuem para esse fim. Aristóteles não vê diferença essencial entre a ciência política assim concebida e a ética. O bem do indivíduo é idealmente o bem da sociedade; a virtude de um é idealmente a virtude do outro. Na qualidade de ciência de uma sociedade moral em busca do bem pleno, que só pode ser alcançado pela ação comum, a ciência política é, para Aristóteles, a ética suprema (Barker, 1978: 17).
Tomando duas obras do autor, Ética a Nicômaco e A política, podemos dizer que ética
e política são duas “disciplinas práticas” ou “artes” que tem como objetivo a felicidade
ou eudaimonía tanto em nível individual quanto social e político2:
O seu objeto é o estudo do supremo bem a que podem aspirar os homens, isto é, a felicidade. A ética procura, pois, saber, em primeiro lugar, em que consiste a felicidade; em segundo lugar, qual a forma de organização política que assegure a felicidade geral. Aristóteles procurou responder à primeira indagação em Ética a Nicômaco, e a segunda na Política. Não se trata, portanto, de dois livros sobre assuntos distintos, mas de duas partes de um mesmo assunto (Comparato, 2006: 99).
A relação ética e política, que passa pela melhor forma de governo, obedece como
destaca Marcel Prélot à “atmosfera pesada” da época, em particular, pela situação que
atravessa Atenas3: fim do “século d’ouro” (460-430 a.C.) com a Guerra do Peloponeso
(431-405 a.C.) em que Esparta, triunfante, acaba com a democracia de Péricles e
Atenas conhece formas ruins de governo (oligarquia, oclocracia)4, lutas internas e
instabilidade política; a batalha de Queroneia (338 a.C.) em que Felipe II, rei da
Macedônia, acompanhado de seu filho Alexandre, vence as forças atenienses e lhe
impõe, como a outras cités vencidas, um conselho comum cujos representantes não
discutem as decisões. A fortuna das cidades-estados fica selada - o fim da pólis e o
triunfo da Cosmópolis (império) com Alexandre Magno.
Neste contexto, fim da democracia ateniense e ocaso da pólis, o estagirita desenvolve
sua reflexão visando mostrar como a realidade é, ou seja, os distintos temperamentos
e comportamentos, o êthos de cada povo, que se encontram na base das diferentes
formas de governos, mas também como podem ser melhorados:
2 Cabe esclarecer que a palavra politikós, em Aristóteles, cobre tanto “o que entendemos por político
como o que entendemos por social (ela) não discrimina entre ambos os aspectos” (grifo do autor) (MacIntyre: 1994: 64). 3 O Estagirita permanece duas vezes em Atenas, como aluno e professor na Academia de Platão (367-347 a.C.) e, mais tarde, quando funda o Liceu (336 a.C.), com ajuda de Alexandre o Grande, até que é forçado deixar a cidade acusado de pró-macedônio (323 a.C.). No interregno, durante dois anos (343-341 a.C,), é professor de Alexandre por convite do pai Felipe II (rei da Macedônia). 4 Ou seja, a “Assembleia democrática dos 5.000”: “governo das multidões rudes, ignaras e despóticas”,
segundo Aristóteles que, importa lembrar, mata Sócrates (399 a.C.) por ensinar a máxima: “conhece-te a ti mesmo de um conhecimento verdadeiro”.
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A necessidade de conceber um ideal era sentida (no pensamento grego) com vivacidade devido justamente à variedade do real. O Estado ideal serviria como padrão pelo qual os estados existentes poderiam ser compreendidos e classificados. E esta busca de um ideal surgia naturalmente porque os diferentes estados apresentavam não apenas diferenças “constitucionais”, mas diferenças profundas, fundamentais, de caráter e finalidade moral (Barker, 1978: 15-16).
Com base nos dois escritos aristotélicos convém, num primeiro momento, mostrar em
que consiste a moral ou ética no plano individual e, num segundo momento, como ela
se dá no campo social e político, mais especificamente naquela forma de governo que
é tida pelo autor como a mais perfeita possível: a república ou politéia.
Em Ética, Aristóteles esclarece que esta disciplina se ocupa dos bons comportamentos
a serem seguidos pelos homens em comunidade, ela diz respeito a condutas ou formas
de agir boas a serem praticadas para atingir um fim supremo, absoluto, a felicidade5,
sobretudo, como destaca o autor, em nível social e político:
[...] ainda que tal fim seja o mesmo para o indivíduo e para o Estado (a eudaimonía), o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as Cidades-Estados (Aristóteles, 1987:10).
Ou, parafraseando outras passagens da Ética: “Não só há mais beleza no governo do
Estado do que no governo de si mesmo, mas (...) tendo o homem sido feito para a vida
social, a Política é, relativamente à Ética, uma ciência mestra” (grifo do autor) (Prélot,
2006: XVII).
Pois bem! Para atingir o supremo bem, a felicidade, existem duas disciplinas, ética e
política, que tornam isso possível. Duas artes que têm em comum o fato de indicar a
boa conduta a ser praticada. Ambas, segundo Aristóteles, correspondem a “ações boas
úteis e belas”. Dessa maneira, através do exercício de tais ações, boas em si, mas
também úteis, que existem em função de outra coisa, é possível atingir o sumo bem: a
eudaimonía. É o que acontece, como veremos, com uma das virtudes cardiais, isto é, a
prudência ou phronésis, mistura de bom sentimento e bons resultados.
Com base no exposto, a virtude (areté) entendida, em sentido amplo, como disposição
firme e constante na prática do bem comum (koinon synpherón) comporta duas
acepções. Uma valorativa, um fim em si mesmo: o bom sentimento, o bom caráter, e
outra instrumental: a escolha de meios adequados para a obtenção de um resultado.
Como diz o estagirita: “A virtude do homem deve ser uma disposição através da qual o
homem torna-se bom, e através da qual se torna capaz de levar com sucesso a tarefa
5 Um bem, a felicidade que, segundo a primeira frase de A Ética a Nicômaco, é definida objetivamente: “(...) toda arte, toda investigação assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem (a felicidade); e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem” (Aristóteles, 1987: 9).
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que lhe é própria” (a felicidade) (Aristóteles, 1961:76). Assim, virtude e prudência são
sinônimas.
As virtudes aristotélicas se relacionam com o sentimento, disposição da alma, o caráter
ou temperamento, mas também com o comportamento. Dentre das virtudes morais,
adquiridas pelo hábito podemos citar, seguindo a Ética, certos jeitos de ser e condutas
que supõem sempre o triunfo do meio-termo (andréia) entre dois extremos (o excesso
e a falta); o bem entre dos vícios, uma cumeada entre dois abismos, isto é, uma forma
de ser moderada e uma forma de agir prudente que constituem talvez um dos traços
mais importantes da moral e ética aristotélica.
Assim, por exemplo, a coragem que deve evitar a temeridade e cobardia; a calma: a
irascibilidade e apatia; a temperança: a intemperança e insensibilidade; a liberalidade:
a prodigalidade e avareza; a honra: a ambição e humildade6; a magnificência: a
vulgaridade e mesquinharia; a indignação: a inveja e raiva; a magnanimidade: a
soberbia e modéstia; a veracidade: a jactância e falsidade; a jocosidade: a bufonaria e
rusticidade7; a amizade: a adulação e grosseria; e, a justiça que diz respeito a um modo
ser e agir pautado pelo equilíbrio, pela mediania: o justo ou meio-termo (lembrando o
símbolo da justiça representada pela balança). Tais jeitos de ser, cristalizados em
comportamentos, são importantes na medida em que permitem determinam o êthos
de cada povo, bem como as distintas formas de governo.
A andréia pode ser exemplificada no “olho virtuoso” que, segundo Ética, significa que
entre o olho completamente míope e hipermetrope tem-se uma completa hierarquia
de graus que passam por um meio, que é a perfeição mesma, isto é, a igual distância
dos efeitos extremos que são a hipermetropia (a demasia) e a miopia (a falta).
Dentre as virtudes aristotélicas: a justiça, prudência e amizade podem ser tidas como
virtudes cardiais e, isso pelo fato que implicam a externalização dos bons sentimentos
ou formas de ser e, portanto trazem efeitos salutares para a vida em comum ou, como
diz o estagirita, porque produzem para a sociedade política a felicidade.
Além destas virtudes práticas existe também a sabedoria especulativa, filosófica ou
teórica, adquirida pelo ensino, que “produz felicidade porque, sendo ela uma parte da
virtude inteira, torna um homem feliz pelo fato de estar na posse e de atualizar-se”.
6 Trata-se, neste caso, da honra (adquirida não pela riqueza) mas pela “coragem” do guerreiro, elogiada
por Aristóteles e também por Péricles que, discursando sobre a superioridade de Atenas sobre Esparta, antes do início da guerra do Peloponeso, declara: “Saibamos que tanto para as cidades quanto para os indivíduos, os mais graves perigos (a guerra) permitem a conquista da mais alta honra” (Mossé, 1971: 61). 7 Para Aristóteles os “seres humanos são as únicas criaturas que riem”, contudo, o riso defendido pelo
estagirita não é o riso “zombeteiro”, praticado pelos jovens, que adoram desprezar, envergonhar os outros, mas o riso “alegre”/”sorridente” que produz prazer, felicidade (Skinner, 2002: 15-16).
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Para Aristóteles, a virtude intelectual diz respeito a uma parte da alma: a reta razão
que se relaciona com as ciências teóricas (matemática, física, etc), o invariável, sujeito
a leis universais através do método indutivo ou dedutivo - o que no campo da ética
implica o conhecimento do bem8. Contudo, importa sublinhar que a sabedoria teórica,
a filosofia, à diferença das virtudes práticas, supõe sobretudo o uso da razão cuja meta
é o conhecimento (epistéme) ou, como acredita Platão, o conhecimento do verdadeiro
e do bem que não necessariamente implica “ações úteis, boas e belas”.
Aristóteles sem deixar de elogiar a filosofia entende, na relação theoría e práxis, que a
segunda é mais relevante: é acertado, pois, dizer que pela prática de atos bons se gera
o homem justo, mas a maioria das pessoas não procede assim refugiam-se na teoria e
pensam que estão sendo filósofos e que se tornam bons dessa maneira. E, ainda, com
o intuito de mostrar o predomínio da vida prática sobre a vida contemplativa, declara:
o intelecto por si mesmo não move coisa alguma, só pode fazê-lo a sabedoria prática
que visa a um fim (a felicidade) (Aristóteles, 1987: 31; 102) ou, quando em contraste
com Sócrates, que acredita que as virtudes morais são formas de conhecimento,
afirma: “o mais importante não é saber que é, mas como agimos: não queremos saber
o que é a coragem, queremos ser corajosos” (MacIntyre, 1966: 31).
Sendo assim, a prudência, sabedoria prática, é mais importante que a sabedoria teórica
já que faz possível, no dizer do autor, que “a obra de um homem só é perfeita quando
está de acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral (bons sentimentos),
porque esta faz que seja reto o nosso propósito; e aquela que escolhamos os devidos
meios” (Aristóteles, 1987: 111-112). A prudência, que acena com a possibilidade de
uma “ação útil, boa e bela”, supõe então a junção do bom caráter e da razão. O fato de
nela intervir a razão não significa que a prudência seja igual à sabedoria intelectual ou
filosófica que visa, vale reiterar, apenas o conhecimento.
De fato, a chamada atividade deliberativa, locus privilegiado do exercício da prudência
não procura, como veremos, o conhecimento mas se funda no melhor argumento ou
opinião. Em outras palavras: uma coisa é a prática do bem outra é o conhecimento do
verdadeiro. Sobre esta diferença, cabe o seguinte comentário:
O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica (Silva, 2011: 71).
A prudência ou sabedoria prática é relevante porque se relaciona com o agir concreto
que, norteado por bons sentimentos, consegue resultados - à diferença da teoria ou
filosofia que “não move coisa alguma”. Neste sentido, cabe citar a definição dada pelo
8 Quanto ao conhecimento do “bem” importa dizer que ele se apresenta de forma objetiva: a natureza
(fúsis) em que cada um dos elementos que a compõem se encontram em perfeito equilíbrio ou, como dirá Aristóteles em que cada ser cumpre a sua finalidade (voltaremos sobre este ponto).
6
estagirita da prudência: é uma mistura de reto desejo e bom raciocínio, ela é raciocínio
desiderativo ou desejo raciocinativo (Aristóteles, 1987: 102).
A prudência faz parte, portanto, do moralismo e racionalismo ou, para empregar uma
linguagem weberiana da “ética da convicção” e dos resultados, uma vez que engloba
bons sentimentos, mas se preocupa também pelas consequências da ação. Em outros
termos: a prudência é a disposição de caráter que permite deliberar sobre o que é
bom para o homem agir em conformidade com o convir. A importância dada aos meios
úteis ou racionais no exercício da prudência levou estudiosos a considerar esta virtude
aristotélica como a “mais proeminente de todas” já que sem ela não se saberia o que
se fazer nem como fazer, porque sem ela as demais virtudes seriam cegas (Comte-
Sponville, 2007: 39).
As virtudes práticas, justiça (diké), prudência (phronésis) e amizade (philía) merecem
destaque especial pelo fato de intervir, como veremos, na atividade deliberativa: a
elaboração de leis e decisões judiciais, bem como em dois tipos de atividade humana:
a poiésis e a práxis (que norteiam, como vermos, a função deliberativa).
Importa destacar também que as virtudes aristotélicas, enquanto formas de ser e agir,
supõem um “cuidado de si”: para se conduzir bem, para praticar adequadamente os
deveres de pai, esposo, cidadão, guerreiro, governante era necessário “ocupar-se de si
mesmo”, “superar-se a si mesmo” para não ser dominado pelos apetites. Trata-se de
um “apego de si” que é benéfico em relação aos outros e para os outros: “uma cidade
na qual todo mundo cuidasse de si adequadamente funcionaria bem e encontraria
nisso o princípio ético de sua permanência”. O cuidado naquilo que se faz coloca a
reputação, a honra, baseada no cumprimento do dever, como o mais importante vis-à-
vis de terceiros (Foucault, 2012: 264-267)9. Ou seja, o cuidado de si, que passa pela
contenção dos apetites particulares e pelo desejo de ser reconhecido, traz efeitos
salutares para a comunidade.
Exposta em termos gerais a moral e ética aristotélicas, convém à continuação mostrar
como se dão em nível social e político. Para isso, achamos oportuno analisar um termo
muito caro ao pensamento da antiguidade: a politéia. A escolha desta palavra obedece
ao fato de manter uma oscilação ou ambiguidade semântica que faz possível explorar
a riqueza do termo. Seguindo A política podemos vislumbrar pelo menos dois sentidos:
subjetivo - que diz respeito ao comportamento virtuoso do homem em sociedade, em
particular, do polités (cidadão); e, o objetivo - que diz respeito à pólis e, a uma forma
específica de governo: a república.
No sentido objetivo da palavra, a politéia aparece atrelada a uma realidade chamada
pólis que, numa visão essêncialista, diz respeito ao quid da vida em comum, da vida em
9 E isto, importa acrescentar, em contraste com a salvação da alma, baseada na ética da “renuncia de
si”, que será a preocupação central da moral e ética cristãs.
7
comunidade política. O termo pólis serve para designar uma agregação de homens em
vistas do bem comum: a felicidade, bem como uma organização que experimenta a
autárquica (autosuficiência). Uma organização que supõe não apenas viver (zein), mas
viver bem (eu zein)10 e, isso em contraste com as sociedades menores, “argolas de uma
cadeia com princípio e fim” (a pólis), que visam a sobrevivência (zein), mas carecem de
laço político, não compartilham uma comunidade em pro do bem comum. Além do
mais, tais agrupamentos seriam limitados porque segundo o estagirita quanto “mais
reduzidos são os grupos, menores são as exigências morais”.
Dentre dos grupos menores cabe citar a família; a phratría (grupo de famílias); e a tribo
(grupo de fratrias) que formam uma confederação até chegar à pólis (grupo de tribos),
sem perder sua individualidade e independência; em termos religiosos cada um tem
seu culto até chegar ao culto comum. A este respeito, cabe trazer o comentário de um
importante estudioso d’A cité antique:
O homem entra em épocas diferentes em cada um dessas quatro sociedades, ele sobe, de certa maneira, de uma para outra. A criança é primeiro aceita na família pela cerimônia religiosa que acontece dez dias após seu nascimento. Depois de alguns anos, entra na fratria através de uma nova cerimônia [diante de uma divindade superior à divindade doméstica]. Por último, à idade de dezesseis ou dezoito anos, ele se apresenta para ser aceito na cidade. Esse dia (...) faz um juramento pelo qual se compromete, dentre outras coisas, a respeitar sempre a religião da cidade. A partir desse dia, é iniciado ao culto público e se torna cidadão (Coulanges, 1984: 145).
Como acontece no plano religioso: pluralidade de cultos por cima dos quais o culto da
cité (a deusa Atenas) o mesmo acontece no plano político: pluralidade de governos
(chefes, assembleias, etc) por cima dos quais o governo da cidade, que visa o bem de
todos.
A politéia em sentido objetivo diz respeito também a uma forma específica, reta, de
governo: a república. Ideia endossada por Péricles quando se refere à “democracia
ateniense” (460-430 a.C.) nos seguintes termos:
Nossa politéia não tem nada que invejar às leis que regem nossos vizinhos; longe de imitar aos outros, nós damos o exemplo a seguir. Do fato que nossa cidade encontra-se administrada pelo interesse da massa e não de uma minoria, nosso regime chama-se democracia. E no que concerne as diferenças particulares, a igualdade é garantida a todos através das leis; mas no que diz respeito à participação na vida pública, cada um é merecedor de consideração em razão do seu mérito, e a classe a qual pertence importa menos que seu valor pessoal; em definitivo ninguém é incomodado pela pobreza ou pela baixeza da sua condição social, sempre e quando preste serviços à cidade (grifo nosso)(Mossé, 1971: 47).
Para Aristóteles a politéia ou república resulta, paradoxalmente, da combinação de
duas formas más ou ruins de governo: a oligarquia e a democracia. De fato, segundo A
política, a oligarquia é o governo dos ricos enquanto a democracia dos pobres, com o
10
“É evidente, observa Aristóteles em A política, que a pólis não é, meramente, a coabitação de pessoas no mesmo território, a fim de que os cidadãos gozem de segurança e mantenham boas relações de negócio”.
8
qual o que interessa destacar não é a extensão da soberania, critério quantitativo,
quantos governam?, mas o modo de exercício da soberania, critério qualitativo, como
se governa? Para quem se governa? Ou seja, em beneficio de uma parte, as formas
ruins ou más de governo: um só - tirania; ricos - oligarquia; pobres - democracia ou
oclocracia ou, pelo contrário, em beneficio de muitos ou do grande número, as formas
retas ou boas: realeza, aristocracia e república ou politéia, respectivamente.
O fato de que poucos ou muitos governem é acidental para determinar a oligarquia ou
democracia, uma vez que a verdadeira diferença radica no predomínio dos interesses
que as animam: a riqueza ou liberdade total (licenciosidade). Disso resulta que o
objetivo do estagirita, ao igual que outros pensadores da antiguidade, é defender uma
forma de governo que, segundo assertiva do reformador Sólon, “permita que ricos e
pobres sejam protegidos com um forte escudo que cobra a todos, de modo que
nenhum triunfe injustamente à custa dos outros” (Finley, 1983:11).
É o que acontece, por exemplo, na oligarquia em que os ricos se tomam por “deuses”,
governam acima das leis e em benefício próprio contra os pobres; e na democracia em
que os pobres se comportam como “bestas”, governam acima das leis e em benefício
próprio contra os ricos. Não esqueçamos, seguindo Aristóteles, que para fazer parte de
uma koinonía (comunidade) é necessário que o homem não se baste a si mesmo, isto
é, seguindo o autor, que não se tome por deus ou animal.
Como exemplo de formas ruins de governo podemos citar os regimes conhecidos por
Atenas depois da Guerra do Peloponeso: “Conselho oligárquico dos 30”, “Assembleia
democrática dos 5.000”. Exemplos maus de governo porque, conforme o estagirita,
“quando ocorrem revoltas e combates entre pobres e ricos, os que saem vencedores
não toleram mais comunicação nem igualdade com os vencidos, mas reservam para si,
como prêmio da vitória, o privilégio de governar” (Aristóteles, 2006: 190).
Para superar a ideia de que o estado (pólis) é uma arena de interesses conflitantes, o
espírito moderado do estagirita elogia uma forma de governo que permita superar o
predomínio de interesses parciais. Uma forma - mista - de governo, a república ou
politéia, mistura de oligarquia e democracia (ricos e pobres), que é melhor porque se
assenta em termos socioeconômicos numa ampla classe média, numa maior inclusão
social, com “muitos cidadãos de média fortuna”, segundo Aristóteles, mas também
porque combina certos arranjos institucionais que permitem uma maior participação
política, que evita o conflito e fortalece o consenso. Além de contar, como veremos, do
ponto de vista ético com uma maior quantidade de cidadãos virtuosos.
De fato, o problema da oligarquia e democracia, formas simples e más de governo, é
que conhecem a perturbação da ordem, a desordem (stasis), a desarmonia (hybris), o
descomedimento, ou seja, a prática do excesso, o triunfo do vício: os ricos que não
querem perder a riqueza e brigam contra os pobres, os pobres que não querem perder
9
a licenciosidade e brigam contra os ricos; característica, aliás, própria da pólis que, em
contraste com os grupos menores (familia, fratria, etc), conhece o conflito (pólemos), a
luta entre grupos opostos.
Já a politéia ou república, governo do to meson: meio-termo, equilíbrio entre partes,
fusão entre ricos e pobres, com ampla classe média, etc, torna possível a paz, a ordem
e, portanto é mais duradoura no tempo (firmitudinem). Trata-se então de uma forma
de governo que permite desacelerar o ritmo inexorável da anaciclose, formas boas
seguidas de formas más de governo, porque se funda na concórdia (homónoia) dos
cidadãos e evita o triunfo dos extremos:
É, portanto, uma grande felicidade para o Estado que nele se encontrem apenas fortunas medíocres e suficientes. Em toda parte onde uns têm demais e outros nada, segue-se necessariamente que haja democracia exacerbada, ou violenta oligarquia (...) A mediania (na riqueza) é, pois, o melhor Estado; é o único que não conhece sedições. Com efeito, não acontecem nem agitações, nem divisão onde muitos se encontram em posse de uma riqueza média (Aristóteles, 2006: 189-190).
Acompanhando esse argumento sociológico em prol da politéia, podemos acrescentar,
seguindo A política, três expedientes ou combinações possíveis tirados da oligarquia e
democracia que fazem da república um bom governo. Da primeira, a oligarquia,
porque multa os ricos que não comparecem às sessões das magistraturas colegiadas,
exige certa riqueza para escolher ou ser escolhido como membro das magistraturas e,
ademais utiliza o mecanismo da eleição para o preenchimento dos cargos; da segunda,
a democracia, porque paga jetom aos pobres para que compareçam as magistratura
colegiadas11, exige pouca riqueza para exercer tais funções e, também porque utiliza o
mecanismo do sorteio para o preenchimento dos cargos. Dessa maneira, a república,
como diz estagirita, é uma “combinação perfeita” que “deve parecer uma ou outra
forma de governo ao mesmo tempo sem parecer, contudo, nenhuma das duas”
(oligarquia e democracia).
Pari passu ao argumento sociológico, presença de uma numerosa classe média, e da
combinação de expedientes que tornam possível uma maior participação política,
Aristóteles desenvolve outro argumento, de natureza ética, em favor da politéia: a
presença de muitos cidadãos eleitos em que predomina o comportamento moderado,
o meio-termo (andréia), em oposição ao triunfo do vício: “O que dissemos de melhor
em nossa Ética é que a vida feliz consiste no livre exercício da virtude, a virtude na
mediania; segue-se necessariamente daí que a melhor vida deve ser a vida média,
encerrada nos limites de uma abastança que todos possam conseguir”. E, acrescenta:
“O que dizemos da virtude e do vício (em nível individual) devemos dizer do governo,
que é a vida do Estado inteiro” (Aristóteles, 2006: 187).
11
Péricles cria, por exemplo, o misthos heliastikos: pagamento oferecido como compensação àqueles que abandonam o trabalho (labuta) para exercer funções políticas e judiciais (Mansouri: 2011: 34).
10
Seguindo Francis Wolff, o problema da democracia e oligarquia é que elas operam uma
“quantificação do poder” quando na verdade do que se trata, inspirado no estagirita, é
defender uma forma de governo em que se dá uma “qualificação do poder”: as formas
retas. Com base nesta premissa, a politéia é uma forma boa não porque o poder seja
distribuído equitativamente como querem os oligarcas que dizem “a cada um segundo
sua riqueza” ou os pobres que dizem “a cada um segundo sua liberdade” (licencia
total), mas porque deixa de lado tais critérios. De fato, nestes casos o poder aparece
distribuído não de acordo com a virtude, mas conforme interesses parciais, “da classe
dominante”, que pretendem se erigir no interesse geral.
Com base no entendimento que “nem a liberdade (licencia total) nem a riqueza devem
ser levados em conta na distribuição do poder” (Wolff, 1999: 123), há que “encontrar”
uma forma de governo em que o poder seja exercido por cidadãos virtuosos. Sendo
assim, a pergunta correta, seguindo o raciocínio do mesmo autor, é a seguinte: a quem
o poder deve ser atribuído em toda justiça não porque será justamente repartido, mas
porque será justamente exercido, em benefício de todos.
A este respeito é conhecida à resposta de Aristóteles com as três formas retas ou boas
de governo porque baseadas na virtude de um só (realeza); alguns (aristocracia); e, na
virtude de muitos (república). Em todos os casos trata-se do governo em favor de
todos e respeitoso das leis. Dessa maneira, para o estagirita, é justo todo governo que
vise o bem de do maior número em vez daqueles que só beneficiam uma parte da
sociedade. Assim, a vida boa, o bom viver (eu zein), viver em comum (koinon), qualifica
o governo de um, alguns ou muitos como verdadeiro regime político.
Contudo, resta saber, qual das três formas é a melhor: “que tipo de regime é o mais
capaz de tomar as melhores decisões de governo para a cidade?” (Cardoso, 2006: 6). A
resposta do estagirita é o governo de todos em prol de todos: quando a massa, afirma,
tomada como um corpo é virtuosa ela é superior àquela de um só ou alguns. A defesa
do regime político formado de muitos cidadãos virtuosos implica fazer uma “apologia
aristocrática da democracia” ou, parafraseando Francis Wolf: Aristóteles “em vez de
pretender que é melhor que o povo governe, ele mostra que o povo governa melhor”:
Aristóteles vem atestar que não é propriamente a democracia - nominal e formalmente o governo de todo o povo, mas, de fato, o da massa dos pobres - que realiza a figura superior do governo de todos [o mais apto a governar para todos e a levar aos fins da comunidade política], mas é o regime constitucional [“politéia”]: o governo do “justo meio” entre ricos e pobres, formalmente definido pela promoção da inclusão e comunicação das partes fundamentais [irredutíveis] e antagônicas da cidade (sic) (Cardoso, 2000: 6).
Do exposto até aqui se depreende que a reflexão aristotélica se encontra no ponto de
interseção de quatro projetos da teoria política, dois especulativos e dois empíricos, a
saber: a) fundamentos da política com finalidades descritivas - a pólis e sua relação
com os grupos menores; b) fundamentos da política com finalidades prescritivas - a
essência da pólis; c) regimes políticos com finalidades descritivas - as diferentes formas
11
de governo; e, d) regimes políticos com finalidades prescritivas - as formas boas de
governo que impedem a ruína da pólis. Tais projetos sendo a “marca registrada” da
sua obra que parece balançar entre a filosofia com seu ideal reformador e a ciência
política com sua análise descritiva e comparativa das diferentes formas de governo12.
Como exemplo do governo de muitos em favor de muitos podemos citar a democracia
ateniense durante o “século de ouro” ou “século de Péricles” (460-430 a.C.) que, na
opinião do líder ateniense, se assenta na “busca da felicidade do maior número e não
de alguns”. Esta forma de governo, com base nas “reformas cruciais” de Clístenes (508-
507a.C.), faz de Atenas um regime inclusivo, contudo, importa lembrar que mulheres,
estrangeiros (metecos) e escravos não participam, não são cidadãos; assim de uma
população total de trezentas mil pessoas, início do século V a.C, apenas 15% participa
como cidadão.
Em Constituição de Atenas o estagirita elogia o líder, Péricles, por ter “entregado o
poder ao povo”, na opinião de historiadores: um regime que deu às classes mais baixas
a audácia de assumir cada vez mais a liderança na política (Finley, 1988: 58). Porém, a
democracia ateniense não se caracteriza só pela maior extensão da soberania, pela
maior participação política mas, também porque reflete o costume ou ethos virtuoso
de seu povo.
Sendo assim, o estagirita insiste num aspecto muito relevante: a estreita relação que
guarda o governo de qualquer comunidade e seu êthos (Babbitt, 2003: 49). Ou, como
destacam outros estudiosos a propósito do caráter de cada povo na antiguidade: cada
um tinha sua tonalidade ou êthos próprio, cada um desenvolvia um código de conduta
peculiar, cada um tinha sua personalidade moral, cada um tinha consciência de si
como um todo, que ele próprio criava e sustentava (Barker, 1978: 16). Daí, então, a
afamada classificação aristotélica das formas ruins e boas de governo, isto é, baseadas
no vício ou na virtude dos que governam, bem como no “jeito de ser” de cada povo.
A continuação, convém registrar algumas características da “democracia ateniense”
(460-430 a.C.) na medida em que representa, aos olhos do estagirita, uma forma boa
de governo. O elogio desta forma de governo pode ser justificada se levamos em conta
a “atmosfera pesada” em que se inscreve a reflexão aristotélica: ocaso do “século de
Péricles”, fim da pólis e triunfo da cosmopólis.
As mudanças democráticas introduzidas por Clístenes em Atenas (508 a.C.) faz que o
número de tribos passe para dez (das quatro existentes) e, que a população civil seja
dividida em trinta grupos de démos (comunas), cada tribo representando as três zonas
geográficas da Ática: a cidade, o interior rural e o litoral. Com base nesta repartição,
um “espaço cívico inteiramente reconstituído”, os cidadãos passam a ser registrados
12
Aristóteles realiza um estudo comparativo de 158 constituições do qual ficou, sobretudo, disponível: A constituição de Atenas (encontrada no século XIX em Egito).
12
no démos onde nascem, que servem também de base para a composição das unidades
militares (hoplitas). Tal repartição era mais democrática, ampliava a cidadania já que o
démos, formado sobretudo de camponeses e alguns artesãos, substituí o registro feito
na fratria - agrupamento de famílias mais aristocrático:
A reestruturação promovida por Clístenes permitiu integrar um maior número de cidadãos à vida pública, inserindo-os em circunscrições inteiramente novas, que rompiam com os quadros geográficos tradicionais, e, assim, acabavam com as relações de clientelismo que mantinham a população local submetida ao poder das antigas famílias dirigentes (Schnapp-Gourbeillon, 2011: 31-32).
As reformas de Clístenes faz da tribo o local privilegiado para a distribuição dos cargos
públicos a serem exercidos na Boulé ou Conselho, Eclésia ou Assembleia e, Heliée ou
Tribunal. A composição destas instituições ampliava a participação, uma vez que eram
as tribos que forneciam os soldados, a maioria pouco endinheirados, para as unidades
militares (hoplitas). Cumpre destacar também que o acesso aos cargos públicos seguia
o procedimento do sorteio para a escolha dos membros do conselho e, a eleição para
os membros da assembleia e tribunal, que se estende também ao Estratego ou Líder;
sem esquecer que todos os que ocupavam cargos deviam prestar contas à população.
A Boulé era encarregada de preparar as leis que eram submetidas depois à votação da
assembleia. Reunia representantes eleitos pelas dez tribos (50 bouletai), o “Conselho
dos 500”, que exerciam o cargo durante um ano. Os representantes eram sorteados
dentre os candidatos de cada démos e não podiam exercer suas funções mais que duas
vezes. Para ser bouletai era necessário ter trinta anos.
Seguindo mudança do calendário de Clístenes (um ano: dez meses) cada tribo passa a
governar a cidade durante um mês, os bouletai não podendo exercer outro tipo de
atividade durante esse tempo já que ficavam dia e noite nas dependências do conselho
(Schnapp-Gouberlion, 2011: 31-32). Dos mais de três mil membros do conselho que se
conhece o nome, no período de Péricles, 1/3 exerce o cargo mais de uma vez; e,
segundo outras estimativas entre 1/4 e 1/3 do total de cidadãos, com mais de 30 anos,
participou do conselho (arredor de 13.000 cidadãos).
A Eclésia era encarregada de fazer as leis (lei de orçamento), nomear embaixadores e
magistrados e realizar tratados. Reunia-se 40 vezes por ano, estabelecia a ordem do
dia de cada sessão e os cidadãos deliberavam sobre os assuntos específicos em pauta.
Todo cidadão maior de 18 anos podia participar dos debates expressando seu voto
com a mão erguida e a decisão era tomada pela maioria simples dos presentes13, as
questões mais relevantes podendo ser submetidas à votação secreta.
13
Sobre a regra da maioria (pollói), ela se aplicava tanto aos assuntos políticos quanto judiciais, todos podiam exprimir-se e os mais numerosos levavam a vitória.
13
A Eclésia era soberana e seus poderes quase ilimitados, porém diante do risco de ceder
ao excesso de demagogos a Boulé, encarregada da redação final das leis, exercia o
papel moderador. Nos projetos de lei, submetidos à assembleia, qualquer cidadão
podia apresentar impugnações e ementas. As grandes questões como a declaração da
guerra, o ostracismo14, etc, eram matéria exclusiva de sua competência. O quórum
exigido para o funcionamento da assembleia era de 6.000 cidadãos.
A Heliée era composta de cidadãos com mais de trinta anos recrutados por eleição,
mas também por sorteio: cada ano seis mil voluntários (600 por tribo) eram sorteados
para atuar no tribunal, mais de 300 dias por ano. A função principal consistia em julgar
causas apresentadas pela população e atuar como tribunal de apelação das decisões
de outros magistrados. Finalmente, o Estratego ou Líder escolhido dentre os cidadãos
de cada tribo para compor um colegiado (dez estrategos) que atuavam como ministros
ou, como generais em tempos de guerra. O cargo tinha duração de dois anos podendo
reeleger-se sem limites de prazo.
Com as reformas introduzidas por Péricles (458 a.C.) o poder da Éclesia é reforçado na
medida em que passa a exercer funções dos arcontes15; além disso, a reforma faz que
todos os eleitos sejam remunerados (incluídos os 6.000 membros do júri, soldados e
funcionários do exército) tornando possível que cerca de 20.000 atenienses possam
dedicar-se aos assuntos públicos (Bernet, 2011: 52).
Do “evento criador da democracia ateniense”, as reformas de Clístenes e Péricles, vale
destacar, notadamente, a importância da virtude (areté), no dizer de Montesquieu: o
“princípio ou mola da democracia antiga”, uma forma de agir, segundo o autor, que
passa pela contenção do interesse privado em pro do bem comum, pelo respeito do
cidadão às instituições e leis. Tal observação do filósofo francês pode ser ilustrada, por
exemplo, quando o polités ateniense presta juramento por tribos e démos:
Farei morrer, pela palavra, pela ação, pelo voto e pela minha mão, se puder, aquele que derrubar a democracia ateniense ou, uma vez derrubado o regime, em seguida exercer uma magistratura, ou aquele que se levantar para apossar-se da tirania ou venha ajudar o tirano a se estabelecer. E se for um outro que o mate, eu o considerarei puro diante dos deuses e das potências divinas, como se tivesse matado um inimigo público. Mandarei vender todos os seus bens e darei a metade ao assassino sem frustrá-lo em nada. E se um cidadão morrer matando um dos traidores, ou tentando matá-lo, eu lhes serei reconhecido assim como aos seus filhos [...] E todos os juramentos que foram feitos em Atenas, no exército ou alhures, para a ruína do povo ateniense, eu os anulo e rompo os seus laços (Vidal-Naquet, 2003: 258).
Em relação às funções de governo, Aristóteles entende que atividade legislativa e
judiciária deve ficar em mãos de muitos cidadãos e, isso porque a opinião de muitos
14 O ostracismo, introduzido por Péricles em Atenas era o procedimento através do qual era expulso ou banido da cidade, por dez anos, todo eleito ou cidadão considerado ruim. Noutras palavras: um castigo a todo àquele que, não opinião da maioria dos membros da Assembleia, não trabalhasse em favor do bem comum. 15 Ex-magistrados da aristocracia ateniense, responsáveis por diferentes áreas de governo.
14
delibera melhor sobre o universal (a lei) e, julga melhor sobre o particular (o delito) já
no tocante à função executiva, além de exigir mais preparo, deve ficar em mãos de
poucos para tornar as decisões mais rápidas e não paralisar a atividade administrativa.
Vale destacar que no momento da elaboração da lei e decisão judicial a prudência ou
phronésis aparece com toda força, uma vez que a sabedoria prática versa sobre coisas
humanas e para isso precisa de homens dotados que saibam, baseados no uso da
razão, fazer o melhor para todos (Aristóteles, 1987: 106). De fato, é o que acontece
com os encarregados da fazer a lei que cumprem também uma função educadora:
[...] se é pelas leis que nos podemos tornar bons, seguramente o que se empenha em melhorar homens, sejam estes muitos ou poucos, deve ser capaz de legislar. Porquanto reformar o caráter de qualquer um - do primeiro que lhe colocam na frente - não é tarefa para qualquer um; se alguém pode fazer isso, é o homem que sabe, exatamente como na medicina e em todos os outros assuntos que exigem cuidado e prudência (Aristóteles, 1987; 194).
A deliberação, que versa sobre coisas humanas, consiste na procura de meios idôneos
para realizar um fim determinado. Contudo, importa dizer mais uma vez que não se
trata da escolha de um meio que necessariamente leva a um resultado, ou seja, não é
um problema de ciência, epistéme, mas de opiniões, de vários pontos de vista, em que
o fim visado é conseguido através de argumentos. A deliberação seja sobre o universal
ou particular não implica então um saber infalível, mas que o cidadão desenvolva um
saber aproximado sobre o que é possível, ela implica sempre o risco ou fracasso
(Aubenque, 1963: 108; 113).
O exercício da prudência pode ser observado na atuação dos juízes (dikastés), bem
como dos membros do júri que fazem justiça: “dar a cada um o seu” e, isso seguindo
dois princípios: aritmético e geométrico, ou seja, uma distribuindo de bens matérias ou
imateriais com base num tratamento igual ou proporcional. Em relação a estes dos
tipos de justiça vale fazer um breve comentário.
Segundo o Livro V da Ética temos, por um lado, a justiça civil que versa sobre objetos
de troca (o contrato), e a justiça penal que versa sobre crimes (o homicídio), em que o
juiz decide de maneira igual, de forma aritmética, a parte que corresponde a cada um:
no caso do contrato obrigar uma das partes a restituir o que corresponde; no caso do
homicídio obrigar o criminoso a cumprir uma pena. Neste contexto, o justo pode ser
definido segundo a seguinte premissa: “sofrer o que se faz aos outros será reta justiça”
(Darbo-Peschaski, 1993: 46). Na justiça comutativa ou retributiva o que está em jogo é
uma “equivalência entre coisas” ou uma “reparação entre pessoas”.
Por outro lado temos a justiça “social” que versa sobre relações de convivência em que
o juiz decide de maneira proporcional, de forma geométrica, o que corresponde a cada
um, segundo critérios como a necessidade, o mérito, a função e responsabilidade (de
cada um). Neste caso, a justiça distributiva ou atributiva, o que está em jogo é uma
15
“equiparação de pessoas, de bens ou encargos” - o que implica que não sejam tratadas
de forma igual, mas de forma desigual, diferenciada.
Assim, seguindo o critério de “a cada um segundo suas necessidades” significa que o
bolo social não será distribuído igualitariamente, mas há que dar mais àqueles que se
encontram mais necessitados (Haarscher, 1993: 12). Em reforço disso, vale lembrar a
finalidade da pólis - segundo Aristóteles:
(...) assegurar a todos os cidadãos uma vida digna de homens livres, isto é, a participação comunitária nos bens essências ao bem-estar coletivo, segundo um principio de igualdade proporcional em que os que tem menos riqueza devem receber mais bens da comunidade (Comparato, 2006: 104).
Este segundo tipo de justiça cujo objeto é a justa repartição de riquezas, méritos e
encargos num grupo assim como o primeiro princípio de justiça cujo objeto é a justa
reparação pelo dano causado faz que o direito (to dikaión) seja um objeto tangível ou
intangível, uma coisa material ou imaterial a ser distribuída ou retribuída e, não uma
qualidade ou atributo inerente ao homem (os diretos naturais) (Villey, 1983: 46; 47).
A atividade deliberativa exercida no conselho, na assembleia e, no tribunal, baseada na
prudência, corresponde a um tipo de atividade humana chamada poiésis ou trabalho.
O trabalho diz respeito à tékhne que, a partir de uma ars, saber prático, produz um
bem: norma ou decisão judicial. A poiésis é fundamental já que a vida na pólis requer
certas condições para funcionar: leis que é “trabalho” do legislador, decisão judicial
que é “trabalho” do juiz, etc16. Em ambos os casos visa um resultado: a estabilidade e
felicidade da comunidade. Tal tipo de atividade, poiésis, própria do homo faber, que
fabrica ou produz algo (lei, decisão judicial) - que é duradouro:
Este caráter duradouro (da poiésis) dá às coisas do mundo sua relativa independência com respeito aos homens que as produzem e as usam, sua “objetividade” as faz suportar, “resistir” e perdurar, pelo menos por um tempo, às vorazes necessidades e exigências de seus fabricantes e usuários. Deste ponto de vista, as coisas do mundo tem a função de estabilizar a vida humana, e sua objetividade radica no fato de que (...) os homens, apesar da sua sempre cambiante natureza, podem recuperar sua unicidade, quer dizer, sua identidade, ao relacioná-la com a mesma (coisa). Dito de outra maneira, contra a subjetividade dos homens se levanta a objetividade do mundo (grifo nosso) (Arendt, 1993: 158).
Em linguagem abstrata a poiésis, ligada à produção de normas ou decisões judiciais,
pode ser tida como “acidente” de uma “essência”. A felicidade, afirma o estagirita, faz
parte do número de coisas estimadas e perfeitas, ela é um primeiro princípio, pois é
tendo-a em vista que fazemos tudo o que fazemos, e o primeiro princípio e causa dos
bens é algo de estimado e de divino (Aristóteles, 1987:22). A felicidade, essência das
coisas humanas, supõe então normas e decisões que são acidentes da sua realização.
16
Como também, exemplo dado por Aristóteles, é “trabalho” (poiésis) a atividade do arquiteto que construí a cidade, etc.
16
Cumpre destacar, aqui, o objetivismo ético aristotélico: a felicidade, uma essência, um
objeto ou coisa quantitativa e qualitativamente boa - que exige formas ou jeitos de ser
e condutas determinadas. Tal visão da felicidade, porém, não é transcendente: não se
trata do conhecimento da felicidade em si (Platão), mas da felicidade que aparece nas
coisas boas que os homens desejam e buscam (MacIntyre: 1994: 68).
Em relação à práxis ou ação, outro tipo de atividade humana, ela diz respeito ao polités
que, junto com outros cidadãos reunidos na assembleia17, produz outro tipo de bem,
desta vez, fugaz, simbólico, que dignifica a conduta, por exemplo, a phília ou amizade.
Trata-se, na opinião de Hannah Arendt da “subjetividade dos homens” que, liberados
da necessidade18, conseguem através da linguagem, comunicação ou discurso (lexis)
compartilhar um bom sentimento (phília) e debater sobre o que é comum (koinon) e
os melhores fins da cité. A práxis e discurso, afirma a autora, dá-se entre homens que
tem interesses comuns, algo do inter-est, que se encontra entre as pessoas e que pode
relacioná-las, uni-las.
A práxis significa que o cidadão movido por bons sentimentos ou desejos (temperança,
coragem, veracidade, etc), as virtudes morais aristotélicas, produz na companhia de
outrem bens simbólicos, transitórios como a amizade que não é outra coisa que o
reconhecimento de nosso ser no outro, a abertura ao sofrimento de outrem ou, como
diz o estagirita: “sem amigos ninguém quer viver mesmo que tenha outros bens”, “na
pobreza e nas demais desgraças consideramos os amigos como o único refúgio”, etc.
Trata-se de um bem que, à diferença daquele produzido pela poiésis ou trabalho,
merece ser vivido independentemente do resultado.
O locus da praxe é o do encontro na praça pública (ágora) entre cidadãos livres e iguais
que compartem bens fugazes, transitórios: o processo de agir e falar, destaca a autora,
pode não deixar trás de si resultados e produtos finais, porém da sua prática dá-se algo
que podemos chamar “trama das relações humanas” (Arendt, 1993: 207) - com esta
expressão querendo dizer a autora a produção de algo espontâneo: compartir palavras
e estar juntos que mobilizam bons sentimentos e laços comunitários que norteiam, por
sua vez, a deliberação sobre os melhores fins da pólis.
Com base nos dois tipos de atividades humanas, poiésis e práxis, podemos dizer que a
prudência aparece no primeiro tipo de atividade no sentido que está destinada a
produzir algo estável (norma, decisão judicial) que requer uma arte ou técnica, o uso
da razão ou, como diz Aristóteles: “a arte é uma disposição relacionada com o produzir
17 Ou seja, na “praça pública” (ágora): a assembleia não era nada além de um comício ao ar livre na colina Pnyx. 18
Isto é, dispensados de outro tipo de atividade, a chamada labor (esforço físico), que corresponde ao homem laborans, homo econômicas, exercida no âmbito da casa (oikós) pelo escravo e destinada à produção de bens de consumo para a sobrevivência.
17
que envolve o reto raciocínio”, mas também a prudência aparece no segundo tipo de
atividade no sentido que está destinada “não a produzir” como diz o estagirita, mas a
sentir algo bom em si, apesar de fugaz e transitório. Ambos os tipos de atividade,
trabalho e praxe, ligados à prudência, contribuindo para o bom viver na pólis. Neste
sentido, discordamos daqueles que entendem a prudência como fazendo parte apenas
da práxis e não da poiésis por ser uma atividade baseada sobretudo no conhecimento
(téckne) e êxito do resultado19.
Na atuação do polités como legislador, juiz ou eleitor cumpre destacar, mais uma vez,
a virtude pautada pelo meio-termo, a temperança, uma vez que permite desenvolver o
sentimento de pertença à comunidade e ter consciência de um destino comum:
Nem a Assembleia soberana, com seu direito ilimitado de participação, nem os júris populares, nem as escolhas de administradores por sorteio, nem o ostracismo poderiam ter evitado, por um lado, o caos e, por outro lado, a tirania se não houvesse autocontrole entre uma representativa parte do corpo de cidadãos para manter seu comportamento dentro dos limites (grifo nosso) (Finley, 2003: 40-41).
Em relação aos “primeiros nomes da democracia”: isonomia, isogoria, isocracia (direito
igual na elaboração da lei, no uso da palavra, de participar politicamente)20 trata-se de
direitos que se relacionam com o exercício da soberania (krátos), sem desconsiderar a
forte influência que exercem na educação (paidéia) do cidadão:
Em uma sociedade pequena, homogênea, relativamente fechada, em que todos se conheciam, era perfeitamente válido chamar as instituições fundamentais da comunidade (...) - a Assembleia - como agente natural de educação. Um jovem se educava comparecendo à Assembleia, ele aprendia as questões políticas que Atenas enfrentava, as escolhas, os debates e aprendia a avaliar os homens que se apresentavam como políticos atuantes, como líderes (Finley, 1988: 42).
Sobre a liberdade e igualdade convém trazer a opinião de alguns autores com o intuito
de mostrar seu alcance, assim, por exemplo, Hegel: os antigos se consideram livres e
iguais como cidadãos ou, Arendt: a igualdade e liberdade dos gregos eram atributos do
cidadão e não qualidades inerentes ao homem; e, ainda, o comentário de Thomas
Mann, em A montanha mágica, o destino do homem grego encontra seu significado
em termos políticos. São direitos que remetem à conhecida fórmula da liberdade dos
antigos de Benjamin Constant que consiste em exercer coletiva e diretamente várias
partes da soberania, em deliberar na praça pública; ela implica, segundo o autor, uma
completa subordinação do indivíduo ao todo (a pólis). Neste sentido, tais direitos não
podem ser dissociados do termo parresia (obrigação de usar a palavra), no sentido do
cidadão ter a obrigação de tomar parte nos assuntos públicos.
19 “(...) a atividade prática não devia confundir-se com a atividade produtiva. As esferas da práxis e da poiésis, da ação político-moral e da produção de artefatos úteis ou belos, não eram menos diferentes. (...) o primeiro âmbito era reservado à prudência prática, o outro pertencia propriamente à habilidade artesanal ou techne” (McCarthy, 1992: 21). 20
Direitos estes que confirmam, aliás, a observação do historiador britânico Moses Finley de que “o mundo grego foi sobretudo um mundo da palavra falada e não da escrita”.
18
Segundo A cidade antiga de Fustel de Coulanges estamos diante da “omnipotência do
estado”; dos antigos não terem conhecido a liberdade como independência individual,
etc. Assertiva que pode ser ilustrada pelo fato que em Atenas o serviço militar durava
toda a vida; que a riqueza ficava à disposição do estado que, por sua vez, podia obrigar
o homem a trabalhar; que o cidadão não podia permanecer neutro diante de posições
contrárias; que a educação ficava a cargo de mestres escolhidos pelo estado; que o
homem não tinha liberdade de credo religiosa, devendo submeter-se à religião da
cidade e ser penalizado se não comparecia à celebração de uma festa nacional e, até
acusado e condenado por falta de afeição para o estado com a pena do ostracismo. E,
ainda mais:
A funesta máxima de que a salvação do Estado é lei suprema foi elaborada pela antiguidade. O direito, a justiça, a moral, tudo devia ceder diante o interesse da pátria. É um erro acreditar que nas cidades antigas o homem gozava da liberdade. Não tinha a mais mínima ideia dela, não acreditava que podia existir direito vis-à-vis da cidade (...) o governo podia chamar-se monarquia, aristocracia, democracia, contudo nenhuma dessas mudanças dá aos homens a verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados (etc), voilà ce qu’on appelait la liberté (Coulanges, 1984: 265-269).
Seguindo classificações do pensamento social e político podemos dizer que o tipo de
argumento que prevalece no mundo antigo é ex parte principis (Bobbio), de cima para
baixo, do estado para o indivíduo: o importante é a unidade do estado e os deveres
dos indivíduos para a comunidade. Uma forma de sociedade: universitas (Gierke), em
que o homem faz parte de uma totalidade orgânica (pólis) que precede os membros;
uma Gemeinschaft (Tönnies) que privilegia a coletividade sobre o indivíduo; uma
sociedade fechada (Popper) que, como um organismo, mantém os membros juntos
através da participação no esforço comum. Uma ideologia, o holismo (Dumont) que
valoriza a totalidade social, bem como a hierarquia e subordinação de cada um dentro
do estado, etc.
Estas classificações merecem um comentário. O pensamento da antiguidade tira seu
fundamento “último” da ordem natural, fúsis, que não é igualitária mas hierárquica:
uma totalidade em que cada elemento se encontra em harmonia com o resto. A
famosa expressão nómos katá fúsis (a lei deve estar em conformidade com a natureza)
tal como usada por Platão significa, por exemplo, que a kallipolis ou república perfeita
deve reproduzir em nível individual e social a ordem natural que, além de hierárquica é
equilibrada.
Assim, por exemplo, ouro, prata e bronze, elementos da ordem natural correspondem
respectivamente a distintos tipos de almas e classes sociais. O ouro à razão, a classe
política; a prata à coragem, a classe militar; e o bronze à apetência, a classe econômica
(Platão, 1983: 121), os filósofos-reis no alto, guerreiros no meio e artesãos embaixo
como num corpo humano se encontra o noús (o espírito) na cabeça, no alto, o thymós
(o coração, a coragem) no diafragma, no meio, e a epithumía (o desejo animal) no
19
baixo ventre. Trata-se de uma ordem natural hierárquica e harmônica a ser respeitada
já que serve para ser imitada, reproduzida, segundo Platão, em “pequenos caracteres”
e “grandes caracteres”, ou seja, em nível individual e social.
A virtude ou areté entendida como disposição para produzir efeitos comuns, realizar
de maneira ótima aquilo para o qual se está destinado, serve justamente para mostrar
que cada membro da pólis de acordo com a natureza deve cumprir seu papel, “ficar no
seu lugar”. Neste sentido, a ética aparece intimamente ligada à astronomia: “ciência
bela e útil”, segundo Platão, que modela a vida virtuosa.
Já o nómos katá fúsis aristotélico21 é mais biológico (que astronômico), ou seja, para o
estagirita a correspondência entre lei e natureza não passa pela imitação astronômica
da fúsis (Platão), mas, biologicamente, pela teoria da finalidade ou teleológica segundo
a qual cada ser tem um fim. Em outras palavras: há que apreender da natureza porque
na sua totalidade terrena e celeste é composta de seres animados e inanimados que,
em sua hierarquia e subdivisões, cada um cumpre seu fim. Admitir que o universo é
composto de seres, cada um regido pela finalidade que lhe é própria, implica dizer que
cada um tem seu lugar natural. Trata-se de uma visão “aristocrática” da natureza: um
mundo hierarquizado - há o alto e o baixo, lugares naturais que tem valores diferentes,
uma hierarquia dos seres que faz que alguns estejam no alto, e outros maus embaixo
(Ferry, 2011: 81).
Do exposto, resulta que existem duas maneiras de entender a natureza: a platônica em
que é assemelhada à “ação de um indivíduo artesão - demiurgo”, e a aristotélica em
que é assemelhada a um “organismo que se desenvolve graças a um dinamismo
imanente” sendo que em ambos os casos a ordem social e política (nómos) deve estar
de acordo com a ordem natural (fúsis).
Assim por exemplo quando Aristóteles se refere às sociedades humanas como parte da
natureza, isto é, a cité como ser natural (biológico) que se desenvolve e tem um fim.
Pois bem, como ser vivente, ela tem sua forma, medida, que assegura sua existência: a
justa medida da cidade será, portanto, como os animais, as plantas, e outros seres, não
demasiada grande ou pequena porque senão perde sua natureza e torna-se cités inútil
(Aristóteles, 2006: 86-87). Tal comparação levou estudiosos afirmar que as cités como
parte da natureza correspondem a uma “biologia social” (Larrère, 2003: 229).
É o que acontece, também, com a divisão aristotélica da alma baseada na natureza:
racional, volitiva e irracional que, quando levada ao comportamento do cidadão, faz
que ele tenha um conhecimento em relação à ação, uma disposição para a ação e uma 21 A “justiça política”, observa o autor, é “natural” e “legal”: natural é a que em todo lugar tem a mesma força e não depende dessa ou aquela opinião. Legal, a que de início é indiferente; mas que, uma vez estabelecida, impõe-se a todos. Alguns, acrescenta, entendem que existe apenas esta última. Mas isso não é verdadeiro. É preciso reconhecer que, ao lado da justiça meramente convencional ou legal, existe também uma justiça fundada na natureza (Aristóteles, 1987: 91).
20
contenção do instinto ou apetite para o sucesso da ação (que é possível pela parte
racional da alma).
Importa destacar que tal concepção da natureza (fúsis) é produto da sabedoria teórica,
especulativa ou filosófica que se relaciona com o imutável e procura a verdade. Trata-
se de uma ordem natural objetiva que preexiste ao homem sendo tarefa do filósofo,
que a recebe passivamente, entender como está formada e, como pode ser imitada.
Em perspectiva aristotélica: como a ordem natural serve de suporte para desenvolver
“ações úteis, boas e belas” na pólis.
Com base na concepção da ordem natural equilibrada, harmônica, proporcional, mas
também hierárquica devemos guardar cautela com a crítica dirigida ao estagirita na
sua defesa da escravidão natural. A este respeito, convém destacar que tal instituição,
segundo o naturalismo aristotélico, obedece à assertiva segundo a qual cada parte ou
ser, corpo e alma, devem cumprir sua finalidade. O escravo, afirma, “não tem nada
melhor para oferecer do que o uso de seu corpo”, “naturalmente tem pouca alma”, ele
faz parte do corpo do senhor mas não da sua alma (Aristóteles, 2006: 12-13); esta, por
sua vez, com sua parte racional e volitiva, é superior ao corpo porque sua finalidade é
mais nobre já que age conforme as virtudes morais.
Retomando os tipos de atividade humana: o labor, a força corporal do escravo que
produz bens de consumo para a sobrevivência (vestuário, alimentação, etc) diante da
poiésis e práxis, a capacidade intelectual e moral do cidadão produzir bens tangíveis
(normas, decisões) e intangíveis (amizade, simpatia) que são mais relevantes para o
bem da comunidade. Trata-se do “princípio aristotélico” segundo o qual “as atividades
mais agradáveis e os prazeres mais desejáveis surgem do exercício de habilidades mais
importantes, que implicam disposições mais complexas”, que são compatíveis com a
ordem natural (Rawls, 1993: 471).
O fato da “liberdade e escravidão andaram de mãos dadas” em Aristóteles obedece a
que a liberdade não é natural no sentido dado pelo jusnaturalismo moderno: todos os
homens são livres e iguais por natureza22. A liberdade e escravidão andam juntas
porque corresponde a uma ordem natural objetiva (fúsis) que é necessário imitar -
nómos katá fúsis:
A noção biológica de espécies físicas (...) reflete-se na concepção aristotélica da alma e, em decorrência, nas ideias políticas. Nesse sentido, espírito conservador, Aristóteles defende, por exemplo, a escravidão. Do mesmo modo que o universo físico constituído por uma hierarquia inalterável, segundo a qual cada ser ocupa, definitivamente, um lugar que lhe seria destinado pela Natureza, assim também, o escravo teria seu lugar natural na condição de ‘ferramenta animada’. Aristóteles chega mesmo afirmar que o escravo é escravo porque tem a alma de escravo, é essencialmente escravo, sendo destituído por completo de alma noética, a parte
22
A este respeito, cabe afirmar que para o jusnaturalismo moderno: a natureza e os direitos naturais do homem são uma construção, uma criação subjetiva sendo que isto é possível porque a fúsis ou natureza é ininteligível, porque “não existe no cosmos nenhum suporte a sua humanidade” (Strauss, 1986: 160).
21
da alma capaz de fazer ciência e filosofia e que desvenda o sentido e a finalidade última das coisas (grifo do autor) (Pesanha, 1987: XXI).
Com base na advertência do historiador francês Fustel de Coulanges de que existe uma
distancia irredutível entre nous (modernos) e eux (antigos), de que é necessário deixar
de lado os hábitos de pensar modernos para entender o mundo antigo, cumpre dizer
que o pensamento da antiguidade clássica acerca do justo tira seu fundamento de uma
ordem (fúsis) formada de elementos hierárquicos (Platão); de seres em que cada um
cumpre sua finalidade (Aristóteles), etc. Assim sendo, tal concepção, em contraste com
jusnaturalismo moderno, serve sobretudo para determinar as necessidades humanas,
ou seja, que cada parte cumpra a função para a qual está destinada:
Um ser é bom, ‘está na ordem’ se faz bem o que tem que fazer. Disso se segue que o homem será bom se faz bem seu trabalho de homem, o trabalho que corresponde a sua natureza humana e que esta lhe exige. Para determinar o que é bom por natureza para o homem (o bem natural), é necessário saber qual é a natureza do homem [a constituição humana natural]. É a ordem hierárquica inscrita na constituição natural do homem que, para os clássicos, justifica e funda o direito natural. De uma maneira ou outra todos distinguem corpo e alma e estamos obrigados a admitir que é impossível negar sem contradizer-nós que a alma é superior ao corpo. O que distingue a alma humana dos brutos e, portanto o que diferencia o homem da besta, é a palavra, a razão, a inteligência (Strauss, 1986: 120-121).
Para concluir, podemos dizer que as virtudes morais aristotélicas enunciadas em Ética
a Nicômaco se encontram ligadas ao proposto pelo autor em A política: “A Ética nos
mostra a forma e estilo de vida necessário para a felicidade; a Política indica a forma
particular de constituição e o conjunto de instituições necessário para tornar possível e
proteger esta forma de vida” (grifo do autor) (MacIntyre, 1994: 64); “não podemos
imaginar uma Constituição justa, segundo Aristóteles, sem antes refletir sobre a forma
de vida mais desejável” (Sandel, 2012: 17). Em definitivo: a Ética procura saber que é a
felicidade enquanto a Política a forma de organização que a faz possível.
Tal assertiva obedece ao fato de que a felicidade carece de sentido fora do horizonte
da pólis que, por sua vez, torna possível um dos ideais da vida antiga: a unidade da
vida privada e pública. Uma junção em que a primeira depende da segunda, ou seja, de
uma visão coletiva e também objetiva da felicidade. Sendo assim, a teoria aristotélica
pode ser tida como uma “teoria perfeccionista” da política, na medida em que acredita
que os homens podem desenvolver virtudes morais conforme metas objetivamente
estabelecidas no transcurso de toda a vida que é dedicada a pólis.
Sem cair na “falácia do presentismo”, entender a antiguidade clássica com os hábitos
modernos de pensar, acreditamos contudo que a reflexão aristotélica sobre ética e
política é importante na medida em que ambas são tidas como indissociáveis dando
munição a todos àqueles que acreditam que a política não pode ser pensada fora da
moral. Apesar da relação ética e política ter sofrido variações no transcurso do tempo,
o legado aristotélico continua válido se levamos em conta o atual debate entre aqueles
que defendem a primazia do correto sobre o bem e os que defendem a primazia do
22
bem sobre o correto - postura esta que encontra em Aristóteles um forte precursor já
que, como tentamos mostrar, é a felicidade que permite qualificar “algo” como bom
contrariamente daqueles que acreditam que é o correto - independente da felicidade.
Quanto à “melhor forma de governo” cabe dizer que se trata de um “tema recorrente”
da teoria e filosofia política que adquire mais relevância em função das circunstâncias.
Tal é o caso do estagirita cuja reflexão sobre as diferentes formas de governo e sua
preferência pela politéia se dá na “atmosfera pesada” do fim da democracia ateniense
(460-430 a.C.), a emergência de regimes políticos ruins (oligarquia, oclocracia, etc) e, o
ocaso da pólis (338 a.C.).
Diante da pergunta de cientistas políticos contemporâneos: a questão do bom governo
faleceu?, entendemos que não. Tal resposta a devemos em grande parte a Aristóteles
cuja reflexão, como assinalamos, não se limita apenas a descrever as distintas formas
de governo, mas também prescrever como elas devem ser. Uma reflexão que combina
o que é e o que deve ser, contudo, vale esclarecer, sem jamais afastar-se da realidade
já que a preferência do estagirita pela politéia não responde a um ideal especulativo,
“não faz parte do reino do céu”: a kallipolis platônica, mas responde à necessidade de
mostrar como é possível um bom governo composto de muitos cidadãos virtuosos: a
politéia ateniense (460-430 a.C).
A questão da melhor forma de governo é válida sempre e quando não seja colocada
nas antípodas da realidade, mas como resultado da experiência. Tal parece ser o caso
de Aristóteles que a partir de exemplos históricos mostra como é possível governos,
baseados na virtude, em que se dá uma junção entre ética e política e maus governos,
baseado no vício, em que se dá um divórcio entre ambas.
23
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1
ética transpolítica - a civitas dei
Fernando Quintana
A Idade Média é marcada pela ideia de dois mundos: o mundo supralunar e o mundo
sublunar, o “indivíduo-fora-do mundo” e o “indíviduo-no-mundo”. Acompanhando
autores da época: o homem dividido entre duas cidades simbólicas - civitas dei ou
sanctis e, civitas terrestris ou pecatis. Em tal contexto, a moral e ética cristã que leva à
felicidade, a salvação da alma, sendo mais relevante que governo dos homens - civitas
hominis.
Trata-se de uma moral e ética rigorosa que reaparece, de forma explícita ou implícita,
na afamada fórmula, em voga nos dias de hoje, da ética na política, que acredita, por
exemplo, que a honestidade é condição de uma boa política sem perceber que esta
virtude “cristã” apesar de necessária não é suficiente, uma vez que o bom governo não
depende do caráter dos que exercem cargos públicos mas sobretudo, como assinalam
Espinosa e Montesquieu, do aprimoramento das instituições.
Tal constatação, contudo, não impede partidários da “ética na política” de avaliar a
conduta dos homens públicos com base em convicções morais - que foram fixadas
para sempre pela maneira como fomos criados, pelas nossas crenças religiosas
(Sandel, 2012: 37). Crenças estas que, vale frisar, têm uma longa história em ocidente
que se confunde com a própria história do cristianismo, com sua poderosa empreinte
moral.
À volta ao pensamento da idade Média, com seu componente teológico, deve-se ao
fato de propor uma visão idealista ou utópica da sociedade, a civitas dei, e isso através
de um étalon deísta: o amor a Deus. Tal situação, como tentaremos mostrar, faz que a
ética se torne transpolítica já que o bem supremo, a felicidade, a tranquilidade ou
serenidade da alma, só pode ser atingida plenamente no reino de deus.
Com base no exposto nós deteremos no estudo de um dos principais Pais da Igreja:
Aurelius Agustinus que, convertido ao cristianismo, escreve Civitas Dei. A escolha do
“fundador do pensamento político medieval” obedece ao fato que deixa com sua
abundante obra, que cobre um período de quarenta anos, uma importante herança:
Agostinho ocupa no ocidente cristão um lugar excepcional, suas opiniões e obras tem
predominância durável na reflexão medieval (Lecoq, 2003:50); Agostinho é o mais
grande dos criadores de sínteses cristãos (Wolin, 2001: 133); sobre a questão da ética
ele foi a figura mais importante tanto pelo volume da sua obra quanto pela sua
influência na Idade Média (Boulnois, 2003: 139).
2
A Idade Média cobre mil anos, um longo período que se encontra no meio do mundo
antigo e moderno (séculos V-XV)1, que se caracteriza não só pelo forte entrelaçamento
da religião e política mas sobretudo pela superioridade da primeira. Situação esta que
se inicia com o evento mais importante da história do Império Romano: a conversão
do imperatur christianissimo Constantino (312) e, a proclamação do cristianismo, pelo
imperador Teodósio I, como religião oficial do Império (380). Quanto à relevância do
primeiro evento, a conversão constantina, vale trazer o seguinte comentário:
Um dos acontecimentos decisivos da história ocidental a até mesmo da história mundial deu-se no ano 312 no imenso Império Romano. A Igreja cristã tinha começado muito mal esse século IV de nossa era: de 303 a 311, sofrera uma das piores perseguições de sua história, milhares foram mortos. (Nesse ano) deu-se um dos acontecimentos mais imprevisíveis: Constantino, o herói dessa grande história, converteu-se ao cristianismo depois de um sonho (“sob este sinal vencerás”). Por essa época, considera-se que só cinco ou dez por cento da população do Império (70 milhões de habitantes, talvez) eram cristãos. ‘Não se pode esquecer que a revolução religiosa promovida por Constantino em 312 foi o ato mais audacioso já cometido’ (...) Sem Constantino, o cristianismo teria permanecido uma seita de vanguarda (Veyne, 2010: 11-14).
Tal situação, o predomínio do cristianismo, muda com o saqueio de Roma e a queda definitiva do Império Romano de Ocidente por povos que os romanos chamam de “bárbaros” - o “gigante agoniza”:
Vândalos, alanos e suevos atravessam a Gália, saqueando-a. Visigodos pilham Roma em 410, antes de se estabelecer na Espanha. Ostrogodos fixam-se na Itália. E francos colonizam progressivamente a Gália. O Império Romano deixa de existir no Ocidente (476) (Gondoin, 2011: 10).
O primeiro evento, o saqueou de Roma pelo rei visigodo Alarico, é importante porque
constitui o pano de fundo em que Agostinho escreve sua principal obra: A cidade de
deus (413-426). Situação que se agrava, ainda, por lutas e conflitos internos depois da
morte de Teodósio I (395) e a divisão do império do Ocidente e do Oriente entre seus
filhos Arcádio e Honório. Ambos os eventos, guerras góticas e civis, fazendo que as
legiões romanas fiquem arruinadas e impossibilitadas de reunir um exército para a
defesa da Itália (Gibbon, 1989: 400).
Com a queda do último imperador romano de Ocidente (Rômulo Augusto deposto pelo
“bárbaro” Odoacro: 476) o cristianismo procura erigir-se em força capaz de unificar a
civilização ocidental (Lebeu, 2011: 26) e, procura fazer da Igreja Catholica (Universal):
uma instituição hegemônica, mas não sem conflitos com o poder temporal. Trata-se do
chamado problema teológico-político que predomina durante grande parte da Idade
Média.
De fato, um dos traços mais importantes da concepção política medieval provém da
afamada distinção agostiniana das duas cidades: civitas celeste e civitas terrena.
Distinção que encontra eco, posteriormente, na carta do Papa Gelásio I quando
1 A Alta Idade Média vai do século V (fim do Império Romano de Ocidente) ao século IX, e a Baixa Idade
Média do século IX ao século XV (1453: queda do Império Romano de Oriente, Constantinopla).
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defende a “doutrina das duas espadas” (494) segundo a qual o mundo é governado
por diversi oridini: res spiritualia e res temporalia, sacerdotium e imperium, o mundo
espiritual reservado aos eleitos e o mundo terrestre ao poder efêmero dos homens,
sendo que o primeiro, a auctoritas, poder espiritual, é soberano em matéria religiosa
enquanto a potestas, poder temporal, é soberano nos assuntos civis, contudo tal
solução dualista, duas instâncias complementares, cada uma soberana no seu
respectivo domínio implica, de fato, a superioridade da primeira que se ocupa da
administração da alma diante da segunda que se ocupa de administração das coisas e
pessoas. Em resumo: o gládio espiritual sobre o gládio terreno (Macedo, 2008: 22).
Essa doutrina que se inspira, por sua vez, na máxima pauliana, Epístolas aos romanos e
coríntios: “dar ao César o que é do César e a Deus o que é de Deus” ou, na ideia de que
o poder espiritual ocupa-se do cuidado da alma (homem regenerado) e o poder
temporal do corpo (homem pecaminoso) supõe, vale reiterar, a supremacia da vis
diretiva ou espiritual diante da vis fatual ou temporal, uma vez que a salvação da alma
é mais relevante do que o gozo de bens temporais. Em termos agostinianos: o amor a
Deus superior a qualquer conquista temporal.
Voltando ao escrito agostiniano, A cidade de deus, ele pode ser considerado um texto
reativo contra os “bárbaros” (invasores), mas também propositivo, na medida em que
visa restaurar a esperança do povo cristão através da criação de uma sociedade ideal
(civitas dei) e, a defesa de uma instituição, a igreja católica, responsável pela salvação
da alma não sem descartar a possibilidade de novos imperadores, com conduta moral
e correta, serem a “imagem de Deus na terra”.
Para mostrar como a moral e ética agostiniana são importantes para compreender a
política, gostaríamos começar com a seguinte anedota da vida do teólogo medieval:
era agosto de 386 quando Agostinho escuta uma voz que lhe diz: “toma e lê, toma e
lê” (tolle, lege, tolle, lege). Era um livro do apóstolo São Paulo que lhe ordena: “Não
caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em
leviandades, não em contendas e emulações, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e não cuides de carne com demasiado desejos” (Pesanha, 1987: VI).
O contato de Agostinho com o escrito pauliano é importante porque influencia sua
conversão ao cristianismo, que se dá no mesmo ano. Além do mais, a leitura do texto
sagrado, o Novo Testamento, junto com a forte influência de sua mãe Mônica2 e São
Ambrósio (bispo de Milão) levam a que ingresse na Igreja de Hipona, onde permanece
como bispo durante mais de quarenta anos (391-430).
2 Como exemplo, a seguinte passagem do bispo de Hipona, que, diante do fato de seu pai não estar
batizado, declara: “Minha mãe desejava ardentemente que eu Vos considera-se a Vós, meu Deus, como pai, mais do que aquele que ainda não tinha fé” (Agostinho, 2007: 18).
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A leitura do Novo Testamento é também relevante porque lhe confirma a existência de
verdades eternas e o acesso a um ser imutável, todo-poderoso, fonte de todo
conhecimento perfeito e do bem: Deus. De fato, é a partir da “iluminação divina”, “luz
eterna”, que é possível para Agostinho não apenas a fé mas também o conhecimento.
Um tipo de conhecimento que é também influenciado pelo neoplatonismo de Plotino
do qual apreende (antes de converter-se ao cristianismo) de que a alma é superior ao
corpo, que as ideias, enquanto verdades eternas, permitem a descoberta de regras
imutáveis para o conhecimento.
Contudo, existe uma diferença já que para os neoplatonicos o mundo sensível não é
suscetível de conhecimento perfeito (a realidade é uma imagem imperfeita das ideias,
dizia Platão) enquanto para Agostinho o mundo sensível é suscetível de conhecimento
perfeito porque é feito por Deus. Ou seja, Deus faz possível, através da razão, tanto o
conhecimento do mundo sensível (variável) quanto do mundo lógico (invariável). Para
o bispo de Hipona, então, todo conhecimento é possível porque é resultado de um
processo de iluminação divina; sem esquecer que é da luz eterna que deriva o princípio
moral de fazer o bem e evitar o mal. Preceito fundamental da tradição cristã que, na
opinião de estudiosos, se caracteriza pela obediência a Deus:
Deus é nosso pai. Deus nos ordena que lhe obedeçamos. Devemos obedecer a Deus porque Ele conhece o que nos convém, e o que nos convém é obedecê-lo. Não cumprimos esta obediência e nos afastamos d´Ele. Por isso, devemos apreender a reconciliar-nos com Deus com a finalidade de que possamos viver (...) numa relação familiar com Ele (MacIntyre: 1994: 113).
Uma obediência que, por sua vez, se origina na santidade, bondade e poder divino:
pela primeira conheço as coisas sábias queridas por Deus, pela segunda pratico ações
boas que agradam a Deus, pela terceira porque vou ao inferno se não obedeço ou
serei feliz, no céu, se obedeço a Ele.
As influências que teve Agostinho configuram àquilo denominado de Patrística, da qual
foi “sem dúvida, no ocidente, o padre mais brilhante” (Lara, 1999: 31). Tal doutrina,
mistura das verdades reveladas e ideias filosóficas dos neoplatonicos recepcionadas e
aplicadas pelos primeiros pais da igreja (Ambrosio, Crisóstomo, Gregório, etc), teve o
mérito de deixar um legado, vale reiterar, em que o conhecimento não pode ser visto
fora da fé, como se depreende da seguinte fórmula: há que compreender para crer e
crer para compreender (intellige ut credas, crede ut intelligas).
Uma doutrina em que razão e fé andam pari passu e tornam possível não só o
conhecimento, mas também o caminho para a beatitudo: a tranquilidade, serenidade
ou felicidade da alma (ataraxia) e que, em termos éticos, exige a áskesis, realizar
esforços salutares para alcançar o sentido espiritual (Lécrivain: 2003: 148) ou, ainda,
uma “moral da renúncia” para alcançar a salvação (Foucault, 2012: 267).
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Sendo assim, o soberano ou supremo bem, a felicidade da alma, remete a um nível
mais alto do que a natureza: ele é compreendido, antes de tudo, como uma promessa
realização individual cumprida para além do tempo, por meio da redenção (Caillé;
Lazzeri; Senellart, 2003: 19). Tratar-se-ia, segundo a concepção do homem que nasce
com o cristianismo, do “indivíduo-fora-do-mundo”, do “individuo-em-relação-à-Deus”
segundo expressão de Ernest Troeltsch:
A alma individual recebe valor eterno de sua relação filial com Deus, e nesta relação se funda também a fraternidade humana: os cristãos se juntam em Deus do qual são seus membros. Esta extraordinária afirmação se encontra sobre um plano que transcende o mundo do homem e instituições sociais, mesmo que estas provinham também de Deus. O valor infinito do indivíduo é ao mesmo tempo o rebaixamento, a desvalorização do mundo tal qual ele é: um dualismo aparece (indivíduo-fora-do-mundo/indivíduo-no-mundo), uma tensão é criada que é constitutiva do cristianismo e atravessa toda a história (Dumont, 1983: 40).
De A cidade de deus importa destacar duas palavras: amor e virtude. Dois termos ou
arquétipos que, como veremos, fazem possível avaliar a proximidade ou distância do
governo dos homens, civitas hominis, diante do rigorismo moral e ético do teólogo
medieval.
A reflexão moral de Agostinho é construída em termos polares: alma-corpo; comune-
privus; altruísmo-avareza; ordem-desordem; santidade-pecado. Um conjunto de
virtudes e vícios sendo que o triunfo das primeiras junto com outras virtudes tais como
a temperança, coragem, justiça e prudência, fundadas no amor a Deus, fazem que os
homens se aproximem do ideal por ele querido: a felicidade da alma.
Sobre o primeiro dualismo, o bispo é categórico em Confissões: o mal corresponde à
ação da carne, aos prazeres infernais e tenebrosos da carne, à lodosa concupiscência
da carne, aos deleites ilícitos carnais. E lamenta, no mesmo escrito, que, pela sua
juventude (dezesseis anos) não ter escutado o ensinamento divino, contrário de tais
praticas: “aqueles que agirem desta maneira sofrerão as tribulações da carne”; “é bom
para o homem não tocar em mulher alguma”; “quem não tem esposa pensa nas coisas
de Deus e como lhe agradar” (Agostino, 1987: 29-30).
Tal dualismo, o corpo ligado ao pecado diferentemente da alma que se aproxima de
Deus, encontrando eco no coração duplo pauliano: o homem, ser imperfeito,
encontra-se dividido entre a dedicação a Deus e ao próximo e as zonas de sua própria
intimidade (carnal), ao apartar-se do que há de mais privado em si mesmo (a carne)
torna-se mais próximo daquilo a que se denomina simplicidade do coração
(Magalhães, 2008: 38).
Com respeito às duas palavras chaves, amor e virtude, o bispo de Hipona escreve: “se a
virtude nos conduz à vida feliz, afirmarei que a virtude não é absolutamente senão o
supremo amor a Deus”. Afirmativa que se repete na célebre frase: a virtude é a ordem
do amor a Deus que ordena: dai-me a caritás (Agostino, 1990: XV, 22). Ou, “estimar
exatamente as coisas é viver segundo a justiça e santidade; aquele que tem ordem em
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seu amor ama o que deve ser amado e não ama o que não deve sê-lo”. A identificação
ordem e amor podendo ser ilustrada ainda na seguinte metáfora, que faz referência à
polêmica distinção - paz dos justos e paz dos pecadores:
Imaginemos alguém suspenso pelos pés e de cabeça para baixo. A situação do corpo e a ordem dos membros são antinaturais (a guerra ou paz dos pecadores), porque invertida a ordem (a paz dos justos) exigida pela natureza (divina), estando acima o que naturalmente deve estar em baixo. Semelhante desordem perturba a paz do corpo e por isso molesta [...] o corpo terreno tende à terra e, opondo-se a isso o que o mantém suspenso pelos pés, busca a ordem da paz que lhe é própria e de certo modo pede, com a voz de peso, o lugar em que naturalmente repouse (Agostinho, 1990:XIX ,12).
Com base na premissa de que a verdadeira virtude é o amor a Deus, as quatro virtudes
- cardiais - agostinianas recebem no discurso do amor sua razão de ser. Assim, por
exemplo, a temperança que é “o amor de Deus que se conserva inteiro e incorrupto”;
a coragem que é “o amor que suporta tudo facilmente por causa de Deus”; a justiça
que é “o amor ao serviço de Deus apenas e porque ordena as outras coisas submetidas
ao homem”; e, a prudência que é “o amor que discerne bem as coisas favoráveis a
Deus, daquelas que são obstáculos a isso” enquanto o pecado é a falta de ordem
/amor, ele é desordem: uma perversidade voluntária pela qual é rompida a ordem
concreta inscrita por Deus em sua criação e alma humana; um desregramento
perverso dos pecadores que derruba a ordem correta das coisas, etc (Agostinho, 1990:
XIV, 26).
A identificação pecado-desordem implica o triunfo da concupiscência ou orgulho, isto
é, “o prazer em relação a si, viver para si” (sibi placere secundum vivere), que está na
origem do alheamento de Deus: “o começo do orgulho é desviar-se de Deus”, diz
Agostinho, ele consiste no homem “exaurir-se”, “inflar-se”, “derramar-se no exterior”,
ou seja, “ser cada vez menos” em contraposição de “ser cada vez mais” que passa pela
paz e calma interior, pela tranquilidade da alma.
Seguindo com as dicotomias agostinianas vale trazer também a distinção frui (gozar) e
uti (usar). “Dizemos gozar (amar) de uma coisa que nos deleita por ela mesma, sem
precisar relacioná-la a outra coisa; e usar de uma coisa que buscamos por outra coisa”
(Agostinho, 1990: I, 25). Esta distinção pode ser relacionada ao dualismo: honesto-útil,
ou seja, as coisas que devem ser buscadas por elas mesmas, as gozamos, são honestas,
enquanto as que buscamos por outra coisa, as usamos, são úteis.
Contudo, a utilitas não pode ser entendida fora do horizonte da honestas e isso porque
ambas são pensadas em função do amor divino: amar, afirma Agostinho, é apegar-se a
uma coisa pelo amor dela mesma, usar é apegar-se a tudo que se encontre no nosso
alcance para obter o que se ama, com a condição, arremata, de amá-lo. Em outras
palavras: o bispo admite o útil, por exemplo, o amor na família, o amor ao próximo, na
medida em que contribuem para o amor das coisas eternas. As coisas temporais
podem servir então como meios para fins eternos. A identidade entre utilidade e
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honestidade, fundadas no amor divino, faz com que o moralmente correto seja eficaz e
que o eficaz contribua para o honesto.
Para terminar com os dualismos agostinianos convém insistir numa dicotomia que é
fundamental: caritás/amor versus concupiscência/orgulho. A primeira é o movimento
do espírito em direção a Deus e portanto do amor ao próximo; pelo contrário, a
segunda é o movimento do espírito em direção ao beneficio próprio e de algum corpo,
mas não de Deus. Assim, a raiz de todos os males é a concupiscência enquanto a raiz
de todos os bens é o amor. Tais atitudes são importantes porque se encontram na
fundação de dois tipos de sociedades - celeste e pecaminosa:
[...] sendo tantos e tão grandes os povos disseminados por todo o orbe da terra, tão diversos em ritos e em costumes e tão variados em língua, em armas e em roupas, não formem senão dois gêneros de sociedade humana, que, conformando-nos com nossas Escrituras, podemos chamar duas cidades. Uma delas é a dos homens que querem viver segundo a carne, a outra, a dos que querem viver segundo o espírito, cada qual na sua própria paz. E a paz de cada uma delas consiste em ver realizados todos os seus desejos (Agostinho, 1990: XIV, 131).
Segundo Agostinho o amor ao próximo é consequência do amor a Deus. Em termos de
tipo de vida, isso implica que a vida contemplativa toma a frente diante da vida ativa.
Ou seja, é necessário conhecer Deus para abrir-se ao terceiro, amar o próximo, sendo
que tal conduta não pode dar-se fora do conhecimento da verdade, da “contemplação
de Deus”, que exige uma “vida ociosa”. Sendo assim, a moral é ética cristãs fazem
possível o amor à verdade e, por tabela o amor ao próximo.
O elogio ao ócio, à vida contemplativa, que não é inação, mas a procura permanente
da verdade supõe o triunfo da vida interior diante das desavenças do mundo exterior,
como diz Agostinho:
Não vás para fora, volta-te para dentro. É no interior do homem que mora a verdade [...] O crente não se deixa dispersar na variedade das vicissitudes e peripécias da história, na conjuntura das lutas, dos sistemas e movimentos de independência. Tem de retornar para dentro da Fé. Pois é no interior da graça que atenda a libertação da Verdade (Leão, 1990: 20).
Neste sentido, o teólogo medieval se encontra mais próximo de Paulo que de Cristo: a
fé mais próxima da salvação da alma que da ação. O importante é conhecer a verdade,
única forma de liberar-se dos assuntos mundanos. Conhecer a verdade, condição da
salvação, supõe, portanto, uma atitude quietista: o cristianismo, com sua crença no
além, cuja glória se anuncia no deleite da contemplação confere sanção religiosa à
degradação da vida ativa. Tal entendimento encontra eco no teólogo medieval quando
afirma: “Não vás para fora, volta-te para dentro” - o que significa que dos três tipos de
vida distinguidos pelo autor: ociosa, ativa e mista, a “dignidade do ócio” é fundamental
já que sem o estudo e a busca da verdade o amor não é possível (Agostinho, 1990: XIX,
19). Tratar-se-ia do triunfo do bios theoretikos que procura a verdade, a salvação da
alma, por cima da vita activa (Habermas, 1990: 42).
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Neste ponto, Agostinho segue também Platão: a vida contemplativa é mais relevante
do que a vida ativa; contudo importa destacar uma importante diferença entre ambos
que diz respeito à concepção da natureza: cósmica, hierárquica; divina e igualitária. Ou
seja, uma visão “aristocrática” ou hierárquica da natureza: a cada um segundo os
talentos ou dons (ouro: inteligência, prata: coragem, bronze: apetência) diante de uma
visão “democrática” ou igualitária, da natureza: a cada um segundo o amor a Deus -
que implica colocar todos os talentos ou dons a serviço do bem (Ferry, 2001: 84).
Para o bispo de Hipona a vida é regida por dois amores, o puro e o impuro, como se
depreende da seguinte passagem de A cidade: um está voltado para os outros, o outro
voltado para si; um se preocupa com o bem de todos, em vista da sociedade celeste, o
outro subordina o bem comum a seu próprio poder em vista da dominação arrogante;
um é submisso a Deus, o outro rival de Deus; um é tranquilo, o outro é turbulento; um
é pacífico, o outro fomenta distúrbios; um prefere a verdade aos louvores, o outro é
ávido de louvores; um é amistoso, o outro é invejoso; um quer para outrem o que quer
para si, o outro submeter outrem a si; um quer governar no interesse de outrem, o
outro governar no seu próprio interesse.
Dois amores que servem para estruturar sua teoria moral, mas também sua afamada
distinção: civitas dei ou sanctis e civitas terrestri ou pecatis. Duas cidades, a sociedade
santa, cimentada na caritas cristã, e a sociedade terrestre, desgarrada pela cupiditas
humana e que, importa frisar, não são históricas mas imaginadas, místicas porque se
enfrentam num “combate espiritual” - no “coração de cada homem”:
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena (ou pecatis); o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial (ou sanctis). Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus [...] Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo (grifo nosso) (Agostinho, 1990: XIV, 28).
Dois princípios antitéticos, dois tipos de espírito, que se encontram na origem de duas
sociedades sendo que existe um tertium gene, um terceiro tipo de sociedade, a civitas
hominis, mistura de ambas as cidades, que pode ir em direção de uma ou outra, bonne
privus ou bonne comune. Tal entendimento pode ser ilustrado na seguinte frase: “Com
efeito, ambas as cidades enlaçam-se e confundem-se no século até que o juízo final as
separe”. Essa passagem de A cidade pode ser relacionada à outra em que o autor
estabelece o objetivo que se propõe alcançar nesta obra: a origem, progresso e fim de
ambas as cidades (celeste e terrena) através da divina assistência e para glória da
cidade de Deus (Agostinho, 1990: I,35).
Dentre as duas sociedades se encontra, então, na linha fronteiriça, uma terceira cidade
que traduz a luta constante de governados e governantes de caminhar na direção do
amor à Deus ou de si próprio. Um movimento, portanto, pendular que traduz a
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situação dramática pela qual atravessa a humanidade, dilacerada entre o bem e o mal.
A este respeito, cabe um esclarecimento.
Antes da sua conversão Agostinho foi maniqueísta, seguidor do sacerdote persa Mani
(Maniqueu), e acreditava que o mundo era regido por dois seres, duas divindades ou
forças, igualmente poderosas, benigna e maligna, ambas tendo como origem o bem e
o mal e como destino inexorável um ou outro e isso, vale acrescentar, em contraste
com o cristianismo que acredita apenas num ser, que representa o bem ou, como diz o
bispo em Confissões: “tão somente um Deus infinitamente bom” enquanto o mal é
tido como um desvio do bem: “uma privação do bem” (Agostinho, 1987: 47).
Partindo da premissa de que Deus está na origem do bem, que a criação se encontra
impregnada pela bondade e perfeição divina, etc, a existência do mal é inexplicável do
ponto de vista da criação divina. A pesar do bispo de Hipona dessubstancializar o mal:
o mal não é um ser (como o bem) existe contudo a possibilidade de uma privação,
diminuição ou desvio da conduta em relação ao bem. Ser livre significa então caminhar
no “fio de uma navalha”, andar “no fio do bem”, tomando boas decisões e realizando
boas ações, mas também correndo o risco de resvalar para decisões e ações ruins -
como resulta do seguinte comentário:
Criaturas ilimitadas que somos, e inclinadas à corrupção desde o pecado original, não discernimos, em nossas escolhas, o bem absoluto que deveria ser nossa meta, mas nos contentamos com os bens relativos, exacerbando-lhes a dimensão e o significado, de modo que apareçam como absolutos. Em outras palavras, não distinguimos, via de regra, o fim supremo dos meios relativos pelos quais podemos atingi-lo. Assim nunca escolhemos o mal, porque nele em si mesmo não existe; escolhemos um bem menor e o elegemos como o que de maior poderíamos desejar (Silva, 2011: 72).
Com base no reconhecimento da existência de apenas um ser que leva ao bem (Deus),
Agostinho afirma, em Do liberum arbitrium, “quanto de errado” estava o sacerdote
persa com seu determinismo maniqueísta (o bem só pode levar ao bem, o mal só ao
mal) e também em Confissões quando declara: “Ai! Ai de mim! - acreditei nos erros
dos maniqueístas” (Agostinho, 1987: 46). Para o teólogo, pelo contrário, a vida é uma
perigrinagem em direção ao bem, mas o homem poder afastar-se dele, sendo assim a
escolha do homem é fundamental, uma vez que pode caminhar em direção da civitas
sanctis ou pecatis. Tal situação, vale insistir, é possível porque existe a liberdade, o
livre arbítrio, que encontra seu fundamento último no próprio ato do nascimento
resumido na frase lapidar: houve um início/começo - o homem foi criado, antes dele
não tinha nada (initium ut esset creatus est homo, ante que nullus fuit).
Frase talismã que permite mostrar, apesar da situação pela qual passa a humanidade
pelo pecado original, que é possível mudar, tomar decisões e seguir a direção certa e,
isso pelo fato do nascimento que, do ponto de vista agostiniano, é dar inicio a algo
novo: “a capacidade de começar como enraizada no nascimento” (Eslin, 1988: 148-
10
149). No caso, optar neste mundo, a civitas hominis, pela aproximação ou afastamento
em relação às duas cidades (celeste e pecadora).
O movimento pendular, que oscila entre ambas as cidades, pode ser associado, por sua
vez, a duas visões do Estado, negativa e positiva, como mostram alguns estudiosos que
assinalam em relação à primeira interpretação que “Agostinho considerou o império
dos romanos, com toda sua majestade dominadora do orbe, com todas suas leis, sua
literatura e filosofia, como a obra execrável de espíritos infernais”. Assim, haveria no
bispo uma cosmovisão negativa da sociedade política: o império com seus maus ou
ímpios imperadores como consequência do pecado original que levou à sujeição dos
homens; mas também uma visão positiva do Estado como se depreende do seguinte
comentário: “o fenômeno fundamental da vida política é, para nosso pensador, o
intento de sociabilidade e da ordem, que já está no animal, e impulsiona o homem,
pela lei da natureza, a procurar a comunidade e a paz com os outros” (Rossi, 2000:
137-138). Ou seja, uma visão positiva do Estado que estaria dada pelos exemplos dos
bons imperadores cristãos (Constantino e Teodócio I) e, também, como veremos, pela
república romana.
Essas duas visões contrapostas encontram respaldo em várias passagens de A cidade
quando afirma, por um lado, que houve governantes que serviram a paz e justiça
eternas; que existe uma vocação sobrenatural do homem à sociabilidade natural que
começa na família, segue na urbe (cidade) e no orbe (Terra). Trata-se de uma visão
positiva em que o autor avalia a humanidade e os governos com independência do
pecado, baseada no estado de inocência: o mundo pré-adânico.
Mas, por outro lado, afirma que houve governantes que serviram apenas a si mesmos
e subordinaram os homens; que existe uma fraqueza radical da humanidade que a leva
à insociabilidade. Trata-se de uma visão negativa em que o autor avalia a humanidade
e governos com base no pecado, no estado pecaminoso: o mundo pós-adânico. Neste
caso, o Estado é considerado apenas como poder fático, puro exercício da força física,
produto do pecado original.
Retomando a distinção: paz dos justos/paz dos pecadores teríamos, por um lado, a paz
dos pios que procuram conservar a ordem divina, a sociabilidade natural do homem e,
por outro lado, a paz dos ímpios baseada na desordem e numa sociabilidade forçada:
Que milhafre, por mais solitário que voe sobre a presa, não procura companheira, faz o ninho, choca os ovos, alimenta os filhotinhos e mantém como pode a paz em casa com a companheira, como uma espécie de mãe de família? Quanto mais não é o homem arrastado pelas leis da natureza humana a formar sociedade com todos os homens e a conseguir a paz em tudo que esteja a seu alcance! Os maus combatem pela paz dos seus e, se possível, querem submeter todos, para todos servirem um só [...] a soberbia (dos ímpios governantes) imita com perseverança Deus. Odeia sob ele a igualdade com os companheiros, mas deseja impor seu senhorio em lugar do dele. Odeia a justa paz de Deus e ama sua própria paz, embora injusta [...] comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece sequer o nome de paz (Agostinho, 1990: XIX, 12).
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Seguindo exemplos da Roma antiga (753a.C.-476) Agostinho associa a visão negativa
do Estado ao império romano (27a.C.-476), mais especificamente, aos maus ou ímpios
imperadores, e a visão positiva do Estado à república (509 a.C.-27a.C.). No primeiro
caso estamos diante de uma situação que se encontra privada do bem, do amor a
Deus, no segundo diante de uma situação que é possível chegar a um bem, porém
relativo porque, como veremos, “algo” lhe falta.
Apesar de reconhecer que o império foi positivo porque foi cristianizado (a conversão
constantina), ele teria contudo dado mostras do uso da força física não para manter a
segurança e paz dos súditos e defender-se de terceiros, mas sobretudo de ter usado a
força para orgulho ou concupiscência de imperadores3. Basta lembrar, por exemplo, a
recente passagem citada: a soberba imita (às vezes) Deus e deseja impor seu senhoria
e, em referência implícita aos maus imperadores quando declara: eles odeiam a justa
paz de Deus e amam sua própria paz, embora injusta. Sem esquecer que foram os
responsáveis de uma sociabilidade que não é natural, mas forçada como se depreende
da seguinte metáfora:
A principal causa de separação entre os homens é a diversidade das línguas. Suponhamos que em viajem se encontrem duas pessoas; uma ignora a língua da outra, mas por necessidade tem de caminhar juntas grande trecho. Os animais mudos, embora de espécie diferente, associam-se de modo mais fácil que essas duas pessoas, apesar de seres humanos. E quando, unicamente, por causa da diversidade de línguas, os homens não podem comunicar uns aos outros o que pensam, de nada serve para associá-los a mais pura semelhança de natureza. Tanto assim, que em tal caso o homem está melhor em companhia de seu próprio cão que de homem estranho (Agostinho, 1990: XIX,7).
Mas, além da visão negativa do Estado, o império em mãos de maus imperadores, que
encontra fundamento no pessimismo antropológico agostiniano dado pelo pecado
original, o império contribuindo para a desordem, a paz dos ímpios, etc, percorre pari
passu outra visão - positiva - do Estado, a república romana que, pelo contrário, teria
contribuído para avançar na direção da paz e justiça eternas mas, contudo, sem atingi-
las plenamente e, isso por não ter o amor a Deus como referência.
Quanto à república importa dizer, seguindo o jurisconsulto romano Cícero, que se trata
de uma forma de governo que não coincide com as formas simples (monarquia,
aristocracia, governo popular) porque é composta, nem com as formas más (tirania,
oligarquia, governo da turba) porque é reta. É uma forma mista de governo que evita a
decadência das formas simples no oposto (monarquia-tirania, aristocracia-oligarquia,
governo popular-governo da turba) e, assim ter maior duração no tempo; é também
boa porque consegue conciliar, com instituições políticas tais como: cônsules, senado e
tribunos da plebe, o melhor de cada forma simples, fazendo possível o controle mútuo
3 Dentre os quais podemos citar o imperador Nero (54-68) pela “transformação em tochas humanas dos cristãos”, segundo Agostinho exemplo de “Anticristo”; e, também Diocleciano (284-305) pela “Grande Perseguição”, talvez a mais sangrenta contra os cristãos. Perseguições que acabam com o Edito de Milão (313) também conhecido como “Édito de Tolerância” durante o reinado de Constantino.
12
dos principais grupos que a integram (patrícios e plebeus). Além do mais, é uma forma
moderada de governo já que incorpora dois princípios: vinculum júris e utilitatis
comunione.
Finalmente, é uma forma boa de governo porque se funda na virtude dos cidadãos,
isto é, segundo a ética ciceroniana, o estoicismo, um tipo de comportamento que pode
ser resumido ao fato dos homens viverem em harmonia com a natureza e, tal situação
é possível, segundo o estoicismo, porque a recta ratio (justa razão), a lei natural, é
identificada a zeus: chefe do governo universal, que “nos ordena o que devemos fazer
e nos proíbe o contrário”. Viver de acordo com a natureza, então, é viver em harmonia
consigo mesmo, sendo que a identificação do sujeito com a natureza acontece quando
a pessoa se encontra longe das paixões, pois são elas que provocam a perturbação da
alma.
Tal ética assume, por sua vez, um viés cívico quando, em Dos deveres, Cícero enumera
uma série de virtudes: sabedoria, coragem, temperança, etc, que devem ser praticadas
pelo cive romano para atingir o bem comum. Contudo, importa frisar, são virtudes que
se originam num ser que se escreve com “ ‘d’ minúsculo, que é o deus de Cícero, e não
com ‘D’ maiúsculo que é o Deus cristão” (grifo do autor) (Le Goff: 2007: 20).
Agostinho, como lembra Pessanha, desenvolve toda sua cultura com base na leitura do
latim e é Cícero quem lhe abre as portas do saber: deleitava-me lendo Hortênsio, diz o
bispo, as palavras acendiam em mim o desejo de abraçar a própria sabedoria.
Contudo, a admiração por Cícero devia-se ao fato de não conhecer os ensinamentos
de Paulo e as Sagradas Escrituras. Prova disso quando afirma: como ardia, Deus meu,
como ardia em desejos de voar das coisas terrenas para Vós; em Vós está a sabedoria;
como me magoava no meio de tão grande orador não encontrar o nome de Cristo
(Agostinho, 2007: 44).
Porém, o que importa destacar não é o fato de Cícero ter conduzido Agostinho às
portas do saber, mas sobretudo como a leitura da sua principal obra política, Da
república, leva Agostinho a desenvolver uma reflexão crítica desta forma de governo e,
isso com base, em definitivo, da sua concepção transpolítica da ética.
Para o bispo a república tinha o mérito de assentar-se na virtude dos cidadãos fazendo
com que os grupos sociais que a integram (patrícios e plebeus) trabalhem em prol do
bem comum. Contudo, tais virtudes são pagãs, não cristãs e, apesar de louvadas pelo
autor, não são verdadeiras porque não estão ordenadas em direção ao verdadeiro fim,
na direção da verdadeira virtude: o amor, a caridade - dons divinos.
Do exposto se depreende que tal forma de governo é suficiente para ser melhor que o
império (com seus maus imperadores), mas insuficiente para atingir a civitas dei. Em
relação ao “elogio” à república, o comportamento moderado do cidadão romano, o
bispo de Hipona cita a seguinte metáfora do estoico Cipião:
13
[...] assim como a cítara nas flautas, no campo e nas próprias vozes se deve guardar certa consonância de sons diferentes, sob pena de a mudança ou a discordância ferirem ouvidos educados, e tal consonância, graças a combinação dos mais dessemelhantes sons, se torne concorde e congruente, assim também igual tonalidade na ordem política admitida entre as classes alta, média e baixa (patrícios e plebeus) suscitava o congraçamento dos cidadãos. E aquilo que no canto os músicos chamam harmonia era na cidade a concórdia, o mais suave e estreito vínculo de consistência em toda república (Roma), que sem justiça não pode, em absoluto, sobreviver (grifo do autor) (Agostinho, 1990: III,21).
Mas, segundo outra passagem de A cidade, em que se refere expressamente a Cícero e
sua conhecida definição da república - é a coisa do povo baseada num laço jurídico e
uma comunhão de interesses -, replica dizendo que não existe coisa do povo pelo fato
de que tal definição se funda numa ideia errada de justiça: “dar a cada um o seu”. Para
Agostinho, tal definição da justiça é materialista demais já que se limita a reconhecer
direitos e satisfazer interesses dos membros da república mas não leva em conta Deus
e, sendo assim afirma: não existiu nunca república romana (numquam republicam
fuisse romanam) porque ela não conhece a verdadeira justiça (divina).
Ou seja, o problema da definição ciceroniana da república radica no fato de ser uma
associação política incompleta porque se assenta também numa visão incompleta da
justiça. Para Agostinho a verdadeira justiça implica que se dê a Deus o reconhecimento
que merece. A república é imperfeita porque não está fundada no amor a Deus. Ela
toma por virtude, uma virtude que é pagã, mundana demais, “dar a cada um o seu”, e
não toma como regra a “mais acertada e curta virtude” que é o “amor à ordem divina”
resumida na famosa frase: “Ordenai-me a caridade” - a caridade enquanto fonte das
afeições que nos conduz a amar Deus acima de tudo e as demais criaturas em relação
a Ele.
A partir desta crítica, Agostinho passa a elogiar definitivamente a civitas dei porque
fundada em Deus e na conquista de bens espirituais. Porém, percebendo a atitude
extrema na avaliação da república suaviza sua posição e propõe outra definição: povo
é o conjunto de seres racionais unidos pela concorde comunhão de objetos amados.
Ou seja, para avaliar as sociedades e governos, o grau de justiça, há que examinar os
valores que os animam e, assim sendo afirma: “não podemos dizer que Roma não
formou um povo, que seu governo não foi uma república, que não houve seres
racionais unidos pela comunhão de objetos amados” (Agostinho, 1990: XIX,24); e isso,
importa acrescentar, apesar de continuar acreditando que lhe faltou “algo”: o amor
divino, fonte de verdadeira justiça. Por isso Agostinho jamais emprega para essa forma
de governo, a república, a frase: feliz o povo que tem Deus por Senhor.
A “incompletude” do pensamento ciceroniano em relação ao pensamento agostiniano
pode ser observada também em relação à concepção da lei. De fato, em De legibus, o
jurisconsulto reconhece que por cima da lei temporal ou humana existe a “lei natural”
(recta ratio) que o bispo denomina: lei eterna. Tal mudança de terminologia obedece,
14
na verdade, à importância da providência divina que determina o que os homens
devem fazer ou deixar de fazer se desejam ser bons. Para Cícero, o fato da lei humana,
as leis da república, estar em harmonia com a lei natural é suficiente para se chegar à
virtude que exige atos justos a todos. Mas isso não é suficiente para Agostinho já que
existe uma “lei superior e mais secreta”, a lei eterna, que contempla todos os atos do
homem, incluso os internos, única capaz de produzir a verdadeira virtude. Além do
mais, tal lei é acompanhada de sanções que, diferentemente da lei natural ciceroniana,
dizem respeito à salvação ou danação da alma:
Devido ao fato de que os inocentes muitas vezes sofrem injustamente e que os atos dos homens malvados nem sempre são castigados aqui na terra, não pode conceber-se a lei eterna sem uma vida ulterior na qual os que se desviaram possam ser direcionados e assim restaurada a ordem perfeita da justiça. Implica a existência de um deus justo, providente e omnisciente, que recompensa e castiga a cada um de acordo com seus méritos (Fortin, 1992:187).
Para a sociedade humana se aproximar da civitas dei, o autor dá uma série de “dicas”
voltando-se para a sociabilidade natural do homem, baseada no estado de inocência
ou pré-adânico, como forma de resgatar a graça divina. De fato, com base numa visão
antropológica otimista afirma, em A cidade, “depois da família, a casa, vem a cidade, a
urbe, depois a Terra, o orbe, terceiro grau de sociedade que supõe todos esses
estágios”. Acredita que esses distintos momentos pelos que passa a humanidade são
importantes porque levam à tranquilitas temporalis: “colocar as coisas na sua ordem”
(a paz dos justos), e que tais estágios de concórdia são possíveis pela comunhão de
interesses que os anima: a paz na casa porque o pai comanda em benefício da esposa
e filhos; a paz na cidade porque o governante comanda em benefício dos governados.
Todos esses comandos são justos já que tem como fonte o amor divino (origem da boa
sociabilidade).
Tal entendimento, numa visão linear da história, até chegar a tranquilitas espiritualis -
a plena serenidade da alma, depois do juízo final. Ou seja, tratar-se-ia de uma resposta
que, como destacamos no início, se encontra fora da política, do governo dos homens.
O ideal da sociedade humana, como ela deve ser, a cidade celeste, nunca é alcançado
neste mundo, uma vez que a solução é transpolítica (Fortin, 1992, 204).
A visão idealista da cidade pregada pelo bispo corresponde ao fim da época d’ouro
cristã (Constantino e Teodósio I) e, o Império Romano não ter conseguido formar uma
comunidade política “à imagem de Deus”, ela corresponde a um tempo de desastre e
decadência associado à traição das tradições religiosas (Markus, 1993: 89).
A cidade de deus, como destacamos, não se limita a uma crítica dos pagãos invasores,
os “bárbaros”, mas também um intento de restaurar a esperança no povo cristão ao
colocar a cidade celeste como um tópos que, apesar de transcendental, funciona,
como crítica da ordem social e política tal qual é: incapaz de construir um estado
cristão que cumpra as profecias. Uma situação, parafraseando Agostinho, em que o
15
homem viverá feliz, não quererá nada de mal, não quererá nada daquilo que lhe falta,
não lhe faltará nada daquilo que ele quer. Ou seja, a beatitudo ou felicidade da alma
que, segundo Pascal, não é humana mas teocêntrica porque arrebata o homem para
além de si mesmo (Bulnois, 2003: 140).
A reflexão agostiniana dá-se no contexto do chamado problema teológico político, que
domina grande parte da Idade Média, em que dois poderes, temporal e espiritual,
podem ser considerados complementares ou em relação de subordinação. Tema este,
bastante complexo, que implica a seguinte advertência:
Problemas enormes àqueles do temporal e do espiritual na Idade Média. Problemas apaixonadamente debatidos, cujas soluções frequentemente dividem os historiadores já que colocam ao mesmo tempo em termos ‘políticos’ (superioridade de um poder sobre o outro) e ‘místico’ (impregnação do estado pelo espírito cristão). É necessário que neste tema, mais que em qualquer outro fiquemos limitado a uma olhada superficial (grifo nosso) (Fédou, 1971:68).
Com base nesta observação, podemos dizer, resumidamente, que existem duas saídas
ou soluções possíveis a tal “problema”: a solução dualista que consiste, como vimos,
em aceitar diversi ordini: potestas e autoritas cada uma soberana no seu domínio, o
poder temporal que se ocupa dos assuntos civis e o poder espiritual dos assuntos
religiosos; e, a solução monista que consiste na união de ambas as esferas, política e
religiosa, que, por sua vez, podem revestir duas formas: a cesaro-papista (todo o poder
ao imperador) e, a papo-cesarista (todo o poder ao papa).
Com respeito à primeira solução, cumpre lembrar a posição do Papa Gelásio I (494), de
inspiração pauliana, segundo a qual o mundo é governado por duas ordens distintas
mas cooperantes entre si, autoritas ou sacerdotium, potestas ou imperium, cada uma
soberana na sua esfera, contudo, a vis diretiva ou espiritual toma a dianteira frente à
vis fatual ou temporal, uma vez que a salvação da alma é mais importante que o gozo
de bens temporais. Tratar-se-ia, seguindo o papa, de uma diarquia hierárquica:
Há duas ordens, augusto imperador, através das quais se governa soberanamente este mundo: a autoridade sagrada dos pontífices e poder real. Mas o poder dos sacerdotes é tão grande que, no juízo final, terão que dar conta ao Senhor dos próprios reis. De fato, filho muito clemente, sabes muito bem que governas ao gênero humano por tua dignidade, mas que tens que baixar a cabeça com respeito diante dos prelados das coisas divinas [...] e sabes muito bem que não deves presidir a ordem religiosa, mas te submeter a ela (Muñoz, 2002: 240).
A orientação é clara: o caráter sagrado da função imperial, um rei-sacerdote, deve ser
rejeitada pelos cristãos. A função do imperador deve ficar limitada, principalmente, às
necessidades externas e da ordem pública que fica confiada ao seu cuidado.
Posição que retoma a de Agostinho, uma vez que a distinção das duas cidades, celeste
e terrena, implica que ambos os poderes, espiritual e temporal, são complementares
apesar do primeiro, que cuida da alma, ser mais relevante que o segundo, que cuida
16
do corpo e bens temporais. Em reforço desta posição podemos trazer a opinião do
historiador Bernard Landry, em L’ idée de chrétientè chez les scoclastiques du XIII,
segundo a qual para Agostinho: o papa possui duas espadas, a espiritual e a temporal e
se conserva uma e confia à outra ao imperador é porque quer consagrar-se totalmente
a sua função religiosa (Derathé, 1991: 39).
A solução em exame, dualista, duas instâncias complementares, pode ser também
entendida como um “jogo de espelhos” no qual um deles tende assumir prerrogativas
do outro. É a interpretação do historiador francês Marc Bloch, em Os reis taumaturgos,
segundo a qual a igreja, com o império, se estatiza (centralização e racionalização
burocrática) ou, estado se eclesiastiza (sacralização e ritualização de procedimentos).
Como exemplo da primeira, “estatização da igreja”, basta lembrar o Concílio de Nicéia
(325), durante o reinado de Constantino, que concede à igreja católica uma estrutura
de poder parecida com a do império, como exemplo da segunda, “cristianização do
estado”, os impérios: carolíngio e otonida (séculos IX -X).
Além do mais, a partir da solução dualista fica incorporado um axioma segundo o qual:
“cada um deve submeter-se às autoridades constituídas, porque não há autoridade
que não venha de Deus”, ou seja, a necessária aceitação da submissão ao poder
secular, mas ao mesmo tempo o reconhecimento da transcendência do poder divino
(Bulnois: 2003, 135).
A clara orientação do papa Gelásio I no sentido de dois poderes complementares deu
lugar, com o decorrer do tempo, a outras interpretações mais restritas: o monismo
“cesaro-papista” e, até mais dogmática: o monismo “papo-cesarista”, este último
procurando afirmar a total supremacia do poder clerical sobre o poder laico: simples
agente e servidor do primeiro em relação aos assuntos deste mundo (Markus, 1993:
89).
Em relação à solução, monista, “cesaro-papista”, em que a Igreja aparece atrelada ao
poder real segundo o princípio: “há que dar ao imperador o que é do papa”, em que o
poder temporal toma a dianteira frente ao poder religioso, o poder do papa sendo
absorvido pelo imperador podemos citar o Império Carolíngio (Carlus Magnus: 747-
814) e, o Sacro Império Romano Germânico (Othon I: 962-973). Em ambos os casos os
príncipes são ungidos pelos papas mas permanecem submetidos através do juramento
de fidelidade em troca de proteção. Tratar-se-ia da superioridade da potestas imperial
sobre a auctoritas pontifícia. O rei dos carolíngios ou otonidas projetando para si o
inaugurado por Constantino e Teodósio I - bons exemplos de imperadores cristãos.
As monarquias medievais, carolíngia e otonida, podem ser consideradas exemplos em
que a sociedade é identificada à cristandade, em que os assuntos eclesiásticos
invadem o domínio secular, “cristianização do estado”, sendo que cabe aos reis, além
de assegurar a ordem pública, cumprir obrigações que dizem respeito à manutenção
17
da religião: combater infiéis, castigar hereges, punir crimes contra a fé (Magalhães,
2008: 40). Carlos Magno e Othon apresentando-se como os “protetores do papado”,
sobretudo o primeiro, expressão mais acabada de monarquia medieval que, na sua
relação com o papa se refere a ele como “seu senhor e protetor” e, adota uma atitude
de independência e até mesmo de superioridade diante dele (Brion, 2008: 44).
Mas é, sobretudo, a solução monista, “papo-cesarista”, que interessa, uma vez que os
escritos de Agostinho ficam, segundo esta visão, atrelados ao chamado agostinismo
político. Trata-se-ia da exploração ideológica pela Santa Sé da obra agostiniana que
serve para justificar o poder absoluto do papa diante do poder temporal. Tal uso
ideológico pode ser constatado na época de papas todo-poderosos (Gregório VII,
Inocêncio II, III, IV e Gregório IX) que, durante dois séculos, representam os momentos
mais sombrios do cristianismo.
A subordinação do imperador ao papa, “dar ao papa o que é do imperador”, tida ainda
por muitos como a verdadeira herança agostiniana, significa que a Igreja Católica passa
a encarnar, neste mundo, a civitas dei. Uma instituição que não tolera outras religiões
a não ser a sua. Tal experiência faz que a Igreja não aceite a liberdade de consciência
religiosa e, lance mão da força física para converter àqueles que se opõem à fé cristã
servindo-se para isso do poder secular como meio de opressão. Uma situação em que
o poder absoluto do poder eclesiástico precisa do poder secular para assentar seu total
predomínio.
Assim, a civitas dei: cidade invisível que se estende no passado, o presente, o futuro e
rejeita toda identificação com qualquer instituição visível (Wolin, 2001: 141) é
substituída por uma instituição concreta, a Santa Sé, que diz ser a imagem real da
cidade celeste. A pretensão papal de uma autoridade única tanto na esfera civil quanto
eclesiástica (extra ecclesiam nulla salus) sendo atribuída à obra do bispo de Hipona: a
chamada plenitude do poder encontra respaldo em formulações de Agostinho que
compreendiam a ideia de uma escala, na qual os seres inferiores se reportariam aos
superiores, e a ordem sobrenatural (representada pela Santa Sé) se encontraria acima
da natural (Magalhães, 2008: 40). E ainda, como exemplo de agostinismo político, a
opinião de um pensador desta corrente - o teólogo Hugues de Saint-Victor (século XIII):
Como, no firmamento, o sol é a origem de toda luz, o papa o é, na sociedade humana, a origem de toda autoridade; dele, como acontece nos rios, emanam todos os poderes dos bispos e suas dioceses, a jurisdição do imperador sobre o gênero humano e aquela dos reis em seus reinos. A ele pertence o poder espiritual, e dar existência ao poder terrestre, e de julgá-lo se é considerado culpado (Derathé, 1992: 39-40).
A posição do teólogo francês encontra eco na opinião de outros autores da época que
defendem que a igreja era a representante de Deus, da verdade, da beatitude e da
justiça, que colocar o vicário de Cristo como estando na origem da autoridade dos
príncipes e reis é afirmar que o homem deve obedecer apenas a Deus.
18
Tal entendimento contrasta com a opinião de outros estudiosos que discordam que os
escritos do bispo de Hipona podem ser reduzidos ao chamado agostinismo político - ao
uso ideológico feito pela Santa Sé:
A tendência da Igreja absorver o Estado tem sido vista como o legado mais importante de Agostinho ao pensamento político da Idade Média. Porém, este “agostinismo político” não faz parte de nenhuma maneira do pensamento de Agostinho sobre a natureza da sociedade e da política (Markus, 1993:110).
Das situações em que o poder laico é totalmente absorvido pelo papa, o imperador
vassalo da Igreja, cumpre lembrar certos eventos que acontecem aliás durante o
pontificado dos papas citados – a “Reforma Gregoriana” (implementada em 1049-54);
as “Investiduras” (1075-1112); as “Cruzadas” (1095-1291); a “Inquisição” (1184); as “
Indulgências” (1190); o “Purgatório” (que atinge seu auge no século XII); e, o “Concílio
Ecumênico de Latrão IV” (1215): momento de apogeu da autoridade papal, em que a
Igreja Católica afirma sua hegemonia em toda a cristandade - um estado Pontifício - ,
baseado num sistema hierocrático, em que o poder é concentrado no sumo pontífice,
como defende na ocasião o papa Inocêncio III, “vicário de Cristo”, que advoga a
plenitude potetatis diante do poder do imperador.
Tais exemplos, a parte “obscura da Idade Média” (Le Goff, 2007: 18), ilustram a infeliz
fortuna que teve a obra de Agostinho: a Igreja Católica que se arroga a chave do reino
celestial e a única mediadora das coisas terrenas e divinas. Um maudit legado, o
agostinismo político, bem distante do que, acreditamos, foi a intenção do autor: a
defesa irrestrita de uma moral, baseada em preceitos religiosos, que contribui para
alcançar a serenidade da alma no além.
As comunidades políticas concretas podendo contribuir para aproximar-se desse ideal
- os bons imperadores e os cidadãos virtuosos da república - ou afastar-se dela - os
maus ou ímpios imperadores. Dois tipos de governo, império e república, apesar desta
última lhe faltar “algo”: a mais acertada e curta virtude - o amor divino.
Tal entendimento, para concluir, faz com que a ética agostiniana seja transpolítica
porque é fundada numa moral autosuficiente, o cristianismo, em que os governos dos
homens se mostram aquém da salvação da alma (apesar dos bons imperadores e dos
cidadãos virtuosos da república). Tal postura mostrando também a fraqueza moral e
política do cristianismo, uma vez que para ambos, o verdadeiro propósito desta vida e
deste mundo encontram-se em outro mundo (a civitas dei) (MacIntyre: 1994: 148).
19
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Fernando Quintana
Abordar o problema da fundação da ordem política, bem como o de uma ordem capaz
de assegurar neste mundo o bem comum, logo de transcorrida a Idade Média, é falar
do reino: Principatibus e, da república: Discorsi de Maquiavel. Ou seja, uma situação de
anormalidade, silentium legibus - momento extraordinário - e, outra de normalidade,
boas leis e instituições - momento ordinário. Tais situações, por sua vez, remetendo a
dois tipos de virtude: a do príncipe que toma a forma de uma “destruição criativa”
(Wolin, 2001: 250) e, a do povo respeitoso das leis e instituições que tornam possível a
liberdade (individual e política).
No primeiro caso, estamos diante de um argumento ex parte principis, de cima para
baixo, uma visão descendente do poder, que gira em torno da criação e manutenção
do estado, no segundo, diante de um argumento ex parte populi, de baixo para cima,
uma visão ascendente do poder, que gira em torno dos direitos e deveres do cidadão.
Em termos éticos: a virtude de um só, principado, e a virtude de muitos, república:
Nos períodos em que a ordem social é relativamente estável, todas as questões morais podem ser colocadas dentro do contexto das normas compartilhadas pela comunidade (república); nos períodos de instabilidade, pelo contrário, as normas mesmas são questionadas e submetidas à prova diante os critérios representados pelas necessidades humanas (principado) (MacIntyre: 1994: 129).
As virtudes pagãs ou mundanas: coragem, honra, etc, assumindo um viés individual:
“prefiro salvar minha pátria que a minha alma”1 ou, coletivo: “a república deu mostras
de grandeza porque (os cidadãos) amavam sua liberdade”2. A presença destes dois
tipos de virtudes dando lugar ao seguinte comentário de Rousseau em relação à
Maquiavel: “querendo dar lições aos reis, acabou dando grandes lições aos povos”.
Avaliação que encontra eco no secretário florentino quando afirma: as repúblicas são
melhores que os reinos, pois o povo é mais sábio e mais constante do que um príncipe.
Para entender a ética maquiaveliana convém fazer um comentário sobre o ambiente
intelectual do quattrocento italiano, isto é, o humanismo renascentista. Uma tradição
do pensamento que postula dentre outras coisas a afirmação do homem na cidade não
mais voltado para o mundo do além: a cidade celeste (Idade Média) e, que acredita
que os seres humanos têm mais qualidades do que aquelas atribuídas pela fé cristã
1 Frase atribuída por Maquiavel ao ganfalioneri (alto magistrado) da família Médici Cosme o Velho tido como o “pai da pátria” (Florença). 2 Ideia que percorre grande parte do Discurso ou comentário sobre a primeira década de Tito Lívio.
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que insiste no peso do pecado diante da graça divina. Tal mudança trazendo como
consequência a centralidade da política diante do papel secundário que ocupa no
medievo. Uma mudança, importa destacar, que se estende ao comportamento dos
homens: o triunfo da vida ativa, o compromisso com o mundo terrestre, frente à vida
contemplativa, passiva, voltada para o mundo celeste.
Segundo Peter Burke, A cultura do renascimento na Itália, uma importante obra sobre
a época, o mérito do renascimento é ter enxergado a descoberta do mundo e do
homem, que implica uma profunda inflexão em relação ao período anterior:
O Renascimento é uma época de ruptura com o obscurantismo medieval que deve localizar-se por volta do quattrocento em Itália. Um período de renovação cultural: a recuperação e a aproximação aos clássicos, a aparição de um individualismo vitalista e pagão que faz um uso novo e original da razão, rompem com um passado de religiosidade a través de um forte processo de secularização e colocam os fundamentos do pensamento e a política modernos (Tejerina, 2002: 72).
De fato, uma das características do humanismo renascentista é mostrar a importância
da vida ativa diante da vida passiva - o que em termos políticos faz com que o homem
se volte para os negócios da cidade, para a conquista de bens temporais que
requerem, por sua vez, a estabilidade da ordem política e, a possibilidade de se levar
uma vida boa. A mudança do indivíduo-espectador para o indivíduo-ator, da cidade do
além para cidade do aquém (não mais percebida apenas como momento de transição:
o cristianismo), as virtudes teológicas ou cristãs cedem diante das virtudes mundanas.
As virtudes suaves, secundum divinum, infundidas por Deus: fé, esperança, caridade,
são substituídas por virtudes fortes, secundum rationem, criadas pelo homem:
coragem, prudência, honra, indispensáveis para enfrentar com êxito as contingências
do mundo.
Do ponto de vista maquiaveliano as virtudes seculares são úteis tanto para o príncipe
realizar gran cose (a conquista ou conservação do estado) quanto para o cive que não
deseja viver na cidade aguardando tempos melhores (o mundo do além), mas viver
bem, em liberdade, sob uma boa forma de governo: a república. Em outros termos: as
virtudes cristãs suaves (soft) sendo desbancadas por virtudes políticas duras (hard).
Tais virtudes dando lugar a dois modelos de homem: o crente que procura salvar sua
alma e, o príncipe e cidadão que procuram salvar a pátria ou viver em liberdade com
boni armi e boni ordini (exércitos próprios e boas leis e instituições).
Um dos traços importantes do humanismo renascentista é que valoriza a capacidade
dos homens de fundar e conservar cidades, bem como criar leis e instituições
compatíveis com virtudes e valores mundanos. Assim sendo, o humanismo volta-se
para o passado, a experiência e pensamento da antiguidade clássica, contudo, vale
esclarecer, não para copiá-lo mas imitá-lo. A fórmula para apropriar-se do passado
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pode ser resumida na frase do poeta renascentista Petrarca que diz: apraz-me a
imitação (similitudo), mas não a cópia (identitas). Trata-se, portanto, de uma imitação
não servil: uma imitação através da qual fica explícito o talento do imitador, a imitação
como o aparecimento de uma identidade no presente, e não elogio nostálgico do
acontecido (Bignotto, 2001: 67-68). Ou, como sustenta o mesmo autor em relação à
importância do passado e do papel dos homens na história:
Na Idade Média, a providência divina era o fator explicativo de quase todas as transformações ocorridas, que não podiam ser diretamente relacionadas a causas visíveis. O enaltecimento das faculdades criativas dos homens, feito pelos filósofos renascentistas, teve um reflexo direto na estrutura narrativa dos historiadores na medida em que alterou a percepção do papel dos atores nos acontecimentos históricos (Bignotto, 2006: 32).
Na análise da ética maquiaveliana nos deteremos em primeiro lugar em O príncipe na
medida em que seu objetivo é conquistare e mantenere o stato e, também no Discurso
na medida em que mostra o comportamento virtuoso do cidadão na res publica, que
deseja viver em liberdade. Em ambos os casos, o humanismo mostra-se importante
porque ensina a necessidade do compromisso político com a vida ativa e virtudes
seculares para enfrentar com êxito os obstáculos que se apresentam na consecução
desses objetivos.
Falar de O príncipe é afirmar a ideia de começo, isto é, o de ter provocado uma forte
inflexão depois de um longo período (Idade Média) marcado pelo predomínio da moral
e ética cristã que molda por completo o mundo e, ignora ou deixa em segundo plano,
com raras exceções (Tomás de Aquino), qualquer ética ou moral que não seja a
inspirada nas Escrituras. Em perspectiva maquiaveliana por entender que essa ética ou
moral é um obstáculo ou empecilho para o príncipe realizar gran cose, ou seja, a ideia
de que o governante, no momento extraordinário da fundação do estado, tem que
lançar mão de expedientes ou recursos que, apesar de condenáveis do ponto de vista
moral, são eficazes para o sucesso do resultado desejado3. Uma ética em que as ações
são julgadas somente em virtude das consequências (MacIntyre: 1994: 128), como
mostra a seguinte passagem em que aparece implícito o famigerado princípio - o fim
justifica os meios: Como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados. Cuide pois o príncipe de vencer e manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos” (Maquiavel, 2001: 85).
Tal postura rompe com a crença de pensadores medievais que concebem a moral e a
ética cristã, que leva à salvação da alma, como superior e até fora da política: a “ética
transpolítica” agostiniana. Assim, o secretário florentino dá um passo decisivo na
3 Aspecto destacado por vários autores que, em relação à ética maquiaveliana, afirmam o seguinte: “A
ética de Maquiavel é a primeira em que as ações se julgam não como ações, mas somente em virtude das consequências” (MacIntyre: 1994: 128).
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libertação ou autonomia da política com respeito a moral religiosa que era ainda
dominante na época:
(Maquiavel) tem ainda um pie no mundo da Idade Média: ele é incapaz de representar-se uma moralidade que não tenha nenhuma relação com a religião. Mesmo liberando o Estado da tutela da Igreja, ele coloca a política fora da moral, e nega que uma lei moral qualquer consiga se impor diante da lutas dos Estado por poder (Derathé, 1992: 40).
Tal posição faz com que as expressões maquiavelismo e maquiavélico fiquem atreladas
à pecha de imoral. Maquiavel: o responsável da fase demoníaca do poder, o destruidor
da moral, etc, enquanto outros que saem na defesa do secretário florentino acreditam
que a “ação maquiavélica” convém mal ao autor, ela é um mau renome. Maquiavel:
defende a amoralidade dos príncipes (Ribeiro, 2006: 145).
A avaliação pejorativa, a demonização de Maquiavel, a devemos, em grande parte, a
representantes do catolicismo como o cardeal Jerônimo Osório que relaciona o autor
de O príncipe a uma atitude imoral: perfídia, dolo, má-fé (1559). Esta ideia é também
partilhada por jesuítas da época que empregam os seguintes termos para falar do
secretário florentino: “parceiro do diabo no crime”, “escritor sem honra e incrédulo”.
Atitude adotada também por anglicanos da era elisabetana que criam a expressão Old
Nick (Velho Diabo) e pelo cardial inglês Reginald Pole que, indignado pelos “propósitos
diabólicos” de O príncipe, acredita que foi escrito “pela mão de Satã”.
A condenação de corifeus católicos e protestantes de outrora não acaba por aí: ela
continua presente em destacados filósofos racionalistas, como Bertrand Russel, que se
referem a essa obra como um “manual para gângster” ou, em filósofos católicos, como
Jacques Maritain, L´Homme et l´État, quando afirmam: “a máxima segundo a qual a
política deve ser indiferente ao bem e à moral é um erro fatal” e, arremata:
Existem dois modos opostos de compreender a promoção da vida política. O mais fácil - e que não conduz a nada de bom - é o modo hábil, esperto e violento. O mais difícil e exigente, mas de valor construtivo e progressista - é o modo moral, ético ou humanista. São duas concepções em choque, que devem ser nitidamente caracterizadas. O maquiavelismo nos propõe uma concepção puramente hábil, personalista ou técnica da política, que se torna, por definição uma política amoral (Montoro, 1997: 18-19).
Tais avaliações contrastam com outras menos sectárias que consideram Maquiavel um
“humanista angustiado” (Croce) - por combater sem êxito a política corrupta da Santa
Sé sob a roupagem ideológica da fé; “grande appassionato” (Ridolfi) - por defender sua
pátria; “pai da Staatsräson” (Razão de Estado) (Meinecke) - por defender um interesse
maior: a existência do reino; “supremo realista” (Bacon) - por evitar fantasias utópicas;
“humanista sério, responsável de uma verdadeira moral” - por defender a necessidade
de assumir as consequências dos atos (Merlau-Ponty); “primeiro pensador político
autenticamente moderno” - por fazer uma abordagem pragmática no estudo do poder
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(Wolin); “maior que Cristovão Colombo” (Strauss) - por pisar um continente que
ninguém antes pisou: o continente da política, etc4.
Com base em autores do “espelho de príncipes” que indicam o comportamento a ser
seguido pelos governantes5, importa insistir na profunda inflexão que se dá com o
secretário florentino: “se examinarmos os tratados morais dos contemporâneos de
Maquiavel encontraremos argumentos (morais) incansavelmente reiterados. Mas,
quando nos voltamos para O príncipe, encontramos uma súbita e violenta subversão
deste aspecto da moral humanista” (grifo do autor) (Skinner, 1981: 61). Efetivamente,
se tomamos as principais qualidades do príncipe ou condottiere (líder) maquiaveliano
tal mudança pode ser apreciada na conhecida figura animalesca do leão e da raposa,
virtudes por excelência para ele realizar gran cose:
Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar a natureza animal, deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos (Maquiavel, 2001:84).
Ardil e força são meios ou expedientes que se tornam necessários para obter sucesso
no resultado (a criação e manutenção do estado), duas formas de agir: a bamabalina
(bamboozle: iludir) e o bambo (vara) que, em perspectiva maquiaveliana, representam
uma junção inédita porque não está sujeita a uma avaliação moral, mas pragmática.
Neste sentido, podemos dizer que o autor se afasta da tradição cristã que julga tais
recursos de forma maniqueísta. Assim, por exemplo, Agostinho quando em Cidade de
Deus dá a entender sobre os diferentes modos de manter a segurança que existem
melhores e piores: os que se comportam como “ovelhas e pombas” ou como “feras
cruéis: raposa e leão”.
O contraste entre o bispo de Hipona e Maquiavel pode ser observado também no
dualismo frui e uti: “dizemos gozar (frui), quando o objeto nos deleita por si mesmo,
sem necessidade de referi-lo a outra coisa, e usar (uti), quando buscamos um objeto
por outro” (Agostinho, 1990: 401) sendo que para o teólogo medieval ambos podem
caminhar juntos, honestas e utilitas, ou seja, o útil é honesto e vice-versa, enquanto
para o secretário florentino dificilmente aquilo que é útil é honesto. Neste sentido,
podemos dizer que a ética agostiniana não admite dicotomia entre valores ou fins
internos e externos em contraste com a ética maquiavelina em que os valores ou fins
internos raramente caminham juntos com os valores ou fins externos, em particular,
quando o que está em jogo é a salvação do estado.
4 Para um aprofundamento das diversas e contrastadas avaliações sobre o secretário florentino: BERLIN, I. “A originalidade de Maquiavel”, ed.cit. 5 Por exemplo, Erasmo de Roterdã: A formação do príncipe cristão (1515), etc. Para uma comparação
entre ambos os autores (Maquiavel e Erasmo), QUINTANA, F. Ética e política: lembrança de um confronto, Escola da Magistratura Regional federal, n.1, vol.14, Rio de Janeiro, 2010, p.107-123.
6
De um lado, a moral em nível interno que é inseparável da praticada no “mundo lá
fora”, ambas servindo para a salvação da alma (Agostinho), de outro lado, a moral em
nível interno que não necessariamente coincide com a do “mundo lá fora” já que neste
caso trata-se de “fazer aos outros aquilo que fariam a ti” (Maquiavel).
Força e astúcia são meios que, em in extremis casu, permitem evitar o pior dos males:
a morte do reino. A estabilidade interna, ingroups, e segurança externa, outgroups, é a
preocupação central do príncipe, que jamais deve abrir mão da máxima que o norteia:
salus populi suprema lex. Um príncipe, diz o secretário florentino, tem dois grandes
temores, um de dentro, que diz respeito a seus sujeitos, outro de fora, que diz respeito
às potências vizinhas. E acrescenta que o príncipe deve defender-se com boni armi
(não mercenários), única maneira, para que tudo seja estável tanto interna quanto
externamente. Tal máxima, que inspira o condottiere, pode ser interpretada no sentido
de que não apenas os homens, mas também “os estados têm medo de morrer”.
Importa esclarecer que o entendimento de Maquiavel em relação à atuação do
príncipe obedece à situação particular em que se encontra Florença, bem como toda a
península itálica, na época, dividida, esfacelada, num mosaico de pequenas cidades:
república de Veneza, ducado de Milão, Estados papais, república de Florença, reino de
Nápoles, agravada, ainda mais pelas investidas de potências estrangeiras (França e
Espanha) que ameaçam seu território. Assim, vale recordar a dedicatória de O príncipe:
“Nicolaus Maclavellus ad Magnificum Laurentium Medice” - que irá salvar Florença; e,
também quando faz um apelo dramático sobre a necessidade da península ter um
novo líder que consiga unificar a Itália (capítulo XXVI).
Para tanto, o príncipe precisa recorrer a meios que, apesar de reprovados moralmente,
são eficazes para atingir o resultado. Em relação a um dos expedientes, o uso da força,
importa fazer o seguinte esclarecimento. Mais especificamente, remeter-nos àquela
importante frase do secretário florentino sobre a crueldade bem ou mal empregada
(capítulo VIII). Trata-se de uma avaliação neutra/objetiva na medida em que o uso da
força está ligado ao êxito ou fracasso do objetivo. Tal avaliação, bom/mau, não é,
portanto, subjetiva/valorativa, mas objetiva porque se afasta do binômio “moral-
imoral” (cristão) para incluir um outro tipo de juízo amoral que supõe, vale sublinhar, a
suspensão provisória desse binômio em relação aos meios empregados pelo príncipe
que passam a ser avaliados em função da eficácia com o fim a ser obtido.
Assim sendo, a “crueldade bem empregada”, decerto um uso legítimo ou justificado da
mesma, obedece ao fato do condottiere salvar e conservar o principado. Tal avaliação
positiva, dada pela eficácia dos meios, o uso da força, aparece, por exemplo, no elogio
de Maquiavel a César Borgia pelo fato de quase ter conseguido unificar a Itália
servindo-se desse recurso (capítulo VII). Contudo, importa esclarecer que o emprego
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da força não implica o abuso da mesma: a força crua e nua que destrói ou que serve
apenas a um só, o tirano ou déspota.
Assim, estaríamos diante do uso parcimonioso da força, uma economia da violência
que, in extremi casu, é necessária, em contraste com a “crueldade mal empregada”, ou
seja, a violência desmedida que não consegue objetivo algum e que não diminui, mas
recrudesce no tempo. Prova disso, quando em Discurso Maquiavel sustenta que só
devem ser reprovadas as ações cuja violência tem por objetivo destruir e, também O
príncipe quando diz que as crueldades mal empregadas são aquelas que crescem com
o tempo em vez de se extinguir.
Tal distinção leva Maquiavel a condenar, por exemplo, Liverotto pelo uso interrompido
que faz da violência sem atingir resultado (salvar Fermo), em contraste do elogio a
Agátocles que usou a violência “uma só vez” e conseguiu o objetivo (salvar Siracusa)
(capítulo VIII). Daí também a distinção maquiaveliana entre “novos principados” e
“principados despóticos”, isto é, a justificativa do uso da força no momento -
extraordinário - da criação do reino e o uso abusivo da mesma que serve apenas para o
poder irrestrito de um só. Tese que é confirmada, o emprego não desmedido da
violência, quando o secretário florentino declara: “os que fizerem simplesmente a
parte do leão não serão bem sucedidos” (Maquiavel, 2001: 84).
Assim, haveria dois tipos de príncipes: àqueles dignos de louvor que conseguem fundar
reinos, se for o caso através da violência, e àqueles inglórios que não conseguem
resultados e usam a força só para benefício próprio. Segundo o Discurso trata-se do
contraste entre bons e maus imperadores: os primeiros que dão segurança e paz aos
súditos, os segundos que não vão além da ambição e crueldades inumeráveis sem
resultado algum. Ideia também defendida pelo bispo de Hipona quando elogia, por um
lado, os imperatur christianissimus e, por outro lado condena os imperadores ímpios
que usam a força em benefício próprio, por orgulho ou concupiscência. Distinção que
se estende, em terminologia agostiniana, à “paz dos justos” (a guerra justa) e “paz dos
pecadores” (a guerra injusta). No primeiro caso estamos diante da “legítima defesa”
em contraste com o uso ilegítimo da violência: a ambição imperial (pessoal) daquele
que detém o poder.
Com respeito ao segundo expediente maquiaveliano: astúcia, fraude ou engano, ele
remete, dentre outras coisas, a um tema clássico da teoria política: os arcana imperii
(segredos guardados nas arcas do império), ou seja, ao “fenômeno do poder oculto” -
não fazer aparecer aquilo que é, a dissimulação e, ao “fenômeno do poder que oculta”
- fazer aparecer aquilo que não é, a simulação. A mentira impiedosa (impia fraus), a
simulação, para o príncipe realizar grandes coisas sendo destacada até hoje como um
dos traços inerentes da atividade política: “a veracidade nunca esteve entre as virtudes
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políticas, mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes
assuntos” (Arendt, 1973:15).
Ambas, dissimulação e simulação, em perspectiva maquiaveliana, devem ser avaliadas
objetivamente, ou seja, em relação ao êxito ou fracasso do resultado, neste sentido
contrasta com o ponto de vista agostiniano que, coerente com o moralismo extremado
que defende, entende que é preferível calar/dissimular (ocultar a verdade) do que
mentir/simular (tergiversar a verdade): ocultar a verdade, afirma o bispo de Hipona em
Contra a mentira, não é o mesmo que proferir uma mentira, todo mentiroso escreve
para ocultar a verdade, mas não sempre quem oculta a verdade é um mentiroso, pois
as vezes ocultamos a verdade não só mentindo mas guardando silêncio. E arremata: é
permissível para aquele que se envolve em questões religiosas ocultar num momento
oportuno algo que pode ser aconselhável ocultar (Fortin, 1992: 180). E isso, à diferença
de Maquiavel em que ambos os recursos (dissimulação e simulação) podem ser úteis
em função das circunstâncias.
Força e astúcia podem ser relacionadas, também, à fórmula do jurista italiano Giovanni
Botero: della ragione di Stato (1589), que pode ser resumida ao seguinte: o governante
não está obrigado a seguir os preceitos da moral dominante, mas deve conhecer os
meios necessários para fondare, conservare ed ampliare um dominio. Tal ideia é
endossada em Discurso: “Quando é necessário deliberar sobre uma decisão da qual
depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por considerações de justiça.
Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção da sua
independência rejeitando-se tudo mais” (Maquiavel, 1994: 419) e, no escrito de 1513:
o príncipe não está obrigado a observar as coisas à semelhança dos homens bons,
sendo forçado, para conservar a ordem, agir contra a caridade, a fé e a humanidade
(capítulo XVIII). A expressão razão de Estado implica então lançar mão de “vícios úteis”
(força e ardil) para salvar o reino - o que provoca tensão com os ideais defendidos pela
religião: [...] a autoridade da igreja no só se apoiava na autoridade e no dogma, mas também na sua doutrina ética e axiológica, que cobria toda a vida e unia harmonicamente o mandato divino com o Direito natural, era absolutamente inevitável o conflito entre esta ética cristiano-jusnaturalista e o naturalismo radical da axiologia e ética maquiavélicas. Os ânimos, por isso, se sentiam presos entre as exigências da política prática [...] e as doutrinas do púlpito e do confessionário, que condenava a mentira, o engano e a deslealdade (Meinecke, 1983: 121-122).
A intenção de Maquiavel é substituir a moral e ética à “moda cristã” na época por uma
avaliação, amoral, neutra e objetiva que as circunstâncias ou necessidades exigem.
Uma mudança dos valores da moral cristã, julgados legítimos na vida privada, pelas
exigências da prática política que supõe um exame racional dos meios empregados,
bem como das capacidades ou virtudes do governante. A este respeito cabe o seguinte
comentário - “o cristão afirmava: pouco importa que a ação do príncipe trouxesse
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beneficio, ela é condenável se sua intenção é perversa (enquanto Maquiavel) sustenta:
pouco importa a virtude do príncipe se seu efeito é perder o Estado” (Lefort, 1986:
403).
Segundo a visão antropológica do secretário florentino: os homens são maus, ingratos,
falsos, não cumprem a palavra dada, são dissimuladores e simuladores, ávidos de
ganho, podemos inferir que “a ímpia natureza humana impõe uma moralidade pública
que não se identifica e pode colidir com as virtudes dos homens que professam
acreditar nos preceitos cristãos e tentam agir segundo essas normas” (Berlin, 2002:
329). Ou seja, diante da imperfeição da natureza humana alguém tem que assumir a
responsabilidade - mesmo ao preço de ferir princípios morais.
As virtudes maquiavelianas se encontram na antípoda daquelas defendidas pelo
cristianismo. Máximas associadas a Maquiavel do tipo: “prefiro salvar minha pátria que
minha alma”; “não se governa com pater noster”, etc, servem para mostrar a ruptura
que se dá como o autor de O príncipe em relação às virtudes defendidas pelos “pais da
igreja” que convidam não apenas a adotar uma atitude passiva frente ao mundo, mas
também de que é necessário o respeito rigoroso dos dogmas cristãos mesmo que isso
leve à impotência política. Prova disso, as palavras dirigidas por Maquiavel ao frade
dominicano Girolamo Savanorala, que fracassa redondamente no intento de governar
Florença com pater noster: “Oh Profeta desarmado! Quanto equivocado estais. O
homem de estado na sua relação com outros estados não pode ser governado pelas
mesmas regras que regem as relações entre particulares, se assim o fizer é muito
provável que não consigas realizar grandes coisas”6.
Quanto à honra/glória ou fama, outra virtude maquiaveliana, cabe dizer que ela supõe
um bônus e um ônus, ou seja, o fato de ser reconhecido, sobressair sobre os demais,
está em relação direta com o príncipe manter ou salvar o reino. Trata-se, portanto, de
uma “dupla glória” que, como se lê em O príncipe, consiste não só em criar um novo
principado, mas também fortalecê-lo por meio de boas armas e boas leis, contudo, os
boni armi são mais relevantes que os boni ordini porque “não pode haver boas leis
onde não há boas armas”, isto é, o príncipe deve contar com milícias próprias, leais,
não com mercenários infiéis, se o objetivo é estabelecer também as bases de uma boa
ordem política.
A honra do príncipe nada mais é que a virtude recompensada ou, em outros termos: se
o príncipe deseja alcançar resultados (criar o estado e fortalecê-lo com boas armas)
6 O gonfaloniere Savanarola, “pai espiritual e político de Florença”, que governou essa cidade (1494-98) “apenas com palavras” denunciando a tirania dos Médicis (1389-1494), a corrupção do papado e a necessidade de “purificar” a cidade, acabou excomungado pelo Papa Alexandre VI por heresia, foi preso, enforcado e queimado na Piazza della Seignoria.
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deve conduzir-se o mais virtuosamente possível. A honra é tão relevante para o
secretário florentino ao ponto de que um príncipe que funda um reino não por isso
merecer glória, não por isso ser virtuoso. É o caso (mais uma vez) de Agátocles que,
apesar de ter usado “bem a crueldade” (salvar Siracusa), não foi “celebrado entre os
homens excelentes”, uma vez que não contou com exército próprio nem conseguiu
instaurar boas leis e instituições.
A honra, virtude demasiadamente humana, é justamente a que Maquiavel admira e
quer resgatar pelo efeito salutar que traz. Para isso mostra a importância da história,
dos “líderes admiráveis” que, para usar uma expressão weberiana, teriam “colocado os
dedos nos raios da história” (deixado sua marca). Assim, por exemplo, Rômulo que,
segundo o secretário florentino: “nenhum espírito esclarecido reprovará que se tenha
valido de uma ação extraordinária (o assassinato de Remo) para instituir um reino”
(Maquiavel, 1994: 48) - o que significa que os crimes cometidos por atores políticos
correspondem ao juízo da história e não da moralidade (Wolin, 2012: 226).
Em relação às figuras “incomparáveis da história” (Licurgo, etc) que, por sua reflexão e
atuação conseguiram não apenas salvar povos, mas também dotá-los de boas leis e
instituições, convém citar o famoso “sonho de Maquiavel”:
[Que] disse ter visto um grupo de homens malvestidos, de aparência miserável e sofredora. Ao indagar quem eram, recebeu a seguinte resposta: “Somos os santos e os bem-aventurados, vamos para o Paraíso”. Em seguida, avistou uma multidão de homens de nobre e grave aspecto, vestidos com roupas majestosas, que discutiam solenemente sobre importantes problemas políticos. Reconheceu os grandes filósofos e historiadores da Antiguidade que haviam escrito obras fundamentais sobre política e sobre os Estados. [E] perguntou também a eles quem eram e para onde se dirigiam: “Somos os condenados ao Inferno”, responderam. [E] termina [o sonho dizendo]: antes preferia ir para o inferno discutir sobre política com os grandes homens da Antiguidade do que mandado ao paraíso, para morrer de tédio na companhia dos beatos e santos (Virolli, 2002: 17).
Quanto à prudência, reconhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o “menos
pior”, significa que a escolha ou decisão do governante, optar pela “menos
prejudicial”, está sujeita a avaliações descritivas, baseadas em juízos a posteriori,
relativos (revisáveis ou mutáveis), condicionais ou hipotéticos (se quero x devo fazer y)
em contraste com avaliações ou juízos morais a priori, absolutos, incondicionais (devo
fazer X).
A prudência, escolher o “menos pior”, implica dizer que o governante que age dessa
forma deve ter um conhecimento apurado das vantagens ou desvantagens que sua
decisão traz como resultado. Neste sentido, a prudência, se afasta do entendimento
dado pelo pensamento da antiguidade clássica (Aristóteles) quanto pelo pensamento
da idade média (Agostinho). No primeiro caso, ela é uma mistura de bom sentimento e
reto raciocínio que traz felicidade; no segundo caso, ela se relaciona com o amor a
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Deus que permite discernir que ações são favoráveis ou contrárias para se chegar a
Ele.
Em Maquiavel, pelo contrário, a prudência significa enfrentar pragmaticamente, com
base naqueles juízos, os obstáculos que possam trazer mais prejuízos - mais ainda se o
que está em jogo é a salvação do estado. Assim sendo, a prudência, centrada na figura
do príncipe, toma distância do “bom sentimento” e “bom resultado” que norteia a
atividade do polités em prol da felicidade (Aristóteles), bem como da “caritás ou amor”
que guia a conduta do crente (Agostinho) e, também da ética estoica segundo a qual:
uma coisa pode ser moralmente certa sem ser conveniente e conveniente sem ser
certa, contudo a conveniência não pode entrar em conflito com a moral porque só
podemos achar as coisas úteis na honestidade. Tal postura contrastando com a opinião
maquiaveliana já que a conveniência, utilitas, tem prioridade diante do certo ou
correto, honestas.
No primeiro caso, a tradição clássica e medieval, trata-se de um conjunto de preceitos
e formas de agir encaminhados à eliminação do mal na sociedade política; no segundo
caso, a tradição maquiaveliana, trata-se da nova ciência política baseada na premissa
de que a quantidade de mal no mundo é mais ou menos constante e de que a natureza
da ação política não pode ser dissociada de más consequências (Wolin, 2001: 225) ou,
parafraseando Maquiavel, do príncipe não ser o suficientemente prudente para evitar
os vícios que podem causar a perda do estado (capítulo XV).
O elogio ao comportamento do príncipe fica evidente quando Maquiavel compara o
elemento “subjetivo”, as qualidades do príncipe, a virtù, e a fortuna, a sorte ou acaso -
as circunstâncias “objetivas” em que atua. Neste ponto, tomando distância mais uma
vez com autores do “espelho de príncipes” pelo fato de não admitir que o governante
ceda às circunstâncias (Erasmo de Roterdã), mas, pelo contrário, quanto mais adversas
são com mais firmeza há que enfrentá-las. Assim, vale lembrar, a famosa metáfora de
Maquiavel: a fortuna é mulher e por isso gosta de jovens para batê-la (capítulo XXV) -
o que significa que o governante deve agir de tal maneira que não seja dominado pelo
acaso.
A relação virtù-fortuna significa também que o príncipe fica submetido a uma ética
específica conhecida a partir de Max Weber como ética da responsabilidade que, em
contraste com a “ética da renúncia” defendida pelo cristianismo, impele o condottiere
a fazer aquilo que não pode deixar de fazer, não transferir a outro àquilo que deve
decidir - com o bônus e ônus que isso traz consigo. Trata-se, portanto, de uma ética
heroica que aparece de forma mais dramática diante dos “maus ventos da fortuna”.
12
Para concluir com a ética maquiaveliana de O príncipe, que se encontra submetido a
“ditames da necessidade”: conquistare e mantere o stato, podemos dizer que a prática
da coragem, honra, prudência torna-se fundamental para o êxito do resultado. Tais
virtudes sendo importantes porque desvendam a vulnerabilidade dos valores morais e
permitem lidar eficazmente com a impiedosa realidade.
O legado ético de O príncipe não pode ficar reduzido a uma visão maniqueísta: virtudes
seculares boas versus virtudes cristãs ruins. O legado é outro: comungar com algo que
não seja o divino ou sagrado, isto é, comungar com a salvação do estado é abraçar
outro tipo de ética destinada a ter melhor sorte neste mundo:
[...] na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um bom cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido - nem protegido - por esse quadro. É a insegurança que lhe dá a liberdade (para criar a sua própria ética: a dos resultados) (Ribeiro, 2006: 149).
Com base na assertiva de que Maquiavel “valoriza a ética na polis” convém abordar, a
continuação, um tipo de ética que, à diferença do herói-fundador, o príncipe, diz
respeito ao comportamento do cive (cidadão), que participa de uma boa forma de
governo: a república. A reflexão do secretário florentino sobre esta forma de governo
fazendo dele, segundo estudiosos, “o grande inovador do pensamento republicano no
começo da modernidade”, segundo o filósofo Espinosa: o “campeão da liberdade”.
A abordagem deste aspecto da ética maquiaveliana implica ir além do estado como
força física e incluir outros elementos que dizem respeito ao “processo de qualificação
do estado moderno”. Um processo não linear nem acumulativo, que muda com as
circunstâncias, o estado: “força física, poder legal e poder legítimo” (Entraves, 1969:
9). Ou seja, criada à ordem, se necessário através da força (estado-potentia), esta pode
ser dotada de leis que autorizam seu uso (estado-potestas) e de boas instituições que
legitimam ambas (estado-auctoritas): a república.
Para abordar a ética republicana há que remeter-nos ao Discurso: outra prova de como
o humanismo renascentista volta sua atenção ao pensamento e experiência do
passado - a república romana (século V-I a.C.)7. Esta forma de governo suscita a
7 Em 1512, os Médici voltam ao poder em Florença. Maquiavel é preso por ter apoiado o ganfaloniere
Piero Soderini à frente da república (1498-1512) e, ter conspirado contra os Médici. Privado do seu emprego como secretário da Segunda Chancelaria e, obrigado ao exílio se refugia em sua casa, no burgo de Santa Andréia, em Percussina, onde começa a escrever o Discorsi (1513-17). A este respeito, cabe ilustrar como era dia-a-dia de Maquiavel, segundo carta enviada ao seu amigo Francesco Vettori: “Junto do taberneiro há geralmente um açougueiro, um moleiro e dois caixeiros. É com essas pessoas que sempre depois do meio-dia eu me envileço jogando triquetraque (....). É uma miséria como essa que tenho mergulhar para impedir que meu cérebro não se cubra completamente de mofo; é dessa forma que eu me defendo da maldade da Fortuna com relação a mim, quase contente por ela ter me jogado tão baixo” (em contraste com atividade noturna) “Eu entro no meu gabinete e, desde a soleira da porta,
13
admiração do secretário florentino por ter criado leis e instituições que tornaram
possível a liberdade e, sendo assim deveria imitá-la no tempo presente (Petrarca).
“É maravilhoso como cresceu a grandeza de Atenas durante os anos que se seguiram à
tirania (...) mais maravilhoso ainda é a grandeza alcançada pela república romana
depois que foi libertada de seus reis” (Maquiavel, 1994: 197). À volta a este exemplo
do passado não implica um exercício nostálgico, tentativa arqueológica de exumação
da antiguidade política, mas um programa de governo para o futuro (Moreira, 2005:
20-21). Para os humanistas renascentistas, o passado era uma poderosa arma contra
as forças desagregadoras do presente em decadência (império, igreja católica) e não
uma simples miragem que não resistia a mais simples análise histórica (Bignotto, 2006:
25).
De fato o retorno ao passado obedecia ao “papel ético” e “função pedagógica” que a
história tem no presente, mais especificamente ao fato das repúblicas antigas, Roma,
serem exemplos, os mais acabados, que conseguiram conciliar a liberdade individual e
política, bem como dado mostras de virtude, simplicidade, patriotismo, integridade e
amor pela justiça. Neste sentido, haveria que mostrar alguns aspectos da república
romana a partir dos escritos de um dos principais autores da antiguidade: Marco Túlio
Cícero, e isso pelo fato do modelo por ele adotado, a imitação, ser também o de
autores renascentistas que procuravam pôr em prática regras aprendidas pelos antigos
(Bignotto, 2006: 30).
Na sua principal obra política, De republica, o termo res publica, no sentido amplo da
palavra, é sinônimo de estado: a república é a coisa do povo e por povo é necessário
entender não qualquer agrupamento de homens reunidos como um simples rebanho,
mas um grupo de homens associados uns aos outros através de uma mesma lei (iuris
consensu) e comunhão de interesses (utilitatis communione) (Cícero, s/d: 40) já em
sentido restrito o termo res publica designa uma forma específica de governo, uma
forma mista, que durou mais de quatrocentos anos (a república romana).
A preferência de Cícero pela república prende-se, como acontece com outros autores
da antiguidade, ao fato ter resistido à prova do tempo: a estabilidade. Apesar de
admitir que das três formas boas de governo a “monarquia é preferível” entende que é
ainda mais aquela forma composta equilibradamente pelas três: “é bom que exista no
governo alguma coisa de real (monarquia), que outros poderes sejam atribuídos aos
melhores (aristocracia), e que certas questões fiquem reservadas ao povo (governo
me despojo do espólio de todos os dias, coberto de lodo e lama, para vestir novamente os hábitos da corte real e pontifical; dessa forma honradamente fantasiado, eu entro nas cortes antigas dos homens da Antiguidade. Lá, acolhido com afabilidade por eles, eu como do alimento que por excelência é o meu, e para o qual nasci. Lá, nenhuma vergonha em falar com eles e em interrogá-los sobre os motivos de suas ações, e eles, em virtude de sua humanidade, me respondem. E durante quatro horas, eu não sinto o menor tédio, esqueço totalmente meu tormentos, deixo de recear a pobreza, a própria morte não me assusta”.
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popular)”. O inconveniente das formas boas e simples de governo é que não duram no
tempo e degeneram rapidamente no oposto: “o rei se converte em tirano, os melhores
em facção, e o povo em turba” sendo que o mesmo não acontece com o governo
misto: a república.
A vantagem da constituição romana é que teria conseguido retardar o ritmo circular da
anaciclose polibiana (formas retas seguidas de formas más). Trata-se, portanto de uma
- quarta - forma que não coincide com as três formas simples porque é composta, nem
com as três formas corrompidas porque é reta. Além do mais é um regime que, na
opinião do orador romano, nenhuma das partes que o compõem (patrícios e plebeus)
é suficientemente forte - o que permite evitar os “germes funestos da corrupção”.
A república romana, no dizer de Maquiavel um “regime admirável”, combina uma série
de instituições como resulta da observação do historiador grego Políbio: os romanos
julgavam impossível afirmar se o sistema era monarquia, aristocracia ou democracia já
que ao examinar os poderes dos cônsules era uma monarquia, os poderes do senado
uma aristocracia e, os direitos do povo uma democracia.
O poder na república romana era dividido entre dois magistrados (hereditários depois
eleitos): os cônsules, um vigiando o outro, evitando um só ter o poder supremo.
Seguindo o princípio: auctoritas in senato potestas in populo, o poder era exercido
também por cidadãos eminentes, o senado ou conselho de anciãos, órgão máximo de
deliberação, na opinião de Cícero, o mais importante porque “qualquer alteração nos
cidadãos eminentes vai seguida de alterações no povo” e, pelo povo, os tribunos da
plebe, que podiam vetar as leis que os desagradavam e convocar assembleias para
fazer suas próprias leis (Holland, 2006: 26; 50).
Trata-se de um governo equilibrado, temperatum, em que os principais grupos que o
compõem, patrícios e plebeus, conseguem moderar seus interesses através de boni
ordini em prol do bem comum. Para ilustrar as vantagens desta forma de governo,
cabe trazer a famosa metáfora de Considerações sobre as causas da grandeza dos
romanos e de sua decadência em que autor elogia a constituição romana:
O que se chama união em um corpo político é uma coisa muito dúbia: a verdadeira é uma união de harmonia, que faz com que todas as partes, por mais opostas que nos pareçam, concorram para o bem geral da sociedade, tal como as dissonâncias na música concorrem para a harmonia global. Pode haver união em um estado em que se acredite ver somente distúrbios, isto é, uma harmonia da qual resulta a felicidade, que é a única paz verdadeira. É como acontece com as partes deste Universo, eternamente ligadas pela ação de umas e pela reação de outras, etc. (Montesquieu, 2002:74).
Assim, combinando instituições (cônsules, senado, tribunos, assembleia), tal regime
conseguia a um só tempo refletir a pluralidade: os interesses de aristocratas e povo e,
também a unidade: o bem comum. A resolução dos conflitos entre ambos os grupos
15
requerendo um comportamento virtuoso do cidadão (cive virtu) que supõe o controle
dos apetites imediatos em prol do interesse comum, ou seja, os aristocratas não
reclamarem tanta riqueza e o povo não exigir mais liberdade ao ponto de converter-se
em licença total, viver cada um como quer.
Quanto à propriedade, a república romana visa estabelecer regras que tornem possível
a “livre disposição das pessoas” (Rosenfield, 2008: 44). Tratar-se-ia, portanto, de um
governo baseado em muitos proprietários que evita a dependência à vontade daquele
que tudo pode (oligarca ou tirano). Quanto à liberdade, ela diz respeito à participação
do cidadão nos negócios públicos, bem como à independência e segurança individual,
ambas as dimensões da liberdade se reforçam mutuamente, segundo comentário do
orador romano: “(...) para aqueles que patrocinam a virtude, essa busca não se opõe
ao autointeresse (...), pois ao ocupar-se da finalidade natural, o homem realiza sua
natureza e alcança a ventura” (Cícero, 1999: xxiv).
A liberdade como autointeresse significa que o cidadão romano luta por proteção: uma
garantia pública e institucionalizada por ter segurança, mas também para “desposar
quem quiser, criar os filhos sem temer por sua honra nem por seu próprio bem-estar;
ser livre era possuir livremente a sua propriedade” (Pettit, 2003: 15; 57) já a liberdade
como autogoverno significa que um povo livre é um povo que não tem um senhor ou,
como afirma Cícero, que pode votar em qualquer pessoa para ocupar qualquer cargo
(Holland, 2006: 49).
A república exige comportamentos virtuosos assim, por exemplo, quando Cícero se
refere à justiça, “senhora e rainha de todas as virtudes” que se confunde com a ideia
do bem comum, no sentido dos homens não agirem em benefício próprio à custa de
outros: “não existe algo de mais estranho à justiça, a uma sociedade visando ao bem
comum, o homem que rapina outro homem”. Quanto à coragem, ela significa que o
homem deve abandonar desejos imediatos e trabalhar em prol do interesse comum.
No que tange à honra, ela é importante não só em tempos de guerra mas também,
como destaca Cícero, durante o normal funcionamento da república: “se quisermos
julgar com propriedade muitas foram as empresas civis, mais grandiosas e gloriosas
que as militares, os que governam a república experimentam as maiores façanhas”.
Quanto à sabedoria ela aparece associada aos aristocratas - os membros do conselho
de anciãos ou senado -, isto é, os mais senis ou sábios (ottimati) que, por seu preparo/
experiência, diz Cícero, são os mais capazes de antever as coisas futuras no momento
crítico e resolver os problemas tomando a decisão correta. Daí, então, que o senado
seja tido como a instituição mais importante da república. Finalmente, o decoro que
não é outra coisa senão a escolha de uma forma de vida apropriada aos talentos
individuais, bem como à posição social que cada um tem na cidade.
A reflexão maquiaveliana sobre a república se inscreve num quadro comparativo em
que aparece de um lado a “mais gloriosa forma de governo da história”: a república
16
romana e, de outro lado, as repúblicas italianas de sua época: Florença e Veneza. Tal
empreitada aparece em Discurso quando diz que as repúblicas possuem mais germes
de vida e têm sorte mais duradoura do que as monarquias ou, ainda, que as repúblicas
podem melhor acomodar-se à variedade das circunstâncias do que um monarca
absoluto, dada a diversidade de gênio dos cidadãos que as compõem.
No elogio à república, Maquiavel questiona a “ideologia da pobreza do cristianismo”,
uma vez que a riqueza é um componente indissociável da vida boa, que contribui para
a consecução do bem mais importante: a liberdade. Sem esquecer a importância que
dá a educação na formação do cidadão, bem como da necessidade da república ter
exércitos próprios para defender e expandir “para fora” a liberdade.
Seguindo a tradição da antiguidade Maquiavel entende que a república romana foi
uma forma boa de governo porque conseguiu resistir à prova do tempo (quase cinco
séculos) e, também pelo fato que se assenta na virtude dos cidadãos que, através de
boas instituições, conseguem canalizar seus interesses em favor de todos.
Com respeito à virtude do cidadão na república, encontramos um tipo de argumento
em que o secretário florentino é mestre: o método realista. De fato, tomando como
base Roma, observa que em todas as cidades existem dois tipos de humores opostos:
o povo que não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, e os grandes que
desejam comandar e oprimir o povo. E conclui: desses dois apetites diferentes nascem
efeitos salutares - a liberdade.
Assim, um regime de liberdade supõe interesses contrapostos que, através de boni
ordini, podem ser ajustados em favor do interesse de todos, ou seja, que nenhum dos
grupos do corpo político fique sujeito, ao menos em direito, ao outro. Dessa maneira,
o conflito, inerente à vida em sociedade, não é ignorado nem suprimido mas assumido
explorando ao máximo seu efeito salutar. É o que se depreende da seguinte afirmação,
muito ousada, do secretário florentino: “os que criticam as contínuas dissensões entre
aristocratas e povo parecem justamente desaprovar as causas que permitem que a
liberdade fosse conservada em Roma”. E arremata:
Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião [...]. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas das desordens [conflitos] que quase todos condenam irrefletidamente (Maquiavel, 1994:31)
Em relação ao conflito podemos então afirmar o seguinte: se o conflito é inevitável, faz
parte da natureza do homem e da vida em sociedade não há portanto que suprimi-lo,
mas evitar que destrua a convivência - o que importa, em perspectiva maquiaveliana, é
ter instituições que ofereçam uma arena na qual seja possível que os embates ocorram
de forma civilizada (Bignotto, 2003:50). Efetivamente, diante de interesses de grupos
contrapostos: os aristocratas que desejam mais poder (riqueza) e o povo que luta por
não ser oprimido e por mais liberdade (licencia total), o regime misto, a república, teria
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a vantagem de evitar o triunfo dos extremos, e isso porque ambos os grupos
conseguem canalizar seus interesses através de instituições que se vigiam
mutuamente.
Se o secretário florentino é o “campeão da liberdade” (Espinosa) deve-se ao fato da
defesa que faz da insociabilidade da liberdade: autogoverno e autointeresse, liberdade
como participação nos assuntos ou negócios públicos e, liberdade como ausência de
impedimentos externos e proteção do indivíduo mediante a submissão de todos à lei.
[...] Maquiavel, herdeiro direto dos humanistas, concebeu a liberdade como liberdade negativa, mas acrescentou uma reflexão em torno das condições objetivas que tornam essa liberdade possível. Ora, foi justamente ao pensar a relação do indivíduo com a cidade, que ele foi capaz de mostrar que a máxima liberdade, ou a única verdadeira, é aquela que permite a todos exercer suas potencialidades. Isso não pode ser pensado sem colocar a questão da melhor forma de governo, pois segundo o pensador italiano, não há liberdade que não possa se exercer numa arena povoada e reconhecida como legítima pelos participantes de uma comunidade (Bignotto, 2000: 56-57).
Mas, a liberdade maquiaveliana diz respeito também ao momento da fundação da
república: que acontece sem interferências externas (Roma). Neste contexto, ser livre
é não sofrer controle externo, não depender da intervenção de outros estados
(Skinner, 1996:28-29). A exemplaridade da civitas romana obedeceu então não só a
fato de ter conhecido a liberdade nas duas dimensões assinaladas mas também ao fato
de ter-se libertado no momento da fundação. Estas diferentes dimensões da liberdade
sendo destacada por outros humanistas da época como Coluccio Salutati:
[...] uma cidade livre é, portanto, aquela que se mantém livre do jugo de senhores externos, mas também aquela capaz de permitir aos cidadãos o exercício da justiça baseada em leis promulgadas segundo a concordância dos cidadãos, expressa nos diversos conselhos que deveriam estruturar a vida política da cidade (Bignotto, 2001: 105).
Seguindo Montesquieu, cabe dizer que a mola que anima a república-democrática, ou
segundo Maquiavel: o governo largo (Roma), é a “virtude política”, isto é, a presença
de um sentimento coletivo que se traduz pelo amor à pátria, a igualdade e o respeito
pelas leis, como diz em Espírito: “ama-se a pátria como algo que é de todos, (quando)
ela é percebida como pertencente a todos que se consideram iguais entre si e frente à
lei”. Este princípio ou mola, que dá vida à república-democrática, requer por sua vez a
contenção do bem particular em prol do interesse geral. A virtude política, lembra o
filósofo francês, é uma renúncia penosa: ela exige a preferência contínua do interesse
público em relação ao interesse privado.
Contudo, importa dizer que o secretario florentino não vê o interesse privado e público
incompatíveis mas complementares: a procura da riqueza sempre que praticada de
forma moderada contribui ao fortalecimento de instituições livres, bem como para a
“a grandeza da cidade”, defender e expandir a liberdade. E isso, sobretudo, tendo em
conta as duas repúblicas da época (Veneza e Florença) que se assentam no comércio e
riqueza material.
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Não se trata do elogio da riqueza pela riqueza mas que do acúmulo limitado de bens é
possível o exercício da virtude. Uma novidosa combinação: bens particulares - valores
cívicos (baseada na riqueza moderada dos cidadãos) que é retomada pelo pensamento
republicano, resumida na afamada expressão: l´intérêt bien entendu (século XIX) - cada
um seguindo seu interesse e se organizando para isso, “a prática política associativa”,
faz com que o interesse privado se transforme em interesse geral (Tocqueville, 1961:
173).
Cumpre reiterar que a procura pela satisfação dos desejos particulares não pode ser de
tal sorte que seja um empecilho à manutenção da liberdade. De fato, seguindo autores
da antiguidade, Maquiavel entende que um dos principais males da república é que a
re privata, o desejo pelo lucro ilimitado, se impunha diante da re publica. Ou, como diz
em Discurso: a riqueza sem moderação é causa da corrupção cívica, tal situação sendo
ainda mais grave quando toma conta do corpo político que se encontra em situação
mais propensa para isso.
Em tal contexto, Maquiavel prevê, in extremis, o apelo à figura extraordinária de um só
que, com seu exemplo, pode acabar com a corrupção, contudo, acredita, também, que
a corrupção pode ser combatida com boas leis e instituições: “uma república deve
incluir entre suas ordini àquelas que permitam que os cidadãos se mantenham sobre
vigilância para que não possam, sob o pretexto do bem, fazer o mal”. E acrescenta: “é
essencial que cada um permaneça de olhos abertos e se mantenha alerta não só para
identificar tais tendências corruptas como também para empregar a força da lei para
eliminá-las”. Em definitivo: um regime não corrupto exige a continua vigilância dos
cidadãos.
Para Maquiavel existe ainda outro meio para induzir o povo a adquirir a virtude e
afastar-se da corrupção: o culto religioso. As repúblicas, afirma, que querem impedir a
corrupção dos estados devem manter sem alterações os ritos religiosos e o respeito
que inspiram. O índice mais seguro da ruína de um país, destaca, é o desprezo pelo
culto dos deuses. E, concluí: onde reina a religião se acredita na prevalência do bem,
pela mesma razão se deve supor a presença do mal nos lugares onde ela desapareceu
(Maquiavel, 1994:61-62). Com base em exemplos da religião pagã, a república romana,
critica a igreja católica de sua época que, sob a roupagem da fé, pratica a corrupção. E,
de forma bem pragmática, como é de hábito, defende o bom uso dos cultos religiosos,
uma vez que permitem manter os homens bons e induzem o povo a preferir o bem da
comunidade a qualquer outro (Skinner, 1988: 98).
No relativo à educação ela é apreciada não só em função de promover o bem comum:
as boas leis, diz Maquiavel, dependem da boa educação, mas também para promover
a “potência da cidade” - manter e expandir a liberdade. A formação do cidadão com
grandeza de espírito e força do corpo, a fibra ou coragem republicana, implica então
potencializar ao máximo os impulsos, canalizando-os para a república expandir sua
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grandeza: a liberdade para fora das fronteiras. Assim, a honra do cidadão - uma das
virtudes mais importantes - se confunde com o termo virtù: virilidade ou coragem.
Tal parece ser a opinião de outros humanistas da época que, apesar de guardar certa
reserva em relação à gloria ou honra associada à expansão da liberdade para fora
(Roma), entendem que a verdadeira e completa virtude é alcançada não apenas com a
participação dos cidadãos na vida política mas também com a virtude militar, isto é, o
“cidadão-soldado”, parafraseando Petrarca: a cidadania militar. Tal virtude, a coragem,
devendo ser praticada não só para defender a república contra inimigos externos e
internos mas, também, como insiste Maquiavel, para irradiar para fora das fronteiras
os valores associados à república: a liberdade.
Cabe dizer que a maioria dos pensadores renascentistas entendia que era preferível a
república ter “milícias próprias” que forças mercenárias, tal meio sendo mais confiável
para a república proteger a liberdade. A vantagem de contar com cidadãos armados e
independentes (economicamente) era importante porque fortalecia a disciplina, que
passa também pelo serviço militar. Quanto à relação valores cívico-militares-benefícios
particulares, a opinião não era unânime: alguns entendiam que eram incompatíveis
enquanto Maquiavel compatíveis (Bignotto, 1991: 43).
Com respeito às repúblicas da época importa dizer que Florença era mais democrática,
um Gran Consiglio e um pequeno senado, à diferença de Veneza, mais aristocrática,
com o Conselho dos Dez que intervinha em quase tudo (tesouro, exército, etc), para
muitos: a encarnação viva do regime misto, e por isso durou mais no tempo.
Ademais, Florença não tinha exército próprio, durante muito tempo sobre o comando
de condottieris irresponsáveis tornando-a presa fácil de outras cidades ou estados, daí
o interesse de Maquiavel, seguindo o exemplo de Roma, de reviver em Florença uma
milícia formada por cidadãos que fossem fiéis à república.
Já Veneza, com exército próprio, teria conseguido defender melhor seu território e
instituições, porém, segundo avaliação do secretário florentino, com limitações porque
foi incapaz de expandir para fora a liberdade. Sendo assim, Veneza estava mais voltada
para a conservação da liberdade, “manter o statu quo” como se lê em Discurso, do que
propagar a liberdade a outros lugares.
A diferença entre ambas as repúblicas responde também ao fato de Veneza revelar
certo atraso no plano cultural: faltava-lhe aquele entusiasmo pela antiguidade clássica
não assim para o comércio e negócios, enquanto Florença, além do avanço da
indústria e comércio, tinha mais consciência política, berço das doutrinas políticas, da
escrita da história, que lhe serviu para admirar Roma (Burckhardt, 2003: 69; 71), etc.
Para concluir, podemos dizer, com base nos dois escritos maquiavelianos: Principatibus
e Discorsi, que existem duas maneiras de entender a ética e a política: da “janela do
palácio”, visão vertical do poder, baseada no argumento ex parte principis, na lógica da
raison d’État, que gira em torno da seguinte pergunta: que situações permitem a
20
quebra de limites impostos pela moral à atuação do príncipe? Resposta: a conservação
e manutenção do estado. E da “praça pública”, visão horizontal do poder, baseada no
argumento ex parte populi, nos direitos e deveres dos cidadãos, que gira em torno da
seguinte pergunta: que condições são necessárias para que os limites impostos pela
moral não sejam violados? Resposta: boas leis e instituições - a república. Trata-se, de
um lado, de “jogos estratégicos do poder”, de outro lado, da “preocupação ética por
instituir a liberdade individual” (Foucault 2012: 278).
Diante da assertiva arendtiana de que “a negação deliberada da verdade dos fatos, a
capacidade de mentir, e a faculdade de mudar os fatos, a capacidade de agir estão
interligadas”, cumpre dizer, com base nos escritos maquiavelianos, que além da lógica
ofensiva do príncipe, baseada na dissimulação: “não fazer aparecer aquilo que é”, resta
a possibilidade da lógica defensiva do cive que, através de boas leis e instituições, pode
(re)agir para “fazer aparecer aquilo que é”.
21
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23
1
moral da obediência e ética hedonista
Fernando Quintana
Falar de ética e política no início da modernidade (século XVII) implica abordar uma
questão relevante que gira em torno da construção da ordem política e como ela se
relaciona com a conduta dos indivíduos que a compõem. Mais especificamente trata-
se de saber em que medida a obediência às autoridades e leis civis, condição para os
indivíduos viverem em paz, é compatível com uma ética centrada na procura da
felicidade individual. Para isso, nos deteremos no estudo de um clássico do
pensamento político, Thomas Hobbes, uma vez que traz contribuições importantes
tanto do ponto de vista do conhecimento quanto ético sobre o dualismo: obediência-
felicidade.
Hobbes viveu num período conturbado, de crise, no auge da Guerra Civil que assolou
seu país na década de 16401. Tal situação, precária, instável, que mostra como a
existência humana pode ser reduzida a tabula rasa, que o mundo pode ser aniquilado,
sendo contudo decisiva para sua reflexão política e um tipo de conhecimento que
podemos chamar de construção criativa (Wolin, 2001: 263).
A “ciência como construção - criativa - da mente” a encontramos, por exemplo, em De
cive quando se refere ao more ou método matemático de conhecimento: a proposição
2+3 = 5 é científica, verdadeira, porque ela foi feita por nós, porque chegamos ao
acordo de que a quantidade 2 seja chamada número dois, a quantidade 3, número
três, e a quantidade 5, número cinco ou, quando se refere ao more ou método
geométrico de conhecimento: a geometria é demonstrável já que as linhas e figuras
sobre que raciocinamos são traçadas e descritas por nós mesmos; e, isso à diferença
do more ou método experimental de conhecimento que “não é tão seguro” (quanto o
matemático ou geométrico) pelo fato de que não depende de nossa criação: com os
corpos naturais, acrescenta, não conhecemos a construção, mas a procuramos a partir
de efeitos, aqui não há demonstração, mas um conhecimento do que podem ser as
coisas. Neste caso, arremata, os princípios do conhecimento não são como os que
1 A primeira Guerra Civil (1642-46) dividiu o país em dois partidos: o monárquico e o parlamentar. No
primeiro, alistavam-se os partidários do rei, em sua maioria anglicanos, membros da grande nobreza, composta de grandes proprietários rurais e cortesãos. No segundo, os puritanos e proprietários agrários da pequena nobreza (gentry), comerciantes da City, os roundheals (cabeças redondas) e outros grupos de extração inferior (artesãos, lojistas, aprendizes). O conflito teve início quando o arcebispo Laud, apoiado por Carlos I Stuart, tentou impor aos calvinistas escoceses ou presbiterianos um livro de preces comum. Encolerizados com a iniciativa de forçar-lhes a liturgia anglicana (de inspiração papista), os presbiterianos pegam as armas junto com os calvinistas independentes. A Guerra Civil foi dirigida pelo Parlamento e, combatida por Oliver Cromwell (fidalgo rural puritano) até a rendição do monarca (1646). Na segunda Guerra Civil, Cromwell vence novamente as forças realistas (1648) e, em 1649 Carlos I é processado e condenado a morte.
2
criamos: axiomas da matemática ou teoremas da geometria, mas se encontram nas
coisas observadas por nós.
A forma criativa de proceder do conhecimento em Hobbes é importante porque lhe
permite chegar ao campo da moral, direito e política, que se encontram na sua época
em forte atraso com respeito a outras formas do saber, as verdades inquestionáveis,
irrefutáveis ou irreversíveis, com o mesmo rigor de axiomas da matemática (2+ 2 = 4),
teoremas da geometria (a soma dos ângulos de um triângulo retângulo são iguais a
dois retos) ou, ainda, leis da física (o calor dilata os corpos).
Com base nestas observações iniciais propomos mostrar como tais ferramentas
metodológicas estão presentes em duas equações hobbesianas: paixão + razão = paz e,
paixão + razão = prazer. No primeiro caso, o intelecto auxilia o “desejo de viver”
através de leis naturais ou morais que visam à segurança ou integridade física do
indivíduo - bem supremo -, no segundo caso o intelecto auxilia o “desejo de levar uma
vida prazerosa”- bem maior - através dos direitos naturais que se encontram na base
da “liberdade civil” e felicidade individual.
A comparação do filósofo moral a matemáticos, geômetras e físicos pode ser resumida
na famosa frase de Hobbes que diz: “Se os filósofos morais tiveram feito seus estudos
com parecido êxito, nada melhor podia ter realizado o espírito para contribuir à
tranquilidade e felicidade nesta vida”. Ambos os objetivos, importa sublinhar, sendo a
preocupação central da reflexão hobbesiana: a tranquilitas que se origina no desejo de
viver e a felicitas que se origina no desejo de levar uma vida prazerosa.
Efetivamente, ambos os sentimentos que mobilizam os homens a abandonar o estado
de natureza e ingressar no estado civil: as paixões que fazem os homens tender para a
paz são o medo da morte e o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma
vida confortável (Hobbes, 2003: 111), só podem ser atingidos apelando à razão através
de leis naturais que levam à obedecer ao soberano e dos direitos naturais, a liberdade,
que leva à vida feliz.
Para tornar possível o desejo de viver e desfrutar das delicias da vida, Hobbes, vale
insistir, lança mão do método matemático e geométrico, bem como do método
experimental, na medida em que permitem estabelecer de forma objetiva e com
rigorosa certeza como os homens podem gozar de tais bens temporais: a paz e a
felicidade. Os homens não podem ter apenas opiniões sobre como obter tais bens: é
necessário, portanto, criar as condições teóricas e epistemológicas para isso acontecer,
assim a promessa da filosofia hobbesiana consiste em dar resposta ao movimento da
conduta humana que oscila entre o medo da morte e a procura da felicidade (Wolin,
2001: 266).
3
Para chegar à paz Hobbes apela às lex naturalis enquanto para uma vida feliz ao ius
naturalis. No primeiro caso, as leis naturais, “os homens querem a paz” (pax est
aequerenda), “os homens devem cumprir os pactos” (pacta sunt servanda), etc, são
apresentadas como leis imutáveis ou eternas como os axiomas da matemática ou
teoremas da geometria2 ou, seguindo o método experimental, como proposições
verdadeiras, baseadas em juízos hipotéticos/condicionais, que resultam da observação
dos fatos: “se respeito a lei vivo em paz”3. O projeto científico hobbesiano implica,
neste caso, na combinação de dois métodos (dedutivo e indutivo) já que através deles
é possível o conhecimento verdadeiro (Cassirer, 1992: 340).
A paixão ou sentimento natural, o desejo de viver, auxiliado pela dictamen ratio, reta
razão, na forma de leis naturais ou morais dar-se-ia, então, a partir de juízos a priori
baseados no método lógico-dedutivo, matemático ou geométrico, mas também a
partir de juízos a posteriori, baseados na experiência, em juízos pragmáticos4 e, num
tipo de racionalidade instrumental, de meios a fins:
Obedecemos às regras da lei natural porque são preceitos que nos indicam como obter o que queremos (a paz) e evitar o que não queremos (a morte). Ambos conjuntos de regras tem a forma “Se queres obter X, deves fazer Y”. Trata-se de enunciados fáticos (...) porque são desejos que todos os homens têm efetivamente como uma questão de fato contingente (MacIntyre, 1994: 134).
Tais leis naturais ou racionais, as leis que chamamos leis da natureza nada mais são do
que certas conclusões que a razão conhece, também conhecidas como “leis da paz”
porque estabelecem as coisas a fazer ou omitir para garantir-se a preservação da vida
(Hobbes,1993:58-59;82), extraem seu fundamento último da premissa segundo a qual:
“somos moralmente autorizados a nos autopreservar” (Tuck, 2001: 142). Tais leis são
inquestionáveis do ponto do conhecimento e, do ponto de vista prático são relevantes
porque induzem os homens a entrar em sociedade e receber proteção do soberano:
protejo logo obrigo. A passagem do estado natural para o estado civil faz com que as
leis naturais em que a razão obriga na consciência se tornem leis civis a serem
observadas por todos os que intervêm no pactum sociale.
2 Neste caso, trata-se do método puramente demonstrativo, lógico dedutivo, que pode ser enunciado na
forma do seguinte silogismo: os homens querem a paz, João é homem, logo, João quer a paz. O more ou método geométrico-matemático supõe, então, uma operação lógica que consiste em concluir de uma ou várias proposições verdadeiras uma ou várias proposições que se seguem necessariamente: se A é igual a B, e se B é igual a C, então, A é igual a C. 3 Neste caso, trata-se do método experimental: uma operação também racional em virtude da qual
procura-se chegar a uma lei geral a partir da observação e repetição de regularidades em casos particulares. Este último método, próprio das ciências empíricas, pode ser enunciado da seguinte maneira: se A1 tem a propriedade P, s A2 tem a propriedade P, se An tem a propriedade P, então, todo A tem a propriedade P. 4 Ou, em linguagem kantiana, proposições contingentes, a posteriori e, sintéticas (em que o predicado
adiciona algo novo ao sujeito: “os corpos são pesados”).
4
Sobre o contrato hobbesiano podemos afirmar que não é apenas um ditame da razão,
mas também uma necessidade histórica (evitar a desordem: a Guerra Civil), bem como
um ato de conveniência: o que posso ganhar ao entrar em sociedade. Além do mais o
pacto, como vimos, implica que a moral (lei natural) se transforme em direito (lei civil),
e isso através da criação da ordem política, isto é, através de um sujeito coletivo que é
ao mesmo tempo moral-jurídico e político: o Leviatã (Angoulvent, 1996: 106; 109).
As leis naturais que os homens se dão no estado de natureza, e por tanto ineficazes,
faz com que os homens sejam levados a fazer o pacto e obedecer às leis do soberano:
é em virtude da lei natural que proíbe violar os pactos, que é possível observar as leis
civis (Hobbes, 1993:184) - leis estas, vale acrescentar, cujo traço principal é o fato de
serem obrigatórias: sofrer uma sanção ou coação pelo não cumprimento das normas
jurídicas. Neste pormenor, cabe lembrar o ditado hobbesiano: os pactos (leis) sem a
espada (força) não passam de meras palavras. As leis civis devem, portanto infundir
temor, não terror nem pavor, não um medo desmedido, mas um respeito, uma
reverência, que tem sua razão de ser: a paz.
A obediência às leis civis tem como objetivo principal evitar o caos, a desordem, a
fobia do estado de natureza, que carece de normas obrigatórias. Realizado o contrato,
obtida à paz através do respeito incondicional às leis do soberano ficam asseguradas as
condições necessárias para a promoção de outros bens a serem usufruídos em
sociedade: [...] sejam quais forem os bens que visamos, sejam quais forem os ingredientes que para nós compõem uma vida satisfeita, não podemos deixar de perceber que a paz e tudo aquilo que ela requer se oferecem como uma condição indispensável da fruição desses bens, sempre ameaçada numa condição de guerra. Assim, antes mesmo que o Estado seja instituído, estamos obrigados [moralmente] a agir no sentido da sua instituição, visto ser ele condição da paz e de uma vida satisfeita (grifo nosso) (Limongi, 2002: 39).
Contudo, resta um problema a resolver em relação ao cumprimento das leis do
soberano no contexto em que escreve Hobbes: na Inglaterra revolucionária, os súditos
cristãos identificados com o clero rebelde protestante (presbiterianos, independentes
ou congregacionistas) em nome de preceitos religiosos foram os responsáveis pela
desordem e aniquilamento do poder real (o regicídio: 1649). Assim, a preocupação do
autor é no que fazer com um poder, o poder eclesiástico, quando suas normas entram
em conflito com normas do poder temporal. Não pode, afirma em De cive, haver algo
de mais pernicioso para um estado do que as pessoas se sentirem apavoradas pela
ameaça de tormentos eternos na obediência às leis civis. E acrescenta: atribuir à
autoridade civil a soberania em todas as matérias que se referem à paz e ao bem-estar
nesta vida, e a outras autoridades o poder de regulamentar o que se refere à salvação
da alma não é conveniente, constitui um ato de sedição, um motivo de rebelião contra
as normas do soberano (Hobbes, 1993: 159).
5
Assim, com base no conflito religioso da Inglaterra do século XVII, Hobbes não para de
reforçar a ideia de que as leis da igreja são leis somente enquanto aceitas, desejadas e
reforçadas pelo estado. Tal postura monista, que não admite um sistema normativo
moral/religioso além daquele das normas do soberano, deve-se ao fato, como mostra
em Behemoth, que a “guerra de todos contra todos” (Guerra Civil) foi produzida pela
“palavra desmedida” que finge “deter as chaves de acesso à vida eterna”. Neste
contexto, a solução consiste em dar mais poder ao soberano porque apesar de ser
forte, ele é, porém, um poder apenas laico que precisa ir além do poder temporal e
controlar também o espiritual.
Os diversos cleros, que reivindicam um acesso direito às coisas espirituais, são causas
de distúrbios, uma ameaça à paz, sendo assim torna-se necessário a fusão do poder
temporal e espiritual para se chegar a uma situação em que não exista dúvida sobre a
quem obedecer. A este respeito, vale lembrar a frase que aparece no frontispício do
Leviatã: non est potestas super terram quae comparatur (não há poder na terra que
seja comparável) e, o título completo da obra: Leviatã ou a matéria, forma e poder de
uma república eclesiástica e civil.
Importa destacar que numa das mãos do “novo deus profano” aparece a espada, lado
visível do poder, que representa a força física e, na outra o báculo, lado invisível do
poder, que representa a força espiritual. Esta última, a gládio invisível, tida como mais
relevante que a primeira, a gládio visível, pelo fato de que os homens temem mais as
ameaças sobrenaturais, a palavra desmedida sobre o além, ligadas à morte eterna, do
que as ameaças ligadas à perda de bens temporais (patrimônio, liberdade).
Sobre a importância da palavra desmedida do clero vale trazer o seguinte comentário:
se o governante que julga de maneira visível e aos olhos de todos pode infringir a
morte física, o clero brande a ameaça da morte eterna, ao mesmo tempo em que nos
faz antever uma eternidade no paraíso, e esse misto de promessa e amedrontamento
pode mostrar-se mais eficaz que o instrumental mais ou menos desencantado com o
qual o poder leigo procura controlar as condutas (Ribeiro, 2001: 11-12). Esta avaliação
encontra eco em Hobbes quando defende que o controle de acesso ao divino, o acesso
monopolizado ao transcendente, a chave ao absoluto sob a forma de dor eterna ou de
satisfação igualmente eterna, não pode ficar fora do poder civil.
Para Hobbes, definir o que é espiritual e temporal resulta de uma tarefa que cabe
apenas ao poder temporal: o julgamento das coisas espirituais e materiais competem à
autoridade civil. Com base nesta assertiva, que visa à paz, o autor rejeita qualquer
possibilidade dos indivíduos exercerem o direito de liberdade de prática religiosa, ou
seja, decidir o que é justo ou injusto baseado em preceitos religiosos cabendo isso ao
soberano - a quem foi confiado o direito de decidir que opiniões são contrárias à paz
pública (Hobbes, 1993: 106; 241; 259).
6
Sendo assim, cabe ao clero dar conselhos, não comandos, que cabem apenas ao
soberano, além de determinar o justo ou injusto. Para Hobbes são perversas,
perigosas, expressões tais como: é rei o que age bem, não se deve obedecer aos reis se
não derem ordens justas (Hobbes, 1993: 156). A justiça, baseada na moral cristã, não
pode então ficar em mãos de grupos religiosos que são fonte de discórdia (a Guerra
Civil).
Importa esclarecer que a justiça, que só é possível através das leis do soberano, não diz
respeito ao conteúdo das normas civis, não é um problema substantivo, mas formal.
De fato, segundo o formalismo jurídico hobbesiano as normas são justas porque foram
elaboradas pela autoridade que tem o poder de legiferar e também porque
estabelecem procedimentos coercitivos sem os quais a paz não existe:
A concepção do direito como ordem implica uma consideração predominantemente procedimental e, não substancial, do direito. Para quem se propõe a paz como fim o que conta é que na sociedade atuem uma serie de mecanismos normativos e executivos para impedir que os conflitos se resolvam pela força das partes. O mecanismo principal é a coação. A concepção do direito como paz é acompanhada pela consideração da coação como elemento constitutivo do direito, para o partidário do direito como ordem o que importa é o componente sancionador da norma (não o componente prescritivo) (grifo do autor (Bobbio, 1980: 107).
Ou seja, na concepção do direito como ordem, as normas devem ser obedecidas não
pelo conteúdo que prescrevem, mas pela forma: porque foram criadas pela autoridade
competente para legislar e porque dispõem mecanismos de coação que fazem possível
a paz. Neste sentido, o filósofo inglês pode ser tido como o precursor do positivismo
jurídico: não há normas além daquelas emanadas do soberano. Tal concepção do
direito encontra respaldo na máxima hobbesiana: auctoritas, non veritas facit legem (é
a autoridade, não a verdade, que faz a lei) - o que esvazia de todo conteúdo
substantivo a norma jurídica, a questão da legitimidade, focando apenas o aspecto
formal, a questão da legalidade, isto é, se a lei foi elaborada e aplicada de modo
coerente pela autoridade competente que tenha força para fazê-la cumprir (Luchi,
2009: 56).
Assim, diante do dualismo legalidade-legitimidade Hobbes está mais preocupado, no
direito como ordem, com a legalidade, com o cumprimento efetivo das normas, e não
com a legitimidade, ou seja, o conteúdo da norma, nem com a participação dos
cidadãos na sua elaboração. O positivismo hobbesiano não é democrático. Do que se
trata, portanto, é justificar diante dos destinatários das normas a expectativa cognitiva
de que, se for o caso, se recorrerá à força para assegurar o cumprimento da lei, ou
seja, trata-se de uma situação em que: “a lei se satisfaz com o comportamento legal,
pelo mero comportamento em conformidade com as normas” (grifo do autor)
(Habermas, 1993: 89).
7
Porém, o filósofo inglês pode ser tido também como precursor do positivismo ético se
levarmos em conta a assertiva que diz: antes de haver governos, justo ou injusto não
existem, pois são termos relativos a um comando (lei), os reis legítimos tornam justas
as coisas que “mandam mandando”, e tornam injustas as coisas que “proíbem
proibindo” (Hobbes, 1993: 156). O positivismo ético equipara então justiça e lei - o que
implica negar juízo valorativo sobre a ação governamental, e isso porque o poder de
fazer leis reside apenas no soberano que não pode ficar sujeito a opiniões subjetivas
sobre o que é justo ou injusto.
Do exposto se infere que o importante é que as leis civis sejam cumpridas: quem está
obrigado a obedecer às ordens de alguém antes de saber o que ele vai ordenar, está
obrigado simplesmente a todas as ordens sem restrição (Hobbes, 1993: 126). Tal
situação, “há que obedecer porque há que obedecer”, significa que outra atitude em
relação às leis civis, não obedecer porque são injustas, traz consequências indesejadas:
a “guerra de todos contra todos” (a Guerra Civil).
A concepção legalista da justiça hobbesiana, a ideia de que a justiça não existe fora das
normas criadas pelo soberano, implica conceber a paz como fim do direito, a paz como
antítese da guerra. Dizer que o fim do direito é a paz significa que o direito procura
substituir o estado de guerra (estado de natureza) por um estado de paz (estado civil):
Paz e guerra são dois modos diferentes de resolver os conflitos sociais: a guerra através da força dos próprios contendientes (estado de natureza) e a paz através de compromissos entre as partes (contrato social) e a atribuição da força à pessoa distinta das partes (o soberano). Mas a paz jurídica não elimina os conflitos e sim resolvê-los, por isso o direito como paz se contrapões não ao conflito mas à guerra (grifo do autor) (Bobbio, 1980: 106-107).
Neste contexto, a paz é um valor, mas um valor distinto da justiça: quem procura a paz
se interessa pelo cumprimento da norma seja qual for o seu conteúdo, ou seja, para o
partidário da paz ou ordem o que importa é a existência de um conjunto de normas e
um aparato de punição eficiente, o elemento coativo da norma, sem o qual não há
paz.
Tal concepção da justiça faz com que, no contexto em que escreve Hobbes, admita
apenas a religião no âmbito ou foro interno, isto é, como ditames racionais ou divinos
que reforçam, aliás, a obediência às leis do soberano: Nosso Salvador não indicou
nenhuma lei sobre o governo do estado além das naturais, ou seja, nada além do
mandamento de obedecer ao próprio estado (Hobbes, 2003: 439). Porém, o mesmo
não acontece com a religião no âmbito externo, o direito de prática religiosa que pode
levar, quando exercido pelo clero rebelde (presbiterianos, independentes, etc), à
desobediência:
[...] o puritano age movido pelo desejo de glória, para ele o essencial é enganar, humilhar, investe ilegalmente o domínio público, roubando, pela dissimulação, o que é do soberano, a
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fé de seus súditos, a praça de seus mercados; pois é nas praças, de manhã cedo nos dias de feira, que vão os pastores dissidentes seduzir os fiéis da Igreja Anglicana (Ribeiro: 1999: 64).
Situação que Hobbes quer evitar já que foi o exercício de prática religiosa de puritanos
rebeldes que esteve na origem da Guerra Civil. Para o autor, é dever sagrado de todo
cristão obedecer ao poder secular já que este poder, como vimos, não proíbe a crença
em Cristo - a única, segundo Hobbes, a que deve aspirar o cristão. Desse modo, diante
da espinhosa questão: está o cristão obrigado a obedecer ao soberano quando este lhe
proíbe a prática de sua fé? O autor entende que cabe apenas a resistência passiva e o
martírio, confirmando, assim, o que repete em várias partes da sua obra: é dever do
soberano estabelecer a religião considerada a melhor que, cumpre frisar, era contrária
à liberdade de prática evangélica.
Conforme o exposto, então, o soberano pode castigar os súditos pelas ações religiosas
que levam à desobediência das leis civil, não pela crença religiosa que, aliás, estimula
ou reforça o respeito às leis civis.
A distinção conselho e comando ou como diz Hobbes: lei não é conselho, mas ordem é
importante porque permite esclarecer a diferença entre moral e direito, bem como
reforçar a ideia de que as leis do soberano devem ser sempre respeitadas ao preço de
não se viver em segurança.
Seguindo De cive e Leviatã: o conselho é um preceito em que o motivo da obediência é
tomado da própria coisa aconselhada, o comando, um preceito, em que o motivo da
obediência é tomado da vontade de quem cria o comando; o conselho é daquele que
não tem o poder sobre a quem está destinado, o comando é de quem tem o poder
sobre aquele a quem comanda; fazer o que é indicado por conselho é de livre escola,
fazer o que é indicado por comando é dever; o conselho é dirigido ao fim (interesse) de
quem o recebe, o comando é dirigido ao fim (interesse) de quem manda; dá-se
conselho só a quem quer, impõe-se o comando a quem não quer; e, o direito do
conselheiro cessa pela vontade daquele a quem é dado o conselho, o direito de quem
comanda não cessa pela vontade daquele a quem o comando é imposto (Hobbes,
1993: 179; 2003: 471).
Do exposto se depreende que a moral, conselho, carece de força vinculante, jurídica, e
isso pelo fato que em mãos de cleros rebeldes pode induzir à desobediência das leis.
Para Hobbes, importa reiterar que, em termos da moral cristã, o crente deve limitar-se
a acreditar em Deus, e isso com base na premissa pauliana endossada pelo autor:
“meu reino não é deste mundo”. Esta interpretação do cristianismo, no sentido de que
para ser um bom cristão é necessário apenas acreditar que Jesus é filho de Deus, bem
como a assertiva pauliana citada ou, ainda, como diz Hobbes: Cristo veio a este mundo
para ensinar, pregar e dar conselhos, não comandos é fundamental para a moral da
obediência porque reforça o poder civil e a exigência deste fazer cumprir as leis sobre
a ameaça de sanções.
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Hobbes, como vimos, é contrário ao direito de prática religiosa, mas não ao fato dos
indivíduos acreditarem num ser superior: Nosso Salvador, declara, não indicou aos
súditos nenhuma lei referente ao governo da cidade além das leis de natureza, ou seja,
além do mandamento da obediência civil pacta sunt servanda (Hobbes, 1993: 239). Tal
preceito, que reforça a obediência ao soberano, fazendo parte do que se conveio
chamar: “ateísmo cristão”.
A “fé em Cristo e a obediência às leis da natureza” são suficientes, segundo o filósofo
inglês, para garantir a vida eterna. Desta maneira, podemos dizer que a intenção de
Hobbes é libertar os homens de um medo desnecessário: a ameaça de morte eterna (o
inferno) praticada pelo clero rebelde. A “religião civil”, proposta pelo autor, oferece
então uma esperança - a da vida eterna (Tuck, 2003: L; LI).
O autor não separa moral e política na medida em que as leis naturais ou racionais e a
obediência ao soberano são indissociáveis, sendo que tal obediência é possível porque
o poder que encarna o Leviatã implica o direito de punir: as leis não tem poder algum
para proteger, se não houver uma espada nas mãos de um homem, ou de homens
encarregados de pôr as leis em execução (Hobbes, 2003: 181-182). O temor à punição
é a garantia de que todos os membros da sociedade vão cumprir as normas e assim
desfrutar do bem supremo que é a paz.
A moral da obediência, fundada em leis naturais ou racionais, não é outra coisa que a
defesa de uma moralidade neutra, ascética ou pragmática, sem a qual não é possível a
paz. Tal moral, com a subsequente submissão dos indivíduos às normas do soberano, é
a condição sine qua non de evitar a fobia do estado de natureza e atingir o estado de
afobia, o estado civil, onde reina “a paz de todos com todos”. Em reforço disto, cabe
sublinhar que para o filósofo inglês a lex, natural ou civil, é sempre vínculo, obrigação,
que se dá em nível da consciência ou em nível concreto, a perda ou restrição de algum
bem, pelo não cumprimento das leis civis.
A moral da obediência hobbesiana leva o indivíduo à conquista de um bem supremo,
que é invariável - a paz. Em tal contexto, na há possibilidade para divergências, não há
alternativa: deve-se obedecer às leis civis caso contrário dá-se a desordem. A atividade
independente do indivíduo, o exercício de prática religiosa, por exemplo, pode até ser
suprimido em nome da segurança. Neste contexto, o bem comum se confunde com a
obediência das leis (Oakeshott, 2000: 277).
Mas, além da lex natural ou civil que manda, existe também o jus natural ou civil que
permite. Trata-se da “liberdade inocente” ou “inofensiva”, àquela parte da conduta
humana, diz Hobbes, “deixada pelas leis civis aos súditos”. Tal concepção do direito,
como liberdade, nós leva a abordar o segundo ponto deste ensaio: a ética hedonista.
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Neste contexto, o direito não é coerção, o componente da norma que permite a paz,
mas a liberdade. Para o partidário do direito como justiça (não como ordem) o
importante não é a coerção mas o que a norma permite, a prescrição, ou seja, que os
comandos positivos do soberano garantam o exercício da liberdade individual. Tratar-
se-ia, neste caso, da concepção substantiva (não formal) da justiça.
Paralelamente à moral da obediência vislumbra-se em Hobbes uma ética hedonista
sendo que a razão também aparece auxiliando a paixão. Ou seja, o desejo de levar
uma “vida prazerosa” (satisfatória ou confortável) precisa de um argumento sólido: os
direitos naturais ou racionais que, comparados pelo autor a teoremas ou axiomas5,
permitem que os indivíduos levem uma vida boa, feliz.
Do exposto até aqui podemos observar o forte racionalismo hobbesiano que converte
a natureza humana em natureza racional, as leis e os direitos naturais em leis e direitos
racionais. Este hiperacionalismo pode ser associado à filosofia do sujeito, solipsista ou
monológica, com pretensão científica, cuja fonte a encontramos em Descartes e seu
primeiro princípio da filosofia, ego cogito ergo sum (je pense donc je suis), em que o
espírito se descobre como sujeito e no próprio ato de conhecer/pensar cria a
realidade: adequatio intellectus ad rem ou adequatio rei ad intellectus.
Com base neste princípio, o pai da filosofia moderna procura fazer da realidade uma
estrutura transparente à luz da razão. Mas, como se dá o processo de cognição? No
cogito, o sujeito recorre a ideias lógico-dedutivas construídas abstratamente ou a
ideias adventícias originadas da observação dos fatos para criar ou explicar a realidade:
a coisa pensada (res extensa). É o que pretende fazer Hobbes ao fundar uma moral e
ética válida para todos, em todos os tempos e lugares (quod ubique, quod semper,
quod ad omnibus creditum est), com base nas leis e direitos naturais seguindo o more
matemático/geométrico ou experimental. Neste sentido, podemos afirmar, seguindo
vários estudiosos que Hobbes seguiu a ideia cartesiana de que todo pensamento pode
ser apresentado de forma axiomática ou empírica.
Na opinião de críticos, Richard Rorty, estaríamos diante de um conhecimento em que a
realidade é um espelho da razão. Segundo Michel Foucault - diante de uma razão
disciplinar que desautoriza qualquer exercício intelectual que não se enquadre num
método científico. Na opinião de Luis Eduardo Soares - diante da presença do sujeito
universal que assume uma posição neutra e objetiva da realidade que é criada através
de métodos rigorosos. Um tipo de racionalidade, parafraseando mais uma vez Ernest
Cassirer, que se confunde com o universal.
5 Trata-se do método lógico-demonstrativo baseado em proposições a priori e analíticas (em que o predicado não acrescenta nada novo ao sujeito): a liberdade é poder de fazer algo, João é livre, logo, João tem o poder de fazer algo.
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A filosofia hobbesiana é subjetiva não só pelo fato do filósofo ser capaz, sozinho, de
produzir verdades irrefutáveis, mas também pela concepção que tem do direito. De
fato, qual é o conteúdo do direito natural em Hobbes? É a liberdade que cada homem
tem (the liberty each man hath) no sentido de possuir algo. Assim, os direitos naturais
são atributos, qualidades ou prerrogativas inerentes a todo ser humano e, no que diz
respeito à função do direito natural ele consiste, como afirma em De cive e Leviatã, no
direito de cada um fazer, agir ou escolher o que bem entender para preservar a vida e
levar uma vida prazerosa.
Dessas passagens pode-se observar o caráter subjetivo do direito e, assim a profunda
inflexão que se dá com a visão objetiva do direito, a visão aristotélica, em que o direito
é coisa (material ou imaterial) a ser repartida na comunidade. Contra esta concepção
do direito a visão hobbesiana coloca os direitos naturais do indivíduo. Tal mudança faz
com que o novo sentido do direito se deva a adversários do estagirita - Thomas
Hobbes (Villey, 1962: 244-245). E isso, importa frisar, pela nova concepção acerca da
natureza que deixa de ser objetiva, a fúsis aristotélica, para ser subjetiva, ou seja, uma
criação do sujeito:
O homem pode criar o conhecimento porque é uma livre construção do espírito. Porém, o conhecimento não pode ser uma livre criação se a natureza é ininteligível (...) O homem não pode ser soberano se existe na natureza algum suporte à sua humanidade (...) O homem é soberano porque é alheio à natureza (...) O homem é soberano porque a natureza não precisa ser compreendida, não há limites para conhecer e conquistar a natureza (...) O mundo de nossas construções tem um começo absoluto: é nossa criação em sentido estrito (Strauss, 1986: 159-160).
Em relação ao hedonismo hobbesiano cabe trazer, também, a conhecida assertiva
cartesiana segundo a qual, como se lê em Les passions de l’ame, a “suprema felicidade
do homem depende do uso correto da razão” - o que significa que a tarefa do intelecto
não é só estabelecer verdades, mas também aquilo que é bom para o indivíduo. Sendo
assim, a liberdade individual além de ser um princípio verdadeiro é algo bom porque
através do exercício dela podemos levar uma vida satisfatória. Trata-se, portanto, de
uma postura normativa que acredita que a liberdade é um valor - indispensável da vida
feliz. Neste sentido, Hobbes pode ser considerado um seguidor do hedonismo moral
ao defender que a procura do prazer individual é um dos principais móbiles da conduta
humana.
A liberdade como poder de fazer ou omitir algo de acordo com minhas inclinações ou
desejos, o jusnaturalismo hobbesiano, pode ser enquadrado num liberalismo avant a
lettre, e isso pelo fato de que a procura da vida boa, feliz, depende do indivíduo. O
bem comum do ponto de vista desta corrente ideológica não sendo outra coisa que a
soma de prazeres individuais obtidos através do exercício, segundo Hobbes, da
“liberdade civil” ou “liberdade do cidadão”.
Sobre a liberdade hobbesiana, o exemplo clássico é a água: se ela estiver dentro de um
vaso, ficará presa, contida, quebre-se o vaso, e ela se liberta (Ribeiro, 2002: 3). A
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analogia do movimento da ação humana com o movimento natural das águas num rio
revela que o estado, tal como as margens, não obstaculiza o movimento natural dos
homens para a obtenção do que melhor é para si, mas que o orienta para seu melhor
fluir (Bernardes: 2002 : 47). A metáfora, o curso da água e liberdade civil, apesar de
extensa, vale ser reproduzida na íntegra:
Como os movimentos e ações dos cidadãos nunca são em sua totalidade regulados por lei, e nem podem ser por causa de sua variedade, por isso há necessariamente uma quase infinidade de atos que não são comandados nem proibidos, e que cada qual pode fazer ou não fazer, livremente. É neles que cada um goza de liberdade, e é neste sentido que aqui se toma a liberdade, a saber, a parte do direito natural que é concedida e deixada aos cidadãos pelas leis civis. A água, se for represada de todos os lados, estagna-se e fica poluída; se tiver todo espaço aberto, ela se expande, e tanto mais livremente corre quantas saídas mais encontrar. Assim, os cidadãos: se nada fizessem sem comando expresso das leis, ficariam embotados; se fizessem tudo sem leis expressas ficariam embaraçados. Quanto maior número de matérias a leis deixarem indeterminadas, tanto maior é a liberdade que eles desfrutam. Os dois extremos são falsos, pois as leis não são criadas para impedir as ações dos homens e sim para dirigi-las, como as margens do rio, segundo a ordem natural, servem para encaminha e não para deter o curso da água. Os parâmetros dessa liberdade são o bem da Cidade e o bem-estar do cidadão. Por isso, é antes de tudo contrário ao dever dos que governam e dos que tem poder de fazer leis permitirem a existência de um número delas maior do que necessário para o bem dos cidadãos e da Cidade. Com efeito, os homens costumam o mais das vezes discutir sobre o que devem fazer recorrendo antes à razão natural (a liberdade natural ou racional consiste em fazer ou omitir algo de acordo com minhas inclinações) do que as ciências das leis Por isso, quando as leis são mais numerosas do que fácil a serem lembradas e proíbem coisas que a razão de-per-si não proíbe, elas necessariamente caem, mais por ignorância e sem qualquer má intenção, nas armadilhas das leis, e ofendem essa inocente liberdade, que os governantes por Eli natural são obrigados a preservar para os cidadãos [E arremata] Grande parte dessa liberdade, inofensiva, para uma Cidade é necessária para a vida feliz dos cidadãos [...] Faz também parte dessa liberdade inocente e necessária aos cidadãos que todo homem possa sem medo desfrutar os direitos que lhe são concedidos pelas leis (grifo do autor) (Hobbes, 1993:175-176).
Desta longa passagem importa dizer que a vida feliz se encontra em íntima relação
com o exercício da liberdade inocente ou inofensiva que consiste, como reitera em De
cive, em haver poucas leis e proibições, algumas indispensáveis para a segurança ou,
em Leviatã, a liberdade dos cidadãos está naquelas coisas que, ao regular as ações, o
soberano preteriu tais como comprar e vender, realizar contratos, escolher residência
e profissão, instruir os filhos conforme achar melhor, etc. A felicidade passa, então,
pelo fato da conduta humana estar o menos possível sujeita à regulamentação legal
ou, segundo a definição supra, através de mandatos positivos que autorizam atos que
reforçam a liberdade individual.
A defesa da liberdade individual feita por Hobbes levou Quentin Skinner a falar de uma
Liberdade antes do liberalismo, ou seja, é possível o exercício da liberdade individual
num “Estado não livre” e, isso porque não existe conexão necessária entre liberdade
individual, privada, e liberdade do cidadão, pública. Tal interpretação encontra eco no
filósofo inglês quando em De cive declara: se a liberdade dos cidadãos consiste em ter
poucas leis, as indispensáveis para a paz, “nego que haja mais liberdade na democracia
do que na monarquia” (grifo do autor) (Hobbes, 1993: 144). Assim, voltando ao
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mencionado intérprete, é possível o indivíduo ter liberdade e não ser cidadão livre: “É
a mais simples confusão supor que há conexão alguma entre o estabelecimento de
estados livres e a manutenção da liberdade individual” (Skinner, 1999: 55).
Para Hobbes o importante é o exercício da liberdade de escolha do indivíduo e não um
cidadão livre, o importante não é a fonte da lei, a vontade popular, mas o exercício da
liberdade individual garantida pela lei. O problema não está na forma de governo, mas
na relação estado - liberdade individual:
Ser livre como um membro de uma associação civil [...] é simplesmente estar desimpedido de exercer suas capacidades na busca de seus fins desejados. Um dos deveres básicos do Estado é impedir que você invada os direitos de ação de seus concidadãos, um dever que ele cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente. Mas, onde a lei termina, a liberdade principia. Desde que você não esteja física nem coercitivamente constrangido de agir ou em abstinência de agir pelos requisitos da lei, você permanece capaz de exercer seus poderes a vontade e nesta medida permanece de posse de sua liberdade civil (Skinner, 1999:18).
Do ponto de vista hobbesiano não existe afinidade entre liberalismo e democracia,
liberdade individual e participação política: o ideal liberal da liberdade pode dar-se
num governo não democrático, contudo não intervencionista. Tese polêmica tendo em
vista o filósofo inglês ser considerado o teórico da soberania forte e do absolutismo
monárquico:
Ao longo da história do pensamento moderno e contemporâneo, Hobbes é constantemente acusado de ter formulado uma teoria política na qual o Estado é forjado como o supressor da liberdade dos indivíduos. Em muitos manuais de sociologia, de ciência política e filosofia política, Hobbes é apontado como um pensador que formulou uma ‘teoria de direita’ [o que consiste em erro epistemológico], como um filósofo que inculcou na modernidade o germe do totalitarismo e como ‘antidemocrático’ e contrário a um Estado de direitos e garantias individuais, na medida em que defendia a monarquia absoluta (Bernardez, 2002: 48).
A liberdade como poder de fazer6, que lembra a definição de um dos principais autores
do liberalismo clássico (John Locke) segundo a qual é o “direito de cada um fazer o que
for de seu agrado”, diz respeito àquela dimensão individual da liberdade que depois de
Benjamim Constant é conhecida como o nome de liberté des modernes (1819) ou, mais
recentemente, Isaiah Berlin, liberdade negativa (1969) que visa responder à seguinte
pergunta: até que ponto o governo deve intervir nos assuntos privados? Resposta: na
menor quantidade possível.
Tal interpretação - liberal - da liberdade sendo destacada por vários estudiosos do
filósofo inglês: “as leis e acordos da sociedade hobbesiana só estavam destinados a
cobrir certo terreno limitado de atividade, deixando áreas substanciais abertas ao
arbítrio individual” (Wolin, 2001: 287). Assim, tratar-se-ia de um tipo de liberdade que
supõe haver poucas restrições ou proibições legais à conduta humana ou, ainda, como
dirá Montesquieu: dos indivíduos terem o direto de fazer tudo o que a lei permite - o
6 Ou, como diz em De Cive e Leviatã: “É o poder do homem de fazer o que tem vontade de fazer”, “É a
ausência de entraves de fazer o que se tem vontade de fazer”, etc.
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que significa que ninguém tem o direito de impedir alguém de fazer aquilo que a lei
não proíbe. Neste contexto: a liberdade consiste, então, naquilo que os indivíduos tem
o direito de fazer e a sociedade não tem o direito de impedir (Constant, 2007: 51).
De fato, a liberdade civil hobbesiana não existe para o “soberano regular todas as
ações e palavras”, mas ela diz respeito a “todas as espécies de ações omitidas pelas
leis”. Desta maneira, no estado civil, os indivíduos tem a “liberdade de fazer o que a
razão de cada um sugerir, como o mais favorável a seu interesse” e tornar-se “senhor
das suas vidas”. E, quanto a outras liberdades, diz Hobbes, elas dependem do silentium
legibus, ou seja, “nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra, o
súdito tem a liberdade de fazer ou omitir, conformemente à sua discrição” (Hobbes,
2003: 187).
Para o filósofo inglês, a liberdade (poder de fazer algo) é “sempre a mesma” seja
quando a soberania reside num só (monarquia), alguns (aristocracia) ou muitos
(democracia). Contudo, neste último caso, a liberté des anciens segundo Constant,
entende que este direito é da politéia (Aristóteles) ou república (Cícero), própria dos
“Estados populares” (Hobbes, 2003: 184), mas não um direito individual a ser
usufruído em segurança legal. O importante, então, para Hobbes não é a participação
do cidadão como acontecia nas repúblicas antigas, mas que seja respeitada uma
extensão da liberdade individual que faça possível a cada um escolher a forma de vida
- boa - que achar melhor.
Do exposto resulta que o mais relevante para Hobbes é a segurança de um domínio de
independência individual que o estado por um lado deve garantir e por outro lado não
deve intervir: garantir através da punição dos que violam a independência e segurança
individual, contudo legislando pouco para a liberdade se expandir o mais amplamente.
A liberdade sob a lei não tem a ver com o direito do cidadão de ter voz ou participar no
governo: a liberdade hobbesiana é jurídica não política. Uma liberdade egocêntrica
porque centrada no autointeresse, inclinações e desejos pessoais, que encontra
apenas uma limitação, no contexto em que escreve Hobbes, a liberdade de prática
religiosa pelo fato do seu exercício levar à desordem (Guerra Civil).
Além da liberdade, a felicidade requer também a prosperidade material: a riqueza. A
importância deste componente da felicidade pode ser observada ao lembrar que um
dos motivos de discórdia no estado de natureza é a competição pelo ganho ou lucro
(Hobbes, 2003: 108); que, como tentaremos mostrar, não precisa da ingerência
estatal.
Tal entendimento, acreditamos, encontra respaldo em passagens da obra hobbesiana:
“os bens e riqueza dos indivíduos são a corrente sanguínea de um estado que,
circulando, alimenta pelo caminho todos os membros”; “a riqueza e prosperidade de
todos os membros individuais são sua a força vital”, etc, (Hobbes, 2003: 12). Ou seja, a
riqueza e os bens do indivíduo devem fluir sem obstáculos.
15
Para uma melhor compreensão desta leitura, importa lembrar as hipóteses “realistas”
ou “pessimistas” do autor sobre a natureza humana, isto é, o estado de natureza em
que predomina a competição, desconfiança e vanglória: pela primeira ataca-se o outro
pelo lucro, a segunda pela segurança, a terceira pela vanglória sendo que esta última, a
“principal causa de conflito”, é produzida por ninharias: sorrisos, palavras e gestos
desdenhosos (Hobbes, 2003: 108).
A análise mais detalhada da vanglória é relevante porque se encontra em relação com
a felicidade e prosperidade material do indivíduo tão almejada na época, conforme
destacam estudiosos: o caráter humano que emerge na Europa ocidental do século
XVII é um sentimento de individualidade, o homem independente e empreendedor
que procura bens materiais (Oakeshott, 2000: 278).
Com respeito à vanglória cabe referir-nos à “teoria do riso” que, segundo The elements
of law, é provocado por um ato imprevisto que agrada ou pela percepção de alguma
fraqueza desprezível. Assim, existe o riso natural, imprevisto, inesperado: o riso alegre;
e, também, o riso refletido, racionalizado: o riso zombeteiro. A vanglória, uma das
“paixões indomáveis” hobbesianas (Hirschman, 1979: 36) encontra, assim, na conduta
o gesto debochado: “uma súbita glória que surge de uma súbita concepção de alguma
superioridade em nós mesmos pela comparação com as fraquezas alheias” (Skinner,
2002: 55).
A emoção expressa no riso escárnio, a alegria induzida pela zombaria, à diferença do
riso alegre, é sempre expressão de desprezo, sendo que para Hobbes a maneira mais
natural de vangloriar-se, gabar-se, jactar-se é falar zombando. Tal atitude, segundo o
autor, corresponde a “espíritos covardes praticados pelos lobos” diferentemente do
riso natural que corresponderia a “grandes espíritos praticado pelas ovelhas”.
No contexto em que escreve o autor haveria uma disputa entre ambos os “espíritos”,
um, ligado à nobreza, ao cavalheiro educado da Royal Society, a mentes elevadas que
não se interessam por alimentar sensações de superioridade, mas ajudar àqueles que
cultivam um verdadeiro sentido de magnanimidade e uma aversão à agressão; e outro,
ligado ao puritano mercator, membro da nascente sociedade mercantil que, movido
pelo desejo de lucro, dá vazão a sentimentos debochados de superioridade sobre os
demais.
Apesar de elogiar a primeira atitude - a do cavalheiro -, Hobbes é consciente da “nova”
atitude assumida por grupos da sociedade inglesa em ascensão, a pequena nobreza ou
gentry, comerciantes da City, etc, que procuram assentar sua superioridade, vanglória,
com base no ganho ou lucro.
O sentimento de prazer experimentado pelo puritano comerciante sobre outros sendo
fortalecido pela prosperidade material, isto é, pelo desejo de lucro enquanto “objeto
16
da paixão”. A este respeito cabe trazer o comentário de Hobbes sobre a conduta do
puritano mercator:
[...] em seus sermões nunca ou apenas brandamente atacavam os vícios lucrativos dos homens de comércio e artesanato, tais como a dissimulação, a mentira, o engodo, a hipocrisia ou outras coisas descaridosas, salvo a falta de caridade para com seus pastores e fiéis, o que significou um grande alívio para os cidadãos em geral e em particular para os habitantes das cidades em que havia mercados, e com isso um considerável ganho para si mesmos (Hobbes, 2001:59).
Lembrando as “paixões indomáveis” hobbesianas no estado de natureza: competição,
desconfiança, vanglória que mostram como os homens se comportam dada a sua
natureza, cabe dizer, segundo Albert Hirschman, que elas não mudam no momento do
homem ingressar em sociedade. A razão, como vimos, vem em auxílio, no momento
do contrato, para auxiliar tais paixões, para controlar a “besta selvagem que existe em
todos nós”, mas não para suprimi-las ou reprimi-las, notadamente, a vanglória que, no
contexto da sociedade mercantil in nascendi, passa pela procura do lucro.
A conduta desdenhosa, expressão de superioridade, corresponderia então à praticada
por membros da gentry e comerciantes que experimentam prazer, a vanglória sobre os
demais, através de objetos da paixão: o lucro. Tal entendimento leva a dizer que a
insociabilidade natural hobbesiana, “o homem não tira nenhum prazer na companhia
de outrem”, não requer o concurso benevolente de outros indivíduos em sociedade,
mas o necessário para materializar tal objeto da paixão que passa pela troca de bens e
os contratos.
Sendo assim, a felicidade requer o gozo de outro direito: o de propriedade que, vale
lembrar, não existe antes do homem ingressar em sociedade. Este “direito civil” deve
ser apreciado, segundo Leviatã, no horizonte da paz e segurança comuns, mas também
da felicidade, uma que vez que a vida confortável implica ter coisas, bem como a
esperança de consegui-las através do trabalho. Ideia que aparece também em De cive:
“As autoridades supremas não podem dar contribuição melhor para o bem-estar
público do que levar os cidadãos a gozar da riqueza produzida por sua operosidade”
(Hobbes, 1993: 169).
A constituição da sociedade faz com que o poder do indivíduo sobre as coisas no
estado natural, fundado na autopreservação, se converta em propriedade legal ou
jurídica. São as leis civis, diz o autor, que garantem o meu, o teu, e o seu e isso, vale
frisar, com base no trabalho. Apesar da distribuição da propriedade pertencer em
última instância ao soberano como garantia da sobrevivência dos súditos7, tal
entendimento, contudo, não descarta o fato da propriedade por quem legitimamente
7 “(...) pelo fato de o soberano ser o representante dos súditos, precisa levar a sério a tarefa de garantir-lhes as coisas necessárias à vida - o soberano de Hobbes teria não só o direito como o dever de intervir no sistema econômico se o seu funcionamento livre ameaçasse a sobrevivência de qualquer de seus cidadãos” (Tuck, 2003: XLV).
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a possui e trabalha seja tida como parte da liberdade individual: “pois, ao conceder tal
direito para alguém, o estado o protege dos obstáculos que possam impedir este
movimento” (Bernardez, 2002: 53). Isto é, o “movimento vital do estado e seus
membros” (supra).
Em reforço da tese do indivíduo gozar em sociedade da propriedade caberia trazer a
assertiva hobbesiana segundo a qual: “existe uma inclinação geral e incansável do
homem por poder e mais poder que só acaba com a morte”. Tal desejo, que consiste
no uso de meios presentes para obter algum bem futuro não pode ser dissociado do
“movimento vital do estado” nem do “movimento do desfrute” do indivíduo que passa
pela propriedade, base da riqueza e felicidade.
Da concepção hobbesiana do homem: calculador de ganho, vantagens, etc, dar-se-ia
uma ontologia do Ter e não do Ser. Uma forma de comportamento em que o indivíduo
não é tido como inserido numa ordem social, mas cada um perseguindo seu interesse
e bem estar material. O hedonismo moral do autor consistiria, parafraseando Epicuro,
em cada um escolher aquilo que lhe dá prazer, notadamente, no caso em exame, o
gozo de bens materiais, e isso no contexto da sociedade mercantil in nascendi em que
os membros da gentry e comerciantes da City querem sobressair, marcar sua
ascendência sobre os demais. Uma situação em que a vanglória, a atitude desdenhosa
ou debochada, se encontra ligada ao status de superioridade obtido através do lucro.
Para concluir com a moral da obediência e ética hedonista hobbesianas podemos dizer
que elas devem ser apreciadas à luz da dinâmica: indivíduo-soberano. Uma dinâmica
que tem como atores indivíduos conscientes das vantagens de conviver em sociedade
e decidem viver em segurança sob comandos do soberano. Entretanto, a submissão ao
soberano não implica arbitrariedades porque a vontade prudentemente atemorizada
do cidadão está acompanhada pela paixão lícita que impulsiona o bem viver (Dotti,
2000: 6). Assim, lex e jus, obrigação e liberdade são compatíveis. Ou, como sustentam
comentadores em relação aos dois sentimentos naturais hobbesianos - o temor à
morte e a esperança de uma vida boa:
A questão de Hobbes é vencer o medo pela esperança - e uma esperança que tenha suporte no conforto material. Trata-se de escapar à morte violenta, que é o maior mal que possa suceder ao homem, e - depois disso - de ampliar o conforto. Devemos nos conformar aos poderes que existem, aos poderes do Estado, mas, - isso feito - mudar o mundo das coisas. Não mudamos o mundo humano, das relações políticas, que permanecem como estão, só robustecidas pela obediência aumentada, mas mexemos no mundo das coisas, da matéria, que servirá de fonte de nosso florescimento (grifo nosso) (Ribeiro, 2006: 125).
Tal entendimento parece procedente se levarmos em conta os fatos acontecidos
depois da Guerra Civil: a Revolução Gloriosa (1688), o Bill of Rights (1689), entre
outros. Uma situação que leva ao “florescimento do indivíduo”: à libertação do
indivíduo-crente de uma jaula de ferro religiosa (o anglicanismo) para que construa as
18
gaiolas que quiser privatizando o negócio da salvação (o puritanismo), mas também a
libertação desta jaula para que conquiste os direitos naturais (Bauman, 2000: 160).
Sendo assim, podemos finalizar dizendo que Hobbes contribuiu para tal florescimento
na medida em que coloca o exercício da liberdade individual, baseado no silêncio das
leis ou normas permissivas, como fundamental para se levar uma vida boa, feliz,
mesmo ao preço dos indivíduos ficarem submetidos a normas coercitivas do soberano
para evitar o pior dos males: a morte.
19
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. .
1
puritanismo e liberalismo Fernando Quintana
O liberalismo está associado a um conjunto de ideias amplas e difusas como largueza
de espírito, imparcialidade, liberalidade, etc. Mas além deste sentido amplo, o
liberalismo encontra-se atrelado ao individualismo jurídico, no sentido do indivíduo ser
a fonte criadora e o fim do direito e do individualismo ético, no sentido da consciência
individual se erigir em tribunal das normas religiosas (Birnbaum; Leca, 1991: 12-13).
Ambos os tipos de individualismo caracterizam uma tipo de ética, puritana calvinista,
no contexto de um importante evento: a primeira revolução dos tempos modernos - a
Revolução Inglesa1.
Assim, procuramos mostrar a afinidade que existe entre puritanismo e liberalismo no
marco de uma revolução que foi também religiosa: um exemplo de transformação de
revolução religiosa em revolução política, a primeira servindo de base espiritual da
segunda. Mais especificamente trata-se de explorar aspectos do que o historiador
Christopher Hill acredita ser uma das causas da revolução: o conflito puritanismo -
anglicanismo ou, como a ideologia liberal, fundada nos escritos de Calvino, representa
uma crítica às práticas abusivas dos Stuart (Arruda, 2006: 56-57). E, ainda:
Se procurarmos as raízes ideológicas da mentalidade liberal inglesa, há que destacar como fator importantíssimo o religioso, pois não em vão a luta pela liberdade começou pelo terreno religioso. Mas especificamente, a mentalidade liberal foi à própria dos “dissidentes”, logo denominado “não conformistas”, os puritanos não admitiam o controle religioso da Igreja anglicana (Prieto, 1996: 615-616).
1 A Revolução Inglesa comporta a Revolução Puritana, momento duro, violento, que corresponde a duas guerras civis (1642 e 1648) e, a Revolução Gloriosa, momento suave, não violento (1688). Quanto ao primeiro momento importa dizer que a primeira Guerra Civil (1642-46) divide o país em dois partidos: o monárquico e o parlamentar. No primeiro, alistavam-se os partidários da monarquia Stuart (Jaime I e Carlos I Stuart: 1603-49), em sua maioria anglicanos, membros da grande nobreza, composta de grandes proprietários rurais e cortesãos. No segundo, os puritanos e proprietários agrários da pequena nobreza (gentry), comerciantes da City, os roundheals (cabeças redondas) e outros grupos de extração inferior (artesãos, lojistas, aprendizes). O conflito teve início quando o arcebispo Laud, homem forte no plano religioso de Carlos I Stuart (1625-49), tentou impor aos calvinistas escoceses ou presbiterianos um livro de preces. Encolerizados com a iniciativa de forçar-lhes a liturgia anglicana (de inspiração papista), os presbiterianos pegam as armas junto com os calvinistas independentes. A Guerra Civil foi dirigida pelo Parlamento e, combatida por Oliver Cromwell (fidalgo rural puritano) até a rendição do monarca (1646). Na segunda Guerra Civil, Cromwell vence novamente as forças realistas (1648) e, em 1649 Carlos I é condenado à morte. No interregnum, a República (1649-58), Cromwell recebe o título de Lorde protetor da Inglaterra (1653), cargo que ocupa até sua morte (1658). Quanto ao segundo momento da Revolução Inglesa importa dizer que ela se deve, em parte, ao fato da Restauração (Carlos II e Jaime II Stuart: 1660-88) ter continuado com práticas religiosas papistas (Jaime II era católico) - o que leva a impopularidade da monarquia. No seu lugar são colocados dois protestantes resolutos (Guilherme e Maria) de quem foram “arrancadas concessões políticas críticas com o preço do trono” (Pipes, 2001: 183) - o Bill of Rights de 1689.
2
Tal empreitada leva analisar, mais especificamente, o papel que teve a leitura da Bíblia
em setores da sociedade inglesa e o direito à liberdade de credo e prática religiosa,
baseada em premissas calvinistas, contra as práticas hierárquicas da monarquia Stuart.
Nesta reconstrução histórica destaca-se a atuação de ideólogos do puritanismo inglês,
John Pym e John Milton, na medida em que se tornam os paladinos do rule of law2
com base na defesa do direito de liberdade religiosa e, notadamente, a importante
contribuição de John Locke que consegue ir mais longe ao estabelecer os fundamentos
gnosiológicos e morais da liberdade e propriedade que marcam os ideais da Revolução
Inglesa.
O individualismo, seguindo Louis Dumont, valoriza o ser humano igual a todo homem
(homo aequalis). Tal afirmação do indivíduo obedece ao fato de que feito à imagem e
semelhança de Deus é depositário da razão - o que traz consequências políticas: o
igualitarismo, isto é, o indivíduo submetido a ele mesmo que não aceita ser governado
por nenhum princípio hierárquico, civil e/ou eclesiástico, o episcopalismo Stuart (1603-
42)3.
A afirmação do indivíduo como agente racional capaz de elaborar normas faz com que
o direito inglês, em vez de sustentar-se em antecedentes normativos escritos e não
escritos, a ancien constitutio4, passe a ser justificado em termos de direitos naturais (o
jusnaturalismo): da crença de que todos os cristãos nascem de novo livres e iguais, os
puritanos começam a defender a ideia que todos os ingleses e também todos os
homens nascem livres e iguais (Dumont, 1983: 83-89).
O puritanismo, nome dado ao calvinismo na Inglaterra, está na origem de uma crença
muito cara ao liberalismo: a exaltação do indivíduo, bem como à emergência de certos
direitos, notadamente, o direito de credo e prática religiosa. Este direito quando usado
com propósito político trazendo como consequência que o indivíduo possa expressar
pública e livremente pensamentos, opiniões e ideias no marco da lei (rule of law), sem
sofrer interferências arbitrárias do governo:
2 Podem ser distinguidos quatro elementos do “governo da lei”, todos contemplados no Bill of rights de
1689 da Inglaterra: a) o devido processo legal quando se trata de julgar e punir os cidadãos privando-os da liberdade ou propriedade, b) a prevalência das leis diante da discricionariedade do poder real, c) a sujeição de todos os atos do poder executivo à soberania dos representantes do povo (Parlamento) e, d) o direito de acesso aos tribunais por parte de qualquer indivíduo a fim de defender seus direitos (Canotilho, 1999: 24). 3 O conde Sir Thomas Strafford junto com o outro conselheiro de Carlos I Stuart no plano religioso
William Laud foram os responsáveis do chamado “Estado episcopal”, ambos defendiam a prerrogativa real e os tribunais exclusivos do monarca e dos bispos. 4 Para o estudo do direito inglês como resultado do costume, a “antiga constituição”. QUINTANA, F.
Common law e conservadorismo, Revista da Escola da Magistratura Regional Federal, Rio de Janeiro, n.1, vol. 15, 2011, p.115-144.
3
Religioso na sua referência inicial, o livre-arbítrio tende, nos puritanos, a cobrir todos os domínios, inclusive o político. Rejeitando todas as ortodoxias, o puritanismo coloca o político em debate aberto, igualitário e pluralista [...] ele conduz à rejeição das hierarquias pré-estabelecidas até as últimas consequências (Hermet, 1991: 138).
O puritanismo contribui para a afirmação do individuo na medida em que se opõe a
práticas hierárquicas e tradicionais da época ainda sobre forte influência do papismo,
no reinado Stuart. Efetivamente, ao pregar o acesso direto à vida eterna o puritanismo
fortalece a ideia da livre e igual comunicação de todos os crentes, leigos, com Deus
sem necessidade de mediações temporais que se arrogam o monopólio do ingresso à
vida eterna: o puritanismo enfraquece as estruturas coercitivas e clericais, pelo acento
posto sobre a educação na fé e a doutrina do sacerdócio universal dos crentes (Carrive,
2003: 437-438).
O embate contra a autoridade eclesiástica e civil dos Stuarts encontra em Jean Calvino
um forte suporte, vez que de seus escritos se deduz a doutrina evangélica da liberdade
cristã, ou seja, a religiosidade fica a cargo de Deus e uma não igreja específica - a
congregatio - o que implica questionar a interpretação e prática religiosa defendida
pela igreja oficial (anglicana). Tratar-se-ia da passagem do princípio da interpretação
institucional para a interpretação individual da Escritura em que cada um fica livre de
seguir sua própria vocação fora de qualquer controle:
[...] o homem não tinha obrigação perante qualquer governo que procurasse controlá-lo para qualquer outro fim que não fosse o seu benefício, e a ideia de auto-suficiência significava que o homem não tinha necessidade de qualquer governo que procurasse controlá-lo por outro fim que não fosse seu próprio benefício - ele era capaz de fazer isso por si mesmo (Wollheim, 1990: 96).
Calvino segue a máxima paulina que todo poder vem de Deus, os magistrados sendo os
delegados d’Ele na terra, como se lê, por exemplo, em Instituto christiano religioni: os
reis obtêm seu poder da providência e da sagrada ordenação de Deus. Mas seguindo a
tradição tomista defende também que o poder político provém dos homens de forma
imediata enquanto o princípio do poder vem de Deus de forma mediata. Tal postura
significa que o povo pode assumir uma dupla atitude - de submissão ou resistência:
É verdade que a condenação de Calvino à resistência não é absolutamente inflexível, e parece um tanto exagerado sugerir [...] que essa posição não concede “direito algum contra o magistrado” [...] Calvino, em todos os momentos, é mestre da ambiguidade e, embora não haja dúvidas de que endossa uma teoria da não-resistência, na prática introduz várias exceções em sua argumentação (Skinner, 1999: 468).
Com base nesta observação podemos dizer que Calvino toma partido também em
favor da desobediência ao sustentar que diante do exercício arbitrário do poder este
pode ser destituído e ficar em mãos de autoridades legitimamente constituídas para a
defesa do povo: se existem magistrados, declara, não é minha intenção proibi-los
4
quando agem em conformidade com seu dever, mas também resistir quando o furor
dos reis e suas ofensas vão contra os interesses do povo. Direi, continua, que tal
atitude constitui uma infame traição de seu juramento. Eles estão traindo o povo e
lesando-o naquela liberdade cuja defesa sabem ter-lhes sido ordenada por Deus
(Calvino, 1995: 127; 136).
Seguindo Vindiciae contra tyrannos, de inspiração calvinista, aparece a mesma ideia: a
desobediência ao soberano tirânico. A este respeito, vale reproduzir uma passagem
dessas Reclamações: Há uma obrigação mútua entre o rei e o povo. Se o príncipe não
mantém sua promessa, o contrato fica rescindido, e o direito de obrigar se anula. O
povo que nomeou o rei e que com seus votos aprovou sua eleição tem o direito de
resistir ao tirano. Ou, ainda, o famoso panfleto do século XVI, Antuérpia, também de
inspiração calvinista, que legitima a desobediência ao tirano nos seguintes termos: Deus criou os homens livres e deseja que sejam governados justa e corretamente, não arbitrária e tiranicamente. Por isso não deu a um único homem deste mundo permissão para fazer o que quiser nem declarou que houvesse alguém isento de punição. Estabeleceu sua Vontade como uma única regra da justiça. Por este motivo, o povo e os Estados das províncias comprometem o rei ou senhor que instalam no poder e o obrigam a condições que julgam úteis para o país. Está claro, portanto, que o rei não é proprietário das províncias, pois, se o fosse, todos nós seríamos não-livres e escravos, todas nossas posses, nós próprios e nossas famílias pertenceríamos ao rei como um cavalo ou uma vaca pertencem aos seus proprietários [...]. Pela lei, portanto, direitos e poderes régios são definidos da seguinte maneira: o povo do país escolheu o rei e a ele confia seu poder, sob as condições costumeiras existentes no país [...] se o rei se tornar um assassino em vez de pai, um açougueiro em vez de pastor, um tirano em vez de príncipe, o povo não mais está obrigado a obedecer-lhe (Chauí, 2003: 265-266).
A doutrina calvinista como prática secular faz com que as instituições hierárquicas
percam significado social. Nesse processo, o de secularização, a religião deixa de fazer
parte da esfera global, cosmocêntrica, que envolve o indivíduo, para fazer parte da
esfera individual, antropocêntrica, que liberta o indivíduo. Ou seja, a religião se retira
para o mundo subjetivo e se converte numa das interpretações da vida que o indivíduo
tem a seu dispor. Tal mudança traz como consequência a inserção do indivíduo no
mundo com seus direitos inalienáveis (Paiva, 2003: 24). Aspecto este que é destacado
por líderes puritanos da época (Milton, Pym) e, também por John Locke que, com sua
teoria dos direitos naturais, contribui para afirmar a existência do indivíduo no mundo.
Neste contexto, cumpre destacar a importância da doutrina da predestinação, “o mais
característico dos dogmas do calvinismo” (Weber, 2004: 90), segundo a qual Deus teria
escolhido certas pessoas para à salvação tão só pela força da fé e condenado outras ao
eterno inferno ou danação sem consideração de sua fé nem de suas obras, contudo, os
escolhidos tinham que dar sinais a Deus em resposta à graça concedida, não para obtê-
la, uma vez que concedida era impossível perdê-la. Quanto aos sinais diante de Deus,
que permitem com maior segurança ao crente sua pertença aos predestinados, eles se
fundam na prática da vida cristã e no Antigo Testamento que, segundo Calvino, propõe
5
como sinais muito claros da escolha de Deus, o êxito na vida temporal ou, segundo
estudiosos, o calvinista encontra nos negócios o sinal da graça e da predestinação de
Deus (Prieto, 1996: 273).
Um dos efeitos da doutrina da predestinação é que deixa “no indivíduo um sentimento
de inaudita solidão interior”. “Ninguém pode ajudá-lo”. “Nenhuma Igreja”. A relação
do calvinista com Deus se dá no isolamento. Contudo, tal situação não implica da parte
de Deus não querer do cristão uma obra social neste mundo:
O trabalho social do calvinista no mundo é exclusivamente trabalho in majorem Dei gloriam (para aumentar a gloria de Deus). Daí por que o trabalho numa profissão que está ao serviço da vida intramundana da coletividade também apresenta esse caráter (grifo do autor) (Weber, 2004: 99)
Estes aspectos da doutrina da predestinação são relevantes para mostrar como se foi
forjando, nos fiéis escolhidos, os puritanos calvinistas ingleses, uma moral do esforço
centrada no trabalho, numa disciplina impecável de vida sóbria e metódica. Tratar-se-
ia do “protestantismo ascético” do qual fala Weber em A ética protestante e o espírito
do capitalismo.
A este respeito, vale lembrar que um dos sentidos da palavra puritano significa praticar
para si mesmo uma moral estrita, austera, uma disciplina rigorosa que se estende ao
costume, à vida sexual, aos negócios, ao trabalho Este último tido como um dever
religioso: a melhor forma de cumprir neste mundo a vontade de Deus (Pierucci, 2004:
280) 5.
Tal comportamento pode ser observado, na Inglaterra revolucionária, nos grandes e
pequenos comerciantes e proprietários de terras, membros da gentry6, que encontram
no calvinismo uma ética que prega a autodisciplina e, que não viam nada de ruim, em
5 Aspecto este, destacado também em Cândido: a felicidade, o “cultivo de nosso jardim”, que passa pela redenção ao trabalho que afugenta três males: a pobreza, o tédio e o vício (Voltaire, s/d.:136) 6 A gentry era a pequena nobreza, nobilitas minor, que se distingue da nobilitas maior ou grande
nobreza. A gentry era formada pelo gentlemen, o que definia um gentleman era o fato de só trabalhar, segundo Peter Lasllet, com as mãos em atividades recreativas, nunca para o próprio sustento, para ser gentleman bastava estar disposto a comprar uma propriedade rural (Stone, 2000: 300). Cumpre destacar que a ascensão desta classe social deveu-se à política de enclosure ou cercamento de terras que teve seu auge no século XVII. Esta política implicou a divisão de terras em propriedades privadas - anteriormente comunais - à qual todo habitante de uma aldeia tinha direitos não excludentes de pastagem ou de plantio. Nessa divisão seguia-se a proporção de terras que cada beneficiário já possuía como propriedade, de modo que os mais ricos (membros da gentry) ganhavam mais e os mais pobres não só nada recebiam, como ainda perdiam todo e qualquer direito à terra (Hill, 1987:37) ou, na opinião de outros autores: o cercamento de terras implicou a redução da agricultura dos pobres e a expansão dos rebanhos pertencentes aos mais ricos. Ela correspondeu à necessidade de aumentar a área de pastagem, com o crescimento do comércio da lã, o que levou ao surgimento de novos tipos de proprietário rural (gentry) e à expulsão dos pequenos agricultores (yeoman).
6
contraste com o catolicismo, desenvolver atividades lucrativas através da prática do
empréstimo: Enquanto a Igreja Católica proibia seus fiéis de emprestar dinheiro com algum retorno, por considerar a prática sinônimo de agiotagem, o reformador distinguiu claramente uma coisa da outra. Para ele, os empréstimos para produção poderiam gerar um lucro limitado a 5% da soma investida, para não deixar o devedor enforcado. Em contrapartida, Calvino condenava o empréstimo para o consumo, que julgava imoral [...] O reformador tinha assim confiança no homem que, autorizado a emprestar dinheiro, estava em posição de agir de maneira individual, de acordo com sua responsabilidade perante Deus e sua palavra contida na Bíblia (Garrison, s/d: 58-59).
Empréstimo, lucro, etc, caracterizam o puritanismo ascético que proíbe o consumo de
luxo, o uso irracional das posses mas, cumpre reiterar, que valoriza a riqueza como
fruto do trabalho para os fins vitais do indivíduo e da coletividade (Weber, 2004: 155-
156).
A salvação pelo exercício da fé contém um forte componente individualista, ou seja, a
independência do julgamento moral através do qual o problema da salvação torna-se
uma questão privada. O julgamento do puritano faz com que condene como imoral
toda autoridade que abuse do poder no âmbito religioso: o objetivo do indivíduo-
crente é o de aperfeiçoar-se moralmente até o ponto de saber efetivamente, e cada
um por si, o que é bom e o que é mau, cada indivíduo torna-se juiz - o que significa
questionar toda determinação heterônoma (civil ou eclesiástica) que contradiz sua
autonomia moral (Koselleck, 1999; 16).
Sendo assim, a exigência de autonomia moral contribui para separar poder temporal e
poder espiritual. A Espada e a Palavra, apesar de necessárias, são distintas, a espada
não tem poder para assuntos da fé, não pode obrigar a crer, porque se trata de um ato
pessoal e íntimo devendo limitar-se apenas a castigar os que violam a lei civil.
A superioridade moral do puritano diante das autoridades instituídas era colocada, na
época Stuart, nos seguintes termos: deus onipotente na sua presciência, e antes que eu
pudesse operar o bem ou o mal, escolheu-me para ser seu filho, predestinando-me à
salvação eterna. Tal atitude faz do puritano um homem obstinado, seguro da retidão
moral de sua causa, que não se dobra facilmente às ordens das autoridades oficiais.
Por isso, a superioridade moral, baseada na doutrina da predestinação, era
considerada pelos monarquistas perigosa por estar na origem da rebelião (a Guerra
Civil).
Podemos dizer que com o puritanismo a salvação converte-se num bem privado, mas
com repercussão no âmbito político. De fato, o crente ao ler as Escrituras estabelece
uma relação direta com Deus sem passar por outra mediação que reivindique neste
mundo o acesso ao outro mundo. Sendo assim, a fé e a graça, tidas como privadas,
7
representam um ataque contra a autoridade eclesiástica e suas práticas tradicionais e,
também contra a autoridade civil na medida em que o monarca, supremo chefe da
Igreja, era a garantia da última Palavra.
Sobre o poder do monarca na época, cabe fazer referência à natureza geminada do rei
de Ernest Kantorowicz: um corpo humano, natural, mortal e um supercorpo,
sobrenatural, imortal, exemplificada em fórmulas do tipo - deus imago reis, reis imago
dei; a deo rex, a rege lex. A segunda natureza, o supercorpo do rei, que se coloca fora
ou por acima do reino, pode ser ilustrada no discurso de Jaime I Stuart diante do
Parlamento inglês em 1610:
Os reis são com razão chamado deuses porque exercem um poder que é assemelhado ao poder de Deus sobre a terra. Porque se vós Lordes considerardes os atributos de Deus, vós vereis como eles se adéquam à pessoa do rei. Deus tem poder para criar ou destruir, para fazer e desfazer conforme lhe aprouver, para dar vida ou enviar à morte, para julgar e para não ser julgado nem responsabilizado por ninguém [...]; e a Deus são devidos corpo e alma. Poderes semelhantes têm os reis: eles podem fazer ou desfazer seus súditos; têm o poder de elevar e deprimir; de vida e morte; são eles juízes de todos seus súditos e em todos os casos, sem serem responsáveis ante ninguém, exceto Deus. E tem poderes para exaltar as coisas baixas e rebaixar as altas, assim como o de tratar os súditos como os homens às peças de um jogo de xadrez: um peão toma um bispo ou um cavalo [knight]. E também pode valorizar ou depreciar seus súditos como faz com o dinheiro. E ao rei é devida tanto a afeição da alma quanto os serviços dos corpos de seus súditos (Torres, 1989: 288-289).
O puritanismo, segundo o historiador inglês Lawrence Stone, representa uma forma de
antimonarquismo e, isso pelo fato de que inculca um sentimento de certeza quanto à
retidão da causa oposicionista e de indignação moral face à maldade das autoridades
constituídas. Prova disso, o grupo puritano dos independentes ou congregacionistas7
para o qual a igreja não se define pela hierarquia clerical, mas como comunidade ou
congregatio dos fiéis, e acredita que o indivíduo sozinho pode salvar-se em sua relação
direta com Deus. Tal atitude fortalece a ideia da independência do julgamento moral,
baseada na liberdade de credo e prática religiosa sem mais necessidade de contar com
o aval das autoridades instituídas. É a consciência individual que interpreta e aplica a
autoridade religiosa suprema - o texto sagrado, lido na congregatio (Prieto, 1996: 265).
7 Os independentes ou congregacionistas, a ala “esquerda” na Câmara dos comuns, defendiam a total
separação da Igreja e Estado, assim como a autonomia religiosa da congregação dos fiéis nas paróquias. Acreditavam que os cristãos podiam formar uma igreja, ordenar seu clero e estabelecer um culto reformado, sem necessidade de autorização dos magistrados. Contestavam o establishment anglicano e, o autoritarismo presbiteriano. Os ministros deviam ser eleitos pela congregação dos fiéis e pagos por contribuições voluntárias. Negavam qualquer forma de clero separado da massa dos crentes e, acreditavam que leigos preparados deviam pregar aos domingos, depois de trabalhar nos seis dias da semana. Defendiam a tolerância das seitas protestantes e, uma disciplina interna às congregações sem o aval de nenhuma sanção coercitiva. Atribuíam pouca importância aos sacramentos praticados pela igreja anglicana e, se opunham a que possa moldar a opinião segundo um padrão único: punir o pecado ou proibir a heresia. Dentre outros grupos puritanos encontravam-se também os presbiterianos, a ala “direita” na Câmara dos comuns, que eram contrários à supremacia régia na igreja e ao controle do Parlamento em matéria religiosa querendo com sua igreja, a presbiteriana, ter o monopólio da religião.
8
A Revolução Puritana, segundo Christopher Hill, foi uma revolução bíblica porque o
texto sagrado é utilizado para expressar uma oposição política e revolucionária contra
o governo Stuart e, estimula o combate: “A Bíblia é uma guerra civil feita à pena, mas
que, logo após, desembainha sua espada” (a Guerra Civil), segundo expressão do
teólogo anglicano Hooker. Acompanhando o historiador inglês podemos dizer também
que a tradução da Bíblia ao vernáculo representou uma mudança cultural importante:
a mensagem bíblica a pessoas recém-alfabetizadas com apetite não só de instrução
religiosa, mas também de aperfeiçoamento moral e intelectual fez que se convertesse
em propriedade de todos os leigos alfabetizados e que pregadores estendessem seu
conhecimento a todos os níveis da sociedade. A Bíblia era algo mais do que um livro
religioso, ela permeia todas as esferas da vida intelectual e social. E arremata: “Pelo
fato de a Igreja e do Estado serem uma unidade, a religião tornou-se política e a Bíblia
se transformou em um texto útil para ambas as esferas” (Hill, 2007: 83).
Sobre a importância da leitura da Bíblia convém trazer a opinião do filósofo inglês
Francis Bacon quando assinala, no decorrer da revolução, que as práticas puritanas
foram executadas por inovação na religião e por impostos. Tal afirmação pode ser
interpretada no sentido da propriedade ser tida como essência da liberdade religiosa:
dizer que algo é propriedade de um homem, afirma o autor, é dizer que a propriedade
não pode ser tirada sem consentimento e que apropriar-se desta maneira é roubar, é
transgredir o Oitavo Mandamento (na versão protestante). Esta posição, que liga
propriedade e liberdade, é relevante porque mostra uma concepção racional da
religião que agrada aos puritanos calvinistas, notadamente aos membros da gentry,
que defendiam o brocado jurídico: “não existe taxação (à propriedade) sem
consentimento (do Parlamento)”. Tal aspecto, a relação entre propriedade e liberdade,
sendo também destacado, como veremos, por Locke.
Quando a Bíblia deixa de ser reservada a uma elite instruída acessível apenas àqueles
que tinham educação e conheciam o latim, quando passa a ser, segundo o escritor
inglês Daniel Defoe: um texto/impresso que fala a todos ou, ainda, segundo Thomas
Hobbes: quando a Bíblia se converte num texto em que qualquer rapaz ou rapariga
aprende a ler e acha que se comunica diretamente com Deus; isso traz como
consequência que muitas pessoas comuns decidam por si mesmas a não crer mais no
que a igreja oficial diz. Tal situação levando bispos anglicanos da época a proclamar,
com razão, que o amplo acesso às Escrituras conduz inevitavelmente à maior audácia
das pessoas: uma exigência por mais liberdade com base na religião.
Cumpre destacar que a leitura da Bíblia não ficou limitada aos membros da gentry,
mas se estendeu a setores inferiores e radicais da sociedade inglesa. A insistência
puritana na alfabetização popular para permitir a leitura das Escrituras, destaca Stone,
9
acabam por politizar os yeomen e artesãos urbanos, a consequência disso, acrescenta,
foi à torrente de petições de massa, frequentes motins e a emergência de movimentos
radicais que caracterizaram a década de 1640 8.
No momento duro da Revolução Inglesa (a Guerra Civil) membros do puritanismo se
convertem em porta-vozes da oposição à monarquia Stuart. Assim, por exemplo, o
“cabeça redonda” John Pym9 que dirige o Parlamento no início da década de 1640 e
tem destacada atuação na Grande Reclamação10. Puritano fervoroso, do grupo dos
independentes, dirige um discurso no Parlamento, em que se opõe ao homem forte no
plano secular de Carlos I, o conde Strafford, nos seguintes termos: A lei é a fronteira entre as prerrogativas do rei e as liberdades do povo. Enquanto ambas se movem dentro de seus próprios âmbitos, proporcionam apoio e segurança umas às outras, mas quando as prerrogativas do rei oprimem as liberdades do povo transformam-se aquelas em tirania, e quando as liberdades anulam as prerrogativas daquele desenvolve-se a anarquia (Zipelius, 1971: 163).
A atitude de Pym representa uma crítica aos abusos praticados pelo Estado absolutista
que, mediante a praerogative regis e tribunais eclesiásticos, viola direitos e liberdades
dos ingleses. Tal intervenção pode ser interpretada como a necessidade de instaurar o
rule of law na medida em que se todos respeitam a lei se consegue viver em segurança
e liberdade. Além do mais, a posição de Pym visa a separação do religioso e do secular,
ao admitir que o problema da salvação é uma questão privada e, também a tolerância
mas com limites, uma vez que o exercício de prática religiosa devia dar-se no marco da
lei sem afetar a ordem social.
A posição de Pym é importante porque na sua defesa do direito de liberdade de credo
e prática religiosa apela à figura abstrata do indivíduo portador de uma consciência e
capacidade de julgamento moral que lhe é inerente e, isso como base na doutrina do
direito natural, o jusnaturalismo, como acontece também com outros representantes
do puritanismo inglês, John Milton e, notadamente, John Locke.
8 Dentre dos grupos radicais, cabe citar os “Niveladores” (Levellers) (to level: nivelar) assim chamados
porque pretendiam nivelar as diferentes condições sociais. Defendiam que a soberania real devia ser transferida para a Câmara dos comuns. Seu programa de reforma fazia a defesa da população pobre da cidade e do campo, exigia a completa igualdade dos homens perante a lei, a abolição dos monopólios comerciais, dos dízimos e, a plena liberdade religiosa. Também os “Cavadores” (Diggers) (to dig:cavar), que, instalados num terreno não aproveitado (1648), preparavam a terra para a semeadura - numa espécie de reforma agrária feita espontaneamente. Formados de camponeses defendiam a abolição da propriedade privada no campo e o estabelecimento de uma sociedade corporativa. E, da mesma forma que o primeiro grupo, defendia a liberdade religiosa. 9 Em inglês roundheads (cabeça redonda): termo pejorativo que nomeava os defensores do Parlamento
que se opunham aos cavaliers ou realistas, nobilitas maior, favoráveis à monarquia Stuart. 10
A Grand Remonstrance (1641) foi uma exposição de queixas contra o rei Carlos I pelos atos ilegais praticados contra a Câmara dos comuns.
10
A liberdade exigida pelos puritanos calvinistas recebe, depois, com Montesquieu, o
nome de liberdade política. Esta liberdade tira sua fonte daquele conceito, de cunho
liberal, segundo o qual a liberdade é o poder de fazer, agir ou escolher de acordo com
as inclinações ou desejos pessoais sem sofrer ingerências de terceiros.
A partir desta concepção: ser livre é não sofrer interferências externas, reconhecendo-
se que quanto mais ampla for a área de não interferência maior é a liberdade. Ser livre
consiste em resolver um problema prático: até onde o governo pode interferir na área
na qual cada um pode atuar livremente? Resposta: na menor quantidade possível. Ou,
como dirá Montesquieu, com base no governo moderado que resulta da Revolução
Gloriosa na Inglaterra (1688), a liberdade política consiste em ninguém estar obrigado
a fazer alguma coisa que a lei não ordene. É a lei que determina o que se pode ou não
fazer, contudo, como preza todo liberal, ela não existe para interferir nas atividades ou
opções do indivíduo, mas para resguardá-lo de ingerências arbitrárias.
A liberdade política corresponde a uma concepção liberal da liberdade, uma vez que
ela consiste, parafraseando ainda Montesquieu, não apenas no direito de encontrar-se
em segurança, mas também, como diz em Espírito, no direito de cada um manifestar o
que pensa, de publicar tudo o que as leis não proíbem, etc. Assim, se depreende dessa
definição que a liberdade, quando levada ao campo político, implica o direito de todo
indivíduo manifestar livremente suas opiniões em segurança legal - o que supõe, por
sua vez, o governo da lei (rule of law).
Reivindicação esta que, antes de Montesquieu, está presente, como vimos, em John
Pym com sua férrea defesa do direito de credo e prática religiosa e, também em John
Milton, outro importante representante do puritanismo inglês.
O que importa destacar deste “panfletário da revolução”, do seu Areopagítica, um dos
“maiores documentos da história da liberdade”, é a defesa do direito de liberdade de
expressão e, isso porque do confronto de opiniões sobre o que é certo ou errado é
possível não só o avanço do conhecimento, mas também o desenvolvimento moral do
indivíduo. O triunfo da censura, pelo contrário, é a servidão.
De fato, para Milton, todas as opiniões, todos os erros, conhecidos, lidos e comparados
são de grande valia, pois contribuem à obtenção da verdade, sendo assim entende que
a medida do Parlamento que impôs a censura a seus escritos constituía uma limitação
ao conhecimento: esse ato, declara, serve para desencorajar todo e qualquer estudo,
ele dificulta as descobertas que podem ser feitas no campo do saber. Mas também tal
ato é criticado, do ponto de vista moral, já que para Milton: a pluralidade de opiniões
permite chegar a uma opinião mais apurada sobre o bem e o mal. Assim, a liberdade
de expressão é importante pelo efeito salutar que traz tanto no campo moral quanto
do conhecimento:
11
Se o conhecimento e o exame do vício (do mal) são, neste mundo, tão necessários à formação da virtude humana; e se é preciso escrutar o erro para a confirmação da verdade, como fazer para explorar mais seguramente e sem maiores riscos os domínios do pecado e da falsidade, senão lendo toda e qualquer espécie de tratados e ouvindo os mais variados argumentos? (Milton, 1999: 93).
No seu pleito em favor da liberdade de expressão e opinião Milton invoca a razão de
origem divina e as liberdades cristãs: “Dai-me a liberdade, afirma em Areopagítica,
para saber, para falar e para discutir livremente de acordo com a consciência acima de
todas as liberdades”. O panfleto miltoniano é importante porque se converte num dos
principais documentos dos grupos mais radicais da revolução: os independentes, a que
pertencia. O que Milton deseja é uma reforma radical que liberte a palavra de todas as
restrições sendo que a intervenção da autoridade civil deve ser mínima, por exemplo,
quando a liberdade de expressão é difamatória, o ofendido deve ser ressarcido.
Completando a contribuição de Milton ao liberalismo inglês cabe mostrar a relação dos
direitos individuais com a forma de governo. Este ponto é relevante porque coloca em
debate questões muito caras à atmosfera intelectual da época: governo misto/
moderado e liberdade individual, sendo que a posição do autor não é unívoca já que o
governo misto pode verificar-se sob a monarquia ou a republica. Como exemplo da
primeira posição cabe citar o comentário que aparece em Of reformation in England
(1641) quando elogia a comunidade da Inglaterra baseada na monarquia: Não há governo civil conhecido dos espartanos nem dos romanos, que seja mais divina e harmoniosamente afinado, mais equitativamente equilibrado, qual se o fosse pela mão e a escala da justiça, que o da comunidade da Inglaterra, onde, sob um monarca livre e sem travas, os homens mais nobres, mais dignos e mais prudentes com plena aprovação e sufrágio do povo têm em seu poder a suprema e final determinação dos mais altos negócios (Berns, 1992: 418).
No entanto, com base na experiência absolutista Stuart, critica esta forma de governo.
Tal mudança contradizendo o que afirma em várias oportunidades: Inglaterra não deve
seguir experiências políticas alheia à sua tradição (a monarquia). Assim, instaurada a
República (1649-1658), onde exerce funções de governo, Milton encontra razões para
rejeitar a solução do governo misto sob a forma monárquica e adere à república:
E aqui não posso fazer menos que me congratular com a fundação deste estado [misto] com não menor prudência e liberdade das que empregaram os excelentíssimos antigos romanos e gregos; e de igual modo eles, se têm algum conhecimento de nossos assuntos, não deixaram de felicitar-se da sua posteridade, que, estando quase reduzida à escravidão, resgatou, no entanto, com tanta prudência e valor aquele estado (a república), tão sabiamente fundado com tanta liberdade, do despotismo iníquo de um rei (Sabine, 1984: 376).
Esta posição pode ser reforçada em outros escritos do autor em que dá curso à ideia
da necessidade de se instaurar um Estado livre, ou seja, uma comunidade sem rei - a
república:
12
E se o povo, deixando de lado preconceitos e impaciência, considerasse agora com seriedade e calma seu próprio bem, ao mesmo tempo religioso e civil, sua própria liberdade e único meio de se chegar a ela, e escolhesse homens não adeptos a uma só pessoa (o rei) ou câmara dos lordes, a tarefa estaria cumprida, pelo menos se teria assentado as bases de uma comunidade livre, e também se haveria levantado boa parte da estrutura principal (a monarquia) (Berns: 1992: 419).
A opção de Milton pela república leva ao abandono de soluções insulares (monarquia):
“os cidadãos ingleses devem ser guiados por obras estrangeiras e pelos melhores
exemplos da história” (em alusão as repúblicas do passado). Entende que o nome de
reis sempre foi odiado pelos povos livres e, diante do fracasso da República (1658) e a
Restauração monárquica (1660-88), declara:
Numa república livre, aqueles que são os mais importantes, são os servidores perpétuos, as bestas de carga do público que levam em suas próprias costas e esquecem seus próprios assuntos; além do mais, não se encontram em posição de superioridade em relação a seus irmãos, vivem sobriamente com suas famílias, andam na rua como quaisquer outros homens, se lhes pode falar livremente, familiarmente, sem adoração. Por sua vez, a um rei deve-se adorá-lo como um semideus, que está cercado de uma corte licenciosa e altaneira, muito dispendiosa, luxuosa, de máscaras e de diversões, que levam à corrupção de nossos verdadeiros nobres; e tudo isso para se mostrar continuamente no meio de obséquios e de atitudes servis de um povo humilhado (Burns, 1997: 415-416).
Cumpre destacar que ao abraçar teses republicanas Milton se afasta da doutrina dos
direitos naturais, uma vez que o republicanismo defende que os direitos resultam de
uma prática concreta, histórica, como experimentada pela república antiga (Roma) e
renascentistas (Florença e Veneza). Contudo, no intento de encontrar uma forma de
governo moderada, o governo misto, que seja respeitoso da liberdade individual
adere, em definitivo, a teses jusnaturalistas: “Ninguém, afirma, que saiba algo pode ser
tão estúpido que negue que todos os homens nascem livres”.
O objetivo dos líderes puritanos (Pym, Milton) era defender os direitos dos indivíduos
contra práticas abusivas dos primeiros Stuarts (Jaime I e Carlos I) e, sendo assim não
cabe dúvida de que ambos contribuem para reforçar a ideia de que a revolução “não
veio para coagir as pessoas a um modelo de opinião em política e religião, mas para
dar liberdade sob e pela lei” (o rule of law) (Trevelyan, 1982: 5).
A consolidação dos direitos e liberdades individuais diante do abuso do poder dos
Stuarts, exigia, ainda, um corpo de ideias sólido capaz de estabelecer definitivamente
os fundamentos gnosiológicos desses direitos. Ou seja, faltava a contribuição do “mais
eloquente dos primeiros porta-vozes do individualismo liberal”, o filósofo John Locke
que, para tal empreitada apela à doutrina do direito natural, o jusnaturalismo, o que
leva a ignorar àquela tradição do pensamento político inglês, o conservadorismo, que
fundava os “direitos dos ingleses” a partir da ancient constitutio:
13
(...) a atitude que consiste em se esforçar em compreender as questões políticas inglesas a partir da história do direito inglês era comum a quase todos os homens instruídos do século XVII, a tal ponto que a descoberta de um indivíduo que escapasse à regra era algo bastante raro. Locke parece no entanto ser a exceção (...) entre os grandes autores políticos da época (Pocock, 2000: 296).
Prova disso, em contraste com os defensores da antiga constituição, é que do corpo de
ideias de Locke existem direitos naturais e não só para os ingleses; bem como que a
origem do direito não é o costume, mas a razão; que a legitimidade do governo não
provém da história, mas do acordo dos homens, etc.
Sendo assim, nos deteremos no modo de pensar do filósofo inglês, uma vez que de seu
modelo teórico os direitos naturais adquirem um sólido fundamento moral e racional
que, na prática, se traduz pelo exercício do direito de liberdade religiosa e pelo direito
de propriedade, muito caros à ética puritana calvinista centrada, como vimos, no valor
do indivíduo (supra).
A figura de Locke está associada aos eventos revolucionários do final da década de
1680 na Inglaterra. Porém, um exame mais cuidadoso, como o do historiador inglês
Peter Laslett, mostra que o escrito sobre o Governo não teve a influência que muitos
lhe atribuem: nem nos trabalhos da convenção que elabora a declaração de direitos de
1689, nem nos eventos que a antecedem. As questões abordadas no texto (lei natural,
direitos naturais, origem do governo) devem ser buscadas num período anterior, 1679-
83, quase uma década antes da data tradicionalmente atribuída à composição da obra
(1689). Assim, conclui Laslett, o escrito sobre o Governo não pode ser considerado um
panfleto da Revolução Gloriosa (1688).
Tal interpretação contradiz a opinião de historiadores que destacam a influência desta
obra nos eventos de 1688: apesar do texto ser elaborado por volta de 1681, afirmam,
isso significa que era uma pièce d’occasion diferente, isto é, uma obra escrita não
depois do evento para justificar uma revolução mas antes para promovê-la. Esta
opinião é reforçada com base na assertiva de que o escrito sobre o Governo é um texto
clássico da política calvinista liberal, uma justificativa da revolução de 1688, com sua
tendência em favor dos puritanos, Locke converteu-se no representante da teoria whig
do contrato de governo e defensor da tolerância. No escrito lockeano, concluem
estudiosos, aparecem princípios calvinistas: a sociedade é natural e o contrato de
governo é realizado com a principal finalidade de garantir os direitos naturais. E, ainda
na mesma linha:
Na Inglaterra de 1690, data na qual aparecem os Tratados do governo civil delineia-se um novo equilíbrio de forças e Locke foi o teórico [...] ele vai teorizar esse novo mundo burguês dos proprietários que tem necessidade de ordem, mas que não está decidido a abandonar tudo nas mãos do soberano. Contra as pretensões da monarquia absoluta, ele defenderá sempre os
14
direitos e o lugar da sociedade civil [...] para Locke trata-se de conciliar os direitos da liberdade e a necessidade da ordem (Vedrine, 1982: 43-44).
Tais interpretações que destacam a influência de Locke na Revolução Gloriosa, em
oposição à tese de Laslett que vai ainda mais longe e até questiona os eventos de 1688
-89 como um triunfo liberal (whig), não exime, portanto, de considerar o filósofo inglês
o principal expoente do liberalismo clássico e o principal precursor do jusnaturalismo
e, isso tanto para os contemporâneos quanto para “posteridade” como reconhece,
aliás, o próprio historiador.
Entender os eventos dessa época sob o conservadorismo (tory), como acredita Laslett,
não impede de justificar sobre novas bases teóricas, jusnaturalista e contratualista, as
mudanças que se dão com as autoridades protestantes instituídas em 1688 (Guilherme
e Maria) e, também com os direitos consagrados um ano após pelo Parlamento inglês:
o Bill of rights. Fatos estes que o ensaio sobre o Governo pretende “justificar” como se
lê no Prefácio de 1689.
Com base no exposto importa então destacar a influência que teve o ensaio lockeano
para a “posteridade”, um “gigante de importância histórica” como reconhece também
Laslett ou, como sublinham outros autores: o escrito sobre o Governo sinaliza o futuro
e coloca em jogo conceitos que funcionam como indicadores de transformações
políticas e sociais de profundidade histórica (Koselleck, 2006: 101).
A empreinte lockeana pode ser observada não só na justificação que faz pos-factum da
Revolução Gloriosa e dos direitos consagrados em tal oportunidade, mas também por
ocasião da elaboração dos principais documentos normativos de direitos humanos que
resultam da revolução nos EUA e França. O modo de pensamento do filósofo inglês,
baseado na doutrina dos direitos naturais, sendo retomado pelos principais redatores
das declarações de direitos nesses países (Thomas Jefferson; o marquês de La fayette,
etc). Em ambos os casos encontramos ideias muito caras às de Locke: os direitos do
homem enquanto princípios originados na natureza racional ou divina; uma teoria
anistórica que serve de fundamento do corpo político - o contratualismo, etc.
Se o Segundo tratado aparece antes dos eventos de 1688, se ele foi recepcionado fora
do país como texto separado, ou seja, a parte mais universalista da obra e não a mais
localista ligada à conjuntura inglesa11, tal “adulteração” deve-se ao rumo iluminista
que esta parte da obra estava destinada a ter: as declarações de direitos nos EUA e
França estão aí para confirmá-lo.
11
O Primeiro tratado relaciona-se a uma questão local, inglesa, ou seja, uma refutação às teses de Robert Filmer que, em Patriarca, contrariamente a Locke, justifica a legitimidade do governo não a partir do consentimento dos governados, trust, mas do “primeiro Pai”, deus, e descendentes (Adão).
15
Assim, por exemplo, o Segundo Tratado que afirma:
O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único, enviados ao mundo por Sua ordem e para cumprir Seus desígnios (grifo nosso) (Locke, 1998: 384-385).
E, o rascunho original da declaração de independência norteamericana elaborado por
Jefferson que diz: “Consideramos essas verdades como sagradas e inegáveis, que
todos os homens são criados iguais e independentes e que dessa criação igual derivam
direitos inerentes e inalienáveis”, bem como a versão final: “Consideramos as
seguintes verdades como autoevidentes, que todos os homens são criaturas iguais
dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis”. No que diz respeito à França
tenha-se em mente a declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 quando
afirma: “a Assembleia nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do
Ser Supremo, os seguintes direitos do homem”.
Da coincidência das frases destes documentos com a passagem citada do Segundo
Tratado resulta uma ambivalência, uma flutuação de sentido acerca da origem da lei e
os direitos naturais: divina ou racional? Este ponto merece atenção se levamos em
conta que se trata de um dos “conceitos mais obscuros” do pensamento político e
jurídico da modernidade: o conceito de natureza (divina ou racional).
Em outras palavras, procurar-se-ia saber se a lei natural é suscetível de demonstração
cientifica ou é uma dádiva divina? Se a lei natural pode ser demonstrada é porque a
existência de Deus também pode ser demonstrada? Tais interrogativas podem ser
melhor elucidadas se consideramos que a lei natural se funda não só “na e pela razão”,
a razão desassistida, mas também “na e pela revelação”, a razão assistida. Trata-se,
então, de saber em que medida Locke pode ser tido como o precursor do “cristianismo
racionalizado”.
Para melhor compreender se a lei e os direitos naturais obedecem à razão assistida, a
razão raisonnée, teísmo, ou à razão desassistida, a razão raisonalisée, deísmo, seria
conveniente abordar a teoria do conhecimento lockeana, mais especificamente os dois
tipos de conhecimento, distinguidos pelo autor, o intuitivo e o demonstrativo.
Esclarecida a fonte da lei natural (racional ou divina) nos deteremos, depois, na análise
do direito de credo de prática religiosa e, isso com base na opinião de que a teoria do
conhecimento lockeana tem como objetivo a luta contra teses anglicanas: o direito do
soberano de impor determinada crença religiosa e forma de conduta moral (Martins;
Monteiro, 1978: X); e, também do direito de propriedade que, vale lembrar, ocupa um
16
lugar importante na reflexão lockeana se levarmos em conta a assertiva do ensaio
sobre o Governo que diz: “o principal objetivo da criação da sociedade civil e do
governo é a conservação da propriedade”.
O empirismo lockeano se opõe ao inatismo das ideias ao sustentar que a mente possui
ideias que provêm da experiência seja mediante a observação dos objetos perceptíveis
ou mediante a observação de nossa própria mente quando esta atua sobre ideias já
recebidas. Em ambos os casos, a mente é equiparada a uma “tábua rasa”. A formação
das ideias (não inatas) se faz então seguindo dois procedimentos: a intuição direta ou
imediata, que se serve de ideias simples, e a demonstração indireta ou mediata, que se
serve de ideias intermediárias.
O primeiro tipo de conhecimento se dá através da percepção sensorial direta ou
imediata de um fato ou da compreensão direta ou imediata de uma verdade. A
condição para que haja intuição é que não existem ideias intermediárias que se
interponham a essa visão direta do conhecimento. Neste tipo de conhecimento, a
mente percebe o acordo ou desacordo entre duas ideias por si mesmas sem
intervenção de outra ideia. Não há, portanto vacilação: dele depende, diz Locke, em
Ensaio acerca do entendimento humano, toda certeza ou evidência.
O segundo tipo de conhecimento, pelo contrário, se dá através da intervenção de
outras ideias, ideias intermediárias, neste caso o conhecimento é imperfeito: a
percepção pela demonstração, destaca no mesmo escrito, mostra-se com diminuição
de brilho com respeito ao conhecimento intuitivo. Neste haveria espaço para dúvidas,
vacilações, uma vez que não é imediato, mas mediato.
Seguindo alguns exemplos do autor: a mente percebe que branco não é preto, que um
círculo não é um triângulo, que 3 é = 1 + 2, aqui, a mente está dispensando qualquer
demonstração, ou seja, a intervenção de outras ideias. Estas proposições são certas,
evidentes, e a mente não tem dúvidas sobre a verdade das mesmas, trata-se do
conhecimento intuitivo que o autor o compara à “fulgurante luz do sol” que se impõe
imediatamente à percepção. A mente é comparada ao olho. Um olho em perfeito
funcionamento percebe, logo, intuitivamente, no “primeiro relance e sem hesitação”:
que as palavras impressas nesta folha de papel são diferentes da cor do papel; que dos
ângulos de um triângulo obtuso e de um agudo, ambos desenhados a partir de bases
iguais, são diferentes, que certos números são iguais ou proporcionais; que o arco de
um círculo é menor do que todo o círculo, etc.
Pelo contrário, no conhecimento demonstrativo a mente percebe o acordo ou não
acordo de qualquer ideia não de forma imediata, mas de forma mediata. Neste caso, a
intuição requer a ajuda da demonstração, ideias intermediárias, a fim de nos revelar as
conexões que existem entre elas. A demonstração, diz Locke, é a consciência não
17
imediata do acordo ou desacordo de duas ou mais ideias, sendo que o emprego de
outras ideias permite mostrar a sua concordância.
O conhecimento que resulta da demonstração exige “tempo e esforço, trabalho árduo
e atenção”, uma vez que a descoberta acontece de forma progressiva, por etapas e
degraus, antes que a mente possa chegar, desse modo, à certeza. A este respeito, cabe
citar outro exemplo do autor: a mente pode conhecer o acordo ou desacordo entre os
ângulos de um triângulo e dois retos, mas não pode fazê-lo por uma visão sensorial
direta e compará-los, porque os três ângulos de um triângulo não podem ser trazidos à
percepção imediatamente e ser comparados com um ou dois ângulos, de sorte que a
mente não tem aqui conhecimento imediato. Em tal situação, a mente se resigna a
descobrir, com a ajuda de outras ideias, outros ângulos com os quais os três ângulos
de um triângulo mantêm igualdade e descobrindo serem esses iguais a dois retos vem
a conhecer sua igualdade a dois retos. Assim, procedendo com base em intuições
sensórias parciais, percepções imediatas sucessivas, passos e conexões necessárias e
inseparáveis entre várias ideias a mente pode demonstrar como se chega a esta
verdade: “os ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos”.
Logo desta um tanto longa digressão acerca dos dois tipos de conhecimento em Locke:
o intuitivo ou direto e o demonstrativo ou mediato, vale indagar o que acontece
quando aplicados ao campo da moral, ou seja, à lei e direitos naturais? Para o autor as
palavras e ideias morais são modos mistos, combinações de ideias, que a mente reúne
mediante sua própria escolha. No entanto, o significado de tais nomes não pode
tornar-se conhecido como o das ideias simples por qualquer apresentação imediata
(figuras da geometria; números da matemática). Sua exposição se dá, então, mediante
relações conceituais.
Pois bem! Assim como os teoremas da geometria ou axiomas da matemática são obras
do homem também o são as proposições morais, que podem ser conhecidas também
cientificamente (a lei natural e os direitos naturais).
Contudo, neste caso, a tarefa é mais difícil, diz Locke, porque não há figuras, números,
facilmente acessíveis à percepção sensorial direta, mas apenas palavras - são estas que
constituem os diagramas (figuras, números) com os quais os nomes se harmonizam ou
não. Assim, no campo da moral, o conhecimento deve lançar mão da demonstração,
ou seja, descrever as várias relações que nossas ideias, as palavras, têm entre si.
Assim, tomando exemplos do autor: “a ideia de propriedade é a de um direito a algo”,
“a ideia de injustiça é a de invasão ou violação desse direito”, logo, “onde não há
propriedade não há injustiça” ou, ainda: “a ideia de governo é o estabelecimento da
sociedade com base em regras ou leis que exigem a submissão a elas”, “a ideia de
liberdade absoluta significa fazer cada um o que for de seu agrado”, logo, “nenhum
18
governo pode permitir a liberdade absoluta”. Nestes casos está sendo aplicado o
método demonstrativo que, através de ideias intermediárias, permite mostrar a
concordância necessária e inseparável que existe entre essas proposições.
Seguindo à terminologia empregada nos documentos normativos do século XVIII e à
empregada por Locke no Segundo tratado, caberia retomar a indagação: a lei natural e
os direitos naturais devem ser tidos como uma dádiva divina ou um ditamen rationis?
As expressões: todos os homens são iguais, todos os homens têm direitos naturais, etc,
remetem a Deus, ou seja, à razão assistida, raisonée, teísmo, ou à razão desassistida,
raisonalisée, deísmo? A resposta parece encontrar-se em ambas as leituras.
A partir da primeira perspectiva, teísta, que acredita na Palavra revelada, a lei natural
se confunde com a lei divina. Neste caso, Deus não é acessível ao conhecimento
racional. Algumas máximas lockeanas servem para ilustrar esta interpretação: o
Infinito é incompreensível; o Infinito em poder bondade e sabedoria; o Infinito sábio
inventor nosso e de todas as coisas. Assim, consideradas tais verdades autoevidentes,
que não precisam do método demonstrativo, infere-se a ideia de um ser supremo que
é, em definitivo, quem determina o certo ou errado, bem como de que somos a Sua
obra e que por isso somos criaturas iguais e racionais.
Em reforço dessa tese, em Racionalidade do cristianismo, Locke afirma que a tarefa de
estabelecer as medidas do certo e do errado é “difícil demais para a razão”, isto é, para
a razão sem revelação, a razão desassistida e, com base neste entendimento pergunta:
como estabelecer a moralidade em todas suas partes e verdadeiros alicerces com uma
luz clara e convincente? Resposta: é preciso um corpo inteiro da lei da natureza divina
que comprove ser a lei natural decorrente de princípios da razão. Pois bem, conclui,
ninguém admitirá que o mundo possui tal corpo antes do tempo de nosso Salvador
(Yolton, 1996: 76).
Com base nesta leitura, a lei natural e os direitos naturais podem ser tidos como uma
dádiva divina que autoriza ou proíbe o que podemos ou não fazer. Trata-se, portanto,
da verdade revelada, de um Deus legislador que determina o justo ou injusto sendo
que nós, criaturas criadas por Ele, recebemos passivamente a lei natural ou divina.
A partir da segunda perspectiva, deísta, que acredita numa religião natural e vê Deus
como força natural, não como vontade legisladora, a lei natural e os direitos naturais
são discerníveis à luz da razão raisonalisée, desassistida e, assim até o mesmo Deus
pode ser objeto de conhecimento. Nossas faculdades, afirma Locke, revelam o ser de
um Deus. Como é possível esta descoberta? Como podemos chegar ao conhecimento
d’Ele? Resposta: mediante a demonstração, ou seja, partindo do conhecimento direto,
intuitivo, de nossa existência, podemos concluir, com o auxílio de outras ideias, ideias
intervenientes, que existe um ser chamado Deus.
19
Locke expõe os diversos passos para provar cientificamente a existência de Deus nos
seguintes termos: “algo existe com percepção e conhecimento intuitivo”, “do nada não
pode resultar algo”, logo, “tem que existir algo, um primeiro ser inteligente, eterno:
Deus existe”. Temos então duas ideias simples e intuitivas e outra ideia, intermediária,
que permite provar a existência de uma força suprema.
De fato, para o autor, o homem sabe mediante certeza intuitiva (sensorial/direta) que
do nada não é possível algo: a existência, o conhecimento, etc, sendo assim, continua
Locke, a consideração de nós mesmos, de nossa existência, de nossa razão, etc, nos
conduz ao conhecimento da seguinte verdade evidente: a de que há um ser eterno
mais poderoso e cognoscente que, parafraseando o autor, se “alguém quer denominá-
lo Deus, não me importa” (Locke, 1988: 177).
Dessa maneira, a lei natural e os direitos naturais se confundem com - pura - razão, daí
as várias passagens do Segundo tratado em que o autor insiste nesta origem: a lei da
natureza é a lei da razão; é nossa razão que promulga para nós a lei da natureza; é
nossa razão que nos faz livre; nascemos livres assim como nascemos racionais; a
liberdade do homem e a liberdade de agir conforme sua própria vontade se baseia no
fato de ser possuidor de razão, etc.
Trata-se, aqui, da razão desassistida, autosuficiente, que, sozinha, por ter descoberto a
existência de um primeiro ser é capaz, de forma ativa, criar a lei natural e os direitos
naturais e, isso em contraste à primeira interpretação, teísta, em que ambos procedem
diretamente de Deus na qualidade do primeiro legislador.
Entretanto, importa frisar que em ambos os casos, intuição e demonstração, a lei e os
direitos naturais são tidos como verdades irrefutáveis, inquestionáveis e, portanto de
alcance universal: para toda a humanidade (erga omnis homines).
A lei natural, que consagra os direitos naturais, liberdade e propriedade, faz de Locke o
precursor do jusnaturalismo pelo fato de admitir que além do direito positivo existe a
lei natural e que esta é superior na medida em que determina o seu conteúdo. Trata-
se de uma concepção substantiva do direito segundo a qual uma norma é válida se é
justa (se está em conformidade com a lei natural e os direitos naturais).
Em reforço disso, vale lembrar algumas premissas do modelo contratualista lockeano:
a origem do poder está no povo; o governo é resultado de um trust (uma relação de
confiança); o poder reside no Parlamento; o monarca é apenas a instância executiva
que cumpre seu papel enquanto mandatário e servidor do povo; e, também, que se o
trust não é respeitado cabe à resistência: o governo é dissolvido e o poder retorna ao
povo. Em relação a este ponto, cabe acrescentar que o “direito de desobediência civil”
dá-se no caso do abuso do poder (o governo não cumpre sua finalidade: o resguardo
20
dos direitos naturais) e, da usurpação do poder (o legislativo é dissolvido ou, alterado
em favor do executivo: o rei) - o que significa que este direito funciona como garantia
última da salvaguarda dos direitos naturais.
Em relação ao direito de liberdade religiosa12 interessa sublinhar a distinção trazida
por Locke entre a dimensão interna e externa, ou seja, aquela relativa à consciência, à
faculdade livre e racional do homem dar-se normas boas e aquela relativa à praxe
concreta, o exercício de prática religiosa. A primeira faz parte da moral, ela diz respeito
à capacidade interna do homem elaborar normas, a segunda faz parte da ética, ela diz
respeito ao comportamento externo na medida em que age conforme a norma moral
(religiosa), ambas sendo complementares: Espaço privado e espaço público não são [em Locke] de modo algum excludentes. Ao contrário, o espaço público emana do espaço privado. A certeza que o foro interior moral tem de si mesmo reside em sua capacidade de se tornar público. O espaço privado alarga-se por força própria em espaço público, e é somente no espaço púbico [a sociedade] que as opiniões privadas se manifestam como lei (Koselleck, 1999:52).
Locke entende que não se deve confundir os “guardiões da alma” e os “guardiães da
paz”: poder espiritual e poder temporal, religião e governo civil, Igreja e Estado. O
primeiro corresponde à esfera religiosa preocupado em cuidar dos bens espirituais, o
segundo corresponde à esfera secular preocupado em cuidar dos bens temporais. Com
base neste dualismo, o governo deve ocupar-se apenas dos bens civis, dos bens deste
mundo, do mundo do aquém, sem nada a ver com os bens do outro mundo, do mundo
do além: Considero necessário distinguir entre as funções do governo civil e da religião, e para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comunidade. Se isso não for feito, não se pode pôr um fim às controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo interesse pela salvação das almas de um lado, e, por outro, pela segurança da comunidade [...]. Quem mistura o céu e a terra, coisas tão remotas e opostas, confunde essas duas sociedades, as quais, em sua origem, objetiva e substancialmente são por completo diversas (Locke, 1978:5;10).
Embora a dimensão interna e externa da liberdade religiosa condigam com a verdade,
a primeira, à diferença da segunda, termina no pensamento. De fato, no que tange à
liberdade de credo religiosa entende que os artigos de fé exigem apenas que se creia
neles e que de nenhum modo podem ser impostos pela autoridade civil e, quanto ao
direito de prática religiosa, que o magistrado não deve proibir que se professem
opiniões em qualquer igreja (congregatio) porque não diz respeito aos direitos civis. A
intervenção da autoridade civil, na prática de credo religiosa, sendo admitida só com
uma finalidade - a manutenção da paz:
12
O direito de credo e prática religiosa não aparece no Bill of rights de 1689, contudo, cabe lembrar que em Cartas sobre a tolerância (1689) o autor defende um princípio correlato a esse direito: a tolerância que fica reconhecido no Ato da abolição da intolerância religiosa (1694).
21
Se um católico acredita ser realmente o corpo de Cristo, o que outro homem chama de pão, isso não redunda em prejuízo ao vizinho. Se um judeu não acredita que o Novo Testamento é a palavra de Deus, em nada altera quaisquer direitos civis. Não cabe, todavia, às leis (civis) fundamentar a verdade das opiniões (dos artigos de fé), mas tratar de segurança e proteção da comunidade e dos bens de cada homem (Locke, 1978: 20).
Segundo Locke, o cuidado da alma pertence a cada homem e, portanto tem que ser
deixado nas mãos de cada um porque é quem melhor conhece o caminho da salvação.
Entende que os homens são mal orientados quando alguém, o magistrado civil, se
arroja o direito de indicar o verdadeiro caminho a seguir, uma vez que não está
preocupado como está cada um em sua salvação. E, em tom tolerante, diz ainda que
ninguém está subordinado por natureza a nenhuma igreja ou designado a qualquer
seita, mas une-se voluntariamente à igreja na qual acredita encontrar a verdadeira
religião e a forma de culto aceitável por Deus. Para Locke, a igreja é uma sociedade
livre e voluntária em que os homens ingressam por iniciativa própria para o culto da
divindade e salvação da alma (argumento este que os puritanos calvinistas endossam
na íntegra) e, isso apesar de ser intolerante com um grupo: Os que negam a existência de Deus (os pagãos) não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo. Além disso, uma pessoa que solapa e destrói por seu ateísmo toda religião não pode, baseada na religião, reivindicar para si mesma o privilégio de tolerância (Locke, 1978: 23-24).
A desconfiança em relação aos ateus não está pelo fato de não terem fé - o que até
podia contribuir contra as práticas arbitrárias da época Stuart -, mas sobretudo que
essa ausência leve a não respeitar a lei natural que, por sua vez, se encontra na base
do conhecimento. A este respeito cabe trazer a opinião de John Owen (dirigente do
grupo dos independentes):
Nós afirmamos que, anteriormente a toda consideração do poder do magistrado e da influência que ele tem sobre os homens ou sobre sua consciência, existe uma determinação superior (baseada na lei natural) do que é verdadeiro e do que é falso (...), do que é o bem e do que é o mal (Ashcraft, 1995:49).
Assim, é em virtude da lei natural que o indivíduo é capaz de determinar o verdadeiro
ou falso, o bem ou mal. Esta observação é importante porque mostra, mais uma vez, a
prioridade absoluta, racional e moral, do indivíduo quando o que está em jogo não é
só a salvação espiritual, mas também o conhecimento. O fato de o indivíduo conhecer
a lei natural permite justificar (além da desobediência às autoridades arbitrárias que
não respeitam os direitos naturais) um aspecto muito caro à tradição do pensamento
liberal: cada um dirigir suas ações conforme a ideia (conhecimento) que tem do bem.
22
A defesa lockeana do direito de liberdade e prática religiosa é relevante porque está na
origem de uma primeira reforma: a religiosa, mas também de uma segunda reforma: a
secular. Da primeira, visto que Locke contribui para arrombar uma jaula de ferro para
cada indivíduo construir a “gaiola” - religião - que deseja, sendo assim Locke privatiza a
salvação ao fazer de cada indivíduo-crente um “sacerdote”, afastando o controle que
tinham as autoridades da época sobre o indivíduo (o epicopalismo Stuart). Da segunda,
visto que Locke contribui para desmantelar o que a primeira reforma deixa em pé: a
própria jaula de ferro - a religião. A palavra-chave da primeira reforma é a liberdade
religiosa, ou seja, cada um trilhar o caminho que leva à salvação eterna enquanto a
palavra-chave da segunda reforma é os direitos do homem, isto é, o direito de todo
indivíduo usar sua liberdade de escolha para decidir que “salvação” (que tipo de vida)
deseja levar assim como o caminho para alcançá-la (Bauman, 2000: 160).
Quanto ao direito de propriedade importa dizer que ocupa um papel central na obra
lockeana já que a sociedade, como vimos, é constituída com a finalidade de garantir
este direito. Tal relevância pode ser ilustrada também na confissão do próprio autor,
um ano antes de sua morte, quando se coloca como o grande teórico deste direito:
“em nenhuma parte encontrei uma descrição mais clara da propriedade do que em
meu livro” - o ensaio sobre Governo.
O direito de propriedade pode ser objeto de duas interpretações: a primeira, ampla,
que inclui o direito à vida, a liberdade e posse de bens para a sobrevivência; e, a
segunda, restrita, que diz respeito à acumulação privada e ilimitada de bens materiais.
Ou seja, o direto de propriedade como direito-meio, relativo, um direito que está em
função de outros direitos tão relevantes quanto à propriedade, que pode ser resumido
na frase lapidar: possuo logo existo13; e, o direito de propriedade como direito-fim,
absoluto, que se encontra na base da acumulação ilimitada de bens, com a introdução
do dinheiro ou a moeda14.
A primeira interpretação destaca o seguinte: ao ampliar o conceito de propriedade
Locke desloca este direito para a psicologia, ou seja, a propriedade sobre a própria
pessoa implica a liberdade para o desenvolvimento do eu, da felicidade ou, ainda, o
direito de propriedade lockeano implica afirmar que o homem é senhor de si - o que
implica defini-lo não apenas como possuidor de direitos exercidos no mercado por
meio de relações contratuais mas também que não se encontra sujeito à vontade de
outro (Ostrensky, 2006: 279). A segunda interpretação destaca o seguinte: os homens
entram em sociedade não para conservar, mas para acrescentar suas posses e isso
13 Segundo tratado: parágrafos 87, 124 e 173; e, igualmente, no Ensaio acerca do entendimento humano, quando se refere à propriedade englobando o direito à vida, à liberdade e à posse - que todos os homens detêm sobre suas pessoas quanto sobre seus bens e, em Racionalidade do cristianismo, quando desdobra o alcance do direito de propriedade à vida, liberdade e bens. 14 Segundo tratado: capítulo 5.
23
porque a introdução da moeda tornou possível a apropriação ilimitada de bens
materiais (Macpherson, 1979: 215).
As leituras que fazem de Locke um “capitalista” ou “socialista” (Laslett, 1998: 115): o
governo como braço protetor da propriedade privada e a acumulação ilimitada de
bens ou, o estado como único proprietário dos bens que os distribui de acordo com as
necessidades têm o inconveniente de serem reducionistas. Sendo assim, é possível
uma interpretação alternativa do direito de propriedade que gira em torno do seguinte
comentário: Locke não comete o absurdo de justificar o desejo de adquirir recorrendo
a um direito de propriedade absoluto, ele defende a propriedade mostrando apenas
que leva ao bem comum, à felicidade ou à prosperidade da sociedade (Strauss, 1986:
211).
O argumento lockeano sobre a propriedade pode ser resumido nos seguintes pontos:
a) as coisas são dadas pela natureza (Deus) aos homens em comum para que as usem
a fim de preservar-se; b) a natureza (Deus) impõe a todos os homens o dever de
preservar-se; c) tudo aquilo que é incorporado através do trabalho tem caráter
exclusivo-privativo. Dessas premissas resulta um fundamento de caráter naturalista/
racionalista ou divino do direito de propriedade fundado por um lado na preservação
da vida e, por outro lado no trabalho15. O autor enumera ainda dois limites morais: a)
ninguém tem o direito de apropriar-se de coisas para deixá-las perecer; b) a
apropriação é legitima sempre e quando o proprietário deixe a outros copossuidores
suficientes coisas para realizarem uma apropriação equivalente.
A primeira leitura, Locke capitalista, o governo como braço protetor do direito de
propriedade individual e ilimitado, sustenta que tais limites morais se perdem com o
aparecimento da sociedade de mercado - o dinheiro ou moeda. É a posição de críticos
que afirmam que o primeiro limite moral é abolido com a aparição da moeda porque a
existência desta contra a qual é possível trocar mercadorias assegura que nenhuma
propriedade será desperdiçada. Ou seja, os bens (as terras) não vão ser desperdiçados
porque da maior produção ou riqueza a ser obtida deles resultará mais moeda, mais
dinheiro e, assim, a possibilidade de adquirir mais bens. E, em relação ao outro limite
moral entendem que fica comprometido, uma vez que o possuidor vai restituir àquela
parcela de bens (terras) aos copossuidores mas descontada a parte para ele sobreviver
e, ter mais riqueza (Macpherson, 1979: 209-232)16.
15
O trabalho, diz Locke no Segundo tratado, dá um direito à propriedade. Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa e a esta ninguém tem direito - algum - além dele mesmo. O trabalho do corpo e a obra das mãos são propriamente dele, qualquer coisa que ele retire do estado com que a natureza a proveu e deixou misturar a ela com seu trabalho, junta-lhe algo que é seu e a transforma em sua propriedade. E acrescenta: sendo por ele retirada do estado comum em que a natureza a deixou, a ela agregou, com o trabalho, algo que exclui do direito comum dos demais homens. Por ser esse, o trabalho, propriedade inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado. 16
Tal situação pode verificar-se no contexto da política de cercamento de terras na Inglaterra em que os membros da gentry, como vimos, são os beneficiados em detrimento do pequeno agricultor (yeomen).
24
A segunda leitura, Locke socialista, o estado proprietário dos bens materiais, sustenta
que a propriedade não pode ser avaliada fora do contexto dos deveres morais -
assinalados pelo autor no Segundo tratado: a) o homem tem o direito de apropriar-se
dos bens porque tem o dever de preservar-se; b) tudo aquilo que o homem adquiriu
sem utilizar enquanto existem outros a quem lhes falta o necessário, constitui uma
usurpação ou roubo. Em reforço desta posição pode ser citada outra passagem do
Ensaio: os deveres que resultam da lei natural (a autopreservação) são mais rigorosos
quando previstos em leis humanas e acrescidos de penalidades. Assim, se depreende
dessas citações que a propriedade está subordinada ao dever de autopreservação
sendo necessário, portanto, uma apropriação coletiva dos bens por parte do estado
que os distribuirá de acordo com as necessidades de cada um.
Contudo, como destacamos, é possível uma leitura alternativa com base no seguinte
argumento: os magistrados têm como tarefa regular o direito de propriedade. Assim,
governo, legisladores, etc, enquanto instância arbitral é a encarregada de interpretar o
que é legitimo ou abusivo na propriedade adotando como fundamento a preservação
da vida e o trabalho.
Desta maneira, o direito de propriedade é um direito-meio, relativo (não absoluto nem
ilimitado), uma vez que está em função da posse de bens para a sobrevivência ou,
como sustentam outros autores: a property lockeana significa que posso atuar como
pessoa na medida em que disponho de um mínimo controle sobre as coisas; a pessoa e
sua propriedade estão estreitamente ligadas ao ponto que o direito natural à liberdade
deve ser considerado em função de ambas (MacIntyre, 1994: 152; 155). Tal controle
sobre as coisas para ser livre exigindo que a pessoa contribua com seu trabalho.
A conclusão a ser extraída, então, é que a propriedade privada dos bens assegura em
melhores condições de que sua ausência (a apropriação coletiva dos bens pelo estado)
do homem gozar de outros direitos tão relevantes quanto à propriedade e, que se um
conflito existe ajustes devem ser feitos, na propriedade, pela instância arbitral, em
favor do gozo de outros direitos. Contudo, enquanto isso não acontecer, Locke deixa
entrever que da propriedade privada é possível obter resultados convenientes para a
sociedade (Strauss, 1986: 215). Tal opinião indo ao encontro do defendido pelo
“protestantismo ascético”: a vida sóbria; a riqueza como fruto do trabalho que serve
para os fins vitais do indivíduo e da coletividade ou, parafraseando Voltaire: o trabalho
que serve para afastar três males: a pobreza, o tédio e o vício (supra).
Mais especificamente, no contexto da política do cercamento de terras na Inglaterra,
Locke acredita que a propriedade privada, ligada ao comércio, possa trazer ao longo
prazo benefícios para muitos e não só para os membros da gentry. Tal interpretação
contradizendo a opinião de outros autores segundo a qual a justificativa das enclosures
(que favorece esse grupo) encontra-se no Capítulo quinto do Segundo tratado (Hill,
1987: 37).
25
Para concluir podemos dizer que o puritanismo com sua defesa da liberdade de credo
e prática religiosa contribui para a afirmação do indivíduo, uma vez que o problema da
salvação torna-se uma questão pessoal, privada, diante das autoridades eclesiásticas e
civis que pretendem o monopólio da salvação - o episcopalismo Stuart. Neste sentido,
o puritanismo é uma forma de antimonarquismo, bem como uma força que contribui
para a instauração e consolidação do rule of law, respeitoso dos direitos individuais - o
Bill of Rights (1689).
Sem esquecer também que Locke contribui para o indivíduo tornar-se dono de si, se
levarmos em conta também a ética puritana que valoriza a disciplina, o trabalho, os
negócios, baseada na propriedade privada; e que, segundo uma interpretação otimista
deste direito em Locke: traz resultados benéficos para toda a sociedade (Strauss) em
contraste com aquela interpretação de críticos (Hill, Macpherson): os beneficiários do
direito de propriedade foram os membros da gentry, os únicos que teriam conseguido
tornar-se donos de si.
26
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1
moral e política Fernando Quintana
A máxima associada à Rousseau “obedeço logo sou livre” é relevante se levamos em
conta que inaugura um novo conceito de liberdade com fortes implicações tanto no
campo da moral quanto da política, duas esferas, que, segundo o filósofo genebrino,
são inseparáveis como se lê em Emílio: aqueles que querem tratar a política e a moral
separadamente jamais entenderam nenhuma das duas.
O fato da moral e política caminharem pari passu é importante porque enfatiza um
aspecto da moral que tira sua origem nos bons sentimentos que, por sua vez, se
encontram na base do contrato social, da vontade geral e república democrática e, isso
diferentemente de outros pensadores da época em que os sentimentos são relegados
a segundo plano em nome da razão. A originalidade do filósofo genebrino radica então
em ser um dos poucos pensadores românticos do iluminismo (francês).
A liberdade como exercício da vontade moral e política (Rousseau) fazendo dizer ao
filósofo francês Roland Barthes que estamos diante de um “escritor de catálise”, em
que sua escrita traz cada vez mais acréscimos, no caso, um conceito de liberdade que
prepara o caminho para todos aqueles que acreditam que o homem não é o indivíduo
definido por seus interesses, nem definido pelo uso da razão, mas aquele que está
ordenado pela natureza à prática da moralidade como ao mais alto grau de
desenvolvimento que possa alcançar (Gueniffey, 2000: 321).
Tal concepção da liberdade trazendo uma ameaça - o espectro da vontade geral -, uma
vontade coletiva, infalível, mobilizadora, um temor a priori, que domina o pensamento
e prática política do ocidente. O Contrato Social, com o ingrediente da vontade geral,
apontando para uma situação de crise, inacabada, que vai além da Revolução Francesa
(Koselleck, 1999: 137-138), que abre um futuro indefinido, que é capaz de enfrentar
novas experiências. Ou, em outros termos: o Contrato, com a ampliação do sufrágio
universal, trazendo o potencial revolucionário de atribuir o poder de governar a quem
está em piores condições para fazê-lo - a grande massa da população, ignorante,
iletrada e politicamente inferior.
A importância do Contrato pode ser constatada na influência que teve no desenrolar
da Revolução Francesa: os revolucionários viram-se diante do problema colocado por
Rousseau, a eles coube fazer os trabalhos práticos, a grandeza da sua aventura e o
segredo da sua repercussão prendem-se ao fato de que eles enfrentam no palco real
da história uma questão filosófica: a fundação do contrato social (Furet, 2001:80).
Ou, segundo outros estudiosos: o Contrato não fugiu às condições históricas nas quais
foram elaborados os conceitos e a metafísica da soberania popular. O povo-rei e a
usurpação da soberania constituem duas obsessões rousseaunianas percebidas pelos
2
revolucionários quaisquer que sejam as simplificações e os contrassensos que possam
ter cometido em relação ao Contrato. A impossibilidade de verificação empírica, que
afeta a teoria da vontade geral e da soberania do povo era uma poderosa incitação à
utopia, ao voluntarismo político. O projeto revolucionário é tomar o Contrato como
um programa de ação (Jaume, 2005:190-191).
Já na opinião de outros autores o filósofo genebrino foi o responsável da fase radical
da revolução (1792-94), assim, o poeta alemão Heinrich Heine que descreve as obras
de Rousseau como arma ensanguentada que, em mãos de Robespierre, permitiu
destruir o Antigo Regime e, também Ernest Cassirer: os jacobinos estabelecem o reino
do Terror em nome de Rousseau.
A este respeito, convém lembrar que a Revolução Francesa comporta no início dois
momentos: o primeiro, 1789-1792, fase moderada que, em nível normativo se traduz
pelos “princípios imortais de 89” e no plano político-institucional, constituição de 1791,
a “monarquia constitucional”, marcada do ponto de vista ideológico pelo liberalismo;
o segundo, 1792-1794, fase radical que, em nível normativo se traduz pelos “princípios
incendiários de 93” e no plano político-institucional, constituição de 1793, a “república
democrática”, marcada do ponto de vista ideológico pelo democratismo. Esta segunda
fase corresponde também ao “regime do Terror” em que Robespierre, inspirado nos
escritos de Rousseau, procura criar uma república-democrática formada de cidadãos
virtuosos, como se depreende da famosa assertiva robesperriana: a mola do governo
popular, na paz, é a virtude; na revolução é ao mesmo tempo a virtude e o terror. A
virtude sem a qual a qual o terror é funesto, o terror sem a qual a virtude é impotente.
A volta ao Contrato é importante porque é um texto que visa resolver um problema: a
construção da liberdade (Rosanvallon, 2010: 46). Mais especificamente, podemos
dizer, resolver um dilema que aparece no início da obra: o homem nasce livre, mas por
toda a parte encontra-se a ferros, aprisionado. Tal problema, seguindo o título da obra
de Cassirer: A questão Jean Jacques Rousseau, parece estar presente em toda sua obra
se levamos em conta o que diz em Confissões: meus escritos possuem uma unidade.
Assim, trata-se de desvendar um problema: o homem é bom por natureza, a sociedade
o corrompe, mas somente a sociedade, agente de perdição, é capaz de salvá-lo. Em
outros termos: uma equação que começa por uma afirmação metafísica (o homem é
livre), continua por uma constatação fática (está aprisionado) e termina por uma
reconstrução inteligível (o homem deve ser livre). O esclarecimento desta sequência,
dominada por um otimismo antropológico, um pessimismo histórico e um idealismo
político-moral, permitindo por seu turno uma melhor compreensão da máxima do
autor segundo a qual: “submeter-se à lei é um ato de liberdade”.
3
A questão a resolver consiste então no seguinte: a natureza fez o homem livre e bom,
mas a sociedade o deprava, como fazer para torná-lo livre moral e politicamente? A
resposta, acreditamos, encontra-se na “genealogia das necessidades humanas”1 que,
vale frisar, enfatiza a importância dos sentimentos, em contraste com a razão, como a
este respeito destacam comentadores: Rousseau jamais acreditou que alguém não
pudesse fazer uso de sua própria razão, porém era consciente dos limites da mesma
(Cassirer,1999:30). Esta leitura romântica de Rousseau faz que a palavra sentiment
assine para a possibilidade de todo homem, dominado por paixões ou sentimentos
bons, consiga externalizá-los em sociedade através de condutas e normas também
boas.
Para tentar resolver a “questão J.J.Rousseau” convém remeter-nós à teoria do Estado
do autor que, afinado com o contratualismo da época, parte do estado de natureza,
uma hipótese da razão, segundo expressão do Discurso: comecemos por afastar todos
os fatos, pois eles não se prendem à questão, para justificar sobre novas bases
conceituais - o contrato social - a sociedade e o Estado.
O que merece destaque da situação original ou hipotética, o estado de natureza, é que
o homem aí goza de direitos naturais, isto é, a liberdade perfeita ou natural, no sentido
de ausência de impedimentos ou entraves externos, bem como a igualdade, no
sentido de todos terem igual instinto de conservação, sem esquecer também que o
homem goza de bens suficientes para a sobrevivência. Trata-se, no dizer de Rousseau,
da situação do “bom selvagem” que se encontra em harmonia com a natureza, sem
precisar de outrem.
Neste contexto, ele ouviria a “doce voz da natureza”, cujo silêncio e introspecção se
traduzem em sentimentos internos, inatos, bons como o amor-de-si, a compaixão ou
piedade2. Tais sentimentos, porém, não passam ainda de pura virtualidade, já que o
homem, no estado de natureza, não precisa ainda externá-los: o bom selvagem se
acha confortável o bastante, levando, como se lê em Discurso, uma vida simples,
solitária e feliz não tendo outra preocupação que o instinto natural de cuidar de sua
própria conservação (como qualquer animal).
1 No desenvolvimento desta “genealogia” traremos à discussão as obras mais importantes de Rousseau
que, além do escrito mais vulgarizado: o Contrato social (1762), inclui o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1755), o Ensaio sobre as línguas (1759) e, o Emílio (1762). 2 O apelo de Rousseau à pureza da consciência natural, aos sentimentos humanos bons (amor de si, compaixão, etc), reenvia à máxima da Antiguidade: conhece-te a ti mesmo de um conhecimento verdadeiro (Sócrates), só que com uma diferença: o conhecimento de si no filósofo grego é tarefa intelectual a cargo da razão, enquanto em Rousseau, ao contrário, o intelecto é uma faculdade que conduz o homem para fora de si mesmo. O sentimento do homem natural não pode ser separado do sentimento de interioridade pessoal, e não pode ser compreendido pela razão. O apelo ao sentimento constituindo aquilo que se costuma chamar de “espírito romântico” de Rousseau (Chauí, 1973: xv-xvi).
4
Tal descrição do estado de natureza levou estudiosos a concluir, apressadamente, que
o autor não acredita na sociabilidade natural do homem e, desta maneira a fazer uma
leitura individualista de Rousseau, que pode ser resumida nos seguintes termos:
[...] ela entende a sociedade como formada de indivíduos, o que significa que o indivíduo, como todas suas particularidades humanas, seus direitos e capacidades morais, é colocado como primeiro em relação à associação política, e que ele é concebido como o constituinte último do conjunto social. Em última instância, este último se decompõe em realidades independentes, que são “átomos” de humanidade, e que constituem seres humanos no pleno sentido do termo, mesmo quando são considerados separados do conjunto a que pertencem (Spitz, 1995: 430).
Contudo, entendemos que esta conclusão além de apressada é incompleta, pois não
explora outros escritos do autor que, como sabemos, “formam uma unidade”. Sendo
assim, como veremos, é possível vislumbrar outra sociabilidade, bem como outro tipo
de liberdade com repercussão na moral e a política.
Voltando ao estado de natureza, cabe destacar que em pouco ou em nada se parece
com o descrito por outros contratualistas que o assimilam a um estado negativo, de
guerra, fobia, oriundo do desejo irresistível dos homens de lutarem pela vanglória ou
reputação. Para Rousseau, contrariamente, o apetite desenfreado pela vanglória e,
outras paixões egocêntricas não corresponde ao estado de natureza nem ao homem
que nele habita, e, sim, ao homem que vive em sociedade.
A questão que merece ser colocada é a de saber por que os homens abandonam o
estado de natureza em que vivem felizes, em total liberdade, para passar a uma
situação de não liberdade, servidão, em que os homens se encontram em seu tempo a
ferros/aprisionados. A resposta pode ser encontrada, como afirmamos, na genealogia
das necessidades humanas, que aparece logo em seguida à descrição feita pelo autor
da idílica situação original (o estado de natureza).
Efetivamente, esta situação diz respeito a certas condições naturais favoráveis (clima
temperado, fertilidade do solo) que tornam desnecessário ao homem entrar em
relação com outrem. Mantendo uma relação harmônica e direta com a natureza, esse
indivíduo isolado tiraria o suficiente para seu sustento satisfazendo dessa maneira o
seu instinto natural de conservação. Contudo, tal situação diz respeito também a
condições naturais desfavoráveis (clima hostil, não fertilidade do solo) que levam o
homem a entrar em relação com outros, com o intuito sobretudo de sobreviver, suprir
suas carências elementares.
Sendo assim, resulta uma primeira sociabilidade fundada na necessidade biológica, no
instinto de conservação do homem. Ela pode ser associada, por seu turno, tanto aos
gestos: as necessidades ditam os primeiros gestos, escreve Rousseau em Origem das
línguas, quanto ao aparecimento da linguagem da horda, da vida nômade, mais
próxima da expressão ajuda-me - uma das primeiras arrancadas ao homem.
Mas, paralelamente a esta sociabilidade fundada na necessidade física vislumbra-se
outra sociabilidade ligada desta vez ao aparecimento da linguagem da vida sedentária:
5
a constituição da família, os encontros festivos ou lúdicos3, e que se traduz numa outra
expressão, também das primeiras arrancadas ao homem, ama-me.
A diferença, aqui, é que, se a primeira sociabilidade emerge de um contexto de
necessidade pela sobrevivência, esta segunda surge de necessidade afetiva, moral. A
doce voz da natureza, solitária, interior, formada por sentimentos humanos bons,
amor de si, compaixão, conseguindo, agora, externar-se pela primeira vez. Os bons
sentimentos naturais não sendo só simples vocábulos, mas pressupondo a presença do
outro: a relação do homem com o homem.
Em ambos os casos são as paixões ou sentimentos humanos, e não a razão ou reflexão,
que estão na origem das primeiras palavras, apesar de algumas ajudarem, mais que
outras, a unir do que a separar, como diz Rousseau na mesma obra: todas as paixões
aproximam os homens, forçados a se separarem pela necessidade de procurar os meios
de vida. Não foi, arremata, a fome nem a sede, mas também o amor e a piedade que
lhes arrancam as primeiras palavras (Rousseau, 1987: 164).
Do exposto pode-se inferir que é um falso problema o de saber se existe sociabilidade
natural ou não em Rousseau. De fato, não há como dar uma resposta unívoca a tal
interrogante, pois o autor deixa em aberto ambas as possibilidades. Assim, por
exemplo, quando se refere ao bom selvagem, em Discurso, com epítetos um tanto
contraditórios: “ser feliz e solitário”, “estúpido e limitado”, porém “perfectível”, ou
seja, capaz de superar-se já que para Rousseau: a natureza humana não retrocede.
O que é importante então é conhecer as consequências das duas sociabilidades
fundadas em diferentes tipos de necessidade: física ou biológica, de um lado, afetiva
ou moral, de outro. Ambos os tipos de sociabilidade lembrando as Cartas persas de
Montesquieu em que o autor conta a história de um povo por ele inventado, os
trogloditas, que teriam atravessado duas fases - a primeira, baseada no individualismo
feroz, a segunda, na cooperação idílica - o egoísmo e a cooperação. Na primeira fase,
os trogloditas teriam vivido um momento hobbesiano, na segunda fase, um momento
rousseauniano. Com isso, querendo dizer o filósofo francês que o homem não é só o
lobo do homem, nem é só o bom selvagem.
Apesar da visão idealista do estado de natureza, com as implicações individualistas que
disso pode provir (supra), a resolução da “questão” Jean Jacques Rousseau não implica
3 No que diz respeito aos “encontros lúdicos”, em Rousseau, cabe o seguinte comentário: ela aparece
como inteiramente improvisada, ela simboliza um retorno à idade de ouro. Pura invenção, criação livre, desembaraçada de qualquer forma preestabelecida. O espetáculo que encanta Rousseau é o de uma satisfação alegre que nasce nos corações na medida em que se realizam os atos conforme o dever. A festa, que faz surgir a imagem de inocência dos primeiros tempos, nasce do improviso, por geração espontânea, no concurso de um grupo humano em que ninguém tem mais nada a esconder daquilo que pensa e daquilo que sente. Os homens não estão alegres porque foram convidados para uma festa: esta é apenas a manifestação visível da alegria que os homens sentem em encontrar-se reunidos (Starobinski, 1991: 103).
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uma volta ao estado primitivo original, mediante o qual o homem recupera a perdida
liberdade natural ou perfeita, mas uma situação em que o homem ganha outro tipo de
liberdade - moral e política. Em reforço desta tese, cabe trazer o seguinte comentário:
a mudança do homem em cidadão através do contrato implica o abandono de uma
individualidade atomizada, de uma liberdade como independência do outro, como
isolamento e um direito referido apenas a cada um em particular (estado de natureza),
para que se afirme o homem civil, o cidadão, com sua liberdade moral e convencional
(estado social) - o que supõe eliminar de si a liberdade natural (Nascimento,1998: 122-
123). Interpretação esta que encontra eco em várias passagens da obra rousseauniana
como, por exemplo, em Emílio:
O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil é apenas a unidade fracionária que se liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social. As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada particular não se julgue mais como tal, e sim como uma parte da unidade, e só seja perceptível no todo (grifo do autor) (Rousseau, 1999: 11).
Mas, também no Contrato em que o autor insiste sobre a mudança ou transformação
que se dá no homem com a passagem do estado natural para o estado social, nos
seguintes termos:
É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa vê-se forçado a agir baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações. Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda sua alma se eleva a tal ponto, que, [...] de um animal estúpido e limitado [surge] um ser inteligente e um homem [E, ainda] Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida, seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-la; substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos por natureza, por uma existência [...] moral” (grifo nosso) (Rousseau, 1978: 36; 57).
Assim a resolução do problema rousseauniano passa, portanto, pela fundação de uma
nova sociabilidade que resulta do “segundo” e legítimo contrato social, através do qual
o indivíduo conquista, parafraseando o autor, a liberdade perfeita ou verdadeira. Tal
sociabilidade devendo ser entendida como o resultado não apenas das necessidades
biológicas, mas sobretudo das necessidades afetivas e morais que se encontram no
bom selvagem (amor-de-si, compaixão) e fazem os homens ingressar em sociedade e
tornar-se livres e iguais.
Da primeira sociabilidade fundada na necessidade biológica resulta uma forma de
associação que é criticada pelo autor: Rousseau incrimina circunstâncias físicas (clima
hostil, não fertilidade do solo) que teriam podido igualmente não ocorrer, mas que,
uma vez presentes, fazem a perfectibilidade natural do homem ficar adormecida. Esta
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interpretação de Jean Starobinski pode ser ilustrada com base em observações do
filósofo genebrino quando diz, por exemplo, que, enquanto mais carecemos uns dos
outros, mais separados, isolados, nos encontramos ou, ainda nossas necessidades
mútuas (biológicas) nos unem apenas pelo interesse particular.
Do exposto se depreende que a sociedade centrada apenas na sobrevivência ou
conservação não engendra uma boa sociabilidade e, isso pelo fato de ir acompanhada
de paixões humanas egocêntricas: amor-próprio, vanglória, vaidade, presentes no
“primeiro” e ilegítimo pacto social - que leva os homens, cabe lembrar, a encontrar-se
aprisionados. Situação esta que, segundo Rousseau, teria contribuído mais para
separar os homens que para uni-los. A racionalidade - instrumental - que marca a
chegada a essa situação, ruim, sendo dominada pelo cálculo de meio-fim.
De fato, tais paixões auxiliadas por uma racionalidade calcada no interesse privado,
que se encontra na base do “falso” contrato, levando a uma situação ruim, isto é, um
estado, como diz Rousseau, baseado na força e não no direito, em beneficio de alguns,
os mais ricos e letrados, e não em beneficio de todos. É neste contexto, ademais, que
surge a “voz abusiva” que pode ser exemplificada no próprio conteúdo das cláusulas
do falso acordo, cujo conteúdo é o seguinte: “vocês precisam de mim, pois eu sou rico
e vocês pobres, façamos então um pacto, mediante o qual eu lhes darei a honra de me
servirem, sob a condição de que me deem o pouco que ainda lhes resta por eu ter o
incômodo de comandá-los”4. E, segundo se depreende do Discurso: tal foi ou deve ter
sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e forças ao
rico, destruiu a liberdade natural e fixou para sempre a lei da propriedade e da
desigualdade, fez de uma usurpação sagaz, um direito irrevogável, e, para lucro de
alguns, sujeitou o gênero humano, daí por diante, ao trabalho, à servidão e à miséria
(Rousseau, 1987-88: 73-74).
Tal situação fundada na força, na desigualdade, miserabilidade ou servidão de muitos
em benefício de poucos, sendo agravada pelo aparecimento da propriedade privada,
exemplo da “voz abusiva”, conforme resulta de outra passagem do mesmo escrito: o
verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro a dizer isto é meu e encontrou
pessoas simples para nele acreditarem. A consagração da propriedade privada, como
direito absoluto e ilimitado por cima dos demais direitos concorrendo juntamente com
os sentimentos egocêntricos, amor próprio, vanglória, vaidade, para a referida má
sociabilidade: “os homem encontra-se a ferros”.
Cabe destacar que tal situação pode ser associada a um estado concreto: o Antigo
Regime, contemporâneo do autor, ao qual o autor deseja pôr fim: a revolução que
Rousseau tem diante dos olhos, afirma Koselleck, é ao mesmo tempo uma revolução
do estado e da sociedade em que vive, o fim do despotismo faz com que volte a um
4 Artigo de Rousseau Sobre economia política (1755), publicado em Encyclopédie. Esse acordo é ilegítimo
porque ele é mais vantajoso para os ricos, cujos bens garante, do que para os pobres, aos quais nada mais oferece do que a segurança da pessoa.
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novo estado de natureza. A volta ao estado de natureza podendo ser entendida, como
tentamos mostrar, no intento do autor em recuperar o bom selvagem e sua potencial
sociabilidade - baseada em sentimentos humanos bons - que teria sido relegada diante
do triunfo daquela sociabilidade baseada na necessidade física pela sobrevivência.
Continuando com esta abordagem que prioriza o “sentimentalismo rousseuaniano”5 é
possível vislumbrar outra sociabilidade para além daquela resultante da satisfação das
necessidades biológicas e interesse particular. É o que se depreende de outra frase do
autor, por exemplo, em Emílio: se nossas necessidades nos unem pelo interesse, nossas
misérias nos unem por afeição, que mostra como os homens podem ingressar em
sociedade e ser dependentes uns dos outros não pelo interesse, mas por necessidades
de outra natureza, afetiva e moral, que têm reflexo na política, pois é graças a elas que
o homem dominado por bons sentimentos é capaz de procurar a companhia de outro
e, como veremos, participar na elaboração das leis - a vontade geral.
Sendo assim, podemos falar de uma contraequivalência dos sentimentos humanos, ou
seja, e para não fazer uma leitura ingênua de Rousseau, da presença de ambos os tipos
de paixões, egocêntricas e altruístas, quando da realização do “segundo” e legítimo
contrato social. Em tal contexto, vislumbra-se uma junção entre ambas às paixões
derivadas do instinto da sobrevivência (amor próprio, vanglória) e, dos sentimentos
inatos do bom selvagem (amor-de-si, compaixão) que conseguem agora se externalizar
com toda sua potencialidade - além das experiências da vida sedentária: constituição
da família, reuniões lúdicas, etc.
Em suma: no momento do legítimo contrato social, o homem traz consigo não só seu
interesse privado baseado na necessidade da sobrevivência, mas sobretudo aquelas
qualidades iguais a todos, fornecidas pelos sentimentos altruístas6. Tal possibilidade
faz que o homem, no momento da fundação do estado civil, seja dominado também
pela necessidade afetiva e moral de compartilhar com outros uma boa sociabilidade.
Diante do “problema psicológico” levantado depois de Hobbes: por que os homens
devem agir de outra forma que não seja em função de seu próprio proveito imediato?
5 “O apelo à consciência [moral] ou ao ‘sentimento interior’, na filosofia de Rousseau, retoma a crença de que a afetividade precede, na vida individual e coletiva, o uso possível da razão. Os germes ‘inatos’ da sociabilidade não podem ser senão afetos: apenas o movimento de piedade, presente nos homens do povo ainda não pervertidos pelas relações de enfrentamento, ou a paixão pela liberdade, que conhecem os povos habituados a lutar pela sua independência [...], podem ser considerados os fundamentos ‘naturais’ de uma sociedade igualitária e livre” (Ansart-Dourlen, 2002: 16-17). 6 Quanto à distinção amour propre-amour de soi/compaixão, ela pode ser relacionada à distinção cristã:
eros-ágape - duas formas distintas de amor. O primeiro, o amor eros, está ligado à carência. É o amor falta, que está relacionado aos sentidos, relaciona-se ao amor sexual na medida em que ele é a expressão da falta que um homem sente de uma mulher e vice-versa. É um amor egocêntrico, interessado. Rousseau refere-se em Discurso ao amor físico como puro desejo que se extingue na medida em que a necessidade é satisfeita. O segundo, o amor ágape, está ligado ao amor do perdão, desinteressado, espiritual, o amor do Cristo pela humanidade, o amor de quem morreu pelos homens e não exigiu nada em troca (Deus Caritas Est). Rousseau refere-se na mesma obra ao amor moral como o natural, estando ambos na origem da humanidade, da piedade, da virtude.
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Rousseau traz uma importante inovação no sentido de que a fonte do altruísmo se
encontra na natureza humana (os bons sentimentos inatos) (MacIntyre: 1994: 181).
O predomínio de sentimentos benevolentes, que preconizam a abertura ao próximo,
etc, parece encontrar eco na amizade ou simpatia dos antigos, na caridade do
cristianismo ou, ainda depois dos escritos de Rousseau, na fraternité da Revolução
Francesa, em todos os casos eles apontam para a capacidade do homem dirigir
sentimentos bons para o bem de todos.
Sendo assim, o verdadeiro contrato visa ir além do estado imposto pelas necessidades
baseadas no ter ou avoir (para sobreviver), por um estado em que predominam as
necessidades baseadas no querer ou être. Contudo, importa insistir, as primeiras
necessidades fundadas no ter não desaparecem em tal contexto, prova disso quando
Rousseau se refere, em Emílio, à educação dos jovens: não se deve eliminar nenhuma
dificuldade física daquele que se procura educar, não se deve poupá-lo de nenhum
sofrimento, esforço ou privação. Ou seja, o ingresso à sociedade supõe que os homens
sejam movidos também por carências ou privações ligadas à sobrevivência.
O fato de homem encontrar-se movido pelo desejo de sobreviver, mas também pelo
desejo de conviver faz que a necessidade não seja “algo” quantificável mas também
qualificável, isto é, que ela não fique restrita às carências materiais pela sobrevivência,
mas que ela incorpore qualidades do homem, o amor-de-si: base da compaixão7, que
fazem possível de entrega-se ou abrir-se ao sofrimento de outrem:
[De] um encontro que dependerá da sym-pathie, da com-passion, da con-doléance, termos cujo parentesco etimológico (éprouver-avec, souffrir-avec) traduz o milagre da ‘reciprocidade das consciências’, que, numa mesma sensação, num mesmo sentimento, encobre seres diferentes [...] a compreensão afetiva que me faz ‘sentir’ a dor do outro sem a experimentar eu mesmo ou, ainda, me faz sofrer quando tu sofres passando pela participação afetiva (Mitgefül) que me faz sofrer daquilo que tu sofres, podendo chegar a esse mistério da Einsfühlung, da fusão afetiva que me faz sofrer teu sofrimento (grifo do autor) (Maggiori, 2000:88).
Contudo, resta um ponto a resolver: que tipo de racionalidade pode dar conta do
legítimo contrato social? Resposta: uma racionalidade que seja capaz de dar o devido
lugar e peso aos sentimentos humanos, o amor-de-si ou afeição-de-si, mola principal
do comportamento social que se assenta sobre a imagem que ele produz a seus olhos
e aos olhos dos outros (Pocock, 1997: 475).
Um tipo de racionalidade que, lembrando filósofos da Antiguidade (Sófocles), quanto
menor a sabedoria (razão), maior a felicidade ou, como dizem os críticos das paixões
egocêntricas, em que os homens não são movidos pela inveja, vanglória, mas também
por paixões de generosidade e misericórdia, amizade e piedade, solidariedade e
7 Ou seja, o fato de cada um se aceitar, se amar a-si-mesmo como condição de abrir-se ao sentimento de um terceiro - e compartilhar assim da sua dor, mas também da sua alegria. Ou, como opinava o príncipe dos humanistas - cristãos - Erasmo de Rotterdam, o homem que odeia a si mesmo não é capaz de amar o próximo, aquele que é um peso para si mesmo não pode ser agradável a outro.
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respeito mútuo e, isso porque segundo eles: pretender que na política os homens se
desfaçam das paixões e ajam seguindo apenas os preceitos da razão é comprazer-se na
ficção.
Com base nessas observações pode-se afirmar que o tipo de racionalidade que domina
o legítimo contrato social não pode ser reduzida a uma racionalidade cognitiva, mas
uma racionalidade cuja função é sobretudo expressiva, ou seja, uma racionalidade que
fala aos sentimentos.
Em contraste com uma racionalidade estritamente instrumental que estaria na base de
uma sociabilidade negativa ou incompleta, é possível vislumbrar uma racionalidade
capaz de incluir as paixões humanas para além daquelas limitadas ao interesse
particular. Uma racionalidade expressiva, baseada na igualdade moral de todos - os
sentimentos bons do homem natural - que se estende aliás à lei natural:
A lei natural não é um enunciado exposto na língua da reflexão filosófica. Para ser ouvida e seguida, ela não requer nenhum saber. Não supõe, portanto, nenhuma linguagem prévia. Não poderia ser uma regra convencionada, um discurso apoiado em argumentos. Rousseau recusa a ideia de uma convenção, de um contrato, de que dependeria o teor da lei natural. Isso é, no entanto, o que supõe, sem razão, a maioria dos filósofos, e Rousseau não deixa de zombar deles: “Começa-se por buscar as regras sobre as quais, para a utilidade comum, seria conveniente que os homens conviessem entre si” [Hobbes, etc]. Rousseau descartará, então, as construções discursivas que os filósofos substituem à verdadeira lei natural sob pretexto de defini-la. Ele afasta as asserções demasiado doutas, demasiado cultivadas daqueles que desejariam que a lei natural falasse como fala a razão constituída. Rousseau nos convida a procurar aquém do reino humano da palavra. Por certo, ele nos dá a ler um “discurso”, mas é para fazer surgir uma voz anterior a todo discurso. Para que essa lei seja natural, “é preciso que fale imediatamente pela voz da natureza”. Por definição, a voz da natureza deve falar antes de toda palavra. Tácita e imperiosa, essa voz nos dita os movimentos espontâneos do amor de si e da piedade, “princípios anteriores à razão” (grifo do autor) (Starobinski, 1991: 312).
Assim, o verdadeiro contrato social, que, segundo Robert Derathé em Rousseau et la
science politique de son temps, “encerra um compromisso recíproco entre o público e
os particulares”, pode ser associado a uma racionalidade dramatúrgica que, seguindo
Erving Goffman, consiste em compreender a interação social como resultado de um
encontro onde os participantes, que constituem uma relação, se mostram diante do
público apresentando algo de si mesmo.
Os conceitos-chaves da racionalidade dramatúrgica são: encontro e representação, ou
seja, cada indivíduo (ator) aparece diante de terceiros (espectadores) e manifesta algo
de sua subjetividade, bem como deseja ser visto e aceito de certo modo pelos demais.
No ato da representação, cada um exibe seu mundo subjetivo próprio, seus desejos e
sentimentos diante de um público que confia em suas manifestações expressivas. A
racionalidade dramatúrgica encerra então o mundo interior formado por desejos e
sentimentos baseados na autenticidade e fidelidade de cada um em relação a eles, e o
mundo exterior formado por enunciados de veracidade, onde se acredita que cada um,
que os emite, está dizendo a verdade, bem como é sincero consigo mesmo e os demais
(Habermas, 1987:106). Uma racionalidade que implica então a fusão do ser e aparecer
ou, segundo a fórmula socrática - “sê como desejas aparecer”.
11
Assim, no momento do verdadeiro contrato social cada participante se apresenta
diante dos outros munido do seu mundo subjetivo e sendo autêntico com seus
sentimentos procura convencê-los, a voz eloquente ou persuasiva do cidadão, da
vantagem de ingressar no estado social e, isso, importa insistir, não apenas com o
intuito de suprir as carências da sobrevivência, mas sobretudo de externalizar as
necessidades afetivas e morais.
Neste contexto, importa lembrar o conteúdo do contrato social: encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a
força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si
mesmo, permanecendo tão livre quanto antes (Rousseau, 1978: 32).
A liberdade à qual se refere esta famosa passagem do Contrato não diz respeito à
liberdade perfeita ou natural (ausência de impedimentos ou entraves externos), mas
sim à liberdade como autonomia moral e política, recém-conquistada mediante o
ingresso do homem na sociedade. Assiste-se, portanto, à perda da liberdade natural
(estado de natureza), ao benéfico preço da liberdade verdadeira (estado social), que
corresponde por seu turno à metamorfose no homem que, do indivíduo isolado passa
à condição de cidadão ou, como destacam outros estudiosos: Rousseau coloca uma
descontinuidade entre o homem da natureza e o homem político, de maneira que para
ele o contrato social assinala o nascimento da humanidade (Dumont, 1983: 95).
Em reforço disto Rousseau escreve na mesma obra: a passagem do estado de natureza
à sociedade civil produz no homem uma mudança considerável, ela substitui na sua
conduta o instinto da justiça e dá a suas ações a moralidade que lhe faltava antes.
Assim, em relação à metamorfose do indivíduo em cidadão podemos identificar o lugar
do privado como aquele que é próprio do homem natural, com sua liberdade natural,
e o público, o que é característico do homem em sociedade, com sua liberdade civil.
Contudo, vale sublinhar, que o lugar (público) do cidadão toma a dianteira diante do
lugar (privado) do indivíduo, na medida em que pode ser levado a abnegar o interesse
particular em pro do bem comum:
Se para converter-nos totalmente em nós mesmos, necessitamos prestar-lhe nossos serviços a um certo tipo de sociedade, podemos sem dúvida imaginar as tensões que surgiram entre nossos interesses aparentes e os deveres que necessitamos cumprir para obter a realização de nossa verdadeira natureza, e por conseguinte de nossa liberdade mais absoluta. Contudo, nessas circunstâncias dificilmente podemos chamar a isso um paradoxo - apesar de que o possamos encontrar sem dúvida inquietante - se aceitamos o que Rousseau sustenta com tanta força no Contrato social: se um indivíduo considera “aquilo que deve à causa comum é uma contribuição gratuita, cuja perda seria menos dolorosa para os demais que o pagamento oneroso para ele”, então deverá “obrigar-se-lhe a ser livre”, ser forçado a desfrutar de uma liberdade que, do contrário, tal indivíduo permitiria que degenerasse em servidão (Skinner, 2004: 100).
A defesa da liberdade como autonomia moral e política, em detrimento da liberdade
perfeita ou natural, levou estudiosos a falar do abandono de “posturas individualistas”
decorrentes do Discurso por “posturas antiindividualistas” decorrentes do Contrato, a
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substituição dos direitos naturais pelos deveres do cidadão para a comunidade, a
independência do indivíduo pela soberania do estado ou, como acredita Louis Dumont,
o triunfo da visão holista da sociedade em detrimento da visão o individualista8.
Ou, na opinião de outros estudiosos que, com base na discrepância individualismo do
Discurso e coletivismo do Contrato, destacam: “A ideia do Estado, concebido como um
organismo domina todo o Contrato social (...) ela sugere sem dúvidas a absorção dos
indivíduos na vida coletiva do corpo do qual são os membros, por conseguinte, a
negação de sua existência própria e separada, de seu poder de agir com uma certa
independência”. E, concluem: “Não existe dúvida que a ideia de uma unidade orgânica
é o elemento mais original da teoria de Rousseau” (Derathé, 1992: 410).
Em reforço desta visão holista ou organicista, cabe lembrar que uma vez realizado o
acordo os participantes formam um novo corpo coletivo, eu comum diz Rousseau, que
leva ao abandono dos direitos naturais em favor da comunidade, ganhando em
contrapartida direitos civis. Desta maneira, os direitos deixam de ser absolutos ou
ilimitados na medida em que passam a ser regulados pelas leis - que todos contribuem
a criar. A propriedade privada, por exemplo, não é mais vista como um direito absoluto
ou irrestrito (como acontece no primeiro pacto), mas como um direito limitado que
está em função do bem comum. Os direitos do cidadão, sujeito a restrições em pro do
interesse comum são compatíveis entre si já que para Rousseau: a liberdade sem a
justiça é uma verdadeira contradição.
A “perfectibilidade” do homem natural, que aparece em Discurso (supra), aponta para
a possibilidade do aperfeiçoamento moral. Uma moralidade que fala aos sentimentos
e leva o homem a realizar o contrato, entrar em sociedade, e participar da elaboração
das leis: a vontade geral. Estamos diante da liberdade moral e política que confirmam
aliás a máxima rousseauniana: “somos livres porque estamos submetidos às leis que
nos damos”.
A liberdade moral diz respeito a um tipo de liberdade que não é empírica, poder de
fazer de acordo com meus desejos ou inclinações pessoais, mas filosófica, o exercício
da vontade, conhecida também como liberdade positiva que responde à seguinte
pergunta: por quem sou governado? Em ambos os casos, a liberdade é um ato de
autonomia em que o sujeito ativo (emissor) e passivo (destinatário) da lei coincidem.
8 Quando o valor supremo é colocado na sociedade, escreve Dumont, no ser coletivo, cabe falar de “holismo”. “Designa-se como holista uma ideologia que valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano” E acrescenta, referindo-se explicitamente a Rousseau: ele parte de premissas muito individualistas na aparência (Discurso), mas que levam por uma estrita lógica a conclusões antiindividualistas (Contrato) (Dumont,1983:95;119;263). Uma “lógica” que enxerga a sociedade não como a simples soma de indivíduos que lhe preexistem com seus direitos, mas que afirma a existência de uma relação de constituição que vai da sociedade ao indivíduo: quando este se separa do conjunto a que pertence, isso significa que não tem mais sentido dizer que se trata de um homem em sentido próprio (Spitz, 1995: 430).
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Tal liberdade consiste no desejo de todo indivíduo ser seu próprio senhor, de não estar
submetido a ninguém, a única que o torna verdadeiramente dono de si.
A liberdade, como exercício da vontade é conhecida na literatura mais recente como
liberdade positiva (Berlin), interior (Hayek), especulativa (Sartori), em todos os casos
ela diz respeito à capacidade que cada um tem de decidir por si mesmo, de dar-se a si
mesmo leis, de pautar sua própria conduta de acordo com sua firme convicção moral e
que, importa sublinhar, quando levada ao campo político recebe o nome de liberdade
para participar do estado (Bobbio).
A liberdade filosófica diz respeito à possibilidade de todo homem dar-se boas leis. Em
outros termos: do eu autônomo, moral, dominado por bons sentimentos, ir além do
eu empírico, dominado por desejos e interesses particulares. A origem desta liberdade
rousseuaniana tira sua origem na natureza humana que, portadora de uma qualidade
invariável, faz do homem um ser capaz de discernir e sobretudo sentir a ideia do bem:
a justiça. Linguisticamente falando ela implica a externalização da voz introspectiva,
interior, a “doce voz da natureza” (dominada pelos bons sentimentos).
A liberdade como autonomia moral está presente, como afirmamos, no ato de criação
da sociedade e continua presente no indivíduo que, convertido em cidadão, participa
da vontade geral. Em outros termos: trata-se de trazer à cena política o eu moral,
portador de um sentimento de justiça, que se torna livre na medida em que participa
da elaboração das leis ou, como destacam estudiosos: Rousseau procura conciliar dois
imperativos da democracia antiga - a participação como garantia da liberdade e
promoção da justiça, a participação como condição da encantadora sociedade livre e
justa (Santos, 2007: 44-45; 49).
Quanto à liberdade política rousseuaniana trata-se de um tipo de liberdade que,
segundo a liberté des anciens, consiste em exercer coletiva e diretamente a soberania,
votar as leis, uma liberdade que é compatível com a submissão completa do indivíduo
à autoridade do todo (Constant, 1985: 11) ou, ainda, um tipo de liberdade que não diz
respeito à independência individual, mas a um valor básico que não se altera, que é
essencial pelos seus atrativos intrínsecos: a participação política (Pettit, 1999: 25).
Isso fica claro na insistência do filósofo genebrino por mostrar a mudança que se dá no
homem do estado natural para o estado social, do indivíduo solitário em cidadão, que
pode ser ilustrada mais uma vez na seguinte passagem do Contrato: na medida em que
o homem leva uma vida solitária, ele é um ser limitado e estúpido, mas uma vez que
ingressa no estado adquire o sentido do querer e do dever. Trata-se, portanto, de
recuperar do homem o que teria perdido como resultado do falso pacto e da má ou
incompleta sociabilidade. Assim, através do legítimo contrato procura-se resgatar a
moral para o campo político colocando-a nas mãos do cidadão virtuoso que participa
da vontade geral. O esforço de Rousseau por mostrar o câmbio do indivíduo em
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cidadão pode ser apreciado através da palavra regeneração (que se estende aos
revolucionários franceses):
Regeneração: esse conceito-chave do discurso revolucionário permite captar a enorme dificuldade da Revolução Francesa, bem como a de Rousseau. Logo de ter reconhecido ao indivíduo seu total direito, trata-se segundo ela de aproximá-lo da coletividade, de unir a total liberdade à total docilidade. É quase inevitável que, à medida que a Revolução desenvolve suas peripécias, mais desesperadora era a tarefa. Mais obsessiva também a preocupação de se ter um espírito coletivo suficientemente poderoso para lhe submeter totalmente o espírito individual (Ozouf, 1988: 830)
9.
Tal mudança pode ser observada também na terminologia empregada pelo autor no
Contrato quando chama os membros do corpo político de sujeitos ativos ou cidadãos
quando participamos da elaboração da lei: quando se trata do soberano, afirma, somos
ativos; súditos quando nós submetemos voluntariamente à lei; quando se trata do
estado, acrescenta, somos passivos, ambos, por seu turno, fazem parte do moi
9 A este respeito, regenerar o indivíduo, torná-lo virtuoso, convém reproduzir o famoso discurso de Robespierre (fevereiro de 1794), em pleno período do Terror, diante dos membros da Convenção, quando expõe os princípios que devem nortear a república democrática: “É tempo de marcar nitidamente o objetivo da Revolução. Qual é a meta que visamos? O gozo pacífico da liberdade e da igualdade. Desejamos uma ordem de coisas onde todas as paixões baixas e cruéis sejam acorrentadas, todas as paixões benfazejas e generosas sejam despertadas pelas leis; onde a ambição seja o desejo de merecer a glória e de servir à pátria, onde a pátria assegure o bem-estar de cada indivíduo, e onde cada indivíduo goze com orgulho da prosperidade e da glória da pátria; onde todas as almas se engrandeçam pela comunicação contínua dos sentimentos republicanos. Em nosso país, desejamos substituir o egoísmo pela moral, a honra pela probidade, os hábitos pelos princípios, as conveniências pelos deveres, o amor ao dinheiro pelo amor à glória (...) Um povo amável, frívolo e miserável por um povo magnânimo, poderoso, feliz - ou seja, todos os vícios da Monarquia por todas as virtudes da República. Desejamos, em uma palavra, cumprir as promessas da filosofia [Rousseau]. Eis nossa ambição, eis nossa meta. Que espécie de governo pode realizar esses prodígios? Só o governo democrático ou republicano; essas duas palavras são sinônimas. A democracia é um estado em que o povo soberano, guiado por leis que são sua obra, faz ele mesmo tudo o que pode fazer.Ora, qual é o princípio fundamental do governo democrático ou popular, isto é, a mola essencial que o sustenta e o impulsiona? A virtude; falo da virtude pública, que operou tantos prodígios na Grécia e em Roma, e que deve produzir outros bens mais fortes na França republicana; dessa virtude que não é outra coisa senão o amor da pátria e de suas leis. Mas como a essência da República ou da democracia é a igualdade, segue-se que o amor da pátria compreende o amor da igualdade. É verdade ainda que esse sentimento sublime supõe a preeminência do interesse público aos interesses particulares; consequentemente, o amor da pátria supõe ainda ou produz todas as virtudes; pois o que são estas, senão a força da alma que torna alguém capaz desses sacrifícios? A virtude não só é a alma da democracia, como também só pode existir nesse governo. E o que é a pátria, senão a terra onde se é cidadão e membro do soberano? Só na democracia o Estado é verdadeiramente a pátria de todos os cidadãos que o compõem. Eis a fonte da superioridade dos povos livres sobre todos os outros (...) Os franceses são o primeiro povo do mundo que estabeleceu a verdadeira democracia, chamando todos os homens à igualdade e à plenitude dos direitos do cidadão. Desde já, há grandes conclusões a tirar dos princípios que acabamos de expor já que a alma da República é a virtude, a igualdade, e que a meta é fundar e consolidar a República (...) tudo o que tende a estimular o amor à pátria, a purificar os costumes, elevar as almas, a dirigir as paixões do coração humano para o interesse público deve ser adotado ou estabelecido por vós. Tudo o que tende a concentrar essas paixões na abjeção do eu pessoal, a despertar a admiração das pequenas coisas e o desprezo pelas grandes deve ser rejeitado ou reprimido por vós. No sistema da Revolução Francesa, o que é imoral é impolítico, o que é corruptor é contra-revolucionário” (o acréscimo em parêntese e os itálicos são do autor) (Robespierre, 1999: 141-146).
15
commun ou povo. Tais distinções sujeito ativo/passivo, soberano/súdito trazendo
problemas na sua aplicação prática, o chamado “paradoxo de Rousseau”:
Sustento a existência de um paradoxo no universo rousseauniano, que formulo da seguinte maneira: o que cada cidadão deseja como soberano (o governo de que é elemento constitutivo) - a saber, impostos com que financiar a produção de bens públicos, redistribuição da renda com o objetivo de minimizar a desigualdades etc. - esse mesmo cidadão repudia como súdito, pois, nesta capacidade, deseja pagar o mínimo de impostos, desaprova egoisticamente ver sua renda diminuída em benefício de quem quer que seja etc. E o que aspira como súdito - subsídios especiais, isenções tributárias etc. - é para ele inaceitável, em sua capacidade de soberano, como programa de um governo universalista (grifo nosso) (Santos, 2007: 73).
Nesse particular, cumpre recordar a distinção rousseuaniana: a vontade de todos e a
vontade geral. Esta última prende somente ao interesse comum, ao passo que a
primeira não passa de uma soma das vontades particulares. E acrescenta: quando se
retiram, porém, dessas mesmas vontades (particulares) os a-mais e os a-menos que
nela se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral
(Rousseau, 1978: 47).
Assim, haveria pois, de um lado, a vontade particular ou de todos, que consiste no que
ela quer só para si, não tendo em consideração o bem comum, e, de outro lado, a
vontade geral, que consiste no que ela quer para o bem geral. O que causa
perplexidade, nessa passagem, é o procedimento seguido pelo autor para calcular a
vontade geral - os a-mais e os a-menos que se autodestroem entre si - que são as
vontades particulares (ou a vontade de todos), sendo que o método para registrar a
vontade geral se dá pela soma algébrica dos interesses individuais em confronto, em
que cada membro da comunidade tem poder de veto em relação a propostas que o
prejudiquem, chamando-se de vontade geral ao que sobrar após o processo de
anulações recíprocas (Santos, 2007: 56).
A vontade geral pode ser vista, então, como uma integral - uma curva - que, formada
de uma infinidade de pequeníssimas retas, é compensada ao ser corrigida pelo “erro”
de uma outra. A vontade geral seria então igual a uma integral que transcende as
quantidades infinitamente pequenas (retas) da qual é composta, transcendendo as
diversas opiniões ou interesses opostos entre si. Interpretação esta que encontra
respaldo em Rousseau ao afirmar que a vontade geral parte de todos para aplicar-se a
todos.
Dessa maneira, pode-se realizar o seguinte experimento especulativo entenda-se: a
elaboração de uma lei como resultado de uma deliberação em que as partes
intervenientes, as vontades particulares (os partidos políticos no legislativo), cada uma
delas manifesta e defende livremente sua opinião ou interesse, sendo descontados
delas os interesses ou opiniões que não teriam conseguido a aprovação exigida,
ficando, então, como resultado final: a vontade geral. Isto é, aquele interesse ou
opinião que teria conseguido o consenso relativo dos partícipes. Esta visaria sempre ao
bem comum, e isso é possível porque, como assevera Rousseau, ninguém deseja
16
tornar algo oneroso para si mesmo. No momento da elaboração da lei todas as
opiniões ou interesses teriam sido levados em conta na deliberação acabando por
prevalecer, no texto da lei, aquela “parte” (opinião/interesse) que conseguiu obter
consenso majoritário e, assim, irá visar ao interesse geral. Noutras palavras: a vontade
geral não surge da imposição arbitrária da vontade da maioria sobre a da minoria, mas
sim de um resultado proporcional entre os interesses de ambas que supõe a
confrontação dos interesses ou opiniões de todos.
Muitos reprovam o fato de Rousseau ter deixado em aberto à possibilidade de uma
demaiscracia e, isso porque considera a representação uma anátema, um subterfúgio
que engana o povo10. Prova disso outra passagem do Contrato quando diz: a soberania
não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada. E acrescenta:
os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes, não passam de
meros comissários, não podem concluir nada definitivamente, etc, contudo, Rousseau
é consciente das dificuldades práticas de reunir permanentemente o povo, na praça
pública, para deliberar. Tal possibilidade, declara, “É uma quimera” (Rousseau, 1978:
103)11.
A crítica do autor à representação há que entendê-la no marco do rigorismo moral e
político por ele defendido, ou seja, no marco da autonomia do cidadão que se torna
verdadeiramente livre quando participa da elaboração da lei: do momento em que um
povo se dá representantes, declara, não é mais livre, não existe mais. Assim, o que
procura Rousseau é não dar espaço para uma vontade heterônoma, os deputados do
povo, decidir em nome dele, uma vez que isso pode levar à perda da própria liberdade,
o representado tornando-se um comandado e enganado (Jaume, 2005: 192-193), sem
desconsiderar o fato que a desconfiança do autor pelos representantes do povo radica
também em que podem tergiversar a “infalível” vontade geral - daí que defenda que o
mandato do deputado deve ser revogável quando não cumpre ou se afasta da vontade
geral.
Contudo, entendemos que a crítica à “fraude da representação” é uma forma do autor
permanecer fiel ao argumento que lhe interessa defender: o homem é realmente livre
quando participa. Tal crítica funcionando também como fórmula retórica já que, como
10
A este respeito, cabe trazer a boutade do filósofo genebrino em que critica a representação: “o povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la” (Rousseau, 1987: 108). 11
A este respeito, convém também trazer a crítica feita por Robespierre à representação em ocasião da elaboração dos “princípios incendiários de 93”: a palavra representante não pode ser aplicada a nenhum mandatário do povo porque a vontade soberana não se representa; e, apesar de reconhecer a necessidade de mandatários declara: “(...) confesso que adoto (contra o governo representativo) todos os anátemas pronunciados contra ele por Rousseau” (Robespierre, 1999: 106).
17
afirmamos, Rousseau é consciente que a democracia direta, o povo soberano que
delibera permanentemente, é difícil de se concretizar na prática: salvo se a pólis for
muito pequena, sem desconsiderar também o fato que governar-se democraticamente
corresponde a um governo perfeito, um povo de deuses, que não convém aos homens
(Rousseau, 1978: 66; 110).
Outros censuram Rousseau como responsável de uma democracia iliberal, haja visto
que as liberdades e direitos individuais ficam sujeitos à infalível vontade geral. A partir
desta leitura, os princípios do Contrato seriam incompatíveis com tais direitos: o erro
de Rousseau consiste em desconhecer essa verdade, em fazer do contrato social,
tantas vezes invocado em favor da liberdade, o mais terrível auxiliar de todos os
gêneros de despotismo (Constant, 2005: 9 e 10). Para este autor: o princípio abstrato
da soberania, a soberania como um princípio de liberdade, não aumenta em nada à
soma das liberdades individuais e, se lhe for atribuída uma abrangência indevida,
pode-se até perder a liberdade, a despeito deste mesmo princípio (Constant, 2007:
51).
A crítica centrada no Contrato - que faz de Rousseau um coletivista, um inimigo da
liberdade individual, bem como a opinião tirada do Discurso - que faz dele, como
vimos, um individualista, um defensor dos direitos naturais e até da desordem - 12 não
permitem dissipar, na verdade, o que fica como legado mais valioso e inovador de seus
escritos: um intento de conciliar o interesse privado e o interesse público, os direitos
dos indivíduos e os deveres do cidadão, as garantias de que todo indivíduo deve gozar
e as prerrogativas do poder estatal. Em outros termos: o cidadão que produz uma
soberania e legislação, mas que o protege em seus direitos como pessoa privada.
Ou, como dizem autores ao comentar os “limites do poder soberano” rousseuaniano:
apesar admitir que os indivíduos, pelo contrato social, renunciam a seus direitos inatos
/naturais, admite também que o corpo político não se interesse pela totalidade do que
lhe é entregue e assim deixe margem para ações de interesse puramente individual
(Machado,1978:48). Sendo assim, não há incompatibilidade entre liberdade individual
e vontade geral.
Esta conclusão parece encontrar respaldo em Rousseau ao defender, por exemplo,
que cabe ao estado atribuir e garantir os direitos naturais aos particulares, que a
finalidade da sociedade civil, como se lê ainda no Contrato, consiste em proteger a
pessoa e os bens de cada associado. Assim dessas passagens é possível inferir que os
direitos individuais são compatíveis com o direito da sociedade, com os princípios do
Contrato. A intenção de Rousseau seria então a de chegar a um acordo entre justiça e
interesse individual:
12
Assim, De Maistre e Bonald (destacados representantes do pensamento conservador do início do século XIX), que, com base na ideia antissocial do Discurso, condenam Rousseau como advogado de um individualismo irresponsável e filósofo da desordem ruinosa.
18
O contrato social tal como o concebe Rousseau é um sistema de compensações que finalmente favorece o indivíduo. Este, sem dúvidas, abandona direitos absolutos, que goza na medida em que vive de forma solitária e não entra em competição com seus semelhantes. Em contrapartida, recebe em troca um direito limitado, que a “união social” torna irrefutável. É a partir da “ordem social” [tida por Rousseau como um direito sagrado que se encontra na base de todas as outras] que o homem pode dispor em paz aquilo que possui e viver livre entre seus semelhantes. Sua liberdade, seus bens, e até sua vida estariam constantemente em perigo, se ele não pudesse contar com a proteção do Estado [...] O Estado não o priva então de todos seus direitos, mas lhe assegura o seu exercício nos limites dados pela lei (grifo do autor) (Derathé, 1992: 348-349).
Com base nesta interpretação é possível então combinar direitos individuais, próprios
da ideologia liberal, com os direitos de participação política, próprios da ideologia
democratista, que faz do cidadão o artífice e protetor da lei. Sendo assim, não haveria
que se temer o “autocratismo rousseuaniano”, o “radicalismo quase religioso contra a
manifestação de interesses particulares”, uma vez que, como afirma Wanderley dos
Santos, é possível: “conciliar o egoísmo epidérmico dos membros de uma comunidade
e a produção de estados de mundo satisfatórios para todos”.
Se o democratismo rousseauniano pode ser ainda reivindicado, é porque não mais se
admite que o liberalismo dos direitos individuais seja pensado fora do horizonte dos
direitos de participação política e dos deveres do indivíduo para com a comunidade.
Nesse sentido, podemos afirmar, sem erro, que Rousseau pode ser tido o seu grande
precursor, bem como o de ter colocado sobre novos alicerces o problema da liberdade
tanto do ponto de vista moral quanto político.
19
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1
moral universal e república
Fernando Quintana
Refletir sobre a moral no decorrer da modernidade, séculos XVIII, implica abordar uma
importante tradição do pensamento: o humanismo. Uma corrente de pensamento em
que as condutas e normas são julgadas a partir do respeito rigoroso de princípios tidos
como intouchables e que em nível jurídico supõe uma legalidade, normas jurídicas, e
em nível político, uma forma de estado, a República, compatíveis com valores morais
que defende: a dignidade e a liberdade.
Para isso, escolhemos um importante expoente desta tradição, Immanuel Kant, cuja
reflexão se inscreve no contexto de um grande evento histórico:
(...) Kant, embora vivendo na distante Königsberg, longe de Paris e dos grandes centros, sempre teve plena consciência dos problemas sociais e políticos da época e tomou partido favorável à Revolução Francesa, na qual via não apenas um processo de transformação econômica, social e política, mas sobretudo um problema moral (Chauí, 1978: VIII).
Tal evento provoca no autor uma mistura de admiração e temor. Admiração: porque a
revolução instaura o triunfo da razão que segundo o filósofo alemão, em O que é o
iluminismo, significa do homem não ser tratado mais como criança (despotismo) mas
como maior de idade (república)1. Temor: porque a revolução traz consigo o perigo da
soberania popular permanente que, em perspectiva rousseuaniana, pode levar a uma
limitação da liberdade individual2.
A maioridade de idade supõe o “uso público da razão” que, no contexto da Prússia em
que escreve Kant, implica uma crítica ao governo do sucessor de Frederico o Grande,
Frederico Guillerme II (1787-97), que pratica uma política de Contra-Iluminismo: limita
a liberdade de imprensa e não aceita argumentos contrários à igreja e o estado
(Caygill, 2000:). Duas instituições que segundo o filósofo alemão, no prefácio da Crítica
da razão pura, não merecem o respeito da razão porque são incapazes de enfrentar a
prova do exame, crítico, livre e aberto.
A partir deste marco contextual, podemos dizer que a filosofia kantiana é uma filosofia
crítica no sentido dos fatos históricos passarem pelo crivo do “tribunal da razão” com
1 Ou, segundo expressão do autor: sapere aude, ouse saber, atreva-se a saber. Tal apelo à maioridade,
ao uso da razão, se encontra intimamente ligado ao exercício da liberdade conforme declara o autor em Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?:“Para o esclarecimento nada é exigido além da liberdade; e mais especificamente a liberdade menos danosa de todas, a saber: utilizar publicamente sua razão em todas as dimensões” (grifo do autor) (Marcondes, 2007:89). E, isto à diferença da menoridade dominada pela preguiça e cobardia. 2 Kant tem uma “admiração incontida pelo pensamento de Rousseau”, uma vez que lhe revelou como o
homem, movido também por bons sentimentos e não apenas pela razão, deve agir em relação a seus semelhantes (Chauí, 1987: VII; VIII). Kant: “descobriu (em Rousseau) a natureza do homem escondida no fundo da pluralidade das formas humanas manifestadas” (Salgado, 1995: 229). Contudo, vale esclarecer que kant racionaliza a moral rousseauniana, baseada nos bons sentimentos:“(...) as emoções dos sentimentos e os afetos subjetivos não são, para ele, mais que materiais que pugna para submeter de um modo cada vez mais enérgico ao império da ‘razão’ e ao mandato objetivo do dever” (Cassirer, 1993: 22).
2
todo seu potencial emancipador, mais especificamente como a liberdade enquanto
postulado moral-racional e direito subjetivo permitem questionar eventos que a
contradizem, bem como estabelecer os alicerces de normas legais e uma forma de
estado, a República, respeitoso da liberdade (em ambas as dimensões).
O humanismo kantiano parte de princípios morais universais cuja validade independe
das condições históricas. Para nosso interesse cabe destacar, sobretudo, o princípio da
dignidade: age de tal modo que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca somente como um meio; o
princípio da liberdade: age de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir
com a liberdade de cada um. Ambos, por sua vez, sendo cobertos por outro princípio -
o da universalidade -: age de tal modo que a máxima da tua conduta se torne, por tua
vontade, lei universal (Kant, 1990: 40-45):
Kant introduz como critério fundamental do caráter ético de um ato, sua universalidade. Isto é, meu ato pode ser considerado ético se eu estiver disposto a aceitar que ajam comigo da mesma forma como eu ajo com os outros. Trata-se, no fundo, do famoso princípio: não faça ao outro aquilo que não queres que façam a ti. Na formulação clássica encontrada em Kant: “Age de tal forma que tua ação possa ser considerada lei universal” (Marcondes, 2007: 12).
Tais princípios correspondem, em linguagem kantiana, ao imperativo categórico que
faz parte do conhecimento a priori (não empírico ou a posteriori), que expressa uma
necessidade lógica, não um fato, que estabelece uma ordem à conduta humana, que
prescreve uma ação boa por si mesma independente do resultado e, se aplica a todo
ser racional:
Como se me faz presente, então, o dever? Apresenta-se como a obediência a uma lei que é universalmente válida para todos os seres racionais. Como tomo consciência de ela? Tomo consciência de ela como um conjunto de preceitos que posso estabelecer para mim mesmo e querer coerentemente que seja obedecido por todos os seres racionais. A prova de um autêntico imperativo é que posso universalizá-lo, ou seja, que posso querer que seja uma lei universal (MacIntyre: 1994: 187-188)
O imperativo categórico é um tipo de juízo “sintético a priori” (Kant, 1987:30)3.
Segundo Crítica da razão pura do ponto de vista da “quantidade” é universal porque é
puro ou a priori; do ponto de vista da “qualidade” é afirmativo porque determina uma
ação a ser realizada; do ponto de vista da “relação” é categórico porque expressa uma
ação boa em si; e, do ponto de vista da “modalidade” é apodítico porque expressa uma
necessidade lógica.
Cabe destacar que o imperativo categórico prescinde de qualquer força ou autoridade
que o prescreve a não ser a própria razão, ou seja, o autor da lei moral não está sujeito
a ninguém acima dele mas tão somente a si próprio. Ele está fundado no princípio de
autonomia (auto: de si mesmo, nomos: lei) independente de mediação heterônoma
3 O juízo “sintético” é aquela proposição em que o predicado acrescenta algo novo ao sujeito da frase à diferença do juízo “analítico” em que o predicado encontra-se contido no sujeito da frase. O primeiro tipo de juízo se funda na experiência, ele é a posteriori enquanto o segundo tipo de juízo não depende da experiência, ele é a priori. A “grande descoberta de kant” é que funda a moral, o imperativo categórico, num juízo de tipo que é “sintético” e também “a priori”.
3
(hetero: de outro, nomos: lei), sendo assim o imperativo categórico pode ser tido
como a “ufanista declaração de independência da moral racional em que o homem
como ser livre se liga a leis incondicionais sem necessidade de um terceiro”.
Para descobrir a lei moral, a dignidade humana4, e reconhecê-la como obrigatória o
homem não precisa de um deus criador nem a fé num deus salvador, ou seja, o dever
de respeitar a pessoa não responde ao fato dela ser “feita à imagem e semelhança do
senhor”, a teologia, mas porque a razão o diz:
[...] a formulação kantiana da moral atribui à racionalidade moderna a tarefa de se abrir a um fim prático supremo. Sua interrogação específica, ‘que devo fazer?´, significa que nem a teologia tradicional nem a ciência moderna são fundadoras de certezas práticas (morais) e indica um vazio filosófico correspondente à questão dos objetivos fundamentais do uso da razão (Castillo, 2003: 5).
Desta maneira, o imperativo categórico fortalece o uso da razão na medida em que
exclui toda mediação divina mas também, importa acrescentar, a experiência, uma vez
que não precisa dela para ser válido. De fato, o imperativo moral enquanto proposição
a priori não a posteriori exprime um princípio racional universal dirigido à conduta
humana que, apesar de não ser cumprido, as pessoas não agirem em conformidade
com ele, continua válido.
O imperativo categórico corresponde a um tipo de liberdade negativa, uma vez que o
homem, criador da lei moral, “diz não” a seus interesses, motivações ou inclinações
particulares: a lei moral, afirma o autor, está fundada na “necessidade de agir pelo
dever” e “pelo respeito à lei” e não pela inclinação ou desejo que as ações produzem
(grifo do autor) (Kant, 1993b: 86). Mas, o imperativo categórico corresponde também
a um tipo de liberdade positiva, uma vez que o homem, enquanto criador da lei moral,
“diz sim” a sua vigência.
Em relação à igualdade, no imperativo moral, podemos dizer que ela não está ligada a
uma igualdade jurídica ou material mas a uma igualdade metafísica que acena com a
possibilidade da lei moral ser produzida também por um sentimento de justiça, a “boa
vontade” kantiana, em que todos cooperam para sua realização. Assim, os indivíduos
além de livres e racionais para elaborar a lei moral são também iguais e razoáveis no
sentido de compartilharem tal sentimento e contribuírem para sua consecução.
4 O termo dignitas se remonta ao conceito romano humanitas forjado pelo estoicismo: precursor, por seu turno, da concepção cristã da pessoa que afirma o valor inapreciável de cada alma humana. A laicização do pensamento, operada por Kant, significa a emancipação da razão e o ocaso de premissas teológicas, mais especificamente, no caso, o imperativo da dignidade ser válido e obrigatório porque a razão o diz e, não porque deus o diz. E isso, apesar de Kant acreditar na “imortalidade da alma” e na “existência de deus”, a primeira porque torna possível um mundo supra-sensível no qual a virtude moral vai receber seu premio, a segunda porque torna possível um mundo no qual não há separação entre o real e o ideal, entre o ser e o dever ser (Chauí, 1978: XVI). Aceitar tais exigências (imortalidade da alma, existência de deus) é importante porque funcionam como “condição necessária da moralidade” (Caygill, 2000:310).
4
Em termos montesquianos o imperativo moral corresponde à liberdade filosófica,
também conhecida, segundo autores mais recentes, como liberdade positiva (Berlin);
liberdade interior (Hayek); liberdade especulativa ou metafísica (Sartori), etc, em todos
os casos ela assina para a possibilidade de cada pessoa pautar sua conduta de acordo
com a moral, entendida como exercício da própria vontade. Toda pessoa enquanto
agente moral e racional é capaz de criar leis morais fazendo que seja ao mesmo tempo
legislador e juiz: elabora a lei e a aplica para si.
Trata-se, em linguagem kantiana, da “razão prática”, isto é, do que é justo para a moral
vale também para a conduta humana. A razão prática diz respeito à ação humana que
faz possível que o homem tome decisões conforme princípios morais, ela responde,
segundo o autor, ao seguinte interrogante: que devo fazer? Contudo, vale insistir, que
a lei moral é válida independentemente da pessoa agir conforme ao que ela ordena.
Para entender o princípio humanitário kantiano, bem como os limites que apresenta é
necessário referir-nós à filosofia do sujeito, isto é, o ser humano como fazendo parte
de dois mundos: o mundo numenal (nóos: intelecto, razão, vontade; menós: vida) e o
mundo fenomenal (fainóo: ser, aparência, existência; menós: vida); em linguagem
cartesiana: res cogitans e res extensa, uma antropologia dual em que o ser humano faz
parte do mundo inteligível, suprasensível (sub specie aeternitatis) e do mundo
concreto/sensível (sublunar). O primeiro toma o homem como objeto pensado ou ser
pensante, indeterminado, não condicionado e, assim livre e autônomo para elaborar
leis morais, o segundo toma o homem como objeto de experiência ou ser natural,
determinado, condicionado por fatores sociais, culturais, psicológicos, etc.
Kant se refere à dupla vida do sujeito como Seïn, ser-fora-do-mundo, desencarnado,
verdadeiramente humano, infinito e ilimitado e, Dasein, ser-no-mundo, encarnado,
demasiadamente humano, finito e limitado. Definido o sujeito nestes termos, cabe
dizer que a lei moral, que procura validade ou alcance universal: erga omnis homines,
se origina no Seïn, ser abstrato, inteligível: ser numenal. Além do mais para ter alcance
universal o imperativo moral é desprovido de todo conteúdo. Assim, por exemplo, o
imperativo da dignidade segundo qual o ser humano não é um meio ou instrumento
mas um fim em si, tem um valor em si, sem dizer em que consiste, especificamente,
tratar as pessoas de forma digna.
Proceder de outra maneira, isto é, colocar o ser fenomenal, demasiadamente humano,
como autor da lei moral, a dignidade, implica que esta última adote um determinado
conteúdo, conforme os valores, inclinações ou desejos do agente que a formula. Tal
situação fazendo que perda o alcance universal, ou seja, da lei moral não ser aceita por
todos. Daí, então, a necessidade de uma metafísica - princípios morais que residem a
5
priori na razão diante - dos costumes - sujeitos a mudanças, “perversões”, diz kant,
sem uma norma suprema (a lei moral universal) que serve como exato julgamento5.
Do exposto resulta que o imperativo categórico se funda numa filosofia solipsista ou
monológica capaz de estabelecer “sozinha” deveres morais verdadeiros para todo ser
racional. Tal possibilidade suscitando reações virulentas como à de Nietzsche quando,
em A gaia ciência, afirma:
E agora não me fales do imperativo categórico, meu amigo! - Essa expressão faz cócegas em meus ouvidos e me faz rir apesar de tua presencia tão séria: me faz lembrar o velho Kant que, como punição por se ter apoderado subrepticiamente da “coisa em si” (a consciência moral) - coisa bastante ridícula! - foi apanhado subrepticiamente pelo “imperativo categórico” para se extraviar de novo com ele, no fundo de seu coração, em direção a “Deus”, a “alma”, a “liberdade”, a “imortalidade”, como uma raposa que, achando que está fugindo, retorna para sua jaula - e sua força e sua sabedoria é que tinham partido as grades dessa jaula (grifo do autor) (Nietzsche, 2008: 232)6.
Outras críticas foram feitas à Kant no seu intento de fundar uma moral universal,
abstrata como a de Hegel que, em Princípios da filosofia do direito, procura ir além da
moralidade subjetiva por entender que carece de concretude. Hegel questiona o a
priori da moralidade kantiana na medida em que não aparece conciliado com o a
posteriori da eticidade e isso apesar de reconhecer que “a principal virtude da filosofia
kantiana está em ter despertado a consciência da interioridade moral”, contudo, trata-
se para ele de “fazê-la mover”, que “ande pelo mundo”, da moralidade não existir só in
vitro, mas in vivo.
Com base na assertiva de que “a realidade é um produto da razão”, a chamada ruse de
la raison hegeliana, a moralidade objetiva ou eticidade, à diferença da moral kantiana
centrada no sujeito, aparece cristalizada em comportamentos, práticas e instituições
concretas que culminam, parafraseando o autor, na “realidade em ato da ideia moral
objetiva” (Hegel, 1940: 270)7 ou seja, o Estado que supera (Aufhebung) as instituições
que o integram (familia, sociedade civil), o Estado como resultado de todo o processo
da Sittlichkeit (eticidade) (Lefebvre; Macherey, 1999:65).
A concretude da moral na ética dá-se, por exemplo, no pater familia que age movido
pelo amor dos filhos; no produtor de bens que age movido pela necessidade e entra
em relação com outros no seio da sociedade civil; e, no cidadão que age movido pelo
interesse geral e participa como membro do Estado. Pode-se perceber como Hegel vai
além da moral subjetiva na medida em que a moralidade objetiva ou eticididade (as 5 Vale lembrar que uma das principais obras morais de Kant chama-se: Fundamentação da metafísica
dos costumes. 6 Hegel critica o imperativo categórico kantiano baseado no juízo “sintético a priori” dando o seguinte
exemplo: “todos os solteiros são homens” (juízo analítico), mas não “todos os homens são solteiros” (juízo sintético a priori). 7 A universalidade hegeliana é distinta da proposta por Kant, na medida em que o conceito de universal é encontrado a partir do “desenvolvimento histórico”, uma realidade, e não uma abstração (o Estado). Para Hegel não há separação entre pensamento e realidade, pensar e agir; coisa-em-si e fenômeno. O método do autor é empírico e positivista: “Hegel olha o real e descreve o que vê, tudo o que vê e nada além do que vê” (Kojève, 2010: 426).
6
instituições da familia, sociedade civil e estado) é o locus concreto de comportamentos
éticos, bem como da conciliação do interesse privado e o interesse geral. Ou seja, do
interesse do sujeito político ou cidadão que, enquanto membro do Estado, consegue ir
além do interesse do sujeito natural (pater familia) e do sujeito econômico (produtor
de bens).
Na Fenomenologia do Espírito Hegel também se afasta da moral kantiana, centrada no
sujeito, na medida em que defende como traço distintivo da consciência o fato dela
permitir o conhecimento do alter e, sendo assim deste ser tratado efetivamente com
respeito. O conhecimento ou, melhor o reconhecimento (Anerkennung) do outro vai
além do cognitivo (Kant) já que assinala para o desenvolvimento de uma conduta em
favor da “luta pelo reconhecimento” de outrem. Assim, o que interessa a Hegel não é a
vida da interioridade subjetiva, fechada sobre si, mas a vida do mundo (Arantes, 1988:
XII). Em suma: a concretude da moral, ou seja, do outro ser efetivamente reconhecido
e respeitado como pessoa e, não apenas o enunciado cognitivo, abstrato, do princípio
moral da dignidade (kant).
Para finalizar com esta crítica, podemos dizer que a fenomenologia hegeliana, sob o
pretexto da finitude, temporalidade e historicidade, rouba da razão os seus atributos
clássicos, isto é, a consciência transcendental (Kant) deve concretizar-se na prática do
mundo da vida, adquirir carne e sangue em encarnações históricas (Habermas, 1990:
15).
Críticas mais recentes destacam também como problema da moral kantiana de não se
interessar pelo alter, pelo destinatário do princípio categórico da dignidade e, por
tanto do efetivo cumprimento da lei moral. Assim, o humanismo kantiano seria um
humanismo desencarnado na medida em que está preocupado em dar ao princípio
moral um fundamento sólido, racional, com validade universal, mas não se interessa
pelo alcance concreto do mesmo. Com base nesta limitação do princípio da dignidade,
Emmanuel Lévinas, em Humanismo do outro homem, propõe, contra a filosofia
centrada no sujeito cognoscente, uma reflexão centrada no outro: o próximo. Entende
que o humanismo kantiano é desencarnado porque reduz o ser a pura consciência ou
inteligibilidade. A seu ver, Kant “aprisiona o sujeito” ao fazer dele uma pura imanência,
isto é, “algo” interior, fechado em si, uma substância ou mônada moral, uma coisa-em-
si.
Dessa maneira, o humanismo kantiano elimina a externalidade, a transcendência, a
abertura do sujeito ao alter, ao próximo. Efetivamente, para Lévinas a subjetividade
não pode ser considerada pura substância ou mônada moral, coisa-em-si, já que o
traço principal dela radica no fato de não coincidir consigo mesma, ou seja, de abrir-se
ao mundo externo, ao outro. Em outras palavras: o traço distintivo da subjetividade é
romper com a imanência, ou seja, abrir-se à transcendência, ao outrem.
7
Segundo Lévinas, o ser humano em vez de coisa-em-si (Kant) deve ser tido como coisa-
para-si, isto é, que tem consciência de si mesmo, da sua humanidade. Sendo assim, o
ser humano consegue abrir-se ao próximo e executar a lei moral em favor do alter
pois, como diz o autor, “ninguém pode salvar-se sem o outro”. Trata-se, portanto, de
inscrever a transcendência na imanência. Única forma, segundo ele, do ser humano
superar o ego fechado em si mesmo e ocupar-se pelo ater, ou seja, do eu tornar-se
responsável pelo cumprimento efetivo da lei moral diante do terceiro (Lévinas, 1993:
62).
Ou, ainda como sublinha, em Entre nós: ensaios sobre a alteridade, a relação do eu e o
outro se revela na transcendência do para-o-outro e leva a descobrir a alteridade que,
segundo Lévinas, tem até um ícone, sua pietà, o “rosto de outrem”, ou seja, do outrem
ser tratado com respeito:
Des-inter-essamento da bondade: outrem em sua súplica, que é uma ordem, outrem como rosto, outrem que me ‘diz respeito’ [‘me regarde’], mesmo quando não me olha, outro como próximo e sempre estranho - bondade como transcendência; e eu, aquele que é obrigado a responder, o insubstituível e, assim, o eleito e, desse modo, verdadeiramente único. Bondade para com o primeiro que vem, direito do homem. Direito do outro homem antes de tudo (Lévinas, 1997:266).
Também Ernst Bloch critica a moral kantiana por levar o sujeito a uma atitude passiva/
quietista ou contemplativa. Com base nesta limitação, propõe uma mudança do tópos,
isto é, do lugar em que se origina a lei moral. De fato, em vez de insistir como faz Kant
no autor ou produtor do princípio da dignidade (ser numenal), entende que o mais
importante é o destinatário da lei moral - o que faz que este se torne responsável pelo
cumprimento.
Assim, o imperativo categórico em vez de domínio moral sobre si é uma exigência ética
para outro. Ao trocar de lugar ou topos no sentido de cada homem ser o destinatário,
responsável pelo cumprimento, operar-se-ia uma mudança do ego moral para o alter
ético, do comportamento passivo em exigência ética, que exige um comportamento
ativo (Bloch, 1976: 162). Uma conduta compromissada com o efetivo cumprimento da
lei moral.
Se a lei moral vale mais para o ser concreto (fenomenal) que a recebe do que para o
ser abstrato que a emite, para a humanidade encarnada e não para a humanidade
desencarnada, o corolário disto é que o princípio da dignidade se transforma em agir
ético por parte de quem o recebe. Única maneira, afirma Bloch, de que cada um se
converta em guardião do seu irmão, de cada um ser tratado efetivamente com igual
respeito.
Estas últimas críticas ao humanismo kantiano têm o mérito de destacar o alcance
prático ou concreto do princípio categórico da dignidade. A filosofia kantiana baseada
na figura do sujeito moral-racional com capacidade de formular leis universais teria o
inconveniente de não incluir a dimensão ética que a moral exige. Tal limitação provém,
8
como tentamos mostrar, do princípio da dignidade ficar restrito a um problema
cognitivo: a capacidade racional do sujeito, o ser numenal, de criar a lei moral.
A moral fundada no sujeito desencarnado teria o problema de ficar limitada a uma
capacidade interna, elaborar leis boas, sem ir além da boa intenção. Sendo assim, a
moral kantiana seria uma capacidade solitária, um sonho vazio, na medida em que não
aparece cristalizada em comportamentos e instituições concretas da eticidade (Hegel),
em condutas que visam o cumprimento da lei moral (Lévinas, Bloch). Acompanhando
estas críticas podemos afirmar, então, que uma coisa é pensar moralmente (Kant) e
outra, diferente, agir eticamente (concretamente) em conformidade com a moral.
Apesar das críticas dirigidas a kant entendemos que a “teoria contratualista do estado”
proposta pelo autor, em Metafísica dos costumes8, consegue subsanar parte destes
questionamentos, na medida em que o mundo inteligível ou numenal é compatível
com o mundo tangível ou fenomenal ou, em outros termos, a moral, como postulado
metafísico é compatível com o direito e uma forma de estado: a república.
Tratar-se-ia, portanto, de uma teoria que se inscreve no projeto kantiano segundo o
qual: o direito e a política não podem dar um passo sem antecipadamente ter prestado
homenagem à moral (Terra, 1995: 172) ou, não é possível entender a legalidade e a
política em kant sem passar pela sua teoria moral (McCarthy, 1993: 147).
Com base neste entendimento discordamos daquela assertiva segundo a qual a moral
kantiana prescinde da política “seja porque se considera autosuficiente dentro de suas
próprias muralhas, seja porque diante de suas consequências práticas, políticas, para
além delas, mostram-se insignificante” (Vázquez: 2006: 299). De fato, apesar de Kant
entender que a moral no depende da sua realização concreta para ser válida9 não por
isso podemos descartar a complementaridade entre moral, direito e política.
Kant concebe o Estado como resultado do contratus originarius que é necessário fazer
porque no estado de natureza, onde reina a liberdade externa ou livre arbítrio10, “não
há lei, nem governo”. Ao igual que Locke: é a falta de garantia ou segurança jurídica
que levam os homens a entrar no estado civil. O problema do estado de natureza
radica no fato de ser um estado “transitório” daí a necessidade do pacto e entrar num
8 A primeira parte da Metafísica dos costumes corresponde à Doutrina do direito, onde aparece a teoria
contratualista do estado. 9 O argumento pelo qual a moral não depende da sua realização concreta para ser válida é porque o
cumprimento da lei moral depende da “boa vontade” que estando ausente, no mundo real, faz que o dever moral seja algo “contingente”, “incerto”, ou seja, que os homens atuem conforme com a lei moral mas também, de forma imoral. 10 Para o autor o “livre arbítrio” é o desejo de produzir um objeto, as “manifestações mais evidentes” desse desejo são o contrato, a posse de bens, o casamento, a sucessão, isto é, como diz Kant: “o meu e o teu externo”. Além do mais, o direito natural à liberdade corresponde ao “direito privado” porque, no estado de natureza, a fonte do direto é vontade das pessoas e o tipo de obrigação é interno ou interior, consigo mesmo, em caso de não cumprimento das obrigações que resultam do exercício da liberdade inata.
9
estado “peremptório”, definitivo, o estado social, em que o meu e o teu externo se
encontram garantidos pela liberdade jurídica ou legal11.
[...] não se pode dizer que o homem em sociedade tenha sacrificado a um fim uma parte de sua liberdade exterior natural; mas sim que deixou inteiramente sua liberdade (...) sem freio para encontrar toda sua liberdade na dependência legal, isto é, no estado jurídico; porque esta dependência é o fato de sua vontade legislativa própria (grifo do autor) (Kant, 1993a: 155).
A passagem de um estado ao outro é feita seguindo um preceito que diz: o homem
deve sair do estado natural e entrar num estado civil. O contrato social, uma ideia que
possui uma “realidade”12, é importante na medida em que obriga o legislador a fazer
leis como sendo da vontade de todos que intervém no pacto ou, como diz Kant,
considerar cada súdito, uma vez que quer ser cidadão, como se tivesse dado o seu
consentimento à norma do legislador.
A este respeito, convém esclarecer que, constituído o estado civil, “há que supor” que
as normas do legislativo tem o apoio dos contratantes como se tivessem participado
da sua elaboração. O “suposto” do qual fala Kant é a solução encontrada para evitar,
como destacamos, o perigo da soberania popular rousseauniana: a participação ativa e
contínua do povo na elaboração das leis que pode levar a uma diminuição ou restrição
da liberdade individual. Assim, do ponto de vista kantiano: a soberania popular não é
algo efetivo do povo mas funciona apenas como um padrão, cabendo a soberania
totalmente ao governante (Terra, 1995: 9).
Cumpre insistir que o homem ao ingressar em sociedade não perde a liberdade natural
ou inata mas a reencontra na forma da liberdade jurídica ou legal: o meu e o teu
externo, isto é, as manifestações evidentes da liberdade ou livre arbítrio passam a ser
contempladas e recebem proteção jurídica através das normas do legislador.
O contratus originarius constitui um ato através do qual os contratantes se submetem
voluntariamente às leis que elaboram através dos representantes. O pacto kantiano
não obedece a um cálculo instrumental mas a uma exigência moral que ordena entrar
em sociedade para gozar de um bem que é bom em si, que é de todos e cada um - a
liberdade.
A obrigatoriedade de entrar em sociedade não obedece a um cálculo (de meios a fins),
baseado num juízo hipotético (se quero X devo fazer Y) mas a uma necessidade moral,
baseado num juízo necessário (devo fazer X). Esta forma da obrigação, devo realizar
algo como um fim em si e não como um meio, é importante porque permite a kant
“superar todos os sistemas morais” da época notadamente àqueles sistemas em que a
11 A “liberdade jurídica ou legal”, cujo conteúdo é igual à liberdade natural com suas manifestações mais evidentes: o contrato, etc, corresponde ao “direito público” porque, no estado civil, a fonte do direito é a vontade do legislador e o tipo de obrigação é externo ou exterior, diante de terceiros, em caso de não cumprimento das obrigações que resultam do exercício da liberdade jurídica. 12
O contratus originarius ou pactum sociale kantiano é uma “ideia regulativa”, isto é, um conceito que orienta o entendimento, mas que não se encontra em parte alguma na experiência.
10
obrigação corresponde não algo necessário moralmente mas a algo que é conveniente,
como meio, para obter outra coisa (por exemplo: a felicidade).
Tratar-se-ia do contraste entre “preceitos obrigatórios fortuitos” (em que o fim pode
ou não acontecer), que precisam de uma demonstração empírica, e de “preceitos
obrigatórios necessários”, que não são demonstráveis empiricamente. O preceito
kantiano segundo o qual devo entrar em sociedade não está sujeito a outro fim a não
ser o dele próprio. Única forma de estabelecer valores morais absolutos, algo bom em
si, a liberdade, que não está em função de outra coisa, a felicidade (Cassirer, 1993:
275; 276).
Em relação à complementaridade entre moral e direito podemos dizer que ela se dá
em nível do sujeito da norma, tipo de obrigação e, fim a ser obtido. Com respeito ao
sujeito da norma - quem prescreve a quem?, existe estreita relação entre o produtor
(sujeito ativo) e destinatário (sujeito passivo) da norma moral e jurídica, uma vez que o
ser numenal enquanto ser fenomenal, ou seja, o ser racional-moral enquanto cidadão,
através dos representantes, intervém na elaboração de leis que consagram o respeito
da pessoa, bem como a liberdade individual13. Além do mais, como destinatários de
ambas as normas, moral e jurídica, ficam sujeitos (ao igual que os governantes) a sua
obediência.
A convergência entre o sujeito da norma moral e da norma jurídica está dada pelo fato
de que as normas legais são produzidas por “um povo de juízo maduro” (Kant), ou seja,
por cidadãos emancipados, livres de qualquer tutela, “maiores de idade”, capazes de
elaborar leis condizentes com os postulados morais que também são capazes de criar:
as normas do legislativo por coerência racional coincidem com as normas autônomas
morais no sentido de que umas e outras orientariam a conduta numa mesma direção
(Bovero, 1992: 152).
No relativo ao tipo de obrigação - qual é a forma da prescrição?, a norma moral obriga
no foro interno e a norma jurídica no foro externo, a primeira não tem força vinculante
enquanto a segunda sim, a primeira está motivada pelo estrito cumprimento do dever
moral enquanto a segunda por elementos sensíveis: o medo de sofrer uma sanção
pelo não cumprimento da norma jurídica. Tal distinção é apresentada pelo filósofo
alemão nos seguintes termos: toda legislação compreende duas partes - uma que
representa objetivamente necessária a ação que deve ser cumprida, que faz da ação
um dever e, outra o móbil que liga o sujeito com um principio de determinação do
arbítrio em geral (Kant, 1993a: 48). A mola propulsora da obediência à lei moral está
dado pelo cumprimento do dever pelo dever mesmo enquanto a mola propulsora da
obediência à norma jurídica está dado por outro móbil, sensível, não sofrer sanção. A
13
Basta lembrar as constituições modernas e contemporâneas, como a CFB, que estabelece a dignidade da pessoa humana dentre os Princípios Fundamentais (Art. 1º) e a liberdade dentre os Direitos e Garantias Fundamentais (Art.5º).
11
diferença entre ambos os tipos de normas, moral e jurídica, é apenas formal: ela diz
respeito à forma da obrigação.
A complementaridade entre moral e direito acontece porque ambas se relacionam
com a liberdade, a primeira sob a forma do imperativo categórico: age de tal maneira
que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um, a segunda
sob a forma de ato legislativo, a liberdade legal ou jurídica, que garante o exercício do
livre arbítrio: o meu e o teu externo14. Em reforço desta interpretação vale citar mais
uma vez Kant quando diz que o direito é “o conjunto de condições segundo as quais a
liberdade de cada um pode coexistir com a liberdade de outrem segundo uma lei
universal da liberdade”. Tal convergência faz possível também que o postulado moral
da liberdade apareça cristalizado em condutas éticas, concretas, baseadas no respeito
do direito à liberdade individual.
No que tange ao fim das normas existe complementaridade entre moral e direito na
medida em que a norma moral visa o aperfeiçoamento da pessoa enquanto a norma
jurídica o goze do livre arbítrio que tem como único limite não interferir no arbítrio de
outrem. Em reforço disto, importa lembrar que o “conflito de opiniões”, segundo Kant,
baseado na liberdade individual, é a mola do progresso, isto é, do desenvolvimento da
pessoa. O aperfeiçoamento da pessoa, fundado na moral, requer portanto o respeito
de normas jurídicas que garantem a liberdade. Finalmente, existe complementaridade
porque a fim das normas jurídicas, e também da política (República), é a convivência
dos indivíduos: o fim da convivência das pessoas requer a realização (em nível jurídico
e político) da universalidade própria das normas morais (Bovero, 1992: 160).
Tal finalidade nós leva abordar a complementaridade entre moral e política. Segundo a
“teoria contratualista do estado”, a liberdade como postulado moral e como norma
jurídica pode dar-se num determinado tipo de Estado, a República, que se assenta na
divisão ou separação dos poderes. Única forma para kant, ao igual que Montesquieu,
dos homens gozarem efetivamente da liberdade individual, sendo que o despotismo,
para ambos os autores, é a concentração do poder nas mãos de um só no qual, como
diz o filósofo francês, “tudo estaria perdido”: a liberdade individual. Ou, seguindo o
filósofo alemão: “o despotismo é uma constituição que anula toda liberdade dos
súditos”, nele “não têm liberdade absolutamente alguma” (Kersting: 2012: 387).
Para Kant, a República trata os cidadãos como maiores de idade diferente do estado
“paternalista” ou “eudaimonista”, o despotismo, que trata os súditos como minores de
idade, que diz como devem viver, ser felizes, etc15. Para o filósofo alemão é impossível
definir um fim válido e estável sobre a felicidade e, isso porque as condições históricas
14 Ou seja, a liberdade, como exercício do livre arbítrio no estado de natureza (supra), recebe no estado civil a devida proteção jurídica através da liberdade legal. 15
O despotismo, destaca o filósofo alemão Leibniz, se ocupa não só da felicidade mas também dos bons costumes, ele é “mestre e sacerdote, empresário econômico, treinador esportivo, pedagogo, confessor e comerciante” (Bobbio, 1992: 138).
12
e representações da vida boa mudam à diferença da moral que é sempre a mesma,
baseada em postulados universais - a dignidade e a liberdade - bons em si mesmos. A
felicidade se encontra atrelada a avaliações particulares, a preferências pessoais, que
não podem “fornecer escala idêntica para medir o bem ou mal”16. A precedência da
dignidade e liberdade sobre a felicidade obedece ao fato de que a moral kantiana tem
seu princípio no sujeito e, não num bem objetivo cambiante que visa a felicidade
(Alquié, 1993b: VI).
A República para Kant é o oposto do despotismo: a república, afirma, aplica o princípio
da separação dos poderes enquanto o despotismo é a execução arbitrária das leis, nele
a vontade pública e substituída pela vontade particular. Trata-se do contraste
“governo da lei”, o “Estado de direito” (Staatrecht), que garante a fruição pacífica das
liberdades individuais e, o “do governo dos homens” (despotismo), que em nome de
um “fim qualquer”, tangível, restringe ou elimina a liberdade.
O que importa é o modo do exercício do poder, não o número de titulares (um, alguns,
muitos): nada impede, declara Kant, que exista um Estado ou República monárquica,
aristocrática ou democrática porque o importante é o “método de governo” - a divisão
dos poderes:
Parece então que, para Kant, o que distingue um governo despótico de um governo não despótico, seja a separação dos poderes. Isso é muito importante porque o estado liberal moderno afirmou-se inclusive introduzindo a técnica da separação dos poderes como remédio contra o arbítrio de quem detém a autoridade suprema no Estado, para garantir o indivíduo contra abusos eventuais dos governantes. Kant, considerando a separação dos poderes como elemento característico do estado republicano, ou seja, do estado não despótico, aceita no seu sistema um outro princípio fundamental da tradição liberal (Bobbio, 1969: 141-142).
Do exposto se depreende que o bem comum, entendido como a fruição das liberdades
individuais, implica uma justa constituição civil - uma unidade com funções (órgãos)
diferentes:
(...) esses poderes são em primeiro lugar coordenados entre si, no sentido de que um é a complementação necessária dos outros para a perfeição da constituição do Estado; em segundo lugar, subordinados, no sentido de que nenhum pode usurpar as funções dos outros dois; em terceiro lugar, unidos no sentido de que somente pela síntese de suas funções singulares é dado ao cidadão o que lhe pertence de direito (grifo do autor) (Bobbio, 1992:
142)17
.
16 Para Kant, a felicidade depende da natureza empírica de cada sujeito particular (por isso muda), à diferença das leis morais que não dependem de nenhum estímulo empírico e são válidas para todos (Chauí, 1978: XV). 17 Tal passagem lembrando àquela do Espírito das leis segundo a qual: “os três poderes devem caminhar em concerto” (Montesquieu, 1982: 109). O “principio da separação dos poderes de Montesquieu no qual Kant insiste” levando comentadores a dizer que “sua obra é em tudo simétrica ao Espírito das leis” (Cicco, 1993:7).
13
Na tripartição dos poderes, tal como entendida pelo autor, cumpre ao legislativo fazer
leis que garantem a liberdade individual enquanto ao poder executivo: a administração
do Estado e, ditar “ordens-decretos” (não leis) que se relacionam a casos particulares,
já ao poder judicial: aplicar a lei conforme o princípio “dar a cada um o seu”, ou seja,
em caso de litígio, estabelecer o que corresponde a cada em relação às “manifestações
mais evidentes” da liberdade que são (como vimos) o contrato, a propriedade de bens,
etc. Importa frisar que o poder legislativo, como representante da vontade coletiva, é
o órgão mais importante já que é o encarregado de fazer leis que garantem “o meu e o
teu externo” - a liberdade: “É preciso dizer desses três poderes, considerados na sua
dignidade, que a vontade do legislador (legislatoris) com respeito ao que concerne ao
Meu e o Teu exterior é irrepreensível” (grifo do autor) (Kant, 1993a:156).
O contrato social enquanto “ideia regulativa” (supra) consegue projetar sua realização,
nunca totalmente perfeita, para pontos indeterminados do decurso histórico (Duarte,
1996: 6). Isto é, uma forma de Estado, a República, baseada na separação dos poderes,
que, no decorrer do tempo, teria se conseguido garantir “o que pertence de direito” a
cada cidadão: a liberdade.
No que tange à felicidade, no contexto da República, importa dizer que cada um deve
procurá-la pela via que lhe pareça a mais apropriada com a única condição de que não
prejudique a liberdade de outro:
Por um lado a felicidade não é levada em conta no pensamento político kantiano, que não pode visá-la nem como fundamento nem como objeto da sua prática; por outro lado, preservada dessa forma da usurpação do político, ela é restituída plenamente ao indivíduo, sob condição de compatibilidade com a felicidade dos outros (...) A felicidade não poderia ser senão individual (não coletiva), sensível e mesmo empírica (...) Ela não é um motivo nem daquilo que existe de moral na vida moral nem daquilo que existe de político na vida política (Sève, 2003: 474).
Tal entendimento faz que o autor estabeleça o alicerce da argumentação liberal, isto é,
a incomensurabilidade das opiniões acerca da vida boa ou feliz, que compete a cada
indivíduo (não ao Estado) procurá-la pela via que lhe pareça mais conveniente. A
“felicidade do homem da rua” (Kant) depende das inclinações e/ou desejos de cada
indivíduo e, sendo assim nenhum poder político pode assumir a responsabilidade de
satisfazê-la (Caillè; Lazzeri; Senellart, 2003: 19-20).
Do exposto podemos apreciar o papel fundamental da liberdade individual, princípio
intocável, que não pode ser substituído por outro: a felicidade. Prova disso a seguinte
assertiva kantiana: a ideia da formação do estado não é o princípio da felicidade
universal, mas a liberdade segundo leis universais. Assim, se depreende do humanismo
kantiano que a liberdade tem absoluta prioridade sobre a felicidade ou, parafraseando
mais uma vez o autor, o bem sobre o agradável, tal prioridade, vale insistir, obedece
ao fato do postulado moral da liberdade: age de tal modo que teu livre arbítrio seja
compatível com o livre arbítrio de outrem, (bem como a dignidade), ser um valor em si
independente de qualquer fim tangível que visa à felicidade.
14
Tal postura faz que Kant relegue a felicidade ao telão de fundo de sua filosofia moral
(Heller, 1991: 100), que a felicidade seja imprópria para fundar a moral, o direito e a
política (Sève, 2003: 469), cabendo isso à liberdade. Trata-se, portanto, da prioridade
incondicional da liberdade por cima da felicidade, conhecida na literatura mais recente
como “regra da prioridade” (John Rawls). Procedendo assim, Kant dá munição para a
consolidação de um bem muito caro à tradição do pensamento liberal na medida em
que o Estado e as leis devem limitar-se a garantir o goze da liberdade individual.
O humanismo kantiano pode ser considerado um “liberalismo compreensivo” e, isso
pelo fato que se apoia numa doutrina moral profunda: uma doutrina que dá por
verdadeiras algumas teses extremamente fortes a propósito da natureza humana e se
comprometem com valores muito específicos sobre o que dá valor à vida (Silveira,
2003: 92). Ou seja, que se assenta em postulados morais, numa concepção numenal,
não natural da pessoa, através dos quais é possível chegar a valores inquestionáveis
(dignidade e liberdade). E também, como tentamos mostrar, porque tais postulados se
encontram na base de normas legais (liberdade jurídica) e de arranjos político-
institucionais (a divisão de poderes) que são compatíveis com os valores morais que
defende o autor.
15
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1
utilitarismo - democracia protetora, desenvolvimentista e procedimental
Fernando Quintana
Refletir sobre ética e democracia no decorrer da modernidade não pode prescindir de
uma importante corrente do pensamento, o utilitarismo, que avalia as ações, normas,
decisões e instituições não a partir de princípios tidos como intouchables (Kant) 1, mas
conforme as circunstâncias e vantagens obtidas pelos indivíduos ou a sociedade. Trata-
se de analisar um tipo de ética que se tornou “dominante - e, inter alia, a teoria da
justiça mais influente - há bem mais de um século” (Sen, 2000: 77).
Para isso, procuramos mostrar como do utilitarismo de Jeremy Bentham dá-se uma
“democracia protetora”, ligada ao liberismo econômico, baseada na propriedade
privada e liberdade de contratar diferentemente do utilitarismo de John Stuart Mill,
uma “democracia desenvolvimentista”, ligada ao liberalismo político, baseada no
épanouissement de la personalité (Macpherson, 1985: 29-98).
Na sequencia desta corrente, trazemos também a contribuição de Joseph Schumpeter,
a “democracia procedimental”, uma abordagem descritiva da democracia que, a pesar
do “déficit normativo”, não abandona pressupostos valorativos: o neoutilitarismo
individualista (Pizzorno, 1991: 330-331).
A reflexão de Bentham se inscreve num contexto dado pelo temor antecipado que
provoca o avanço de setores menos abastados da sociedade inglesa que exigem maior
participação política. Prova disso, a poussée democratique dada pela primeira Reform
Act de 1832 que amplia o sufrágio e se intensifica com o movimento cartista (“Carta do
Povo” de 1838), que exige o sufrágio universal e o voto secreto2. Tal situação, como
veremos, podendo trazer restrições ao direito de propriedade, base da riqueza, e que,
na sua opinião, constitui uma “parcela” da utilidade ou felicidade.
O utilitarismo emerge num ambiente intelectual de mal-estar que resulta da ausência
de uma lei ou princípio capaz de dar conta, do ponto de vista gnosiológico, das
profundas transformações políticas, sociais e econômicas da época3 e, isso à diferença
do avanço das ciências naturais (lei da atração dos corpos de Newton). Este atraso
1 Uma corrente de pensamento, como tentaremos também mostrar, que representa uma forte ruptura
com o kantismo, a pesar dos pontos em comum do utilitarismo de John Stuart Mil e Kant. 2 Em relação à evolução do voto na Inglaterra, conforme sucessivas Reforms Act, podemos registrar o
seguinte - 1832: 40.000 eleitores; 1867: 2 milhões; 1872: fim do voto secreto; 1884: direito de voto para os homens maiores de 21 anos, sem restrições de renda; 1919: direito de voto para as mulheres maiores de 30 anos; 1928: fim da desigualdade de idade entre homens e mulheres; e, 1969: sufrágio universal para todos os maiores de 18 anos. 3 A este respeito vale lembrar que as duas das principais obras de Bentham: Um fragmento sobre o governo e Uma Introdução aos princípios da moral e da legislação coincidem respectivamente com as datas da revolução nos EUA 1776 e da França 1789. No primeiro país, o autor troca correspondência com Adams e Madison, no segundo aporta ideias à Assembleia Nacional que o reconhece como “ilustre personalidade”.
2
pode ser ilustrado no fato de Bentham ter sido considerado o Newton da moral: “O
princípio de utilidade é a lei fundamental da natureza humana como o princípio de
gravidade é a lei fundamental da natureza física. Bentham teve a pretensão de ter sido
o Newton das ciências sociais” (Prieto, 1996: 618). Sem esquecer o fato de o filósofo
ter fundado uma escola (comparável à peripatética, kantiana, etc) que era inexistente,
na Inglaterra:
Esse panorama modificou-se com o aparecimento dos utilitaristas ou radicais, como também foram chamados os membros de um grupo que, nos fins do século XVIII e começo do XIX, elaboraram um conjunto de teorias defendidas em comum aplicadas a vários campos de indagação filosófica e científica. O grupo dos utilitaristas trabalhava em vistas do mesmo fim e seus componentes uniam-se na reverência a seu mestre: Jeremy Bentham (Pesanha, 1989: VI).
A doutrina utilitarista pode ser resumida no afamado princípio: a maior felicidade
possível para o maior número possível (Bentham, 1989: 3). A felicidade entendida, por
sua vez, como prazer e ausência de sofrimento ou, como diz John Stuart Mil: entendo
por ausência de sofrimento a privação do prazer (Mill, 1999: 45). A felicidade, então,
pode ser definida como “qualquer coisa que produza prazer e que evite a dor”. Ambos,
sofrimento e prazer, os dois “mestres soberanos”, que determinam o que fazemos e
devemos fazer, o certo e o errado (Sandel, 2012, 48).
Tal postulado é importante porque se encontra na base de uma moral que avalia ou,
como diz Bentham, julga qualquer ação individual ou medida de governo como boa ou
ruim. Uma máxima, portanto, que se inscreve nas antípodas da moral kantiana em que
o cumprimento do dever moral é bom em si independente da felicidade ou bem-estar
da sociedade4.
A moral benthamiana tira seu fundamento na experiência: a natureza, afirma o autor,
colocou a humanidade sob o domínio de dois senhores, a dor e o prazer, que sinalam o
que devemos fazer; por um lado, as normas do bem e do mal (útil e não útil), e por
outro lado, a cadeia de causas e efeitos que giram em torno deles. Com base nesta
premissa, baseada na experiência, as condutas, decisões governamentais, etc, passam
a ser avaliadas pelo “único critério racional e consistente” que dispomos, isto é, pelas
consequências prazerosas ou dolorosas de qualquer ação ou decisão sendo que os
significados das expressões valorativas (bom/mau, útil/não útil) só podem entender-se
neste contexto (MacIntyre: 1994: 225).
Para isso, o filósofo inglês elabora o “cálculo do prazer ou felicidade” que consiste em
mensurar a soma de prazeres para definir a maior felicidade do maior número e, isso
seguindo critérios objetivos tais como intensidade, duração, proximidade, certeza,
pureza, fecundidade e extensão do prazer. Trata-se, em todos os casos, de dados que
provêm da experiência que podem ser quantificados (Bentham, 1989:16; 18).
4 Cumpre recordar que para Kant a república não se ocupa da felicidade dos cidadãos (à diferença do
estado despótico ou eudaimonista que determina como os súditos devem ser felizes) mas deve, apenas, garantir a fruição da liberdade individual para cada um procurar a felicidade a sua maneira.
3
Tal procedimento, mensurar prazeres individuais ou de grupos, não conseguiu contudo
fazer de Bentham o “Newton da moral”, uma vez que a soma de prazeres tirados do
cálculo hedonista da felicidade se assentam em premissas pouco sólidas: “uma ficção”,
segundo o autor, “importante para o avanço do conhecimento”, mas, importa frisar,
duvidosa quanto a sua comprovação empírica, por exemplo, como medir/mensurar
objetivamente o felicific calculus dos estados mentais interpessoais da satisfação ou
privação da felicidade?
Apesar do utilitarismo benthamiano apresentar problemas no cálculo da felicidade não
por isso abandona a pretensão de erigir o princípio de utilidade como lei universal: um
intento de newtonismo aplicado às coisas da política e da moral, uma ciência que tem
o caráter de ciência experimental e exata, análoga à física newtoniana (Halévy: 1901:
3). Uma regra, a maior felicidade do maior número, que vem à tona cada vez que
somos confrontados a fazer avaliações da conduta do homem em geral mas também,
como diz Bentham, das medidas ou decisões do governo ou, como destacam outros:
A utilidade é uma tendência que se exerce em direção da felicidade (...) Nesse sentido, a utilidade é um princípio que preside à classificação de todas as instituições e que permite não apenas constituir teorias do direito, mas inspirar diretamente políticas e jurisdições (Cléro, 2003: 477).
O utilitarismo se opõe ao jusnaturalismo e contratualismo. Com respeito ao primeiro,
conforme Anarchical Fallacies de Bentham, porque o respeito incondicional de direitos
naturais imutáveis pode constituir um empecilho à consecução da felicidade. A crítica
benthamiana aos direitos do homem das declarações americana e francesa deve-se ao
fato de trata-se de direitos abstratos que não levam em conta a experiência e, por
conseguinte a realização da utilidade. Sendo assim, tais direitos podem ser sacrificados
em função da utilidade: as pessoas podem dizer que acreditam em alguns direitos
absolutos, mas esses direitos valem na medida em que podem maximizar a felicidade
(Sandel, 2012: 48-49).
Para o positivismo benthamiano não há direito fora da norma legal. A compatibilidade
entre direito e felicidade é possível porque o direito enquanto norma positivada (não
natural) contribui para a felicidade, assim, por exemplo, a norma jurídica que garante o
direito de propriedade, base da riqueza, que, como vimos, constitui uma “parcela de
felicidade”. Para o autor não existem direitos naturais imprescritíveis porque não pode
haver leis irrevogáveis. A meta da sociedade sendo a felicidade podem ser revogados
aqueles direitos que não contribuam para tal fim. Toda lei, afirma, é uma limitação da
liberdade, fazer desta última um direito sagrado e inviolável (Kant) pode arruinar a
autoridade do legislativo, encarregado de fazer leis em favor da utilidade.
O positivismo benthamiano implica uma separação da moral e direito pelo fato de que
todo saber se origina na experiência - as normas jurídicas e condutas delas decorrentes
são válidas na medida em que trazem vantagens concretas. Tal avaliação prescinde,
4
portanto, de qualquer juízo supra sensível, de uma moral a priori, em que as normas
são avaliadas a partir da sua conformidade com deveres e/ou direitos naturais.
Para Bentham: os direitos naturais é uma “pomposa tolice”, uma “metáfora perigosa”:
falar de direito natural é dar força à consciência, aos impulsos de cada um tomar as
armas contra toda lei que não lhe agrade. O direito que vale é o direito que cada um
possui efetivamente e torna possível àquelas ações que levam ao bem da sociedade
(Bentham, 1993: 148-157). Assim, da perspectiva benthamiana:
(...) não pode haver lugar para direitos que tem como base a essência do homem já que todo conhecimento provém das realidades singulares através dos sentidos, o único que pode conhecer-se portanto do mundo do direito são as leis estabelecidas publicamente pela sociedade e conhecidas através da experiência sensível (Correas, 1994: 51-52).
Em relação ao contratualismo, o estado como produto de contratus originarius (kant),
o empirismo benthamiano o rejeita pelo fato da impossibilidade de ser provado
historicamente e mesmo que comprovado ficaria o problema de saber por que os
homens devem cumprir o pacto. Com base nesta observação, a única possibilidade de
se admitir o contrato estaria dada pelo fato de trazer vantagens para a sociedade,
contudo esta possibilidade é rejeitada pelo autor uma vez que a sociedade, como diz
Bentham, ela já está sempre lá.
Juntando ambas as críticas podemos dizer que não é porque os homens terem direitos
naturais que os governos foram criados mas foram criados porque não tinham direitos,
e no que diz respeito à criação do estado que ela não é resultado do contrato mas, ao
igual que Edmund Burke, do costume: “um grupo de homens obedecer outro grupo de
homens durante o transcurso do tempo” ou, como afirma o filósofo David Hume,
contrário a teoria contratualista do estado, “os homens nascem necessariamente em
uma familia”, sem esquecer, também, que para o filósofo inglês os governos, na sua
origem, começaram pela força (Bentham, 1993: 157 -158).
Esta crítica aparece igualmente em Um fragmento sobre o governo quando afirma que
a ficção dos direitos naturais e do contrato subtraem o poder do legislativo tido como
a verdadeira e única fonte do direito, indispensável para a felicidade. Assim, do ponto
de vista benthamiano, toda ideia de lei natural ou de contrato original é um ideia falsa:
não existe direito natural anterior à criação ex nihilo de direitos e obrigações para o
soberano, sendo que este último se encontra ligado pelo sistema dos interesses e das
necessidades que consegue satisfazer (Laval, 1994: 30).
Prova disso, quando se refere à fonte política da felicidade em Um fragmento sobre o
governo, sob o título: “A maneira como uma assembleia deve proceder na formação
de suas decisões” (Capítulo VI). Isto é, uma situação em que pessoas são avaliadas em
função de medidas que tomam em prol da utilidade ou felicidade.
5
Bentham acredita que a natureza humana é movida pelo desejo de poder, de cada um
fazer valer seu interesse em detrimento dos outros. Tal premissa quando levada ao
campo político faz que o detentor do poder coloque seu interesse pessoal por cima do
interesse geral, como afirma Bentham em Constitucional Code:
Todo organismo composto de homens, incluso àquele que tem o poder de legiferar e de governar se deixa levar pela ideia que tem do seu interesse, no sentido mais estreito e mais egoísta do termo, e jamais pela menor consideração do interesse dos outros (Macpherson, 1985: 44).
Com base nesta visão realista da natureza humana e dos detentores do poder, o autor
propõe um remédio: a democracia que evita o triunfo do interesse dos governantes e
impede dois males ligados ao exercício do poder - a corrupção e a opressão -, como
destacam vários estudiosos: partindo de tais convicções e graças ao desenvolvimento
do princípio de utilidade Bentham procura fundar uma adesão radical à democracia
(Cléro, 2003: 479).
Efetivamente, diante da monarquia inglesa que privilegia o interesse de poucos e cuja
separação de poderes é insuficiente para realizar o bem-estar, o autor propõe alguns
“mecanismos contra o mau governo” que permitam a junção de ambos os interesses:
governantes e governados. A chamada “benevolência benthamiana” procura evitar o
descompasso entre esses interesses, apesar da visão realista da natureza humana e
dos detentores do poder.
Contra o aumento desigual na repartição das vantagens à sociedade que caracteriza à
monarquia e em favor do aumento da democracia nas instituições políticas, defendido
em Plan of parliamentary reform, Bentham prevê uma série de medidas, a partir das
primeiras décadas do século XIX, que podem ser resumidas no seguinte comentário:
O voto secreto, o sufrágio universal que queria estender às mulheres apesar dos preconceitos da sua época, a igualdade territorial dos distritos, as eleições anuais eram todas medidas necessárias para acabar (com o descompasso entre interesses dos deputados e dos eleitores). Sua reforma radical dava ao poder legislativo, que depende do povo, uma ‘omnicompetência’, que encontrava freio apenas na constituição. Não havia mais Câmara dos Lordes, mas só uma Câmara de deputados escolhidos pelo sufrágio universal que votam a lei e designam o primeiro ministro à frente do governo e da administração (Laval, 1994: 101-102).
O voto universal e secreto é importante porque funciona como garantia contra o mau
governo5, ele produz autenticidade na manifestação do interesse do eleitor diante da
pressão de grupos dominantes, além do mais a eleição periódica dos representantes e
sua remoção contínua evita o triunfo de “interesses sinistros” (sinister interest) ou
particulares. A vantagem do sistema representativo está dada pelo fato de assegurar 5 Bentham em 1809 é favorável à limitação do voto: só para os proprietários que pagam impostos, exclui os pobres, os iletrados e as pessoas que se encontram na dependência de outras e, também as mulheres. Apesar de pronunciar-se em favor do sufrágio universal para os homens, em 1820, manifesta, em várias oportunidades, que o voto deve ser limitado aos proprietários, contudo era consciente que esta medida seria dificilmente aceita porque implicava uma privação para a maioria dos homens adultos.
6
que cada decisão do representante seja tida como decisão própria do eleitor, uma
junção de ambos os interesses, que faria possível a felicidade do maior número. Sem
esquecer a liberdade de opinião e de imprensa, defendida também por Bentham, que
permite fiscalizar a atividade dos governantes, sendo que tal liberdade, importa frisar,
não se funda no direito natural, mas na utilidade que possa trazer para o interesse
geral (Prieto, 1996: 621).
O autor prevê também a criação de um “tribunal da opinião pública” cuja função é dar
publicidade aos atos do governo. Tratar-se-ia, segundo comentadores, de uma versão
democrática do Panóptico benthamiano em que os governantes são “submetidos ao
olhar e expostos a critica do povo”. Uma instituição que não se limita a condenar
moralmente a conduta dos representantes, mas com força suficiente para colocar e
tirar deputados quando fazem valer seus interesses sobre os interesses da sociedade
ou praticam a corrupção.
Por último, defende uma burocracia em que a seleção dos funcionários é feita
seguindo dois princípios: mínimo de confiança e máximo de controle, na sua relação
com o governo. Única maneira, segundo Bentham, junto com o recrutamento por
concurso e remuneração acorde com o cargo, de dar unidade ao estado e utilidade a
cada função (Laval, 1994: 120).
Exposto em grandes linhas o modelo benthamiano vale destacar certas discrepâncias
que suscita no contexto em que foi elaborado: o nascimento e desenvolvimento de um
tipo de sociedade, a sociedade do laissez-faire, laissez-passer, que se assenta numa
concepção competitiva do homem centrado na realização do seu interesse particular
(Macpherson, 1985: 31). Esta correlação é pertinente se levamos em conta a opinião
de que o princípio de utilidade funciona corretamente de modo espontâneo no âmbito
econômico, porque os interesses se encontram livremente conciliados pelo mercado
(Prieto, 1996: 620).
Sobre esse tipo de sociedade importa lembrar algumas premissas smithianas. Assim,
em Teoria dos sentimentos morais, quando o autor declara que cada pessoa deve ser
primeira e deixada ao seu próprio cuidado; cada pessoa é mais apta e capaz de cuidar
de si do que qualquer outra pessoa. Tal posição, quando levada ao campo econômico,
implica uma crítica a qualquer regulamentação do governo que procure proteger ou
beneficiar certas atividades ou grupo de indivíduos, uma vez que se criam privilégios
que impede de cada um cuidar de si (Singer, 1978: XI).
Segundo Investigação sobre a natureza e causas das riquezas das nações Smith afirma
que o bem-estar da nação depende de sua riqueza; o produto da riqueza está dado
pela soma dos produtos dos habitantes; cada habitante tem interesse em maximizar
seu próprio produto se é deixado em liberdade; na realização desse objetivo só pensa
em seu próprio ganho e é conduzido por uma mão invisível a promover um fim que
não estava previsto, isto é, o bem-estar da sociedade (Cropsey, 1992: 611).
7
Tais postulados da economia política clássica, segundo críticos, servindo aos interesses
dos manufatureiros primeiro e mais tarde dos industriais (século XIX): uma mudança
em que os escritos benthamianos parecem antecipar o que vai acontecer - a revolução
industrial (1850) que traz consigo uma poussée démocratique dos menos favorecidos
da sociedade, que exigem maior participação política.
A benevolência benthamiana, a maior felicidade para o maior número, com o triunfo
da sociedade do mercado ou laissez-faire, tendo o “infortúnio” de dar-se no contexto
do liberismo econômico6:
O princípio de Bentham, com efeito, não possuía apenas um valore prescritivo, mas também um valor explicativo: aquele pelo qual ele reencontrava a economia política colocando à frente o egoísmo de cada agente orientado ao crescimento do seu proveito (...) a economia política tinha fixado seus princípios na ênfase dada a esse comportamento interessado. Ela sustentava que, na esfera da produção e da troca, os agentes econômicos são determinados unicamente pela busca de seus interesses sob a forma de proveitos materiais (grifo do autor) (Caillé; Lazzeri; Senellart, 2003: 31).
O triunfo do liberismo implica normas jurídicas e um regime político, a “democracia
protetora” (Machperson), em que certos direitos devem ser protegidos, notadamente,
a propriedade privada e liberdade de contratar. Assim, diante do dualismo: igualdade
e proteção, no contexto da sociedade do laissez-faire, esta última tem prioridade sobre
a primeira, a função da lei e governo é dar proteção a ambos os direitos - compatíveis
com este tipo de sociedade.
Os princípios da economia política clássica são endossados por Bentham em Defesa da
usura, obra contemporânea aos escritos smithianos ao afirmar, por exemplo, que o
homem é o melhor juiz de seus próprios lucros e que é desejável, do ponto de vista
público, obtê-los sem interferência do governo. Trata-se da solution smithiana, da não
regulamentação ou intervenção no andamento da economia, o mercado, que deve ser
regido exclusivamente pela lei da oferta e da procura numa sociedade na qual cada
segue seu interesse particular.
Em reforço disto cabe insistir que os bens materiais ocupam um papel decisivo no
utilitarismo benthamiano: “cada parte de riqueza, afirma, corresponde a uma parte de
felicidade”; “o dinheiro é o instrumento que permite medir a dor ou o prazer” e
quando arremata na mesma obra - “quem não entenda isso deve dizer adeus à política
e à moral”.
Assim, a riqueza material baseada na propriedade privada é o principal instrumento na
consecução da felicidade. Prova disso, Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação em que o filósofo pergunta: qual é a razão que faz com que a propriedade
6 O termo liberismo é utilizado pela literatura italiana (Croce, Bobbio, Bovero, Sartori) para designar aquela “parte” do liberalismo relativo à economia, o laissez-faire, laissez-passer, uma sociedade livre, de mercado baseada na liberdade ou independência econômica.
8
tenha valor? Resposta: os prazeres de todas as espécies que a propriedade capacita
um homem a produzir (Bentham, 1989: 18).
Retomando premissas benthamianas: riqueza e poder andam juntos; cada um deseja
fortemente empregar os serviços de seus semelhantes para aumentar seu próprio
bem-estar, podemos dizer que os “remédios democráticos”, previstos pelo autor
(supra), não se cumpriram, mais ainda que tais pressupostos fazem de ele o “precursor
da sociedade de classe”. Uma sociedade em que a proteção da propriedade privada, a
liberdade de contratar e o desejo por mais riqueza são os principais fatores para
assegurar um máximo de produtividade - felicidade (Macpherson, 1985: 42), mas sem
por isso, vale destacar, trazer mais benefícios para toda a sociedade:
A economia política de Bentham resume-se ao célebre imperativo do “laissez-faire”, é a palavra-chave, a mensagem que deve ser dada claramente ao governo (...) Com esse regime se chegará a uma nação rica, portanto a nacionais enriquecidos! É difícil ver como dessa proposta política poderia sair o aumento da felicidade da maioria! Ou de que maneira a riqueza de um punhado significa a riqueza da maioria (Onfray, 2013: 116).
O predomínio do espírito aquisitivo de bens, numa sociedade marcada pela existência
de classes, faz que os proprietários da riqueza (industriais) sejam os mais beneficiados
em detrimento daqueles, proprietários da força de trabalho, que tem apenas esta
“mercadoria” para oferecer no mercado. A este respeito, cabe lembrar, o “grupo
manchesteriano” (grupo de industriais) que, no início da década do século XIX, exige
“liberdade absoluta para seus negócios” e prática uma política contra os trabalhadores
para reduzir custos (jornadas de 17 horas, emprego de mulheres e crianças, repressão
de associações operárias, etc)7- que levou a condições de miséria a classe trabalhadora
diante dos avanços industriais (Prieto, 1996; 616).
Tratar-se-ia, portanto, de uma sociedade em que o direito de propriedade e liberdade
de contratar são colocados como invioláveis diante das tendências democráticas e
niveladoras da época (movimento cartista). O modelo político benthamiano, que visa
teoricamente a felicidade do maior número, fica reduzido a um regime de proteção da
propriedade que beneficia alguns. Em tal contexto, a sociedade de mercado, a tarefa
do governo e função das leis não é outro que o de proteger este direito e a realização
os contratos. Opinião esta que é endossada por outro importante representante do
utilitarismo radical, James Mill, para quem a “propriedade é uma instituição que se
legitima por sua utilidade, sendo função essencial protegê-la e deixar ao proprietário
em liberdade para que possa perseguir seu interesse pessoal” (Prieto, 1996: 622).
Em reforço da crítica machpersoniana à “democracia protetora”, convém trazer mais
uma vez a posição de James Mill segundo o qual a vantagem do exercício do sufrágio
está no fato de cada indivíduo ficar protegido do poder dos outros e dos governantes.
Tal assertiva pode ser interpretada no sentido do sufrágio ter uma função protetora e
integradora já que a propriedade e liberdade de contratar são compatíveis com a 7 Tal grupo põe em prática, também, o truck sistem que permite o empregador manter o empregado
em trabalho de servidão por dívidas contraídas.
9
sociedade de classe. Assim, cabe citar a proposta de James Mill: direito de voto para os
homens maiores de 40 anos e, isso com o intuito de “não assustar” os proprietários e
apaziguar as tendências niveladoras e democráticas dos menos favorecidos da
sociedade que exigiam, como vimos, maior participação política e melhores condições
de trabalho (Carta do Povo)8.
Quanto ao perigo desta tendência acontecer convém trazer a posição de Bentham em
Constitucional code: “Quando a prosperidade geral atinja o mais alto patamar, a
grande massa de cidadãos não contará com mais recursos que os provenientes de seu
trabalho e, assim se encontrará no limite da indigência” (Macpherson, 1985: 36).
Esta crítica ao utilitarismo encontra respaldo no fato de que a propriedade privada a
pesar de trazer felicidade não implica uma distribuição mais equitativa da riqueza.
Efetivamente, importa destacar que para a versão radical, canônica, do utilitarismo o
bem-estar é independente da forma como são repartidos ou distribuídos os bens. A
este respeito, o seguinte exemplo: uma sociedade de três indivíduos em que um deles
obtém quatro unidades de totalidade de bem-estar e os outros nada é melhor que
outra sociedade em que cada um de seus três integrantes tenha uma unidade de
totalidade de bem-estar. O problema do utilitarismo é de ser meramente agregador (a
soma de unidades de bem-estar) sem preocupar-se pela distribuição das unidades de
bem-estar (Nino, 1989: 241; 242).
Quanto à sociedade triunfante no século XIX ela se apoia em certos pressupostos que
vale lembrar: aceitação da sociedade de mercado; concepção egoísta do homem na
procura de bens materiais com interesses particulares e conflitantes entre si sendo sua
meta obter o maior grau de prazer ou felicidade individual.
Com base nestas premissas, o regime político passa a ser concebido na sua dimensão
procedimental: o melhor arranjo institucional para escolha dos governantes cuja tarefa
é resolver pacificamente os desejos e interesses conflitantes da sociedade, sendo que
as decisões não devem interferir no livre funcionamento do mercado. O principal
objetivo do governo é garantir certos direitos individuais, a propriedade privada e a
liberdade de contratar que se encontram, vale reiterar, na base da riqueza e da
felicidade. Em tal contexto, a liberdade assume um viés nitidamente negativo no
sentido da ausência de interferências externas do governo no comportamento dos
indivíduos.
O problema do utilitarismo benthamiano, preocupado com o bem-estar da sociedade,
radica no fato de colocar a riqueza, baseada na propriedade, como fundamental, tal
8 As reforma de James Mill excluía o direito de voto das mulheres e, quanto à limitação do voto a homens maiores de 40 anos tal medida podia significar uma diminuição do número de eleitores da classe operária em proporção maior daqueles da classe mais abastada, tendo em conta a menor proporção de pobres que atingem essa idade (Machperson, 1985: 50) ou, segundo opinião de outros críticos: a solução proposta por James Mill consistia simplesmente em estender a representação à classe média industrial, tida pelo autor como a parte mais sábia da comunidade (Sabine, 1984: 506).
10
situação faz que seja difícil conciliar tal direito com a felicidade do maior número, uma
vez que numa sociedade de classe a propriedade da riqueza fica restrita a uma parcela
da sociedade. Sem esquecer que a maximização do bem-estar pode levar a uma
instrumentalização de indivíduos se o beneficio a ser obtido pelos mais abastados é
superior, ou seja, se há um incremento da utilidade social.
A democracia, baseada em premissas utilitaristas, parece dar munição à “sociedade de
classe” já que no contexto da sociedade de mercado são os proprietários de bens e
riqueza os maiores beneficiados porque contribuem mais que outros para o “bem-
estar geral”. Tratar-se-ia de uma sociedade, segundo críticos, em que os valores “não
vão além de um apêndice da riqueza”. Riqueza, aliás, que fica limitada a uma parcela
da sociedade que, enquanto proprietária de bens materiais, se apresenta como porta-
voz do interesse comum.
O espírito benevolente benthamiano: cada indivíduo deve perseguir sua própria ideia
do bem junto a outros com a finalidade de atingir o bem-estar geral converteu-se, com
o decorrer da sociedade de mercado, em “espírito aquisitivo”, lembrando Aléxis de
Tocqueville, uma sociedade que dá vazão à satisfação dos prazeres pequenos e
vulgares dos indivíduos que resultam da aquisição de bens materiais. A benevolência
benthamiana em vez de altruísta, de favorecer a felicidade ou bem estar de muitos, é
substituída pela felicidade individual, voltada para si, que não se interessa pelo bem-
estar do outro mas pelo bem-estar próprio, baseado na aquisição e gozo de bens
materiais.
Voltando ao confronto do início, kantismo-utilitarismo, vale destacar a “desconfiança”
que suscita este último para os partidários do primeiro que, em nome do princípio de
utilidade, bem-estar, a dignidade e liberdade, valores morais intocáveis, podem sofrer
restrições. A justiça que acena o imperativo moral kantiano da liberdade não admite
que fique à mercê de um princípio teleológico, empírico, a utilidade, que muda em
função das circunstâncias e vantagens a serem usufruídas pela sociedade.
Tal postura, de inspiração kantiana, é acompanhada por vários críticos que condenam
o utilitarismo por não levar os direitos humanos em sério ou, ainda porque sacrifica ou
instrumentaliza as pessoas em nome de um suposto bem coletivo (Carvalho, 2000: 99).
Em reforço desta crítica, cumpre lembrar, que o utilitarismo benthamiano não aceita
que a felicidade fique atrelada a princípios abstratos, imutáveis, os direitos naturais, à
diferença do direito positivo que é avaliado em função do resultado que pode trazer: a
felicidade.
Diferentemente de “doutrinas kantianas” que defendem a primazia do justo (fair), do
direito (right), o utilitarismo defende a primazia do bem (good). Sendo assim, a justiça
é tida como resultado de um cálculo racional que, através de meios adequados, torna
possível a maximização do bem-estar total ou médio do grupo sobre o qual incide. Em
contraposição da tradição kantiana que, baseada numa racionalidade deontológica, ou
11
seja, no dever irrestrito ao cumprimento de postulados morais não admite que fiquem
sujeitos a uma finalidade: o bem-estar. Tratar-se-ia da regra da prioridade em que o
justo e o direito tem prioridade sobre o bem.
A continuação vale deter-nós na importante contribuição de John Stuart Mill (filho de
James Mill) ao utilitarismo. Mais especificamente como a partir da defesa rigorosa que
faz da liberdade individual é possível um utilitarismo qualitativo e uma “democracia
desenvolvimentista”, no sentido d´épanouissement de la personalité (Macpherson).
Em contraste com o utilitarismo dos antecessores (Bentham e James Mill), John Stuart
entende que não há “coincidência entre felicidade pessoal e à do maior número”, tal
constatação faz que abandone a ideia que a comparação entre prazeres é ou pode ser
estritamente quantitativa (MacIntyre: 1994:-228). O utilitarismo milliano representa
uma mudança considerável na avaliação da felicidade: um utilitarismo qualitativo (não
quantitativo) em que a felicidade não pode ser reduzida à soma do bem-estar de
indivíduos ou grupo de indivíduos, mas ao desenvolvimento das capacidades humanas
que passam pelo exercício da liberdade individual. Neste sentido, o bem-estar não
pode ser assimilado à prosperidade econômica já que este conceito inclui outros
aspectos que não são econômicos. Tratar-se-ia do famoso debate, até os dias de hoje,
entre bem-estar, vida boa e liberdade.
Para John Stuart há uma hierarquia dos prazeres9 sendo que os “prazeres superiores”,
intelectuais e espirituais, tem precedência sobre os “prazeres inferiores” ligados ao
corpo (Epicuro) ou “puramente materiais”. Apesar de admitir que melhoras materiais
são importantes para a felicidade, o autor vai mais longe ao sustentar que a liberdade
individual é fundamental para o desenvolvimento da pessoa. Tal posição faz com que a
liberdade não possa ser sacrificada em nome do bem-estar, uma vez que ela torna
possível o desenvolvimento das capacidades humanas que se encontram na base da
felicidade. Para o utilitarismo qualitativo: desenvolver o próprio caráter e capacidade
pessoal (que passa pelo exercício da liberdade) não é um meio para a felicidade, mas
uma parte substantiva da felicidade (Sabine, 1984: 518).
Sendo assim, o tratamento dado aos direitos muda no sentido de não terem apenas
uma relevância instrumental num contexto legal (Bentham), mas um valor normativo
intrínseco (J.S.Mill). Tratar-se-ia de duas formas de ver os direitos. Na perspectiva
benthamiana - a coerção nessa área será ou não aceitável dependendo totalmente de
9 A este respeito cabe contrastar o exemplo de Bentham: “o jogo de alfinetes é tão bom como a poesia se produz o mesmo prazer” diante de John Stuart que diz: “é melhor ser Sócrates infeliz que um bobo ou idiota infeliz”. Importa lembrar que os dois principais educadores do filósofo inglês (Bentham e seu pai) lhe proibiam de ler poesia: “obra da idiotece” e de “erros humanos”. Contudo, a hierarquização ou qualificação dos prazeres, defendida pelo autor, traz problemas porque a prática de qualquer jogo pode trazer mais prazer do que ler uma poesia, apesar desta ser considerada mais valiosa ou elevada (Sandel, 2010: 15-16).
12
suas consequências em relação à utilidade ou, em perspectiva milliana - o respeito aos
direitos é prioritário em relação a qualquer cômputo de consequências (Sen, 2000:
244). Utilitarismo consquêncialista versus utilitarismo normativo.
O que preocupa a John Stuart é que “Bentham e James Mill não queriam outra coisa
que o prazer obtido pelo método mais eficaz” fazendo com que a moralidade fique
reduzida a um problema de fins e meios e esqueçam o mais importante: a capacidade
do homem escolher a melhor forma que leve à felicidade. Assim, diferentemente de os
dois autores, o mais relevante é o exercício da liberdade individual que supõe, vale
reiterar, o desenvolvimento das capacidades humanas:
(...) quanto mais variadas sejam as formas (de escolher a felicidade) tanto mais ricas serão as vidas dos homens; quanto mais amplo seja o campo de interseção entre os indivíduos, tanto maiores serão as oportunidades de coisas novas e inesperadas; quanto mais numerosas sejam as possibilidades de alterar seu próprio caráter para uma direção nova ou inexplorada, tanto maior será o número de caminhos que se abrirão para cada indivíduo e tanto mais ampla será sua liberdade de ação e pensamento (Berlin: 1993: 15).
Importa acrescentar que a visão da natureza humana milliana não se reduz ao desejo
pelo poder e fazer valer o interesse pessoal sobre os outros (Bentham). Esta concepção
estreita da natureza humana teria o inconveniente de não levar em conta os ideais
comuns, as lealdades, o caráter nacional que, em sua opinião, fazem possível manter
uma sociedade unida. Sem esquecer outra crítica milliana: Bentham não entende de
honra, dignidade, de amor à beleza, somente compreende o aspecto negócio da vida
(Berlin: 1993: 18).
A posição de John Stuart encontra eco no kantismo já que ambos os autores defendem
a liberdade como um direito intouchable, porém existem diferenças: kant defende a
separação da liberdade e felicidade, a primeira faz parte do mundo supralunar e não
depende da segunda, que faz parte do mundo sublunar, para ser válida, enquanto para
o filósofo inglês ambas são indissociáveis, se reforçam mutuamente, “no mundo”.
Tal diferença deve-se ao fato que do rigorismo moral kantiano resulta uma “ética do
sofrimento” para ganhar a eternidade - da ótica kantiana: tempo de viver é tempo de
sofrer, a “moral kantiana não mostra o caminho da felicidade, mas, pelo contrário o
sacrifício e o esforço, que nos farão dignos ao final de ser felizes” (em outro lugar). Em
reforço disto vale lembrar que kant defende a “imortalidade da alma” como prêmio da
pessoa respeitar os imperativos categóricos diferentemente da moral utilitarista da
qual resulta uma “ética da felicidade” para este mundo - da ótica milliana: ética é arte
de viver (grifo do autor) (Guisán, 1999: 10; 11).
John Stuart propõe um compromisso entre liberalismo e democracia: uma conciliação
da liberdade individual e a integração progressiva dos menos favorecidos da sociedade
13
através do “voto plural” que cumpre uma função didática - dada pelo grau de instrução
do eleitor. A democracia milliana visa à possibilidade de cada indivíduo desenvolver
suas aptidões ou qualidades através do exercício da liberdade individual e também da
participação política, o voto, cujo peso vai depender do preparo do eleitor. Tal medida,
o voto plural, tendo como objetivo que maiorias mal preparadas, poucas instruídas,
façam valer seus interesses em detrimento das minorias.
As principais obras do autor - Considerações sobre o governo representativo, Sobre a
liberdade, e O utilitarismo - mostram que forma de governo, liberdade individual e
prazeres superiores andam pari passu, são indissociáveis. A importância da democracia
representativa não se deve ao fato de ser o instrumento mais eficaz para o bem-estar
(Bentham, James Mill) mas, porque permite o exercício da liberdade individual e por
tabela o desenvolvimento das capacidades, sem esquecer que o voto plural tem como
objetivo evitar que interesses das minorias sejam sufocados pelos da maioria.
Quanto ao tipo de liberdade defendida pelo autor ela diz respeito à conhecida fórmula
de Benjamim Constant da liberté des modernes ou, “liberdade negativa” que consiste
na “área em que um homem pode agir sem sofrer a obstrução de outros”, sendo que a
“coerção é a deliberada interferência de outros seres humanos na área em que eu
poderia atuar” (Berlin, 1981: 136). Tal concepção da liberdade pode ser ilustrada no
seguinte comentário que aparece na Introdução Sobre a liberdade:
Mill acredita na liberdade, ou seja, numa rigorosa limitação do direito de coerção, porque está seguro de que os homens não podem desenvolver-se e chegar a ser completamente humanos ao menos de encontrar-se livres de interferências por parte dos outros homens de uma esfera mínima de suas vidas, que ele considera - ou deseja tornar - inviolável (Berlin: 1993: 30)10.
No que concerne à propriedade, cumpre destacar que John Stuart diverge da opinião
dos fundadores do utilitarismo: a propriedade como um direito exclusivo. O “princípio
equitativo” da propriedade, proposto pelo autor, significa que a propriedade deve
assegurar aos indivíduos “os frutos de seu próprio trabalho” e não “os frutos do
trabalho dos outros”. Assim, a propriedade pode ser aceita sempre e quando exista
uma repartição dos frutos do trabalho entre assalariados e os detentores do capital
(Macpherson, 1985: 70).
A democracia milliana se funda no governo de expertos, isto é, um governo, não eleito,
formado de pessoas com experiência e bom preparo cabendo ao povo controlá-los
através de deputados escolhidos periodicamente. A importância do legislativo é que
funciona como um Congresso de Opiniões, que discute diferentes pontos de vista que
se relacionam com os negócios públicos, e Comitê de Queixas diante das demandas da
sociedade. A este respeito afirma em Considerações:
10 Apesar de Berlin discordar de John Stuart de que a coerção seja algo “ruim em si”.
14
Ao “ter uma mostra proporcional de cada grau de intelecto que tem direito a uma voz nos negócios públicos”, sua função seria “indicar as carências, ser órgão das demandas populares e usar de discussão adversa de todas as opiniões relacionadas com os assuntos públicos” (Magid, 1992: 746).
O “voto plural”, cada voto depende do grau de instrução ou formação do eleitor, faz
com que a escolha dos mais preparados seja unificada - a representação pessoal. Tal
medida, junto com o “voto não secreto” fazendo possível uma maior responsabilidade
do eleitor11. As propostas de John Stuart não visam apenas dar uma resposta à poussé
democratique da época, que exige maior participação política, mas um regime político
que, de forma progressiva, paulatina, consiga incorporar cidadãos mais preparados à
vida política.
Prova disso é que a sociedade “deve dar educação básica para todos àqueles que o
desejam”. Tal proposta sendo compatível com o desenvolvimento das capacidades da
pessoa uma vez que se trata de formar eleitores com preparo suficiente para participar
das deliberações públicas:
Ser deixado de fora da Constituição é um grande desencorajamento para um indivíduo e ainda maior para uma classe; bem como ser obrigado a implorar aos árbitros de seu destino, sem poder tomar parte da deliberação. O ponto máximo do efeito revigorante da liberdade somente é alcançado quando o indivíduo por ela ativado (e, também pela educação) tornou-se, ou está procurando tornar-se, um cidadão de privilégios tão plenos quanto qualquer outro (Mill, 1989: 222).
Para o autor, a liberdade de pensamento, opinião, discussão são fundamentais para o
funcionamento do regime representativo porque, cumpre reiterar, a existência de
vários pontos de vista enriquece a atuação do legislativo encarregado de atender as
demandas da sociedade. O pluralismo, a diversidade de opiniões, além de fundamental
para o “progresso do conhecimento e da civilização”, enriquece a vida política: Na política é quase um lugar-comum que um partido da ordem ou da estabilidade e um partido do progresso ou da reforma sejam elementos necessários ao estado saudável da política; até que um ou outro tenha alargado tanto seu poder intelectual que possam ser ao mesmo tempo um partido da ordem e do progresso, distinguindo o que merece ser conservado e o que dever ser descartado. Cada um destes modos de pensar deriva sua utilidade das deficiências do outro, mas é, em grande medida, a oposição do outro que mantém cada um dentro dos limites da razão e da sanidade (...) A verdade, nos grande domínios práticos da vida, é de tal modo uma questão de conciliar e combinar contrários (Mill, 1993:113).
11 John Stuart é favorável à exclusão do voto daqueles que dependiam da assistência pública e dos que não sabiam ler nem escrever, mas era favorável ao voto das mulheres sem explicar, contudo, porque o voto das mulheres com menos preparo ou instrução devia valer mais. Tal atitude pode ser justificada, talvez, pelo fato do filósofo inglês ser um defensor do feminismo sobretudo depois de conhecer sua mulher Harriet Taylor, da qual recebeu forte influência. Ambos defendiam a igualdade do homem e da mulher no casamento e também a necessidade de equiparar os direitos deles na vida pública.
15
Lembrando kant defende que o “governo representativo”, a democracia, respeitosa da
liberdade individual, é o contrário de um “ditador benévolo”, supostamente sábio e
imparcial que promove a felicidade do maior número. Tal situação é descartada por
John Stuart já que a felicidade enquanto fruto do desenvolvimento das capacidades
passa pelo gozo da liberdade individual e pela participação progressiva do cidadão nos
negócios públicos.
À diferença do despotismo que implica passividade: “Um homem de atividade mental
sobre-humana dirigindo todos os afazeres de um povo mentalmente passivo”, a
democracia supõe “indivíduos livres” (“maiores de idade”diria Kant), em que os altos
objetivos que devem cultivar, excelência intelectual, prática e moral, requerem um
caráter ativo (Magid, 1992: 745):
(...) dentre os dois tipos comuns de caráter, qual seria desejável que predominasse - o ativo ou o passivo - aquele que combate os males, ou aquele que os suporta: aquele que se curva às circunstâncias, ou aquele que se esforça para que as circunstâncias se curvem (...) Não pode haver nenhuma dívida de que o tipo passivo de caráter é preferido pelo governo de um ou de poucos e que o tipo de ativo e independente é preferido pelo governo da maioria (popular) (Mill, 1989: 221).
O “progresso da coletividade” tão almejado por John Stuart deve ser compreendido no
contexto da sua reflexão: a exigência de maior participação política proveniente dos
setores menos preparados e abastados da sociedade. Sendo assim, a proposta de
“ampliação da instrução básica” pode ser entendida no sentido da sociedade contar,
paulatinamente, com cidadãos cada vez mais qualificados para participar da política e
fazer uma “boa escolha” através do voto. A melhor formação do eleitorado permitindo
ademais que o voto seja paulatinamente mais igualitário - frente ao “voto plural”.
O utilitarismo qualitativo milliano segundo o qual a felicidade e o desenvolvimento das
capacidades humanas caminham pari passu encontra eco no liberalismo democrático:
uma democracia progressivamente mais inclusiva respeitosa da liberdade individual,
que exige cidadãos preparados intelectual e moralmente - caso contrário: a maioria
pouca instruída e menos abastada (como era o caso da sociedade inglesa da época)
escolher representantes, pelo sufrágio igualitário, que faça prevalecer seus interesses
ou, ainda pior, tome medidas contrárias ao principal objetivo do governo - o respeito
da liberdade individual que se encontra na base do desenvolvimento da pessoa, mas
também, como diz em Sobre a liberdade, de progresso civilizatório.
Talvez, o mais importante que deixa o utilitarismo “humanista” de John Stuart é a não
instrumentalização dos direitos (liberdade de pensamento, opinião, etc) que têm valor
intrínseco na consecução da felicidade. Tal aspecto sendo endossado por economistas
contemporâneos que, seguindo a trilha inaugurada pelo filósofo inglês, resistem ver no
crescimento econômico, o bem-estar, a condição necessária para o Desenvolvimento
como liberdade.
16
A liberdade como “processo de expansão das liberdades reais” implica um conjunto de
liberdades substantivas (liberdades políticas; facilidades econômicas; oportunidades
sociais; garantias de transparência; segurança protetora) (Sen, 2000:11) sem as quais
não é possível “ampliar e reforçar a capacidade geral de uma pessoa” (Kuntz, 2000:4).
Em termos millianos: l´épanouissemente de la persolanlité (Macpherson).
Ou, ainda, acompanhando o economista indiano, A ideia de justiça, uma sociedade
justa no pode dar-se fora de o governo por meio do debate - “para cuja promoção John
Stuart Mill muito contribuiu”. Um governo, em que as liberdades das pessoas (opinião,
etc) enriquecem o debate através das “melhorias da disponibilidade informacional” e
da “factibilidade de discussões” (Sen, 2010: 15). Lembrando o filósofo inglês: pelo nível
de preparo dos cidadãos e pela discussão adversa das opiniões relacionadas com os
assuntos públicos (supra).
Para avançar nesta corrente do pensamento moral e político, o utilitarismo, trazemos,
a seguir, a “democracia procedimental” schumpeteriana, Capitalismo, socialismo e
democracia (1942). Uma abordagem mais objetiva da democracia, que evita avaliações
subjetivas, contudo no contexto de uma sociedade que se assenta em pressupostos
valorativos: o individualismo utilitarista.
L´état du monde em que se inscreve a reflexão shumpeteriana não é propício para a
democracia: em 1920 havia no mundo trinta e cinco ou um pouco mais governos de
democracia representativa constitucionalmente eleitos; em 1938, a cifra tinha decido
pela metade e no início da década dos quarenta não havia mais que doze. Uma época,
segundo historiadores, em que ninguém acreditava que a democracia representativa
se reergueria depois da guerra, o futuro parecia pertencer ao fascismo e comunismo
(Nun, 2000: 24). Dois tipos de regimes que podem ser considerados governos “para o
povo”; ou acompanhando dirigentes comunistas da época: “democracias populares”.
A teoria schumpeteriana tem como pano de fundo um determinado tipo de sociedade:
a sociedade de grande escala, impessoal e burocratizada, constituída de uma massa
indiferenciada, insuficientemente instruída, sujeita a ondas de emoção, fácil presa de
manipulações pelas elites e propaganda política (Rootes, 1996:720-721). Alem do mais,
tratar-se-ia de sociedades que, diferentemente de sociedades pequenas, tradicionais
que evidenciam uma homogeneidade, experimentam uma heterogeneidade de valores
que torna difícil determinar um bem comum válido para todos.
Neste contexto, a teoria em questão contribui para o fortalecimento das democracias
capitalistas desenvolvidas nas quais, no dizer do autor, “nunca houve tanta liberdade
pessoal espiritual e corporal para todos”. E, também para o tipo de sociedade em que
elas se assentam: a sociedade de massa cujos valores aparecem associados à obtenção
de bens morais e econômicos ligados ao consumo.
17
Como economista, Schumpeter procura descrever como a realidade é (Seïn), não como
deve ser (Söllen), parafraseando Maquiavel, mostrar a veritá efetuale della cose e não
fazer elucubrações imaginativas das coisas. Atentos à intensa carga emotiva que gira
em torno do termo democracia, o realismo defendido pelo autor concebe este regime
como um fato que, mesmo carregado de valor, pode ser abordado de forma objetiva.
Parafraseando Max Weber, a democracia suscetível de “juízos em relação a valores”
(Wertbeziehung), mas não de “juízos de valor” (Werturteil).
A neutralidade axiológica adotada pelo autor se apoia na “lei de Hume” segundo a qual
da descrição de fatos não se pode inferir uma prescrição ou, de proposições analíticas
não se pode inferir uma proposição valorativa, porque existe uma impossibilidade
lógica que da observação de fatos derivem juízos de valor. Por exemplo, das premissas:
governo do povo e pelo povo não se pode inferir a assertiva governo para o povo. As
duas primeiras dizem respeito a como o governo é produzido e exercido - avaliação
objetiva - enquanto a terceira ao objetivo a ser atingido - avaliação subjetiva. Aspecto
este pouco propicio para caracterizar um regime como democrático. Com base nesta
distinção, convém trazer a definição proposta por outro autor da época que defende
também uma visão realista da democracia:
Um governo “para o povo” significa um governo que atua no interesse do povo. Mas a questão relativa ao que seja o interesse do povo pode ser respondida de maneiras diversas, e aquilo que o próprio povo considera acredita ser seu interesse não constitui, necessariamente, a única resposta possível. Pode-se até duvidar da existência de algo como uma opinião do povo sobre seu próprio interesse e de uma vontade do povo dirigida para sua realização. Portanto, um governo pode autoconsiderar-se um governo para o povo - e, na verdade, é que se dá com todos os governos - ainda que possa não ser, absolutamente, um governo do povo (...) a doutrina de que a democracia pressupõe a existência de um bem comum objetivamente determinável, de que o povo é capaz de conhecê-lo e, consequentemente, transformá-lo no conteúdo de sua vontade é uma doutrina errônea. Fosse correta, a democracia não seria possível. Pois é fácil demonstrar que não existe um bem comum objetivamente determinável, que a questão a que possa ser o bem comum só pode ser respondida através de juízos de valor subjetivos que podem diferir fundamentalmente entre si (Kelsen, 1993: 140-141).
Desta definição se depreende que governo para o povo não é a mesma coisa que
governo do e pelo povo, uma vez que não só a democracia, como diz Kelsen, mas
também o seu oposto, a autocracia, pode ser um governo para o povo. Sendo assim,
tal característica não pode ser um elemento constitutivo da definição, e isso porque a
fórmula governo do e pelo povo não pressupõe uma vontade voltada para a realização
daquilo chamado de bem comum. As expressões “do” e “pelo” povo servem apenas
para designar um governo no qual o poder se origina no povo e que este intervém de
uma determinada maneira no exercício do poder; contudo, como diz Schumpeter, sem
controlar as decisões políticas que são tomadas por aqueles que foram colocados no
governo.
Do exposto resulta que não é possível sujeitar proposições constatativas (governo do e
pelo povo) a uma proposição valorativa (governo para o povo), admitir o contrário
18
levaria ao absurdo de afirmar que um governo que não é favorável ao povo não é
democrático (apesar de originar-se na vontade popular, de reconhecer a concorrência
entre partidos seguindo o método eleitoral, etc). A definição prescritiva da democracia
não pode, portanto, ser confundida com a definição descritiva. A expressão: governo
para o povo funda-se numa linguagem avaliativa, exprime atitudes pessoais, como as
coisas devem ser em contraste com as expressões governo do e pelo povo que se
fundam numa linguagem neutra, que exprime uma atitude objetiva, de como as coisas
são.
A visão schumpeteriana da democracia procura ser uma alternativa da democracia
clássica, maximalista, definida de forma um tanto vaga e imprecisa como governo para
o povo. O problema desta definição normativa radica no fato de assentar-se numa
“convenção arbitrária” que mistura proposições relativas à origem, modo de exercício
e finalidade do governo sem dar conta da realidade; além do mais, às noções na qual
se assenta, soberania popular, delegação e representação política, são valorativas,
uma vez que estabelecem ideias comuns a serem alcançadas pelos representantes do
povo a partir da participação ativa dos cidadãos:
O método democrático é a técnica institucional de gestação de decisões políticas que realiza o bem comum encarregando o povo de inclinar o peso da balança escolhendo indivíduos que se reúnem depois para cumprir sua vontade [...] Dessa maneira, cada membro da comunidade, consciente da meta a ser atingida, sabendo o que quer, discernindo o que é bom e o que é ruim, participa, ativamente e com plena responsabilidade, para promover o bem e combater o mal e todos os membros tomados coletivamente controlem os assuntos públicos (grifo nosso) (Schumpeter, 1984: 329-330).
Apesar de reconhecer a importância da visão idealista da democracia, Schumpeter
questiona os pressupostos teóricos que nela subjazem: racionalismo e utilitarismo,
Vontade Geral e Utilidade Coletiva - Rousseau e Bentham. Um racionalismo em que o
fim é definido coletivamente com base na premissa da felicidade do maior número. O
problema da democracia clássica, “Rousseau incendiou mil pessoas para cada uma que
o benthamismo convenceu”, é considerar como natural o comportamento baseado na
procura da felicidade coletiva, bem como racional o acordo que permite fundar a
ordem política encarregada de elaborar decisões através da discussão pública dos
cidadãos.
Quanto à força ideológica da definição clássica ou idealista da democracia Schumpeter
sustenta que está dada pela crença de tipo religiosa, a fé protestante do utilitarismo,
em que a voz do povo torna-se a voz de deus ambos querendo o bem comum; alem do
mais, tal democracia encontrar-se-ia ligada a eventos históricos, festejados pelo povo,
as revoluções modernas, que consagram os direitos do homem.
A pesar de reconhecer que existem pequenas comunidades, homogêneas, em que os
ideais da democracia clássica se aproximam da realidade fazendo que funcionem como
modelos fundadores dessa doutrina, entende, contudo, que tal visão da democracia se
19
assenta uma retórica em que os políticos adulam o povo oferecendo-lhe excelentes
oportunidades de forma irresponsável atacando os adversários em nome do povo
soberano (Schumpeter, 1984: 350-354).
Para Schumpeter, o uso ideológico da democracia traz problemas: uma autocratização
da política em que a vontade coletiva, a soberania popular, funciona miticamente para
justificar o poder em contraste com uma visão mais objetiva ou desideologizada da
democracia, em que o governo de um modo crítico-racionalista é tido como uma
instância de produção de decisões políticas seguindo o princípio ou regra da maioria
ou, segundo Kelsen, um método ou técnica de produção normativa.
A definição valorativa da democracia (supra) se presta a uma série de críticas dentre as
quais não podemos deixar de frisar, seguindo Schumpeter, de que não existe nenhuma
entidade chamada de bem comum sobre o qual é possível chegar a um acordo, mesmo
com a força de argumentos racionais - o bem comum denota coisas diferentes para
pessoas diferentes:
[...] as querelas de princípio não podem ser mitigadas por nenhum argumento racional, pelo fato de que os valores últimos, nossas concepções do que é a vida e a sociedade deveriam ser (Söllen) não podem ficar circunscritas no âmbito da simples lógica [...] existem diferenças irredutíveis entre valores últimos (Schumpeter, 1984: 331-332).
Além do mais, mesmo aceitando que as opiniões e desejos dos cidadãos constituem
dados a serem elaborados pelo processo democrático, cada um agindo segundo esses
dados com uma racionalidade ideal, não por isso as decisões políticas traduzem a
vontade popular. Em outras palavras: existe um décalage irredutível entre a vontade
popular e as decisões políticas e, isso porque o papel do eleitor se limita a determinar
quem ocupa o poder mas não controlar as decisões tomadas pelos governantes - o
povo não é governante mas governado.
Em relação ao pressuposto em que se assenta a democracia realista caber trazer mais
uma vez a opinião de Hans Kelsen, mais especificamente a distinção entre absolutismo
e relativismo filosófico que se estende ao dualismo autocracia versus democracia. Para
o autor, o problema do absolutismo filosófico radica no fato que é possível uma
compreensão dos valores últimos, tal entendimento trazendo uma visão metafísica da
política que corresponde a uma atitude autocrática que não tolera a oposição, e isso à
diferença do relativismo filosófico que admite a pluralidade de valores e opiniões:
O absolutismo filosófico é a concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta, isto é, uma realidade que existe independentemente do conhecimento humano. Consequentemente, sua existência está além do espaço e do tempo, dimensão às quais se restringe o conhecimento humano. O relativismo filosófico, por outro lado, defende a doutrina empírica de que a realidade só existe na esfera do conhecimento humano, e que, enquanto objeto de conhecimento, a realidade é relativa ao sujeito cognoscitivo. O absoluto, a coisa em si, está além da experiência humana; é inacessível ao entendimento humano e, portanto, impossível de ser conhecido (Kelsen, 1993: 164).
20
Com base nesta observação podemos dizer que a ideia do bem comum, baseada em
argumentos racionais, só pode refletir posições parciais, relativas que se fundam na
experiência, em proposições verificáveis ou refutáveis, num contexto que muda. Sendo
assim, tais argumentos conseguem traduzir uma verdade relativa, valores relativos,
não absolutos, sobre o bem comum.
Logo da crítica da democracia clássica valorativa vale trazer a definição procedimental
proposta pelo autor: “o método democrático é o sistema institucional, que permite
chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos têm o poder de intervir sobre essas
decisões como resultado de uma luta concorrencial centrada nos votos dos eleitores”
(Schumpeter, 1984: 355).
Tal definição, realista, tendo o inconveniente, para saudosos da democracia clássica,
de ignorar o conteúdo moral da democracia: o épanouissement de la persolanité, a
participação política como valor privilegiado para formar seres humanos dotados de
uma consciência social mais elevada; a participação política como “atrativo intrínseco
da democracia” (Pettit, 1999: 25), etc.
Da definição minimalista schumpeteriana podemos extrair algumas características: a) o
critério para identificar um regime democrático é a existência ou não de uma disputa
centrada nos votos do eleitor; b) o papel fundamental é dado ao leadership (líder ou
dirigente) e, aos partidos políticos, não são os eleitores que decidem efetivamente mas
são eles que tomam as decisões; c) a vontade popular aparece realmente ao momento
da eleição; d) o método eleitoral é o mecanismo principal da democracia, que leva a
rejeitar a competição política através da insurreição armada; e) a liberdade de
expressão e discussão, imprensa e informação, são requisitos para a competição
interpartidária e, pelo comando político; f) a vontade da maioria não é outra coisa que
a vontade da maioria e não a vontade geral; g) a função do eleitor é dar nascimento
e/ou revogar governos como meio mais importante para controlá-los; h) a democracia,
que permite ao cidadão escolher entre vários programas, é mais eficaz para satisfazer
interesses e demandas da população (Schumpeter, 1984: 355-359).
Do exposto se depreende que a democracia procedimental se limita à descrever a
origem do poder, a vontade do eleitor, e à forma do exercido do poder, pelo voto do
eleitor, através de eleições regulares e competitivas. A concorrência partidária, pelo
comando político, sendo para Schumpeter a “essência da democracia”. O peso dado a
aos elementos empíricos da democracia faz que ela fique fora de questões valorativas:
os fins últimos que deve perseguir. Tratar-se-ia de uma democracia que parte da
constatação da apatia política do cidadão médio ou comum, uma democracia de baixa
intensidade, não de alta densidade como a democracia clássica, que supervaloriza o
método eleitoral e a representação política.
21
Em relação à representação política, cumpre reiterar que a democracia em exame se
encontra nas antípodas da democracia rousseuniana, uma vez que para Schumpeter: a
resolução de questões políticas pelo eleitorado é secundaria diante da eleição dos
homens que vão decidir. Idea também endossada por Kelsen: a democracia é mediada
por instituições com o qual a vontade que prevalece é àquela da maioria dos eleitos,
diferentemente de Rousseau em que a representação é incompatível com a expressão
autêntica da vontade geral12.
Tais traços da democracia, que ignoram a dimensão normativa, pode ser comparada a
um jogo em que existem regras, o princípio da maioria na eleição dos governantes e
no processo de tomada de decisões; jogadores, os partidos políticos e movimentos,
eleições livres, periódicas e competitivas (Bobbio, 1987: 68).
Da abordagem proposta pelo autor da democracia convém fazer referência ao tipo de
comportamento dos líderes e partidos políticos, bem como do eleitor. Tais aspectos
são relevantes porque permitem mostrar o individualismo utilitarista que nela subjaz e
também a visão elitista que o autor tem da democracia.
Para Schumpeter, a concorrência ou competição pela direção política é análoga à que
se dá no mercado entre oferta e procura de produtos, o seja, assim como no mercado
econômico há empresários e consumidores, no mercado político existem políticos e
eleitores, os primeiros oferecem produtos enquanto os segundos compram programas
políticos através do voto; assim, a atividade política funciona com a mesma lógica da
atividade econômica - abriga políticos e eleitores cada um procurando atender suas
preferências, sem existir obstáculos discricionários para impedir a emergência de
novos empreendedores (partidos) políticos:
O êxito é medido pelo assentimento dos cidadãos a pessoas e programas, quantificado pelo número de votos obtidos em eleições. Suas decisões de voto têm a mesma estrutura que as escolhas orientadas para o êxito dos participantes no mercado. Esses votos permitem a busca de posições de poder, que os partidos políticos disputam entre si adotando uma atitude semelhante de orientação para o êxito. O input de votos e o outpout de poder respondem ao mesmo modelo de ação estratégica (grifo do autor) (Habermas, 1995: 42-43).
Com respeito à comparação mercado político/mercado econômico cabe dizer que não
se opera no mercado de livre concorrência um equilíbrio entre output e input, mas um
oligopólio da oferta. Tal constatação quando levada ao campo político faz que alguns
partidos, os mais fortes, controlem a oferta de programas partidários diante do eleitor
e acedam ao governo. Assim, contra a “tese da retroalimentação” pode-se afirmar que
a abordagem econômica da democracia está longe de ser democrática, uma vez que se
12 A este respeito, importa cabe a boutade irônica do filósofo genebrino sobre a representação: “O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento, uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la” (Rousseau, 1973: 108).
22
funda num equilíbrio desigual, a pretendida soberania do consumidor sendo uma
ilusão:
(...) se pretende que o sistema de mercado político, como aquele que existe no mercado econômico, é o suficientemente competitivo para produzir uma oferta e uma distribuição ótimas de produtos políticos, em relação à procura. Na realidade, o sistema age à demanda efetiva, ou seja à demanda que se apoia no poder de compra. Na esfera econômica esse poder de compra está dado pelo dinheiro (...) na esfera política, o poder de compra está em grande medida, mas não totalmente, (também) dado pelo dinheiro: fundos necessários para criar um partido (...) somas de energia consagradas às atividades eleitorais (grifo do autor) (Macpherson, 1985: 111-112).
Posição que contrasta com a visão mais otimista da “teoria pluralista da democracia”
no sentido de que “todos os grupos ativos e legítimos podem se fazer ouvir em algum
estágio crucial do processo de tomada decisões políticas” (Dahl,1989: 135). Tal
igualdade sendo possível porque existiria por parte de grupos de cidadãos um controle
compartilhado sobre as decisões em que nenhuma demanda pesaria mais que outra.
Deste ponto de vista, o problema do modelo schumpeteriano, baseado na sociedade
de massa em que existem só cidadãos e governantes, é que passa por cima grupos
encarregados de articular demandas para depois promovê-las, em pé de igualdade,
diante do governo.
No que tange ao comportamento dos líderes e partidos políticos Schumpeter sustenta
que, como os exércitos nas batalhas, eles atuam conforme objetivos estabelecidos,
com táticas e estratégias que visam triunfar sobre o adversário, sendo que a meta
principal é aceder e manter-se no governo ou, como afirmam outros autores, seguindo
o economista, na competição eleitoral os partidos observam o eleitorado e decidem
que teses podem atrair mais votos e escolhem as plataformas que maximize sua
probabilidade de vitória (Przeworski, 1994: 64).
Disto resulta que os líderes e partidos atuam também para acumular poder (Pizzorno,
1991: 334). O objetivo, não é apenas ganhar votos e chegar ao governo para satisfazer
demandas, mas sua atuação pode ser tida como subproduto de motivações privadas:
renda, status, prestígio, ligadas ao exercício do poder. Tratar-se-ia do axioma do
“interesse pessoal” em que o principal objetivo dos políticos é colher recompensas que
resultam de ocupar um cargo público, isto é, formular e executar políticas na medida
em que fazê-lo promovem ambições pessoais:
Mesmo no mundo real, quase ninguém cumpre sua função na divisão do trabalho puramente por ela mesma. Ao contrário, cada um dessas funções é executada por alguém que é estimulado a agir por motivos privados, logicamente irrelevantes à sua função. Desse modo, as funções sociais são, em geral, os subprodutos da ação humana, e as ambições privadas, seus fins (Downs, 1999: 50).
Tal tipo de comportamento pode ser relacionado à “ação lógica” de Pareto segundo a
qual existe uma adequação da consciência à realidade, isto é, uma forma de agir
racional motivada pelo interesse no apoderamento de bens econômicos e morais
23
ligados à competição social e política. O conceito de ofemilidad do cientista político
italiano serve para descrever tal conduta que diz respeito à procura e obtenção de
satisfações individuais em função de um sistema hierárquico de preferências subjetivas
a partir de meios e poder que tem o agente para satisfazê-los (Aron, 1967: 455).
Quanto ao comportamento do eleitor médio da sociedade de consumo, convém fazer
referência ao chamado “paradoxo schumpeteriano”. O eleitor age de forma irracional,
inconstante, é mal informado dos assuntos públicos e se interessa só por aqueles
assuntos que os afeta diretamente, em tal situação não atua motivado pelo bem
comum mas pelo interesse próprio. Assim, o traço distintivo do cidadão comum seria o
idiotia: sua competência cognitiva sendo proporcional à distancia que mantém com os
assuntos que considera e opina, quanto maior a distância, maior a ignorância - lei
decrescente da racionalidade. Ou, como salientam outros estudiosos: é no diminuto
contexto de sua vida privada e vínculos primários que ele pode aspirar a alguma
soberania e destreza da razão (Lessa, 1997: 10).
Tal entendimento do comportamento do cidadão é paradoxal, incoerente, já que para
Schumpeter racionalidade instrumental, interesse individual e utilidade andam pari
passu. Assim, o jogador de bridge, que age com juízo e conhece as regras do jogo, se
comporta racionalmente porque tem interesse em obter vantagem - ser considerado
um bom jogador; ou, o empresário que não aceita nem tolera o desinteresse na
administração de seu empreendimento, que age o mais racionalmente possível na sua
realização - obter mais ganho. Em ambos os casos a capacidade cognitiva é maior
porque menor é a distância do que procura atingir - lei crescente da racionalidade.
Retomando premissas schumpeterianas sobre o comportamento do eleitor: “a massa
eleitoral é incapaz de agir de outra maneira que não seja como ovelhas”, “o cidadão
médio desde que se relaciona com os assuntos públicos regressa a um nível inferior da
sua capacidade mental, discute e analisa os fatos com uma ingenuidade infantil,
quando comparada a sua atuação na esfera de seus reais interesses”13. Sendo assim,
podemos dizer que tal conduta se situa contra a hipótese da racionalidade, daquilo
que Schumpeter chama (seguindo Pareto) de “ação não-lógica”.
Contudo, para “introduzir certa coerência” no comportamento do eleitor médio ou
comum há que supor que age, também, no momento da escolha dos candidatos, com
capacidade de apreciar as políticas que lhe são propostas, o comportamento seria
racional porque determinado por um cálculo de benefícios a maximizar e custos a
minimizar (Pizzorno, 1991: 334-335). Neste caso, o comportamento do eleitor pode ser
relacionado à “ação lógica” (paretiana).
13
E acrescenta, ainda, o cidadão comum cede constantemente a impulsos extraracionais em temas políticos, a fraqueza de processos racionais que aplica nas questões políticas, e a ausência de um controle lógico dos resultados aos quais chega são suficientes para explicar tal regressão da razão, etc,
24
Estas leituras contrastadas acerca do comportamento do eleitor encontram eco no
Schumpeter quando se refere à conduta do consumidor no mercado (comparável à do
eleitor no mercado político) que, por um lado, atua irracionalmente, “os consumidores
se prestam facilmente às influências da publicidade e outros métodos de persuasão,
ao ponto dos fabricantes ditar sua vontade, ao invés de serem dirigidos por estes”; e,
por outro lado, racionalmente, “os consumidores se encontram sujeitos à influência
saudável e racionalizadora de suas experiências favoráveis e desfavoráveis, bem como
à influência racionalizadora de seus interesses simples e de curto prazo”. Assim, o
eleitor, comparado ao consumidor, atuaria também de forma racional quando se trata
de fazer escolhas entre partidos dos quais resultam políticas que o afeta diretamente.
Quanto à visão elitista da democracia (supra), vale dizer que contrariamente à teoria
clássica que concebe os cidadãos racionais e competentes para decidir e resolver
questões políticas, a teoria procedimentalista os considera além de desinteressados,
altamente influenciáveis pela propaganda política. Ou seja, são os leaderships que tem
o papel principal no processo político: “não é o povo que coloca as questões, nem
tampouco as decide”, “as questões políticas de que depende o seu destino são
colocadas e solucionadas fora do universo dele”; e isso a pesar do eleitor escolher ou
rejeitar governos mas do qual não resulta um poder efetivo, uma vez que seu papel
fica restrito à eleição de políticos que são selecionados previamente pelos partidos e
sujeitos a programas que não intervém na formulação nem implementação.
A democracia em exame, como afirmamos, corresponde à sociedade de massa em que
consumidores e eleitores são facilmente manipuláveis, através da propaganda e outros
meios de persuasão, fazendo que estes últimos, mal preparados e apáticos, depositem
em líderes e partidos, competentes, que lutam pelo comando político, a possibilidade
de realizar suas preferências. Tal visão da democracia contrasta com o antielitismo da
democracia clássica cujos pressupostos racionais e abstratos não resistem à prova da
experiência - o povo é capaz de avaliar as consequências de suas ações e está disposto
a participar.
Schumpeter defende a profissionalização da política: “o material humano da política
deve ser de uma qualidade elevada”, que só pode ser obtida através da consolidação
de um estrato social dedicado por inteiro à política. Apesar de referir-se a dirigentes e
cargos em que não se aplica o método eleitoral (membros do judiciário, funcionários),
se depreende desta observação a ideia defendida por Max Weber, A política como
vocação, segundo a qual a “dominação racional” supõe a presença de funcionários que
agem sem preconceitos, sine ira et studio, uma vez que está em jogo sua honra, a
capacidade de executar uma ordem, sem a qual toda a organização ruiria.
Ligado à profissionalização da política, Schumpeter entende também que “nem todas
as funções do estado devem ser submetidas ao método democrático”, ou seja, que
existe uma quantidade de assuntos sujeitos a decisões políticas que é melhor deixá-los
25
em “mãos de especialistas”, a tarefa do poder político sendo a de designar o pessoal
dos órgãos públicos não políticos que atendam à exigência de idoneidade e capacidade
moral para evitar que atuem de “maneira descarada em favor de adeptos”. E, com o
intuito de destacar a importância do material humano na administração, acredita,
lembrando Weber, que é indispensável para um governo democrático contar com uma
“burocracia capacitada” que goze de boa reputação e de um forte espírito do dever.
Por último, em referência explícita aos líderes políticos sujeitos ao método eleitoral, o
autor entende que devem dar prova de autodiscplina no sentido de respeitar a lei e ter
um alto grau de tolerância diante das diferenças de opiniões da cidadania, sem contar
ainda que tal disciplina democrática exige um alto sentimento nacional que nem todos
tem a capacidade de desenvolver.
Do exposto resulta que a vocação política, incluindo os funcionários, é uma atividade
para poucos já que demanda a combinação de qualidades intelectuais assim como um
senso de responsabilidade que, dificilmente, tem o cidadão médio.
O elitismo do autor pode ser observado também na distinção “governo dos políticos” e
“governo do povo”. A mistura de ambos os termos tendo o inconveniente de ignorar o
papel decisivo dos dirigentes e partidos políticos que são em definitivo os que tomam
as decisões, bem como o perigo do povo, titular do poder soberano, na ágora, definir
racional e coletivamente o bem comum. O modelo schumpeteriano supõe o abandono
de toda “ilusão democrática”: “A competição entre dirigentes e as eleições periódicas
são e devem ser os eixos do sistema, tudo o que importa é que, através do voto, o
povo autorize a cada tantos anos que líderes serão os que decidiram por ele” (Nun,
2000: 31).
Tal aspecto é destacado também por Kelsen que excluí a possibilidade de uma unidade
de pensamentos, sentimentos e vontades em relação à finalidade da democracia
porque a “soberania popular é uma ficção”. A principal característica da democracia é
a existência de partidos políticos: grupos da mesma opinião para garantir aos titulares
dos direitos políticos influência sobre a gestão dos negócios públicos. A democracia só
pode existir se indivíduos se agrupam segundo suas afinidades políticas, com o fim de
dirigir a vontade geral através da inserção em partidos políticos que sintetizem as
vontades de cada um dos indivíduos (Kelsen, 1993: 39; 40).
Voltando à concepção individualista da utilidade no modelo schumpeteriano, importa
lembrar que os eleitores, equiparados ao consumidor no mercado econômico, agem
também sob a “influência saudável e racionalizadora de suas experiências e interesses
de curto prazo” - que permite satisfazer vantagens. Sendo assim, os eleitores seriam os
melhores juízes para decidir que políticos e programas preferem para satisfazer suas
preferências, uma vez que podem avaliar melhor, mais racionalmente, quando o que
26
está em jogo são interesses de curto prazo, que os afetam de forma imediata - lei
crescente da racionalidade.
Assim, seguindo o cientista político italiano Pizzorno, para tornar “coerente o modelo
schumpeteriano” é necessário enquadrá-lo nas teorias econômicas da democracia que
partem da hipótese de cidadãos se comportarem racionalmente buscando maximizar
suas utilidades. Ou seja, os eleitores são capazes diretamente ou pelos representantes
de prever os efeitos de uma política sobre seus interesses. O eleitor ao momento de
escolher entre dois ou mais partidos escolherá àquele que, uma vez no governo,
aplicará a política e lhe dará o máximo de utilidades. Tratar-se-ia da Teoria econômica
da democracia de Anthony Downs, segundo a qual:
(...) o mundo da política não tem regras diferentes ao mundo da economia, onde indivíduos livres maximizam sua utilidade através de escolhas feitas no mercado, que tem como fim a satisfação de suas expectativas pessoais, mas de nenhuma maneira as de um hipotético interesse público (Fernández, 1999: 435).
Tal premissa pode ser aplicada ao modelo schumpeteriano na medida em que substitui
a utilidade ou ofemilidad coletiva da teoria clássica da democracia (Rousseau mais
Bentham) pela utilidade individual, neoutilitarismo, da teoria moderna da democracia.
Em suma: a maior felicidade do maior número de pessoas definida coletivamente pela
utilidade individual em que cada um é o melhor juiz para determiná-la de acordo com
seus interesses de curto prazo.
Em ambos os casos estaríamos diante de agentes racionais que procuram maximizar a
utilidade de forma coletiva ou individual, contudo, diante da impossibilidade empírica
de se chegar a um acordo sobre o bem comum são os eleitores que, através do voto,
agem racionalmente para satisfazer suas utilidades escolhendo líderes e partidos dos
quais esperam que executem políticas que os beneficiam.
O comportamento do cidadão, conforme a teoria econômica da democracia, implica
uma conduta maximizadora. Uma conduta segundo a qual o principal móbil é o apetite
de poder, riqueza, honra, formulada originalmente por Hobbes (Santos, 1988: 78). Ou,
segundo outros autores: as ações explicadas pelo autointeresse encontram em Hobbes
um paradigma à Kunt (Hirschman, 1979: 45). A racionalidade como autointeresse
sendo uma das principais características da teorização econômica, o chamado homem
econômico, que procura seus interesses é a suposição tradicional da economia (Sen,
1999: 31; 32).
Tal tipo de comportamento estaria presente no cidadão médio schumpeteriano, na
medida em que age racionalmente. Apesar de existir padrões alternativos que não se
enquadram na lógica da conduta maximizadora, entendemos que o comportamento
do eleitor, que tem clareza de seus interesses imediatos, no momento da escolha dos
candidatos, age com “consistência interna de escolha”.
27
Existem duas formas para definir a racionalidade na teoria econômica: a racionalidade
como maximização do autointeresse e consistência interna de escolha, sendo que tal
relação binária, em função de utilidades que a indivíduo deseja obter, pode dar-se de
forma inteira ou limitada (Sen, 1999: 28).
No caso em exame, o comportamento do cidadão médio, a relação binária, em termos
quantitativos, dar-se-ia de forma limitada porque a maioria dos eleitores não atuaria
de forma racional na escolha dos representantes e das políticas que irão implementar.
Entretanto, diante do comportamento racional do cidadão médio, a relação binária,
em termos qualitativos, dar-se-ia inteiramente, porque existe uma correspondência
entre o que procura obter, utilidades individuais, e como obtê-lo através do voto.
O voto do eleitor funciona como meio externo do que o cidadão procura enquanto a
escolha feita obedece à consistência interna dada pelas utilidades que pretende extrair
dela: “A relação binária que fundamenta a escolha, quando esta apresenta uma
consistência desse tipo, às vezes é descrita como a ‘função de utilidade’ da pessoa. É
desnecessário dizer que, por essa interpretação, a pessoa maximiza sua ‘função de
utilidade’” (Sen, 1999: 30).
Tal situação, contudo, exigiria cidadãos com nível intelectual elevado para determinar
de forma consistente suas escolhas relativas ao conteúdo das utilidades, bem como
dirigentes e partidos políticos que, no governo, consigam dar vazão às demandas.
Hipótese que, verificada, permitiria mostrar que a democracia competitiva é eficaz.
Quanto ao fato da relação binária não dizer nada sobre o que se procura maximizar,
podemos afirmar que o cidadão médio schumpeteriano tenta maximizar bens que se
encontram ligados a um tipo de sociedade cujos valores estão associados, como vimos,
à obtenção de bens morais e econômicos proporcionados pelo acesso ao consumo.
A teoria schumpeteriana é realista pelo fato que “dota a teoria descritiva de uma série
de condições necessárias e suficientes para a existência da uma democracia política”
(grifo do autor) (Sartori, 1994: 210). Tal realismo, que evita elucubrações imaginativas
sobre a democracia, não por isso contradiz um determinado credo político.
Um credo, o liberalismo político, se levamos em conta o lugar que ocupa a liberdade
na teoria schumpeteriana, não a liberdade política tida como valor em si pela teoria
clássica, mas a liberdade de expressão, discussão, imprensa e informação sem a qual
não é possível a concorrência partidária pelo conquista do voto e comando político.
A democracia procedimental faz parte também desse credo porque considera que o
bem-estar ou utilidade individual é bom. A dimensão descritiva da teoria, que mostra
como funciona a democracia, não consegue evitar a dimensão prescritiva, a zona de
penumbra entre ambas as dimensões. Sendo assim, a democracia schumpeteriana
pode ser considerada da seguinte maneira:
28
Na sua forma positiva, o modelo contém um conjunto de condições, ou seja, descrições das regras reais da sociedade (assimilação do mercado econômico ao mercado político). Mas exatamente as mesmas condições podem ser deduzidas de certos preceitos éticos (o comportamento do indivíduo que procura satisfazer suas utilidades); daí deles poderem ser vistos quer positiva quer normativamente (Downs, 1999: 53).
A desideologização da democracia, proposta por Schumpeter, não impede o autor de
assumir a defesa de num tipo de sociedade que, de forma patente, é exemplo de
liberalismo. Uma sociedade aberta, pluralista, em que a oposição (apesar do oligopólio
da oferta de produtos políticos) pode tornar-se maioria. Tal aspecto, a alternância no
governo, fazendo possível, uma “definição completa” da democracia: a democracia é o
método competitivo de renov ação de lideranças. Ou seja, uma definição que enfatiza a
renovação de líderes e partidos políticos como elemento constitutivo da democracia.
Para concluir, podemos dizer que a democracia em exame se assenta sobre premissas
neoutilitaristas, na medida em que o indivíduo é considerado o melhor juiz de seus
interesses e para determinar as utilidades. Neste suposto, a democracia competitiva
seria o melhor regime para satisfazer preferências individuais. Tal possibilidade, vale
reiterar, exige que se cumpram dois requisitos nada desprezíveis: o cidadão ter um
nível intelectual elevado e clareza de seus interesses de curto prazo e líderes e partidos
políticos suficiente preparo para satisfazer as demandas do eleitorado. Duas condições
que implicariam a massa eleitoral não se comportar como ovelhas (Schumpeter) e os
políticos não agirem apenas por motivações privadas (Downs).
29
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1
igualitarismo moral e político
Fernando Quintana
Segundo documentos normativos, tanto em nível doméstico quanto internacional, a
dignidade da pessoa e os direitos humanos são indissociáveis. Tal assertiva trazendo à
tona duas ideias de que os direitos humanos se originam na dignidade e de que para se
ter uma vida digna é necessário o respeito dos direitos fundamentais. A partir destas
premissas, propomos analisar A theory of justice (TJ) (1971) de John Rawls na medida
em que parte de postulados morais a priori para chegar a direitos fundamentais a
posteriori que tornam possível o autorrespeito.
A TJ rawlsiana é relevante pelo ambicioso projeto que a anima: uma conciliação entre
diversas famílias teóricas - o que lhe permite ir além do conflito ideológico da época: a
Guerra Fria (1947-1989) que, do ponto de vista normativo, a Declaração Universal de
Direitos Humanos da ONU (1948) e os debates acadêmicos da época opunham duas
visões contrapostas - para se ter uma vida digna é necessário o respeito dos direitos
econômicos e sociais (países de Leste: socialismo) ou para se ter uma vida digna é
necessário o respeito dos direitos individuais (países do Oeste: liberalismo)1.
A TJ procura uma conciliação entre duas correntes clássicas do pensamento político:
liberalismo e democracia. Uma posição intermediária capaz de superar o impasse
entre àqueles que priorizam as liberdades individuais e os direitos civis e, àqueles que
priorizam as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública em geral, ou seja,
um equilíbrio entre a dimensão individual e política da liberdade, mas também a
dimensão social, substantiva da justiça, isto é, a criação de uma ordem social mais
igualitária capaz de atenuar as desigualdades de oportunidades e acesso à riqueza,
sem esquecer que este componente da justiça contribui também para o autorespeito
(self respect) da pessoa que, como segundo o autor, ocupa um “lugar central” na obra.
A TJ pode ser considerada como o intento de estabelecer uma “afinidade eletiva”
(Wahlverwandtschaft) entre diferentes famílias teóricas: o que tentei fazer, afirma o
autor, é levar a teoria tradicional representada por Locke, Rousseau e Kant a um nível
1 Cumpre lembrar que os países do bloco socialista se abstiveram de votar a Declaração universal pelo
“diferente peso” dado aos direitos (quatro artigos relativos aos direitos econômicos e sociais de um total de trinta e um). Ademais, os dois Pactos internacionais de diretos humanos da ONU, relativos aos direitos individuais e aos direitos econômicos e sociais levaram onze anos para serem elaborados (1949- 67) e mais dez para entrar em vigor (1977) - o que mostra a dificuldade entre ambos os grupos de países de um acordo sobre a prioridade a ser dada a estes direitos em relação à dignidade humana. Para um aprofundamento deste debate. QUINTANA, F. La ONU y la exégesis de los derechos humanos: uma discusión teórica de la noción. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998.
2
mais elevado de abstração (Rawls, 1993: 10); bem como, importa insistir, trazer a
dimensão welfarista da justiça que visa uma sociedade mais igualitária2.
A importância da TJ responde ao fato de ter preenchido uma lacuna: havia um tácito
consenso entre os pensadores da filosofia política de que nenhum marco teórico
decisivo fora registrado na primeira metade do século passado, que nenhuma obra
monumental nesta área fora publicada desde o início da Guerra Fria. Uma obra, vale
acrescentar, que se torna na virada do século o maior best-seller filosófico das últimas
décadas, publicado em mais de 25 países, suscitando centenas de estudos e artigos em
todo o mundo (Oliveira, 2003:7; 9). E, ainda: Os últimos 100 anos foram mesmo duros para (a filosofia política) na década de 60, chegaram inclusive a declara sua morte. E já estavam até encomendando a missa de sétimo dia quando a surpresa aconteceu. Em 1971, John Rawls, um professor americano da Universidade Harvard, entregou a seus editores um livro chamado Uma Teoria da Justiça. Veio a publicação e, como num passe de mágica, a filosofia política ganhou novo alento (...) desde então,pelo menos 5000 livros vieram à luz criticando ou defendendo Rawls - um rio de tinta e papel que corre de China aos Estados Unidos (Graieb, 2000: 154).
Retomando o início propomos, num primeiro momento, abordar os direitos humanos
e fundamentais a partir da concepção metafísica ou kantiana da pessoa. Mostrar como
a TJ se inspira numa filosofia capaz de elaborar princípios de justiça impermeáveis ao
contexto histórico porque se funda numa concepção moral anistórica da pessoa
(Silveira, 2003: 89)3. Trata-se de analisar aspectos do igualitarismo moral que são de
“natureza nitidamente kantiana” (Rawls, 1993: 10).
Num segundo momento, nos determos no igualitarismo político, a chamada “guinada
política” da teoria da justiça, que se dá em 1993 com a publicação de O liberalismo
político (LP)4. Ou seja, uma abordagem da justiça que “não depende de nenhuma
natureza essencial da pessoa humana” (TJ) mas de cidadãos que, em pé de igualdade,
deliberam sobre normas ou princípios pelos quais querem ser governados, apesar das
diferentes concepções morais, religiosas e filosóficas que existem entre eles.
A TJ dá um passo decisivo no tratamento dado ao direito seja como postulados morais,
liberdade e igualdade, que permitem um acordo imparcial e cooperativo da justiça ou
como direitos fundamentais a serem usufruídos pelos membros da “sociedade bem
2 Para Goethe há “afinidade eletiva” quando dois seres ou elementos “buscam-se um ao outro, atraem-
se um ao outro e a seguir resurgem dessa união íntima numa forma (Gestal) renovada e imprevista” (Löwy, 1989: 15). 3 Na primeira parte do texto nós deteremos na parte inicial da TJ, isto é, a Justice as fairness, a justiça como equidade ou imparcialidade, título aliás de um artigo de Rawls de 1957, bem como na concepção metafísica da justiça, de inspiração kantiana, como mostra o título de outro trabalho do autor de 1980: kantian constructivism in moral theory. 4 A political turn da teoria já pode ser observada no artigo de Rawls de 1985 que leva, justamente, por
título - Justice as fairness: political non metaphysical enquanto o termo liberalismo político é utilizado, pela primeira vez, em 1987 - The idea of an overlapping consensus.
3
ordenada” através da “estrutura básica da sociedade”5, ou seja, através de instituições
e normas que permitem efetivar direitos na dimensão social, no sentido de igualdade
de bem-estar, política, no sentido de igualdade de participação e, individual, no
sentido de igualdade de liberdades ou, segundo o conteúdo dos princípios de justiça
rawlsiana: direito às liberdades, às oportunidades e recursos materiais necessários que
tornam possível fazer da vida algo de significativo, que valha a pena de ser vivido (Vita,
1993: 11).
Para analisar os direitos humanos como postulados morais a priori resulta conveniente
destacar aspectos do modelo contratualista proposto pelo autor, mais especificamente
àquele que diz respeito ao acordo imparcial da justiça. A escolha dessa parte inicial da
TJ, a justiça como fairness ou imparcialidade, obedece ao fato de mostrar a relação
que existe entre moral e justiça, mais especificamente como a partir do igualitarismo
moral rawlsiano (de inspiração kantiana) ambos os postulados, liberdade e igualdade,
implicam uma determinada concepção da pessoa como agente racional e moral capaz
de definir a justiça.
O contratualismo rawlsiano diz respeito à necessidade de se chegar a um acordo sobre
princípios de justiça que devem nortear a sociedade bem ordenada e as instituições
básicas da sociedade que organizam a vida política, econômica e jurídica e, atribuí
direitos e deveres aos indivíduos para realizar seus diferentes projetos de vida.
Para o consenso ser equitativo ou imparcial são necessários certos requisitos. Assim, as
partes no momento da escolha dos princípios de justiça que haverão de regê-las se
encontram numa situação fictícia, ideal: a original position6, a partir da qual é possível
um acordo justo não apenas no sentido da imparcialidade mas também de sua
recíproca e desinteressada cooperação. Ou seja, os indivíduos, no momento do acordo
se encontram numa situação ideal em que todos são considerados agentes racionais
(rational) e razoáveis (reasonable) capazes de elaborar e cooperar com os princípios de
justiça.
Tal situação, contrafática, diz respeito a uma situação marcada pelo veil of ignorance,
isto é, as partes desconhecem as condições naturais e contingencias relativas à sua
existência (gênero, riqueza, inteligência, geração, status social, bens que perseguem).
Assim, a justiça se apresenta com os olhos cobertos: o véu que os cobre é a garantia de
sua imparcialidade ou equidade (fairness).
5 “Sociedade bem ordenada” porque todos nela aceitam a mesma concepção da justiça, os mesmos princípios de justiça. “Estrutura básica da sociedade” porque conta com instituições políticas, jurídicas e sociais que se encaixam em um sistema de cooperação social (Feres; Pogrebinschi, 2010: 12-13). 6 “É claro, então, que a posição original é uma situação puramente hipotética. Não é necessário que algo
parecido a tal posição tenha acontecido alguma vez” (Rawls, 1993: 145).
4
Tais requisitos formais (posição original, véu da ignorância) fazem que o acordo sobre
os princípios de justiça consiga o resultado que pretende: a cooperação sobre regras
que, se respeitadas, tornam a sociedade justa. A justiça enquanto acordo equitativo é,
portanto, procedimental no sentido de chegar a um resultado justo independente de
situações concretas: a justiça procedimental se dá quando existe um procedimento
correto de modo que o resultado seja igualmente correto e imparcial (Rawls, 1993:
109).
Os aspectos formais do acordo fazem que a TJ se inscreva nas “teorias kantianas da
justiça”, uma concepção da justiça que priva aos que decidem de toda informação
sobre sua pessoa e, assim atuar de forma imparcial. Uma concepção da justiça em que
a racionalidade é universalista e kantiana (Alexis, 1994: 134).
Para justificar o acordo, Rawls toma emprestado de Kant a concepção metafísica da
pessoa como agente livre e racional. De fato, os princípios de justiça a que as partes
devem chegar são resultado de um ato de autolegislação, realizado por indivíduos que
desejam orientar suas condutas com base em princípios públicos e morais. A
concepção da pessoa como agente livre e racional implica abdicar por completo do
conhecimento da situação social e das circunstâncias concretas em que se encontram
inseridas ao momento do acordo. Em termos kantianos: os indivíduos aí se
apresentam como agentes numênicos (não fenomênicos), isto é, em condições ideais
de equidade para realizar suas escolhas. Segundo Rawls, atribuir às partes a condição
de agentes fenomênicos com conhecimento das circunstâncias em que vivem poderia
encorajá-los a agir em benefício próprio, subvertendo a equidade do acordo, ou seja,
dele não ser benéfico para todos.
No acordo equitativo sobre os princípios de justiça, a liberdade a que se refere Rawls é
de tipo negativa, no sentido kantiano da palavra, ela se dá quando o homem pauta sua
conduta sem depender de qualquer objetivo particular ou inclinação pessoal, isto é,
quando age conforme à lei moral, recusando atender interesses particulares. Na justiça
como imparcialidade, Rawls entende a liberdade em termos semelhantes quando
afirma que, no momento da escolha, os indivíduos não atuam movidos pelo desejo de
realizar algum interesse particular, e sim com o intuito exclusivo de agir conforme os
princípios de justiça. A adoção deste tipo de liberdade, negativa, numa situação ideal -
posição original, véu da ignorância - fazendo possível, como afirmamos, que o acordo
seja imparcial. A este respeito, importa trazer a afirmativa rawlsiana que aparece em A
concepção kantiana da igualdade (1975): Particularmente importantes dentre as características da posição original para a interpretação da liberdade negativa são os limites da informação, por mi denominados de ‘véu de ignorância’ (...) A forma mais forte tem uma concepção kantiana: não iniciamos com informação alguma; pois Kant entende por liberdade negativa que somos capazes de agir independentemente da determinação de causas alheias (Oliveira, 2003: 63-64).
5
Mas a liberdade a que se refere Rawls, no momento do acordo, é também positiva, no
sentido kantiano da expressão, ela se dá quando o homem é capaz de dar-se leis boas
submetendo-se voluntariamente, consentindo em sua vigência. Assim, a escolha sobre
os princípios de justiça pode ser entendida como um ato de autolegislação através do
qual as pessoas não aceitam ser governadas por leis a não ser àquelas que deram seu
consentimento. Sendo assim, o termo liberdade não se refere à ideia invocada pelo
contratualismo clássico: direito natural subjetivo - poder de fazer, escolher ou agir -
com vistas à obtenção de um interesse particular, ou seja, ela não aparece associada à
obtenção de algum bem próprio.
Na justiça como equidade a liberdade aparece como postulado moral a priori, isto é, a pessoa como agente livre e racional capaz de elaborar regras de justiça que atendem a esta concepção da pessoa:
A fim de prover uma interpretação da liberdade positiva, duas coisas são necessárias: primeiro, as partes concebidas como pessoas morais livres e iguais devem desempenhar um papel decisivo na sua adoção da concepção da justiça; e segundo, os princípios dessa concepção devem possuir um conteúdo apropriado para exprimir essa visão determinante de pessoas (...) Uma sociedade que efetivou esses princípios alcançaria a liberdade positiva, pois eles refletem as características de pessoas que determinaram sua seleção e assim exprimem uma concepção que elas atribuem a si mesmas (Oliveira, 2003: 65).
Tratamento semelhante recebe a igualdade na justiça como equidade. De fato, ela não
está associada a um direito subjetivo, exigência de uma igualdade jurídica ou material,
mas uma igualdade moral/metafísica que acena com a possibilidade de que o acordo
sobre a justiça se opere, também, de forma “desinteressada” ou “cooperativa”. Para
isso, Rawls recorre novamente à concepção kantiana da pessoa ao sustentar que os
indivíduos, além de agentes livres e racionais, são também iguais e razoáveis porque
dotados de um senso ou sentimento de justiça (sense of justice).
Neste contexto, a igualdade, como postulado moral a priori, diz respeito à capacidade
de todo indivíduo ter um senso público de justiça e cooperar na consecução deste
ideal. Supor que as pessoas agem de forma razoável, baseadas no estrito cumprimento
do dever, significa considerar os indivíduos moralmente iguais, capazes de agir pelo
interesse ético de contribuir para a realização de um projeto comum de justiça. Trata-
se do “intuicionismo moral” que admite que o senso público de justiça possa se fundar
no bom sentimento (a “boa vontade” kantiana): “Os termos equitativos da cooperação
articulam uma ideia de reciprocidade e mutualidade: todos os que cooperam devem
beneficiar-se ou compartir alguma carga” (Rawls, 1980 apud Vallespín, 1985: 62).
Examinada a liberdade e igualdade como postulados morais que permitem um acordo
equitativo e cooperativo da justiça convém enunciar o conteúdo dos dois princípios de
justiça, mostrando a ordem serial ou léxica que existe entre eles:
- Primeiro princípio: cada pessoa tem igual direito a um esquema completamente
6
adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de
liberdades para os demais - Princípio da igual liberdade (equal liberty principle);
- Segundo princípio: as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois
requisitos: a) devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos - Princípio da
igualdade de oportunidades (equality of oportunity principle), b) devem beneficiar os
membros menos privilegiados da sociedade - Princípio da diferença (difference
principle).
O segundo princípio podendo ser reformulado da seguinte maneira: as desigualdades
ligadas a cargos e funções de autoridade, rendimento e riqueza, são justas sempre e
quando promovam benefícios para todos, em particular, para os que se encontram na
situação mais desfavorável.
Os dois princípios são acompanhados por regras estritas de prioridade que por pouco
não constituem outro princípio: o da ordem preferencial, isto é, uma sequencia serial
em que as liberdades básicas têm primazia sobre a igualdade de oportunidades que,
por sua vez, precede o princípio da diferença. Assim, nenhum princípio pode intervir, a
menos que os colocados antes não sejam satisfeitos, tendo pois um valor absoluto
frente aos que seguem. A partir desta ordenação léxica fica claramente estabelecida a
opção - preferencial - de Rawls por certos bens primários em relação a outros bens, no
sentido de que não se pode renunciar a nenhuma das liberdades básicas (primeiro
princípio) em favor de uma distribuição mais justa de cargos e funções (segundo
princípio - primeira parte), nem tampouco em favor de um nivelamento igualitário das
condições socioeconômicas (segundo princípio - in fine).
Tal ordem implica uma hierarquia entre exigências: uma sociedade é mais justa do que
outra se as liberdades básicas são mais amplas e mais igualmente distribuídas, seja
qual for a distribuição dos bens (que englobam os demais princípios). No mesmo
sentido, entre duas sociedades parecidas no plano das liberdades básicas, aquela que
melhor proporciona oportunidades iguais para todos é mais justa - seja qual for o grau
de realização do princípio da diferença.
A sequência prioritária, na aplicação dos princípios, retoma a antiga discussão da
jerarquia entre direitos fundamentais individuais, políticos e sociais. Da perspectiva
rawlsiana, não cabe dúvida de que os bens primários do primeiro princípio (liberdades
individuais e direitos políticos) tem precedência ao desfrute de bens que resultam da
igualdade de oportunidades e da distribuição de recursos (segundo princípio).
A TJ coloca, então, claramente a primazia do justo (fair), o direito (right) sobre o bem
(good) e, isso porque a escolha dos princípios se faz independente de projetos pessoais
e concepções do bem. O modelo da justiça rawlsiano é deontológico, não teleológico.
De fato, ao colocar tal prioridade, ela representa uma alternativa a modelos de cunho
7
utilitarista que definem a justiça com base em outro princípio: é justa a sociedade que
maximiza a soma ou média de níveis de bem-estar do maior número dos membros.
Tal princípio alicerça um modelo finalístico da justiça em que o bem é concebido
independentemente do justo. Esta possibilidade é descartada pela TJ que não admite
que a pessoa seja reduzida à maximização racional da utilidade e, isso pelo fato de que
as escolhas, com base neste comportamento, podem trazer uma limitação ou restrição
dos “bens primários básicos” (primeiro princípio). À diferença da concepção rawlsiana
da justiça, o utilitarismo defende a primazia do bem em relação ao justo, a justiça
sendo entendida como resultado de uma escolha racional e individual que, através de
meios adequados, torna possível determinados fins. À luz desta perspectiva, utilitária,
as escolhas e decisões se apoiam no cálculo de perdas e ganhos de bem-estar.
Pelo contrário, a TJ acredita na primazia do justo, do direito, que é ontologicamente
anterior a qualquer ideia do bem. A inviolabilidade das liberdades básicas é um dever
moral que permanece assegurado acima de todos os ajustes envolvendo questões de
oportunidades e desigualdades e isso, vale reiterar, para evitar a restrição ou sacrifício
de alguma liberdade fundamental (primeiro princípio) em benefício da utilidade. Tal
situação, o sacrifício da liberdade, baseada numa racionalidade instrumental de meios
e fins sendo possível a partir de uma concepção utilitarista da justiça da qual o modelo
rawlsiano procura ser uma alternativa: Rawls argumenta que o utilitarismo é incapaz de fazer distinções entre as pessoas ao eleger um fim maior, como a felicidade, a riqueza, etc, o utilitarismo permite que alguns indivíduos sejam sacrificados em prol do aumento da utilidade da maioria, ou seja, no limite ele permite a violação da integridade do indivíduo (Feres; Pogrebinschi, 2010: 74).
O contraste com o utilitarismo e a prioridade atribuída ao primeiro princípio de justiça
pode ser melhor apreciado se levamos em conta o alcance do princípio da diferença.
Para Rawls, tal princípio exige que a sociedade maximize a oportunidade dos membros
menos favorecidos da sociedade enquanto o utilitarismo exige a maximização das
condições do conjunto dos membros da sociedade, entendida como a soma ou média
de níveis de utilidade a serem por eles usufruídos.
A diferença entre ambas as teorias fica evidenciada pelo fato de que o utilitarismo não
se preocupa com a distribuição do bem-estar entre os membros da sociedade: o que
lhe interessa é a soma ou a média desse bem-estar, qualquer que seja a maneira como
é repartido. Para a TJ, pelo contrário, a maneira como os bens primários são repartidos
é fundamental já que a questão de saber se uma sociedade é justa não depende da
quantidade de bens (cobertos pelo princípio da diferença) que podem dispor os que se
encontram em situação mais favorável mas da quantidade de bens que podem dispor
os menos afortunados da sociedade.
8
O “perigo” do utilitarismo é que pode levar à restrição de alguma liberdade básica, ao
sacrifício de algum direito fundamental, calcado no princípio da maximização da soma
ou média das utilidades enquanto o princípio da prioridade rawlsiano não permite que
o aumento da condição global ou média dos membros da sociedade possa justificar tal
restrição.
Enunciados o conteúdo dos princípios de justiça, a ordem que deve ser respeitada na
sua aplicação e o “perigo” de teorias que conferem prioridade ao bem-estar sobre o
justo convém, a continuação, conhecer os direitos fundamentais a posteriori a serem
garantidos pela estrutura básica da sociedade. Em outras palavras: como os indivíduos
racionais e razoáveis, livres e iguais, capazes de chegar a um acordo sobre a justiça, são
sujeitos de direitos individuais, políticos e sociais a serem usufruídos em sociedade.
No que diz respeito ao “esquema de liberdades básicas iguais” (primeiro princípio),
Rawls enuncia um conjunto de direitos fundamentais que compõem tal esquema: a
liberdade política entendida como direito ao voto e ao exercício de funções públicas; a
liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e pensamento; a
liberdade da pessoa que inclui a liberdade diante da opressão psicológica e agressão
física, do arresto e detenção arbitrária tal como definida pelo rule of law; e, o direito
de propriedade.
Como se depreende desta lista: as liberdades e direitos fundamentais constituem uma
reformulação detalhada dos ideais da liberdade e da segurança individual, de extração
liberal, e dos ideais de igualdade política, de extração democrática. Uma junção de
Locke e Rousseau.
Apesar de Rawls evitar definições clássicas, a liberdade política lembra àquela tradição
do pensamento político para a qual ser livre consiste em cada um participar de uma
parte da soberania, elaborar leis direta ou indiretamente por meio das quais serão
governados. Ela diz respeito àquela dimensão da liberdade que ficou conhecida como
liberté des anciens (Constant) ou, mais recentemente, como liberdade positiva (Berlin)
que responde à seguinte questão: por quem somos governados? A este respeito, o
autor destaca que só uma pequena fração de pessoas dedica uma parte de seu tempo
à política e, que a tomada de decisões deve ficar a cargo dos que foram escolhidos
para governar.
A liberdade política rawlsiana se afasta, assim, de qualquer visão idealista ou radical da
mesma, uma cidadania ativa, em que todos tomariam parte dos negócios públicos. O
direito de igual participação é utilizado para definir quem e como devem ser
governadas as instituições políticas de uma sociedade bem ordenada. Neste sentido, a
constituição deve prever normas destinadas a tornar efetivo este direito tais como que
cada voto tenha o mesmo valor para determinar o resultado das eleições; que todos os
9
cidadãos tenham, ao menos formalmente, igual acesso ao poder público; que todos os
cidadãos possam candidatar-se em eleições e ocupar postos de autoridade; que todos
os cidadãos se encontrem informados sobre a marcha dos assuntos públicos, bem
como a regra da maioria no processo de tomada de decisões políticas.
Por último, a liberdade política implica da parte do governo medidas compensatórias
que contribuam para a concretização e transparência do exercício deste direito como o
financiamento público de partidos políticos para que tenham suficientes recursos e
sejam mais independentes de grupos ou interesses econômicos privados. O direito de
igual participação política implica, ademais, a responsabilidade das autoridades diante
do eleitorado, uma vez que devem aprovar medidas no interesse de todos fomentando
àquelas que sejam consistentes com os princípios de justiça.
No que toca aos outros direitos do primeiro princípio: o direito de opinião e expressão,
Rawls entende que sua prioridade responde ao fato deste direito ser inerente às
instituições democráticas e proteções legais constitucionais. O direito de “publicar as
opiniões” encontra em John Stuart Mill uma forte inspiração ao declarar Rawls que: a
política mais razoável é aquela influenciada ou modificada pela presença de interesses
e opiniões em conflito. Para o autor, a diversidade de opiniões é fundamental porque
implica uma discussão razoável, retificadora e pública sobre os programas e projetos
políticos que visam promover fins sociais e, o bem público. As associações políticas, os
partidos, canais desta diversidade, tendo como tarefa buscar, junto ao eleitorado, a
aprovação de projetos e programas que atendam a esta finalidade.
No relativo à segurança jurídica, associada pelo autor ao rule of law, ela supõe um
sistema de normas públicas e princípios legais sem os quais ela é ineficaz. Assim,
seguindo Rawls, as normas devem prescrever condutas possíveis: as ações que as
normas legais exigem ou proíbem, afirma, têm que ser de tal sorte que os homens
possam cumpri-las e evitá-las de modo razoável. Além do mais, as normas legais
devem contribuir para que juízes, legisladores e funcionários públicos atuem de boa fé
e, que esta possa ser reconhecida pelos destinatários. O preceito: casos similares
devem ser tratados de maneira igual significa que os indivíduos podem regular suas
ações por meio de normas, bem como uma limitação à discricionariedade dos juízes e
autoridades. Tal limitação pode ser obtida também pela aplicação do preceito: nullum
crimen sine lege e, as exigências que dele resultam: promulgação, conhecimento,
generalidade e irretroatividade das leis, imparcialidade e independência dos juízes,
normas para preservar a integralidade do processo, provas judiciais, etc.
As normas e preceitos ligados ao rule of law têm como finalidade estabelecer limites
legais ao princípio de liberdade igual e tornar possível que os indivíduos regulem suas
condutas por meio de normas públicas. Do contrário, os cidadãos não saberiam como
se comportar em sociedade, nem como regular sua conduta livre, nem exercer seus
10
direitos e deveres.
Em relação à liberdade individual definida pelo autor nos seguintes termos: as pessoas
se encontram em liberdade de fazer algo quando estão livres de certas restrições para
fazê-lo, e não o estão quando indefesas frente às interferências de outras pessoas,
significa que os indivíduos são livres de promover diferentes concepções religiosas,
morais ou filosóficas sem sofrer restrições ou impedimentos de terceiros. As únicas
restrições previstas por Rawls são aquelas em que a prática da liberdade implique uma
invasão na igual liberdade de outrem. Assim, a prática de consciência religiosa pode,
por exemplo, sofrer limitações desde que, in casu, não permita o igual exercício de
outrem deste direito ou, como diria Kant, sempre e quando não prejudique a fruição
do livre arbítrio de outrem; ou, ainda, pode sofrer restrições quando perturbe a ordem
pública que o governo deve manter. Em resumo: a limitação da liberdade individual
pode ser justificada só quando é necessário o exercício dos direitos dos demais e não
comprometa a segurança de todos.
Finalmente, o direito de propriedade, intimamente ligado ao exercício da liberdade,
implica que cada pessoa possua recursos suficientes para satisfazer suas necessidades.
A propriedade privada dos meios de produção sendo um “tema contingente e não uma
parte essencial” da teoria, preocupada pela distribuição dos bens (Barry, 1973 apud
Mouffe, 1999: 67).
Os direitos fundamentais que integram o esquema básico de liberdades se enquadram
naquela tradição do pensamento liberal para a qual ser livre se confunde com a
independência individual. Ela diz respeito àquela dimensão da liberdade que ficou
conhecida como liberté des modernes (Constant) ou, mais recentemente, como
liberdade negativa (Berlin) que responde à seguinte questão: até que ponto o governo
deve intervir nos assuntos privados? A este respeito, Rawls responde: o governo não
deve ocupar-se de doutrinas morais, filosóficas ou religiosas, ele não tem o direito nem
o dever de intervir neste domínio.
Em resumo: o primeiro princípio de justiça, o princípio de liberdade, que permite a
cada um escolher o que é melhor para realizar os fins que prefere - “cada pessoa tem o
direito a mais ampla liberdade fundamental, compatível com uma liberdade igual para
todos” - supõe o exercício de direitos fundamentais (liberdade de opinião, expressão,
reunião, propriedade, etc) a serem assegurados pela estrutura básica da sociedade.
Identificadas às liberdades e direitos que compõem o primeiro princípio de justiça
convém examinar o segundo princípio que visa à promoção de uma ordem social mais
igualitária. Se o primeiro princípio aponta para os direitos tradicionais (individuais, civis
e políticos), o segundo se relaciona com os novos direitos (econômicos e sociais) que,
diferentemente dos primeiros, não são enunciados na TJ.
11
O segundo princípio - in fine, o da diferença, está na base do Estado de bem-estar que,
seguindo à tradição welfarista, se relaciona com um tipo de igualdade substantiva na
medida em que procura maiores vantagens econômicas e sociais para os menos
beneficiados da sociedade. O princípio da diferença ou princípio distributivo, quando
aplicado à estrutura básica da sociedade, implica que as normas e instituições da
sociedade não podem trazer vantagens para os mais favorecidos nem desvantagens
para os menos favorecidos. Em outras palavras: as diferenças de renda e riqueza
obtidas na produção do produto social devem ser tais que, uma vez aumentadas às
vantagens dos mais favorecidos aumentem as vantagens dos menos favorecidos ou,
que uma vez diminuídas as vantagens dos mais favorecidos diminuam as vantagens
dos menos favorecidos.
A escolha do princípio da diferença pode ser justificada pelo equilíbrio reflexivo, isto é,
juízos que se relacionam com a desigualdade numa situação, a posição original, em
que as pessoas estabelecem um critério no cálculo da justiça do qual será possível uma
melhora da situação de todos. Sobre este tipo de juízo, declara o autor: é um equilíbrio
porque nossos princípios e juízos coincidem; é reflexivo porque sabemos com que
princípios nossos julgamentos se conformam e conhecemos as premissas das quais se
derivam (Rawls, 1993: 38).
O princípio da diferença é compatível com o chamado princípio da eficiência ou “ótimo
de Pareto” segundo o qual: uma distribuição de um montante determinado de bens é
eficiente quando não é possível mudá-la para trazer uma melhoria das situações de
alguns sem que piore, ao mesmo tempo, as situações dos demais. Em outros termos:
uma locação de bens é superior à outra se pelo menos um indivíduo nela ganha sem
que ninguém com isso perca:
(...) uma vez que o princípio da diferença é plenamente satisfeito, seria impossível melhorar a situação de uma pessoa (conferir vantagens aos mais favorecidos) sem piorar a situação de outra (conferir desvantagens aos menos favorecidos). A situação dos menos favorecidos deve, portanto ser objeto de constante maximização. A aplicação do princípio da diferença, como se vê, faz com que todos sejam beneficiados, tanto os mais favorecidos como os menos favorecidos (Feres; Pogrebinschi, 2010: 28).
Cabe lembrar que a igualdade de oportunidades (primeira parte do segundo princípio)
tem prioridade sobre o princípio da diferença (segunda parte de segundo princípio), o
que significa que as funções e cargos, abertos para todos, não podem sofrer limitações
em compensação da aplicação de uma distribuição mais igualitária de bens que visam
reduzir as desigualdades.
O princípio da igualdade de oportunidades pode ser formulado da seguinte maneira:
aqueles com capacidades similares devem ter perspectivas de vida similares, além da
posição inicial que ocupam no sistema social, contudo tal princípio não significa que
12
qualquer um possa aceder a não importa que função ou cargo. Para Rawls, a igualdade
de oportunidades implica que a origem social não pode afetar o acesso igual a cargos e
funções - o que supõe medidas que impedem uma concentração excessiva da riqueza
e, que os indivíduos tenham as mesmas oportunidades de acesso a níveis de educação.
Sendo assim, a ordem prioritária na aplicação do segundo princípio da justiça pode ser
matizada, uma vez que a igualdade de oportunidades acontece, citando o autor, de
forma “imperfeita” enquanto exista a família e classes sociais: a boa disposição para
realizar um esforço e ser merecedor de êxito, acrescenta, depende da família e das
condições sociais. Visto os obstáculos (família, classe social) que impedem a efetivação
do princípio de igualdade de oportunidades pode-se pensar que a intenção do autor
seja a de incluir este princípio num contexto mais amplo - a “reformulação global do
segundo princípio” - em que o da diferença se estende também à igualdade de
oportunidades promovendo benefícios para todos.
Tal interpretação pode ser justificada, uma vez que para Rawls: os arranjos do livre
mercado devem dar-se dentro do marco de instituições políticas, jurídicas e sociais (a
estrutura básica da sociedade) que regulam as tendências gerais dos sucessos sociais
necessários para uma justa igualdade de oportunidades. Desta maneira poder-se-ia
reduzir as diferenças de oportunidades - oriundas da família ou classe social.
Entretanto, esta solução coloca o problema da aplicação imediata do princípio da
diferença (na distribuição dos talentos) sobre a primeira parte do segundo princípio, o
da igualdade de oportunidades, quebrando a ordem serial defendida pelo autor.
Assim, o problema é como dar prioridade ao princípio da igualdade de oportunidades
se este depende para sua efetivação do princípio da diferença?
Uma resposta plausível é fazer uma “leitura global do segundo princípio”, ou seja, que
o princípio da diferença se aplique simultaneamente ao conjunto dos bens que
engloba, isto é, a cargos e funções de autoridade, à riqueza e ingresso de bens. Assim,
poder-se-ia diminuir a desigualdade de oportunidades de cargos e funções (primeira
parte do segundo princípio) sem com isso um aumento das desigualdades de riqueza e
bens dentre os menos e mais favorecidos da sociedade (segunda parte do segundo
princípio) (Vallespín, 1985: 108-109).
Importa lembrar que o princípio da diferença, orientado para um nivelamento mais
igualitário das condições socioeconômicas, não pretende de modo algum acabar com
as desigualdades (menos ainda com as classes sociais). Pelo contrário, para Rawls, a
desigualdade é algo positivo, uma vez que pode trazer benefícios para todos. Assim,
destaca: se existem desigualdades de rendimentos e riqueza, bem como diferenças na
autoridade e no grau de responsabilidade, e estas fazem o possível para que todos
melhorem, por que não permiti-las?
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Apesar da desigualdade ser algo positivo sabemos que não pode haver um aumento da
distância entre os menos e mais favorecidos. O critério que justifica a desigualdade é a
vantagem que venha trazer à camada que ocupa a posição inferior da sociedade, se
não for assim à desigualdade não é aceita. Rawls não admite um sacrifício dos menos
favorecidos em nome da eficácia econômica, ele rejeita o “liberalismo selvagem”, bem
como, importa acrescentar, o “igualitarismo social”, o sacrifício dos mais favorecidos
em nome da justiça social, ele rejeita o “socialismo autoritário” (Terré, 1988: 10).
Em relação ao princípio da diferença, Rawls desenvolve outro argumento: a regra
maximin que consiste em empenhar-se ao máximo em melhorar a condição dos que
possuem o mínimo. Esta regra de justiça encontra seu fundamento na posição original
e, isso porque as partes, que intervêm no acordo, devem hierarquizar as alternativas
conforme os piores resultados possíveis, optar pelo menor dos piores resultados.
De fato, o autor supõe que os indivíduos, na posição original, têm uma aversão ao
risco, temem sair prejudicados da eleição feita e, sendo assim optam por maximizar as
situações de pobreza, marginalização e desamparo e não às de riqueza e poder. Assim,
para justificar tal regra há que voltar à posição original, uma situação, segundo o autor,
dominada pela incerteza e determinada pelo “inimigo”: Há uma relação entre os dois princípios e a regra maximin para a escolha em condições de incerteza. Isso fica evidente pelo fato que os dois princípios de justiça são àqueles que escolheria uma pessoa ao conceber uma sociedade na qual o seu lugar lhe fosse atribuído pelo seu inimigo (Rawls, 1993: 181).
Contudo, isto traz um problema no sentido que o acordo sobre a regra maximin se
afasta da escolha cooperativa e desinteressada dos princípios de justiça (supra) para
um esquema da escolha racional individual, que consiste em maximizar o que cada um
obteria se ficasse na posição mínima: Todavia, as partes na posição original de Rawls vão escolher conjuntamente os princípios de justiça social que vão reger toda uma sociedade. Fica, assim, em aberto a questão de saber se um problema de escolha social pode ser racionalmente resolvido pelos métodos de escolha individual (grifo do autor) (Feres; Pogrebinschi, 210: 16)
No segundo princípio de justiça cabe destacar o direito a um mínimo social já que, para
Rawls, o sistema de livre concorrência não pode por si só garantir, eficazmente, uma
distribuição de bens. Daí a necessidade do governo adotar medidas reguladoras,
compensatórias e de transferência para suprir carências sociais. Em relação ao valor
deste mínimo, o autor descarta a possibilidade de ser elevado: as expectativas dos
mais desafortunados da sociedade devem ser vistas em longo prazo, para as gerações
futuras, não devem ter por base expectativas imediatas. Assim, o capital produtivo
deveria ser preservado através de - uma poupança suficiente - para garantir a justiça às
sucessivas gerações e, não, por exemplo, por meio de uma taxa impositiva exorbitante
que freie a iniciativa econômica.
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Mas, como fixar tal mínimo? Rawls sugere que se aumentados os tributos das duas,
uma: ou se obterá uma poupança suficiente ou, os impostos interferem na eficácia
econômica que não permitirão uma melhora das expectativas dos menos favorecidos -
que acabará piorando. Neste caso, embora satisfeito o princípio da diferença, não seria
atingido o resultado, isto é, um crescimento suficiente do mínimo social.
Com base nisso, Rawls contempla outra possibilidade para determinar a amplitude do
mínimo social - a justa poupança - que se funda também na posição original. De fato,
as restrições formais, dadas pelo véu da ignorância, impedem às partes de conhecer a
geração à qual pertencem e o nível de desenvolvimento da sociedade. Assim, em tal
circunstância, é lógico que se pergunte a cada uma delas quanto estariam dispostas a
poupar para cada nível de riqueza por elas produzida e isso, supondo que as demais
gerações poupariam seguindo o mesmo critério (Rawls, 1993: 327). Para o autor, é
plausível esperar que seja escolhida tal regra, a justa poupança, que permite
estabelecer, por antecipação, porcentagens suficientes para cada nível de riqueza
produzida. Se for seguida esta regra cada geração daria uma contribuição aos seus
pósteros que a receberão de seus antecessores.
Tal regra pode ser vista do ponto de vista dos menos afortunados de cada geração,
sendo assim caberia saber quem são as pessoas com menor quantidade de bens? Uma
possibilidade é a de escolher uma posição social particular, a dos trabalhadores não
qualificados e, a partir daí contar como menos favorecidos os que tenham ingresso ou
riqueza aproximada aos que se encontram em tal situação ou, ainda pior (Vallespín,
1985: 111).
Analisada a liberdade e igualdade como postulados morais a priori que permitem um
acordo imparcial e cooperativo da justiça e os direitos fundamentais a posteriori a
serem usufruídos pelos membros da sociedade bem ordenada, através da estrutura
básica da sociedade, convém tecer algumas críticas à concepção metafísica da justiça.
Os direitos sejam como postulados morais ou direitos fundamentais são tidos, segundo
a abordagem abstrata da justiça, como universais: erga omnis homines e, isso porque
os princípios da justiça, segundo Rawls, são universais em sua aplicação, uma vez que
todas as pessoas são éticas. A este propósito, vale lembrar, também, as palavras do
autor quando se refere à ficção da posição original: ela nos obriga a contemplar a
situação humana não só de todos os pontos de vista sociais, mas também de todos os
pontos de vista temporais - o que não significa senão admitir o caráter universalista e
abstrato da justiça.
O universalismo abstrato da TJ deve-se ao fato de partir do pressuposto racional/moral
15
da pessoa dar-se princípios de justiça. Tal universalismo é “vazio” na medida em que se
limita a consagrar uma natureza idêntica (racional/moral) que ignora as diferenças
reais criadas pela história, pela sociedade. Como acontece com teorias que tomam a
humanidade de forma abstrata, que pretendem explicar o idêntico, imutável, etc, elas
correm o risco de banalizar as diferenças. É o que acontece com a TJ que, a partir de
postulados morais a priori (liberdade e igualdade) deduz direitos fundamentais a
posteriori (individuais, políticos e sociais) que tornam possível o autorrespeito.
O universalismo abstrato da TJ ao tomar como medida verdadeira ou, seguindo Rawls,
ao adotar uma concepção metafísica da pessoa deixa, implicitamente, em aberto a
tentação preconceituosa de julgar outros indivíduos ou sociedades como inferiores por
carecerem dos atributos apriorísticos necessários que permitem definir o justo.
Além do mais, como fica a TJ diante daqueles modelos teóricos que não admitem uma
concepção abstrata da pessoa porque o verdadeiramente real é a satisfação do bem-
estar. Assim, seguindo estudiosos, podemos dizer que a relação entre bens primários e
bem-estar varia em virtude das diversidades pessoais de converter bens primários em
realizações de bem-estar (Feres; Pogrebinschi, 2010: 53). Assim, por exemplo, a regra
maximin, os indivíduos para evitar riscos optam por maximizar o mínimo de vantagens
possíveis que, do ponto de vista utilitarista, não refletiria o modo como atuamos: optar
por maiores ganhos potenciais ao custo de admitir riscos de sofrer perdas, ou seja, à
diferença da racionalidade identificada com a aversão ao risco (TJ), os utilitaristas
estão dispostos a assumir riscos para obter maiores benefícios (Silveira, 2003: 59).
A concepção metafísica da justiça obedece ao fato que a TJ, baseada no construtivismo
kantiano, se sustenta numa racionalidade solipsista, monológica, capaz de estabelecer
cientificamente o justo. Pois bem, o solipsismo, enquanto hiper-racionalismo, parte do
pressuposto de que só existe o sujeito daí a impossibilidade de reconhecer a existência
simultânea de outros egos. Mas, seguindo críticos deste tipo de racionalidade caberia
dizer que o traço da subjetividade ou racionalidade esta dado pelo fato dela não
coincidir consigo mesma, ou seja, de abrir-se ao mundo externo, ao outro. Além do
mais, o próprio fundamento da razão não é igualmente um modelo cultural, histórico,
entre muitos outros?
Esta possibilidade é descartada por Rawls quando afirma que não se pode abrir mão
do princípio universal do igual valor da dignidade que, como destacamos, ocupa um
“lugar central” na TJ. Mas, a preferência pelo valor do igual respeito não leva, também,
a uma assertiva questionável no sentido de considerar tal postulado como verdadeiro?
O individualismo metodológico de Rawls parece inspirar-se no modelo do “espectador
imparcial” segundo o qual os seres humanos, como agentes livres e racionais e iguais e
razoáveis, que agem em condições fictícias/ideais (posição original, véu da ignorância),
16
podem definir o justo. Mas quem é esse agente? Quais os limites dessa racionalidade?
Tais questões “ficam no ar” ao colocar a racionalidade como ponto de partida e não
como um produto social, histórico.
Como “codificador universal” Rawls adota um ponto de vista sub specie aeternitatis7
que procura responder ao seguinte problema: qual concepção da justiça, idealmente,
deve ser preferível a todas as outras? Resposta: aquela que permita extrair princípios
necessários que resultam de uma exigência inamovível: a capacidade das pessoas
estabelecerem a ideia do justo dado pelo conjunto dos direitos fundamentais que
englobam os dois princípios. Tratar-se-ia, portanto, de chegar a regras de justiça
absolutas, fundadas em convicções morais e racionais, que são impermeáveis às
especificidades concretas de cada sociedade.
No reforço destas críticas, convém trazer a opinião de autores comunitaristas8 na
medida em que não admitem, como Rawls, que o bem individual seja equiparado ao
livre exercício da capacidade de escolher, mas que a realização do bem é indissociável
dos vínculos familiares, nacionais, religiosos em que nós encontramos inseridos: não
existe algo assim como uma absoluta liberdade de escolha, não temos a liberdade de
renegar de nosso passado nem de ignorar os afetos e compromissos que são
inseparáveis do processo de constituição de nossa identidade (Silveira, 2003: 82). E
ainda sobre a “posição comunitarista”: (ela) não fala a partir de uma posição desprendida no tempo e no espaço, universal ou transcendente, mas de uma localização consciente em determinado grupo social com determinado conjunto de valores e história partilhados, a partir dos quais questões como justiça, direitos e deveres devem ser pensados criticamente (Feres; Pogrebinschi, 2010: 72).
Diferentemente, a TJ parte do postulado de uma natureza humana idêntica e imutável.
Adota como referência o sujeito descarnado, isolado, desimpedido, “verdadeiramente
humano”: o ser numênico kantiano. Isto resulta claro quando Rawls coloca a vontade
por trás do véu da ignorância fazendo que apareça sob o domínio exclusivo da razão -
enquanto a comunidade e os valores acerca do bem comum, que são concomitantes
ao exercício da vontade e liberdade, desaparecem por completo. Sendo assim, caberia
outro questionamento: levantado o véu da ignorância as pessoas “demasiadamente
humanas” (Kant) fariam a mesma escolha sobre a justiça? E isso tendo em vista que os
valores de cada comunidade diferem entre si:
7 Aliás, reconhecido expressamente pelo autor quando faz referência ao como devemos perceber o mundo social: “(...) observar nosso lugar na sociedade desde a perspectiva desta situação é observá-lo sub specie aeternitatis: é contemplar a situação humana, não só desde todos os pontos de vista sociais, mas também desde todos os pontos de vista temporais” (Rawls, 1993: 648). 8 Dentre dos autores comunitaristas podemos citar: Sandel, Walzer, Taylor, MacIntyre, etc.
17
O problema mais grave reside nas particularidades da história, da cultura e da pertença a um grupo. Incluso se favorecem a imparcialidade, a pergunta que com maior probabilidade surgirá na mente dos membros de uma comunidade política não é: que escolheram indivíduos racionais em condições universalizantes de tal ou tal tipo?, mas que escolheram pessoas como nós, situadas como nós estamos, compartindo uma cultura e decididos a segui-la compartindo? (Walzer, 1993: 19).
O que interessa a Rawls é descobrir no ser abstrato a capacidade de elaborar princípios
de justiça verdadeiros e contribuir de forma cooperativa para sua realização. Contudo,
vale reiterar, que tal atitude passa por alto as situações concretas, históricas, em que
os indivíduos estão inseridos e, através das quais são descobertos e desvelados seus
fins: O bem não pode ser sempre objeto de livre escolha. Pelo menos parcialmente, nosso bem consistirá na plena realização de aqueles vínculos (familiares, nacionais, religiosos) nos que estamos inseridos desde sempre. Não existe algo como absoluta liberdade de escolha: não temos a liberdade de renegar de nosso passado nem de ignorar os afetos e compromisso que tem sido inseparáveis do processo de constituição de nossas identidades (Silveira, 2003: 82).
Cabe sublinhar, ademais, que a concepção da pessoa como agente razoável, que tem
um sentimento de justiça, está ligada ao senso comum, ou seja, àquilo que pode ser
aceitável numa sociedade, portanto as condições de coexistência numa sociedade
justa dependem do sense of justice, que contém exigências múltiplas e, muitas vezes
incompatíveis. Disto resulta que não é possível um acordo razoável de uma estrutura
justa da sociedade, uma vez que muitas soluções podem ser igualmente razoáveis.
Em outras palavras: levantado o véu da ignorância será que os indivíduos com um
sentimento de justiça vão escolher obrigatoriamente os bens primários previstos nos
princípios de justiça? É possível um conjunto de bens primários para todos os mundos
morais e materiais? Um conjunto assim não pode ser concebido que em termos sub
specie aeternitatis. Ademais, admitindo a escolha dos princípios de justiça: será que os
indivíduos vão respeitar necessariamente a ordem prioritária defendida por Rawls? E,
ainda: será que a estrutura básica da sociedade que corresponde àquela dos países
ocidentais avançados é a única para tornar efetivos os ideais de justiça? Com respeito
à ordem prioritária, vale o seguinte comentário:
(...) a teoria da justiça de Rawls se mostra insuficiente naqueles países onde a justiça se encontra ‘sobre mínimos’, onde a desigualdade é tão escandalosa que o mais racional é desconfiar que nenhum dos princípios se aplicará. Em tais circunstâncias, afirmar o direito prioritário à liberdade igual para todos, soa a puro cinismo. Pois não só a capacidade de cooperar, mas a de conhecer e optar por este ou àquele plano de vida - a capacidade de ser racional - requer umas condições mais matérias que a mera liberdade de expressão ou associação (Camps, 1990: 24).
Finalmente, cumpre dizer que a limitação da TJ obedece à concepção procedimental da
justiça que é insuficiente porque se assenta numa pré-compreensão do justo antes de
provar que princípios serão escolhidos. Revela-se a “inevitável circularidade da TJ” -
18
fornecer uma racionalização da justiça que nela já está pressuposta.
As críticas que recebeu a TJ não desacredita, contudo, a contribuição desta obra para a
teoria e filosofia política contemporânea. Prova disso, como destacamos, os inúmeros
estudos e trabalhos que suscitou (muito dos quais levou o autor a fazer revisões) que
enriquecem o debate até hoje: “Não existe acordo na forma como Rawls coloca os
problemas, mas o ponto é que, depois de várias décadas da publicação da TJ, grande
parte da discussão gira em torno de suas ideias. E este é um mérito do que poucos
autores podem se orgulhar” (Silveira, 2003: 108).
Seguindo esta observação, propomos, a seguir, abordar alguns aspectos da “guinada
política” da justiça, em que medida o construtivismo político substitui o construtivismo
abstrato, em que medida a concepção política abandona toda pretensão universal:
minhas observações da justiça são necessárias porque esta concepção (política) da
justiça não depende de nenhuma verdade universal, de nenhuma natureza essencial
da pessoa (Rawls, 1988: 279).
Tal mudança faz com que a teoria se torne menos pretensiosa, “nem todos os países,
afirma, são terrenos férteis para a teoria da justiça”, e abandone postulados morais a
priori (TJ), liberdade e igualdade, por uma “concepção específica da pessoa” que se
encontra inserida numa “cultura pública de uma sociedade democrática” (LP) (Cardim,
2000: 9-10).
Dentre os aspectos da mudança destacamos três conceitos: o “consenso sobreposto”,
o “pluralismo razoável” e a “razão pública” e, isso porque permitem elucidar questões
tais como: qual concepção de justiça é mais apropriada para realizar os valores da
liberdade e igualdade nas sociedades democráticas pluralistas ocidentais? Como uma
concepção da justiça pode gerar apoios duradouros em sociedades caracterizadas pelo
pluralismo?, ou, como é possível uma sociedade justa e estável de cidadãos livres e
iguais que se estão divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais incompatíveis
entre si? E, ainda, parafraseando o autor:
Como é possível que doutrinas profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto? O liberalismo político tenta responder a essas e outras questões (Rawls, 2000: 26).
Para responder tais questões convém destacar certas características do construtivismo
político: a) ele se aplica a vida política e não à vida moral em geral, isto é, a um tipo de
vida em que devemos justificar instituições, normas e ações de acordo a critérios que
todos os membros da sociedade aceitam; b) ele não visa estabelecer princípios
universalmente válidos, mas princípios de justiça adequados para um tipo de
sociedade que se caracteriza pelo pluralismo; c) ele não apela a uma concepção
19
metafísica da pessoa, mas ao cidadão em tanto membro da sociedade política (Silveira,
2003: 91).
Em relação a este ponto, vale reiterar que Rawls abandona toda concepção abstrata da
pessoa já que o acordo sobre a justiça e instituições básicas da sociedade é feito por
pessoas concretas, isto é, por cidadãos ligados a uma tradição política determinada, a
uma cultura de fundo (background), uma cultura pública, que corresponde àquela das
sociedades liberal-democráticas ocidentais.
A pessoa humana como agente moral abstrato é substituía então pelo cidadão que faz
parte de um contexto social, político e cultural específico. As pessoas na teoria política
da justiça não são agentes numênicos (Kant), mas cidadãos que se reconhecem como
tais: o agente moral, diz Rawls, é o cidadão livre e igual na medida em que é membro
da sociedade, não o agente moral geral. Tal mudança fazendo com que o “liberalismo
igualitário” de Rawls não se enquadre numa visão metafísica, mas política da justiça.
Partindo da existência de “doutrinas abrangentes” nas sociedades liberal-democráticas
e de uma concepção da justiça ligada ao domínio político, Rawls elabora o conceito de
consenso sobreposto. Tal conceito significa que o acordo sobre a justiça política e as
disposições institucionais que o consolidam incorpora diferentes doutrinas religiosas,
morais e filosóficas que caracterizam tais sociedades e, não uma só e única doutrina
filosófica, metafísica, capaz de determinar o justo (TJ).
A aceitação da justiça política decorre do consenso dos cidadãos em torno de valores
comuns em que cada cidadão, com sua própria concepção do bem, aceita outros
pontos de vista que cada uma dessas doutrinas promove: o consenso sobreposto
implica então que é possível um acordo sobre os princípios de justiça, apesar das
distintas doutrinas abrangentes e conflitantes que existem na sociedade. Tal acordo
permite também dar unidade à sociedade e estabilidade às instituições democráticas
representativas: A unidade social baseia-se num consenso sobre a concepção política; e a estabilidade é possível quando as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos politicamente ativos da sociedade e, as exigências da justiça não conflitam gravemente com os interesses essenciais dos cidadãos (RAWLS, 2000: 179-180).
Em relação às pessoas ou, melhor os cidadãos que intervêm no acordo sobre a justiça
importa dizer que se trata de agentes livres e racionais (rational) e iguais e razoáveis
(reasonable): capazes de perseguir diversos fins e escolher os meios mais adequados
para atingi-los, bem como agir conforme o sentimento de justiça, de cooperar na sua
realização, no caso, aceitar os limites morais dado pelas doutrinas abrangentes.
Assim, o sense of justice encontra-se ligado ao conceito de pluralismo razoável uma
vez que no acordo as partes, movidas por tal sentimento, aceitam os distintos pontos
de vista e concepções do bem que se originam nas diferentes doutrinas religiosas,
20
morais e filosóficas. Como diz o autor acerca do pluralismo razoável: “presumimos no
consenso sobreposto que todo cidadão endossa uma doutrina abrangente” - o que
implica que cada doutrina seja aceita pelas partes. Tal capacidade, o cidadão razoável,
tornando possível os princípios de justiça que giram em torno dos valores políticos da
liberdade e igualdade.
O conceito de razão pública, porque se aplica ao “domínio especial do político”, diz
respeito aos sujeitos que participam e os temas que são objeto de deliberação, ou seja,
ao razoamento dos cidadãos com igual status, no foro público, que deliberam sobre os
elementos constitucionais fundamentais da sociedade:
A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus cidadãos, àqueles que compartilham o status de cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem do público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos a que devem servir (RAWLS, 2000: 261-262).
Dentre dos elementos constitucionais cabe destacar àqueles relativos à estrutura geral
do estado e do processo político: as atribuições do legislativo, executivo e judiciário e o
alcance a ser dado à regra da maioria; bem como os direitos e liberdades iguais dos
cidadãos- direito de voto e participação política, liberdade de pensamento, consciência
e associação e as garantias judiciais ligadas ao rule of law (Rawls, 2000: 277).
Neste contexto, cabe enunciar os dois princípios da justiça política:
- Primeiro princípio: todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente
satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível
com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas,
deverão ter seu valor equitativo garantido.
- Segundo princípio: as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois
requisitos - primeiro, devem estar vinculadas a cargos abertos a todos, em condições
de igualdade equitativa de oportunidades e, segundo representar o maior benefício
aos membros menos privilegiados da sociedade.
Tais princípios, portanto, especificam direitos, liberdades e oportunidades do tipo que
conhecemos nos regimes constitucionais democráticos; atribuem prioridade especial a
esses direitos, liberdades e oportunidades e, endossam medidas que garantem a todos
os cidadãos os meios adequados para tornar efetivo às liberdades e oportunidades
básicas. Disto resulta que o bem comum está dado pelos valores da igualdade civil e
política, a igualdade de oportunidades e a igualdade social (Rawls, 2000: 272-273).
Com respeito aos princípios de justiça política, que especificam direitos e liberdades
iguais (primeiro princípio) e regula questões relativas à igualdade de oportunidades e
justiça distributiva (segundo princípio), importa dizer que Rawls mantém a ordem de
prioridade do primeiro frente ao segundo, contudo o argumento para justificar tal
21
precedência é diferente, ele é fatual, histórico (não metafísico: a posição original). “Ao
largo da história do pensamento democrático, afirma, tem-se insistido na consecução
de certas liberdades e garantias constitucionais específicas como, por exemplo, em
diversas constituições e declarações de direitos humanos. A prioridade das liberdades
básicas, conclui, segue esta tradição”.
Mas a ordem léxica em LP é justificada também pelo fato que as liberdades básicas
asseguram o valor equitativo das liberdades políticas: o direito de aceder a cargos
públicos e influir nas decisões políticas. Apesar de admitir que as liberdades políticas
exigem maior igualdade econômica para serem efetivas tal possibilidade é descartada
por Rawls ao entender que o exercício destas liberdades é fundamental para preservar
as liberdades individuais - que pode não acontecer com a aplicação “imediata” de
medidas distributivas que visam uma maior igualdade social (segundo princípio).
Outro argumento que permite mostrar a prioridade do primeiro princípio sobre o
segundo está dado pela relação entre liberdade individual e propriedade pessoal. De
fato, dentre os bens primários do primeiro princípio figura o direito de cada cidadão
ter e usar suas propriedades pessoais que, segundo Rawls, constitui a base material
suficiente para cada cidadão estabelecer sua própria ideia do bem, sendo que esta
capacidade é fundamental nas sociedades democrático-pluralistas que, como vimos,
possuem diferentes concepções do bem, distintas doutrinas abrangentes. O fato de
incluir ambos os direitos, liberdade individual e propriedade pessoal, no primeiro
princípio, faz que a procura do bem tenha prioridade diante da aplicação de medidas
distributivas, que podem trazer restrições ao direito de propriedade pessoal - base
material para a escolha da vida boa.
Tais argumentos que reforçam a prioridade do primeiro sobre o segundo princípio
revelam, mais uma vez, a natureza moral ou deontológica da concepção da justiça na
medida em que critérios utilitários, relativos ao bem-estar, são colocados em segundo
plano diante dos direitos e liberdades iguais dos cidadãos.
Cumpre destacar que a referência explícita às liberdades políticas no primeiro princípio
de justiça (supra) procura destacar o aspecto político, deliberativo, da justiça como
equidade, bem como fomentar o uso político da liberdade diante da apatia do cidadão.
A importância das liberdades políticas significa que não basta afirmar o direito igual a
um esquema de direitos e liberdades básicas mas que é preciso assegurar pari passu o
direito igual das liberdades políticas.
De fato, o exercício das liberdades políticas é relevante porque faz que o procedimento
sobre o acordo da justiça seja equitativo, ou seja, basta garantir as liberdades políticas
para que as assimetrias, diferenças, se resolvam favoravelmente para todos. Não é
necessário, portanto, incluir no primeiro princípio critérios de justiça distributiva que
22
velam por igualdades materiais já que podem trazer limitações ao exercício de ambos
os tipos de liberdades: individuais e políticas. O segundo princípio que, como sabemos,
visa uma maior igualdade das condições socioeconômicas não pode dar-se senão no
marco da deliberação, do exercício das liberdades políticas.
Para finalizar, apontamos duas críticas à abordagem política da justiça que tiram sua
origem no igualitarismo político. Uma delas é que os valores que englobam os dois
princípios de justiça política se fundam em “ideias intuitivas”, evidentes e indiscutíveis,
impossíveis de serem questionadas por cidadãos livres e iguais, racionais e razoáveis: (Tal situação) longe de ser uma constatação adequada, é o resultado de uma decisão que desde o primeiro momento exclui o diálogo àqueles que acreditam que valores diferentes deveriam orientar a ordem política. (Rawls) está convencido de que partindo dessas premissas racionais e básicas, um processo de razoamento racional e neutral conduz a uma formulação de uma teoria da justiça que todo (cidadão) razoável e racional deveria adotar. Em consequência, aqueles que não estão de acordo com ela são desqualificados como base no argumento de que são irracionais ou não razoáveis (Mouffe, 1993: 67).
Outra crítica é que a concepção da justiça esvazia a dimensão conflitiva da política: o
igualitarismo político de Rawls, afirma ainda a autora, mostra uma forte tendência à
homogeneidade e deixa pouco espaço para o dissenso e disputa na esfera política. Um
estado, incluso liberal, não existe sem certas formas de exclusão. E arremata - é
importante reconhecer isso e não concilia-las sob o véu da racionalidade (Mouffe,
1993: 66). Ou, seguindo outros autores:
O que caracteriza a vida política é precisamente o problema da criação continua da unidade, de um público, em um contexto de diversidade, de aspirações variadas e de interesses em conflito (...) para que a atividade política, o “nós”, atue, é necessário resolver essas constantes aspirações rivais e esses interesses continuamente em conflito (Pitkin, 1972 apud Mouffe, 1999: 77).
O liberalismo igualitário rawlsiano, cujo traço mais relevante, sem dúvida, é o de ter
incluído a dimensão social ou distributiva da justiça (segundo princípio), não consegue,
contudo, ficar imune a certas críticas que giram em torno do liberalismo deontológico:
o dever da pessoa ou cidadão escolher um único conjunto de princípios de justiça. Tal
igualitarismo moral (TJ) e político (LP) tendo o inconveniente de passar por cima as
particularidades da história, da cultura e da pertença (Walzer) e também os conflitos,
interesses e relações de poder que caracterizam a esfera política (Mouffe).
23
referências
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inglês H.Rubio. México: FCE, 1993.
24
1
moral universal e valores particulares
Fernando Quintana
Em meados da década dos noventa, o filósofo norte-americano Richard Rorty sugeria,
em Dúvidas para os pensadores do próximo milênio, que o confronto a ser travado se
daria em torno da “ideia de lealdade e/ou pertença particular e nosso senso de justiça
universal” (Rorty, 1996: 7). Tal desafio refletindo a preocupação de vários estudiosos
que se interrogam sobre a possibilidade de interpretar atos e pensamentos de povos
culturalmente distintos, se existem valores universais comuns a todos os povos, se a
justiça, em vez de uma categoria universal, não é uma construção histórica das
diversas culturas?
Com base nestes questionamentos importa lembrar o confronto acontecido na época,
durante a redação da Declaração mundial de direitos humanos da ONU1 cujo parágrafo
primeiro estabelece que o caráter universal dos direitos humanos não admite dúvidas,
enquanto o parágrafo quinto, além de afirmar que os direitos humanos são universais,
determina que a comunidade internacional deve ter em conta a importância das
particularidades nacionais, regionais e os diversos patrimônios históricos, culturais e
religiosos - dos estados. Tal contraste, entre universalistas e particularistas, ecoando
no discurso do Secretário-geral da Organização que, em tal oportunidade, afirmou:
Os direitos humanos concebidos em escala universal nos confrontam com as mais exigentes dialéticas: a dialética da identidade e da alteridade, do Eu e do Outro. E nos ensinam que somos ao mesmo tempo idênticos e diferentes, se temos presente esta dialética essencial do universal e do particular, da identidade e da diferença poderemos encontrar nossa essência comum além do que aparentemente nos separa, das diferenças do momento, das barreiras ideológicas, culturais. Os direitos humanos em torno dos quais debateremos aqui, em Viena, não são o mínimo denominador comum de todas as nações, mas, pelo contrário, o que eu chamaria “o humano irredutível”, ou seja, a quintessência dos valores em virtude dos quais afirmamos, juntos, que somos humanos. Não se trata de buscar compromissos prudentes, pelo contrário, se impõe que nos elevemos a uma concepção dos direitos humanos que os tornem verdadeiramente universais. É preciso que todos compreendamos claramente e aceitemos essa noção de universalidade. Seria um engano que o imperativo da universalidade, fundamento de nossa concepção comum dos direitos humanos, se converta em fonte de maus entendidos entre nós. Se impõe, então, afirmar de maneira bem nítida que a universalidade não se decreta e que não é a expressão ideológica de um grupo de Estados sobre o resto do mundo (grifo nosso) (Extratos do discurso de Boutros-Galhi, 1993:5-24).
1 A ideia de uma Conferência mundial de direitos humanos, Áustria (Viena), junho 1993, foi discutida no âmbito da Assembleia Geral da ONU em 1989, logo após a queda do muro de Berlim. Das discussões emergiu a Resolução n. 44/156, de 15 de dezembro do mesmo ano, que solicita ao Secretariado geral a realização de consultas sobre a oportunidade da convocação de uma conferência com o propósito de abordar, no mais alto nível, as questões cruciais enfrentadas pelas Nações Unidas em relação com a promoção e proteção dos direitos humanos.
2
Vale acrescentar que, além do imperativo da universalidade dos direitos humanos, o
Secretário-geral destacava outro imperativo: a meu juízo, disse, o elemento que está
em jogo neste fim de século é a democracia dentro dos estados e da comunidade de
estados, a democracia é a verdadeira garantia dos direitos humanos, só ela concilia os
direitos individuais e os direitos coletivos, os direitos dos povos e das pessoas. Tal
imperativo sendo contemplado também na declaração de 1993: a democracia é o
regime político mais favorável à promoção e à proteção dos direitos humanos.
A Conferência de Viena aconteceu depois da queda do Muro de Berlim, no contexto de
uma era “pós-ideológica” (fim do conflito Leste/Oeste) propícia, na opinião de muitos,
para a construção de um mundo assentado na universalidade dos direitos humanos e
na democracia. Este otimismo, contudo, foi desmentido pelos fatos: irrupção de novos
conflitos nacionalistas, étnicos e religiosos na década dos noventa e início do século2,
que desmentiam a era promissora do “fim da ideologia”, sonhada por muitos.
Embalados pela euforia do fim da Guerra Fria3, posturas otimistas acreditavam que se
teria alcançado um momento nunca visto na história da humanidade: um cenário
favorável para a afirmação de Os direitos humanos como tema global4, do qual a
Conferência de Viena seria o exemplo. Tal otimismo trazendo a possibilidade de aderir
a um campo comum de valores universais que definem a humanidade - independente
de variáveis particularistas decorrentes de etnia, nacionalidade, religião (Mesquita,
1994: 181).
Contudo, tal “embalo” teve vida curta visto que o ambiente mundial depois da queda
do Muro de Berlim não respondeu à ingênua certeza de que a racionalidade comanda
as relações internacionais, nem que os povos, movidos por um novo ideal de
liberdade, redesenhariam seus regimes para uma efetiva manutenção da paz e
segurança coletiva. Na realidade, assistiu-se a uma nova onda de conflitos
(nacionalistas, étnicos e religiosos) que prorrogava a ordem prometida pelo fim da
Guerra Fria (Oliveira,1995: 121).
Enquanto no plano normativo, com base na declaração mundial de Viena, levantaram-
se vozes que propunham uma revisão da teoria e práxis dos direitos humanos:
2 Cumpre salientar que houve mais conflitos desde a queda do Muro de Berlim do que durante todo o período da Guerra Fria (1947-89). I guerra dos EUA contra o Iraque (1990); guerra de secessão da Eslovênia contra a Sérvia (1990); I atentado terrorista ao Worl Trade Center (1993); guerra na Bósnia e Croácia contra a Servia (1992-95); estabelecimento do regime do Taleban no Afeganistão, onde Osama bin Laden estabelece o QG de Al Qaeda (1996); guerra no Kosovo entre Servia e a OTAN (1998-99); guerra civil na Macedônia (2001); II atentado terrorista ao World Trade Center, e ao Pentágono (2001); guerra dos EUA e da OTAN contra o Afeganistão (2001); II guerra dos EUA contra o Iraque (2003), etc.. 3 Existem várias datas que do fim da Guerra Fria: 1989 - queda do Muro de Berlin; 1990 - os satélites
soviéticos abandonam a URSS; 1991 - a Rússia sai da URSS. 4 Título da obra do diplomata brasileiro Lindgren Alves (1994), relator do Fórum Mundial das ONGs no
âmbito da Conferência mundial de direitos humanos da ONU, ed.cit..
3
Tudo indica que estamos sendo convidados a repensar o paradigma contemporâneo da teoria e práxis dos direitos humanos, e mesmo o horizonte mais amplo no qual se insere. De fato, ele parece cada vez menos capaz de responder aos desafios do pragmatismo e do pluralismo cultural que enfrentamos atualmente (...) sua universalidade abstrata é cada vez mais colocada em xeque. A cada dia parece mais questionável se eles realmente constituem o horizonte máximo e único para uma “boa vida”, e as tradições culturais não ocidentais cada vez mais o põem em dúvida. Na esfera puramente legal - que constitui apenas a ponta do iceberg nessas reflexões - a Declaração Mundial de Viena sobre os Direitos Humanos de 1993 ofereceu um bom exemplo dessa tendência (grifo nosso) (Eberhard, 2004: 160).
Embora o documento onusiano não propõe-se violar o âmago de qualquer cultura
(parágrafo quinto), houve, vale insistir, discrepâncias entre aqueles países favoráveis
ao universalismo dos direitos humanos e àqueles partidários do particularismo - como
ilustram as intervenções de algumas delegações que, por um lado, afirmavam:
Seria presunção nossa e um claro abuso pensar que, em vez de reconhecer e garantir, a comunidade dos Estados concede ou cria os direitos do homem. Daqui deriva que o Estado [...] deve respeitar os direitos e a dignidade dos seus cidadãos e que não pode, em nome de declarados interesses coletivos [...] ultrapassar a fronteira que lhe é imposta pela própria anterioridade dos direitos do homem e sua primazia relativamente a quaisquer fins ou funções do Estado. Não o pode fazer nem por motivos que tenham a ver com o poder ou a prosperidade econômica, nem invocando razões aparentemente mais elevadas e de mais puro teor moral, como seja a religião, as ideologias, as concepções filosóficas ou políticas.
E, por outro lado, sustentavam:
O conceito de direitos humanos é produto do desenvolvimento histórico. Encontra-se intimamente ligado a condições sociais, políticas e econômicas específicas, e à história, cultura e valores específicos, de um determinado país. Diferentes estágios de desenvolvimento histórico contam com diferentes requisitos de direitos humanos. Países com distintos estágios de desenvolvimento ou com distintas tradições históricas e backgrounds culturais também têm um entendimento e prática distintos de direitos humanos5.
Esta última posição pode ser observada, principalmente, nos países que elaboram a
Declaração de Bancoc6 que, além de salientar no preâmbulo sua contribuição à
conferência de Viena em razão da diversidade e da riqueza de suas culturas, dispõe
que deve ter-se em consideração a importância dos particularismos nacionais e
religiosos7. A posição desses países contribuindo para a declaração mundial adotar um
universalismo mais matizado.
5 CANÇADO, A.A.T. Processo preparatório da conferência de Viena. Disponível em: http://ftp.unb.br/pub/unb/ipr/rel/rbpi/1993/130.pdf. Acesso: 30 de março 2006. 6 Em virtude do encontro de Viena (cuja declaração contou com o voto favorável de 171 países) houve uma série de reuniões regionais, preparatórias, dentre as quais, cabe citar por sua importância a celebrada por 32 países asiáticos (Bangladesch, China, Singapura, Tailândia, Japão, Indonésia, Iraque, Irã, Emirados Árabes Unidos, Filipinas, Síria, etc.), que elaboram a declaração de Bancoc. 7 DOC. N.U. A/CONF.157/ASRM/8.3.
4
De fato, os países que resistiam ao universalismo tout court dos direitos humanos
pareciam aceitar, no máximo, o universalismo mais mitigado do parágrafo quinto,
enquanto texto de compromisso, à diferença dos favoráveis do primeiro parágrafo
que entendiam que sua adoção “sepultaria de vez as pretensões dos partidários do
particularismo” e, que a adoção apenas do parágrafo quinto “levaria a um retrocesso”.
Foi também no início dos anos noventa, com o fim da Guerra Fria, que especialistas
das relações internacionais defenderam a tese de que ordem mundial se encontrava
dominada por duas forças ou lógicas: a lógica da fragmentação e da unificação, ou
seja, por forças centrífugas que impelem à secessão ou separação sob a roupagem do
culturalismo, e por forças centrípetas que impelem à unidade sob a roupagem do
universalismo. Dar-se-ia nesse contexto, a passagem de um sistema de polaridades
definidas (Leste/Oeste) para um sistema de polaridades indefinidas, em que as forças
de fragmentação estão dadas pelos conflitos étnicos e religiosos (Lafer, 1994: XXX-
XXXI).
Em reforço dessas duas lógicas, cabe lembrar a tese de O choque de civilizações de
Samuel Huntington, que, em relação à declaração de Viena, sublinhava que a principal
divergência em torno dos direitos humanos se deu entre aqueles países ocidentais que
defendiam o universalismo e um bloco de estados islâmicos e asiáticos que defendiam
o relativismo cultural ou, como afirma em sua obra: as pretensões universalistas de
ocidente o levam cada vez mais para o conflito com outras civilizações e de forma mais
grave com o islã, no contexto do pós-Guerra Fria, as distinções mais importantes entre
os povos não são mais políticas ou econômicas, mas culturais. À diferença do conflito
ideológico do período da Guerra Fria, em que a questão chave é De que lado você está,
no atual conflito a questão chave é O que você é. E acrescentava:
Os povos e as nações estão tentando responder à pergunta mais elementar que os seres humanos podem encarar: quem somos nós? E estão respondendo essa pergunta da maneira pela qual tradicionalmente a responderam - fazendo referência às coisas que mais lhes importam. As pessoas se definem em termos de antepassados, religião, idioma, história, valores, costumes e instituições. Elas se identificam com grupos culturais: tribos, grupos étnicos, comunidades religiosas, nações e, em nível mais amplo, civilizações. As pessoas utilizam a política não só para servir aos seus interesses, mas também para definir suas identidades. Nós só sabemos que somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes, quando sabemos contra quem estamos (Huntington, 1997:20).
O paradigma de Huntington opunha-se à tese, também em voga na época, de Francis
Fukuyama que, depois da queda do muro de Berlim, em O fim da historia e o último
homem, pergunta: será que no final do século XX faz sentido falarmos novamente de
uma história coerente e direcional da humanidade que, finalmente, conduzirá a maior
parte dela à democracia liberal? Minha resposta é sim. A democracia liberal permanece
como a única aspiração política coerente e constitui o ponto de união entre regiões e
culturas do mundo todo. O que se está testemunhando, sublinhava ainda, não é apenas
o fim da Guerra Fria ou o término de um período particular da história do pós-guerra,
5
mas sim o fim da história: a universalização da democracia liberal ocidental como forma
última de governo humano. E, arrematava:
É neste cenário que o marcante caráter universal da revolução liberal dos nossos dias passa a ter um significado especial. É mais uma prova de que está em funcionamento um processo fundamental, que determina um padrão evolucionário para todas as sociedades humanas - em resumo, algo como uma História Universal da humanidade na direção da democracia liberal (grifo do autor) (Fukuyama, 1992: 81).
Porém, tal visão otimista da história ou, lembrando Viena, a democracia como o regime
mais favorável à promoção dos direitos humanos sendo desmentida pelos fatos - a
emergência de novos conflitos - que demonstravam a “amarga previsão de que a
história não caminha para lugar nenhum”. Ou, retomando aspectos da polêmica tese de
O choque de civilizações:
A ilusão de harmonia no fim da Guerra Fria logo foi dissipada pela multiplicação de conflitos étnicos e de “limpeza étnica”, pela ruptura da lei e da ordem [...] pela intensificação do fundamentalismo religioso [...] pela incapacidade das Nações Unidas e dos Estados Unidos de acabarem com sangrentos conflitos locais [...]. O paradigma de um só mundo harmônico está claramente divorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundo pós-Guerra Fria (Huntington, 1997: 32-33).
Com base nestas observações que giram em torno da tensão moral universal-valores
particulares e da dialética identidade-alteridade, segundo o Secretário-geral da ONU
ou também, parafraseando Christoph Ebehard, da teoria universal dos direitos
humanos diante dos desafios do pluralismo cultural, etc, propomos, a seguir, uma
tipologia para avançar na discussão.
Contudo, importa esclarecer que na análise deste contraste devemos tomar distância,
como alerta o pragmatismo de Rorty, de especulações metafísicas acerca de “o que
somos” para enfrentar questões práticas acerca de “o que poderíamos vir a ser”, ou
seja, trazer soluções concretas para enfrentar tal dualismo.
Com base no artigo do filósofo paulista Sergio Paulo Rouanet, Identidade e diferença,
podemos distinguir dois modelos: o universalismo concreto, em que o ego considera o
alter como um igual, mas reconhece que é também diferente, e o particularismo
crítico, em que o alter invoca a diferença frente ao ego e, a partir daí, busca constituir
sua autonomia, seu reconhecimento diante do primeiro (Rouanet, 1994: 80-84). Tais
tipos podem ser relacionados, respectivamente, a duas posturas: interculturalista e
multiculturalista, em que o diálogo ou comunicação entre países e culturas diferentes
é possível por serem pluralistas e tolerantes.
Tais posições abrindo a possibilidade de “uma natureza culturalizada”; que a máxima
cartesiana possa ser ampliada: je pense donc je suis de quelque part. Mais
especificamente que, no momento da elaboração de normas de direitos humanos, não
podemos permanecer alheios à ideia de pertença ou lealdade da comunidade da qual
fazemos parte.
6
universalismo concreto e abertura aos valores do alter
Da perspectiva do universalismo concreto: o eu vê o outro como igual, mas no entanto
reconhece que pode ser diferente. Tal postura, interculturalista, apresenta certas
afinidades com o universalismo e também com o particularismo. Com o primeiro, pelo
fato de que parte do postulado da igualdade de todos os homens, isto é, da existência
de uma racionalidade e moralidade básica acessível a todos. Com o segundo, porque
admite a diferença, mas sem ontologizá-la ou canonizá-la. A vantagem deste modelo
radica no fato de evitar duas banalizações: a transculturalista, que estabelece a
unidade em detrimento do particular, a uniculturalista, que estabelece o singular em
sacrifício do universal.
Para uma melhor compreensão do universalismo concreto seria oportuno começar por
autores que, segundo Isaiah Berlin, compõem as “tropas irregulares do iluminismo
racionalista”, como, por exemplo, Montesquieu:
Não existe em Montesquieu eleição nítida em favor do universalismo ou do relativismo, mas um intento de articular os dois [...]. É certo que se encontram em Montesquieu fórmulas inspiradas na filosofia de uma ordem racional e universal, mas ao mesmo tempo fórmulas que acentuam a diversidade dos costumes e das coletividades históricas. Resta por saber se há que considerar o pensamento de Montesquieu como um compromisso precário entre essas duas inspirações [...]; uma tentativa legítima e imperfeita de tentar combinar os dois tipos do qual nenhum deles pode ser totalmente eliminado (Todorov, 1983: 35).
A ambiguidade montesquiana (universalismo-particularismo) pode ser observada na
famosa frase do filósofo francês: as vozes da natureza são as mais doces de todas as
vozes. Tal assertiva é importante porque o termo natureza assume um duplo
significado, digamos, com N maiúsculo e n minúsculo. No primeiro caso, Montesquieu:
filósofo-moralista, a palavra é assimilada à natureza racional do homem a partir da
qual é possível estabelecer leis universais, uniformes, sendo que as leis positivas e
instituições vigentes são julgadas segundo princípios a priori de justiça. No segundo
caso, Montesquieu: cientista-sociólogo8, a palavra é assimilada à natureza das coisas,
isto é, uma natureza diferenciada, multiforme, que cumpre explicar na sua variedade:
o esprit des lois.
A este respeito, cabe lembrar o seguinte comentário de Rousseau: Montesquieu se
propôs a estudar os princípios do direito e o direito positivo dos diferentes países,
sendo um bem diferente do outro. Faz-se necessário, então, reunir os dois para se
alcançar uma maior compreensão de sua obra, a qual pretende julgar o que deve ser a
partir do que existe.
Em Montesquieu, a palavra lei tem várias acepções, como se depreende da leitura do
primeiro capítulo de O espírito: a lei como princípio racional universal; a lei científica
8 Luis Althusser e Raymond Aron consideram Montesquieu um dos precursores da sociologia moderna, no sentido de ter criado um novo conceito de lei (sociológica) entendida como relação constante entre variáveis fenomenais ou, segundo O espírito: as leis no significado mais amplo não são outra coisa que as relações derivadas da natureza das coisas.
7
ou da causalidade, relações constantes entre variáveis fenomenais; e a lei positiva ou
commandement, que rege a conduta dos homens em sociedade.
Quanto ao primeiro tipo de lei, racional, universal, válida e verdadeira, cabe citar os
princípios da religião, legalidade, sociabilidade, conservação, reciprocidade, igualdade
e também o princípio da dependência. A importância dada por Montesquieu a estas
leis a priori, justas em si mesmas, pode ser ilustrada em outra conhecida frase do autor
que diz: afirmar não existir justo nem injusto, além do permitido pelas leis positivas, é
o mesmo que afirmar não serem iguais/serem diferentes os raios de um círculo antes
dele ser traçado.
Assim, para o filósofo francês existem relações de equidade anteriores às leis positivas,
particulares, de cada país, determinadas tão-somente pela razão - o que leva, por
exemplo, a que critique a escravidão e o despotismo com base nos princípios a priori
da igualdade, reciprocidade e da legalidade (respectivamente).
Em Viagens, porém, Montesquieu apresenta uma atitude relativista quando afirma
que se viaja para conhecer maneiras e costumes distintos e não para criticá-los ou,
ainda, quando diz em O espírito: quando percorro as nações, encontro em todos os
lugares costumes diferentes e cada povo acredita ter a posse do melhor. Tal posição
refletindo também o que afirma em Cartas persas: as expressões belo, bom e justo são
atributos relativos ao sujeito que os considera, é necessário imprimir bem esta ideia na
cabeça dos homens, já que ela é a fonte da maior parte de confusões e preconceitos.
Em reforço desta posição relativista, vale lembrar o comentário de Joseph de Maistre
quando denuncia o caráter abstrato das declarações francesas de direitos humanos
por serem feitas para o homem em geral: o homem não existe, tenho visto na minha
vida franceses, italianos, russos, eu sei, graças a Montesquieu, que se pode ser persa,
quanto ao homem, declaro não tê-lo encontrado jamais na minha vida, se ele existe,
eu o desconheço
Montesquieu quer explicar porque os homens não obedecem a princípios racionais.
Como bom iluminista que era, quer descobrir o porquê da irracionalidade nos homens
e, para isso, se comporta como sociólogo mostrando como diferentes fatores
materiais, morais, levam os homens a se afastarem dos princípios de justiça.
Montesquieu procura explicar cientificamente o sentido do absurdo, da ignorância, do
não respeito às leis universais. Para o autor, os fenômenos históricos contradizem as
leis da razão e, sendo assim, é necessário encontrar as causas objetivas, sociológicas,
que explicam o desvio dos homens a princípios racionais; e também porque certos
commandaments existem em cada pais, porque mudam.
Dentre dos fatores que explicam a existência de leis positivas e instituições em cada
país podemos citar fatores naturais (clima, território, número de habitantes); materiais
(tipo de economia); sociais (organização do trabalho); políticos (formas de governo); e
também morais ou irracionais (costume, religião). Tudo isso formando o espírito das
8
leis de cada sociedade. Assim, por exemplo, a instituição da escravidão em que mostra
sua relação com a natureza do clima e não apenas avaliada criticamente a partir da
Natureza racional.
Do monumental empreendimento de O espírito surge uma nova sensibilidade pelos
sentimentos, hábitos e costumes de cada país - que pode ser ilustrada nas seguintes
assertivas montesquianas: um povo ama e defende mais seus costumes que as leis
positivas; os usos e costumes são obra da nação e extraem sua origem da natureza das
coisas (n minúsculo); as leis muitas vezes são impostas enquanto os costumes são
espontâneos; é mais perigoso mudar os costumes que as leis; os povos se tornam
infelizes se retirados deles pela força seus costumes.
Com base no exposto, como conciliar princípios universais e valores particulares?
Resposta irresolúvel!, não fosse o apego de Montesquieu pela moderação, ou seja, a
possibilidade de aceitar leis universais sempre e quando não firam costumes locais,
caso contrário dar-se-ia o triunfo do conflito.
A importância de Montesquieu está dada pela abertura à diferença, própria de todo
espírito que se preze moderado. No caso, explicar porque um país adota certas leis e
instituições, porque elas mudam; mas também porque os homens se afastam de
princípios racionais.
Dentre das “tropas irregulares do iluminismo racionalista” (Montesquieu) é possível
pensar o eu e o outro não como antagônicos, já que o respeito pela diferença, pelo
esprit de cada país, não é incompatível com o reconhecimento de princípios universais.
Do ponto de vista montesquiano é possível que valores universais coexistam com os
costumes e hábitos de cada país sempre e quando estes não sejam feridos. A este
respeito, podemos citar o seguinte exemplo: a lei natural manda os pais criarem os
filhos, mas não que sejam os herdeiros - que depende do direito civil (Montesquieu,
1982: 311).
Do exposto, podemos concluir dizendo que Montesquieu preconiza uma evolução
gradual da sociedade, elogia o progresso econômico e social à condição de que sejam
respeitadas as tradições e costumes locais (Berlin, 1988: 200).
A postura interculturalista, “inaugurada” pelo filósofo francês, baliza, teoricamente, a
possibilidade de culturas diferentes, respeitosas de princípios universais, dialogarem
entre si. Contudo tal atitude implica em um “cenário de comunicação ou diálogo” no
qual a tolerância torne a diferença possível assim como a diferença à tolerância
necessária (voltaremos sobre este ponto).
Para avançar no modelo do universalismo concreto vale trazer também a contribuição
de autores mais recentes9, que questionam a ideia de uma moral ou justiça universal
9 Ou seja, os “autores comunitaristas”: Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel, Alasdair
MacIntyre, Will Kymlicka, cujo mérito é destacar a importância “das variações de valores em diferentes comunidades” (Sen, 2010: 12).
9
impermeável às culturas particulares. O problema deste tipo de justiça está dado pelo
fato de não levar em conta os valores comuns compartilhados de indivíduos ou grupos,
que dão significado a suas vidas.
Segundo autores comunitaristas: os padrões de justiça não podem ser dissociados das
tradições e formas de vida de cada sociedade, que variam de contexto para contexto.
Os juízos morais dependem da linguagem e estrutura interpretativa a partir da qual os
indivíduos observam o mundo, nenhum padrão de justiça é alheio das interpretações
que se dão em torno das crenças, práticas e instituições sociais. Para estes autores
(MacIntyre), a crítica social deve refletir sobre os hábitos e tradições da vivência de um
povo, em tempos e lugares específicos.
No intento de conciliar universalismo e particularismo, convém trazer a distinção do
autor comunitarista Michel Walzer: universalismo suspenso e repetitivo. Admite-se a
existência de leis racionais - universalismo suspenso -, mas paralelamente procura-se
indagar como tais leis se dão histórica e empiricamente - universalismo repetitivo -, ou
seja, como tais leis adquirem tonalidade própria, singular, única, conforme os distintos
contextos históricos.
O primeiro tipo de universalismo se assenta no monismo moral, visto que se relaciona
a valores oriundos de uma justiça universal. O segundo tipo de universalismo, pelo
contrário, assenta-se no pluralismo moral, em normas e valores oriundos do costume,
sentimentos, que se encontram ligados à ideia de pertença e autonomia:
A justiça parece ser, por natureza, universal (universalismo de surplomb) pela mesma razão que a autonomia e a pertença são repetitivas (universalismo réiteratif) - já que elas provêm do reconhecimento e do respeito por todos os seres humanos que criam o mundo moral e, pela virtude e criatividade, têm vidas e práticas próprias. Suas criações são diversas e sempre particulares, porém existe algo de singular e de universal na sua criatividade (Walzer, 1992:125).
A novidade do universalismo repetitivo está dada por uma certa concepção do que
significa uma história própria, pela maneira diferenciada com que indivíduos ou grupos
de indivíduos experimentam valores universais. Assim, tomando um exemplo do autor:
amar o próximo é uma lei universal (suspensa), um imperativo moral, racional, que,
contudo, não permite determinar a experiência já que cada relação de amor é única. O
mesmo acontece com o princípio de autodeterminação dos povos, que, por si mesmo,
não especifica sua aplicação concreta, que depende da característica de cada povo. Os
atos de autodeterminação por serem repetitivos, diz Walzer, produzem um mundo
diferenciado - marcado pelas diferenças.
A repetição permite compreender valores e virtudes que resultam da ideia de pertença
e autonomia. Em outros termos: a lei suspensa, racional, o ideal de justiça, ao passar
pela repetição criativa de valores e virtudes experimentados em contextos específicos,
faz com que não se torne um código universal igual para todos.
10
Cumpre destacar que as duas ideias-chaves, pertença e autonomia, remetem a Herder
e Rousseau. Do primeiro, no sentido de que a pertença a uma comunidade específica
supõe a internalização e autenticidade de valores ligados a ela. Do segundo, no sentido
de que os homens são capazes de elaborar normas a partir de valores vivenciados em
comum. O universalismo repetitivo de Walzer procura então destacar o aprendizado
de valores universais que, ao passarem par le biais da pertença e autonomia, adquirem
“cor” própria.
Walzer propõe uma reformulação do imperativo moral kantiano da dignidade humana,
condescendente com o universalismo repetitivo que defende, as pessoas devem ser
tratadas em função da ideia que elas se fazem de si mesmas. Tal enunciado faz com
que o imperativo inclua as fidelidades que formam nossa identidade moral, cultural.
Em outros termos: que o imperativo possa ser preenchido por valores que se originam
na ideia de pertença e autonomia.
A partir do universalismo repetitivo, a moral não é universal (Kant), mas local, singular,
visto que as percepções e códigos morais tiram sua fonte do sentimento de pertença à
comunidade. Além do mais, o universalismo repetitivo, ao entender que indivíduos ou
grupos são produtores de moral, capazes de elaborar normas com base em valores
comuns compartilhados, incorpora o respeito pelo outro.
Acompanhando ainda Walzer cabe trazer a distinção entre normas flexíveis (thin) e
densas (thick), com base no argumento de que o universalismo não é intrínseco à
moral, mas que a moral depende de códigos locais ou, como afirmam críticos: o
universalismo ralo (suspenso) é o creme que flutua sobre códigos locais, ele não é a
raiz de onde brotam nossas percepções morais (Rorty, 1996: 7). As normas flexíveis,
gerais, são facilmente aceitas diferentemente das normas densas, locais, de mais difícil
aceitação. Para ilustrar o primeiro tipo de normas, podemos citar a Declaração
universal de direitos humanos, que enuncia grandes princípios. Enquanto um exemplo
do segundo tipo seria o Pacto internacional dos direitos civis e políticos da ONU, que
estabelece direitos e deveres mais específicos para os estados10.
O comunitarista Charles Taylor, em Multiculturalismo e a política do reconhecimento,
defende teses semelhantes às de Walzer ao sustentar que a identidade se molda ou se
constrói pelo reconhecimento da diferença. Entende que o princípio do igual respeito
da pessoa (Kant) substituiu outro princípio, do Antigo Regime, calcado no respeito aos
privilégios, hierarquias ou distinções: a noção moderna de dignidade opõe-se a noção
de honra, usada num sentido universalista e igualitário que nos permite falar “da
dignidade [inerente] dos seres humanos” (Taylor, 2000: 242). Princípio este que estaria
na base dos direitos humanos que os cidadãos usufruem ou devem usufruir nas
democracias modernas.
10
Cabe lembrar que a elaboração dos dois Pactos internacionais de direitos humanos levou dezoito anos (1948-1966), mais dez anos para entrarem em vigor (1976) e, isso por serem documentos vinculantes, obrigatórios, do ponto de visa jurídico.
11
Contudo, tal princípio, e aqui reside a novidade, implica também uma igualdade de
status de todas as culturas, um igual reconhecimento pelas diferenças. Assim e com o
intuito de chegar a uma política do reconhecimento, Taylor pergunta: como é possível
a constituição da identidade na diferença? A autenticidade11, ou seja, a descoberta,
por parte do indivíduo ou grupo, de um sentido moral, de um sentimento de lealdade
acerca do que é bom ou mau. Tal política, importa destacar, encontra sua fonte na voz
silenciosa de Rousseau12 e no indivíduo histórico de Herder no sentido de cada um
(povo) traçar seu próprio modo de vida, sem imitações. Juntando ambos os autores:
ser fiel a meus sentimentos é ser fiel a minha própria originalidade. Nisto consiste o
ideal moderno de autenticidade (Taylor: 2000, 245).
No moderno princípio da dignidade, podemos distinguir, seguindo o mesmo autor, um
componente universalista, uma “política do universalismo” da qual é possível deduzir
um conjunto idêntico de direitos humanos para todos. Mas também uma “política da
diferença” da qual é possível reconhecer uma identidade singular, peculiar a cada um,
que nos faz diferente dos outros:
[...] a política da dignidade universal lutava por formas de não discriminação que eram totalmente cegas aos modos em que os cidadãos diferem. Pelo contrário, a política da diferença muitas vezes redefine a não discriminação exigindo que façamos dessas distinções as bases do tratamento diferencial (Taylor, 1993: 61).
A política da dignidade universal se funda numa concepção metafísica da pessoa, que,
como agente racional, é capaz de dirigir sua conduta em conformidade com princípios
morais, bem como determinar sua própria concepção do bem enquanto da política da
diferença, vale insistir, é possível definir a identidade individual e cultural.
Entretanto, ambas as políticas podem entrar em conflito: o princípio do igual respeito
exige que tratemos as pessoas de forma cega à diferença enquanto o princípio da
diferença exige que reconheçamos e fomentemos a particularidade. Para superar tal
impasse, Taylor apela ao “igualitarismo procedimental”, que permite o compromisso
moral dos homens agirem de forma equitativa, igualitária, sem adotar nenhuma ideia
substantiva dos fins últimos da vida. Assim, a partir deste compromisso, cada indivíduo
pode determinar sua própria ideia do bem - o que permite admitir a diferença.
No entanto, o comunitarismo do autor vai mais longe ao entender que o “liberalismo
das metas coletivas” é mais apropriado porque permite elaborar normas substantivas
que dizem respeito à sobrevivência das diferenças - sem por isso violar direitos
individuais. Uma sociedade, afirma Taylor, com poderosas metas coletivas pode ser
liberal sempre e quando respeitar a diversidade dos que não compartilham as metas
11 Para Taylor, a ética da autenticidade é filha do romantismo que é crítico do iluminismo racionalista: uma racionalidade não comprometida, atomista, que não reconhece os laços da comunidade. 12 A “voz silenciosa” de Rousseau corresponde à voz interior do homem, ainda não verbalizada, na forma de bom sentimento: amor de si, compaixão ou simpatia pelo outro, que leva a fazer a coisa certa. A este respeito, o autor comunitarista diz: a moralidade tem uma voz interior, estar em contato com os sentimentos permite agir de modo certo (Taylor, 2000: 243).
12
comuns e oferecer garantias para os direitos fundamentais. A este respeito, cabe
trazer o comentário de Walzer em relação ao liberalismo proposto por Taylor:
A primeira variante de liberalismo - “liberalismo 1”- se refere da maneira mais sólida possível aos direitos do indivíduo e, o que é quase um corolário, de um Estado rigorosamente neutro, ou seja, um Estado sem metas culturais nem religioso, ou seja, sem nenhuma espécie de objetivos coletivos além da liberdade individual e da segurança física, do bem-estar e da segurança de seus cidadãos. A segunda variante de liberalismo - “liberalismo 2” - se refere a um Estado comprometido com a sobrevivência e a prosperidade de uma nação, de uma cultura ou de uma religião particular [...] sempre e quando os direitos fundamentais dos cidadãos que têm outros fins (ou nenhum fim) sejam protegidos (grifo nosso) (Walzer, 1994: 131-132).
Taylor quer ir além do liberalismo procedimental para o qual o princípio de tratamento
igual implica somente que cada um seja respeitado na forma como estabelece e realiza
sua ideia do bem. Para o autor, o liberalismo de metas coletivas tem a vantagem que
do princípio do igual respeito é possível definir uma ideia de bem coletivo ligada à
cultura - sempre e quando não se violem direitos individuais.
Sobre ambos os tipos de liberalismo, podemos concluir dizendo que, do ponto de vista
do primeiro, a igualdade de direitos é tida como necessidade absoluta e, portanto, não
aceita o princípio da diferença. Enquanto do segundo, a igualdade é possível somente
em um contexto em que as diferenças culturais são respeitadas (Feres; Pogrebinshci,
2010: 123).
Finalmente, cumpre destacar sobre a ética da autenticidade de Taylor que ela aparece
na esfera pública, parafraseando o autor, numa comunidade de linguagem e discursos
e, isso porque é através da linguagem que é possível construir a identidade e entrar
em contato com outro. A formação da identidade implica relações dialógicas com os
demais (voltaremos sobre este ponto).
Autores comunitaristas como Michael Sandel, Liberalismo e os limites da justiça, e
Alasdair MacIntyre, Justiça de quem? Qual racionalidade?, que insistem na importância
da comunidade na definição dos valores morais13, criticam o pensamento e a sociedade
moderna pela dinâmica abstrata e homogeneizante que provocam ao desrespeitar as
tradições de cada cultura. Uma perda, acreditam, que só pode ser resgatada com o
retorno à ideia de comunidade responsável pelo substrato moral dos indivíduos.
Sandel critica a ordem liberal pela sua incapacidade de fornecer a seus membros um
sentimento de identidade satisfatório. O termo comunidade lhe permite criticar a
visão liberal da vida social, a Gesellschaft ou sociedade de indivíduos (Tönnies) que,
diferentemente da comunidade, se caracteriza pela desarticulação, despersonalização
13 Em relação ao termo comunidade importa trazer a opinião do antropólogo Ferdinand Tönnies segundo o qual a Gemeinschaft implica o predomínio da coletividade sobre o indivíduo. Ela se refere à relação que liga aqueles que se amam e se compreendem, vivem juntos e organizam suas vidas em comum construindo entre eles uma solidariedade natural e espontânea. Ela se apoia na concórdia que se manifesta na família, vizinhança, amizade ou em outros tipos de relações espontâneas. A comunidade abrange a língua, tradições, costumes, crenças e convivência doméstica. Ela tem como traço a posse e o gozo de bens comuns.
13
e atomização. Segundo o autor, os indivíduos na sociedade liberal padecem da falta de
sentido, de referências e projetos comuns para orientar suas vidas, bem como de laços
efetivos e de solidariedade, ou seja, carecem do sentido de pertença a uma identidade
homogênea.
O autor se opõe à ideia do eu descarnado que está na base do liberalismo dos direitos
individuais. A percepção da identidade está relacionada a um marco comunitário que
se desenvolve na medida em que os indivíduos participam dele. É através deste marco
que é possível definir ou perseguir o bem. Uma boa política depende do que se pode
conhecer e sentir em comum e, isso, vale reiterar, em contraste com o liberalismo dos
direitos individuais que é impermeável aos valores que se originam na comunidade.
Sandel critica a visão deontológica do liberalismo dos direitos individuais porque parte
de princípios de justiça neutros com base num sujeito que se sente obrigado a cumprir
seus deveres, antes de tudo, sem que saiba a concepção que tem de si mesmo. Para o
autor, contrariamente, a justiça não pode ser desenraizada da comunidade na qual se
origina:
A justiça não pode ser primária no sentido deontológico (noção de dever e retidão dos direitos), porque não podemos coerentemente nos olhar como o tipo de seres éticos deontológicos (...) que nos é exigido. Para atender ao sujeito deontológico (...) nos movemos além da deontologia para uma concepção da comunidade que marca os limites da justiça (Sandel, 1982:14).
MacIntyre também critica a visão deontológica do liberalismo dos direitos individuais,
nos seguintes termos:
[...] sua aparente neutralidade não é mais que uma aparência, enquanto sua concepção da racionalidade ideal consistindo em princípios aos quais um ser socialmente descarnado chegaria, ilegitimamente ignora o caráter inevitável e limitado dado pelo contexto histórico e social que qualquer conjunto substantivo de princípios de racionalidade, teórica ou prática,
necessariamente implica (MacIntyre, 1991:12).
Face ao liberalismo dos direitos individuais que concebe o sujeito descarnado, o autor
opõe o ego integrado, fruto de uma construção social determinada. Para MacIntyre,
todo indivíduo se define por uma pertença éticopolítica que o liga a outro e o constitui
individualmente. Enquanto os liberais concebem a sociedade composta de indivíduos
(Gesellschaft), perseguindo sua própria ideia do bem, o autor comunitarista concebe
os indivíduos inseridos num contexto social, histórico, específico, responsável pela
comunidade (Gemeinschaft) manter-se unida em torno de valores comuns14 e em que
a vida boa é definida em comum:
Os comunitaristas [...] concebem o bem comum como uma concepção do bem, dotada de um
conteúdo que define o “modo de vida” da comunidade. Este modo de vida constitui a base de
uma avaliação pública das concepções do bem, e a importância dada às preferências de um
indivíduo depende do grau ao qual se conforma ou com o qual contribui para esse bem
14
Vale lembrar que em outra obra: After virtue: a study in moral theory, MacIntyre propõe, contra o individualismo iluminista, uma concepção da justiça de inspiração aristotélica centrada nos ideais de solidariedade e de virtude da comunidade.
14
comum. Um Estado comunitarista [...] estimula os indivíduos a adotarem concepções do bem
que sejam conformes ao modo de vida da comunidade e desestimula as concepções do bem
que dele divergem (Kymlicka, 2003: 294).
Ao fundar os direitos humanos numa racionalidade prática, não solipsista que procura
chegar a verdades indiscutíveis, MacIntyre reafirma a importância dos sentimentos,
das paixões e dos desejos humanos que são incompatíveis com as exigências da razão.
Com base na assertiva humeana15, a razão é escrava das paixões, são os sentimentos,
experimentados pelos homens em comunidade, que permitem avaliar que direito é
mais conveniente. Assim, é improvável reconhecer algum direito humano verdadeiro,
visto que depende dos preconceitos, vivenciados em situações específicas, bem como
da possibilidade de satisfazer desejos.
particularismo crítico e a incomensurabilidade dos valores
Da perspectiva do particularismo crítico: ego e alter são distintos, sendo que a atitude
do alter é crítica - uma bandeira de luta em que procura afirmar sua diferença diante
do ego. O modelo é pluralista e relativista porque admite a coexistência de culturas e
valores em pé de igualdade. A vantagem deste modelo estaria dada também pelo fato
de evitar duas banalizações: a transculturalista, que defende a unidade em detrimento
do particular e, a uniculturalista, que defende o singular em sacrifício do universal. Por
fim, a partir desta posição, multiculturalista, é possível uma comunicação ou diálogo
entre países.
Para a análise do particularismo crítico, seria oportuno trazer a distinção entre cultura
e civilização. Este esclarecimento preliminar é relevante já que os autores que podem
ser incluídos neste modelo adotam uma linguagem culturalista, deixando em segundo
plano o termo civilização.
Como exemplo desse contraste, podemos rapidamente lembrar o debate ocorrido em
ocasião da redação do Artigo 1° da Declaração universal de diretos humanos da ONU,
em que o Reino Unido, seguido pelos EUA e França propuseram o seguinte texto: os
direitos humanos e as liberdades fundamentais se assentam sobre os princípios gerais
do direito reconhecidos pelas nações civilizadas, tal proposta era justificada pela
representante norteamericana, Eleanor Roosevelt, com base no argumento de que
não todos os países tinham atingido o mesmo nível de desenvolvimento material e
que, portanto, deviam esforçar-se para usufruírem, no futuro, das mesmas vantagens
das nações civilizadas que o teriam conseguido.
15 David Hume, do ponto de vista do conhecimento, é um relativista e, do ponto de vista ético adota uma postura cética, e pragmático-utilitarista. Assim, por exemplo, quando em relação “às regras da justiça” afirma que elas dependem do estado particular ou condição em que se encontram os homens, elas devem sua origem e existência à utilidade, etc..
15
Varias delegações levantaram-se contra esse argumento, alegando que era preciso
esquecer a distinção artificial países civilizados-não-civilizados e ter presente todas as
civilizações na sua diversidade.
Importa destacar, nas entrelinhas dos argumentos que preferiam o termo civilização,
um determinado tipo de racionalidade, a racionalidade técnica que, do ponto de vista
ético, apresenta-se como neutra: ajustar meios a fins com o intuito de tornar possível
o progresso material. No entanto, tal argumento escondia outro tipo de racionalidade,
não neutra, mas valorativa, que estabelece uma hierarquia. Em outras palavras: a
posse do conhecimento, da tecnologia necessária ao progresso material, faz que uma
civilização seja superior à outra - privada dos mesmos. Tratar-se-ia dos chamados
primos-brutos, segundo expressão de Richard Rorty.
Para Fernand Braudel, os termos civilização e cultura “nem sempre se trataram como
bons irmãos”. Isso pode ser apreciado na distinta acepção do termo civilização, que,
para alguns (Reino Unido, EUA), significa o progresso material de uma sociedade ou,
para outros (França), tout l’acquis humain, isto é, tanto os valores morais quanto
materiais de uma sociedade, daí a conotação positiva do termo civilisé ou poli
(instruído, culto, educado). Em ambos os casos, a palavra civilização aparece atrelada à
superioridade de alguns países:
[...] se examinamos o que realmente constitui a função geral do conceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito simples: este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais primitivas”. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo, e muito mais (Elías, 1994: I, 24).
De outro lado, o termo cultura, segundo Braudel, indica não a simples trivialidade do
material, mas os valores de uma coletividade, o “espírito do povo” (Volksgeist). Ele diz
respeito à autoconsciência de uma nação, à identidade particular dos grupos, etc, em
que a linguagem ou idioma, como veremos, cumpre um papel central.
Do uso do termo civilização surgem distinções para mostrar sua superioridade. Assim,
a tradição antropológica anglo-saxã fala de civilização moderna em oposição à cultura
primitiva, enquanto a tradição iluminista francesa usa a antinomia: civilisation-
barbarie. Dicotomia endossada por Montaigne, cada um considera bárbaro o que não
pertence a sua civilização ou, seguindo autores contemporâneos, Michel Foucault, não
existe civilização digna desse nome que não tenha repugnância à assimilação do
exterior, uma civilização se afirma na medida em que rejeita algo do exterior.
16
A tradição alemã permanece fiel à palavra cultura para assinalar de maneira neutra a
forma de vida de uma coletividade. No entanto, esta neutralidade é aparente pelo viés
pejorativo que adota diante do termo civilização:
Tudo o que é autêntico e que contribui para o enriquecimento intelectual e espiritual será considerado como vindo da cultura; ao contrário, o que é somente aparência brilhante, leviandade, refinamento superficial, pertence à civilização. A cultura se opõe então à civilização como a profundidade se opõe à superficialidade (Cuche, 1999: 25).
A partir do romantismo alemão, a cultura como única fonte de ordem e valor, etc., dá-
se uma critica da civilização moderna marcada pelo racionalismo, o desencantamento,
a quantificação e mecanização do mundo, o desenraizamento social e cultural, a
solidão dos indivíduos (Löwy; Sayre, 1995: 14).
Com base na assertiva destes autores, o romantismo alemão instalou-se na segunda
metade do século XVIII e ainda não desapareceu16, importa trazer a contribuição de
pensadores desta tradição - Johann Herder e Johann Hamann - com o intuito de
mostrar a importância da palavra cultura, o problema do conhecimento e a concepção
que eles têm da humanidade.
Conforme estudiosos, o “historismo ontológico” de Herder se interessa pela unicidade
do indivíduo histórico, pelo singular e inimitável das particularidades, pela pluralidade
das culturas, conferindo a elas um sentido expressivo e neutro (Merquior, 1990: 155).
O historismo herderiano se assenta em três premissas: o populismo, o expressionismo
e o pluralismo. O populismo, mais patriótico do que nacionalista, mais culturalista que
estatal, diz respeito ao sentimento de pertença à nação, como os indivíduos aderem
espontaneamente a instituições duradouras que compõem a nacionalidade (família,
idioma, etc.), no dizer de comunitaristas, trata-se do “patriotismo” no sentido de uma
identificação com uma comunidade histórica fundada em certos valores (Taylor, 2000:
216).
O expressionismo diz respeito à arte, no sentido de imagens, gestos, palavra escrita e
falada, que expressa a personalidade de cada coletividade histórica, a alma da nação,
que torna possível a comunicação e solidariedade de seus membros. Por fim, o
pluralismo que implica não só a existência de várias culturas em pé de igualdade, mas
também à incomensurabilidade dos valores nelas arraigados - o que leva a rejeitar um
padrão ou medida a partir da qual uma coletividade seja tida como ideal. Para Herder,
as culturas, no máximo, podem ser comparadas, mas não valorativamente (Berlin,
1982: 139-140). Ou, segundo outros autores:
A cultura só existe através das culturas, não há sociedade humana, arcaica ou moderna, sem cultura, mas cada cultura é singular, a cultura constitui a herança social do ser humano, as culturas alimentam as identidades individuais e sociais no que elas têm de mais específico (Morin, 2005: 64).
16 Ver supra autores comunitaristas.
17
Partidários do romantismo alemão acreditam que seu mérito é ter colocado em xeque
a influência do iluminismo (Aufklärung) - que raciocina de maneira abstrata, baseado
na crença da imutabilidade de valores supremos. Esta crítica pode ser observada na
importância que dá Herder ao caráter irracional das instituições de cada país, assim
como às tradições e preconceitos, que mostram a vitalidade de cada povo, sem
desconsiderar o papel da religião diante das “luzes da razão”.
O “indivíduo histórico”, inefável e inextinguível, aparece como entidade espiritual e
coletiva no espírito do povo, que significa: o genético, o característico e irreprodutível
do desenvolvimento histórico, a causa criadora da qual emana toda a vida e define a
essência de uma nacionalidade. Trata-se do vivo devir, do crescimento natural que
está na origem dos agrupamentos humanos (clima, geografia, fronteira) e, também, da
alma de cada povo (o “coração” de Goethe)17, isto é, as manifestações espontâneas da
linguagem no sentido amplo do termo (supra). Sob tal perspectiva, a nacionalidade é
entendida como resultado do natural e do humano irracional (Meinecke, 1943: 353).
A partir do “indivíduo histórico” herderiano, a ideia de humanidade é alterada:
Os clássicos franceses do século XVIII chegavam ao homem por subtração, suprimindo toda cor local ou histórica, e sua noção de homem, na medida em que era de todos os tempos e de todos os países, terminava sendo de nenhum tempo e de nenhum país, senão talvez do seu. Herder, pelo contrário (...) defende a humanidade por adição de todas as épocas e de todas as culturas nacionais consideradas no que cada uma possui de único (Rouché, 1962: 31-32).
Esta concepção, culturalista, da humanidade implica reconhecer a paridade de todos
os povos e rejeitar todo favoritismo, etnocentrismo (que se traduz em nacionalismo
extremado): gabar-se de pertencer a um país é a forma mais estúpida das jactâncias -
diz Herder. O humanismo cosmopolita do autor, voltado ao estudo do gênero humano
na sua múltipla variedade, valoriza o inimitável de cada indivíduo histórico: para que
converter-nos em copistas, quando podemos ser originais? Assim, a autarquia cultural,
as manifestações linguísticas, artísticas, literárias, religiosas de cada povo gozam de
igual empatia e, por isso, os valores de cada cultura são incomensuráveis.
A sensibilidade herderiana pela incomparável singularidade dos povos se manifesta
claramente no elogio que faz às forças irracionais da alma coletiva. Isto fica claro
quando, na sua doutrina da linguagem, questiona: existe algo de mais sagrado para
uma nação que sua língua? Nela reside a totalidade do mundo constituído pela
tradição, pela história. Nela reside toda a alma e coração de um povo.
O expressionismo herderiano vê o idioma como produção instintiva, inconsciente, que
se desenvolve espontaneamente sem necessidade dos gramáticos. Na qualidade de
símbolo público, ele se manifesta em diversos tipos da atividade humana, permitindo a
manutenção da memória e costumes de cada coletividade.
17
Goethe apreende de Herder que o “homem não é de todos os tempos nem de todos os lugares”; que não se pode renunciar por decreto à particularidade em que se nasce (Finkielkraut, 1987: 57-58).
18
A abordagem - romântica - da linguagem acarreta a rejeição de distinções tão caras à
tradição iluminista: mente-corpo, espírito-matéria. Em contraste com estas oposições
binárias, metafísicas, a linguagem, pelo contrário, é vista como uma fusão do sentir,
querer e conhecer - que são uma única e mesma coisa. Esta identificação, inaugurada
por Hamann, procura restituir, diante da pura razão, o peso das emoções que, ao
serem vistas pelo prisma do povo, faz que se identifique consigo mesmo, se sinta
diferente.
A valorização dos sentimentos leva Herder a ver a religião como autêntica expressão
do “sentimento popular”. Pode-se apreciar a diferença que tal compreensão da
religião guarda com o iluminismo que a reduz a um direito individual, de origem
racional. Assim, do ponto de vista do romantismo, a religião em vez de um direito
individual a ser exercido na sociedade é, sobretudo, um sentimento que modela a vida
do sujeito na sua integralidade.
Vale lembrar que esta visão da religião como manifestação de um sentimento coletivo,
presente nas diferentes esferas da vida, se aproxima da ideia defendida por países
islâmicos. Basta lembrar, em nível normativo, a posição defendida pelo delegado do
Egito em ocasião da redação do Artigo 18 da Declaração Universal, a igualdade dos
esposos no matrimônio. No Egito, dizia, como em quase todos os países muçulmanos,
certas restrições existem ao casamento. Essas limitações são de natureza religiosa e,
pelo fato de estarem inspiradas no - sentimento - da religião, não podem ser
ignoradas.
Longe do conúbio Estado e religião (como acontece em países islamitas-teocráticos),
tal entendimento mostra o peso da religião, vivida acima de tudo como um sentimento
coletivo que permeia o comportamento dos indivíduos. Neste sentido, bem diferente
da “laicidade democrática” ocidental, que, com a separação Igreja-Estado, defende a
total independência de cada cidadão cultivar para si a ideia que deseja na sua relação
com o céu (Gauchet, 1998: 83).
O importante legado do romantismo alemão reside na igual empatia que guarda pela
diversidade das formações históricas que faz, segundo expressão de Finkielkraut, que a
“humanidade se declina no plural”:
(as culturas) são desenvolvimentos diferentes, objetivam finalidades distintas, incorporam formas de vida dissimiles e são dominadas por atitudes diferentes ante a vida, de maneira que, para compreendê-las, devemos realizar um ato imaginativo de ‘empatia’ na sua essência,
compreendê-las ‘de dentro’ tanto quanto possível, e ver o mundo através de seus olhos (Berlin, 1982:184).
O relativismo herderiano se opõe à emigração e imitação das culturas e, na medida em
que se interessa pelo avanço interno de cada povo ou nação, rejeita a possibilidade da
comensurabilidade de valores a partir de algum padrão abstrato-racional. Assim, o
pluralismo cultural, defendido pelo autor, se estende aos valores morais: a celebração
da unicidade do histórico e o tema axiológico, apontam estudiosos, são as referências
19
do historismo alemão. A mística decorrente de uma unicidade sobrecarregada de
valores converteu o historismo em culturalismo (Merquior, 1990: 160).
O relativismo de Herder, ao equiparar de maneira neutra os significados expressivos
das distintas culturas, retira todo juízo de valor sobre os conteúdos conferindo, assim,
igual validade aos valores de cada formação histórica. Tal situação faz com que seja
impossível aplicar ideais universais ao gênero humano na sua totalidade, uma vez que
o espaço nacional-cultural constitui um baluarte capaz de resistir ao pensamento único
ou nivelador.
O romantismo alemão, em contraste com o iluminismo, centra sua crítica em duas
frentes: o conhecimento e a linguagem. Tal reação, atribuída por Berlin à “revolução
de Hamann”18, questiona a forte convicção de que a natureza inanimada, assim como
os fins ou valores humanos, possam ser explicados racionalmente.
Para Hamann, o conhecimento é mistura de impressionismo e doutrinamento
bíblico19. Do primeiro, na medida em que o conhecimento não é produto de uma
racionalidade a priori (Descartes/Kant, etc), mas da crença. Tal como David Hume,
entende que o processo do conhecimento se origina nas impressões imediatas dadas
pelos sentidos. Como diz o filósofo escocês: nada está no intelecto que não provenha
dos sentidos, é a partir deles que se produzem as ideias as quais não são outra coisa
que imagens repetidas, cuja percepção sensorial deixa em nós. E, arremata: os homens
são levados, de forma evidente/evidentemente, por um instinto natural a dar crença a
seus sentidos20.
No entanto, o pensador alemão entende que o conhecimento resulta também do
sentimento religioso. A este respeito Berlin esclarece que, para Hamann, quando Deus
fala aos homens através da Bíblia, se dirigi, sobretudo, a seus sentidos, e, a partir disto,
o homem pode conhecer seus semelhantes e o mundo exterior.
Assim, é na interseção da crença nas impressões sensoriais e no sentimento religioso
(não controlado pela razão) que reside a base do conhecimento. Desta maneira, contra
o racionalismo iluminista, nenhuma proposição geral pode dar conta da variedade da
vida, já que existem apenas proposições empíricas, verdades relativas; e, no relativo ao
sentimento religioso, vale insistir que Hamann exclui a dicotomia razão-sentimento
pelo fato do homem ser um só, sendo que a religião permeia todos os aspectos da vida
e torna possível a experiência.
18
“Sem a revolução de Hamann não teria chegado a existir o mundo de Herder” - diz Berlin. 19 Hamann era cristão-pietista e, portanto, hostil a todo dogma e instituição eclesiástica. Isso não o exime de ser um fervoroso defensor do sentimento religioso que se manifesta na totalidade da vida cotidiana. 20 David Hume, do ponto de vista do conhecimento, é um relativista e, do ponto de vista ético: cético e pragmático-utilitarista, assim, por exemplo, em relação às regras da justiça, afirma o filósofo inglês, elas dependem por completo do estado particular ou condição em que se encontram os homens, elas devem sua origem e existência à utilidade.
20
Hamann recusa a ideia de que o comportamento humano pode ser determinado por
juízos logicamente deduzidos da razão. Para ele, o agir resulta da compreensão da
relação que temos com Deus: a fé, afirma, é o único elemento que intervém para
apontar a direção há de ser seguida. Contudo, isso não significa que grupos humanos
não persigam fins diferentes, pautados por concepções de mundo distintas, na medida
em que Deus não é um matemático que fala ao intelecto através de leis lógicas,
imutáveis e verdadeiras, sobre o que se deve fazer, mas como um artista ou poeta que
fala ao sentimento humano, para os homens alcançarem diversos objetivos. Para o
filósofo alemão, a palavra de Deus (a fé) fala em diversas formas, aos distintos homens
e em diferentes circunstâncias (Berlin, 1997:117).
A segunda frente de ataque de Hamann ao iluminismo é a linguagem. De fato, contra
os philosophes metafísicos, entende que a linguagem não é produto do pensamento,
mas que pensamento e linguagem são uma só e mesma coisa, que se desenvolvem
espontânea e naturalmente pela graça divina. A linguagem, afirma o autor, é aquilo
com que pensamos. As imagens, através de símbolos, vêm antes das palavras, elas se
originam nas paixões, nos sentimentos. Nossas imagens, acrescenta, e depois nossas
palavras (que não são senão imagens usadas de maneira repetida) se transformam
continuamente ao contato com a experiência sensível, visto que os sentidos e as
palavras são também uma só e mesma coisa.
O erro do Iluminismo consiste em ter confundido palavras com conceitos, fazendo das
primeiras uma pura entia rationis que serve para dar conta, de forma objetiva, da
realidade e, no campo do comportamento humano, determinar como os homens
devem proceder para chegar a determinados fins. Pelo contrário, para Hamann, as
palavras não são entidades uniformes e atemporais: elas mudam com a experiência
individual, social e histórica. Sua teoria da linguagem pode ser resumida da seguinte
maneira: cada linguagem é um modo de vida, e um modo de vida se baseia numa
pauta de experiência que não pode em si mesma estar submetida à crítica, já que não
se pode encontrar um ponto arquimediano fora dele, a partir do qual possa se fazer tal
exame crítico.
A linguagem, forma expressiva da vida, faz possível a comunicação e a compreensão
imediata, o “sentir com”, sendo assim, a comunicação entre culturas distintas não
precisa de uma linguagem universal, uniforme, mas, parafraseando Herder, de um ato
de penetração empática: abrir-se sem preconceitos aos diversos simbolismos de cada
indivíduo histórico.
Da teoria do conhecimento e linguagem de Hamann, pode extrair-se a importância
conferida aos sentidos, aos sentimentos, à intuição, à espiritualidade, componentes
irracionais próprios do romantismo alemão. Importa ainda destacar que a recusa aos
princípios da universalidade e objetividade - do iluminismo - representa uma volta aos
valores ou ideais do passado. Isso porque os elementos irracionais que tornam o
conhecimento e a linguagem possíveis têm o peso do tempo. Um tempo, digamos, pré-
21
moderno (anterior ao iluminismo) que se origina na própria experiência humana, que
nasce na infância ou, como diz Edmund Burke, que se origina no “pequeno pelotão” (a
família, etc).
A partir do empirismo e autoexpressão religiosa, Hamann desmistifica os philosophes
que reduzem a complexidade da natureza humana a leis racionais a priori, esquecendo
o homem real. A este respeito, cabe trazer o seguinte comentário:
Ideais tais como razão, progresso, liberdade ou igualdade, construções vastas e vazias de mentes privadas de realismo - todas, tomadas em conjunto, são de menor valor que o contato com um fato concreto, um ser humano real, uma hora de verdadeira - isto é, íntima - experiência de uma alma e de um corpo humanos, tal como estes são realmente, com todas suas penosas imperfeições (Berlin, 1997:222).
Voltando à tipologia de Rouanet, podemos dizer que o romantismo alemão, sobretudo
na versão historista-culturalista de Herder, inscreve-se no particularismo crítico, visto
que adota uma postura multiculturalista a partir da qual é possível a coexistência de
diversas culturas e a irredutibilidade de valores nelas arraigados. Sendo assim, não
concordamos com o filósofo paulista que da tradição do pensamento alemão não é
possível uma aproximação de diferentes culturas (volks). E isso, porque a linguagem,
no sentido amplo de palavra escrita e falada, arte gesto, etc, são modos de expressão,
que implicam intercâmbios com outros:
As pessoas (povos) não adquirem as linguagens de que precisam para se autoterminarem por si mesmas. Em vez disso, somos apresentados a essas linguagens por meio da interação com outras pessoas (povos) que tem importância para nós (que tem outros significativos) (...) Definimos nossa identidade sempre em diálogo com as coisas que nossos outros significativos desejam ver em nos (...) Minha própria identidade depende crucialmente de minhas relações dialógicas com os outros (Taylor, 2000: 246; 248).
Para Rouanet, se adotamos a matriz herderiana não vamos além do multiculturalismo,
que, apesar de reconhecer a importância das diversas culturas, tem o inconveniente
de enquadrar o homem em totalidades impenetráveis, tornando a comunicação difícil.
Tal postura leva à impossibilidade do que chama uma “cultura da interculturalidade”:
reconhecer valores de distintas culturas a partir de princípios que transcendem os
particularismos locais. Tal posição sendo seguida por outros autores, no sentido de se
evitar o isolamento no interior da identidade:
(...) a retórica da diferença, sob pretexto de fazer o elogio da pluralidade, é apenas uma camuflagem oportunista para uma aspiração à identidade (...) Sob pretexto de uma luta pela diferença e pela pluralidade, aspiramos à constituição de grupos mais homogêneos (...) A diferença não é valor absoluto, mas aprender a viver com outros é na verdade preferível ao isolamento covarde no interior da identidade. Ser obrigado a falar com seres diferentes leva cada um a não se tomar muito como o centro do universo, injeta certa dose de tolerância, enriquecendo seu espírito. A diferença é boa no sentido de que nos abre para a universalidade (Todorov, 1999:234).
Ou, ainda, o relativismo enfatiza tanto as diferenças que se esquece de nossa condição
humana comum, ele torna impossível qualquer tipo de universalidade (Eberhard,
2004: 165). O problema do relativismo é que dilui a razão na história, o devoir être no
22
être, ele rejeita a possibilidade de qualquer valor que não seja aquele que provêm dos
fatos históricos (Volksgeist).
Tais críticas, contudo, não desmerecem o romantismo alemão, sobretudo, no tocante
à igual empatia que guarda pelas diversas culturas (Herder) e ao papel que cumprem
os sentimentos, tanto no plano do conhecimento quanto no dos valores (Hamann),
bem como a linguagem que, como vimos, permite afirmar a identidade no diálogo com
outros.
universalismo-particularismo: marco teórico para uma solução prática
Em relação ao desafio do próximo milênio, justiça universal e lealdades particulares -
Rorty - acreditamos que sua resolução dá-se no ponto de interseção dos dois modelos:
universalismo concreto e particularismo crítico (interculturalismo e multiculturalismo).
O ponto em comum entre ambos os modelos radica no fato de não aceitar princípios
universais sem levar em conta a ideia de pertença ou lealdade particular. No primeiro
caso, o diálogo entre países diferentes é viável porque se acredita numa racionalidade
ou moralidade que reconhece a diferença21. No segundo caso, a comunicação é
factível devido à igual empatia existente pelos valores originados em cada país.
A vantagem desses modelos é que evitam o “exclusivismo”, que acredita existir uma
única verdade, não podendo haver outros pontos de vista. Sendo o risco mais evidente
desta atitude o de uma falta de tolerância com relação a outros - que pode levar a
tentativas violentas de impor a própria visão.
Além do mais, o universalismo concreto e particularismo crítico favorecem tanto o
“inclusivismo” quanto o “paralelismo”. Do primeiro porque interpreta as coisas de
forma a torná-las palatáveis, assimiláveis. Ao enfrentar uma contradição clara faz as
distinções necessárias entre as diferentes dimensões de modo a superá-la, sendo que
para isso apela a um universalismo de natureza formal, a linguagem, que permite a
comunicação. Do segundo porque nenhuma visão de mundo ou cultura é perfeita e,
portanto, ninguém deve tentar converter o interlocutor em outros, mas apenas tentar
aprofundar o entendimento da própria cultura - que pode ajudar a pontos de contato
(Panikkar apud Eberhard, 2004: 172-173).
Entretanto, para que o diálogo ou comunicação entre diferentes culturas aconteça,
torna-se necessário redefinir o termo tolerância. Em primeiro lugar, há que se liberar o
termo do uso retórico a partir do qual tudo se justifica, bem como do uso maniqueísta,
segundo o qual a tolerância faz sentido porque o mal ou erro existem: tolerar o bem
21 Desde esse modelo, o universalismo concreto, o universal pode ser visto como o horizonte do entendimento entre particulares: postular o universal para tornar inteligíveis os particulares existentes. Ele acredita, em relação à unidade e à pluralidade, o um e o múltiplo - das culturas -, que devemos conceber uma unidade que garanta e favoreça a diversidade, uma diversidade inscrita na unidade.
23
ou a verdade é uma tautologia. Ademais, a palavra deve ser questionada no uso
ideológico (encobrimento da realidade) em que os mais fortes sobre a aparência
hipócrita da tolerância encobrem relações de tutela e dominação. Deve ser também
depurada da apropriação feita pela tradição do pensamento moderno (jusnaturalista)
e liberal que não conseguem ver a tolerância além de um valor individual. Tratar-se-ia,
portanto, de adaptar a tolerância a contextos linguísticos e institucionais diferentes
daqueles em que surgiu - como sugere Michael Walzer em Da tolerância.
Assim, seguindo o mesmo autor, no marco da deliberação sobre direitos humanos,
podemos falar da tolerância como atitude pessoal: a tolerance. Tal acepção da palavra
implica aceitar como válido ou significativo qualquer enunciado de valores que se
origina em registros identitários racionais ou irracionais. Contudo, como aponta
Walzer, com a condição de que cada um dos que participantes determine previamente
o modo como vai usar as palavras, que sentido ou intenção dá a elas22.
Tratando-se, no caso, de países com culturas diferentes que deliberam sobre direitos
humanos, tal determinação deve compreender algum significado mínimo para todos
os interlocutores. Como sustentam estudiosos: para que exista acordo, primeiro deve
haver um acordo na linguagem usada.
Tomemos o exemplo do direito de liberdade religiosa, proposto pelo Reino Unido, que
diz: Todo indivíduo é livre de ter qualquer crença religiosa ditada por sua consciência,
como também, de trocar de religião23. O delegado de Arábia Saudita, seguido de vários
países islâmicos, se opôs a tal redação, alegando que a religião é a manifestação de um
sentimento popular e, que aceitar o direito de trocar de religião é atacar os povos em
suas emoções religiosas, enquanto o delegado do Egito dizia:
O islamismo implica toda uma forma de existência e estabelece regras, não só no que diz
respeito à vida pessoal dos indivíduos, mas também à organização social. Em certos países, o
Alcorão está na origem da Constituição [...]. Não se trata, então, de reconhecer ao indivíduo o
direito de conservar ou de trocar de religião24
.
Com base neste exemplo, a palavra religião (latim religare: ligar) pode ser entendida
como sentimento de pertença coletivo25. Por sua vez, o termo sentir - a religião - pode
ser relacionado à palavra sensação, isto é, àquilo que se origina nos sentidos e que,
portanto, existe ou não existe (Hume), mas também sentir - a religião - pode ser 22
Como dizia Lévi-Strauss: as palavras são instrumentos que cada um de nós é livre de aplicar segundo o uso que deseja, com a condição de que ele se explique sobre suas intenções. 23
DOC. N.U. E/CN.4/AC.1/11 p.18. Cumpre lembrar que a inclusão do direito de trocar livremente de religião (Artigo 18) foi o motivo que levou Arábia Saudita a abster-se de votar a Declaração Universal de Diretos Humanos. 24 DOC.N.U. Troisième commission. Comptes rendus des séances 21 setembro-16 dezembro, Lake Success, Nova Iorque, 1960, p. 48. À diferença do Artigo 18 da DUDH, o Artigo 18 do PIDCP não inclui o direito de mudar de religião, o que pode ser interpretado como uma concessão dos países ocidentais diante da forte reação dos países muçulmanos de se fazer uso dessa expressão. 25
E isso, em contraste por exemplo com uma visão gnóstica da religião (Locke) em que a razão rasionalisée (a reta ou pura razão) é capaz de chegar a um conhecimento verdadeiro da divinidade (deísmo).
24
relacionado à palavra sentimento, isto é, àquilo que nos toca. A atitude tolerante
implica, então, uma abertura da parte dos interlocutores aos diversos significados das
palavras. Ou, como salienta Peter Burke: no encontro entre culturas distintas, as
palavras requerem tradução não só linguística mas também cultural. Esta observação é
pertinente se levamos em conta o seguinte comentário:
(...) a diferença entre as civilizações é também um fato linguístico. Se explorarmos as bases semânticas e sintáticas de cada cultura, não será difícil perceber as raízes de suas distintas ´concepções de mundo´, ou visões da vida (...) Os universos linguísticos constituem por si mesmos, pela força da sua inércia semântica, orientações de modo de pensar de um povo e de uma cultura (...) as matrizes linguísticas implicam diferentes lógicas, modulações mentais distintas, modos próprios de interpretar os mesmos acontecimentos e de reagir a eles (Sartori, 1981:27).
Além do mais, os enunciados emitidos pelos participantes devem ser de tal sorte que
as partes aceitem - tolerem - os comportamentos que deles resultam. Como diz John
Austin, em relação aos enunciados “performativos” (quando dizer uma coisa é fazê-la),
é preciso daqueles que emitem palavras que assumam comportamentos condizentes
com elas26. A previsibilidade, como os interlocutores se comportaram em função do
que dizem, é fundamental para a tolerância funcionar. Em outras palavras: não se
pode ser tolerante com aquele que não sabe como vai agir. No conceito de tolerância
já está implícita a previsibilidade, do contrário carece de sentido.
Para estudiosos, o novo fundamento dos direitos humanos está dado pelo acordo a
que chegou a comunidade internacional com a Declaração universal de direitos
humanos. Contudo, tal fundamento, baseado no consensus omnium gentium27, não
pode ser reduzido apenas a um fato, sendo necessário conhecer também como tal
acordo foi possível - o que exige uma indagação sobre o tipo de racionalidade que nele
subjaz.
Seguindo Habermas, cabe trazer o conceito de “racionalidade comunicativa” que, em
contraste com a razão monológica ou solipsista, o alcance universal de uma proposição
é construído no marco de um diálogo interpartes. Sobre tal perspectiva, os direitos
humanos fazem parte da ordem prática da linguagem que se dá no processo
comunicativo, os direitos humanos não são uma questão objetiva mas interpretativa,
resultado de um diálogo que se realiza na partilha da linguagem.
Para Habermas a racionalidade monológica, centrada no sujeito, está orientada para
obtenção de um objetivo, um estado de coisas ou fatos, baseada em enunciados
constatativos verdadeiros ou falsos (como diria Austin). Enquanto que a racionalidade
comunicativa procura chegar a um entendimento sobre algo no mundo, os direitos
humanos, através de atos de fala performativo em que “dizer é fazer” (Austin). Neste
26 Importa esclarecer que para Austin os enunciados performativos não são verdadeiros ou falsos, mas visam fazer algo. 27
Segundo Norberto Bobbio, A era dos direitos, a nova justificação dos direitos humanos está dada pela comprovação histórica da Declaração universal. Só depois da declaração, diz, é que podemos ter certeza de que a humanidade comparte alguns valores comuns.
25
sentido, os atos de fala, em que discursos e atos estão ligados, implicam uma relação e
respeito intersubjetivo.
Contrariamente à racionalidade monológica, em que a pretensão é colocada de forma
unilateral e objetiva, do ponto de vista de um sujeito isolado e de um ouvinte neutro,
na racionalidade comunicativa a pretensão é aceita ou não de forma dialógica, a partir
de sujeitos cooperativos que intervêm na comunicação. Esta racionalidade, discursiva,
preocupada em interpretar e chegar a um acordo sobre algo no mundo (e não em criar
o mundo) se serve de um medium fundamental: a linguagem, que, no marco dos
processos de comunicação, de intercompreensão da validade de pretensões que se
relacionam com o mundo, não tem o monopólio da interpretação. A validade das
pretensões podendo ser contestadas pelas partes intervenientes (Habermas, 1987:
115-116).
Por fim, contrariamente à racionalidade monológica, a racionalidade comunicativa não
se dá no mundo sub specie aeternitatis, mas sublunar, isto é, parafraseando mais uma
vez Habermas, no horizonte do mundo da vida (Lebensgemeinschaft), isto é, de um
saber pré-teórico que incorpora os sentimentos, a história e cultura da comunidade de
cada participante do diálogo.
Delineada em grandes traços a racionalidade comunicativa, podemos vislumbrar a
existência de um auditório universal, uma esfera ou foro público (Öffentlichkeit), a
Assembleia geral da ONU, em que diversos países com seus respectivos mundos da
vida e orientados por comportamentos e atitudes que provêm de normas e valores aos
quais pertencem, acedem a ele para deliberar sobre direitos humanos, servindo-se
para isso, de enunciados performativos.
A tolerância, tal como a entende Walzer, é relevante não só como atitude pessoal, ao
momento da deliberação de normas sobre direitos humanos, mas também quando a
comunidade internacional se depara com a difícil tarefa de fiscalizar a situação dos
direitos humanos e condenar estados que violam sistematicamente esses direitos.
Em tal contexto, o termo deve ser entendido também como toleration, que, à
diferença da atitude tolerante (tolerance), indica uma prática institucional concreta,
isto é, os “arranjos ou regimes de tolerância”, dentre os quais o sistema internacional
(WALZER, 1999: 7).
Neste sentido, vale referir-nos à nova composição do Conselho de direitos humanos da
ONU, que, depois da reforma da Comissão de direitos humanos (2006)28, é composta
por 47 países, distribuídos equitativamente por regiões, escolhidos em votação secreta
pela maioria dos integrantes na Assembleia geral. Cada membro da Organização pode
28
Os membros da Comissão de direitos humanos eram escolhidos pelo Conselho Econômico e Social da ONU, por blocos geográficos.
26
ser avaliado e qualquer país, acusado de graves violações de direitos humanos, pode
ser suspenso por uma votação com maioria de dois terços.
Contudo, outras mudanças, em nível institucional da ONU, são necessárias se levarmos
em conta as opiniões, cada vez mais favoráveis, à “intervenção humanitária” num país
que viola sistematicamente os direitos humanos. Ou, ainda, quando a comunidade
internacional enfrenta questões relacionadas à manutenção da paz que podem ser
seguidas de medidas para evitar essas violações. Tais objetivos colocando o direito de
ingerência em outro estado no centro do debate:
Creio que, exatamente devido à recente fusão entre as políticas interna e externa, a ingerência nos assuntos internos de um país deve seguir regras e critérios claramente definidos. É preciso que haja um debate sobre esse tema: quais são as novas regras do sistema internacional de potências? Precisamos retornar a uma situação na qual nenhuma ação militar possa ser levada adiante sem que exista um consenso amplo e sem que esteja baseada em justificativas fundamentadas. O mundo não será viável se uma nação pode dizer simplesmente: ‘Sou poderosa o suficiente para fazer o que quiser, e por isso farei o que bem entender’ (Hobsbawm, 2000: 30).
Com base nesta observação, torna-se urgente que a ONU conte com instituições mais
representativas, notadamente, o Conselho de segurança, encarregado de determinar a
intervenção humanitária no pós-Guerra Fria (Nogueira, 2000: 51). A reestruturação
deste órgão, no relativo à composição e processo decisório29, é fundamental para a
comunidade internacional não continuar sub representada no “pentágono imperial”.
29 O Conselho de segurança está composto de quinze membros, dentre os quais cinco permanentes com direito de veto (China, Rússia, França, Reino Unido e EUA) e, dez membros não permanentes escolhidos pela Assembleia geral por um período rotativo de dois anos, sendo que suas decisões devem contar com o voto favorável de nove membros incluso os votos afirmativos de todos os membros permanentes.
27
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