ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Configurações Estéticas– Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 1
COCO QUE GIRA O CORPO: UM ESTUDO SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES DO CORPO E A EXPERIÊNCIA DA DANÇA NAS GIRAS DA
JUREMA SAGRADA
Uana Mahin Passos Braga (UFPE)
Uana Mahin Braga, graduanda do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aluna-pesquisadora do projeto de pesquisa O Corpo em Festa – mapeamento de fontes e referências acerca do corpo em movimento nas culturas populares e tradicionais, coordenado pela Profa. Maria Acselrad, vinculado ao grupo de pesquisa Arte, Educação e Diversidade Cultural, do Depto. Teoria da Arte e Expressão Artística, da UFPE. Atualmente trabalha como pesquisadora no Acervo RecorDança. E-mail: [email protected]
Resumo A presente pesquisa busca compreender as transformações do corpo a partir da experiência da dança do Coco de Gira nas sessões da Jurema Sagrada. Baseada numa abordagem da antropologia do corpo e da dança, a pesquisa se propõe a pensar a dança dentro das configurações estéticas das giras, considerando o discurso e a experiência dos próprios praticantes da Jurema Sagrada. De caráter teórico-prática, compreendendo leitura e discussão de textos, trabalho de campo com observação participante, registro e aprendizagem de aspectos da dança e música, a pesquisa também desenvolve laboratórios de criação, como forma de acessar a compreensão acerca dos fenômenos investigados. Palavras-chave: Cultura Popular, Transe, Corpo, Religião.
COCO QUE GIRA O CORPO: A STUDY ON BODY CHANGES AND THE EXPERIENCE OF DANCE IN THE SESSIONS OF THE JUREMA
Abstract This research seeks to understand the body changes from the experience of the dance Coco de Gira at sessions of Jurema Sagrada. Aproach based on the anthropology of dance, this research think dancing in aesthetic settings of "giras", considering the discourse and experience of practitioners of Jurema Sagrada.Theorethical and pratical, this research includes reading and discussing texts, fieldwork with participant observation, registration and learning aspects of dance and music, creative labs, as a means of understanding access about the phenomena investigated. Keywords: Popular Culture, Trance, Body, Religion.
Introdução
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Configurações Estéticas– Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 2
Sob a ótica da antropologia do corpo e da dança, esta pesquisa busca
compreender as transformações do corpo, a partir da experiência do Coco de Gira,
dançado nas sessões da Jurema Sagrada. "A Jurema Sagrada é um dos vários cultos
com fortes marcas indígenas que se mesclaram com traços do catolicismo popular e
das religiões negras do Brasil" (AYALA, 2000, p.117), é uma religião de encantados –
como acreditam seus adeptos – o que significa que as entidades ali cultuadas viveram
um dia e por suas ações em vida se encantaram ao morrer, voltando à terra para
realizar trabalhos diversos, afim de ajudar seus fiéis.
O presente trabalho tem como objetivo pensar as diferentes concepções de
corpo, por meio da relação corpo/cultura, que compõe os processos de preparação,
transformação e transmissão de saberes acerca do corpo, ligados à produção estética
no contexto das culturas populares e tradicionais. As transformações no corpo aqui
investigadas são aquelas propiciadas pelo transe, definido por Lewis (1971, p.41) como
"um estado de dissociação, caracterizado pela falta de movimento voluntário e,
frequentemente, por automatismo de ato e pensamento". Busca-se compreender,
portanto, de que forma o Coco de Gira possibilita as transformações no corpo,
compreendendo a construção deste corpo extracotidiano, segundo a perspectiva dos
"rodantes", categoria nativa que se refere aos adeptos responsáveis pela incorporação
das entidades, no contexto desta manifestação.
A pesquisa tem seu foco no Terreiro de Jurema e Candomblé Mensageiros da Fé,
conhecido como Casa de Dona Dora, situado no Jordão Baixo – Zona Norte do Recife,
e conta também com a observação da mesma prática em demais terreiros da periferia
da cidade. É de caráter teórico-prática, compreendendo leitura e discussão de textos,
trabalho de campo com observação participante, registro e aprendizagem1
Sobre a abordagem antropológica do corpo e da dança
de aspectos
da dança e música para a construção de um laboratório criativo desenvolvido pelos
integrantes do projeto Corpo em Festa.
A dança faz parte da herança cultural de um povo (Zemp, 1998) o que significa
que por se inserir num determinado contexto socio-cultural, contribui para a
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Configurações Estéticas– Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 3
compreensão da estrutura profunda da sociedade e dos homens que fomentam
sistemas culturais diversos (KAEPPLER, 1997). Está diretamente relacionada com a
vida em sociedade, influenciando os modelos culturais, a gestão de tensões, a busca
de objetivos, a adaptação, a integração (KEALINOHMOKU apud KAEPPLER, 1997).
Assim, pensando a experiência da dança como um reflexo das relações sociais
estabelecidas, mas, sobretudo, compreendendo que "a dança, ocupa inteiramente seu
lugar, do ponto de vista antropológico, no estudo de estrutura, de relações sociais, de
ritual e de filosofia" (KAEPPLER, 1997) que desenvolvemos este trabalho.
Ainda que inseridas numa sociedade moderna ocidental onde o corpo é fator de
individualização, muitas comunidades cujas práticas culturais populares e tradicionais
comungam de uma visão de corpo que o integra à natureza, não vêem o corpo como
fronteira de onde começa e acaba o indivíduo, tal como afirma Le Breton (2011, p.49-
50).:
Nas camadas populares a persona permance subordinada a uma totalidade social e cósmica, que a ultrapassa. As fronteiras da carne não demarcam os limites da mônada individual. [...] O corpo humano é nas tradições populares, o vetor de uma inclusão, não o motivo deuma exclusão, [...] ele é vinculador do homem a todas as energias visíveis e invisíveis que percorrem o mundo.[...] É isso que mostra também a feitiçaria popular: uma inscrição do homem num tecido holista no qual tudo está em inter-relação, onde um gesto ameaça o cosmo e desencadeia forças deliberadamente ou por inadvertência.
Sob esta ótica holista, que vê o homem integrado ao cosmo, é que se encontra a
comunidade pesquisada. Marginalizada pela sociedade, em geral, e pela própria
comunidade das religiões de matriz africana e afroameríndia, a Jurema Sagrada, por
ser pouco conhecida e por não haver uma padronização entre os grupos existentes,
ainda é vista como segmento de outras religiões.
Nas sessões da Jurema Sagrada é brincado o Coco de Gira como forma de
diversão e de evocação às entidades religiosas. O Coco é uma manifestação popular
de origem nordestina com dança, música e literatura oral e possui várias modalidades.
Nosso estudo está voltado para uma modalidade religiosa da brincadeira do Coco,
1 A aprendizagem da dança e da música, neste caso, se resume a alguns aspectos, devido a uma
limitação religiosa, uma vez que o processo de aprendizado da dança como um todo implica a iniciação, o que não se constitui como objetivo da presente pesquisa.
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Configurações Estéticas– Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 4
conhecida como Coco de Gira que pode ser compreendida como parte da sessão
dedicada aos encantados na Jurema, e também como a roda feita pelos seus adeptos
para dançar o Coco.
A dança aparece nas giras associada à música, existindo uma relação evidente
entre tais linguagens, podendo a música guiar a dança por fazer referência a uma ou
outra entidade. Assim, também busca-se uma maneira de dançar fazendo alusão à
movimentação do mestre, mestra, caboclo, etc. Essa combinação dança-música nas
giras, conjugada com outros elementos religiosos como bebidas e cachimbos, dão
possibilidade para as transformações no corpo propiciadas pelo transe. Rouget (1985)
afirma que o ritmo é o elemento mais ativo na experiência do transe. Esse elemento,
marcado pela percussão, é ainda mais eficaz em desencadear a experiência de
possessão, se pensarmos que no Coco de Gira além dos instrumentos percussivos,
como por exemplo o tambor – conhecido como Ilú - há também a percussão corporal
feita pelo bater forte de pés no chão, que acompanha os cânticos.
Os movimentos do Coco concentram-se bastante na região inferior do corpo. Além da
percussão corporal são observados outros princípios de movimentos como a
transferência de peso e a suspensão do tronco, além do giro – objeto principal de
estudo e investigação do laboratório de criação do grupo.
Considerações finais
Acreditamos que a compreensão das transformações do corpo, entre os
praticantes do Coco de Gira, da Jurema Sagrada, em terreiros da periferia do Recife,
possibilita um entendimento das possíveis concepções e experiências acerca do corpo
e da dança experimentadas neste contexto. Além disso, através desta pesquisa
pensamos ser possível entrar em contato com as categorias estéticas nativas e as
metáforas corporais que circulam dentro destas comunidades. Estética tomada aqui no
seu sentido mais amplo, ou seja:
Não se aplicando exclusivamente e necessariamente ao conceito de belo, mas também às noções de justeza e de qualidade da execução, competência dos executantes, maneira de avaliar uma dança e sua música segundo as normas culturais de uma sociedade. (ZEMP, 1998, p.24)
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Configurações Estéticas– Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 5
Desta forma, é possível contribuir para a desconstrução de discursos
etnocêntricos, risco que se corre ao serem impostas perspectivas sobre corpo e dança
de uma cultura sobre outra, assim como para a valorização de diferentes experiências
acerca do corpo e da dança.
Referências
AYALA, M. I. N.; AYALA, M. (Org). Cocos: alegria e devoção. Natal: EDUFRN, 2000.
LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011.
LEWIS, I. M. Êxtase religioso. São Paulo: Perspectiva, 1971.
KAEPPLER, A. L. La danse selon une perspective anthropologique. In: Nouvelles de Danse, 34/35, Danse Nomade: regards d'anthropologues et d'artistes. Tradução de
Giselle Guilhon Antunes Camargo. Bruxelles: Contredanse, 1997. p.24-46.
ROUGET, G. Music and trance. A Theory of the Relations Between Music and
Possession. Chicago: University of Chicago Press, 1985.
ZEMP, H. Para entrar na dança. In: Les Danses du Monde. Tradução de Maria
Acselrad. Paris: Collection CNRS/ Musée de L'Homme, 1998.