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COMPENDIUMUNIVERSALIS

Claudio Parreira

São PauloMMXIV

“A escritura de fato só existe antese depois de mim.

Em mim, ela é apenas isso: transição.”

H.P Bruesch

Aborto Celeste, p. 99

1521

“dixit quoque Deus producat terra animam viventem in genere suo iumenta et reptilia et bestias terrae secundum species suas factumque est ita’’

Genesis, 1:24

INTRODUÇÃO

É muito difícil precisar o momento exato em que o Ser Humano passou a se interessar por outro Ser Humano. Mais difícil ainda é determinar quando o Homem passou a estudar efetivamente o seu passado. Alguns colegas meus sustentam que as inscrições rupestres gravadas no interior das cavernas são o mais claro indício de que a espécie Humana tem se observado desde sempre. Outros colegas, por sua vez, acham falsa esta afirmação. Segundo eles, ainda hoje a Humanidade possui um precário conhecimento sobre si mesma. De minha parte, sou forçado a concordar com ambas as correntes de pensamento — que são apenas duas entre milhares de outras hoje vigentes.É neste conturbado panorama de efervescência intelectual que vejo surgir, com alegria, este curioso e não menos polêmico Compendium Universalis. Afirmo com orgulho que, desde o lançamento de A Origem das Espécies, jamais tinha posto os olhos em obra tão perturbadora e ao mesmo tempo tão indispensável. E digo isso não pelo fato de o autor ter se tornado meu dileto amigo de fartos & deliciosos papos espirituais, mas porque a qualidade de sua obra se fez notar até mesmo por aqui, onde hoje repouso em paz e livre das extenuantes lides terrestres.Por volta de 1998, quando os primeiros trechos do trabalho chegaram ao meu conhecimento, fui imediatamente transportado para o interior do saudoso HMS Beagle, o navio que marcou para todo o sempre os caminhos do pensamento Humano e também a minha carreira de naturalista. Tive ali, naquele momento, uma visão da grandiosidade da História – e a certeza de que, em alguns casos, a Espécie Humana realmente evolui. Eram páginas contendo a descrição de espécies fantásticas, complexas, curiosas, imbecis até – mas tratadas de maneira clara e objetiva, sem floreios e adornos inúteis, e marcadas pelo rigor exigido em estudos dessa natureza. Rigor e coragem, devo acrescentar, porque muitos amigos que hoje me fazem companhia tiveram a oportunidade de fazer-lhes a descrição mas não o fizeram unicamente por medo de colocar em risco as suas passageiras reputações. Chamou-me ainda a atenção o fato de o autor acolher em sua obra, sem preconceitos de qualquer tipo, mesmo as opiniões mais díspares e irracionais, dando assim provas de sua elevada tolerância para com esses estudiosos nem sempre tão sábios, que ainda hoje colocam a vaidade muito acima dos interesses científicos.

Durante toda a minha vida, que graças a Deus foi longa e proveitosa, tive a oportunidade de assistir e também de participar ativamente de diversas discussões que tinham como tema central o Ser Humano. Quebramos o pau, literalmente, eu e meus companheiros de ofício. Mas tudo isso em busca de saídas, de respostas para as três grandes questões universais: de onde viemos, quem somos, para onde vamos? A Origem das Espécies, que fiz publicar em 1859, respondeu em parte a estas questões – mas não esgotou, felizmente, o assunto. Notáveis gerações posteriores à minha fizeram do meu o seu próprio caminho, e quem ganhou com isso não foram os homens que mais se destacaram nessa árdua busca, mas sim a Humanidade como um todo. Assisto agora com orgulho todos os esforços que são feitos com o intuito de esclarecer esse grande mistério que fomos nós – esse magnífico mistério que são todos vocês. É por isso que saúdo daqui, com um sorriso largo, a chegada deste Compendium. Que ele seja, de fato, mais um degrau na Evolução.

Sir Charles Darwin*

* Texto psicografado pelo Autor em 28.11.99, numa sessão espírita realizada no interior do Crematório de Vila Alpina, SP, que é, segundo os especialistas no além, o lugar que propicia a melhor sintonia com o mundo espiritual.

A

HOMOACADEMICUS

Dizem os sofisticados e bem-nascidos homens de letras (filósofos, intelectuais, escritores de araque e et cetera) que o Homoacademicus é o the best1, a espécie mais inteligente e preparada, simplesmente o melhor entre os melhores, ou, como se fala por aí em castiço latim, primus inter pares2.

Isso é o que dizem os caras. Numa definição mais apropriada, porém, mais de acordo com a nossa época, Homoacademicus só pode ser aquele tipinho moderno que frequenta as badaladas academias de ginástica. É aquele (ou aquela) que malha3.

Como eu não sou besta, e nem um pouco acadêmico, não discuto com esses senhores letrados — mas também não boto muita fé.

1 Uma besta?2 Frase latina muito obscena que significa “primos entram em seus pares”.3 Malha: jogo popular muito praticado pelos integrantes aposentados da colônia italiana em São Paulo. Consiste num disco redondo e achatado que é arremessado de encontro a um pino fálico que, naturalmente, deve ir por terra. A maneira pela qual são contabilizados os pontos, isso ainda é um mistério para este que vos escreve. Mas que alguém vence, isso é fato. Ou vero, como dizem os jogadores.

HOMOAMOROSUS

A russa naturalizada cearense Ludmila Pavlova de Araquém, escrevedora de cartas românticas e comerciais, assim descreve, com muito brilho e poesia, o Homoamorosus:

“Os indivíduos desta singular espécie estão sempre um palmo acima do comum dos mortais. Seres de refinada sensibilidade, sabem como ninguém detectar a beleza mesmo nos sítios mais improváveis. Eles são capazes, por exemplo, de encontrar luminosos rios azuis naquelas nossas varizes mais secretas; encontram, ainda, um insuspeito perfume em nosso hálito matinal, apesar (e talvez por isso mesmo) da acebolada pizza portuguesa da véspera. Por essas e outras, convenhamos, eles são merecedores de todo o nosso carinho e atenção. Acontece, porém, que todas essas virtudes que tanto e tão bem caracterizam a espécie são também as causadoras da sua insuportável instabilidade emocional. Eles nunca estão satisfeitos — essa é a cruel verdade. Cínicos, louvam a nossa beleza pela manhã, à tarde já estão ao pé de outra mulher, à noite prometem o universo mais a lua com estrelinhas prateadas àquela piranha vagabunda cujo único talento são os peitos sorridentes. Por conta disso, vocês sabem, nós nos descabelamos, borramos a maquiagem mais os lenços de papel, perdemos o prumo e o senso, morremos todas de uma estranha morte que não mata mas envenena. Mas para nossa sorte — ou azar —, a cura vem depressa, em dois ou três dias eles já estão conosco, as mãos cheias de mimos, joias falsas ou flores ou bombons, a boca irresistível carregada de deliciosas canalhices sensuais. Aí flutuamos também, entregues e agradecidas, já esquecidas da dor que, milagrosamente, os Homoamorosus sabem como ninguém transformar em redenção”.

Depois de tamanha declaração, só nos resta dizer o seguinte: a Pavlova aí é uma das maiores conhecedoras da espécie. Um tanto ingênua e tonta, é verdade, apaixonada demais da conta, mas ainda assim. Não é à toa que o Homoamorosus continua se reproduzindo tanto e tão bem.

HOMOANTROPOFAGICUS

— Homoantropofagicus é aquele que come? — pergunta o filhote de jornalista.

Quem responde é o fóssil modernista Raul Norato, que fala apoiado numa bengala recoberta por antiquíssima e lendária pele de cobra:

— Não, meu filho, né não. Aquele que come é o Abaporu. O nosso querido Homoantropofagicus, infelizmente, esse já não come mais nada. Nem ninguém.

E esta é mesmo a mais pura verdade. Sujeito de estômago privilegiado, o Homoantropofagicus comeu de tudo e a todos durante décadas. E vomitou também, e recomeu, e revomitou. Tudo em nome de uma suposta identidade nacional. Mas e daí?

Daí que o resultado dessa começão desbragada, sem rédeas, desvairada, sem freios de qualquer espécie, trouxe para o Homoantropofagicus nada mais do que uma ardente úlcera no estômago. E mais uma potentíssima impotência de lambuja.

Dono de uma história cintilante, o Homoantropofagicus, hoje, se alimenta apenas dos finos biscoitos que produziu e também das indigestas sombras do passado. Manifesta dolorosa dor no estômago — mas poucos lhe dão ouvidos. Isolado em seu mundo de fantasmas, o Homoantropofagicus agoniza em silêncio, saudoso dos tempos de antanho e incerto quanto ao futuro.

— Quem não come é comido!Esta agora é a sua máxima de inegável modernidade, que ele

berra de vez em quando para as paredes sujas e pegajosas da sua velha garçonière que já viu dias melhores.

HOMOANTROPOLOGICUS

Espécie genial descoberta por outra espécie genial denominada Homoarqueologicus (ver adiante).

HOMOAPOCALIPTICUS

"Homoapocalipticus é aquele que vive dia após dia e semana após semana e mês após mês todas as horas do fim.Que acha que tudo vai acabar.Que não faz planos para o futuro porque não acredita.Que não se casa porque o casamento pode trazer filhos e filhos são a mais clara expressão do futuro no qual ele não acredita.Homoapocalipticus, enfim, é aquele que vive em função da morte”.

O autor deste pequeno texto, Augusto Méier Xavier, era ele mesmo um típico Homoapocalipticus. Este texto acima reproduzido, aliás, foi seu último trabalho em vida: logo após escrever a palavra “morte”, a morte lhe sobreveio. Uma pena.

HOMOARQUEOLOGICUS

Genial espécie descobridora de outra genial espécie denominada Homoantropologicus (ver à ré).

HOMOAUTOMOBILISTICUS

O Boletim de Ocorrência n 07/97, registrado na 63a Delegacia de Polícia de Cupuaçú D’Além, assim se refere ao Homoautomobilisticus:

“... destaforme, segundo a vítima dona Maria da Paz, casada e aqui residente nos munisípio, disse que recebeu ferimentos leves mas muito vexatórios. Disse e relatou pra mim, Escrivão de Polícia, que o agressor pilotava um carro, digo veículo, do tipo importado de marca e modelo que ela não soube identificar por ser segundo as suas póprias palavras muito ingnorante de modernidades automoventes. Ainda segundo ela, que recebeu ferimentos digo, segundo ela, parecia um pocesso (o piloto): os olhos injetados dum vermelho cachacento, uma mão só ao volante, a boca muito falante e disparante de indecências que ela não repetiu por não ser ela indessente como ele. Logo após o atropelamente, digo, atrupelamento, o agressor apeou do veículo e passou nele (no veículo) uma detida vistoria cheia de olhos e de dedos. Ao notar uma minúscula riscadela, digo, riscadura, digo arranhão, ele se tornou de pronto um louco durioso ou seja furioso desses de amarrar com cordinha nova e reforssada de sisal: desferiu golpes muito técnicos contra o ar, disparou palavras impublicáveis que o doutor delegado só ouviu e amaldiçoou e partiu por fim (o piloto) na direção da toda esculhambada já vítima a supre referida dona Maria da Paz. Esta, esperançosa de algum auxílio, recebeu do agressor atrupelante apenas diversos e muito potentes chutalhões, que lhe magoaram de maneira desumanda digo desumana o seu estimado e muito belo trazeiro, que todos nós aqui e mais também o doutor legista pudemos comprovar graças a Deus. Assim então, termina a vítima, o agressor, voltando pro carro, cuspiu de lado e ralhou lá com os santos dele, que pelo visto eram muitos tamanha a ralhadeira, e entrou no veículo e feito doido partiu de 0 a 100 Kms em aproximadamente dois segundos, o que prova ser mesmo o veículo sem dúvida um desses tipos importados que nem mesmo o cão é capaz de enchergar...”.

Este fato lamentável, segundo me informaram, gerou revolta na cidade de Cupuaçú D’Além. A população pedestre, dizem, se reuniu em diversas manifestações antiautomobilísticas e terminou por expulsar todos os motoristas da região, que hoje abriga a expressiva quantidade de 7 milhões de bicicletas, nenhuma delas a motor.