C o n d e i x a
P a i s a g e mM e m ó r i aH i s t ó r i a
ÍTULO:CONDEIXA - PAISAGEM, MEMÓRIA E
HISTÓRIA
AUTORES: ARTUR MENDONÇA
JOSÉ MAGALHÃES CASTELA
CÂNDIDO PEREIRA
JOAQUIM FILIPE SOARES
REBELO
PAULO MARQUES DA SILVA
JOSÉ AMADO
EDITOR
E
DISTRIBUIDOR: PARÓQUIA DE CONDEIXA-A-
NOVA
IMPRESSÃO: G.C. - GRÁFICA DE
COIMBRA, Lda
CAPA: ARQUITECTO FLÓRIO
DEPÓSITO LEGAL: XXXXX
FOTOS: Condeixa Antiga:
Fotos cedidas por António
Costa Pinto
Condeixa Actual :
Albano Leandro, Carlos
Eduardo, Luis Borges
Toda a reprodução desta
obra, por fotocópia ou outro
qualquer processo, sem
prévia autorização escrita do
Editor, é ilícita e passível de
procedimento judicial
contra o infractor.
Índice
Prefácio ................................................................
9
D. Albino Mamede Cleto
Monumentos e Palácios de Condeixa ..................
11
Artur Mendonça
Condeixa ao Pé da Porta ......................................
49
José Magalhães Castela
Imagens de Condeixa ..........................................
67
Cândido Pereira
Ecos da guerra.
Condeixa-a-Nova durante a II Guerra
Mundial ................................................................
109
Joaquim Filipe Soares Rebelo
«Estórias» da Oposição em Condeixa .................
157
Paulo Marques da Silva
As Irmãs Hospitaleiras do Sagrado
Coração de Jesus
em Condeixa ........................................................
193.....................................................José Amado
Dados biográficos dos Autores ............................
221........................................................................
Os Monumentos e Palácios de Condeixa
Artur Ângelo Barracosa Mendonça
São antiquíssimas as referências a
Condeixa. Os vestígios de ocupação
humana da paisagem também são
visíveis, em Conímbriga e em outros
locais deste concelho. Porém, o
objectivo do presente trabalho deve
focalizar-nos no núcleo urbano de
Condeixa-a-Nova e em alguns elementos
do seu património edificado. Certamente
será uma escolha discutível, porque
colocamos uns e omitimos outros, mas
razões ponderosas nos obrigam a isso.
Em relação aos monumentos mais
importantes faremos pequenos esquiços
sobre a história do monumento, o que se
diz e o que conseguimos saber acerca
dele, das linhas gerais da sua
construção e de alguns episódios mais
marcantes que nele se tenham passado.
Os monumentos seleccionados foram
o Palácio Sotto Mayor, o dos Almadas, o
dos Figueiredos, o dos Sás e a Igreja
Matriz de Condeixa, ou Igreja de Santa
Cristina.
Palácio Sotto Mayor
Palácio dos Lemos Ramalho ou Sotto Mayor
O Palácio Sotto Mayor é um dos
edifícios mais importantes do
património arquitectónico de Condeixa.
Porquanto tenha sido erigido no século
XVII, foi já na época pombalina que
sofreu as reestruturações que lhe
conferiram a sua fisionomia actual.
Em 20 de Junho de 1732, foi criado o
morgadio de Nossa Senhora da Piedade
por José Rodrigues Ramalho e sua
mulher D. Úrsula de Oliveira Catana,
onde já existia um antigo solar que lhe
dava o nome. Este palácio foi também
conhecido como o Palácio dos Ramalhos,
de Condeixa, em homenagem aos seus
primeiros proprietários. Na construção
original, a entrada principal era feita
lateralmente. Em 1737, foi construída
uma nova capela, para onde foi mudada
a escultura em pedra de Nossa Senhora
da Conceição pertencente à capela
velha.
Durante o período pombalino a
construção foi ampliada e a fachada foi
duplicada. Construiu-se também uma
entrada central, com escadaria dupla
que levaria ao andar superior, onde se
situava o espaço mais nobre do edifício.
Durante os séculos XVIII, XIX e XX, e
à semelhança de outros solares, recebia
com regularidade visitas régias ou
potentados políticos. O palácio foi uma
das residências particulares mais
distintas do país, hospedando figuras
destacadas da história nacional: D. João
VI, então, príncipe regente; D. Miguel I,
D. Maria II, D. Pedro V e até o escritor
Alexandre Herculano. Já no início do
século XX, visitaram-na D. Carlos e o
príncipe D. Luís Filipe, conforme o
relato na imprensa da época.
Na fase final da Monarquia, em 1904,
o palácio acolheu o rei D. Carlos. Dizia-
se nessa ocasião que o proprietário do
palácio, Manuel Pereira Ramalho,
destacado membro do Partido
Regenerador Liberal, liderado por João
Franco, já se tinha filiado «no
constitucionalismo por afeição pessoal a
S. M. el-rei Senhor D. Carlos»1, já que,
antes, a família estava ligada à corrente
legitimista. Conta-se mesmo que,
quando a Rainha D. Maria II esteve
hospedada no palácio, o proprietário
teria afirmado ao recebê-la: «Entrego
nas mãos da sobrinha do meu Rei as
chaves do meu palácio»2, mostrando
desta forma algum descontentamento
com a situação.
Anos depois, em 1910, a revista
Ilustração Portuguesa dedica um
extenso artigo ao palácio. Ao longo de
quatro páginas, bastante ilustradas,
revelam-se alguns aspectos do Palácio
Sotto Mayor, da sua história e dos seus
proprietários. Um dos aspectos curiosos
que se destaca do artigo é a riqueza
iconográfica, com imagens de como era
o aspecto exterior do palácio, bem como
os jardins, para além de imagens de
alguns dos seus proprietários ao longo
do tempo. Por outro lado, retira-se da
parte final do artigo o seguinte «Dos
vários solares que existem por todo o
País é este dos Lemos dos mais belos,
não na sua forma exterior, igual à
maioria, mas pelas riquezas que
encerra, pelas preciosidades que
alberga e onde deve ser agradável
evocar essa nobilíssima figura d’ outra
época, o conde de Condeixa, por graça
de um rei destronado»3.
A construção do edifício,
razoavelmente conhecida, apesar de não
se ter conseguido ainda determinar
quem foi o responsável pela obra, é
marcada pela imponência. A estrutura
foi construída utilizando alvenaria
rebocada e como elementos decorativos
as cantarias trabalhadas. É aquilo que
se pode considerar um típico palácio de
província, com carácter austero,
influenciado pelo estilo barroco e
vocacionado para uso residencial. Tem
três corpos principais, com uma longa
fachada de dois pisos, onde se destacam
dois grandes torreões quadrados,
encimada pelos brasões das famílias
ilustres - Ramalho e Lemos - a que
pertenceu. O edifício demonstra apenas
na zona central da fachada alguma
preocupação na resolução formal e
elementos compositivos e decorativos.
Observam-se ainda um conjunto de
dezanove janelas com varandas, uma
porta principal rectangular, com colunas
coríntias a suportar a varanda que se
ergue sobre a entrada, com janelas e
molduras em forma de volutas. O corpo
central termina em empena triangular
com brasão. Na restante fachada,
vislumbram-se aberturas rectangulares
no piso térreo e janelas de sacada no
piso nobre.
Anexa ao palácio, em perpendicular,
do lado direito, encontra-se a capela
dedicada a Nossa Senhora da Piedade,
onde é possível ver, na capela-mor, um
retábulo de madeira policromado,
datado do século XVIII. A capela é
decorada em azulejos, recortados, de
meados do século XVIII, de fabrico
coimbrão. Os azulejos formam
composições decorativas, com cenas de
reduzida dimensão, onde sobressai a
Virgem Maria. Encontra-se, também
feito em azulejo, o brasão dos Ramalhos.
Existe ainda uma imagem de madeira,
da autoria do escultor espanhol José
Planas, construída em 1922.
Em 1920, o palácio e a quinta foram
adquiridos pelo banqueiro Dr. Cândido
Sotto Mayor4, que na altura fez
importantes melhoramentos no palácio.
Por fim, em 1950, por falecimento de
Cândido Sotto Mayor, o palácio passou
para a posse do comandante José
Correia Mattoso, seu genro.
Actualmente, o palácio encontra-se na
propriedade dos descendentes do
comandante Correia Mattoso.
Um dos episódios mais marcantes da
história deste edifício prende-se com as
invasões francesas e, muito
particularmente, com o episódio do
incêndio ateado pelas tropas
napoleónicas em Condeixa. A polémica
surgiu porque o edifício escapou
praticamente incólume à devastação de
que grande parte da vila foi alvo.
Surgiram especulações e avolumaram-
se suspeitas quanto à fidelidade do seu
proprietário, Manuel Pereira Ramos de
Azeredo Coutinho Ramalho, à causa
nacional. Sugeriu-se mesmo uma
possível aliança estratégica ou acordo
secreto com o quartel de Massena como
a causa provável para a conservação do
palácio.
Para além da estrutura do edifício, o
palácio também era reconhecido como
um dos mais luxuosos do País. Numa
paisagem que o enquadrava e que lhe
realçava o aspecto, os jardins, a
vegetação ou o lago serviram para o
tornar ainda mais belo. Outro dos
aspectos que se destacava neste palácio
era a riqueza e sumptuosidade do seu
recheio. Eram nove grandes salões onde
era possível encontrar mobiliário Luís
XIV, louças ricamente decoradas da
China ou do Japão, os quadros, onde se
destacavam dois quadros do pintor
Guilherme Filipe intitulados Cristo
Negro e Salomé5, as esculturas e tantas
outras coisas que o tempo e as partilhas
familiares conduziram ao gradual
desaparecimento.
O edifício do Palácio Sotto Mayor
encontra-se protegido pelo Decreto n.º
735/74, publicado no Diário do Governo
de 21 de Dezembro.
Palácio dos Almadas
Pousada de Santa Cristina ou Antigo Palácio dos
Almadas
O Palácio dos Almadas é,
presentemente, uma pousada integrada
na rede Pousadas de Portugal, tendo
sido desta forma resgatado da
desoladora ruína para que caminhava.
Este palácio foi construído no século XIV
e pertencia à família dos Almadas, que
conquistaram grande reputação por
terem sido dos conjurados que
prepararam a Restauração em 1640.
Porém, como eram parentes dos Távoras
acabaram por perder grande parte da
sua importância com o processo que
lhes moveu o Marquês de Pombal no
século XVIII.
A família Almada ganhou notoriedade
por receber, ao longo dos anos, diversas
individualidades da mais distinta
nobreza e realeza europeias. Apontam-
se entre os visitantes personalidades
como D. Manuel, em 1500; D. Catarina,
em 1704, após a morte de Carlos II da
Inglaterra; finalmente, também visitou
este palácio D. Carlos, irmão de D.
Fernando VII, de Espanha, em18336.
Este palácio tinha uma capela
dedicada a S. João, passando depois a
ter como patrono o Senhor da Agonia.
Esta capela foi demolida em 1940. No
seu interior existia uma escultura
representando um papa e em cada lado
um bispo e por cima da porta o brasão
de armas dos Lopes Quaresmas. O
edifício tinha na sua frontaria o brasão
com as armas dos Almadas.
Tudo indica que os seus primeiros
proprietários terão sido D. Lourenço de
Almada e D. Antão Vaz de Almada. O
primeiro terá tomado parte na expedição de
Alcácer Quibir e foi feito prisioneiro; quando
regressou, veio viver para Pombalinho e, mais
tarde, para Condeixa-a-Nova.
Já na primeira metade do séc. XIX foi
transformado em hospedaria, porque se
situava perto da estrada de passagem e
do ponto de muda da mala-posta. Em
Abril de 1853, o palácio foi vendido ao
conselheiro Dr. António Egípcio
Quaresma Lopes de Vasconcelos, que o
mandou reconstruir de acordo com a
traça antiga.
Em 1937, o edifício foi adquirido pelo
Dr. Cândido Sotto Mayor, com o
objectivo de ali instalar um lar para
idosos. Porém, a morte prematura e
inesperada, do adquirente, inviabilizou o
projecto.
A partir de 1993 este palácio passou a
funcionar como pousada. Assim, o Palácio dos
Almadas parece manter uma vocação para a
actividade de hospedagem, pelo que a sua
transformação na Pousada de Santa Cristina
não só permitiu a sua conservação, enquanto
edifício, como perpetuou esta vertente,
restituindo-lhe algum do antigo esplendor.
Palácio dos Figueiredos da GuerraPalácio dos Figueiredos da Guerra, actualmente
Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova (perspectiva frontal)
Este palácio, também denominado
Palácio dos Figueiredos da Guerra, ou
dos Condes de Portalegre, situa-se no
actual Largo Artur Barreto; foi
construído no segundo terço do séc.
XVII e, apesar de ter sido destruído
aquando das Invasões Francesas,
conservou uma imponente fachada.
É um edifício dividido em três corpos
por meio de pilastras, com um pátio
interior de onde se elevam duas
escadarias que dão acesso ao andar
superior, ligadas entre si por uma
varanda. Catorze janelas rasgam a sua
frontaria, onde se destaca, em relevo, o
brasão de armas dos Figueiredos.
O palácio teria no seu interior
grandes salões onde era possível
apreciar trabalhos em madeira de
castanho, em talha trabalhada e azulejos
de que, hoje, nada resta7. O edifício é
marcado por uma arquitectura simples e
rural, com acesso para um quintalão
murado que actualmente já não existe
porque, entretanto, foi construído o
centro cívico e o novo edifício do
tribunal, existindo agora um espaço
ajardinado e calcetado, para além de um
parque de estacionamento subterrâneo
que fez desaparecer o antigo quintalão.
Foi proprietário do edifício Martim
Gomes de Figueiredo, que era
superintendente das coudelarias da
comarca de Coimbra. Ainda durante o
século XVII, o palácio foi restaurado por
João Rodrigues Figueiredo. Após estas
obras de remodelação, o edifício passou
a ser designado por paço dos
Figueiredos de Condeixa ou Paço do
Capitão-mór. Já no século XVIII, parte
do edifício fica na posse de João Cabral
da Silva, fidalgo da Casa Real, que era
casado com D. Francisca de Vasconcelos
e Sousa.Palácio dos Figueiredos da Guerra actualmente
Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova
Em 1811, o palácio foi queimado e
saqueado pelo exército francês quando
passou em Condeixa e provocou as
destruições que as populações de
Condeixa ainda recordam. Ainda no
século XIX, o edifício passou a pertencer
a José Joaquim de Figueiredo da Guerra
de Carvalho e Melo e, em 16 de Julho de
1857, parte do palácio foi adquirida por
Albino Justiniano de Carvalho, vindo
este também a comprar a outra parte, a
um herdeiro da Família Cabral da Silva
e tendo, depois, reconstruído o palácio.
Com a sua morte, o palácio passou para
Abílio Roque de Sá Barreto, seu irmão,
que por herança o legou a Artur da
Conceição Barreto. Este benemérito e
presidente da Câmara de Condeixa fez a
doação do palácio à Fundação Dona Ana
de Laboreiro d’Eça.
No edifício funcionaram diversos
serviços públicos e privados, como
tribunal, casa de comércio, oficina,
armazém, consultório médico, biblioteca
pública, sede da Junta de Freguesia de
Condeixa-a-Nova, entre outras
utilizações8. Em 1986, iniciou-se um
processo de recuperação do edifício,
que viria a ser inaugurado como sede
dos Paços do Concelho em 30 de Junho
de 1990, na presença do então
Presidente da República, Mário Soares,
utilização que mantém actualmente.
Palácio dos Condes de PodentesJardim e Palácio do Conde de Podentes
Este palácio que também era
conhecido como Hospício, era um local
onde se «agasalham os pobres e
peregrinos com muita caridade»9, como
refere o Padre Carvalho da Costa.
A construção original terá acontecido
no séc. XVIII, mas foi reconstruída no
século XIX. O hospício dos frades
antoninos-franciscanos, que existia em
Condeixa, foi uma das propriedades das
ordens religiosas que foram abrangidas
pela Carta de Lei de 30 de Maio de
1834. Esta lei, publicada pelos liberais,
extinguia os conventos e incorporava os
seus bens nos próprios nacionais.
O responsável pela reconstrução do
edifício e seu proprietário durante o
século XIX foi o bacharel em medicina,
Jerónimo Dias de Azevedo Vasques de
Almeida e Vasconcelos, que em 1842
procedeu à sua aquisição e
transformação.
Jerónimo Dias de Azevedo Vasques de Almeida e
Vasconcelos
Jerónimo de Almeida e Vasconcelos
nasceu em Podentes (Penela), em 7 de
Dezembro de 1805. Era filho de João
Pedro Dias de Azevedo Vasques de
Almeida, proprietário, e Teodora
Joaquina Henriques de Azevedo. Casou
em 18 de Junho de 1837 com Maria
Liberata da Costa Mendes. Matriculou-
se em Medicina e, em 1826, integrou o
Batalhão Académico, formado por
estudantes liberais que foram combater
as forças de D. Miguel durante o
pronunciamento na Beira. Em 1828,
alcançou o grau de bacharel em
Medicina e, nesse ano, foi um dos
destacados líderes do movimento liberal
na cidade de Coimbra, «aliciando
pessoalmente os comandantes das
forças militares da região a aderirem ao
movimento»10. Alistou-se no Batalhão de
Caçadores n.º 12, participou na
campanha militar entre liberais e
absolutistas, organizou uma guerrilha
com os irmãos, a qual actuou durante
algum tempo na região da Beira, mas
acabou por ser preso, perto de Leiria,
em 29 de Junho de 1828. Foi julgado e
condenado à morte, mas comutaram-lhe
a pena para degredo perpétuo em
Benguela e perda de todos os bens11. Em
1830, foi transferido para o forte de S.
Julião da Barra, onde surgem indicações
de que passou a prestar serviços
médicos aos presos, tanto liberais como
absolutistas. Na sequência desta acção
ter-lhe-á sido concedido um eventual
perdão de pena.
Finalizada a guerra, Jerónimo de
Almeida e Vasconcelos foi libertado e
conduzido a Lisboa, onde viu
reconhecidos os seus serviços. Foi,
então, nomeado Guarda-mor da Saúde e
Provedor da Saúde do porto de Belém.
Desempenhou ainda as funções de
Governador Civil de Coimbra entre 3 e
25 de Junho de 1843; mais tarde
exerceu também idênticas funções em
Viseu (1851) e no Porto (1852).
Foi adepto do governo de Costa
Cabral, mas gradualmente afastou-se
dos cabralistas. Em 1844, publicou dois
opúsculos da sua autoria, onde se
destacam: Breves considerações sobre o
estado da fazenda pública e Reflexões
sobre o decreto de 30 de Junho próximo
passado em que se determinou a
arrematação do contrato do tabaco,
onde criticava a política financeira de
Costa Cabral.
Em 1846, integrou a Junta
Revolucionária da Beira Alta, de Viseu.
Em 1855, dirigiu o jornal de Viseu, O
Viriato.
Recebeu em 8 de Outubro de 1851 a
nomeação por carta régia com o título
de visconde, e mais tarde, por decreto
de Novembro de 1868, o título de
conde12. Foi eleito deputado em três
legislaturas: 1838-1840, 1840-1842 e
1842-1845. Em 18 de Fevereiro de
1852, foi nomeado Par do Reino, por
carta régia, tendo feito o juramento e
tomado posse em 20 de Fevereiro de
185213.
Enquanto parlamentar, integrou
diversas comissões e participou de
forma activa em muitas sessões14. A sua
participação na vida política é recheada
de polémicas e surge descrito em
algumas publicações como bastante
inconstante e volúvel, pois nos
corredores do Parlamento dizia as
coisas de uma maneira, mas quando
discursava no interior do mesmo já dizia
outra.
Sobre esta personalidade conta-se,
entre alguns vestígios de testemunhos
orais que ainda persistem na região de
Podentes, que ele era rico e emprestava
dinheiro às pessoas. Porém, se não lhe
pagassem no prazo estabelecido, ficava-
lhes com as terras. Algumas pessoas não
lhe pagavam porque não podiam, mas
outras queriam pagar. Como o conde
era esperto, quando lhe iam para pagar,
mandava dizer pela esposa que não
estava em casa. Depois, como o prazo
tivesse acabado, as pessoas ficavam sem
as suas terras e o Conde cada vez mais
rico.
A 19 de Novembro de 1863, o rei, D.
Pedro V, chegou a Condeixa pelas nove
horas da noite; segundo o relato na
imprensa da época «ali estavam duas
colunas, uma de cada lado da estrada,
sobre que se achavam colocadas duas
inocentes crianças, que lançaram muitas
flores sobre as carruagens. Desde
aquele ponto até ao real aposento havia
alguns arcos e colunas de louro e murta
sobre que assentavam lanternas de
várias cores»15. Ainda de acordo com a
descrição feita, «sobretudo realçava era
a iluminação da casa do exmo.
visconde», todo o jardim e largo da casa
do visconde estava «coberto de povo»,
e, este, «rompeu em estrondosos vivas
quando Suas Majestades se dignaram
chegar a uma das janelas»16. A família
real pernoitou uma noite no palácio
dirigindo-se a Coimbra no dia seguinte.
O Conde de Podentes faleceu na
referida localidade em 19 de Agosto de
188517.
Alguns autores referem que terá sido
neste palácio que D. Pedro V, em
Novembro de 186318, decidiu abolir o
denominado Exame Privado da
Universidade de Coimbra, que tão
criticado era na segunda metade do
século XIX. Este exame, que servia para
se aceder aos graus superiores de
licenciado e doutor, devia ser feito com
todo o rigor19 e à porta fechada. A prova
revestia-se de um carácter intimidatório
e obedecia ao que tinha sido
estabelecido nos Estatutos da
Universidade de 1772.
O Hospício, como é vulgarmente
designado em Condeixa, era até há
pouco tempo propriedade de D.
Margarida Relvas Navarro de Azevedo
Albuquerque, descendente de Carlos
Relvas e José Relvas, importantes
proprietários no Ribatejo (Golegã),
tendo o último desempenhado papel de
destaque durante a 1ª República.
Actualmente, está na posse dos
descendentes.
Palácio dos Sás
A 13 de Março de 1811, os clarões
das chamas ateadas pelas tropas de
Massena iluminavam o horror e a
destruição da vila de Condeixa. O
Palácio dos Sás, que até esse momento
se erguia imponentemente a todo o
comprimento da actual Praça da
República, foi devorado pelo incêndio.
Aparece referenciado, em
documentação, como sendo um dos
maiores do país, com uma fachada
rasgada por 23 janelas e ostentando, ao
centro, as armas dos Sás.
Foi proprietário do palácio, Manuel de
Sá Pereira que faleceu em 176420. Este
tornou-se fidalgo da Casa Real e
morgado do Sobreiro. Casou com D.
Maria Plácida de Meneses.. Deste
casamento nasceu D. Maria Antónia Sá
Pereira, que se casou com Aires de Sá e
Melo e teve como descendentes João
Rodrigues de Sá e Melo, que viria a ser
1º Conde de Anadia; João António de Sá
Pereira e Meneses, 2º Conde de Anadia
e 1º visconde de Alverca; e de João
António de Sá Pereira que se tornaria 1º
barão de Alverca. Herda o título de
Condessa de Anadia a Sra. D. Maria
Luísa de Sá Pereira de Meneses e Melo
Souto Mayor, que casou com Manuel
Pais de Sá do Amaral de Almeida e
Vasconcelos Quifel Barbarino.
No jornal O Conimbricense, de 1858,
assinalava-se que o referido palácio se
encontrava ainda em ruínas, causando
perigo aos transeuntes que por ali
passavam, ainda para mais quando tinha
sido construída uma estrada que
passava logo ao lado. Num comunicado
enviado para o jornal, apesar de não se
identificar o remetente, afirmava-se:
«Condeixa apresenta ainda algumas
casas em mau estado, e por isso vamos
pedir providências às autoridades
daquela vila, para que sejam reparadas
as ruínas do palácio da Condessa de
Anadia»21. Segundo se dizia na época,
alguns dos edifícios em Condeixa que
tinham sido destruídos pelas invasões
francesas já tinham sido recuperados
mesmo sem ajuda, enquanto o palácio
da Condessa de Anadia «recebeu uma
indemnização pelo prejuízo que sofreu
no palácio, em vez de reedificar como
devia destruiu ainda mais mandando até
tirar as grades de ferro das janelas, para
ficar aquele esqueleto mais medonho»22.
O objectivo deste comunicado era
conseguir uma melhoria das condições
existentes para a mala posta que se
situava em edifício localizado ao lado,
pois tornava-se importante ou demolir o
edifício ou reedificá-lo. Segundo estas
indicações, o mercado semanal
realizava-se duas vezes por semana, tal
como nos nossos dias, e a ruína
avançada do palácio colocava em perigo
todos os que frequentavam o mercado,
assim como os comerciantes que tinham
as suas lojas no interior do palácio e,
ainda, as pessoas que entravam nessas
lojas para fazerem as suas compras. Era
importante encontrar uma solução para
o edifício que permitisse embelezar o
espaço envolvente e sobretudo que
garantisse maior segurança para o
trânsito que passava pelas imediações
das ruínas.
Curiosamente, na obra de Augusto
Mendes Simões de Castro23, publicada
uma década depois, refere-se «o aspecto
lastimoso, que apresentava Condeixa
por tão grande desolação, tem
desaparecido quase de todo em virtude
de sucessivas reedificações, e
presentemente só se vêem em ruínas
cinco casas, sendo uma delas o antigo
Palácio dos Sás, hoje do sr. Conde de
Anadia»24. Por consequência podemos
concluir que desde os inícios do século
XIX não houve qualquer tentativa de
restauro do palácio, que era até ali um
dos principais símbolos da pequena vila.
A família dos Sás sempre se
envolveu na vida política e religiosa
de Condeixa. Muitos dos
representantes desta família eram
influentes locais do Partido
Progressista, enquanto os Lemos
Ramalho eram defensores do
Partido Regenerador. Esta divisão
política das importantes famílias
locais provocou alguns momentos de
tensão e mesmo de confronto físico,
criando alguns episódios de clara
discussão acerca da influência
política que ambas tinham,
procuravam manter e aumentar no
meio circundante. A presença dos
representantes da família Sá, nos
órgãos da confraria do Santíssimo
Sacramento, foi uma constante que
bem observaram os autores dos
Subsídios para a História de
Condeixa.
O palácio ocupava todo o espaço
desde a sua localização actual, e
estendia-se até à igreja de Santa
Cristina, dispondo mesmo de uma
entrada privada que entretanto acabou
por dar lugar a uma capela particular no
interior da referida igreja. Era o maior
palácio de toda a vila, já que a sua
fachada se situaria a meio da actual
Praça da República25 e a sua destruição
representa uma perda importante para a
arquitectura do concelho.
Actualmente existe um edifício de
planta longitudinal, rectangular, com
dois pisos, formando um T. Possui
fachadas rebocadas e pintadas de
branco e ornamentada com obras em
cantaria.
A memória dos mais velhos conserva
ainda a imagem da grandeza deste
edifício, que se manteve em ruínas por
mais de um século lembrando, todos os
dias, o trágico episódio que tanto tempo
levou a esquecer. Em 1930, as
necessidades de reestruturação
urbanística ditaram a sua demolição,
para proceder ao alargamento da Praça
de República e à abertura de novas
ruas, entre elas, a Avenida Visconde de
Alverca. Deste palácio sobreviveram até
aos nossos dias alguns elementos
significativos como o brasão dos Sás. O
edifício actual é bastante mais pequeno
e foi construído pela mesma família que
o mantém até à actualidade.
Igreja Matriz de Condeixa
Igreja de Santa Cristina
A Igreja Matriz de Condeixa foi
mandada construir no tempo de D.
Manuel I, quando o rei, na sua
peregrinação a Santiago de Compostela,
teve que passar pela povoação.
Na descrição que nos chegou através
do Padre António Carvalho da Costa
afirmava-se que a Igreja, aos olhos do
tempo (1706) «de uma só nave, muito
comprida, e larga na sua proporção,
muito alegre pelo rasgado das frestas»26.
Actualmente, e devido ao forte
crescimento demográfico que se tem
registado em Condeixa, o edifício torna-
se muitas vezes pequeno, em particular,
nas ocasiões festivas.
Afirmava, ainda, o Pe. Carvalho da
Costa que a decoração era em pedra de
Ançã, com as paredes cobertas de cima
abaixo com azulejos dourados27. A
capela tinha duas sacristias e várias
capelas decoradas com retábulos
dourados.
A igreja tinha três capelas
particulares que eram de D. Lourenço
de Almada, outra de João de Sá Pereira
e outra ainda da invocação de Jesus,
onde estava sepultado o morgado de
Morais Botelho.
O edifício tem planta longitudinal composta
de nave, capela-mor, sacristia, capelas
laterais e anexos. Verifica-se algum contraste
entre o exterior e o interior. Porque o interior
assenta numa disposição horizontal do corpo
do edifico, enquanto no exterior se nota a
verticalidade da torre.Interior da Igreja de Santa Cristina
No interior do edifício observa-se uma
distribuição diferenciada do espaço, em
que a nave é iluminada sobretudo pelo
janelão da frontaria. A capela-mor é
quadrada, com abóbada estrelada de
cinco chaves ornamentadas. Possui duas
janelas laterais com cabeceira de
recorte mistilíneo, estando a da
esquerda entaipada. Assinala-se a
existência de um retábulo de talha
dourada, com colunas torsas, que lhe foi
adaptado. Um arco de volta redonda,
com perfis cortados em S, separa a
capela-mor da nave. Colateralmente a
esta, abrem-se várias capelas, todas de
arco redondo. No flanco esquerdo, a de
São Francisco é a maior, sendo
completada ainda por uma tribuna para
a igreja. A que se lhe segue possui
abóbada formada por dois arcos
cruzados. Sob a torre, situa-se a capela
baptismal, onde se guarda a pia
manuelina. Do lado oposto, em frente à
capela de São Francisco encontra-se a
do Santíssimo Sacramento, com arco
muito simples, grade e decoração de
estuques oitocentistas. As que se lhe
seguem são obra revivalista
contemporânea. A última, tem na
parede uma lápide com inscrição alusiva
ao restauro da igreja de 1964-1970. Na
sacristia, encontra-se ainda o túmulo
setecentista do bispo D. João Franco de
Oliveira, anteriormente ao fundo da
igreja e que foi trasladado para esta
nova localização.
A Igreja de Santa Cristina, em
Condeixa-a-Nova, é um monumento
peculiar; na sua configuração
heteróclita inscrevem-se as marcas de
estilos e sensibilidades distintas que os
séculos atravessaram e que vicissitudes
históricas de diversa índole ajudam a
explicar.
Concluída muito possivelmente em
1543, a igreja viria a ser saqueada e
incendiada em 1811, a par de diversos
outros edifícios da vila, com as invasões
francesas; este nefasto episódio obrigou
à sua reconstrução que no entanto lhe
alterou profundamente o traçado,
conferindo-lhe o recorte neoclássico que
presentemente exibe.
Erguida no século XVI por
determinação de D. Manuel I, aquando
da sua passagem pela vila, esta obra
veio substituir uma velha igreja
existente no mesmo local, indo ao
encontro das aspirações da população,
profundamente desagradada por ter de
se deslocar às igrejas do Sebal ou de
Condeixa-a-Velha a fim de ouvir as
missas dominicais.
Em 1514, D. Manuel I, entregou-lhe
foral, mudou, como no-lo indicam
registos históricos coevos, a construção
da matriz teria ficado em grande parte a
cargo do Mosteiro de Santa Cruz,
cumprindo muito embora à população, o
provimento dos paramentos que a
ornamentação do edifício exigisse; o
surto de desenvolvimento da moagem e
a riqueza agrícola da região
favoreceram largamente o
financiamento da obra.
Em 5 de Março de 1549, Frei Brás de
Braga, afirmava num carta enviada de
Leiria para o Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra: O debuxo da Igreja de
Condeixa vos envio para o guardardes lá
parece-me muito bem. O das casas que
queríamos fazer para El-Rei cuidei que o
tinha e não se achou e encomendo-vos
que vejais se Frei Acúrcio o tem e lhe
mandes fazer um que mandes com
conhecimento de Manuel de Barros se o
achastes ou seu traslado quando para cá
vier alguém (…)28. Verifica-se portanto
que existiu um desenho da Igreja de
Santa Cristina que foi enviado para o
dito mosteiro, onde se pedia para ser
muito bem guardado, pois era frequente
existirem perdas de documentos
importantes e este seria um deles, pois
atestava qual era a configuração e o
aspecto da igreja.
Surgiram também desentendimentos
entre as paróquias de Condeixa-a-Nova,
relativamente recente e Condeixa-a-
Velha, bastante mais antiga, que Frei
Brás tentou solucionar, quando afirmava
noutra carta, datada de Maio de 1549:
quanto à dúvida das ofertas de
Condeixa-a-Nova, meu parecer é que
pois já essas igrejas têm cada uma seu
capelão, que cada um levasse as ofertas
e oferendas e mortuários, da que curar
e não houvesse diferenças entre elas,
porque não é razão que o capelão de
Condeixa-a-Velha leve as ofertas e
mortuários de Condeixa-a-Nova onde ele
ao presente não tem alguma cura nem
trabalho mas tudo faz outro capelão
para a concórdia que agora fazemos e
porém uns dois cruzados que já dantes
eu mandara dar a Manuel Rebelo é bem
que lhos dêem a ele somente, e não
fique em foro para os outros capelães
que adiante vierem29. Atesta-se que a
divisão das paróquias não foi um
processo pacífico, porque foi necessário
uma intervenção conciliadora no sentido
de não prejudicar ninguém, mas
estabelecer critérios que ficassem
estabelecidos e claros daí para diante.
Existem referências a alterações no
edifício em 1560, quando se procedeu
ao alteamento da capela-mor, sendo
responsável pelas obras realizadas
Jerónimo Afonso. Nos finais do século
XVI, entre 1589 e 1594, efectuaram-se
algumas remodelações nas capelas
laterais. Durante o século XVIII, em
170230, foi necessário proceder a obras
no edifício que introduziram novas
alterações, principalmente na frontaria.
Curiosamente, no entanto, o terramoto
de 1755 parece não ter provocado
estragos de monta no edifício. Segundo
o cura de Condeixa-a-Nova, Reverendo
José Joaquim de Sousa e Torres, na
resposta ao questionário solicitado pelo
Marquês de Pombal após a terramoto de
1755, e enviada a todas as paróquias do
reino, referia que «o orago é o de Santa
Cristina que tem dez altares e não tem
naves e de uma parte estão os altares de
S. Sebastião, da Sra. da Conceição, da
Sra. da Piedade, do Santíssimo
Sacramento e do Senhor Jesus e da
outra os altares das Almas, de S. Tiago,
de S. Pedro de Alcântara, da Sra. do
Rosário, além do Altar-Mor. Tem três
irmandades: do Senhor, da Senhora do
Rosário e das Almas»31.
No recheio da igreja de Santa Cristina
existiam «duas lindas capelas renovadas
segundo o estilo do Renascimento, pelo
escultor contemporâneo João
Machado»32. Outro dos elementos que
fazem parte do recheio da igreja é a pia
baptismal, da época manuelina, com
molduras e ornamentação naturalista33.
Para além disto a igreja conserva
ainda do primitivo traçado a abóbada da
capela-mor, de características
manuelinas, e o arco da capela de S.
Francisco, a capela de Santa Teresa e a
do Senhor dos Passos, de inspiração
renascentista; de setecentos é, já, o
retábulo. No frontispício, ostenta a
igreja de Santa Cristina, em baixo-
relevo, o escudo e a coroa usados no
reinado de D. Maria I.
Ligadas à Igreja criaram-se duas
confrarias que desempenharam papel
importante na vila: a Confraria do
Santíssimo e a Confraria das Almas, que
passou, depois, a denominar-se das
Almas e Senhor dos Passos (13 de Junho
de 1885), que ainda hoje continuam a
existir. A Confraria das Almas foi criada
em 1682 e teve estatutos aprovados em
25 de Agosto desse ano. Por seu lado, a
Confraria do Santíssimo teve estatutos
aprovados em 1689. Por ambas
passaram importantes personalidades
de Condeixa34. Um dos trabalhos de
destaque realizados pela Confraria do
Santíssimo Sacramento foi a construção
do retábulo da capela do Santíssimo,
encomendada ao entalhador João
Ferreira Carneiro, bem como a
construção do cancelo com madeira de
castanho e pinho da Flandres. Para além
disso, em 1872, a mesma irmandade
resolveu substituir o soalho de madeira
da Capela-mor e substituí-lo por pedra,
para ficar como antigamente35.
Nos tempos recentes, entre 1964 e
1970, a igreja foi submetida a obras de
remodelação, a cargo do construtor civil
local António dos Santos Ramos, que
gratuitamente supervisionou a
realização das obras de beneficiação.
Existem ainda em Condeixa-a-Nova
outros edifícios e monumentos dignos
de menção a que não podemos agora
dedicar a devida atenção, mas não
podemos deixar de fazer referência às
capelas, solares e outros edifícios.
Entre as capelas existentes no
concelho não podemos deixar de
referir as igrejas paroquiais das
diferentes sedes de Freguesia:
Anobra, Belide, Bendafé, Condeixa-
a-Velha, Ega, Furadouro, Sebal, Vila
Seca e Zambujal.
A Igreja Paroquial de Anobra, data do
século XVIII, possui azulejaria típica
desse período. Dispunha de um núcleo
de esculturas importantes, algumas do
período manuelino e um sacrário do
século XVI.
A sede da paróquia de Belide é um
edifício reconstruído no séc. XIX. As
esculturas em pedra são do século XVI.
Tem por padroeira Nossa Senhora da
Saúde e a talha é do período barroco.
A Igreja Paroquial de Bendafé foi
construída no século XVIII, sendo
dedicada a Nossa Senhora da Ajuda.
O edifício da igreja paroquial de
Condeixa-a-Velha terá sido construído
no século XVI, mas as reparações e
reconstruções foram desvirtuando o
monumento ao longo do tempo. Tem um
retábulo do século XVIII e azulejos dos
séculos XVI e XVIII.
A Igreja Paroquial da Ega conheceu
importantes obras durante o século XVI.
Possui elementos manuelinos como o
altar-mor e o arco-cruzeiro. Tem capelas
renascentistas revestidas com azulejos
dos séculos XVII e XVIII. Possui um
tríptico de madeira, atribuído a Gregório
Lopes, dedicado a Nossa Senhora da
Graça, que data do século XVI.
A igreja paroquial do Furadouro foi
reformada no século XIX, mas tem
elementos decorativos que datam do
século anterior. Possui algumas
esculturas de pedra do século XVII.
O edifício da igreja paroquial do
Sebal, ainda apresenta vestígios da
reconstrução feita no século XVI, mas
tudo indica que a construção seja do
século XIV. Conheceu, também, ao longo
do tempo várias intervenções na
estrutura construída, que lhe alteraram
alguma da sua beleza. No seu recheio
possui vários retábulos que datam dos
séculos XVI e XVII, bem como esculturas
que datam do século XV.
A igreja paroquial de Vila Seca,
dedicada a S. Pedro, mistura vários
períodos construtivos. Destaca-se no
interior a talha e a azulejaria. O corpo
da igreja foi revestido com azulejos do
século XVIII. Possui um baptistério e
várias esculturas de pedra e madeira.
Por fim, a igreja paroquial do
Zambujal foi reconstruída no século
XVIII. Tem no seu interior azulejaria e
esculturas. Destacam-se as esculturas
do século XVI. Esta igreja é de
construção muito antiga, existindo
referências à sua existência desde 1320.
Mas também são dignas de menção as
capelas dispersas pelo concelho, como a
capela da Senhora da Lapa, a da
Senhora da Piedade, a de Santa Maria
de Alcabideque, a de Nossa Senhora da
Piedade da Eira Pedrinha, a de Santa
Isabel, no Bom Velho, a da Nossa
Senhora do Rosário, a de São Fipo, a de
S. João, de Casével, a do Casmilo, da
Senhora do Círculo, a da Nossa Senhora
da Conceição, a de São José, e a capela
da Serra de Janeanes.
Os solares mais importantes são o
Solar do Francos ou Quinta do Travaz,
que pertencia ao Morgadio do Travazm
e tendo sido construído no século XVII,
actualmente, ainda se conserva em
razoável estado; o Morgadio da Lapa,
onde viveu o padre João Antunes, o
padre-boi, figura importante em
Condeixa, onde fundou o órfeão que
ainda preserva o seu nome; Solar dos
Cunhas, que se situava na Lapinha;
Solar João de Azevedo, actualmente
bastante alterado, mas que ainda dispõe
de capela particular dedicada a Nossa
Senhora do Amparo, essa sim existente,
cuja construção data do século XVII.
Fontes e Bibliografia
Fontes de Arquivo (manuscritas)
Arquivo da Universidade de Coimbra -
Fundo Governo Civil de Coimbra
Concelho de Condeixa-a-Nova.
Orçamentos dos anos económicos de
1852-1853; 1853-1854; 1854-1855;
1855-1856; 1856-1857; 1857-1858;
1858-1859; 1861-1862; 1862-1863;
1863-1864, AUC/GCC/TA/E4/T3/288.
Publicações Periódicas
Conimbricense, O, Coimbra;
Ilustração Portuguesa, Lisboa;
Tribuno Popular, O, Coimbra;
Bibliografia
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Condeixa-a-Nova, 2ª ed., Revista e
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Ruas e Lugares de Condeixa, coord.
Rosário Grilo e Fátima Bandeira,
Coordenação Concelhia da Extensão
Educativa de Condeixa, Condeixa,
2002.
Subsídios para a História de Condeixa.
Condeixa no Século XVIII, nº 10,
1956, coord. Fernando de Sá Viana
Rebelo e Isaac Pinto, s.l. [Condeixa ?]
Condeixa ao pé da porta
José Magalhães Castela
Antigamente, quem vinha de Coimbra
pela antiga Estrada Nacional, entrava
obrigatoriamente em Condeixa pela Rua
Francisco de Lemos, não sem antes
abordar o Paço.
No meio de paisagem verde, logo do
lado esquerdo encontrava a Casa da
Criança, e mais à frente, do lado direito,
o tanque de água do Galaitas, autêntica
piscina olímpica onde os ases da
natação da Académica chegaram a
treinar algumas vezes. E era por essas
bandas que se encontrava a estátua do
Quelhorras, sentinela alerta a quem
entrava, a mijar água cristalina vinte e
quatro horas por dia, trezentos e
sessenta e cinco dias por ano, e onde as
mulheres do povo matavam a sede após
fazerem o sinal da cruz.
Figura masculina em pedra muito mal
trabalhada, mas pelos vistos com olhar
malvado para as raparigas solteiras, o
Quelhoras foi substituído em 1853 pela
figura de um imponente Guarda
Nacional, cavalgando o cano de pedra
por onde saía a água cristalina.
Autêntica instituição pública à entrada
da vila, este recauchutado Quelhoras,
pelos vistos, nem perdeu a maldade no
olhar nem a santidade da bica urinária.
(Procurei que me fartei e nunca
ninguém me conseguiu explicar porque
razão as mulheres do povo se benziam
perante os dois Quelhoras que estavam
sempre em função urinária. Porventura,
a única explicação poderia residir na
água. Vinda de Alcabideque, seria sem
sombra de dúvida, cristalina. Calcária
quanto baste, como que a atestar uma
personalidade muito própria, mas
reputadamente cristalina. Uma bênção,
portanto!)
E o Quelhorras, convenhamos, como
cartão de visita não seria lá muito
famoso em termos de monumentalidade
e estética, logo de seguida e quase em
frente um do outro, os dois palácios, o
do Lemos Ramalho e o dos Almadas em
permanente diálogo, como se de pai e
filho se tratassem, proporcionavam ao
visitante a nobreza da entrada em
Condeixa.
(Disseram-me uma vez que havia um
túnel secreto que ligava o palácio dos
Almadas à povoação da Barreira, para
proporcionar eventual fuga daquela
família brasonada, assim que chegassem
os franceses. Pelos vistos, aquando da
invasão francesa do Junot, os militares
gauleses aboletaram-se nos domínios
dos Almadas, comeram e beberam do
bom e do melhor e fizeram estragos. Foi
então que o decano dos Almadas
resolveu prevenir-se a tempo. Na
terceira invasão francesa, a do Massena,
e como pelos vistos já não havia mais
nada a roubar, os militares
aproveitaram para deixar sementes em
barrigas alheias).
O visitante entrava assim na Rua
Francisco Lemos a olhar algo
deslumbrado para os dois palácios e
tinha uma primeira percepção que
Condeixa era mesmo uma terra de gente
nobre. Claro está que logo de seguida, o
cabo Alípio, comandante do posto da
Guarda Nacional Republicana,
decididamente fazia esquecer as
monarquias e confirmava que estávamos
mesmo a viver numa República. E
mesmo pegado às tropas, o bom Padre
Gomes sorria silenciosamente perante
esta manifesta afirmação republicana.
(O cabo Alípio da Guarda Nacional
Republicana, fazia esquecer que
estávamos perante uma força de
repressão. Merece aqui um simpático
apontamento porque nunca o vi a passar
uma multa ou a dar uma chapada em
quem quer que fosse).
Mas regressemos à Rua Francisco
Lemos. Mais abaixo, e enquanto sob o
olhar atento da Albertina Boneca, o João
Borrega vai fazendo lentamente a barba
ao Duarte electricista, a Rua Francisco
Lemos, depois de passar em frente da
casa amarela do doutor João Ribeiro,
revolucionário por conta própria no
tempo da outra senhora, afundava-se no
princípio da vila e só parava junto à
Câmara Municipal, mesmo em frente da
tasca do Zé David, onde a consorte
Celeste, mulher de tempero certo, fazia
assar um cabrito no forno de lenha. Era
mesmo um cabrito de se lhe tirar o
chapéu, acondicionado com carinho no
meio das batatas assadas e dos grelos.
(Ai tanta coisa para dizer sobre estes
personagens ! Vamos por partes e
começo pelo doutor João Ribeiro.
Uma vez, já depois da Revolução de
Abril, um paciente foi bater à porta do
dr. João Ribeiro, para que ele lhe tirasse
uma dor de barriga. Quando entrou, já o
douto clínico tinha jantado e estava a
fazer o quilo. Puxa daqui e puxa dali e a
conversa meteu-se pelos meandros
espúrios da política. Pela parte do
dorido paciente só lhe interessava
mesmo a injecção na parte sobrejacente
do fundo das costas para lhe tirar os
ardores em perfeita ebulição nos
interiores da barriga. O doutor,
perfeitamente alheado das dores do
paciente, lá ia discursando sobre uma
das teses de Lenine, nomeadamente a
da luta contra o revisionismo. Numa
tentativa de fazer avançar o discurso,
disse o paciente ao doutor que o
revisionismo sacrificava os interesses
fundamentais do proletariado e
conformava-se com as necessidades da
burguesia. O clínico deu réplica e a
discussão alongou-se, com os ponteiros
do relógio a cumprirem a sua função
horária. O mal estar abdominal do
paciente foi desaparecendo aos poucos,
nunca se chegando a saber se foi por
causa de alguns pruridos ideológicos se
foi por causa do cheiro do cabrito
assado da Celeste que emanava na
altura da tasca do Zé David.
Esta coisa de assar cabritos tem que
se lhe diga, e muitos diziam que o
segredo estava indubitavelmente no
tempero. Para a massa utilizavam-se, e
com fartura, dentes de alho esmagado
num almofariz, sal na quantidade
suficiente para não aumentar a tensão
arterial, pimenta com decoro e alguma
prudência, e colorau e banha à
discrição. O remate final com uns fios de
azeite era muito bem vindo nos lombos
do quadrúpede. Era assim a massa de
tempero da Celeste do Zé David. Por
fim, e antes de ir ao calor do forno, as
mãos da Celeste pegavam na massa e
barravam com carinho o corpo do
animal. As ondulações poéticas das
mãos suaves da Celeste a passarem a
massa pelo corpo teso do cabrito, só
tinham paralelo com as mãos da
Rosalinda quando desentortava um
calcanhar. Mas quanto a isso já lá
vamos).
Na ruela que sai da Rua Francisco
Lemos, mesmo ao lado da casa do
doutor João Ribeiro e que ia bordejar a
quinta do Palácio, vivia o Pincha.
(O Pincha tocava bombo na Banda
Filarmónica Fina Flor mas, aparte o
bombo, tinha uma voz do caraças. Pelo
Senhor dos Passos, e quando os metetos
cantavam o misérére junto das
capelinhas, um silêncio respeitoso e
reverente se impunha para se ouvir os
agudos saídos dos gorgomilos do
Pincha. Porque a voz do Pincha tinha
tido um mestre de canto de suprema
categoria : Nem mais, nem menos que o
doutor padre João Antunes).
A partir da Câmara Municipal, e
sempre a direito, a Rua Francisco
Lemos mudava de nome e passava a
chamar-se Rua Lopo Vaz durante uma
curta viagem. Era aí que nos esperava a
Conceição do Zé Velho mesmo ao pé da
alfaiataria do Miguel Carlos, depois de
termos passado pelas lojas do Zé Moca,
da Carmo Macia e também dos serviços
oficiais do fisco. É verdade, a Tesouraria
da Fazenda Pública, também conhecida
pela Recebedoria era num rés-do-chão e
a Repartição de Finanças mesmo por
cima, num primeiro andar.
(Uma vez, o António Pessa estava
parado no meio da estrada a olhar para
esse prédio. Meio grão na asa,
gabardina pelos ombros, embora fosse
Verão e fizesse calor, eterno cigarro
sem filtro na ponta dos dedos da mão
esquerda, exclamava para quem o
queria ouvir:
… cá em baixo esfolam-nos e lá em
cima, esquartejam-nos ! … .
Era a voz do povo a falar e com toda a
razão !
E falar da Conceição do Zé Velho, é
recordar os seus dois filhos, o Ramiro e
o Saúl, homens com a alma cheia de
música. O Saúl ensaiava na altura a
banda filarmónica da Pocariça, quando
foi contratado para abrilhantar uma
festa religiosa para as bandas do
Espinhal. Vai não vai, e como era cedo,
e talvez para aquecer os instrumentos,
resolve o Saúl fazer uma arruada com a
banda da Pocariça, a meio caminho, em
Penela, onde também era dia de festa e
cuja comissão organizadora os recebeu
a preceito com o foguetório que se
impunha. Aquecidos os instrumentos,
gastos os foguetes e bebidos alguns
litros de tinto caseiro, retoma a
filarmónica da Pocariça o seu percurso
em direcção ao Espinhal. Só que …e
nestas coisas de festas há sempre um
senão… era a banda filarmónica Fina
Flor da nossa Condeixa que iria
abrilhantar as festas de Penela. Lá
chegados, nem foguetes, nem vinho.
Nickles. Todos tinham pensado que a
outra banda era a legítima contratada,
uma vez que o Saúl era de Condeixa.
Nesse mesmo dia à noite, regressada do
Espinhal a filarmónica da Pocariça, o
nosso Saúl, como bom Condeixense,
resolve presentear os seus conterrâneos
com uma arruada a preceito. Mas foi na
praça que tudo se descompôs, com uma
espera feita pela Fina Flor. Perante a
cena de pancadaria que se gerou entre
os músicos, o mano Ramiro, homem
calmo por feitio e natureza só dizia
… coisas do meu irmão ! …).
Terminada a Rua Lopo Vaz começava
a Revolução. Pois é. Começava a Rua 25
de Abril. Ainda me lembro de ver o Zé
Torres e a Olinda Vicente a atenderem a
clientela sob o olhar atento do
Hermenegildo latoeiro. E depois
apareciam os João Semana cá da terra,
o doutor Fortunato Bandeira e o doutor
Alfredo Pires Miranda.
E depois vinha a Praça da República.
(Para pensarmos Condeixa,
indiscutivelmente temos que ir à Praça.
Era lá que se fazia o mercado, duas
vezes por semana, que os comediantes
incertos faziam as suas actuações e que
na terça-feira de Carnaval se subtraiam
os chapéus e boinas dos seus legítimos
proprietários para serem exibidos na
ponta de um cordel em sobe e desce
accionados pela juventude do momento.
Era também na praça que se passeava
de um lado para o outro, percursos
intermináveis que entravam noite
dentro. Mesmo de Inverno. A própria
informação, os contos e os ditos, era lá,
na Praça, que estavam para quem os
quisesse ouvir. Mesmo descaracterizada
e sem o chafariz no meio, sempre que se
lá passa, parece que ouvimos baixinho
aquilo que ela nos tem para dizer. É só
olhar em volta e captar as suas
palavras).
A Praça da República era um
momento de pausa reconfortante nesta
incursão do visitante pela urbe, com a
casa apalaçada do Visconde de Alverca
a dominar amplamente um dos lados.
No lado contrário, o Néné, que vivia por
cima do café do Jaime e da loja de
fotografia do Isac Pinto, volta e meia
convidava o Manel Pena para o petisco
na adega, ao mesmo tempo que a Viúva
Salazar, o Paula e o António Miro viviam
em absoluta convivência pacífica uns ao
lado dos outros. O doutor Júlio Rocha,
esse, no seu recato, ia fazendo uma
pomada absolutamente eficaz para as
maleitas da pele.
(Alguns chamavam-lhe a pomada
santa e ainda recordo o cheiro intenso a
desinfectante. Aplicada
indiscriminadamente num furúnculo,
numa picadela de abelha, num corte
profundo ou num panarício, o resultado
era sempre o mesmo: Cura absoluta
para tranquilidade do doente e
publicidade ao autor. É curioso, que
nestas coisas de curas, a pomada santa
do doutor Júlio Rocha andava de braço
dado com as mãos da Ti Rosalina).
Um acontecimento sempre aguardado
na Praça da República era a passagem
da procissão do Senhor dos Passos. No
Sábado à noite ouviam-se os metetos em
frente ao palácio do Visconde, para
depois se assistir à passagem do andor
por cima do Rio do Cais. A fé move
montanhas e neste caso a água do Rio
do Cais ficava mesmo abençoada. E no
Domingo, no meio daquela gente toda,
encontravam-se os amigos ao som das
palavras do Sermão do Encontro. É que
os amigos que estavam longe vinham
sempre a Condeixa pelos Passos, como
se dizia então.
(O Senhor dos Passos, será
porventura aquilo que resta de
Condeixa. Porque o resto foi
desaparecendo aos poucos. Até o copo e
vela dez tostões sofreu com a inflação !).
Os Passos tinham que se lhe diga.
Meio mundo vinha a Condeixa. Filhos da
terra e enteados por acréscimo,
conhecidos de todos e desconhecidos de
ninguém, muitos deles ao cheiro do
cabrito e outros tantos para a matança
… das saudades. E depois havia os
devotos e os penitentes. Os que levavam
o copo e vela por dez tostões e as que
iam de joelhos na procissão aberta pelo
Mário Galo e fechada pela banda de
música que tocava sempre a mesma
marcha.
E depois a Praça era também a Igreja
Matriz, onde toda a gente entrava
recém nascido para o baptismo, aos dez
anos para a comunhão, aos vintes para
dar o nó
(e, convenhamos, onde todos nos
vamos encontrando sem dia marcado
para nos despedirmos dos nossos
amigos, o que é uma tremenda e
reputada chatice pois somos todos
mortais. Ninguém cá fica!).
Avizinhava-se de seguida, ao pé das
ferragens do Franklin, o largo Artur
Barreto, a feira das galinhas de
antigamente, onde o palácio dos
Figueiredos de Guerra era rei e senhor.
Estamos a ver o Artur Varela do
Armazém de Mercearias, a tomar
apontamentos para o seu livro «
Cabeças de Barro «, de parceria com o
Fernando Namora e com o Carlos
Oliveira, e em perfeito condomínio com
os barros do Melâneo, e sob a
complacência do Clube de Condeixa e
do Tribunal Judicial. Bom, a partir daí, e
devagarinho, o visitante tomava
paulatinamente o caminho da Rua D.
Elsa Sotto Mayor, sempre a descer até á
Faia, árvore centenária, que marcava o
início da viagem para Lisboa, para uns,
ou o caminho íngreme para a última
morada, para outros. A Faia, que
assistia á encomendação da alma de
quem lá passava na posição horizontal,
sempre quis morrer de pé. Pelos vistos,
houve alguém que não deixou.
(Nos funerais, era certo e sabido que
o padre mandava parar o cortejo
fúnebre ao pé da Faia, para uma
incursão nas Aves-Marias e nos Pais-
Nossos, a favor da alma do falecido.
Encomendava-se a alma do defunto com
um olho no café do Cara Arranhada,
onde, após o funeral, grupos certos
paravam para ir provar um tinto e
mastigar um costal de bacalhau).
Tenho que fazer aqui uma pausa e
retroceder á Praça da República, pois o
visitante podia muito bem interromper
este percurso e ir namorar a rua de
Condeixinha e depois a Rua da
Assunção. Mas vamos por partes.
Logo no princípio da Rua de
Condeixinha, esta fracturava do lado
esquerdo, para dar lugar á Rua dos
Pelomes onde o António Capado e a
Glória Rasteiro viviam. E era essa
mesma rua que assistia aos aviamentos
da Rosalina. Um osso fora do sítio ou um
ligamento avariado nas mãos da
Rosalina iam ao sítio a bem ou a mal.
(Onde é que a Rosalina aprendeu a
arte de pôr os ossos no sítio devido,
nunca ninguém soube. Quiçá, nem ela
própria. Mas que os ossos, quando
deslocados, iam para o sítio certo após
intervenção das mãos da Rosalina, isso
era um facto. Mulher recatada por
natureza, mirava primeiro o calcanhar
fora do sítio como quem olha o belzebú.
Muito devagarinho, começava a
massagem no pé, com um Pai-Nosso de
permeio e a meia voz, como que a ver o
jeito a dar. Se o caso era difícil,
prolongamento da massagem e ataque
forte com uma Salve Rainha. Depois dos
entretantos vinham os finalmentes.
Primeiro era um toque subtil no artelho
e depois uma torcidela no pé
acompanhado por competente grito
lancinante. A cura produzia-se).
Mas se continuássemos pela Rua de
Condeixinha abaixo e depois
seguíssemos pela Rua da Assunção, lá
íamos encontrando alguma gente
conhecida: Por exemplo, o Micaelo e o
seu talho, em plena concorrência com o
do Fontes, o Carlos Pessa, e, mais ao
fundo, mesmo em frente da casa do
António Braga, a loja do Zé Curto. E a
rua depois continuava, claro está, em
direcção ao Travaz e ao Casal da
Estrada.
(Porque a história é melindrosa e um
dos intervenientes ainda é vivo, achou
por bem o autor destas linhas alterar o
nome dos ditos cujos.
Eram uma vez dois vizinhos. Um era o
Firmino, homem mais velho, de poucas
mas acertadas falas. Outro era o
Sebastião, rapaz mais novo e expansivo
até dizer basta. Embora sem grandes
cumplicidades, os dois vizinhos davam-
se bem.
Certo dia, em reparações domésticas,
o Firmino contratou um pedreiro para
verificar das razões dos entupimentos
das caleiras do telhado de sua casa
… ó senhor Firmino … as caleiras do
telhado da sua casa estão efectivamente
todas entupidas. Se não se deita mão ao
esterco das caleiras, as águas do
próximo Inverno irão fazer das suas …
… entupidas como ? As caleiras até
são novas ! …
… ó senhor Firmino … olhe bem para
as caleiras do seu telhado … está a ver
as pombas do seu vizinho Sebastião lá
pousadas ? Pois as pombas
transformaram as caleiras do seu
telhado em retrete ! …
Pensando na melhor ideia para
resolver o entupimento das caleiras de
sua casa, o Firmino deliberou comprar,
muito em segredo, uma espingarda de
pressão de ar. De posse da arma, afinou-
lhe a alça, praticou a pontaria e iniciou
a caça.
E assim, todos os fins de tarde de um
certo mês de Abril, duas ou três pombas
entregavam a alma ao criador e o corpo
aos saberes pantagruélicos da consorte
do Firmino.
Não raro, o Sebastião lamentava-se
perante o vizinho Firmino.
… ó senhor Firmino … as minhas
pombas andam-me a fugir.
Desaparecem-me ! …
… ó Sebastião. Ouve com atenção. É a
Natureza. As tuas pombas andam mas é
a acasalar com pombos de outro pombal
! …
… ó senhor Firmino. Pode lá ser.
Então as minhas pombas fogem e
deixam os borrachos no ninho ? …
… é porque são más mães, Sebastião.
São mesmo muito más mães, o raio das
tuas pombas ! …
E o desbaste continuava sempre à
razão de duas ou três pombas ao dia. E
a própria cara-metade do Firmino já se
via em papos de aranha a inventar
receitas para variar a ementa.
Finou-se Abril e começou o Maio. E
finou-se também, a pouco e pouco, o
abastecido pombal do Sebastião, com a
natureza bélica da espingarda de
pressão de ar a repor o equilíbrio
natural das coisas, ou seja, a fazer
sujeitar as caleiras do telhado do
Firmino à exclusiva função
encaminhadora do corrimento das águas
pluviais para o sítio certo.
Certo dia, bate à porta de casa do
Firmino, o seu vizinho Sebastião, com
uma caixa de sapatos, furada de ambos
os lados. Lá dentro estava uma pomba
branca.
… ó senhor Firmino… maldita a hora
em que fiz a criação das pombas. Estou
triste de morrer. Criei-as com tanto
desvelo e elas fugiram-me. Ficou apenas
esta pomba, e ainda por cima manca de
uma perna. Tome. Ofereço-lha.
Experimente o vizinho fazer criação que
pode ter mais sorte do que eu ! …
Firmino olhou para a pomba branca e
lembrou-se do desajuste da alça da mira
da espingarda de pressão de ar que o
fez errar o último tiro. Afinal, em vez da
cabeça, tinha acertado no pé da
criatura.
… ó Sebastião. Se o bicho que tiveste
a gentileza de me oferecer, sobreviver
ao empeno da perna, o que duvido,
podes crer que me meto a fazer criação
de pombas ! …)
Estou a ser ingrato se não falar na
Rua Venceslau Martins de Carvalho, a
nossa Rua Nova, tão intimista, florida e
envolvente. Assim que subíamos a rua,
logo do lado direito, não raro iríamos
ouvir o senhor Rui a dedilhar a sua
eterna viola ao mesmo tempo que a
Eduarda do Joaquim Pedro regava os
vasos que tinha à porta. Do outro lado
da rua, a Madame Quitton dizia aos seus
alunos: … allez, allez, mes enfants,
parlons seulement en français ! ….
Continuávamos a subir a rua,
devagarinho, e depois da casa onde
viveu o Augusto Lapa apareciam os
Cigarras comandados pelo patrono
Manel. Eram tantos que eu até os refiro
no plural. Praticamente depois do Atílio
Paiva e da Maria Bacalhoa
continuávamos a subir a rua para só
termos a possibilidade de vislumbrar a
Maria Cassaneta.
Mas voltemos à Praça e façamos uma
incursão naquela que era considerada a
mais desenxovalhada de todas, a
avenida Visconde de Alverca, mas que
de avenida tinha pouco. Não tinha
árvores e era irremediavelmente torta.
Logo no princípio, do lado direito, a
loja do Néné e do Quinzinho faziam
frente ao estabelecimento do Justiniano.
Depois vinha o nosso cinema Paraíso, o
Cine- Avenida a fazer ciúmes aos
enchidos do João Geraldo.
(No fim-de-semana das procissões do
Senhor dos Passos, o Cine-Avenida
exibia sempre, no Sábado, o filme
espanhol Marcelino Pão e Vinho, com o
Joselito, e no Domingo, a Vida de Cristo.
Se com o Marcelino, as Senhoras lá
soltavam meia dúzia de lágrimas,
condoídas com as agruras do artista a
dada altura mordido na ponta do pé por
um escorpião, na Vida de Cristo as
Madames entravam mudas e saíam
caladas. Já se sabia o fim da história.
Mas o Cine-Avenida, com o balcão, a
plateia e a geral não numerada, não
deixava de ser, no final de Sábado à
tarde e durante escassos dez minutos,
um pequeno mundo encantado aberto a
todos, quando o Néné e o mano Quim
faziam a Experimentação da película).
Subia-se a Avenida e aparecia a
farmácia do inconfundível Quim
Bandeira, como inconfundível era a
dona Irene. Até havia um colégio, o
Externato Infante D. Pedro comandado
com mão de ferro pelo doutor Luís Vale
e pela doutora Teresa. Depois da loja do
Castela e da Maria Cartolinha, os
Correios Telégrafos e
Telecomunicações.
(O Chefe da Estação dos Correios, o
Valentim, homem sisudo e de poucas
falas tinha um papagaio em cima do
balcão. Nas horas mornas e com a
estação vazia de utentes, sempre havia
um ou outro, que a pretexto da compra
de um selo, tentava ensinar uma ou
outra asneira ao papagaio. Mas o
papagaio era burro e só sabia dizer …
dá cá o galho ! E o Valentim, perante o
despropósito do utente, mesmo sisudo,
afinava que se fartava).
A seguir aos CTT e de um lado, estava
a casa do Tenente Beato, a taberna do
Leandro e o Grémio da Lavoura. Do
outro, os currais e armazéns do
Visconde d´Alverca, o armazém das
urnas do Manel Pena e a casa do João
Raça. A primeira metade da Avenida,
antes de entortar ligeiramente á direita,
estava feita. Entortava no cruzamento
para a Avenida Velha, mesmo antes da
Praça da Sardinha.
(Havia sempre sardinha e carapau na
Praça. O peixe vinha sempre da
Figueira. Só quando rareava é que vinha
da Nazaré e de Matosinhos. Quando os
pescadores não iam ao mar e na falta de
peixe fresco, o chicharro salgado,
mesmo amarelo, cumpria a sua missão
assado na brasa. A Elvira Caraolha,
senhora minha avó, era a decana das
peixeiras e tinha a banca logo à entrada
da Praça, no lado esquerdo. Mordomias
numa família de peixeiras que estavam
quase todas metidas no métier).
Para quem quisesse deixar a Avenida
e virasse à esquerda, entrava na
Avenida Velha, cheia de histórias e
beijos roubados debaixo das nogueiras
do Visconde. E o Viseu da Avessada e o
Manaia a não darem nunca por nada !
Mas voltando à Praça da Sardinha e á
Avenida Nova.
A partir daí ficávamos um pouco com
a sensação de que cada um
vivia para si, cada um fechado na sua
concha. Era o Manuel Alcobaça do
carro de aluguer, também conhecido
pelo Baixinho, o inconfundível e
inimitável António Pessa, sempre de
gabardina pelos ombros e cigarro na
ponta dos dedos, a mercearia do Zé
Bacalhau, sportinguista da pon-ta dos
cabelos à sola dos pés, a tasca do Zé
Luís e a sapataria do Eduardo Sansoa,
convenhamos, sapataria de bestas,
mulas e outras alimá- rias.
E se continuássemos até ao cimo da
Avenida, é verdade, encontrávamos a
internacional Pensão Buraca, um pouco
antes de esbarrarmos de frente com a
casa do doutor Lencastre. Virávamos
obrigatoriamente à direita para tentar
sair da vila e tínhamos que passar pela
oficina do Benjamim Ramos, por todos
conhecido pelo Fechaduras.
Regressemos ao centro de Condeixa e
façamos uma incursão no Outeiro,
sempre a subir até às bandas do
Hospital, e que só terminava no
Hospício, onde estava o palácio dos
condes de Podentes, que se despediam
do visitante até uma próxima visita.
Esse Outeiro sempre a subir com o
Fernando Camões encostado ao
Armazém de Mercearias do Viseu e a
piscar o olho à Cadeia, um pouco antes
do largo de São Geraldo aparecer.
(A Escola dos Rapazes era em frente
do Hospital. Nos primeiros tempos
pontuava o Professor Martins, pelos
vistos um grande pedagogo. Mais tarde
veio o Professor Pita que era mau como
as cobras. Quatro anos de pancadaria
diária com uma cana de bambu e uma
régua forte e feia eram os melhores
argumentos para se aprenderem as
lições e tirar-se a 4.ª classe a valer.
Pancadaria à parte ( sem que ninguém
ficasse traumatizado ), a verdade é que
a instrução primária era feita com
cabeça, tronco e membros.
E logo em frente era o Hospital,
polivalente nos serviços, com cirurgia,
internamentos, Raios X e sala de
autópsias nas traseiras. O pior era
mesmo brocar um dente, pois a broca
era movida por um aparelho adaptado e
movido com os pedais de uma bicicleta.
E quando o doutor Quirino Sampaio
queria brocar um dente, uma freira
assistente saltava para cima da bicicleta
e pedalava. A tortura durava um século.
E quando o dente estava muito cariado o
clínico insistia sempre com a freira: …
Vamos lá Irmã, pedale agora com mais
força ! …).
Ao pé do Hospital havia também o
Armazém de Mercearias Alcobaça,
Pessa & Companhia Limitada. E mais à
frente, outra instituição de reputado
mérito e de clientela certa: O Café da
Carminda.
E Condeixa era também a água.
Sempre a nossa água. Calcária que se
fartava mas era nossa. A do Caldeirão e
a do Rio do Cais, quer uma, quer outra,
perfeitas conhecedoras dos segredos
existentes nos subterrâneos da vila. E as
fontes. E os fontanários. E as fontainhas.
E os moinhos de água. E os regadios. E
as rigueiras. E os poços. E os simples
charcos. E o tanque do Galaitas. E o
cano de pedra por onde saía a água
cristalina do Quelhoras.
(O Chafariz que estava no meio da
Praça da República era, simbolicamente,
um pouco de toda essa água de
Condeixa. Metáfora engalanada sob a
forma de um harmonioso cesto de flores
- o símbolo de Condeixa - o Chafariz da
Praça deu sempre de beber a todos os
que tinham sede).
Imagens de Condeixa
Cândido Pereira
Ao propor-me escrever as memórias
da vila de Condeixa dos anos 40/50 do
século passado, tenho como objectivo a
preservação de factos passados com
pessoas que quase só sobrevivem na
memória de alguns. São descrições e
episódios, aparentemente vulgares, mas
que consubstanciam a vivência de um
povo numa determinada época ou
espaço físico.
Essa Condeixa já não existe. Foi
tragada pelo progresso, a «máquina»
infernal que tudo destrói. E, se encontra
pelo caminho entidades responsáveis
sem um mínimo de sensibilidade, até
devora a alma do povo. José Cardoso
Pires afirmava: «Um país sem memória
é um país incapaz de compreender a
própria história». Felizmente, sempre
aparecem os depreciativamente
denominados «memorialistas»,
guardiões incansáveis de um tempo que
tem de ser transmitido a outras
gerações.
Neste exercício de memória vou
referir ruas. Mas elas são,
fundamentalmente, quem lá vive. Uma
rua sem gente é terra de ninguém. Na
verdade, são os moradores quem lhes dá
vida e as faz ter histórias para contar.
Curiosamente, os dramas, mais que as
alegrias, têm o condão de agregar as
pessoas em torno dos atingidos pelo
infortúnio, formando um círculo
solidário onde até se esquecem as
«tricas das comadres contando as
verdades», coisas lançadas da boca para
fora, tantas vezes sem a intervenção do
coração!
Serei capaz de atingir os objectivos?
Vou tentar!
Condeixa, apesar de ser hoje
espartilhada por um tenebroso IC2, um
bastante menos concorrido IC3 e uma
circular interna de relativa eficiência,
conseguiu transbordar em termos
geográficos e habitacionais.
No meu tempo, porém, estava quase
limitada ao Outeiro, Avenida,
Condeixinha e Rua Nova, com a Estrada
Nacional a passar bem dentro do
coração do burgo. Para facilitar a
narração, consideremos que a entrada
na vila se fazia pelo Paço e se despedia
junto à velha Faia, ao pé Café do
Arranhado (hoje Rotunda da Faia).
Logo a abrir, o Tanque do Galaitas,
um enorme reservatório de água
construído para movimentar a
«Fábrica», interessante construção da
época da revolução industrial, um misto
de fábrica de descasque de arroz e
lagar.
O Tanque serviu durante longos anos
como piscina popular, onde além dos
normais exercícios de natação, o povo
tomava banho, no sentido de higiene
corporal. Aos domingos de manhã,
jovens e adultos, -do sexo masculino -
pois o decoro da época impedia meninas
e senhoras de participar nessas práticas
- povoavam o Tanque do Galaitas. E
apenas levavam a toalha e o sabão azul,
pois o sabonete só era alcançável
noutros estratos sociais.
O Nobre Paço dos Almadas
Depois, o Paço dos Almadas, que deu
nome ao local. Sólida construção com
corpo central, alas, jardim e comprido
gradeamento em ferro fundido, com
artístico portão (este gradeamento é o
mesmo da Pousada de S. Cristina).
Pertenceu na origem aos Condes de
Avranches. D. Lourenço de Almada,
combatente de Alcácer-Quibir, onde foi
ferido e feito prisioneiro, era o pai de
Antão Vaz de Almada que, da varanda
do seu Palácio no Largo de S. Domingos,
em Lisboa, (actual Palácio da
Independência), aclamou D.João IV.
O Paço foi adquirido pela família
Sotto Mayor, tendo sido utilizado como
celeiro e currais para gado. Dos salões,
três foram cedidos à Música Nova
(Filarmónica Fina-Flor) e os restantes
serviam para as festas particulares dos
proprietários. O Paço dos Almadas foi
demolido para no seu local ser
construído de raiz o prédio da Pousada
de Santa Cristina.
Palácio dos Lemos Ramalho
Mas, a dominar todo o local, está o
Palácio dos Lemos Ramalho, de
Condeixa. Antigo Solar da Senhora da
Piedade, foi mandado transformar pelo
Bispo D. Francisco de Lemos Ramalho
de Azeredo Coutinho, Reitor reformador
da Universidade de Coimbra, para
receber o Rei D. José I, convidado a vir a
Coimbra inaugurar os Estudos Gerais. O
monarca não chegou a deslocar-se a
Condeixa, mandando em seu lugar o
Marquês de Pombal, amigo pessoal do
Bispo.
De linda traça arquitectónica, o
Palácio foi adquirido, em 1920, pela
família Sotto Mayor, quando se
encontrava bastante degradado, tendo
sido nessa altura sujeito a profundas
obras de restauro.
Até ao final da década de 1950, o
Palácio era uma das maiores entidades
empregadoras da vila. Para a sua
manutenção, assim como do Paço dos
Almadas, da Quinta da Ventosa e de
outras propriedades, eram necessárias
dezenas de pessoas, entre criados,
profissionais de vários ofícios,
jardineiros, motoristas e jornaleiros.
Inclusivamente, anos antes da
inauguração do abastecimento de
energia eléctrica à vila, já o Palácio
possuía uma central privativa de
produção de electricidade.
Quase todos os anos a proprietária, D.
Elsa Franco da Cunha Sotto Mayor,
realizava festas populares. Estes
eventos tinham uma singularidade: as
despesas eram suportadas pela
promotora e um simbólico pagamento
de entrada, mas o apuro total destinava-
se ao Hospital, unidade de saúde
dependente do contributo de
benfeitores.
Recordo a última festa lá realizada, no
verão de 1947 (a D. Elsa faleceu
subitamente em Novembro de 1948, no
dia em que festejava o 50º aniversário).
No grande pátio instalavam-se
barracas de tiro ao alvo, comidas e
bebidas, quermesse e a roda gigante, de
apenas pouco mais de uma dezena de
metros de altura, mas enorme para os
nossos olhos de criança. Constituía o
maior fascínio da garotada, com a lenta
subida nos compartimentos móveis e a
súbita descida a dar a sensação
arrepiante de levar o estômago à boca.
Recordo uma cena demonstrativa desses
tempos. A D. Elsa era madrinha de
imensas pessoas da terra. Quando ela
desceu ao terreiro, formou-se extensa
fila com o propósito de lhe beijar a mão,
ao que ela magnanimamente acedeu
como se fosse condescendente rainha.
No dia seguinte, a festa continuou com
uma garraiada onde brilhou o jovem
bandarilheiro Manuel dos Santos, mais
tarde grande nome da tauromaquia
portuguesa. Para finalizar, ocorreu uma
cena cómica, quando um espontâneo
saltou para a arena e a saiu com as
calças rasgadas e a esconder «as
vergonhas».
O pátio do Palácio voltou a ser
publicamente utilizado em Agosto de
1954, quando o Clube de Condeixa
comemorou o 1º centenário da morte de
Almeida Garrett, realizando um evento
cultural a que chamou «Semana de
Garrett». Iniciou a série de espectáculos
o Clube de Condeixa, com a
representação da peça «O Camões do
Rossio», de Garrett. Seguiu-se um
recital de poesia por um crítico teatral,
Goulart Nogueira, uma palestra pelo Dr.
António José Saraiva e, a fechar a
semana, uma representação do drama
de Garrett, «Frei Luís de Sousa», pelo
Grupo de Teatro Instrução Tavaredense.
Em frente ao Palácio, a antiga Estrada
dos Loureiros, hoje R. Comandante
Matoso, tinha apenas três habitações: a
de João Borrega, de seu tio António e a
de meus pais.
Na esquina, morava João Borrega (creio
que o verdadeiro apelido desta família, era
Ramos). Barbeiro de profissão, exercia o seu
mister no compartimento da entrada, com
pouca iluminação e escasso mobiliário: a
enorme cadeira de madeira com encosto para
a cabeça, o pequeno móvel onde colocava a
ferramenta de trabalho e bancos corridos de
madeira, encostados às paredes.
Profissionalmente, era medíocre e a falta de
freguesia assim o atestava. Tinha outra
alcunha, «Alemão», derivada do facto de ser
fisicamente semelhante ao padrão humano
pretendido por Hitler e defender a ideologia
política do sanguinário ditador. Nesse tempo
de guerra, toda a propaganda nazi distribuída
com o consentimento cúmplice do governo
português ia parar-lhe às mãos. Creio que, ao
contrário de muitas outras pessoas, até
algumas figuras importantes da vila que
entendiam bem o sentido dessa política, a sua
opinião era mais resultante da única
literatura a que tinha acesso.
Um pouco mais abaixo, morava José
da Costa. Em Condeixa foram comuns as
alcunhas. Às vezes designando uma
pessoa, mas frequentemente genéricas,
abrangendo toda a família. Não é pois
de estranhar que José da Costa fosse
mais conhecido como «Zé Barbeiro». O
título, herdado de família, não tinha
nada a ver com a profissão. Tratava-se
de excelente mecânico de automóveis,
mas o trocadilho ocasionou um episódio
interessante. Certo dia chegou a
Condeixa um automóvel com séria
avaria. Quando o proprietário procurou
um mecânico, indicaram-lhe o Zé
Barbeiro. O homem ficou apreensivo,
pensando tratar-se de algum rapa-
queixos com outras habilidades. Mas a
necessidade obriga e lá se resignou a
procurar quem o «desenrascasse». É
claro que José da Costa, com a
reconhecida competência, rapidamente
resolveu o caso. No fim, depois de
acertadas as contas, disse o
automobilista: «Porque é que o senhor,
sabendo tanto de mecânica, continua
barbeiro?»
Logo a seguir, morava outro exemplo do
que há pouco disse sobre alcunhas. O António
Torres era mais conhecido por António
Capado, da Ti Glória, para o distinguir de
outros Capados que pela vila existiam.
A Ti Glória, matriarca da família,
embora exercendo a modesta profissão
de vendedeira de sardinha e, suponho,
possuir apenas a instrução primária,
tinha razoável grau de cultura,
adquirido pelo hábito de ler. Dizia-se até
que ela lia o jornal sentada no penico.
No penico, sim senhor! Esse objecto,
hoje caído em desuso, foi fundamental
naquele tempo, quando uma simples
retrete era um luxo só permitido a quem
vivia muito perto das linhas de água.
Então, se a vontade obrigava, faziam-se
as necessidades no «vaso» e, ou
despejava-se o malcheiroso conteúdo no
rio ou sobre o monte de estrume que
depois ia adubar as terras.
Em frente aos antigos Paços do
Concelho, estava a loja do Zé David,
misto de taberna e casa de pasto. A
esposa era óptima cozinheira e ficou
célebre o seu «cabrito assado com
batatinhas porra». Parece estranha a
designação, mas eu explico. A Ti Celeste
confeccionava sempre, e bem, aquela
especialidade gastronómica, motivando
até que de longe viesse gente para se
deliciar. Como era uma mulher brusca e
de resposta sempre na ponta da língua,
para a ouvir disparatar, os clientes
perguntavam: «Ti Celeste, como é hoje o
cabrito?». À desnecessária pergunta,
respondia ela desabridamente: «Com
batatinhas, porra!».
Logo depois, o talho de António
Vicente. Melhor, da esposa, porque ele
era comerciante de gado. Um dia
adoeceu gravemente. A mulher,
prevendo naturalmente o mau desfecho
da doença, encomendou um fato ao
António Pita, alfaiate que morava em
frente. Como a roupa era para a cova,
não necessitava de forros e bolsos. Mas
o Vicente, de rija têmpera, deu um
pontapé na morte, embora ficando a
sofrer de hidropisia, com uma enorme
barriga, a necessitar de frequentes idas
ao hospital. O pior foi quando descobriu
a mortalha no fundo da arca! «Caiu o
Carmo e a Trindade!» Os impropérios
ouviram-se em Condeixa inteira. Rogou
uma praga para que a mulher e o
alfaiate fossem «desta para melhor»
antes dele. E não é que isso sucedeu
mesmo!
Mais adiante, ficava a latoaria de
Hermenegildo Pinho de Carvalho. A
partir de uma simples folha-de-flandres
e recorrendo apenas a vulgares
ferramentas, surgiam todos os utensílios
indispensáveis naquele tempo: cântaros
para a água, panelas e tachos,
almotolias, bacias e alguidares. Na
época dos finados, a produção
destinava-se à pia homenagem aos
mortos queridos. Simples candeias com
muito vidro e pouca lata ou artísticas
lanternas de folhas lavradas e ramos
retorcidos. Verdadeiras obras de arte!
As mãos que produziam tais objectos,
eram do próprio Hermenegildo de
Carvalho, de seu filho Alberto e de seu
sobrinho Vital Preces.
Procissão na R. Lopo Vaz
Em frente, a mercearia da Carmo
Macia, uma pequena loja igual a muitas
outras da vila, com uma freguesia de
«aponte aí, que depois pago». A
proprietária, viúva e com um filho para
criar, demonstrava poucas expressões
de simpatia. Certo dia, quando varria a
loja, entrou-lhe pela porta um caixeiro-
viajante aperaltado, perguntando pelo
senhor Macio. Ora, aquela era uma
alcunha de que ela não gostava e, ainda
por cima, o marido já tinha morrido. Por
isso, respondeu ríspida: «O senhor
Macio está na raiz da p… que o pariu!».
A casa onde está colocada a placa com o
nome da Rua 25 de Abril, era a barbearia de
António de Oliveira (António do Zé Velho).
Com seus filhos Ramiro de Oliveira e Maestro
Saul de Oliveira Vaio, compôs um trio
responsável pela actividade musical
condeixense, com músicas e poemas
difundidos por agrupamentos folclóricos e,
ainda hoje, escutadas com grande prazer. A
Barbearia Progresso, era a mais importante
do concelho, tendo muitos profissionais
aprendido lá o ofício.
Antigamente havia uma forma de
cortar o cabelo, quando este não
exigia intervenção mais radical,
apenas aparando um pouco na nuca
e sobre as orelhas. Chamava-se «dar
um caldo». Um dia entrou na
barbearia um forasteiro para fazer a
barba. No fim, Mestre António de
Oliveira perguntou: «E agora, quer
um caldinho?» O freguês,
desconhecendo o termo, respondeu:
«Muito obrigado, acabei há pouco
de almoçar!»
Quase a terminar a Rua 25 de Abril,
localizava-se o estabelecimento de José
Júlio Bacalhau (Zé Bacalhau),
mercearia, taberna e, even-tualmente,
casa de pasto. Seu filho, o antigo
Inspector Escolar Júlio da Costa
Bacalhau, contou-me um facto ocorrido
na loja de seus pais. A vila, porque
ficava no eixo rodoviário da estrada
Lisboa-Porto, era ponto de paragem das
camionetas de mercadorias de longo
curso. Normalmente, estes veículos
estacionavam perto de habituais casas
onde po-diam tomar as refeições. O
motorista de determinada empresa, ao
passar pela Mealhada, comprava leitão
e o ajudante só pedia que lhe
colocassem um pouco de molho do
referido leitão, num frasco. Quando
paravam em Condeixa, o condutor pedia
à esposa do Zé Bacalhau para lhe
aquecer o leitão, e comia acompanhando
com um copo de vinho, enquanto o
ajudante só queria que lhe aquecesse o
molho do frasco, vertendo-o depois
sobre o pão. Consistia assim a parca
refeição que a sua capacidade financeira
permitia.
E chegamos à Praça da República!
Mesmo no tempo em que o Terreiro
era limitado pelo velho Palácio dos Sás,
já ali se fazia o mercado bissemanal,
transferido para o Quintalão (actual
Praça do Município) na década de 1980.
A Praça era o verdadeiro centro cívico
da vila. As grandes tílias mandadas
plantar pelo presidente Dr. Madeira
Lopes, em 1953, emolduravam um
espaço onde a «cama» do Rio do Cais,
com a linda «cabeceira» de azulejos
policromados e o agradável aroma das
árvores em flor, despertavam a vontade
de passear nas cálidas noites.
Noutro tempo, em frente à casa do
professor Mateus (hoje Restaurante
Madeira), havia um largo, junção de
duas ruas nascidas da foz da Avenida e
que formavam uma pequena praceta
aproveitada, em 1947, para instalar um
Parque Infantil. Todo murado, tinha os
necessários apetrechos e, coisa curiosa
para a época, possuía um armário com
livros ao dispor das crianças, livros
infantis, é certo, mas livros! (A leitura
deve ser como os pepinos!) Quem
tomava conta do Parque, era a «menina
Otília» (Otília Tavares Rosa).
Após muitos anos de utilização, o
Parque apresentava profundo aspecto
de degradação e foi encerrado, tendo
sido demolido mais tarde, com as obras
de remodelação da Praça.
Ao domingo, a Praça assumia a
verdadeira função cívica. Famílias
sentavam-se nos bancos, trocando
novidades ou mexericos. Senhores
circunspectos palmilhavam
continuamente, de lá para cá, discutindo
«assuntos de relevante interesse». E as
crianças corriam por entre todos,
jogando à «bola». De vez em quando, o
achatado objecto colidia com as pernas
dos presentes e aí vinha o chorrilho de
imprecações. Então, se as canetas eram
do velho Abel Batata, as pragas tinham
conotação mais sinistra: «antigamente,
ainda vinham umas febres que levavam
esta canalhada toda…»
No atrás referido largo também se
jogava à bola, sempre com atenção à
aparição da autoridade, avessa a
brincadeiras de crianças. Quando não
era um certo zeloso funcionário
autárquico, inimigo figadal dos jogos na
via pública! Um dia, jogava-se com uma
bola de borracha, luxo só permitido
quando algum menino rico se juntava à
plebe. No momento em que o esférico
escapou do controlo dos improvisados
futebolistas, surgiu da Rua Direita o
esbirro camarário. Pegou na bola,
retirou do bolso um canivete e, com
requinte de malvadez, retalhou-a em
gomos, como se estivesse a descascar
uma laranja, alheio aos protestos e
rogos da criançada que, assim, via
terminar tão aguerrido desafio.
Bem no meio da Praça erguia-se o
Chafariz, ladeado por candeeiros de
ferro fundido. Dizia-se que ele
representava um cesto de flores,
referência ao brasão da Vila. Ideia
errada porque vários outros existem
exactamente iguais, como o de
Castanheira de Pêra, e cesto de flores
apenas o emblema da vila de Condeixa
possui. Hoje, o Chafariz está colocado
noutro local.
Quando, no final da década de 1920, a
Praça foi alargada e aberta a Avenida,
vários prédios foram ali construídos. Um
deles, o Cine-Avenida, abriu as suas
portas apenas dois dias depois da
inauguração da luz eléctrica. O evento
ocorreu no dia 1º de Dezembro de 1932.
O promotor de tão importante
realização foi Joaquim da Costa, um
empreendedor comerciante responsável
por outras grandes iniciativas que
contribuíram para o desenvolvimento de
Condeixa.
Cine-Avenida de Condeixa
Inicialmente concebido apenas para
cinema, rapidamente lhe foi
acrescentado um palco, o que permitiu
apresentar espectáculos teatrais. Logo
em 1933, o Grupo Cénico Dr. João
Antunes, nessa altura criado,
representou cinco peças e,
posteriormente, mais três e uma revista
musical local, chamada «Secas e
Picadas», que obteve enorme êxito.
Embora sendo muitas vezes utilizado
para variadas manifestações culturais, o
Cine-Avenida foi, principalmente,
cinema. A sala, composta por Balcão,
Plateia e Geral, comportava cerca de
600 lugares. Era ampla, com grande «pé
direito», o que lhe conferia óptima
ventilação.
Quase desde o seu início, ao sábado à
noite era projectada uma breve sessão
de cinema intitulada por nós
«experimentação», destinada
supostamente a verificar se a fita estaria
apta para a exibição dominical. Porém,
segundo se dizia, Joaquim da Costa fazia
uso daquele método como forma de
incutir nas crianças o gosto de ver
cinema. Comentava-se até que, quando
o questionavam a propósito, respondia:
«Estes vão ser os meus clientes de
amanhã!» Extraordinária forma de agir!
Numa época de profunda economia, sem
qualquer tradição publicitária, alguém
se dispor a fazer despesas só para
adquirir futuros frequentadores do
cinema, é deveras digno de admiração.
No meu tempo, as crianças brincavam
na Praça com espadas e pistolas de
madeira, imitando peripécias de Tyrone
Power, Errol Flynn ou Tom Mix, actores
que viam na tela.
Para a «experimentação» não tocava
a campainha que ao domingo, estridente
e continuadamente chamava os
retardatários à função. Apenas se
acendiam os globos brancos por cima do
portão, sinal para a garotada, há muito
com os olhos fitos na porta vermelha. E,
quando ela se abria, entrava de roldão
por ali dentro, sem o estorvo dos
porteiros. Mas, ao domingo, também era
possível entrar sem comprar ingressos.
Estes estavam divididos por um
picotado. A parte mais larga ficava com
os porteiros e a mais estreita, com a
indicação do nº de fila e lugar, ficava na
posse do espectador. No dia seguinte,
quem procedia à limpeza do cinema,
despejava o lixo para o Quintalão (actual
Praça do Município). Com esse lixo iam
os inutilizados talões. Nós só tínhamos
de lá ir buscá-los e, com muito jeito,
colar as duas metades. Para a coisa
parecer mais verdadeira, o Tónio
Galhardo (António Pequicho Moita),
filho de alfaiate, refazia o picotado na
máquina de costura do pai e passava a
ferro os bilhetes obtidos. Pareciam
novos! Cada sessão de cinema tinha cor
distinta nos talões. Se possuíamos
alguns com a cor certa, bastava esperar
que as luzes se apagassem para, na
semi-obscuridade, enganar os porteiros
e entrar.
O Cine-Avenida, após mais de trinta
anos de actividade, terminou os seus
dias como celeiro da Cooperativa de
Condeixa. Mas, ainda hoje, quando vou
a um cinema, não posso deixar de
recordar o grande candelabro de globos,
lá no alto, o tango «Rosas Vermelhas»
invariavelmente tocado ao intervalo e a
«experimentação», parte integrante das
nossas actividades lúdicas.
Depois da Igreja, o edifício dos Paços
do Concelho, que foi mandado construir
pelos Condes de Portalegre mas é
conhecido como Paço do Capitão-Mor ou
Palácio dos Figueiredos da Guerra, da
Quinta de S. Tomé. Efectivamente esta
família foi sua proprietária, mas a
pedra-de-armas que está colocada sobre
o portão, é dos Cabrais, que adquiriram
o edifício. Mais tarde, através de
heranças de casamento, o prédio voltou
à posse dos Figueiredos da Guerra.
Após ler um texto da Monografia de
Santos Conceição, fui certo dia à arruinada
capela da Quinta de S. Tomé e encontrei,
inserida numa parede quase a ruir, a velha
pedra que provavelmente esteve a encimar o
portão atrás referido. Tem a formato
rectangular e é ladeada por duas volutas em
pedra, uma invertida da outra. Lavrada em
pedra calcária (Ançã?) está decorada com
interessante bordado de folhas (acanto
gótico?), em relevo. No centro tem um escudo
no qual estão cinco folhas de figueira postas
em sautor, duas em cima, duas em baixo e
uma no meio, esta ladeada pelas letras A, do
lado esquerdo e I do lado direito. Em timbre,
um elmo com leão coroado. Por cima desta
pedra, um escudo mais pequeno em tudo
semelhante ao anterior mas sem leão sobre o
elmo.
Prevendo a natural derrocada do
restante corpo da capela e consequente
quebra dos símbolos heráldicos, solicitei
em 2005 ao Presidente da Câmara,
engenheiro Jorge Bento, que os
mandasse retirar do precário local, o
que foi feito e, segundo me informou,
transportados para o estaleiro da
Câmara, junto ao cemitério. Não será
certamente o melhor sítio para os
guardar, mas manda quem pode!
Em frente aos Paços do Município, a
velha Feira das Galinhas é hoje um
bonito jardim que mais destaca o
Monumento aos Mortos da 1ª Grande
Guerra, o primeiro a ser erigido no País,
exactamente em 9 de Março de 1921.
Quando o largo era um simples terreiro,
realizavam-se lá espectáculos de
saltimbancos, grupos de acrobatas que
palmilhavam o País, actuando nas
pequenas localidades.
Voltando à Praça, há um edifício todo
revestido de pedra, único exemplar no
concelho, no qual está ainda instalada a
Farmácia Rocha. O Dr. Júlio Pires da
Rocha, pai das actuais proprietárias, era
licenciado em Farmácia e inventor de
vários medicamentos, que manuseava
no seu laboratório.
Condeixinha
A Farmácia Rocha, até há poucos
anos, configurava-se como um
característico estabelecimento do século
XIX. Armários pintados de vermelho
onde se alinhavam os medicamentos, um
pequeno balcão e no centro deste, a
balança de precisão encerrada em
cofrezinho de madeira e vidro. Embora a
maior parte dos remédios fosse já de
venda corrente, ainda era possível
adquirir linhaça para fazer papas que,
bem quentes, tanto davam para
amolecer um furúnculo como para curar
uma pneumonia, «pomada das
infecções», negra como o pez, vendida
em pequenas caixas cilíndricas e «poses
p’ró estômago» (assim pedidos),
soluções alcalinas ou, simplesmente,
bicarbonato de sódio. Até meados do
século XX, o passeio da Farmácia servia
como local de tertúlia onde, ao fim da
tarde, se reuniam as pessoas gradas da
terra (médicos, juiz, pároco, etc.)
Ao lado, a entrada de Condeixinha,
uma nesga entre prédios quase a
tocarem-se lá no alto.
Condeixinha é muito antiga. Santos
Conceição, na sua Monografia
«Condeixa-a-Nova», refere nas páginas
83/84 ter lá existido uma Gafaria,
aquando do surto de lepra que assolou a
Europa no século XII. Estaria instalada
num prédio do Mosteiro de S. Marcos,
em frente a uma casa que tinha um
nicho com a imagem de Nossa Senhora
da Assunção, a qual veio a dar nome à
rua. Mais tarde, esse nicho passou a
abrigar a imagem do Senhor dos Passos.
Ora, Rua da Assunção, só existe uma em
Condeixa e, curiosamente, com um
nicho do Senhor dos Passos. A ser
verdade, colocaria o local coevo da
formação de Condeixa, da qual herdou o
nome em diminutivo. Seja como for, a
Condeixinha não se pode dar o redutivo
nome de rua, pois ela é todo o conjunto
de casas com becos, vielas e travessas, a
formar um extenso aglomerado
habitacional composto pela própria rua,
mais os Pelomes, Lapa, Entre-Moínhos,
Várzea e, antigamente, estendendo-se
até ao Travaz.
Quando não tinha o indesejado
estatuto de estrada escoadora do
trânsito que demanda o IC2, era uma
rua macadamizada (que raio de nome!),
com as casas encostadinhas umas às
outras, lembrando a necessidade
medieval de protecção colectiva. No
inverno, a água corria por aquele
caneiro natural, formando sulcos na
areia branca do solo batido. Perto da
cortada para a Lapa, onde uma súbita
corcova mais acentuava o desnível, era
quase impossível circular. Felizmente,
nesse tempo as rodas das carroças eram
altas e os animais que as puxavam
sabiam onde colocar as patas, evitando
os buracos do caminho.
Os veículos utilizadores deste trajecto
eram maioritariamente carroças, por
três razões fundamentais: a oficina de
ferrador, «mecânico» da força de
tracção das ditas carroças, a tanoaria,
onde se mantinham os rodados sempre
funcionais e os moleiros, residentes ou
não, passando no caminho do «carreto»,
a viagem levando a farinha e na volta
trazendo o grão para moer nos vários
engenhos ali existentes.
Automóveis, raros, a não ser o Austin
8 da Dr.ª Maria José Bacelar ou o
Vauxhall do Zé Curto.
Na velha Condeixinha, tal como a
conheci, palpitante na labuta diária mas,
paradoxalmente, modorrenta ao ritmo
dos dias passados sem novidades, como
afinal no resto da vila, à noite os
moradores sentavam-se consoante o
local onde viviam, no passeio do
Quintas, no balcão do «Cara de Velha»,
junto à Casa dos Arcos ou lá em baixo,
no rebato do António Braga, frente às
escadas de pedra, em amena conversa,
não tão amena assim, quando era
puxado um assunto que ofendia alguém
presente. Arrufos de vizinhos, depressa
esquecidos.
E bailes? Ou não fosse o bairro
morada de instrumentistas da Música
Nova ou da Música Velha, com esta a
ter lá a sua sede.
Mal rompiam as festas aos santos
populares, por todos os lados surgiam
fogueiras iluminando a noite e as
sardinhas crepitavam nas brasas. O
«palhinhas» corria de boca em boca,
tentando acalmar uma sede nunca
saciada. Um naco de broa e uma
sardinha de molho escorrente
compunham a ceia, prolongada noite
dentro, e os rapazes aproveitavam para
mostrar a valentia, saltando as fogueiras
de alterosas chamas.
Logo à entrada de Condeixinha, a
marcar o cunho operário do bairro, uma
oficina de ferrador, arte entretanto
desaparecida, por falta de bestas que
usem ferraduras. A loja estava instalada
num velho prédio, profundo e escuro,
com desconjuntado portão em frente do
qual estacionavam carroças e animais. A
urina e excrementos destes formavam
forte e pestilento cheiro, atraindo toda a
espécie de bicharada.
Lá dentro, o tronco, uma estrutura em
madeira onde se amarravam bois,
cavalos e burros, para a ferra. Um
aprendiz de ferrador accionava o grande
fole de madeira e cabedal, a soprar as
brasas que na forja punham o ferro ao
rubro para mais facilmente ser batido
na bigorna, até formar a ferradura. Com
ela ainda quente, aplicavam-na nas
patas dos animais. O fumo e o cheiro
acre do casco ao ser queimado,
transbordavam para a rua.
Mesmo em frente, a casa da Ti Maria
Barbeira, sardinheira. O filho Octávio
(Távio Barbeiro) exercia a profissão de
sapateiro no acanhado rés-do-chão.
Recordo dele a figura magra de paciente
gástrico. Para combater o mal que o
levaria precocemente à cova, colocava
grandes quantidades de bicarbonato de
sódio na palma da mão e engolia mesmo
sem beber água.
O filho José (Zé Chorina), foi meu
condiscípulo. Das muitas aventuras
partilhadas, recordo a mais marcante.
Naquele tempo era hábito a malta ir
para os campos caçar passarada, com os
«elásticos» (fisgas) e as «costelas»,
armações de arame e molas de aço. Um
dia, alguém teve a infeliz ideia de
construir espingardas artesanais.
Compunham-se de um cano de ferro
galvanizado, tamponado num topo e
com um corte em V por cima, onde se
colocava a pólvora do rastilho, prendia-
se o tubo numa rudimentar coronha de
madeira e, enquanto o atirador fazia
pontaria, um companheiro chegava fogo
ao rastilho e o tiro saía. Só que com o
Zé, saiu também o tampão atingindo-o
num olho, que ficou bastante
maltratado, mas felizmente foi
recuperado. Este quase drama teve o
condão de acabar com a estúpida ideia
de construir armas de fogo.
Ao lado, moravam as Patitas,
simpáticas senhoras com mãos de ouro
para confeccionar bolos. Depois, de
porta em porta, visitavam fregueses
certos transportando os deliciosos
pastéis em tabuleirinhos de verga,
cobertos com alvo pano.
Saltavam-me os olhos gulosos ao ver
aquelas delícias, especialmente as
cornucópias recheadas com creme de
ovos! Eram estas adoráveis criaturas as
únicas pasteleiras da terra, num tempo
em que os estabelecimentos do ramo, os
cafés, por sinal apenas três, davam
pouca importância à especialidade.
Do outro lado da rua, a casa da
Requetinha Rocha, um bonito prédio
que tinha ao centro, resguardado com
portas de madeira, um nicho com o
Senhor dos Passos (seria o mesmo
referido por Santos Conceição?). O
prédio, a ameaçar ruína, foi demolido e
no seu lugar construído um feio edifício,
também com nicho, sem portas de
madeira mas sim grades de ferro a
aprisionar uma imagem só presente nos
dias de Passos.
Depois, o acesso aos Pelomes!
Pelomes ou Pelames, a etimologia é
obscura! Há quem diga terem ali
existido pombais, nos quais se
aproveitavam os excrementos das
pombas para curtir peles. Daí o nome,
Pelames, local de preparação de peles,
ligeiramente alterado através dos
tempos. Verdade ou não, certo é que
este era um dos mais populares sítios de
Condeixinha! Logo de começo, um rio a
aparecer magicamente por debaixo de
uma parede, mas depressa a sumir-se,
envergonhado da ousadia, sob a casa do
Dr. Juiz!
Na apertada curva do minguado
caminho, o quintal da Ti Rosalina. Hábil
na ciência de tirar dores musculares e
endireitar ossos, com azeite e mãos
mágicas fazia desaparecer num piscar
de olhos o torcicolo mais persistente. Do
muro, pendiam para a rua os ramos de
uma figueira, de figos estaladiços e a
pingar mel, verdadeira tentação para a
garotada.
Dessa figueira ficou uma expressão
ainda hoje utilizada e que demonstra os
difíceis tempos de então. Nessa altura,
quando a fome era companheira de
muitos lares, a caça de pequenas aves e
a fruta furtivamente apanhada nos
quintais, se não satisfaziam as
necessidades alimentares, pelo menos
acalmavam no estômago o bichinho
inquieto. Às crianças rogantes de um
pedaço de pão, respondiam as mães
resignadas com a miséria: «Vai ao figo
da Rosalina!».
Continuando o caminho, num desnível
de terreno, a Fonte da Costa, curiosa
gruta orlada de fetos e avencas, com o
fundo de areia branca palpitante de
bolhas ansiosas por chegar à superfície.
Mas os Pelomes têm também a casa
do Dr. Juiz! Este belo solar do século
XIX é hoje uma das poucas casas antigas
em perfeito estado de conservação,
graças ao proprietário, Fortunato Pires
da Rocha.
Seu pai, o Dr. António Pires da Rocha,
ilustre condeixense, exerceu durante
algumas décadas o cargo de Juiz de 1ª
classe, em várias Comarcas. Ainda
estudante e em plena monarquia, era
acérrimo defensor dos ideais
republicanos. Em 5 de Outubro de 1910,
já licenciado, ocupou o cargo de
Administrador de Concelho e, em 1914,
foi eleito Presidente da Câmara.
De trato afável e integridade a toda a
prova, o Dr. Juiz era estimado e
considerado por quantos o conheciam. A
sua porta, sempre aberta, recebia da
mesma forma os ilustres visitantes ou a
mais humilde pessoa buscando conselho
jurídico ou até auxílio monetário.
O solar fazia lembrar as casas senhoriais
descritas por Eça, Camilo ou Aquilino: portas
franqueadas, mesa farta e pessoas sempre a
entrar e sair. Quando se subiam as escadas
de boa pedra de Condeixa-a-Velha, surgia a
pesada porta a dar acesso ao corredor. À
esquerda, a cozinha, imensa, com uma lareira
sempre acesa. A esposa do Dr. Juiz, D.
Floripes, afadigava-se aturando e, muitas
vezes, alimentando os muitos amigos dos
filhos. Apesar disso, ainda tinha tempo para
cuidar do moinho que, nos fundos da casa,
transformava o grão em farinha, à época
indispensável, para mais numa casa de
grande consumo como a sua.
Além, no antigo beco do Seiça
(Travessa Nunes Vidal), havia a tasca do
Loirinho, um homem peculiar. Embora
proprietário de estabelecimento, vivia
com muita pobreza. Não seria alheio o
facto de serem os próprios fregueses a
servir-se dos produtos em venda e a
depositar a quantia numa ranhura do
balcão. Quando depositavam!
Solteirão, um dia resolveu deitar os olhos
para uma vizinha. Naturalmente tímido,
pediu a ajuda de outra pessoa. Esta lembrou-
o que a senhora em questão era coxa.
Resposta pronta dele: « Mas eu não a quero
para jogar futebol!». Pouco amigo de
trabalhar, já perto do final da vida, uma
doença tolheu-lhe as mãos. Quando
lamentavam o facto, respondia com aquele
seu humor irónico: «Deixa lá, eu também
nunca precisei delas…».
E por falar em figuras curiosas, em
Condeixinha vivia também o Zé Caleiras,
carpinteiro de móveis modestos. Nunca
recusava os pedidos da criançada para fazer
rodas ou transformar em carretas as caixas
de sardinha rapinadas à Ti Maria Barbeira.
Com elas desciam, depois, os miúdos
vertiginosamente a ladeira. Conta-se que, um
dia, o Zé Caleiras, indo de bicicleta atropelou
uma mulher. Em vez de socorrer a pobre
estatelada no chão, disse: « Ó Maria, calha
bem porque queria falar contigo!».
A irmã dele era especialista a «tirar o
quebranto», uma prática que consiste
na utilização de um prato com água
onde se vão vertendo gotas de azeite,
acompanhando o acto com rezas, a fim
de exorcizar pragas e mau-olhado.
Casa dos Arcos
Mais adiante, a Casa dos Arcos ou
Casa das Colunas, uma construção do
século XVIII, com três arcos de volta
completa (dois estão fechados), terraço
e águas furtadas. Esta moradia está
quase em total ruína, de nada valendo a
tentativa feita há alguns anos para
evitar a queda das paredes, que podem
desmoronar-se a qualquer momento.
A Câmara pretendeu adquiri-la mas
uma questão de valores monetários
impediu em tempo próprio a
concretização da compra, com grave
prejuízo para a vila.
De facto, o Dr. Deniz Jacinto, ilustre
condeixense, pretendia, na altura, doar
a Condeixa o vasto espólio que possuía,
composto por livros de sua autoria e de
outros escritores, diversos trabalhos
sobre Gil Vicente, de quem foi emérito
estudioso, o guarda-roupa da
personagem «diabo», envergado nas
peças vicentinas em que participou e se
notabilizou no teatro universitário e,
ainda, a Comenda da Ordem do Infante
D. Henrique com que foi agraciado pelo
Presidente da República.
A Casa dos Arcos foi o local escolhido
para instalar o Museu, mas a tal
mesquinha questão da compra do imóvel
e a falta de interesse da Câmara em
proporcionar outro local, contribuíram
para impedir a sua resolução. O espólio
acabou por ser doado ao Museu Paulo
Quintela, de Coimbra!
Em frente, no local actualmente de
acesso aos pavilhões da Santa Casa da
Misericórdia, existiam alguns prédios.
Um deles era habitado pelo Américo
Pato, (Olho e Meio). Era um homem
muito doente, atingido pela tuberculose,
esse terrível mal causador de tantas
mortes.
Impedido de trabalhar pela doença
que o minava, não tinha meios de prover
a subsistência da família. Resolveu,
então, adquirir na oficina do Augusto
Braga uma bicicleta e fazer um sorteio,
para o qual vendeu as respectivas rifas.
É claro que o lucro final seria pequeno,
mas ele tinha a esperança de o prémio
calhar a algum benfeitor que lhe
permitisse fazer novo sorteio.
Infelizmente, isso não sucedeu! O
contemplado, insensível ao drama,
exigiu o velocípede! Tristes tempos,
quando um operário, após passar uma
vida de duro trabalho, quando já não
tinha serventia, apenas lhe restava um
pau e um saco para se juntar à horda de
pedintes famintos. E não se pense que
essa situação se passava em tempos
remotos! A parte substancial dos
direitos e condições sociais, infelizmente
agora em risco, apenas foi adquirida
após a Revolução de Abril!
O Américo tinha dois filhos: o António
e o Américo, este só conhecido como Zé
Cletra. O António, quando era criança
gostava de ir para a Igreja ajudar no
arranjo de andores e altares. Certa vez,
auxiliava Álvaro Pedro Augusto a
decorar a Capela de Nª Sª da
Conceição, em cuja base está uma
imagem de S. António. Uma deficiente
instalação transportava a energia para
iluminar a Virgem. Ao tocar num fio e
desconhecendo o efeito do choque
eléctrico, gritou: «Fuja senhor Alvarito,
que o Santo Antoninho está danado!»
Condeixinha tem três espaços
distintos. Desde o início e até à cortada
para a Lapa é densamente habitada,
com as casas a sucederem-se numa
linha continua. Depois, até Entre-
Moinhos, apenas algumas casas
dispersas e, a partir daí, novo
aglomerado a ser interrompido pela
Estrada Nacional.
Ao virar para a Lapa, a casa outrora
acastelada da Quinta da Lapinha, antigo
solar dos Cunhas, possuía uma linda
gruta de tufo calcário juncada de densa
vegetação, com a água a formar
pequena cascata. Nos anos 40 do século
vinte, chegou a ser atracção turística de
Condeixa. Que pena não continuar a
fazer parte de um roteiro da vila!
Do outro lado, a Quinta da Lapa, ou
Morgadio da Lapa. «…Manuel Sequeira
Coutinho, fidalgo de geração nascido em
Tentúgal, era o senhor do morgadio de
N. Sª da Lapa… no princípio do século
XIX pertencia ao Bacharel João Paulo da
Silva, natural de Condeixa. Um século
depois, a velha casa apalaçada dos
Coutinhos foi alugada ao Rev. Dr. João
Augusto Antunes que fez dela sua
residência e sede do Orfeão de
Condeixa» (elementos retirados da
Monografia «Condeixa-a-Nova» de
Santos Conceição, 2ª edição, páginas
66/67)
O Padre Dr. João Antunes, grande
vulto intelectual, impulsionador da vida
cultural de Condeixa, criou em Condeixa
o primeiro Orfeão popular do País.
Recorrendo a reputados mestres,
António Gonçalves, João Machado, Abel
Manta, Pedro Olaio, etc., fundou
também uma Escola de Artes e Ofícios,
destinada a desenvolver nos inúmeros
artistas da terra, com conhecimentos
apenas empíricos, técnicas de desenho
industrial, noções de pintura, cerâmica,
serralharia e modelação. Da importância
dessa Escola, nos dá conta o romancista
condeixense Fernando Namora: «…
entretanto a vila multiplicava-se em
pintores de domingo, marceneiros-
artistas, ferreiros, compositores
populares…» Tanto os ensaios do Orfeão
como as aulas da Escola, tinham lugar
no grande solar. O prestígio do Dr.
Antunes granjeou-lhe a amizade de
destacados vultos intelectuais da época:
o poeta Afonso Lopes Vieira, o pianista
Rey-Colaço e o musicólogo Ruy Coelho,
eram visitas assíduas da Quinta, tendo
Ruy Coelho, encantado com a paisagem
desfrutada das janelas da casa,
composto uma bela melodia intitulada
«Pôr-do-sol em Condeixa».
Após a morte do Dr. Antunes, a quinta
passou a ser moradia do proprietário,
Lino Pedro Augusto. Seu filho Alvarito,
um homem de rara sensibilidade
artística, ao longo da vida reuniu um
valioso acervo constituído por alfaias
agrícolas, artesanato vário, colecção
numismática, pinturas e documentos
antigos. Este espólio pertence hoje a sua
filha e seria importante, para memória
futura, a Câmara procurar adquiri-lo.
Continuando a descer Condeixinha e
ao cortar para a Várzea, num ângulo
formado com estrada do Penedo,
construiu o Zé Pato a casa quando foi
despejado da que habitava, na Senhora
das Dores, porque nesse local ia ser
edificada a central elevatória de água.
José Rodrigues Pato, pedreiro, vivia com
grandes dificuldades porque tinha
muitos filhos. Quando um dia o Dr.
Celso Franco, primeiro dentista a
montar consultório em Condeixa, lhe
perguntou porque continuava a fazer
filhos, vivendo tão mal, respondeu-lhe:
«O que quer, senhor Dr., isto é o arroz
doce dos pobres!» Hoje existem outras
formas de passar o tempo. Por isso, as
famílias são tão pequenas!
Mesmo ao fundo da ladeira de
Condeixinha, estão as «Escadas do Zé
Curto», antigamente assim designadas,
embora o estabelecimento deste fosse
mais adiante. O Zé Curto, perdão, os
Zés porque a loja era gerida por pai e
filho, ambos com o mesmo nome, faziam
amiúde alarde da fortuna, afirmando
medirem o dinheiro que tinham, em
alqueires de moedas. No entanto, eram
pessoas muito simpáticas. O Curto pai
costumava brincar comigo prometendo
emprestar-me a «cabeça da víbora»,
hipotético amuleto infalível para
conquistar raparigas. A loja, uma
mistura de adega, mercearia, venda de
lenha para queimar no forno, agência de
seguros e «banco particular»,
comercialmente dominava pelo menos
toda a baixa Condeixinha. Mas os lucros
daí advindos não seriam significativos.
Muitas vezes, assisti a pequenas compras de
cinco ou dez tostões de açúcar, café ou arroz.
É certo que «grão a grão, enche a galinha o
papo»; no entanto, penso terem sido os lucros
mais significativos obtidos através do
empréstimo de dinheiro com altos juros.
Já no fim da rua, perto do cruzamento
com o IC2, morava António Alves (Tónio
Amâncio), pintor da construção civil.
Um artista! Dava gosto vê-lo pintar os
finíssimos traços nos quadros das
bicicletas.
Profundamente supersticioso, muito
dado a acreditar em coisas do além, dos
muitos episódios que me contou,
recordo dois.
Dizia a lenda que existia, junto à
Capela da Lapa, um tesouro escondido
sob a terra. Como já tive oportunidade
de referir, aqueles eram tempos de
muitas dificuldades. Um tesouro
despertava a cobiça nas cabeças mais
equilibradas.
Acompanhado pelo «Cavalo Ruço»,
foram tentar descobrir o maná, munidos
de pás e enxadas. Dirigiram-se ao local
e abriram um buraco no chão. Quando a
cova já estava suficientemente profunda
sem nada encontrarem, resolveram sair.
Nesse momento, alguém com voz
profunda perguntou: «Precisam de
ajuda?».
A noite era negra, o local ermo e a
consciência pesada! Pensaram tratar-se
do demónio que vinha castigá-los por
ousarem perturbar as profundezas. No
dia seguinte, nem se lembravam como
tinham chegado a casa! Quanto ao
tesouro, ainda estará no mesmo sítio,
porque depois de conhecido o sucedido,
ninguém mais se atreveu a procurá-lo!
De outra vez, vinha da Eira da
Caldeira, em frente à cortada para o
Travaz, onde « trazia uma terra
amanhada ao ano». Já era noite e o local
nesse momento não tinha iluminação
nem vivalma. Parou para levar um
cigarro à boca e quando procurava os
fósforos no bolso, ouviu a seu lado dizer:
«Precisa de lume?». Olhou e viu uma
figura toda vestida de preto. Julgando
que Lúcifer voltava para o punir pela
aventura da Lapa, desatou a correr
direito a casa, onde chegou certamente
com as calças bastante malcheirosas.
Estas histórias, contadas por quem as
viveu, ou imaginou, não davam vontade
de rir, antes pelo contrário. Muitas
outras lhe ouvi e a minha mente juvenil
ficava sempre bastante impressionada!
Mas nem só a vila tinha locais de
interesse. Embora a Praça fosse o lugar
preferido para brincadeiras, não era
contudo o único local de diversão,
principalmente durante o dia. Às vezes,
até nos aventurávamos a ir às Ruínas,
nesse tempo sem alguém que impedisse
a livre entrada e onde encontrávamos
nos canais subterrâneos moedas que
depois vendíamos por meia-dúzia de
tostões a um comerciante da terra.
Outro sítio lindo era a Quinta de S.
Tomé!
Ao olhar agora aquele edifício em
derrocada, ninguém imagina como era
agradável o local. Tinha três majestosos
portões de ferro, um para cada acesso, que
eram abertos de manhã ao toque das
Trindades, sinal público dos sinos da Igreja
dando início ao trabalho rural, e eram
fechados às Trindades, no final do dia solar.
Dentro apenas ficavam a família Pintaíto, que
cuidava o melhor possível da manutenção da
casa, e a família Ameixoeiro, que porfiava
para que o moinho se mantivesse funcional.
Todo o espaço envolvente da quinta se
multiplicava em sítios misteriosos. A causa de
toda a beleza era o rio que, vindo de
Alcabideque, bordejava a quinta. Este rio,
lindo em toda a extensão, tinha para nós
maior encanto após a Atadoa, o Marachão,
onde uma árvore, possivelmente salgueiro,
estendia os ramos formando trampolim
baloiçante para mergulhos. Mais perto, a
necessidade de abertura do canal que
atravessava a quinta a fim de accionar o
moínho, motivou a formação de um espaço de
terreno de forma triangular, rodeado de água
por todos os lados, embora na parte mais
larga o elemento divisor não passar de
insignificante fio de água.
A este lugar, chamávamos «a ilha».
Junto, um alargamento do rio formou a
«Baixeira» -Bajeira, na gíria -, outro
óptimo lugar para nadar e onde ainda
cheguei a ver pescar barbos e ruivacos
(ao calcão), quando o peixe abundava.
Depois, na continuação da passagem,
loureiros e figueiras bravas quase
cobriam o rio. Não tanto que nos
impedisse de nadar junto ao «Olho».
Com tanta água por todo o lado, quem
sentia sede? « Água corrente não mata
gente, nem de noite nem de dia, nem à
hora do meio-dia, Padre-Nosso, Avé-
Maria!» Afastavam-se as ervas, fazia-se
o sinal da cruz e bebia-se na concha da
mão!
Quando vínhamos de nadar do
Marachão ou da Bajeira, sentávamo-nos
à sombra dos eucaliptos da ilha, a fumar
cigarros de barbas-de-milho
embrulhadas em papel. Confesso não
me recordar do gosto desses
improvisados paivantes, mas devia ser
horrível, misto de palha e papel
queimado. No entanto, dava-nos a
agradável sensação de adultos, a deitar
fumo pela boca. O nariz não entrava
nessas funções porque fazia chegar as
lágrimas aos olhos!
Depois, íamos para o jardim
abandonado, brincar na «árvore dos
macacos», cujos ramos (ou raízes?)
formavam curioso entrelaçado,
permitindo-nos saltar de ramo em
ramo, imitando aventuras de
Tarzan. Esta espécie vegetal,
parece que rara, foi abatida para
madeira, perante a indiferença de
quem devia ter a responsabilidade
de a proteger!
Como já referi, a Quinta de S. Tomé
está hoje em completa ruína. A capela,
parte integrante do edifício, já não tem
os valiosos azulejos e o telhado abateu.
Porém, no seu solo existe ainda o
túmulo dos antigos proprietários,
pessoas que fizeram parte da história de
Condeixa.
A arruinada Quinta de S. Tomé
Por tudo quanto acabo de descrever,
a Quinta de S. Tomé faz parte do meu
imaginário e é com grande mágoa que
tenho assistido à degradação daquele
simbólico edifício, quiçá a exploração
agrícola mais antiga de Condeixa.
Já tive ocasião de referir algumas
figuras típicas de Condeixa. No meu
tempo, muitas outras existiam. O Lisboa
era um vagabundo, mas excelente pintor
da construção civil, que andava sempre
embriagado. Numa noite de chuva,
estava ele caído junto a uma valeta,
perdido de bêbado. O padre Pimenta,
pároco da vila, vendo-o naquele estado,
comentou: - «Que miséria!» Ao que o
Lisboa respondeu: - «Miséria não,
senhor Prior, fartura, fartura!» Referia-
se certamente à quantidade de álcool
ingerida. Mas, na verdade, havia
miséria! Não só no facto de o Lisboa se
embriagar, o que seria suficiente.
Lembro-me de, durante a 2ª Guerra
Mundial e mesmo após esta, ver passar
por Condeixa grupos de homens sujos e
rotos, que percorriam o país procurando
trabalho. Chamavam-lhes «estradeiros»,
nome ainda hoje considerado ultrajante
quando aplicado a alguém. Esses
homens viviam do que podiam, pedindo
ou roubando. Por vezes, algum ficava
pelo caminho porque arranjava trabalho
ou por qualquer outra razão. Seria o
caso do Lisboa, do qual ninguém
conhecia parentes. Ou do André, outra
figura típica. Dormia em qualquer
buraco, de preferência num terreno
vago na Avenida. Comia o que lhe
davam, mas não pedia nada. Por sinal,
muitas vezes recusava rudemente as
ofertas. Recordo um episódio passado
com a esposa do Dr. Rebelo, veterinário
municipal, quando ela lhe disse: «Ó
André, passa lá em casa para te dar
umas calças do senhor Dr.» O André,
perguntou: «Então e o casaco?», tendo
ela respondido: «O casaco não, só as
calças!». Então ele, pondo aquele ar
provocante, disse: «Vá varda… com
elas!».
Irreverente, rude e mal-educado, este
André do qual os garotos tinham um medo
atroz, nem se atrevendo a colher os belos
figos da carregada árvore junto ao seu
tugúrio, se era suposto ele estar presente.
Como andava sempre nauseabundo, um dia
as irmãs Cavaca, Soledade e Conceição,
ajudadas por outras raparigas de
Condeixinha, resolveram dar-lhe banho e
vesti-lo decentemente. Só que o André
adoeceu com gravidade. Seria porque o
esterco funcionava como antídoto contra
viroses?
No Outeiro vivia também uma figura
excêntrica. João Cavaca (João da Costa),
era sapateiro. Teve certo dia um
acidente e ficou psicologicamente
afectado. Andava sempre muito direito,
com ar marcial. De repente parava,
levantava os braços e estalava os dedos,
levantando uma perna. Depois, seguia
imperturbável o caminho. Um dia entrou
numa loja de ferragens que havia entre
a Igreja e a actual Câmara. A
proprietária, D. Conceição Pires
Machado, estava ao balcão e ele pediu:
«Ó Conceição, quero cinco tostões de
pregos». Ela, estranhando o abusivo
tratamento, disse: «Ó Conceição, não!
Dobre a língua!» Retorquiu ele: « Se
calhar quer que a trate por excelência?»
Respondeu a senhora: «Não sou, mas
podia ser!» João Cavaca, fazendo o
característico gesto e desinteressando-
se dos pregos, saiu dizendo: «Também
eu! Também eu!»
O Miguel Atílio, correeiro de
profissão, aliás muito habilidoso, tinha
como defeito ser fiel devoto do deus
Baco. Infelizmente para quem precisava
dos seus serviços e, fundamentalmente,
para ele próprio, passava mais tempo a
cozer as bebedeiras que a coser os
cabedais. Não obstante, era muito
simpático. Dava a ideia de possuir uma
mentalidade de adolescente, com toda a
irreverência e irresponsabilidade da
juventude. O local do cemitério, nesse
tempo bastante ermo e escuro, num dia
de finados brilhava com as luzes de
muitas velas sobre as campas. No
entanto, algumas pobres sepulturas
mantinham-se tristes e abandonadas,
sem que alguém tivesse a caridade de
lhes colocar pelo menos uma flor.
Porquê? Não seriam os tristes despojos
humanos abrigados naqueles pedaços
de terra, tão dignos como os outros, do
culto dos vivos? Para esta questão,
encontrou o Miguel Atílio resposta!
Retirou velas que estavam em profusão
só nalgumas campas e distribuiu-as
pelas que nada tinham. Após este acto
equitativo, foi celebrar com boa
quantidade de vinho, indiferente à
opinião de espíritos conservadores que
consideraram o acto como sacrilégio.
Muitas vezes também juntava um grupo
de crianças com o qual ia buscar canas
para fazer arcos festivos. Depois,
percorriam a vila cantando e gritando
como alegre e barulhenta charanga. É
claro que espírito tão livre e indiferente
às normas das pessoas sisudas, teria de
sofrer forçosamente a incompreensão
das autoridades ríspidas. Junto às
grades da cadeia, lá estavam, então, as
suas amigas dilectas, as crianças,
conversando, rindo e gizando novas
aventuras!
Procissão do Senhor dos Passos
Para terminar a minha maneira de
retratar a Condeixa do meu tempo, vou
descrever a mais antiga manifestação de
fé realizada na vila, a Procissão do
Senhor dos Passos, acto religioso de
grande significado e que se apresenta
sempre com a solenidade própria da
evocação da Paixão de Jesus Cristo na
longa caminhada para o Calvário.
Trata-se de um evento tradicional,
embora até hoje não tenha sido possível
determinar a data da origem. Sabe-se,
no entanto, que este género de
procissões tal como chegaram ao nosso
tempo, teve começo no decorrer do
século XVII.
O livreiro e atento estudioso da
história de Condeixa, Isaac de Oliveira
Pinto, entre muitos trabalhos de
pesquisa, legou-nos um manuscrito
intitulado: «Irmandade das Almas e
Senhor dos Passos, da freguesia de
Condeixa-a-Nova. 1682-1953.» Deixando
bem claro que não pretendo apoderar-
me do estudo cuidado e profundo do
mencionado historiador, passo a
transcrever excertos do referido
manuscrito, também com a intenção de
esclarecer dúvidas que ainda hoje
persistem:
«…a Confraria das Almas só em
Julho de 1885 passou a chamar-se
«das Almas e Senhor dos Passos»,
mas numa acta de 25 de Agosto de
1799, li o seguinte: «logo pela
manhã irá o andador para a Igreja
limpar a imagem e todos os
pertences…» Em 1799 pois, já a
Procissão se fazia. Mas é bem
possível que venha pelo menos do
ano de 1752. Esta data está
marcada num painel de azulejos do
Passo da Rua Direita (actual Rua
Dr. Fortunato de Carvalho Bandeira.
A designação de Passo, refere-se a
um nicho onde se encontra a
imagem sacra.)
Em 1910, reuniu a Mesa para adquirir
nova imagem do Senhor dos Passos. A
que existia estava a precisar de reparos
e estes importavam grossa maquia. Mas,
mesmo que o trabalho fosse perfeito, os
mesários recearam que o povoléu
acreditasse que a imagem enviada para
reparação não fosse a mesma que
depois viria. Muitas pessoas ainda hoje
falam do burburinho causado quando a
imagem de Nossa Senhora da Conceição
voltou do Porto, restaurada. Não
acreditaram que fosse a mesma e isso
deu muitos aborrecimentos à Mesa
(nota: quando o exército de Massena
incendiou a vila e, consequentemente, a
Igreja, em 13 de Março de 1811, um
soldado francês levou consigo a imagem
da Sr.ª da Conceição, mas logo a
abandonou, muito danificada, junto à
Fonte da Caraça, na Faia. Esse facto
motivou do povo ainda mais devoção à
Virgem). Decidiu-se, então, comprar
uma nova imagem. Parece que o Padre
Dr. João Antunes ou António Pena,
conheciam a existência de uma imagem
num santeiro do Porto e a aquisição foi
feita, tendo a veneranda imagem
entrado na nossa Igreja no dia 18 de
Janeiro de 1910, transportada em
caixote desde a casa de Abilino Augusto
da Conceição, um dos mais influentes da
aquisição. A imagem, pela sua perfeição
escultural e impressionante expressão, é
considerada uma das melhores do país.
Alguém que por aqui tem passado e a
tem visto, é de opinião que ali andou a
mão ou o espírito da Teixeira Lopes
(nota: o autor da imagem da Rainha
Santa). Com data de 2 de Fevereiro de
1910, vê-se o seguinte lançamento:
«Pelo que mandou pagar proveniente de
uma imagem do Senhor dos Passos, a
António Almeida Estrela, escultor do
Porto, 63$000 (nota: sessenta e três mil
reis). Parece compreender-se que esta
importância, hoje insignificante, foi para
o inteiro pagamento do primoroso
trabalho, pois jamais vi qualquer registo
ou lançamento de respeito. No ano de
1911, ao terceiro sábado da Quaresma,
saiu esta veneranda imagem pela 1ª vez,
da Igreja Matriz, em procissão pelas
habituais ruas da vila. Ia em camarim
fechado (nota: ainda hoje isso sucede;
trata-se do início de uma tradição?) e,
por isso, só no domingo foi vista e
venerada por uma multidão de devotos,
sendo olhada com verdadeira admiração
por pessoas daqui e de Coimbra.»
«…a Procissão do Senhor dos Passos
sempre se fez ao sábado, da Igreja
Paroquial para a Capela do Senhor da
Agonia, retirada além umas dúzias de
metros do Palácio Sotto Mayor (nota: o
historiador aqui elabora em erro,
porque naquela altura o Palácio ainda
era dos Lemos Ramalho. A capela
pertencia ao Paço dos Almadas e estava
localizada em frente à actual Pousada
de Santa Cristina). No percurso tinha
pequenas paragens junto a cada Passo e
alguns músicos executavam os
«Motetos», uma composição medieval
polifónica, estacionando o Senhor dos
Passos durante um minuto sobre o Rio
do Cais, para os crentes colherem a
água que consideravam milagrosa. No
dia seguinte, à tarde, saía a imagem da
Capela do Senhor da Agonia em
procissão solene, (nota: o andor de
Nossa Senhora da Soledade ficava de
noite na Capela da Senhora da Piedade
e o sermão do Encontro era proferido da
varanda do Palácio), percorrendo as
ruas da vila com a Verónica cantando
«Ó vós omnes qui transitis» diante de
cada Passo. A Capela do Senhor da
Agonia foi demolida em 1940 e os dois
andores passaram a ficar na Capela da
Senhora da Piedade. – Condeixa, 1953 –
Isaac de Oliveira Pinto
Entendi que a melhor forma de falar
sobre esta antiga manifestação religiosa
de Condeixa era transcrever os escritos
de uma das mais preclaras e bem
informadas figuras condeixenses.
Felizmente, não foi em vão que passou
imensas horas vasculhando papéis
poeirentos.
A Procissão do Senhor dos Passos,
embora actualmente um pouco diferente
de outrora, continua a despertar nas
pessoas um profundo sentimento
religioso, especialmente ao ver o
sacrifício dos penitentes que, no sábado
à noite, cumprem de joelhos as
promessas feitas em momentos de
aflição!
Está assim terminada a minha viagem
pela velha Condeixa. Decerto muitas
outras «estórias» ficam por contar e
mais moradores mereceriam ser
recordados. Dei-me ao agradável
trabalho de registar os factos descritos
porque sei que se vão dissipando, não
restando em breve quem ainda os
recorde. Procurei relatar apenas
episódios onde a dignidade dos
protagonistas não fosse ofendida.
Gostaria que o meu trabalho pudesse
um dia contribuir para ser escrita a
história desta Condeixa que amo e onde
vi a primeira vez a luz de uma pálida e
fria tarde de Dezembro, na velha Rua de
S. Jorge (Rua Dr. João Ribeiro), há…
muitos anos!
Cândido Pereira, Condeixa Julho de
2010
Ecos da GuerraCondeixa-a-Nova durante a
II Guerra Mundial
Joaquim Filipe Soares Rebelo
Breve nota introdutória
A História regista a política de
neutralidade adoptada por Portugal no
conflito opondo as chamadas Potências
do Eixo e os Aliados, que deflagrou
entre 1939 e 1945 e ficou conhecido
como a Segunda Guerra Mundial.
Como acompanharam os habitantes
de Condeixa-a-Nova a evolução dos
acontecimentos, desde o desencadear
da Guerra até o respectivo termo? Quais
seriam os ecos do conflito, que se fariam
sentir, necessariamente, nesta terra?
Embora tenha sido produzida
abundante bibliografia respeitante a
esse conturbado período, abordando os
mais variados aspectos relacionados
com as incidências a nível nacional
dessa Conflagração Mundial,
desconhecemos a existência de qualquer
obra versando a temática focada no
âmbito local.
Por mero acaso, viemos a deparar
com um importante acervo de
documentos no espólio de Manuel Alves
Ferreira (nascido no lugar de Valada,
freguesia de Condeixa-a-Velha, a 21 de
Abril de 1920; falecido a 16 de Julho de
2006), que ajudam a fazer alguma luz
sobre o período em apreço.
Manuel Ferreira, de saudosa memória
para todos os conterrâneos que tiveram
oportunidade de com ele contactar
como amigo e comerciante localmente
estabelecido durante décadas, aliava à
faceta de cidadão exemplar uma
extrema modéstia pessoal.
Ao longo dos muitos anos de
convivência, nunca aquele fez alarde da
meritória actividade por si desenvolvida
durante a Segunda Guerra Mundial a
favor da causa dos Aliados, a qual foi,
aliás, após o termo do conflito, objecto
do reconhecimento oficial, em Julho de
1946, através de carta assinada pelo
Embaixador do Reino Unido em Lisboa,
Sir Owen St. Clair O’Malley36.
O tardio conhecimento dessa
distinção, pela família, não possibilitou a
indagação pessoal, em tempo, junto
daquele, acerca das circunstâncias que
rodearam essa sua actuação.
Só após o falecimento do meu sogro,
foram encontrados alguns arquivadores
contendo a volumosa correspondência
trocada entre aquele e os Serviços de
Imprensa das representações
diplomáticas dos Países Aliados37.
A revelação desse material, pelo seu
inegável interesse, não apenas do ponto
de vista da historiografia concelhia, mas
também no contexto nacional, impõe a
exigência de não o deixar ficar no
olvido, lançando-nos o desafio de dar a
conhecer a acção de alguém que, com
risco pessoal, participou no esforço
colectivo em prol do triunfo das Nações
Unidas.
Um tal projecto, pelo manancial de
documentação e bibliografia recolhidos,
implicando um tratamento e explanação
mais desenvolvidos, ficará para mais
tarde.
No âmbito deste despretensioso
apontamento, procuraremos dar um
relance sobre a distribuição das
propagandas dos beligerantes em
Portugal e a situação vivida à época
no concelho de Condeixa-a-Nova.
Não reclamamos a feitura de um
acabado trabalho de investigação, uma
vez que para tal se reconhece faltar-nos
a apropriada formação académica, bem
como, ainda, o tempo necessário para as
indispensáveis pesquisas
complementares nos competentes
Arquivos Nacionais portugueses e
outros38.
Procuramos, no entanto, proceder à
recolha de testemunhos de conterrâneos
que viveram esses difíceis tempos do
século XX. Volvidos que estão mais de
60 anos sobre a eclosão do conflito, a
quase totalidade das pessoas, que
figuravam nas listas de distribuição da
propaganda aliada elaboradas por
Manuel Ferreira, já não é, infelizmente,
viva, enquanto algumas das
remanescentes têm a memória desses
tempos já bastante afectada.
Aquelas que nos foi possível, ainda,
contactar, eram então muito novos,
admitindo a sua inexperiência, ao
tempo, para poderem emitir uma
opinião consistente sobre o assunto.
Cumpre-nos, contudo, realçar os
depoimentos prestados pelas Sra. D.
Isabel Antunes e Sra. D. Otília
Tavares Rosa, bem como o Sr.
Antero Simões Bernardes, e, ainda,
o Sr. Isac Pinto dos Santos, os quais
nos forneceram pistas para a
compreensão do ambiente social
vivido, durante os anos da guerra,
em Condeixa, aqui ficando
registados os nossos
agradecimentos pela prestimosa
colaboração dispensada39.
A Guerra das Propagandas em
Portugal
Ao longo de 1939, a iminência da guerra
tinha apenas alguns ecos na imprensa
portuguesa. Só nas edições de 2 de Setembro
de 1939, os jornais portugueses se referem
com grande destaque à eclosão da Segunda
Guerra Mundial. Nesse mesmo dia,
publicaram a nota oficiosa do Governo
anunciando «Neutralidade Portuguesa no
Conflito Europeu».
Com uma população com fraco poder
de compra e elevado índice de
analfabetismo, não havia o culto dos
jornais.
Era difícil à imprensa portuguesa
falar da guerra. A neutralidade oficial
declarada pelo País não permitia
resvalos à sua imprensa. A própria
guerra era, aliás, invocada como razão
para o aperto do cerco à liberdade de
opinião e expressão. Dominada pelas
normas da censura e o zelo dos
censores, a crónica de guerra da
imprensa portuguesa era cinzenta,
fraca, com pouco impacto. Os jornais,
sem correspondentes de guerra,
limitavam-se a publicar os telegramas
das agências noticiosas internacionais,
filtrados pelos Serviços de Censura.
As notícias sobre a guerra tinham
uma fonte privilegiada – os adidos de
imprensa – que eram fundamentalmente
adidos de propaganda40.
Nos Países Europeus não alinhados
com o Eixo ou os Aliados, que optaram
pela neutralidade - v.g. o caso de
Portugal, Suécia, Eire, Suíça -, travou-se
uma feroz guerra secreta das
espionagens e de propaganda, esta
última de molde a influenciar as
respectivas opiniões públicas nacionais
a favor dos contendores, na procura de
apoios.
Apesar da neutralidade reafirmada
pelo Governo de Salazar através da nota
oficiosa de 1 de Setembro de 1939, após
a invasão da Polónia pela Alemanha, que
desencadeou a declaração de guerra por
parte da Inglaterra e França contra
aquela, foi sobretudo a partir de 1940
que começou a travar-se a grande
batalha pela opinião pública portuguesa.
As propagandas dos beligerantes
procuravam construir um ambiente
favorável à captação de simpatias.
Portugal, apesar do seu reduzido peso
em termos de população ou recursos
económicos, era importante. A aplicação
do bloqueio económico, por exemplo,
gerou da parte de ingleses e alemães
uma larga actividade que procurou
alargar apoios que permitissem àqueles
a sua maior efectivação e a estes a sua
ineficácia. O alargamento da guerra
colocava, por outro lado, a neutralidade
perante o aumento das exigências dos
beligerantes, como o comprova o
crescente interesse dos Açores para os
ingleses e do volfrâmio para os
alemães41.
Razão porque Alemães e Ingleses,
numa primeira fase, e Americanos,
numa segunda, se lançaram na
propaganda no nosso país durante a
Segunda Guerra. Os alemães em
primeiro lugar, e depois ingleses e
americanos, começam a saturar a
população portuguesa com jornais,
revistas, panfletos, cartazes, folhetos e
livros, simultaneamente com os novos
meios técnicos como a rádio e o cinema,
que ultrapassam as fronteiras e chegam
a Portugal. O impacto dos noticiários
estrangeiros em língua portuguesa é
especialmente importante, num país
ainda em grande parte analfabeto e com
más comunicações42.
A Alemanha ensaiou muitas das
técnicas de propaganda, depois
utilizadas pelos beligerantes, em
Portugal. Nos primeiros meses de
guerra, a propaganda do Eixo pura e
simplesmente eclipsa a inglesa, quer em
qualidade como em quantidade. Foi a
Alemanha a primeira a montar os
centros de propaganda regionais com
funcionários permanentes, a que
estavam ligadas as redes de voluntários
e uma «máquina», mais tarde copiada
pelos ingleses.
A criação do Centro Britânico de
Informações (CBI), no Porto, em 1940, é
um passo importante para organizar o
grande apoio que os ingleses têm no
Norte. O CBI não tarda a criar uma
vasta rede de voluntários, os quais não
só distribuem propaganda nas Câmaras,
centros recreativos, clubes, empresas e
departamentos do Estado, como
procuram convencer os comerciantes a
afixar fotografias de Churchill ou da
Rainha da Inglaterra, enviando listas
dos anglófilos da zona a quem convém
remeter folhetos pelo correio43.
O principal veículo da propaganda era
a imprensa.
Podem distinguir-se três tipos de
órgãos: em primeiro lugar, as revistas,
folhetos e livros publicados na
Inglaterra, alguns em inglês vendidos
em poucas livrarias e quiosques das
maiores cidades, sendo, porém, em
português o principal órgão, a Guerra
Ilustrada, tradução da revista inglesa,
onde por vezes se incluíam artigos sobre
Portugal.
Em segundo lugar, as revistas e
jornais feitos em Portugal e com
responsáveis portugueses, mas
claramente financiados pela Inglaterra
e, por ela, influenciados. A mais
conhecida é O Mundo Gráfico, que
começou a ser publicada em Outubro de
1940 e, desde 1942, recebeu dinheiro
americano, passando a incluir artigos
sobre os EUA.
Em terceiro lugar, os órgãos da
imprensa portuguesa, que a propaganda
inglesa procura influenciar de diversas
maneiras.
A maior parte da imprensa
portuguesa favorecia a Inglaterra,
segundo a perspectiva da Censura e da
PVDE44. Em 1944, o MOI45, fazia a
seguinte classificação dos diários mais
importantes: eram «amigáveis» ou
«muito amigáveis», o Século,
Novidades, Diário de Lisboa, República,
Primeiro de Janeiro e Comércio do
Porto; eram «neutros», mas
«melhoravam de tom», o Diário de
Notícias, o Diário da Manhã, ligado à
UN46, considerado pró-alemão até 1943
altura em que é nomeado director
Manuel Múrias, o Diário Popular e o
Jornal de Notícias; eram pró-alemães ou
de «pouca confiança», A Voz e
semanários como a Acção47.
A propaganda americana só chega a
Portugal praticamente, a partir de 1942.
Os EUA não consideram Portugal um
alvo importante para a sua propaganda,
pelo que não oferecem resistência
quando a Inglaterra sugere que se
insiram na rede já existente, alargando-
a e aproveitan- do-a, mas sem fazer um
esforço autónomo. Como os EUA
empenham, desde 1943, substanciais
recursos financeiros, a Inglaterra
diminui o seu esforço próprio, mantendo
no essencial o controle da máquina de
propaganda aliada e impedindo os EUA
de seguirem uma política própria. Um
exemplo típico é O Mundo Gráfico que, a
partir de 1942, recebe o apoio
americano, passando a inserir
reportagens sobre os EUA e,sobretudo,
sobre os portugueses nos EUA48.
A rádio era uma novidade em
Portugal. As primeiras emissões
regulares em onda média foram
efectuadas em 1925, mas só em 1935 se
inaugurou a Emissora Nacional.
A BBC (British Broadcasting
Corporation) inicia as transmissões em
onda curta para Portugal a 14 de Junho
de 1939 mas, ao fim de pouco tempo
torna-se a estação estrangeira mais
ouvida no país. Vários jornalistas
nacionais colaboram no seu
departamento português, dos quais o
mais conhecido é Fernando Pessa.
O interesse despertado pela guerra
parece, aliás, ter sido um dos grandes
incentivos à difusão de aparelhos
receptores de telefonia em Portugal: os
89.000 registados em 1939, tinham-se
já transformado em 120.663 em 194249.
Com o início da II Guerra Mundial,
Portugal toma, a 21 de Setembro, a decisão,
através do Decreto-Lei n.º 29. 937, de
suspender o funcionamento de todas as
estações emissoras particulares, devido à
guerra. O mesmo diploma previa a concessão
de autorizações especiais. Das várias estações
que continuaram a emitir, destacavam-se a
Emissora Nacional, que era controlada pelo
governo, o Rádio Clube Português, que
pertencia a Jorge Botelho Moniz e estava
intimamente ligado ao Estado Novo, e a
Rádio Renascença, pertencente à Igreja
Católica, enquanto outras emissoras
profissionais foram autorizados a emitir após
um requerimento de funcionamento. Os
postos amadores tiveram de encerrar50.
«O Estado Novo e, portanto,
Salazar pessoalmente, tentou, e
conseguiu em alguns casos,
interferir na linha editorial da BBC
de várias formas». O caso «mais
emblemático» ocorre em 1941,
com o despedimento de Armando
Cortesão, exilado em Londres e ao
serviço da secção portuguesa da
BBC. Salazar insurge-se contra a
hipótese de aquele vir a chefiar a
secção e ordena à censura
portuguesa que «corte todas as
notícias» da estação, «o que coloca
a propaganda britânica em
Portugal quase ao nível zero»51.
O contrapeso alemão das emissões
radiofónicas da BBC era o
Reichsrundfunk, também conhecido por
Emissora Europa, que irradiava em
ondas curtas para quase todos os países
em vinte e cinco línguas, entre as quais
a portuguesa. Das 12:45 às 14:00 horas
e durante um quarto de hora,
começaram por ser emitidos noticiários
em língua portuguesa e, a seguir, o
programa Hora Portuguesa. Das 19:45
às 00:45, havia noticiários sucessivos,
comentários aos temas do dia e
considerações sobre os sucessos
militares actuais. Em 1945, o tempo
total diário das emissões era de cinco
horas e quinze minutos. A propaganda
do Reichsrundfunk era feita
essencialmente com a publicação dos
programas em revistas de influência
alemã, como Sinal e A Esfera, ou em
jornais portugueses (p. ex., Diário de
Notícias), subordinada ao título A
Alemanha Fala52.
A estação de Londres deveria superar
em níveis de audiência a própria E.N. e
estava muito acima das outras
estrangeiras, designadamente a Rádio
Berlim, a estação mais anunciada na
imprensa portuguesa da altura,
enquanto a popularidade de Fernando
Pessa excedia em muito a de qualquer
figura da rádio portuguesa. Os EUA
mantinham também a sua estação de
rádio para Portugal, A Voz da América,
que nunca teve a popularidade da BBC,
sendo o seu principal locutor Jorge
Alves53.
Depois da novidade técnica da
radiodifusão, o cinema é a segunda
grande inovação técnica de propaganda
do século XX, tendo sido amplamente
utilizado por todos os beligerantes.
A Alemanha explorou o cinema na sua
propaganda para Portugal, sendo
exibidos inúmeros filmes no cinema
Odeon e, em sessões especiais, no
Colégio Alemão, em Lisboa54. Nunca
conseguiu destronar o predomínio do
filme americano e inglês no circuito
comercial normal e, com o decurso da
guerra, viu reduzida a sua quota do
mercado.
Desde o início do conflito, que as
distribuidoras anglo-saxónicas dominavam o
mercado nacional com filmes ingleses e,
sobretudo, americanos. A partir de 1941,
começam a surgir os filmes especificamente
sobre a guerra, feitos com evidentes intuitos
de propaganda. Os Aliados distribuíam ainda
pequenos documentários que, em teoria,
deviam ser exibidos antes dos filmes,
acompanhando os similares portugueses55.
Se a máquina alemã encontrava
público, principalmente, entre militares
e para-militares portugueses, a indústria
cinematográfica norte-americana ainda
levava a melhor. Ambas as facções
faziam exibições privadas, tendo os
aliados conseguido, após alguma
resistência dos exibidores, que temiam
confrontos entre o público, a exibição de
documentários antes dos filmes. Após o
final da guerra, numa curta fase de
distensão do regime, entram finalmente
filmes como Casablanca, que esteve dez
semanas em cartaz56.
Manuel Alves Ferreira,
um natural de Condeixa que contribuiu
para o triunfo dos Aliados
Como em todas as outras localidades
portuguesas, a guerra embora distante
era acompanhada com interesse, mas
também com apreensão. A formação de
apoios aos blocos beligerantes não
tardou a operar-se, com anglófilos57 de
um lado, e do outro os germanófilos,
sendo desde logo clara a predominância
das simpatias para com a Grã-Bretanha.
Condeixa-a-Nova não permaneceu,
naturalmente, imune à guerra das
propagandas desencadeada pelos Países
beligerantes.
Segundo o Censo de 1940, o concelho
de Condeixa-a-Nova com 4.135 fogos,
tinha uma população presente total de
13.591 habitantes, dos quais 6.311 do
sexo masculino, e 7.280 do sexo
feminino58.
A população presente de 20 ou mais
anos de idade totalizava 8.540 pessoas,
sendo 3.717 homens e 4.823 mulheres.
Sabiam ler 3.270 pessoas, das quais
2.234 eram homens e apenas 1.036
mulheres: possuíam o grau de instrução
primária 555 indivíduos, 376 do sexo
masculino e 179 do sexo feminino;
possuíam habilitação do ensino
secundário 34 pessoas, 21 homens e 13
mulheres; com o ensino superior, havia
20 indivíduos, todos do sexo masculino.
Os varões activos (maiores de 10
anos) em números absolutos eram
4.038, dos quais 71,1 por cento
ocupados na agricultura59.
A freguesia de Condeixa-a-Nova tinha
556 fogos, sendo 1997 o total de
habitantes, 884 homens e 1.113
mulheres. Sabiam ler e escrever 1.076
pessoas e 921 eram analfabetos.
Foi, neste quadro, que Franklim Pires
Machado, comerciante desta Vila,
contactado para o efeito, procedeu à
indicação do nome de Manuel Alves
Ferreira, seu empregado, para se
encarregar da distribuição da
propaganda britânica em Condeixa.
Oriundo do meio rural, de uma família de
parcos recursos, apesar de distinguido, no
ano de 1932, como o melhor aluno da 4.ª
classe da Escola Primária da Atadoa, com o
prémio instituído pelo Dr. Alberto Martins de
Carvalho60, mas sem possibilidade de
prosseguir os estudos, veio, muito novo,
trabalhar para a loja de ferragens de Franklin
Machado.
Caldeado na difícil escola da vida,
empregado de balcão, autodidacta, com
apenas 21 anos de idade, prontifica-se
aquele «gostosamente» a aceitar o
encargo, em carta ao Director do Centro
Britânico de Informações61 anexo ao
Consulado Britânico no Porto, juntando
uma lista de pessoas «eventualmente
interessadas»62.
O material de propaganda, remetido
pelo correio, caminho-de-ferro ou pela
camioneta da carreira Porto-Lisboa, era
constituído, sobretudo, pelas revistas
Guerra Ilustrada, Bandeira da Vitória e
Neptuno; pelo Boletim de Informações e
por folhetos, sobre o esforço de guerra,
acerca dos vários ramos das forças
armadas britânicas63e as instituições
inglesas64, ou, ainda, de denúncia dos
Países do Eixo65.
Havia, além disso, postais, na maioria de
sátira aos líderes alemães nazis e a Mussolini;
estampas litografadas coloridas dos
Soberanos e da Família Real, de políticos
como Churchill, e prestigiados militares como
Montgomery, Alexander, Mountbatten e
outros; quadros com fotografias e cartazes
destinados a serem exibidos em cafés, clubes
ou outros espaços públicos.
No final de cada ano e início dos anos
seguintes, eram também muito
procurados os calendários editados pela
propaganda inglesa.
Em Dezembro de 1941, o CBI remetia,
de acordo com a lista de interessados, já
aumentada por iniciativa de Manuel
Ferreira, 75 exemplares do n.º 12 da
revista Guerra Ilustrada, a par de outro
material de propaganda66.
A distribuição deste material de
propaganda, «por não ser permitida a
entrega casual a qualquer pessoa», era
feita, unicamente, a quem se encontrava
inscrito nos registos (listas e ficheiros)
do CBI, sendo, nesse sentido, dadas
instruções muito precisas aos
distribuidores. Quaisquer novos
interessados na recepção da
propaganda teriam de «estar
previamente inscritos» e, sem o
cumprimento de tal formalidade, não
poderiam de forma alguma receber
aquela. Outrossim, se informava que a
propaganda a distribuir era apenas a
enviada, «não devendo os envelopes
conter qualquer outra coisa»67.
Até mesmo quando os pedidos de
pessoas interessadas no recebimento da
propaganda eram dirigidos
directamente ao CBI, procurava este
junto do encarregado da respectiva
distribuição confirmação sobre se
deveriam ser inscritas, para passar a
ser-lhes enviada68.
Era dada especial atenção à
propaganda distribuída aos
eclesiásticos, de início remetida
directamente aos mesmos, pela
Embaixada em Lisboa e, depois,
expedida aos distribuidores da área da
respectiva residência. De entre as
publicações àqueles destinada em
particular, contavam-se: Querem
destruir a Igreja de Deus, A Perseguição
à Igreja Católica, A Voz do Vaticano.
O Adido de Imprensa inglês mantinha
contactos regulares com a Censura, pela
qual passavam os artigos dos
correspondentes locais e os cedidos aos
periódicos portugueses, sendo, no geral,
tais relações consideradas
satisfatórias69.
Nesse contexto, afigura-se
significativa a carta do responsável do
CBI, datada de 11 de Fevereiro de
194270: «Tendo a Repartição da Censura
pedido à Embaixada Britânica, em
Lisboa, para sustar a distribuição da
nossa propaganda intitulada «TODOS
COMO CARNEIROS» e sendo sempre
norma deste Centro orientar os seus
serviços dentro do espírito da mais
estreita harmonia com os desejos das
autoridades Portuguesas, vimos rogar-
lhe o obséquio de nos devolver com a
maior brevidade, em embrulho
devidamente registado quaisquer
exemplares das referidas brochuras que
ainda tenha em seu poder ou que possa
haver às mãos o que agradecemos.»
Cremos que Manuel Ferreira não
pôde dar satisfação à solicitação feita,
não existindo resposta sua sobre a
devolução: conhecendo-se a sua
subtileza de espírito, e a índole trocista
dos condeixenses, fácil seria adivinhar o
«sucesso» alcançado pela dita
propaganda!
O CBI, considerando ter «muito
interesse em organizar uma estatística,
tão completa quanto possível, acerca do
número, qualidade e condição social das
pessoas que na Província recebem a
nossa propaganda», solicitou aos
distribuidores «uma relação da qual
conste, discriminadamente, esse
número, subordinando-a aos títulos, ou
classes que a seguir indicamos: a)
Militares; b) Padres; c) Professores
Primários; d) Advogados, Notários,
Juízes, Delegados, Escrivães e outros
Bacharéis em Direito e Letras; e)
Proprietários; f) Industriais (de toda e
qualquer natureza); g) Capitalistas; h)
Lavradores; i) Médicos; j) Engenheiros,
Agrónomos, Veterinários e Agentes
Técnicos; k) Agricultores; l) Operários
sabendo ler e escrever; m) estudantes
com mais de 16 anos; n) Analfabetos; o)
Menores de 16 anos.»71
Na resposta à referida solicitação,
Manuel Ferreira juntava uma lista,
agora com 152 inscrições (número que
mais do que duplica, em ano e meio, o
do início da sua actividade), com a
indicação das profissões, a saber: 1
advogado; 15 agricultores; 3 barbeiros;
4 carpinteiros; 24 comerciantes; 1
construtor civil; 2 electricistas; 15
empregados do comércio; 2 empregados
dos correios; 2 empregados de mesa; 5
empregados de escritório; 3
enfermeiros; 9 estudantes; 2
farmacêuticos; 2 ferradores; 2 ferreiros;
3 funcionários das finanças; 3
funcionários judi-ciais; 11 funcionários
públicos; 2 funileiros; 2 magistrados
judiciais; 5 marceneiros; 3 médicos; 4
motoristas; 1 notário; 2 oficiais do
exército; 2 padeiros; 1 pedreiro; 1
pintor; 1 ponteadeira; 2 praticantes de
farmácia; 3 professores primários; 2
proprietários; 1 relojoeiro; 6 sapateiros;
3 serralheiros. Na referida lista estão,
igualmente, incluídos os proprietários
do «Café Central» e do «Café
Conímbriga», bem como, ainda, a
Direcção do Clube de Condeixa.
Na sua quase totalidade, os inscritos
eram do sexo masculino, apenas
integrando a lista duas mulheres, uma
professora primária e uma ponteadeira.
Sendo a maioria residente na Vila de
Condeixa-a-Nova, aqueles distri-buiam-
se, também, por outras localidades do
concelho: Alcabideque, Arrifana,
Atadôa, Barreira, Belide, Campizes,
Casal Novo, Ega, Eira Pedrinha,
Traveira, Valada, Vila Sêca e Zambujal72.
Em nota, acrescentava que «não há
inscritos menores de 10 anos, nem
analfabetos»73.
Em Circular Confidencial para os
distribuidores, era dito que «o facto de
ser quási ou totalmente analfabeto, não
impede que receba as nossas
ilustrações, havendo revistas especiais
para as pessoas de educação elevada.
Lembramos, até, que os analfabetos
merecem mais as revistas ilustradas do
que as pessoas de mais alta cultura».
«Confiamos absolutamente nos nossos
dedicados distribuidores em não se
deixar influenciar nas distribuições pelo
facto de muitas vezes os recebedores
serem inimigos pessoais ou pessoas de
outra política, etc. A distribuição deve
ser encarada debaixo de um ponto de
vista completamente imparcial. A nossa
propaganda visa unicamente espalhar a
verdade sobre os acontecimentos que
actualmente se estão desenrolando»74.
O Grupo Nacional Portugal da AO
[Organização Estrangeira
(Auslandsorganisation –AO)] do NSDAP
[Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães
(Nationalsozialistische Deutsche
Arbeiterpartei)., como todos os Grupos
Nacionais dos países neutrais, era a
instância alemã preferida para observar
e obter meios propagandísticos
inimigos. Para ocultar essa actividade
aos olhos do inimigo, era determinante a
colaboração de portugueses. Assim, a
AO tinha cobertura em Lisboa para
envio de material de propaganda de
outros países para a Alemanha com
nomes portugueses. «Pelo menos a
partir de meados de 1941, mas talvez
desde o início da guerra, esses
portugueses facilitaram à Alemanha
muitos nomes e endereço»75.
Entre outros incidentes, foram verificados
casos de «propaganda negra», como a
distribuição de edições falsas de órgãos de
propaganda britânicos.
Assim, o CBI alertava, em circular de
3 de Agosto de 1942: «Tendo aparecido
em público um exemplar de «A Grã-
Bretanha de Hoje» com o nº.56
referente a Julho de 1942, vimos
informar V. Exª. para fazer constar
entre as pessoas nossas amigas que
semelhante número é apócrifo, não
tendo sido publicado pelo Instituto
Britânico em Portugal visto que o último
publicado tem o número 51. Devem ser
manobras dos nossos inimigos».
Na circular de 11 de Janeiro de 1943,
o CBI voltava a denunciar a falsificação
de um número da revista Neptuno,
comentando que «se a propaganda
alemã julga que os Portugueses são tão
fáceis de iludir como isso, fraquíssima
opinião faz deles».
Manuel Ferreira comunicava ter a
propaganda italiana enviado para o
cinema local alguns filmes, motivo
«porque achava interessante no caso de
haver disponível, enviar alguma
propaganda inglesa», adiantando que a
propaganda alemã enviava todas as
semanas fotografias, razão porque
esperava que «a propaganda Inglesa se
faça demonstrar com fotografias
interessantes tal qual têm sido enviadas
para Coimbra»76.
O CBI esclarecia que os
documentários cinematográficos eram
importados pela SONORO-FILMS, de
Lisboa, nada tendo a ver com isso,
podendo, no entanto, interferir junto da
casa distribuidora para que fizesse uns
preços mais convidativos, no caso do
proprietário do Cinema local estar
interessado77.
Na resposta, Manuel Ferreira informa
que a este «não lhe interessam
documentários a mais de dez escudos,
que é o preço por que lhe ficam os da
Paramount e outros»78.
A importância dada ao cinema como
novidade e poderosa arma de
propaganda, transparece dos termos da
Circular do CBI de 30 de Janeiro de
1943, na qual era solicitado, com o fim
de ser enviado ao Adido da Imprensa,
em Lisboa, o fornecimento,
mensalmente, de um relatório de todos
os filmes, documentários de guerra, etc.,
que fossem exibidos no cinema dessa
localidade, dando opinião sobre «se caiu
bem ou não no agrado do público» ou
«se a plateia se manifestou durante a
exibição da película».
No mesmo ano, o Adido de Imprensa
da Embaixada Britânica, Michael
Stewart, remeteu um exemplar do
folheto de apresentação do filme A
Vitória do Deserto, produzido pelos
serviços cinematográficos do Exército e
da Real Força Aérea, inspirado na
campanha do Norte de África, desde que
o Exército Britânico se entrincheirou em
El-Alamein para impedir o avanço de
Rommel para Alexandria e o Cairo até à
entrada triunfal em Tripoli, informando
ser a respectiva distribuição comercial
feita pela Vitória Filme, do Porto79.
Após ter contactado o gerente do
Cine-Avenida (inaugurado em 1932),
Manuel Ferreira transmitiu «existir
bastante interesse por parte da mesma
empresa em exibir o filme, mas que o
seu elevado custo, 300$00 pedidos pela
distribuidora Vitória Filme, a inibe de
poder fazê-lo, pois a frequência nessa
altura era diminuta e, além disso, não
havia público para matinées, sendo,
assim, a fita passada só uma vez na
aparelhagem. Nestas condições, para
que não tenha prejuízo não lhe convém
a fita por preço superior a 150$00, ou
seja, o preço estabelecido pelo Grémio,
motivo porque espero que consiga da
Vitória Filme o contrato isolado por este
preço, pois só assim se poderia exibir,
dando satisfação a todas as pessoas que
se interessam pela Justa Causa
Britânica»80.
Em resposta, o CBI referia haver um
mal entendido, pois o filme estava a ser
distribuído comercialmente como
qualquer outro pela Companhia Victoria
Film, nada tendo a ver com os contratos
ou condições comerciais no respeitante
à sua exibição, acrescentando haver o
mesmo tido «um imenso sucesso, tendo
esgotado as lotações dos cinemas por
onde tem passado», não parecendo
haver razão para ser oferecido um preço
abaixo do normal81.
O CBI insistindo na exibição do filme
A Vitória do Deserto, dizia estarem
«quási certos que ele esgotará a lotação
do cinema» e «não acharem o preço de
300$00 caro para uma só exibição, que
certamente deverá dar lucro»82.
Manuel Ferreira voltava a informar
ter falado com o gerente do cinema, o
qual reiterou «não lhe convir exibir o
mesmo pelo preço indicado, ou seja
300$00, alegando despesas de
transportes, seguros, etc., que o inibe
disso sem prejuízo». Mencionava, ainda,
que «muito embora insistisse para
demover da sua resolução o empresário,
este só aceita pelo preço de 200$00, o
que me contraria bastante»83.
O CBI limitou-se a dizer ter ficado
ciente do informado acerca da exibição
do filme A Vitória do Deserto,
lamentando «não poder fazer nada
sobre o assunto»84.
Algum tempo mais tarde, o CBI volta
à carga, dizendo ter «o prazer de
informar que a Pátria Filmes Lda., de
Lisboa, contratou a película A Vitória do
Deserto para com o seu carro ambulante
fazer a exibição da mesma, por diversas
povoações do país onde não exista
cinema. Se porventura na sua área
estiverem interessados em que o filme aí
seja passado, devem fazer o respectivo
pedido à casa contratadoura (sic), pois
que nada temos com a sua distribuição
nem com a parte comercial do
mesmo»85.
No arquivo a que vimos fazendo
referência, apenas consta a mera
recensão por parte de Manuel Ferreira
da correspondência recebida do CBSI de
1 a 12 do mês em decurso86.
Após novo processo de preparação,
mediante o envio de 150 exemplares de
um folheto referente ao filme Comando
Costeiro - documentário de longa
metragem acerca do patrulhamento dos
mares totalmente desempenhado por
aviadores da R.A.F. (Royal Air Force) -,
estreado com grande êxito no Eden
Teatro de Lisboa, foi aquele, finalmente,
exibido no cinema local, no dia 5 de
Dezembro de 1943, «sendo apreciado
com muito agrado por toda a
assistência, havendo manifestações de
simpatia a favor dos Aliados»87.
Como já foi referido, outro poderoso
meio de propaganda era a rádio. A BBC
(BritishBroadcastingCorporation) emitia
diversos serviços noticiosos para
Portugal, inicialmente através das ondas
curtas, e, a partir de 19 de Dezembro de
1943, também na onda média de 261
metros88 sendo os respectivos horários
dados a conhecer aos encarregados
locais da distribuição de propaganda
para ulterior divulgação ao público
interessado.
Para além da grande audiência que
tinha junto da população portuguesa,
contribuía para o seu particular sucesso
em Condeixa a popularidade de
Fernando Pessa, cuja infância decorreu
no vizinho concelho de Penela, o qual
tinha familiares nesta Vila.
Colocado na secção portuguesa da
BBC - a mais avançada das emissoras do
tempo - Fernando Pessa fez a cobertura
radiofónica da II Grande Guerra, de
Londres para Portugal. A sua voz cheia
de personalidade, os fados contra Hitler
que escreveu e interpretou, as suas
descrições das batalhas aéreas nos céus
da Grã-Bretanha e dos
bombardeamentos das principais
cidades inglesas, marcaram um tempo e
inscreveram-no na galeria dos maiores
repórteres radiofónicos da primeira
metade do século XX89.
Entre 1944 e 1945, também na BBC
era escutada nos lares portugueses a
voz de António Pedro, nas crónicas de
segunda-feira, dando conta do avanço
dos Aliados contra o Eixo90.
À semelhança do que se fazia pelo
País fora, também em Condeixa havia o
costume de colocar um copo de água em
cima da telefonia, a fim de que a PVDE
não pudesse localizar o aparelho a
sintonizar a BBC, conforme testemunhos
que recolhemos.
A BBC remeteu, por intermédio da Secção
de Imprensa da Embaixada Britânica em
Lisboa, aos distribuidores da propaganda um
questionário sobre as condições em que os
Portugueses ouviam as emissões,
pretendendo, principalmente, «saber se as
transmissões para Portugal eram feitas a
horas em que os seus rádio-ouvintes
dispunham de corrente eléctrica para
poderem ligar os aparelhos de telefonia» 91,
revelando a sua eficiente organização .
Outro instrumento da propaganda
inglesa com grande visibilidade era
constituído pelos cartazes e quadros
contendo fotografias – 12 fotos
pequenas e 2 grandes -, destinados a
serem exibidos em montras de cafés e
de estabelecimentos comerciais, por um
prazo definido, a fim de permitir a sua
rotatividade.
Ao tomar conhecimento de que alguns
estabelecimentos expunham, a par da
britânica, também a propaganda alemã,
o CBI manifestava «surpresa»,
afirmando não consentir tal coisa, e
solicitava a imediata retirada do seu
material e respectiva devolução92.
Na resposta, Manuel Ferreira
informava que ao fazer entrega das
fotografias nas casas onde também se
expunha a propaganda alemã, era «para
estabelecer o confronto entre as
falsidades daquela propaganda e a
realidade da inglesa», porém, em vista
do pedido, procedeu, imediatamente, à
retirada das «nossas (sic) fotografias»,
tendo, no entanto, um dos visados
pedido para continuar com a exposição
da propaganda inglesa,
«omprometendo-se a não expôr mais a
propaganda alemã»93, o que veio a ser
aceite pelo CBI94.
Porque, certamente, após a entrada
dos EUA no conflito, haveria
interessados na propaganda americana,
Manuel Ferreira, em meados de 1943,
solicitava ao CBI o envio de algum
material «sempre que seja possível»95.
Os primeiros exemplares da revista
Em Guarda – números 4, 7, 8, 9 e 10 -,
de propaganda americana, começaram a
ser recebidos no decurso de 1944,
juntamente com postais do Presidente
Roosevelt. A sua expedição era feita
pelo CBSI, o qual, para boa regularidade
dos serviços, solicitava o envio de listas
em separado com o nome das pessoas a
quem iriam ser entregues as revistas
americanas, Em Guarda e U.S.A.96.
Porém, no final desse mesmo ano, o
CBI comunicava por carta-circular, que
a distribuição da propaganda dos
Estados Unidos da América passava a
ser feita directamente e não por
intermédio daquele Centro, motivo pelo
qual qualquer pedido referente à mesma
deveria ser dirigido ao Adido de
Imprensa junto da Embaixada dos EUA,
em Lisboa.
Igualmente, noutra circular, de 2 de
Dezembro de 1944, o CBI transmitia
que, a partir de então, «não deveriam
ser aceites novas inscrições para
recepção da propaganda, qualquer que
fosse a razão», não podendo os nomes
eliminados serem substituídos por
outros, ressalvada qualquer mudança de
domicílio, que nesse caso deveria ser
respeitada.
Por essa altura, o número de inscritos
para recepção da propaganda inglesa já
atingia as 190 pessoas97, ou seja,
Manuel Ferreira em três anos conseguiu
motivar para a causa Aliada, apesar do
nível de iliteracia e desinformação98 do
concelho de Condeixa-a-Nova, mais do
dobro de interessados do que quando
assumiu a responsabilidade pela sua
distribuição.
Manuel Ferreira continuou a
desenvolver actividade durante os
primeiros meses de 1945, quando o
desenrolar dos acontecimentos já
prenunciava a vitória dos Aliados.
Assim, toma a iniciativa de solicitar ao
CBSI o envio de dois exemplares do
«Hino Inglês instrumentado para
Banda», mencionando a existência de
duas bandas de música locais, «tendo
interesse que no Dia da Vitória fosse
executado o hino pelas referidas
bandas»99.
O pedido foi prontamente satisfeito,
sendo expedidos pelo correio, sob
registo, e em separado, 2 exemplares do
«Hino Inglês»100. Acabaram,
infelizmente, por não servir para o fim
em vista, pois aqueles «não estavam
instrumentados para Banda»101.
A 29 de Abril, Adolf Hitler designa seu
sucessor o Almirante Dönitz, suicidando-
se no dia imediato no Bunker da
Chancelaria, com os russos a atingirem
o Reichstag.
O CBI, por carta-circular, de 2 de Maio de
1945, chamava a atenção dos distribuidores
para o seguinte : «Como se aproxima o dia da
vitória das Nações Aliadas é não só
perfeitamente natural mas até justo, que os
Portugueses, gente de uma Nação aliada
secular da Inglaterra manifestem o seu
regozijo pelo terminar duma guerra, que há
mais de cinco anos vem flagelando a
humanidade, o façam também no dia da
Vitória. Causar-nos-ia, porém, um grande
desgosto que qualquer dos nossos
distribuidores, ou os amigos que temos nas
terras onde eles fazem a distribuição da nossa
propaganda se envolvam em manifestações
de carácter puramente político, ou
subversivo, que possam acarretar a
intervenção das autoridades locais, as quais,
de resto, estamos persuadidos que desde que
essas manifestações se restrinjam a vivas aos
países aliados, e à alegria natural causada
pela Vitória, não acharão motivo para
intervir,nem para as coibir. Rogamos, pois, a
V. Exa., a fineza de avisar todos os nossos
amigos dessa terra para que evitem envolver-
se em manifestações do carácter daquelas
que acima frisamos, e em alterações da
ordem pública que tragam procedimento
coercivo da parte das autoridades, e com o
que, evidentemente, não podemos solidarizar-
nos.»
No dia 3 de Maio, o Governo de
Salazar decreta luto oficial de três dias
pela morte de Hitler.
A 7 de Maio, o General Jodl assinou o
documento da rendição incondicional de
todas as forças alemãs, no quartel-
general de Eisenhower, em Reims.
Por seu lado, Churchill e Truman
declararam o dia 8 de Maio como V.E.
Day - o Dia da Vitória na Europa.
Assim, a guerra acabou na Europa,
após 5 anos, 8 meses e 5 dias.
Por carta de 9 de Maio, o CBI expressou
sincero reconhecimento pela recepção de um
telegrama de Manuel Ferreira, de felicitações
pela Vitória alcançada pelos exércitos das
Nações Unidas, referindo ter o mesmo sido
motivo de grande satisfação e muito
apreciada essa gentileza.
Não obstante o termo da guerra, quer
na frente europeia, quer com o acto de
capitulação do Japão, assinado pelo
Ministro dos Negócios Estrangeiros
Togo, a 2 de Setembro, a bordo do
couraçado dos EUA Missouri fundeado
na baía de Tóquio, a distribuição da
propaganda britânica prosseguiu até,
pelo menos, Maio de 1946.
No final do referido mês, o CBSI
informou Manuel Ferreira ter já
encerrado definitivamente a sua
actividade, manifestando «sincera
gratidão pela valiosa e leal colaboração
que nos prestou, cooperando na
distribuição da nossa propaganda, a
qual mostrou o esforço dispendido pela
Grã-Bretanha em prol da Vitória das
Nações Unidas sobre o inimigo»,
anunciando que, oportunamente, iria
aquele receber directamente da
Embaixada Britânica uma comunicação
oficial, testemunhando igualmente o
reconhecimento pela óptima
coadjuvação que deu à causa dos
Aliados102.
Com efeito, em missiva endereçada a
Manuel Ferreira, subscrita pelo Adido
de Imprensa G.M.F. Stow, refere este
haver sido incumbido pelo Embaixador
de Sua Magestade Britânica de lhe
remeter a Carta junta103, com a sua
respectiva tradução104, «em homenagem
aos valiosos serviços prestados por V.
Exa. à Secção de Imprensa durante toda
a guerra». Mais acrescenta, aproveitar a
oportunidade para testemunhar o seu
«profundo reconhecimento pessoal pela
sua leal cooperação e pela confiança
indefectível na causa aliada de que deu
provas durante os longos e amargos dias
de luta que juntos tiveram de
enfrentar», expressando a crença de
que «o seu apoio e amizade perdurarão
na memória de quantos dentre nós
tiveram o privilégio de trabalhar com
V.Exa.»105.
Com o savoir faire, de que sempre
deu provas ao longo da sua vida, Manuel
Alves Ferreira, em breves linhas, acusou
a recepção da carta, agradecendo a
distinção conferida, rogando a subida
fineza de transmitir ao Embaixador de
Sua Magestade Britânica as suas
cordiais saudações e reconhecimento
pelas atenções que sempre lhe foram
dispensadas durante o período em que
«pela mesma causa lutámos»106.
À distância de quase sete décadas
sobre estes acontecimentos, não se pode
deixar de sentir admiração pela
extraordinária actividade desenvolvida
por alguém que, ainda jovem adulto,
sem formação académica e desprovido
de meios de fortuna, soube assumir,
com zelo e grande dignidade, a pesada
responsabilidade da distribuição da
propaganda aliada, num meio rural
pobre, como era ao tempo, o concelho
de Condeixa-a-Nova.
Tarefa não isenta de riscos, desde
logo face à posição de «neutralidade»
oficial declarada pelo Governo de
Salazar.
Dentro do Regime, não tardou, contudo, a
operar-se a formação de apoios aos
beligerantes e, se se contavam importantes
simpatizantes da Inglaterra107, muitos dos
contornos ideológicos do Estado Novo
deixaram marcas profundas na formação
política de outros, com poder e influência nos
Organismos que eram o seu sustentáculo,
como a P.V.D.E., a L.P., a M.P. , etc., cujas
opções germanófilas eram conhecidas108.
Por outro lado, embora a neutralidade
se vá manter até ao final do conflito,
para a compreender é preciso estudar a
evolução da situação, fase por fase:
pode, assim, falar-se do período de
supremacia do Eixo109; ao qual se
seguiu, o período do equilíbrio de
forças; e, por último, o período da
supremacia Aliada110.
Entre Junho de 1940 e Junho de 1941,
abre-se o período de maior perigo em
relação à manutenção da neutralidade
portuguesa, fase em que a Alemanha
domina a Europa Ocidental, enquanto a
guerra alastra ao Sul da Europa, ao
Mediterrâneo e ao norte de África.
Sabe-se, hoje, que a operação «Félix»,
o planeado ataque a Gibraltar a partir
de Espanha, previa que se manteriam na
fronteira portuguesa (Cáceres e
Badajoz) uma divisão blindada e duas
motorizadas prontas a realizar um
avanço fulgurante sobre Lisboa. O
exército espanhol estava preparado para
apoiar uma eventual ocupação de
Portugal111.
A Grã-Bretanha criou, em Junho de
1940, o Special Operations Executive
(SOE), especializado na formação de
guerrilha e sabotagem na Europa.
Jack Gros Beevor, o representante do
SOE em Portugal, organiza em 1941,
quando esteve iminente a invasão do
nosso País pelos alemães, um grupo de
trabalho para a estruturação da defesa e
resistência no Alentejo, sob a orientação
e comando do Coronel Rosado, irmão do
Dr. Domingos Rosado, advogado em
Évora e líder local da Oposição.
A rede clandestina foi formada a
partir da malha de funcionários da
empresa Shell em Portugal, tinha como
objectivos: a tentativa de criar os apoios
necessários às forças britânicas
especializadas nas sabotagens e
destruições; a recolha de elementos
topográficos de determinadas regiões do
País; a criação de redes de
comunicações; a criação de casas de
abrigo, podendo servir também de
pontos de passagem para refugiados de
guerra; a organização da resistência
civil.
Além daqueles objectivos, havia o
interesse em tornar Portugal um centro
difusor de propaganda aliada, fazendo
penetrar propaganda inglesa em
Espanha, e, através dela, na Alemanha e
países ocupados, utilizando os correios
portugueses, para a sua distribuição
também no Norte de África112.
Acabou aquela por ser desmantelada
pela PVDE, em 1942, provavelmente a
partir de informações fornecidas pela
Seguridad espanhola (que, por sua vez,
as recebera da Gestapo). Aquela polícia
informou Salazar de que «indivíduos de
nacionalidade portuguesa», cujos nomes
denunciou, auxiliavam, em vários pontos
do país, a distribuição de boletins
noticiosos da Embaixada Britânica113.
Obviamente, muitos dos elementos
detidos eram também os responsáveis
pela difusão da propaganda aliada em
Portugal114
Ante a incerteza do desfecho do
conflito, o receio de uma eventual
invasão do País, a permanente
confrontação com as actividades da
propaganda alemã, para além da
vigilância da polícia política, só uma
inabalável convicção na justeza da causa
dos Aliados e na certeza do seu triunfo
explica a dedicação e o empenho postos
ao respectivo serviço por parte de
Manuel Ferreira, durante o conturbado
período de mais de um lustro.
Essa actuação permitiu, mesmo nos
tempos mais difíceis, manter acesa a
esperança, que residia no íntimo da
maioria da população do concelho de
Condeixa-a-Nova, no triunfo das Nações
Unidas.
Numa época em que tantos são
laureados por razões que nada têm a ver
com o mérito pessoal ou a dedicação à
causa pública, seria da mais elementar
justiça não deixar cair no esquecimento
o exemplo de Manuel Alves Ferreira!
A isso nos propusemos.
Os efeitos da Guerra em Condeixa
Portugal, embora sendo um País
neutral, não deixou de sentir os efeitos
da Guerra à escala planetária e, apesar
do não envolvimento directo no conflito,
o Povo Português veio a sofrer os seus
efeitos colaterais, sobretudo as classes
economicamente mais desfavorecidas,
como o racionamento de bens
essenciais, as consequentes filas, o
mercado negro, e, até mesmo, a fome.
Dada a estrutural dependência da
economia portuguesa relativamente ao
exterior (o estrangeiro e as colónias) em
matérias-primas, bens intermediários e
outros bens de consumo essenciais – a
sofrer os efeitos conjugados do bloqueio
económico naval anglo-americano, da
guerra submarina, e da consequente
rarefacção, insegurança e
encarecimento dos transportes
marítimos –, apesar da posição de
neutralidade do País, tal implicou a
adopção, ou o reforço, de uma política
económica que, em termos estritos, em
nada se distinguia das «economias de
guerra» dos países beligerantes
europeus, salvo, obviamente, no tocante
a destruições materiais, à perda de
vidas humanas, à intensidade de certas
carências a que houve que responder,
ou à diversidade organizativa ou
quantitativa de certas soluções115.
As dificuldades provocadas pela
guerra podem ser também
exemplarmente observadas através da
evolução dos preços tabelados,
anualmente, pelas câmaras municipais,
em Agosto ou Setembro de cada ano.
Até 1942, os preços permaneceram
estáveis, com prejuízo para os
produtores, situação insustentável a
partir desse ano, em que, para
responder ao mercado negro, e a uma
maior carência dos produtos, aqueles
subiram em flecha.
Apesar de existirem na Vila diversos
armazéns de mercearia, o racionamento
na venda de determinados produtos é
uma das recordações mais fortes de
quem viveu essa época. Cada família
tinha de levantar as senhas de
racionamento necessárias, distribuídas
pela Comissão Reguladora do Comércio
Local, controlada pela Intendência Geral
dos Abastecimentos116, a qual funcionou
na Avenida Visconde de Alverca.
Segundo vários testemunhos
recolhidos, para se conseguir um bem
essencial como o pão, era necessário ir
para a fila de madrugada. Para a
padaria de Adelino Ferreira Guiné,
localizada na Rua Dr. Oliveira Salazar
(actual Rua 25 de Abril), a fila atingia as
imediações da Farmácia Rocha, na
Praça da República, acontecendo, por
vezes, que ao chegar a vez do
atendimento o pão já se encontrava
esgotado.
A alternativa para se obter
determinados produtos era o recurso ao
mercado negro, para quem dispusesse
de meios para tal.
O sabão era um dos produtos cuja
falta se fazia sentir. Havia mesmo quem
o fabricasse em casa artesanalmente,
para consumo próprio. A matéria-prima
local eram as borras de azeite, que se
misturavam com água, potassa, soda
cáustica e pez louro, secando depois ao
sol em caixas de madeira117.
Esses tempos difíceis, de crise
generalizada, afectando particularmente
os estratos populacionais de menores
recursos, em que mais se acentuaram as
clivagens económicas da sociedade,
obrigaram a procura de soluções que
pudessem acorrer às graves situações
de carência alimentar e, até mesmo, de
fome verificadas no concelho.
Em 18 de Fevereiro de 1940, a
Assembleia Geral da Santa Casa da
Misericórdia de Condeixa-a-Nova
deliberou introduzir nos seus Estatutos,
entre outras alterações, uma disposição
em que criava a Sopa dos Pobres,
«humanitária instituição para mitigar a
fome a pedintes, inválidos do trabalho e
famílias de operários» e «socorrer
pequeninas criaturas sem pão»118.
A inauguração da Sopa dos Pobres
ocorreu a 24 de Fevereiro de 1940,
estando o refeitório instalado em
terrenos do Hospital D. Ana Laboreiro
d’Eça, licenciado pela Câmara Municipal
de Condeixa-a-Nova no mandato do Dr.
Joaquim Simões de Campos Júnior.
A respectiva Comissão era presidida
por Fortunato Pires da Rocha, sendo
secretário Isac de Oliveira Pinto, e
vogais o P.e Augusto Neves Pimenta e
Abílio Simões Pires do Reis.
A 30 de Março de 1940, foi eleita a Mesa
da Santa Casa da Misericórdia de Condeixa-a-
Nova, ficando a Mesa constituída do modo
seguinte: Dr. Cândido Sotto Mayor, Provedor;
Comandante Fortunato Pires da Rocha, Vice-
Provedor; Abílio Simões Pires dos Reis, 1.º
Secretário; Isac de Oliveira Pinto, 2.º
Secretário; Padre Augusto das Neves
Pimenta, Tesoureiro. Substitutos: Dr.
Sebastião Marques d’Almeida, António
Simões Fernandes, Joaquim da Costa,
Joaquim Simões Cravo e Amadeu dos Santos
Ferreira.
A Obra da Sopa dos Pobres era
sustentada por cerca de duas centenas
de benfeitores subscritores mensais,
entre particulares de todos os estratos
sociais, e empresas, nomeadamente os
armazéns de mercearias locais, para
além de donativos especiais, em
dinheiro e em géneros diversos,
exercendo a função de cobrador o Sr.
Álvaro Pedro Augusto.
Presidia à Comissão Central das
Senhoras Protectoras da Obra, D. Maria
Elsa Franco Sotto Mayor, grande
benfeitora da mesma.
A Sopa dos Pobres, com a qual
colaboravam as Irmãs a prestar serviço
no Hospital D. Ana Laboreiro d’Eça,
recebeu, a 18 de Junho de 1940, a visita
da Madre Geral das Religiosas
Hospitaleiras de Portugal, D. Dolores
Meireles.
Nos dez meses entre 24 de Fevereiro
e 31 de Dezembro de 1940, foram
servidas na Sopa dos Pobres 40.853
refeições, sendo a média diária de 149
utentes, entre adultos e crianças de
ambos os sexos, a quem era servida uma
única refeição diária, constituída apenas
por sopa, salvo nos dias festivos, como a
Páscoa, em que era proporcionado um
repasto mais substancial, e o Natal, com
uma segunda refeição, ao jantar.
A média dos géneros gastos,
mensalmente, no primeiro ano de
funcionamento, era de 278 quilos de
milho, 106 quilos de batata, 102 quilos
de feijão, 79 quilos de arroz, 55 quilos
de macarrão, 7 quilos de grão de bico,
49 quilos de pão, 13 quilos de trigo, 31
quilos de carne, 13 litros de azeite, e 22
alguidares de hortaliças.119
A sua actividade, segundo
depoimentos recolhidos, continuou
mesmo para além do final do conflito, no
difícil período do Pós-Guerra, embora
não tivesse sido possível averiguar,
concretamente, quando cessou e as
razões para o seu encerramento.
Perdurará, certamente, como um
marco indelével do espírito solidário, em
tempos de crise, do Povo de Condeixa!
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AA.VV. Coordenação de Nuno
Severiano Teixeira, Edições Colibri,
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Figura 1 – Manuel Alves Ferreira, em 1945
Figura 2 – Manuel Alves Ferreira, em 2006, ano do seu falecimento
Figura 3 – Carta do Embaixador do Reino Unido
Sir Owen O’Malley
Figura 4 – Tradução que acompanhava a carta
do Embaixador Britânico
Figura 5 - «A Guerra Ilustrada» P.W.P. 20, do
ano de 1941
Figura 6 – Postal com a caricatura de Winston
Churchill, reproduzida do Daily Sketch
«Estórias» da oposição em Condeixa
no tempo de Salazar
Paulo Marques da Silva
Foi quando me encontrava a fazer
pesquisas para um trabalho sobre Fernando
Namora, no âmbito de um seminário de
licenciatura em História, que culminou com a
publicação, em Maio de 2009, do livro
Fernando Namora por entre os dedos da
PIDE – a repressão e os escritores no Estado
Novo, que encontrei alguns documentos com
referências à vila de Condeixa. Sensivelmente
pela mesma altura, quando efectuava
diversas leituras transversais a esse trabalho,
li alguns livros de Alberto Vilaça, com uma
atenção particular para dois deles, onde o
autor disseca as aventuras e desventuras dos
homens (sempre com referência a muitos
nomes) que fizeram a história do PCP e do
MUD Juvenil em Coimbra, existindo, também
aqui, algumas observações a reter sobre
pessoas de Condeixa120. Decidi então, findo
o trabalho sobre Fernando Namora,
realizar uma pesquisa sobre a PIDE e a
oposição ao regime em Condeixa-a-
Nova. O resultado deste trabalho será
convertido em novo livro, caso se venha
a revelar profícuo e se consigam reunir
outras boas vontades, sempre
necessárias quando se chega ao
momento de uma publicação. O que
agora apresento aqui, são algumas
notas soltas dessa investigação (ainda
em pleno decurso) que, espero, mais
tarde, se transforme em obra mais
aprofundada e completa.
Estas primeiras linhas contam-nos,
genericamente, algumas histórias
avulsas com alguns ingredientes típicos,
quanto à forma de actuação da PIDE, e
como esta obtinha as suas informações
sobre os elementos «desafectos» ou
sobre as actividades da oposição, por
mais incipientes que fossem,
nomeadamente, através das diversas
denúncias e dos informadores que
faziam chegar as notícias à polícia
política, colmatando a carência de meios
existentes no terreno, particularmente
nas décadas de 40 e 50. Tentaremos,
também, mostrar como a oposição se
organizava e qual o seu modo de
actuação.
Um gráfico elaborado ou, pelo menos,
transmitido à PIDE pela Legião
Portuguesa, em 1949, revela-nos como a
oposição ao regime estava organizada
nas localidades em torno da cidade de
Coimbra. Existindo sempre uma
dependência a esta cidade, por parte
das outras localidades, segundo a
informação da Legião, ao observarmos a
parte superior do gráfico, vemos que o
semicírculo representava aquelas
localidades que se supunha manterem
entre si ligações directas e, para além
disso, com ligações independentes a
Coimbra, como são os casos da Manuel
Deniz Jacinto no seio da oposição, nas
regiões referidas, nomeadamente em
Condeixa, onde mantinha família, sendo
ele, claramente, quem exercia
influência, contactos e ligações nesta
vila.
Nascido em Condeixa, em 8 de
Janeiro de 1915, filho de famílias
modestas, foi actor, encenador, crítico
de teatro, poeta e professor. Pertenceu
à denominada Geração de 40, sendo
contemporâneo de Egídio e Joaquim
Namorado, João José Cochofel, Carlos
de Oliveira, Fernando Namora, Jofre
Amaral Nogueira ou Armando e Raul
Castro, com quem privou na
universidade (e fora dela) e que foram
activos elementos do neo-realismo em
Coimbra.
Pertenceu, igualmente, ao sector
intelectual de Coimbra do PCP, tendo
sido preso, no ano de 1949, na Figueira
da Foz. Encerrado no Aljube e
transferido para Caxias no ano seguinte,
esteve proibido de receber visitas
durante 45 dias por «manifestações de
indisciplina». Foi libertado em Fevereiro
de 1953, após cumprir a pena de prisão,
mais as famosas «medidas de
segurança».
Um relatório de 21 de Agosto de
1946, existente no processo da PIDE de
Deniz Jacinto, dá conta de alguns dos
elementos oposicionistas organizados na
cidade de Coimbra e as suas ligações a
Condeixa. Vejamos uma parte dessa
informação:
«Em Coimbra, fazem parte do
Partido Comunista: Dr. MÁRIO DA
SILVA, Dr. MANUEL DENIZ
JACINTO, Dr. ÁLVARO CUNHA,
JOÃO JOSÉ DE MELO AIRES DE
CAMPOS COCHOFEL, FERNANDO
BATISTA, Dr. EDUARDO CORREIA,
Dr. PAULO QUINTELA, estudante
ARQUÍMEDES DA SILVA SANTOS,
FRANCISCO SALGADO ZENHA,
MANUEL BREDA SIMÕES, Dr.
ANTÓNIO RIBEIRO SIMÕES, Dr.
ACÚRCIO LOPES, JAIME
AZEVEDO REDONDO, ÁLVARO DE
SEIÇA NEVES, JOAQUIM
MANUEL, Dr. COIMBRA e
NAMORADO.
[…] Em CONDEIXA, estiveram
reunidos os Srs. Dr. MANUEL
DENIZ JACINTO e NAMORADO,
que veio de Portalegre a Condeixa,
com os seguintes elementos
daquela localidade: ALFREDO
MIRANDA, JOÃO PIMENTEL e
EVARISTO PEREIRA MOREIRA e
os avançados: JÚLIO ROCHA,
ANTÓNIO MATEUS e JOAQUIM
DA SILVA BANDEIRA, na Livraria
do Café Conímbriga, entre os dias
10 e 17 do corrente.»122
Já um relatório de Fevereiro de 1948,
elaborado por um informador que
conhecia muito bem o meio coimbrão e,
concretamente, os elementos da
oposição, até porque com eles convivia e
se fazia passar por um entre pares,
comunica à PIDE quem estava por
detrás das organizações oposicionistas,
nomeadamente do MUD, que se
preparava para as eleições, existindo
uma referência concreta a Condeixa e a
Manuel Deniz Jacinto. O informador dá
conhecimento do entusiasmo da
oposição na criação de comissões com o
intuito, entre outras coisas, de efectuar
o recenseamento dos seus apoiantes
para o próximo acto eleitoral, ao mesmo
tempo que crítica o marasmo da União
Nacional em termos de acção.
Transcreve-se um excerto dessa
informação, que tinha o título de
«Manobras para o recenseamento
eleitoral»:
«Os mudistas DR. FERNANDO
LOPES, LUÍS BAETA DE CAMPOS,
bem como o comunista chefe DR.
MANUEL DENIZ JACINTO, estão a
trabalhar activamente no
recenseamento dos seus adeptos
para o acto eleitoral. Para isso, tem
havido umas bem simuladas
reuniões no escritório do DR.
FERNANDO LOPES, na Rua
Ferreira Borges e no Colégio
Portugal, propriedade do BAETA
DE CAMPOS. A tais reuniões tem
assistido o FRANCISCO ALVES
CORREIA e algumas vezes o DR.
MÁRIO AUGUSTO DA SILVA.
Esta comissão está trabalhando
com uma ordem e método deveras
interessante, que lhes deve dar
bom resultado e rendimento, pois
não limitam a sua acção só à
cidade de Coimbra. Todo o Distrito
é por eles bem trabalhado e estão
organizando comissões nas
principais vilas e sedes dos
concelhos, para o trabalho
eleitoral. O fim destes indivíduos é
ter o maior número de adeptos
inscritos nos seus livros para
quando houver o sinal de eleições
terem assim já todo o trabalho feito
para não serem colhidos de
surpresa. Tal prática, segundo eles
dizem, está a ser seguida
habilmente por todo o País.
O DR. DENIZ JACINTO já tem em
Condeixa um elemento seu a
trabalhar, segundo declarou
ontem. Está também em ligação
com o DR. RAÚL MADEIRA, em
Soure, e, na Figueira da Foz com o
ex-tenente RAFAEL DE SAMPAIO e
JOSÉ RIBEIRO. No Distrito de
Aveiro, tem o MAIA ALCOFORADO
que agrega a si um respeitável
número de camaradas.»123
O relatório prossegue com várias
outras informações, destacando um
encontro entre Deniz Jacinto e o médico
Fernando Valle que, segundo o
informador, organizava a comissão do
concelho de Arganil, bem como de
outras importantes vilas beirãs. Refiro
este encontro, em virtude das ligações
familiares destes homens a Condeixa,
que haverá de ser referido numa
denúncia de um condeixense à PIDE,
como veremos mais adiante.
No tocante à União Nacional, o
informador revela o que pensa a
oposição, nomeadamente Baeta de
Campos, quanto à sua acção,
corroborando da opinião deste:
«Em simples conversa com o
BAETA DE CAMPOS, este referiu-
se à União Nacional dizendo que
tal organismo já não oferece
receio, pois, a sua acção,
presentemente nada vale e quando
quiserem acordar, já as comissões
que estão a organizar devem ter o
trabalho todo feito.
O Padre JOSÉ DA CRUZ DINIZ tem
vindo ao Colégio Portugal falar
com o BAETA DE CAMPOS e está
com ele para trabalhar.
Devo informar que no Distrito de
Coimbra a U.N. está muito mal
organizada nada se fazendo. É uma
organização morta e até em alguns
concelhos os próprios componentes
das comissões não se entendem
entre si e tudo corre sem qualquer
acção que traga benefícios ao
Estado Novo. Política nacionalista
não se faz. Captação de adeptos é
letra morta. Propaganda é zero e
tudo isto vem redundar em
benefício dos anti-situacionistas,
que sabedores de tais factos, tiram
disso partido junto do povo.
Devo esclarecer que os mudistas e
comunistas, tudo à mistura, são
muito mais trabalhadores pela sua
causa que os nacionalistas da U.N.,
pois estes revestem-se de um
comodismo pasmoso e não estão
para se incomodar, ao passo que os
outros são ardentes na luta e
trabalham sempre.
Nada os detém, isto é o que eu vejo
diariamente.»124
Uma denúncia do Presidente da
Câmara Municipal de Condeixa,
Fernando de Sá Viana Rebelo, ao
director da PIDE, datada de 9 de Abril
de 1948 (cerca de dois meses depois do
relatório que vimos antes) confirma, de
alguma maneira, a opinião do
informador da polícia política, quanto à
ineficácia da União Nacional e às
movimentações consequentes dos
opositores ao regime. Ele lamenta-se do
facto de os elementos ligados à oposição
estarem a ocupar cargos de direcção ou,
simplesmente, a conseguir que
integrassem os quadros, de algumas das
instituições concelhias. Vejamos este
relatório na íntegra:
«Com os meus respeitosos
cumprimentos venho expor a V.
Ex.ª que, como me cumpre e é do
meu inteiro agrado, tenho prestado
à PIDE todas as informações que
me têm sido pedidas acerca de
indivíduos deste concelho que
pretendem lugares oficiais ou
oficiosos.
No entanto, noto que para o Grémio da
Lavoura de Condeixa, têm sido
nomeados directores e funcionários,
desafectos à Situação Política actual,
elementos de perturbação na vida
administrativa e política de Condeixa,
sem que esta Câmara ou, pelo menos,
eu, tenham sido ouvidos acerca da
conveniência da nomeação ou
manutenção desses indivíduos para os
cargos referidos.
Assim, à testa do Grémio da
Lavoura tem estado o Snr.
FORTUNATO PIRES DA ROCHA,
capitão de fragata na Armada na
situação de Reserva, pessoa que,
na minha frente, pediu para assinar
uma lista do MUD a seu primo e
único amigo, em Condeixa, DR.
ALFREDO PIRES DE MIRANDA,
funcionário distinto, homem de
carácter, mas … o chefe da
Comissão do MUD condeixense.
Este Sr. PIRES DA ROCHA,
elemento tão perturbador que
acaba de, acobertado com a farda
que envergou, se queixar do actual
Governador Civil de Coimbra a Sua
Exª. O Senhor Ministro do Interior,
irmão de um dos farmacêuticos de
Condeixa, o DR. JÚLIO PIRES DA
ROCHA (também da Comissão do
MUD), mentor político do prof.
primário ANTÓNIO MATEUS
(também da Comissão do MUD);
irmão do Dr. ANTÓNIO PIRES DA
ROCHA, velho evolucionista,
padrinho do conhecido mudista
conimbricense DENIZ JACINTO,
etc, etc,; esteve, desde o início do
Grémio da Lavoura à testa dele e
nele tem feito a política que lhe
convém e que…não convém à
Câmara, por ser anti-situacionista.
Instalou-se também na Presidência
da Casa do Povo e nela fez a
mesma política até que, nas
últimas eleições, foi afastado pelos
elementos do Estado Novo e,
felizmente, por larga maioria.
Vendo que se preparavam estes
últimos para o afastarem também
do Grémio, demitiu-se porém…deu
homem por si, seu cunhado cap.
ANTÓNIO PITA, elemento amorfo,
pelo menos politicamente, mas
cego executor das ordens do Snr.
ROCHA.
Como gerente do Grémio, nomeou
um tal ANTÓNIO CORREIA,
funcionário aposentado dos
Correios, crê-se que por motivos
não estranhos à política e que nas
últimas eleições fez propaganda
contrária à lista apresentada pelo
Governo.
O único funcionário legionário que
ali havia, foi despedido sob a
acusação de, quási ladrão,
acusação que não se provou em
tribunal, tendo o Sr. PIRES DA
ROCHA e a direcção sendo
condenados a pagarem-lhe uma
indemnização de perto de
10.000$00.
Tendo a Comissão da U.N.
deste concelho enviado,
recentemente, ao Grémio da
Lavoura uma lista para ser
preenchida pelos funcionários
que quisessem – à semelhança
do que fez com as outras
repartições – esse Snr. ROCHA
e o tal gerente, enviaram-na,
creio que «confidencialmente»
para Lisboa, acusando a
Comissão da U.N. de «rasteira
política», etc, etc, etc.
Estamos num momento crítico em
que é necessário ter nos «pontos
estratégicos» da política,
elementos de toda a confiança.
Ora o Grémio da Lavoura de
Condeixa, com larga projecção no
concelho, está entregue a
elementos que não são de
confiança e por isso, antes que seja
tarde, eu peço a V. Ex.ª se digne
mandar informar-se a fim de que
uma instituição do Estado Novo
não seja, exactamente, o baluarte
político do Estado Velho.
Creia-me V. Ex.ª com toda a
consideração»125
De facto, a oposição parece marcar
pontos na sua estratégia de ocupação de
lugares considerados de influência
política, nomeadamente, como refere,
desiludido, Fernando Rebelo, nas
instituições do próprio Estado Novo,
onde deveriam estar presentes pessoas
de confiança, que seriam garantes dos
objectivos eleitorais do regime de
Salazar.
Revelam-se interessantes, por outro
lado, os laços familiares entre
elementos, muito activos, da oposição
em Condeixa, com o seu contacto e
ligação à cidade de Coimbra, Manuel
Deniz Jacinto. Este, por sua vez, tem
laços com o médico Fernando Valle,
conhecido opositor na região de Arganil.
Mas é, igualmente, genro de um homem
do regime, o tenente Beato, presidente
da União Nacional e figura de referência
do regime em Condeixa. No entanto,
como veremos, os laços de família
falarão alto e o tenente Beato agirá, por
vezes, de modo a criar amargos de boca
aos situacionistas de Condeixa.
Utilizando, até agora, apenas
revelações que chegam à PIDE através
de denúncias e informadores (refiro-me,
no caso dos informadores, a pessoas que
trabalham para a PIDE, recebendo
salário, isto para fazer a distinção dos
denunciantes, que acabam por ser
igualmente informadores mas, de forma
ocasional ou sem vínculos efectivos),
relembro que, pelo menos até ao início
da década de 50, os efectivos da polícia
política eram muito escassos. Um estudo
de Maria da Conceição Ribeiro126 aponta
para cerca de 400 elementos, no ano de
1945, segundo as estimativas mais
credíveis. Neste contexto, a colaboração
da PSP, da GNR, da Guarda Fiscal, da
Legião Portuguesa, dos Governadores
Civis, dos Presidentes de Câmara e de
outros responsáveis concelhios, era
fundamental, face à deficiente cobertura
do território nacional por parte da PIDE.
Assim, em grande parte dos casos, são
as autoridades locais e a Legião
Portuguesa, que fazem as denúncias dos
indivíduos considerados subversivos ou,
potencialmente subversivos, já que
comunicavam à polícia situações como a
existência de conversas suspeitas em
locais públicos, hábitos como usar
vestuário vermelho ou não frequentar a
missa, caindo num nítido exagero. Mas,
é um facto, conforme vimos nos
relatórios já referidos, como nos que
vamos ainda citar, que estas
informações permitiram à PIDE ter
referenciados, praticamente, todos os
elementos da oposição ao regime, desde
os mais activos aos menos empenhados,
podendo a polícia política actuar contra
aqueles quando assim entendesse, como
efectivamente o fez, conforme veremos
alguns exemplos.
Um dos nomes referidos na denúncia
que acabámos de ver é o do professor
primário António Mateus, nome ligado,
desde sempre, à oposição ao regime em
Condeixa, sendo este, um bom exemplo
do que o regime podia fazer aos seus
opositores.
António Augusto Mateus nasceu em
Condeixa-a-Nova, em 21 de Dezembro
de 1910. Foi professor primário durante
cerca de 16 anos, tendo exercido na
Escola Masculina desta localidade.
Muito estimado em Condeixa, ainda hoje
se realiza, anualmente, um almoço-
convívio entre os seus antigos alunos.
A consulta dos seus processos da
PIDE permite traçar algumas linhas
sobre aspectos importantes da sua vida
como oposicionista ao regime, desde
logo, a interrupção da sua carreira como
professor.
De facto, o seu apoio à candidatura do
General Norton de Matos, nas eleições
para a Presidência da República, veio a
tornar-se um facto marcante na sua
vida, pois valeu-lhe o afastamento do
ensino. Um despacho do Conselho de
Ministros, de 12 de Setembro de 1949,
publicado no Diário do Governo, ainda
nesse mês, ao abrigo do art.º 1.º do
Decreto-Lei n.º 25317, de 13 de Maio de
1935, formalizava a situação.
Confrontado com esta realidade, em
22 de Setembro de 1949, o Prof. Mateus
apresenta uma reclamação,
acompanhada de um abaixo-assinado,
negando pertencer a qualquer núcleo de
resistência contra o Estado ou a autoria
de qualquer acto que pudesse perturbar
o mesmo.127
Face a esta reclamação, em 11 de
Outubro de 1949, o Serviço de Cadastro
e Informativo da PIDE instrui o chefe da
delegação da PIDE de Coimbra, para
que procedesse a minuciosas
averiguações sobre a idoneidade moral
e política do Prof. Mateus, conforme o
solicitado pela Secretaria da Presidência
do Conselho.
Ainda nesse dia, o responsável da
Delegação de Coimbra, incumbe um
chefe de brigada de efectuar diligências
com vista ao cumprimento do solicitado.
No dia seguinte, pede igualmente ao
Governador Civil de Coimbra para que
forneça todas as informações que ali
existam sobre o Prof. Mateus. O
Governo Civil dará nota da existência de
dois requerimentos, de finais de 1945,
onde os signatários (entre os quais o
Prof. Mateus) solicitavam autorização
para efectuar uma reunião, cuja
organização pertencia à comissão
concelhia do MUD. Quanto ao chefe de
brigada, não tem dúvidas de que o Prof.
Mateus é «elemento possuidor de ideias
avançadas, não pactuando, de maneira
alguma, com qualquer coisa que seja do
Estado Novo», apontando-o como activo
oposicionista na campanha eleitoral do
ano de 1945 e também no apoio à
campanha «nortista», em 1949.128
A reclamação não foi atendida.
Afastado do serviço veio a fixar
residência em Coimbra, na rua D.
Manuel Bastos Pina, 15 – 1.º. Aqui,
concluiu o Curso dos Liceus e,
posteriormente, a licenciatura em
Direito, em 1957.
Em Agosto de 1957, o Prof. Mateus
vê-se na necessidade de enviar nova
exposição, para que fosse revisto o
processo de inquérito e lhe fosse dada a
possibilidade de cumprir o estágio legal,
para poder ser admitido a concurso de
notário e conservador.
No seguimento da exposição, em 22
de Outubro de 1957, a PIDE solicita ao
Inspector-Adjunto José Barreto Sachetti,
que informe aquela Direcção sobre o
porte moral e político do Prof. Mateus. A
resposta segue a 12 de Novembro.
Desta vez, o relatório refere que não lhe
são conhecidas actividades políticas,
quer durante o curso universitário, quer
na última campanha eleitoral, pelo que
«é de admitir que se tenha operado uma
transformação política na sua forma de
pensar acerca das Instituições
Vigentes».
Ainda na sequência do exigido no
ofício da PIDE, dirigido à Delegação de
Coimbra em 27 desse mês, o Prof.
Mateus é chamado a prestar
declarações perante Sachetti, onde
declara, no respectivo «Auto», «não ter
quaisquer actividades políticas que
hostilizem as Instituições vigentes e que
vive absolutamente para os seus
afazeres profissionais e sua família».
Assim, o Prof. Mateus efectuará o
estágio pretendido.129
Mas, no seu processo, podemos ainda
encontrar, em Julho de 1959, novas
solicitações da PIDE para a sua
Delegação de Coimbra (mas com origem
na Direcção Geral dos Registos e
Notariados) pedindo que se averiguasse
o seu porte moral e político, para efeitos
de admissão a Conservador (interino) do
Registo Civil de Oleiros. Desta feita,
Sachetti, após solicitar informação ao
Presidente da Câmara Municipal de
Condeixa e de se socorrer, também, de
uma informação do célebre «Inácio»
(informador da PIDE em Coimbra),
responde reiterando a validade da
informação já enviada em 1957, onde se
dizia nada constar em seu desabono,
quanto ao seu porte moral e político.130
Apesar de lhe ser permitido,
superiormente, o acesso ao estágio e
concurso referidos e de, nas averiguações
efectuadas nada lhe ser apontado, a PIDE
parece usar da máxima «suspeito uma vez,
suspeito sempre».
Assim, em 1960, uma informação da
Subdelegação da PIDE de Coimbra, após
a publicação no Diário do Governo da
nomeação do Prof. Mateus como
Conservador do Registo Civil e Predial
de Condeixa-a-Nova, regista o regozijo
dos elementos da oposição de Condeixa
com esta nomeação e o facto de, sempre
que o Prof. Mateus se deslocava a
Condeixa, ser «assaltado»
imediatamente pela falange da oposição
aqui residente.131
Também, em 1962, uma outra
informação desta Subdelegação dá nota
das «demoradas» conversas
«escolhendo locais menos
movimentados» em Coimbra, entre o
Prof. Mateus e o Prof. Alexandrino
Ribeiro, após regressarem de Condeixa,
onde ambos trabalhavam.132
Vejamos: o simples apoio a um
candidato da oposição a eleições, que o
regime dizia livres, numa pequena vila
de Portugal (sabendo-se que as
principais acções e a maior mobilização
e visibilidade da oposição, eram
patentes apenas nas principais cidades
do país) podia ser o suficiente para valer
a demissão da função pública.
Lembremo-nos que os quadros que
ingressavam na função pública eram
obrigados, sob juramento, a repudiar
formalmente o comunismo e à aceitação
da ordem social estabelecida pela
Constituição Politica de 1933, segundo o
Decreto-Lei nº 27.003, de Setembro de
1936. Era esta a formula que um
funcionário tinha que subscrever:
«Declaro por minha honra que estou
integrado na ordem social estabelecida
pela Constituição Política de 1933, com
activo repúdio do comunismo e de todas
as ideias subversivas».
Mesmo os cidadãos que não eram
comunistas, mas eram considerados
«desafectos» do regime ou, tão só,
suspeitos de o serem ou terem sido,
podiam ser punidos com a não
contratação. Aliás, o Decreto-Lei nº
25.317, de 13 de Maio de 1935, com
base no qual foi afastado do ensino o
Prof. Mateus, dizia no seu artigo
primeiro: «Os funcionários ou
empregados, civis ou militares, que
tenham revelado ou revelem espírito de
oposição aos princípios fundamentais da
Constituição Política, ou não dêem
garantia de cooperar na realização dos
fins superiores do Estado, serão
aposentados ou reformados, se a isso
tiverem direito, ou demitidos em caso
contrário».
Como se vê, ainda antes da utilização
de duas das instituições que foram
pilares fundamentais do Estado Novo e
muito contribuíram para o longo período
de vigência deste, como são os casos da
PIDE, punindo quem ousava pôr em
causa o regime, ou da Censura,
silenciando as opiniões discordantes, já
antes, por via administrativa, através
das leis, se conseguia dominar, de forma
eficiente, a maior parte do país.
Mas, vejamos também, o caso do
condeixense António Pocinho que, na
campanha para as presidenciais, de 1949,
participou, juntamente com outros seis ou
sete rapazes, na colagem de cartazes do
candidato apoiado pela oposição, General
Norton de Matos. Acontece que, durante a
noite, os cartazes afixados por Condeixa do
candidato do regime, o Marechal Carmona,
apareceram todos sujos com excrementos.
Embora, António Pocinho afirme que não teve
nada a ver com o assunto133, a verdade é que
foi chamado à GNR, pois julgavam que ele
era um dos responsáveis. Presente no Posto
esteve, também, o Presidente da Câmara de
Condeixa, Fernando Rebelo. Foi depois
chamado à delegação da PIDE, de Coimbra,
onde foi interrogado pelo agente Eurico
Geraldo, que queria saber quem sujou os
cartazes. António Pocinho disse que não
sabia. De facto, na nossa conversa, confirmou
ainda hoje não saber quem foram os autores
daquele acto. Enfim, depois de uma troca de
palavras mais azedas com o agente da PIDE,
A. Pocinho teve coragem para dizer, entre
dentes, « e estamos nós no século vinte», o
que lhe valeu um soco na boca.
Certo é que, seis ou sete anos depois,
por volta de 1955 ou 1956 (não
consegue precisar), A. Pocinho queria
obter um trabalho que lhe desse mais e
melhores garantias, tendo-se
candidatado a um emprego nas
Finanças. No entanto, foi excluído de
prestar provas, por motivos políticos,
face ao seu apoio à candidatura de
Norton de Matos, conforme informação
vertida no Diário do Governo.
Fez, então, uma exposição a Salazar
sobre o assunto, tendo, posteriormente,
recebido autorização para prestar
provas. Foi admitido em 1956, seguindo
para a Ilha Terceira, nos Açores, onde
exerceu as suas funções. A verdade é
que, apenas conseguiu o emprego,
devido à acção do Tenente Beato,
Presidente da União Nacional, em
Condeixa. Este, sempre que ia fornecer-
se de mantimentos à firma Pinheiro &
Viseu, armazém onde A. Pocinho
trabalhava, dizia-lhe para ele se filiar na
União Nacional., se quisesse obter um
emprego público. Nessa altura, A.
Pocinho inscreveu-se. E, quando fez a
exposição a Salazar, alegou ser membro
da União Nacional., tendo o Tenente
Beato emitido um documento com a
respectiva confirmação. Foi isso que lhe
valeu o trabalho nas Finanças,
encontrando-se, hoje, reformado deste
serviço.
Outro habitante de Condeixa que
sofreu na pele a repressão do regime,
foi o médico João Ribeiro. Sem dúvida, o
maior dinamizador da oposição ao
regime nesta vila, várias vezes preso
pela PIDE, com dezenas e dezenas de
relatórios de informadores da polícia
política, homem sem medo, como já não
se usa, foi um nome transversal no
tempo, em termos de luta contra o
regime em Condeixa.
Companheiro e amigo de Alberto
Vilaça (frequentaram ambos a
Universidade de Coimbra) é
referenciado, por este, como um activo e
irrequieto elemento no meio
universitário coimbrão, entre, pelo
menos, 1946 e 1953.
Membro do MUD Juvenil integra,
desde 1949, os órgãos directivos da
Universidade, tendo estado presente na
reunião dos representantes das
comissões das três Academias (Lisboa,
Porto e Coimbra), realizada no dia 21 de
Outubro de 1951, onde se instituiu o Dia
do Estudante.134
Durante a campanha presidencial do
General Norton de Matos, em 1949, os
membros do MUD Juvenil, incluindo
João Ribeiro, tiveram importante
participação na propaganda eleitoral.
Com dois comícios realizados em
Coimbra, em Janeiro e Fevereiro, os
elementos do MUD Juvenil cobriram as
paredes na cidade com a colagem de
cartazes e panfletos, frequentes vezes
ao longo das noites, com grande
azáfama e aparato de baldes, cola,
pincéis, escadotes e maços de cartazes.
João Ribeiro esteve, igualmente, no
comício de apoio ao general realizado na
Quinta da Fonte da Moura, no Porto.135
O MUD Juvenil já tinha, de resto,
alguma tarimba para este género de
acções. Face à repressão do Estado
Novo e para além de recorrer a abaixo-
assinados ou à distribuição de
documentos, era usual a recorrência às
inscrições murais a tinta de óleo e
nitrato de prata, visíveis não só em
Coimbra, mas, igualmente, em Condeixa
e na Figueira da Foz, bem como em
outras zonas. Pela descrição de Alberto
Vilaça, um dos participantes nestas
acções, juntamente com João Ribeiro, o
nitrato de prata comprava-se «às
escondidas» numa farmácia, diluía-se
em água e, seguidamente, as frases
eram pintadas. Estas ficavam ilegíveis,
já que estas acções decorriam, por
norma, durante a noite e só pela manhã,
com a luz do dia, ocorria a reacção
química que tornava as letras bem
visíveis.136
O MUD, por finais dos anos 40 e, mais
concretamente, entre 1950 e 1953,
estava implantado na Universidade de
Coimbra e em alguns meios
trabalhadores e colectividades desta
cidade, bem como em meios operários
do concelho da Figueira da Foz, com
ligações asseguradas por correio,
comboio e, mais localmente, por
bicicleta. Mas, havia também outros
contactos, designadamente em
Condeixa. Ainda segundo Alberto Vilaça,
as ligações a Condeixa existiam já desde
os primeiros anos do MUD, numa rede
que abrangia, para além de Coimbra (o
elemento central) e a Figueira da Foz,
algumas localidades do distrito de Viseu
e Guarda.137
João Ribeiro era a figura central da
oposição em Condeixa. Quando se
encontrava na vila era um autêntico
furacão mobilizador e agregador de
vontades contra o governo de Salazar.
Se, em Coimbra, como sabemos, os
aderentes do MUD ou da oposição, de
um modo global, se juntavam nos cafés
da baixa da cidade, como o Café
Brasileira, o Café Montanha, o Café
Nicola, entre outros vários locais, onde
se combinavam encontros e outras
actividades de índole diversa, em
Condeixa, embora haja nos processos da
PIDE referências ao Café Livraria
Conímbriga, ao Café Imperial ou ao Café
Faia Bar, toda a gente sabe, ainda hoje,
que as reuniões da oposição ao regime
se realizavam em casa de João Ribeiro.
De facto, podemos comprová-lo, não só
pelos abundantes testemunhos orais,
como pelos inúmeros documentos da
PIDE que se encontram na Torre do
Tombo, nomeadamente pela autêntica
«marcação cerrada» do informador
«Morcego», que residia em Condeixa e
que produziu fartura de relatórios sobre
o médico condeixense.
As entrevistas que venho realizando
não deixam dúvidas: oposição em
Condeixa, sensibilização e captação de
jovens, reuniões, planeamento de
acções, organização, têm por detrás o
médico João Ribeiro. Por exemplo,
Miguel Pessoa afirma que, quando tinha
19 anos, passou a alinhar com a
oposição, sobretudo por influência de
João Ribeiro, participando em sessões
clandestinas em Condeixa, Coimbra,
Arganil e Marinha Grande, lembrando-
se bem das reuniões em casa do médico,
nomeadamente no seu consultório.
António Pocinho confirma a grande
influência de João Ribeiro e relembra a
formação de uma biblioteca do MUD,
em sua casa, quando tinha 20 ou 21
anos, após uma reunião com João
Ribeiro, no seu consultório, uma das
várias em que participou. Os livros,
cerca de 200, ficaram em sua casa e de
seus pais, na Rua do Outeiro. Era no 1.º
andar que funcionava a biblioteca, onde
se situava a sala de jantar, existindo
ainda um biombo que fazia uma divisão,
que servia de quarto para António
Pocinho. No rés-do-chão da casa, existia
uma oficina de marcenaria, que era
propriedade do seu pai. António Pocinho
trabalhava mesmo em frente à sua casa,
na firma Pinheiro & Viseu, onde alguns
rapazes iam ter consigo para requisitar
livros da biblioteca.
A acção do médico João Ribeiro, que
vimos referindo desde finais dos anos 40
e inícios da década de 50, mantém-se na
década de 60 e na década de 70. Uma
denúncia enviada ao director da PIDE
por um condeixense, datada de 19 de
Novembro de 1962, é bem elucidativa
quanto à capacidade e dinâmica de
acção do médico João Ribeiro, ao mesmo
tempo que são reafirmadas as críticas à
União Nacional, que já vimos atrás, com
as informações chegadas à PIDE
referentes ao ano de 1948, sendo, desta
vez, uma crítica mais específica,
aludindo, em concreto, ao presidente
concelhio da União Nacional, o Tenente
José Pires Beato:
«Excelentíssimo Senhor Major e
meu sempre querido Director:
Ao tomar a liberdade de me dirigir
a V. Ex.ª, com o devido respeito
peço o maior perdão.
Mas, sinto-me na obrigação de,
com a mesma lealdade de sempre,
informar V. Ex.ª, o desgostoso, que
reina neste concelho, dos
Nacionalistas com o Chefe Político
Snr. Tenente JOSÉ PIRES BEATO,
Presidente da Comissão Concelhia
da União Nacional.
O cavalheiro em referência é um
indivíduo que só tem feito asneiras,
sem escrúpulos, persegue os
situacionistas e defende os
oposicionistas.
Além das várias asneiras que tem
vindo a fazer, acontece que no
passado dia 14 de Novembro
corrente, desloca-se, muito em
segredo, a Lisboa, na companhia
d‘alguns reviralhistas de Condeixa e
Coimbra, para defender – segundo
dizem na instrução contraditória – no
processo em organização na Polícia
Internacional contra o médico Dr. João
Ribeiro, que se encontra detido.
Ora, o Dr. JOÃO RIBEIRO, já é
conhecido o suficiente da Polícia e,
sem dúvida, trata-se de um
adversário perigoso, que tem
«minado» toda ou quasi toda a
mocidade deste concelho, grande
propagandista das suas ideias
Políticas, desenvolve grande
actividade a quando das eleições,
dificultando o trabalho, reúne-se
com os do seu Partido várias vezes,
etc.
Por intermédio da imprensa viemos
também a saber que o Dr. J.
RIBEIRO, estava ligado ao Partido
Comunista, o que mais revoltou os
Nacionalistas.
E, com espanto geral, aparece o
Tenente BEATO, Presidente da
União Nacional, que se desloca a
Lisboa com os reviralhistas, a
defender tal indivíduo.»138
Como se vê, causa estranheza aos
situacionistas, pelo menos aos mais
fervorosos, algumas atitudes do Tenente
Beato. Já atrás, tínhamos dado breve
nota, em relação às ligações familiares,
que podiam ainda ser reforçadas com
outros laços de amizade entre as pessoas de
Condeixa ou da região. O autor desta
denúncia relembra aqui, essas conexões
familiares e as amizades existentes, que
poderiam, inclusivamente, face ao prestígio
das pessoas em questão, ser um factor
inibidor para os apoiantes do regime em
Condeixa tomarem acções mais concretas e
incisivas. Vejamos mais um pequeno excerto
desta informação enviada à PIDE:
« O Tenente BEATO é sogro dos
Dr. MANUEL JACINTO, que há
tempos respondeu e ficou
condenado por actividades
subversivas, e do Dr. LUÍS VALE,
Professor e marido da Directora do
Colégio nesta vila, e este é filho do
médico em Arganil, Dr. VALE, que
há meses, segundo consta, também
foi detido pela Polícia. Quer o Dr.
VALE ou o pai, são elementos
declaradamente da oposição.
Os situacionistas neste concelho já
por várias vezes, pensaram fazer
um abaixo assinado para que o
Tenente BEATO fosse
imediatamente demitido do cargo
de Presidente da U.N., mas têm
receio das represálias, pois é,
protegido também do Professor Dr.
BYSSAIA BARRETO.
A propósito, tomo a liberdade de
invocar o nome do Exm.º Senhor
Dr. FERNANDO REBELO, que mais
minuciosamente, poderá informar
V. Ex.ª das qualidades do Tenente
BEATO.
É pelo exposto que me apresso a
informar V. Ex.ª, pois os
Nacionalistas estão a
desinteressar-se de tudo, e de tal
modo que não querem saber de
nada, que se relacione com os
interesses da Nação, pois a maior
parte sente-se envergonhado com
as atitudes que o Tenente BEATO
tem vindo a assumir e a
desenvolver.»139
Acrescente-se que, já um pouco antes de
1962, ano que data este documento, mais
concretamente em 17 de Julho de 1960, uma
informação do escriturário da PIDE, de nome
Serrano, sob o título «Informações policiais
sobre Condeixa», a propósito da nomeação de
Antero Simões Bernardes para 1.º Secretário
do Clube de Condeixa, dava conta de que o
cidadão Antero Bernardes estava ligado à
oposição e, se esta nomeação havia sido
sancionada, não seriam alheios a esta
situação o Presidente da Câmara, que era,
neste período, Evaristo Cerveira de Moura e,
de novo, o Tenente Beato. Estes dois,
aparentemente, tentam defender-se sobre
quem tinha dado uma avaliação política
favorável de Antero Bernardes, indispensável
para aceder ao cargo, empurrando ambos a
responsabilidade para cima do outro. Veja-se
o referido documento policial que parte,
inicialmente, de uma notícia de jornal:
«Para conhecimento de V. Ex.ª a seguir
tenho a honra de transcrever uma
notícia publicada no jornal «Expansão»,
do qual é colaborador o Capitão
CONCEIÇÂO, indivíduo conhecido
como não afecto à actual Situação:
«Foi com muita satisfação que
recebemos a notícia de que o Sr.
Ministro da Educação Nacional
homologou a eleição em que a
Assembleia Geral do Clube de
Condeixa escolheu, por
unanimidade, para o cargo de seu
1.º secretário, o nosso prezado
amigo Sr. ANTERO SIMÕES
BERNARDES, pessoa que pelos
seus dotes morais e de
generosidade se tem sabido impor
à estima e consideração de todos
os bons condeixenses. Como não
podia deixar de ser o Senhor
Ministro da Educação Nacional, ao
homologar a nomeação daquele
nosso amigo corrigiu, e muito bem,
o erro que injustamente se havia
cometido. Pelo facto, está de
parabéns não só o Sr. ANTERO
SIMÕES BERNARDES, mas
também o concelho e o Club de
Condeixa.»
Cumpre-me dar conhecimento a V.
Ex.ª que, o ANTERO BERNARDES
no ano findo, por informação
política, segundo creio, não foi
sancionado superiormente para os
corpos gerentes daquele Club.
O BERNARDES na campanha
eleitoral finda desenvolveu franca
actividade a favor da «oposição»,
quer em distribuição de
propaganda, quer ainda
transportando no seu automóvel
correligionários para onde a sua
presença se fazia sentir.
Mais uma vez a camada da
oposição se regozijou com a
nomeação de tal indivíduo, o qual
apregoa possuir uma credencial de
Sua Excelência o Ministro da
Educação Nacional.
Por último cumpre-me ainda levar ao
conhecimento de V. Ex.ª, que o Sr. Presidente da
Câmara de Condeixa, Dr. EVARISTO
CERVEIRA DE MOURA, em plena Praça da
República, daquela vila, acompanha com os
conhecidos elementos activos de combate ao
Estado Novo, ANTERO SIMÕES
BERNARDES, LUÍS SIMÕES DIAS
CARDOSO DO VALE, ARTUR VARELA, JOÃO
PIMENTEL DAS NEVES, ANTÓNIO
POCINHO CHITA (NICO), CARLOS PEÇA,
CARLOS PRECES JACINTO e FERNANDO
PRECES JACINTO.
Consta que a informação política
de ANTERO SIMÕES BERNARDES
para efeito do cargo que agora vai
desempenhar na direcção do Club
de Condeixa, foi fornecida pelo Sr.
Tenente BEATO em colaboração
com a Câmara Municipal.
Sucede que, após terem conhecimento
que o seu nome foi sancionado, o Sr.
Tenente BEATO diz que a informação
foi prestada pelo Sr. Presidente da
Câmara Dr. CERVEIRA DE MOURA e,
este, por seu turno, diz que foi o Sr.
Tenente BEATO quem forneceu a
informação.»140
São muito curiosas estas situações em
que, figuras com responsabilidades
políticas em organismos conotados com
o governo, nomeadamente o partido que
o apoia, tem acções tendentes a ajudar
elementos desafectos do regime ou
mesmo ligados à oposição a este e, por
outro lado, também, verificar as
reacções que se lhe sucedem, por parte
dos adeptos do regime.
Se saltarmos no tempo, do início dos
anos 60, datas a que se vinculam estes
dois últimos documentos, para os anos
70, verificamos que é o médico João
Ribeiro que continua na linha da frente
da oposição ao regime em Condeixa. Um
período concreto, produziu bastante
informação para a PIDE sobre a
oposição em Condeixa: as
comemorações do 5 de Outubro, em
1973, já nas vésperas do final do Estado
Novo. Em relatório, produzido pelo
informador «Morcego», sobre este
assunto, podemos aferir do grau de
pormenor das notícias que chegam à
sede da PIDE, em Lisboa, já que estas
informações serão dactilografadas pelo
sub-inspector Sérgio Avelino Pereira
para o chefe da polícia política da
delegação de Coimbra, Armindo
Ferreira da Silva141, que, por sua vez, as
remete para a sede. O nome das pessoas
presentes, o que disseram, quem e como
prepararam esta comemoração, todos os
pequenos pormenores, como por
exemplo, onde se foi buscar
determinado material, quem o
emprestou, quem lá foi, etc, etc., está ali
tudo e quase dispensa qualquer
investigação policial adicional. Aliás,
refira-se que, em mais de 100 processos
por mim analisados, na investigação
realizada para o trabalho sobre
Fernando Namora, nunca vi um
relatório efectuado por uma brigada da
PIDE que se assemelhasse aos
produzidos pelos informadores, no que
respeita à validade e ao pormenor da
informação. Parece-me normal, pois o
informador, muitas vezes, como no caso
presente, estava infiltrado na própria
organização ou alinhava com a oposição
nas suas acções, sendo uma parte
integrante e, muitas vezes, activa da
mesma.
Este relatório prossegue, para além do
assunto das comemorações do 5 de Outubro,
com outras informações avulsas, relacionadas
ou não, com o assunto central.
Transcrevemos aqui, apenas, a primeira parte
deste documento, onde se faz referência à
efeméride acima designada:
«Cópia de uma informação de
Morcego de 21-10-1973
Os meus cumprimentos
Em seguimento das nossas
conversas, informa:
1.– 5 de Outubro: Na parte da
tarde deste dia, o BANDEIRA
(funcionário dos CTT – guarda-fios,
natural do lugar do Sobreiro,
residente em Condeixa, casado 2.ª
vez com uma mulher conhecida por
«CAVACA») acedeu ao pedido
formulado pelo Dr. João Ribeiro
para nos conduzir no seu
automóvel a Soure. Nesta
localidade, contactámos, na firma
Roxo & Cera, com José Silvestre,
de Condeixa, que, na própria
oficina e imediatamente, desenhou
três cartazes com os dizeres
seguintes:
«Amnistia»
«Viva o Povo Português Livre»
«Paz Sim, Guerra Não»
os quais foram colocados nas
paredes do Café Faia-Bar, em
Condeixa, bem como a Bandeira
Nacional que o CARLOS PEÇA
(pai) conseguiu arranjar.
O referido BANDEIRA emprestou,
a meu pedido, um pequeno
aparelho de «Sasseti» [sic] onde
gravaram os discursos e
intervenções feitas no final do
jantar que no Faia-Bar ali se
realizou pelas 21 horas.
Presentes mais de 150 pessoas que
iam aparecendo com o pretexto de
tomar a «bica». Destacava-se a
presença de JOSÉ MARTINS,
JOAQUIM CORREIA, ambos da
Figueira da Foz; Dr. ORLANDO DE
CARVALHO, MISARELAS
(Deputado pela Oposição
Democrática); JORGE (estudante),
de Coimbra; VILAR, (que gravou
absolutamente tudo, utilizando um
aparelho de grandes dimensões),
uma filha do ROSA E. (proprietário
de uma retrosaria sita nas Escadas
do Gato – frente à Casa Viriato) de
Coimbra.
De Condeixa: MARIA PENA,
MANUEL BRANQUINHO (seu
namorado), CARLOS PEÇAS (pai e
filho), JOSÉ PESSOA, ANTÓNIO
MENDES DA CRUZ, MANUEL
FONTES, ANTÓNIO CANICEIRO
DA COSTA, JOÃO POCINHO,
JÚLIO DOS SANTOS, filho de
MANUEL DOS SANTOS OLIVEIRA
(O NICHA), CURTO (conhecido
pelo filho do PARENTE),
funcionário da Secção de Finanças,
do lugar do Sebal Grande;
JOAQUIM GORGULHO, muitos
jovens estudantes de ambos os
sexos, quer de Condeixa, quer de
Coimbra.
O Dr. JOÃO RIBEIRO principiou
por ler uma mensagem de
saudação do Movimento
Democrático de Coimbra; em
seguida recordou os que, em 1910,
sacrificaram a própria vida por um
Portugal Livre. Depois usou da
palavra JOSÉ MARTINS, da
Figueira da Foz, para dizer que já
vai sendo tempo de acabar com o
«medo» imposto pelo fascismo.
Procedeu-se à votação sobre o
assunto a debater e todos optaram
pelo da «Guerra no Ultramar». O
Dr. RIBEIRO, JOSÉ MARTINS,
ORLANDO DE CARVALHO,
JOAQUIM CORREIA, VILAR, um
indivíduo também da Figueira da
Foz que cumpria o serviço militar
na Guiné, CARLOS PEÇA (pai),
JORGE (falando em nome do
Movimento Estudantil) disseram
que a Guerra no Ultramar devia
terminar imediatamente, mediante
negociações com os Movimentos de
Libertação, pois a guerra «destrói
a nossa juventude em benefício dos
fascistas que acumulam riquezas e
oprimem os povos». O CURTO
(funcionário das Finanças em
Condeixa) observou que, a ida às
urnas, se obteria agora
confirmação se a guerra no
Ultramar deve ou não continuar. O
Dr. JOÃO RIBEIRO e o Dr.
ORLANDO DE CARVALHO
disseram que as eleições são uma
farsa, que a forma como os
cadernos eleitorais se encontram
elaborados nunca o povo pode
testemunhar a sua vontade. Basta
«sabermos que em França se
encontram 60 mil portugueses a
ganhar o seu pão, já que isso lhes é
negado na sua Pátria».
O Dr. JOÃO RIBEIRO tem
contactado de perto com os
indivíduos da Figueira da Foz,
localidade onde esteve nas noites
dos dias 4 e 12 do corrente.
Encontra-se em seu poder a
«casseti» (do gravador que o
BANDEIRA emprestou), a qual
contém a gravação de todas as
intervenções mas, como tenho dito,
sempre que insisto para que ela me
seja cedida, o Dr. RIBEIRO diz
«qualquer dia à noite, vamos ouvir,
pois está muito boa a gravação».
Vejamos se consigo o combinado.
[…]
Coimbra, 23 de Outubro de
1973"142.
Por agora, ficamos sem saber se, de
facto, o «Morcego» conseguiu ficar na
posse do gravador para fornecer à PIDE.
Ficará para depois, a revelação de
muitas outras informações relativas a
acções da oposição, aos nomes das
pessoas envolvidas e a pequenas
histórias da vila, por vezes ocorridas nos
cafés, como o de António Miro, e que se
encontram documentadas nos arquivos
da PIDE/DGS.
Para concluir, saliente-se, como
refere Miguel Pessoa, que as acções da
oposição em Condeixa, aliás, à
semelhança do que acontecia um pouco
por todo o país, resumiam-se,
essencialmente, às épocas de eleições
ou aos períodos em que se comemorava
determinada efeméride, como vimos no
caso das comemorações do 5 de
Outubro, em Condeixa. Existindo
actividades (e falamos das mais visíveis)
apenas em determinadas alturas, como
os períodos eleitorais, que justificavam
maior mobilização de pessoas e meios
de acção, as iniciativas e a participação
das pessoas nas mesmas, tinham que
ser espaçadas no tempo, com longos
hiatos e até, quando a situação política o
exigia e a Censura e a PIDE
aumentavam a repressão, resultavam
numa quase completa inacção.
Deve-se ter também a noção, quando
nos referimos à oposição, da
elasticidade do conceito, no tocante aos
seus elementos. A noção não era muito
clara. O simpatizante implicava uma
certa ligação e alguma colaboração, com
alguma regularidade, distinguindo-se
dos aderentes, mais solidamente
organizados ou dos meros apoiantes
(que se podem confundir com
simpatizantes), que apenas
participavam em determinadas
actividades específicas e esporádicas. As
fronteiras são ténues. Mas, voltaremos
ao assunto.
As Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de
Jesus em Condeixa
José Amado
A Casa de Saúde Rainha Santa Isabel
A Vila de Condeixa acolhe no seu seio, há
cerca de cinquenta anos, uma Instituição que
se orgulha de ser uma das mais relevantes
instituições de Saúde Mental do País: a Casa
de Saúde Rainha Santa Isabel (CSRSI).
Com efeito, remonta aos anos finais da
década de cinquenta do século passado a
fundação desta Casa de Saúde, pertença do
Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado
Coração de Jesus, e um dos 14 centros
hospitaleiros que a referida Congregação
Religiosa possui em Portugal.
A presença da Congregação em
Portugal data de 1894, ano em que foi
fundada a primeira Casa na Idanha,
Belas, Concelho de Sintra. A
constituição da «Província Portuguesa
de Nossa Senhora de Fátima» ocorreu
em 27 de Outubro de 1946 e tem a sua
sede social em Lisboa. Esta Província
Hospitaleira é constituída por 15
comunidades religiosas que
desenvolvem a sua acção em 14 Centros
distribuídos por Portugal Continental,
Regiões Autónomas dos Açores e
Madeira e ainda o País Lusófono de
Moçambique.143
A missão hospitaleira que professam
desenvolve-se nas áreas da Saúde
Mental: psiquiatria, psicopedagogia,
psicogeriatria, gerontopsiquiatria,
toxicodependência e reabilitação
psicosocial. Responde, ainda, a outras
áreas da saúde segundo as necessidades
de cada tempo e lugar, dando
preferência aos mais pobres e
desfavorecidos. Procura conciliar os
avanços técnico-científicos com o
critério da centralidade e dignidade
incondicional da pessoa, promovendo
um modelo terapêutico integral que
contempla as áreas da prevenção à
reabilitação e reinserção sócio-
profissional.
A sua missão é levada a cabo em
Centros próprios (dispõe, em Portugal,
de um total de 2.800 camas de
internamento) e em colaboração com
instituições públicas ou da Igreja. A sua
actividade orienta-se pelos critérios do
Evangelho e da ética cristã, procurando
oferecer o melhor que é possível à
pessoa que sofre, verdadeiro centro da
sua Acção.
A Congregação das Irmãs
Hospitaleiras do Sagrado Coração de
Jesus foi fundada em 1881 em
Ciempozuelos, próximo de Madrid e
surgiu como resposta à situação de
exclusão social e abandono no campo da
saúde das doentes mentais da época. Os
seus fundadores Bento Menni144, Maria
Josefa Récio e Maria Angústias Giménez
sentiram-se chamados por Deus a criar
uma instituição religiosa feminina que
desse uma resposta humana, técnica e
espiritual a essa necessidade social. A
amplitude do problema fez com que os
primeiros tempos fossem
particularmente difíceis. A falta de
meios e de recursos económicos e
assistenciais foi mitigada com a entrega
gratuita das Irmãs e de numerosos
colaboradores.
Desde a sua fundação, a Congregação
sublinhou entre os seus objectivos
proporcionar aos doentes e acolhidos
nos seus Centros uma oferta de saúde
integral que inclui os aspectos físicos,
psíquicos, sociais, éticos e espirituais.
Realçou neles o carácter eminentemente
humanista e enfatizou a sua qualidade
relacional e respeito pelos direitos da
pessoa.
Trata-se de «curar» a pessoa na
sua totalidade, reinserindo-a na
sociedade, integrando-a nas redes
de saúde e de recursos públicos e
devolvendo-lhe a dignidade a que
tem direito.
A Missão apostólica das Irmãs
Hospitaleiras centra-se, assim, no
acolhimento, assistência e cuidado
especializado de saúde integral dos
doentes mentais, deficientes físicos e
psíquicos e doentes de outras
patologias, de acordo com o carisma
fundacional.
Para dar resposta a este Compromisso são
necessárias pessoas verdadeiramente
comprometidas com quem sofre, imbuídas de
qualidades que as torne membros da
Comunidade Hospitaleira: respeito pela
pessoa e defesa dos seus direitos; especial
dedicação aos que mais sofrem e estão mais
limitados; mansidão e amor para com os
doentes; preparação e actualização
profissional.
A Congregação de Irmãs
Hospitaleiras do Sagrado Coração de
Jesus centra a sua espiritualidade no
«Cristo compassivo e misericordioso do
Evangelho», nas preferências que
manifesta pelos mais pobres e na
atenção com que privilegia os que mais
sofrem: Hospitalidade no sentido de
Misericórdia e Amor para com as
pessoas concretas, que se manifesta
através de profundas atitudes de
bondade, ternura, gratuidade,
solidariedade, assim como no serviço
paciente, contínuo, abnegado e alegre.
Em pouco mais de dois séculos, o
projecto hospitaleiro concretiza-se num
amplo conjunto de serviços que
constituem a Obra Hospitaleira que se
alarga já a 24 países, espalhados por
quatro Continentes145 e o seu
desenvolvimento incorpora um grande
número de colaboradores que,
juntamente com as Irmãs, tomaram e
continuam a tomar possível a missão da
Congregação:
Dispositivos de assistência
psiquiátrica, adaptados às
necessidades das pessoas e às
novas técnicas da ciência médico-
psiquiátrica.
Centros ou serviços
psicopedagógicos que utilizam
meios e técnicas que possibilitam o
máximo desenvolvimento das
capacidades das pessoas
deficientes.
Centros ou serviços geriátricos e
psicogeriátricos onde se oferecem
um acompanhamento e cuidado
terapêuticos adequados à situação
do idoso e às suas possibilidades
de recuperação.
Hospitais gerais e estruturas extra-
hospitalares: ambulatórios, centros
de saúde, etc, nos quais se atende
todo o tipo de doenças.
Resposta pontual a «situações de
emergência» que se apresentam
nos diferentes países onde está
implantada a Obra Hospitaleira,
especialmente no campo da Saúde
Mental.
A Congregação, respondendo às
exigências das pessoas, tempos e
lugares, assim como às modernas
orientações de planificação da
saúde, criou numerosas estruturas
extra-hospitalares, especialmente
na área da saúde mental, ao
mesmo tempo que realiza uma
progressiva redefinição das suas
tradicionais instituições
hospitalares.
A Obra Hospitaleira distingue-se,
não tanto pela quantidade de
serviços que presta,
particularmente em alguns países,
mas pela qualidade dos mesmos,
devido ao profundo sentido de
solidariedade com a pessoa que
sofre e ao carisma que vê no
doente a Cristo, «que recebe como
feito a si próprio quanto fazemos à
pessoa necessitada».
Para poder levar a cabo o projecto de
«saúde integral» que quer realizar, a
Congregação Hospitaleira objectiva a
criação da Comunidades Hospitaleiras
em todos os seus Centros.
A Comunidade Hospitaleira é
constituída por doentes e seus
familiares, colaboradores
(trabalhadores, voluntários, benfeitores,
as pessoas em formação e amigos) e
Irmãs.
Os doentes são o centro e a razão
de ser do Projecto Hospitaleiro e a
sua «cura» – mental, física, social e
espiritual – o principal objectivo.
Os familiares vivem com o doente e
a problemática da doença e fazem
parte integrante do processo
terapêutico.
Os trabalhadores dos centros
contribuem com o seu saber e o
seu trabalho para a recuperação
dos doentes, partilhando a mesma
cultura hospitaleira.
Os voluntários, os benfeitores e
amigos, contribuem com o valor da
gratuidade, do compromisso e da
solidariedade com os mais
necessitados.
As pessoas em formação também
dão o seu contributo ao Centro ao
mesmo tempo que recebem dele,
como lugar docente,
conhecimentos teórico-práticos.
As Irmãs, além do seu trabalho,
constituem, individualmente e
como comunidade religiosa
hospitaleira, o núcleo histórico
carismático inspirador da
Hospitalidade, sendo por isso uma
referência da Comunidade
Hospitaleira.
A Comunidade Hospitaleira cultiva-se
assumindo a correspon-sabilidade no
desenvolvimento da instituição,
valorizando as pessoas e o trabalho que
realizam, criando um clima de confiança
e de convivência entre os diferentes
grupos, promovendo encontros de
reflexão sobre o carisma hospitaleiro,
sendo auto-críticos e respeitando os
direitos das pessoas.
A Comunidade Hospitaleira em
Condeixa146 depois da abordagem
global, sucinta e possível do passado,
presente e porvir da Obra das Irmãs
Hospitaleiras é tempo de nos focarmos
na sua presença nesta Vila de Condeixa,
propósito último deste nosso trabalho.
Reconhecendo a importância da acção
das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado
Coração de Jesus em Condeixa,
deliberou a Edilidade Condeixense
atribuir o nome do Santo fundador da
Congregação de Religiosas
Hospitaleiras, à rua onde se localiza a
Casa de Saúde Rainha Santa Isabel bem
como erigir na rotunda ajardinada que a
antecede, porta de entrada Norte da
Vila, uma imagem de S. Bento Menni.
Esta rotunda e a respectiva imagem
foram solenemente inauguradas pelo
Bispo da Diocese de Coimbra D. Albino
Cleto e pelo Presidente da Câmara
Municipal Engº. Jorge Bento, no dia 21
de Setembro de 1999, com a presença
de muitas outras autoridades e muito
público que assim fez preito de gratidão
à acção das Irmãs Hospitaleiras do
Sagrado Coração de Jesus.
Também outras Instituições de âmbito
local e regional reconheceram, em
devido tempo, com gestos de
homenagem a missão Hospitaleira da
Casa de Saúde Rainha Santa Isabel.
Entre estas, a Fundação Concelho de
Condeixa, deliberou atribuir à
Instituição Hospitaleira a primeira
edição do prémio Fundação Concelho de
Condeixa referente ao ano de 1996. No
diploma que materializa este acto, pode
ler-se:
A Fundação Concelho de Condeixa
agradece a Deus a presença das
Irmãs Hospitaleiras do Sagrado
Coração de Jesus entre as gentes
do concelho, em memória do que
lhe atribui o prémio da Fundação
1996, ano da sua primeira edição.
Deve-se, ainda, à Fundação Concelho
de Condeixa a dinamização e realização
de um ciclo de homenagem à Casa de
Saúde Rainha Santa Isabel, sob o lema
O Coração da Hospitalidade, inserido no
ano comemorativo do Cinquentenário da
fundação da referida Casa de Saúde. O
primeiro tempo ocorreu a 18 Abril 2009
no auditório do Museu de Conímbriga,
tendo como orador convidado o
Presidente da Cáritas Portuguesa Dr.
Eugénio da Fonseca. O segundo
momento, também ele consignado à
hospitalidade para com os mais débeis,
ocorreu a 23 de Maio, no mesmo local,
tendo como orador principal o
Presidente da União das Misericórdias
portuguesas, Dr. Manuel de Lemos. O
coroamento deste ciclo comemorativo
veio a ter lugar no Santuário de Nossa
Senhora do Círculo, no dia 21 de Junho,
com uma Eucaristia de Acção de Graças
e uma tarde de convívio e
confraternização entre os presentes.
Na mesma linha de reconhecimento, a
Associação dos Bombeiros Voluntários
de Condeixa, em 2004, atribui a sua
medalha de ouro às Irmãs Hospitaleiras:
...Pela sua benevolência dedicada
não só à Corporação dos
Bombeiros, mas também à
população do Concelho de
Condeixa...
Para além de outros, também o
Estado entendeu reconhecer o mérito da
acção da Congregação Hospitaleira do
Sagrado Coração de Jesus, atribuindo a
medalha de mérito do Ministério da
Saúde à Casa de Saúde Rainha Santa
Isabel em cerimónia oficial do Dia
Mundial da Saúde, ocorrido a 07 de
Abril de 2010.
A posse da Quinta dos Silvais e a
evolução da área construída
O dia 24 de Janeiro de 1959 é
lembrado como o da a tomada de posse
efectiva da Quinta dos Silvais com a
ocupação da casa nela existente por um
pequeno número de Irmãs, verdadeiro
núcleo do actual Complexo Hospitaleiro
que enobrece Condeixa e a sua região. A
função clínica e assistencial, entendida
como o internamento das primeiras
doentes, ocorre, cerca de dois anos mais
tarde, com o termo da construção do
primeiro pavilhão: o Sagrado Coração
de Jesus.
O ritmo das construções nos anos
subsequentes foi marcado pela
necessidade de aumentar a lotação, mas
muito em especial, na perspectiva de
proporcionar melhores condições às
utentes, como também aos diversos
prestadores de cuidados médicos, de
enfermagem ou, simplesmente, de
apoio. Deu-se ainda cumprimento a
necessidades tais como: a construção da
Clausura, da Capela (1967/69), do
Colégio Apostólico que funcionou entre
os anos 1972/78147, e ainda, um pouco
mais inserida na área agrícola da
quinta, a Residência das Irmãs Idosas.
A par de todas estas instalações
hospitalares, consideradas como do
melhor que em Portugal se fazia
projectavam-se e construíam-se os mais
variados serviços de apoio a toda
actividade assistencial, como gabinetes
de consulta e de meios auxiliares de
diagnóstico, salas de fisioterapia e de
terapia ocupacional, farmácia, etc.
Construíram-se, também, áreas de apoio
administrativo e técnico, bem como as
mais diversas áreas de apoio geral:
cozinhas, armazéns, lavandaria, central
térmica, oficinas, parqueamentos,
cabeleireiro, cafetaria, recepção e,
ainda, áreas de apoio especializado,
como piscina, ginásio e salão
polivalente.
Contudo, a inauguração oficial, só
vem a acontecer no dia 1 de Fevereiro
de 1964148, com a entrada em
funcionamento do Pavilhão de S. José, o
segundo pavilhão de internamentos a
ser construído e recentemente demolido
para dar lugar a um dos «mais
modernos edifícios de tratamento
hospitalar para doentes do foro
psiquiátrico» cuja inauguração marcou o
final do ano comemorativo do
cinquentenário.
Este novo edifício, no qual o Instituto
das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado
Coração de Jesus acabam de investir
quatro milhões de Euros, marcará, no
futuro, uma nova era no funcionamento
e nos cuidados de saúde prestados pela
Casa de Saúde Rainha Santa Isabel.
Estrutura que foi construída de
raiz, substitui a velha unidade
assistencial e significa um aumento
da capacidade de alojar utentes em
mais do dobro... A nova legislação
obrigou-nos a converter os espaços
de modo diferente, sobretudo a
nível de alojamento de utentes. Os
quartos têm, no máximo, três
camas... Inclui áreas diversificadas
como unidades de consultas,
internamento e terapia, ateliês
quartos para os utentes, salas de
visita, refeitórios, gabinetes
médicos, espaços de enfermagem,
arquivos e arrumação... É um
edifício com bastante luz, equipado
com materiais simples, mas
resistentes. Tem energia solar e
cinco unidades de saúde
independentes umas da outras ...
Estas palavras, dos responsáveis pela
construção e gestão futura, projectam-
nos imagens de Hospitalidade
plasmadas no devir. É, por outras
palavras, confirmar o compromisso
expresso sobre o lema Olhando o Futuro
no âmbito mais lato da breve mas
explícita identificação da sua Identidade
e Missão:
A Congregação das Irmãs
Hospitaleiras deu testemunho,
durante mais de um século, do seu
compromisso com os doentes
mentais e pessoas afectadas por
outras patologias, desenvolveu um
modelo de instituição e de gestão,
baseada na corresponsabilidade e
na entrega solidária de todos os
seus recursos humanos e
económicos.
Valorizando positivamente o
trabalho realizado pela
Comunidade Hospitaleira, ao longo
de 125 anos de existência,
queremos estar abertos aos sinais
dos tempos através dos quais Deus
nos fala e nos conduz, para
respondermos às necessidades
actuais e enfrentarmos com
audácia os desafios do futuro.
A Congregação, fazendo seus a
coragem, a fé e o compromisso dos
fundadores, olha para o passado
com gratidão, para o presente com
responsabilidade e para o futuro
com esperança.
A Hospitalidade, que define o carisma
hospitaleiro, é um valor – humano,
social, cristão – que transcende o tempo
e que como Comunidade Hospitaleira
estamos empenhados em viver e
transmitir à sociedade do nosso tempo.
Nessa projecção insere-se também
uma outra concretização da Casa de
Saúde Rainha Santa Isabel nestes
tempos de comemoração do
Cinquentenário: a quem visite a quinta
dos Silvais será notória uma pequena
aldeia de casas pré-fabricadas em
madeira, onde nem falta o largo do
pelourinho, cujas residentes integram
um cientificamente avançado projecto
terapêutico liderado pelos Psicólogos da
Instituição.
A Quinta Pedagógica das
Romanzeiras é uma infra-estrutura
que comporta várias vertentes:
reabilitação psicossocial,
psicopedagógica, residencial,
ocupacional e de lazer. A infra-estrutura
é composta por quatro vivendas
unifamiliares, fabricadas em madeira
tratada que formarão uma mini aldeia,
servindo de morada para vinte utentes
da Casa de Saúde em processo de
reabilitação. Ao redor da mini aldeia
existirá um circuito pedonal que
conduzirá os visitantes por áreas onde
poderão observar e interagir com
animais e plantas de várias espécies,
constituindo um ecossistema
terapêutico relaxante e promotor da
Saúde Mental ... O seu objectivo
principal é a desinstitucionalização e
refamiliarização das utentes da Casa de
Saúde, a sua introdução em redes
sociais de apoio, tal como preconizam
as actuais leis de Saúde Mental...
Tentar-se-á que a interacção destas
pessoas, sobretudo com grupos de
crianças e jovens das escolas
circunvizinhas, possa contribuir para
esbater o estigma social da doença
mental.
Esta constitui a primeira referência
que encontramos na imprensa escrita à
Casa de Saúde Rainha Santa Isabel.
Trata-se da notícia do acto inaugural
num artigo assinado pelo, então,
correspondente local de vários órgãos
da imprensa: Sr. Ramiro de Oliveira.
Este Condeixense, enquanto Jornalista,
acompanhou grande parte da vida da
Casa de Saúde e da sua pena saíram as
mais finas análises e elogiosas palavras
à Instituição e à Nobre Missão da
Congregação Religiosa que a titula.
A notícia alonga-se com a publicação
dos discursos de vários convidados e
considerações do autor sobre a
Instituição inaugurada. Tais
considerações repetem-se, ao longo de
vários anos em que o Jornalista
Condeixense escreveu sobre a Casa de
Saúde dando-nos com a sua análise uma
perspectiva da sua evolução. Dessa
análise se infere, ainda, dos largos
rumos que, desde logo, vaticinava à
inaugurada Instituição e que o futuro
não desmentiu.
A Casa de Saúde Rainha Santa Isabel é,
hoje, uma realidade bem diferente da que era
nesses já recuados tempos, ainda que o
Carisma Hospitaleiro que a rege, referência
maior dos seus fundadores, seja marca
perene da sua identidade. É, no presente e no
dizer dos seus mais altos responsáveis,
«Instituição de referência na saúde mental,
aberta à diferenciação de cuidados, pondo em
prática um modelo exemplar do cuidar».
Tem por finalidade essencial a
prevenção, tratamento e
reabilitação de doentes em Saúde
Mental e Psiquiatria, numa visão
integral da pessoa, segundo o
carisma dos fundadores S. Bento
Menni, Maria Josefa Récio e Maria
Angústias Giménez.
No horizonte da centralidade da
pessoa doente mental, destinatária
da missão hospitaleira, empenha-se
a Casa de Saúde Rainha Santa
Isabel na prestação de um serviço
global, que se articule numa
dinâmica interdisciplinar
abrangendo as dimensões
Biológicas, Psicológicas,
Espirituais, Éticas e Sociais da
Pessoa.
É nesta perspectiva que dispõe de
várias unidades149 vocacionadas para o
internamento de longa duração com
capacidade para 327 doentes e, ainda,
cerca de 30 camas destinadas a
internamentos de curta duração
(agudos), acolhendo, no seu todo, cerca
de três centenas e meia de utentes com
patologias do foro mental e psico-
geriático. Nela exercem funções, para
além de um pequeno grupo de Irmãs
Hospitaleiras do Sagrado Coração de
Jesus, cerca de duas centenas de
colaboradores distribuídos por um
diversificado leque de funções
profissionais: médicos, psicólogos,
enfermeiros, terapeutas ocupacionais,
fisioterapeutas, técnicos de serviço
social, administrativos e auxiliares de
várias áreas de apoio, bem como
também um considerável grupo de
voluntários, tudo enquadrado numa
pirâmide hierárquica em que pontificam
a Direcção Gestora de Recursos
Financeiros e Humanos, a Direcção
Clínica e a Direcção de Enfermagem.
Numa dinâmica ponderada que leva à
busca permanente das melhores
condições para o cabal cumprimento da
sua Missão, a Casa de Saúde Rainha
Santa Isabel integra os seguintes
serviços:
- Serviços de Recepção e Admissão
- Serviços Administrativos
- Serviços Assistenciais:
Médicos
Enfermagem
Psicologia
Serviço Social
Terapia Ocupacional
Fisioterapia
Reabilitação
- Serviço Religioso:
Pastoral da Saúde
- Serviços Sócio-Terapêuticos:
Bar
Bazar
Biblioteca
Cabeleireiro
Salão Polivalente
Piscina
Salas de Terapia Ocupacional e
Reabilitação
Campo Ludoterapático
- Unidades de Internamento
- Serviços de Apoio Geral
Nas Unidades de Internamento são
diariamente implementadas diversas
actividades seleccionadas por
Psicólogos e Terapeutas consoante o
grau de capacidade e patologia das
pessoas a que se destinam. Todas estas
actividades têm como objectivo a
ocupação das doentes numa perspectiva
ergonómica e terapêutica:
Alfabetização;
Trabalhos Manuais;
Actividades Lúdicas:
(Jogos Tradicionais e Didácticos,
Leitura, Música, Dança, Teatro,
Cinema, Colaboração no Jornal
Interno «A Prenda», Passeios,
Natação, Ginástica, Atletismo,
etc.);
Manutenção e Limpeza dos
Espaços Verdes;
Apoio Psicológico e Estimulação
Psicossocial;
Actividades na Área Agrícola;
Actividades de Culinária;
Actividades Religiosas.
As Utentes são, além disso,
estimuladas a participar activamente em
todas as festas recreativas da CSRSI,
designadamente nos aniversários das
demais doentes, na comemoração de
datas, épocas ou factos importantes
para a Instituição. Colaboram, também,
nos eventos ou organizações exteriores,
mormente nos promovidas pela Câmara
Municipal e/ou Escolas locais: Desfiles
de Carnaval, Marchas Populares, Festas
Anuais, Dias da Família, etc.
Vimos já, quando enunciámos os vértices
da Comunidade Hospitaleira, como os
familiares dos doentes se inserem no seu
objectivo: os familiares vivem com o doente e
a problemática da doença e fazem parte
integrante do processo terapêutico. Os
voluntários, os benfeitores e amigos,
contribuem com o valor da gratuidade, do
compromisso e da solidariedade com os mais
necessitados.
Na prossecução deste objectivo, os
responsáveis pela Instituição envidaram
esforços no sentido de darem corpo a
uma Associação de Familiares e
Amigos das Utentes da Casa de
Saúde Rainha Santa Isabel, que veio
a designar-se por «Dar Voz»
A Associação «Dar Voz» é uma instituição
de direito privado, com funções sociais e sem
fins lucrativos. Foi criada em 1999 e tem a
sua sede na Casa de Saúde Rainha Santa
Isabel. O seu objecto é ajudar as Irmãs
Hospitaleiras, oferecendo a colaboração dos
familiares e amigos dos que vivem na Casa de
Saúde para a criação de condições que
permitam aos seus utentes um adequado e
harmónico desenvolvimento, no pleno
respeito pela diferença que os distinguem,
diferenciam e enriquecem.
As actividades a que a «Dar Voz» se
vota são de carácter espiritual, cultural
e social, privilegiando a ligação das
famílias dos utentes com a Direcção do
Instituto Hospitaleiro. Nesta perspectiva
a «Dar Voz» é uma presença habitual
nas actividades da Casa de Saúde,
participando nos seus eventos bem
como na comemoração de datas e
acontecimentos importantes
dinamizados no exterior, sempre que a
Casa de Saúde é a isso chamada.
Tem uma acção constante na
sensibilização e motivação dos
familiares e amigos das doentes
internadas para que as visitem ou
contactem sempre que possível,
principalmente em dias especiais como
o Natal, Páscoa, aniversários, festas de
vária ordem promovidas pela Casa de
Saúde ou pela própria Associação.
Tenta, ainda, sensibilizar a sociedade
civil, principalmente a comunidade onde
está inserida, para os problemas da
saúde mental e para a realidade que é a
Casa de Saúde Rainha Santa Isabel, no
contexto geral e regional.
Desde logo reconhecendo que, na
vertente da promoção económico-social
da área em que se insere, a Casa de
Saúde Rainha Santa Isabel constituise
como o maior empregador do Concelho
de Condeixa, facto que é assumido pelas
entidades do maior relevo concelhio,
como são a Edilidade, o Arciprestado, a
Fundação de Condeixa, a Associação dos
Bombeiros Voluntários e outras
instituições ou meros particulares que,
repetidamente, o reconhecem.
Referências fundacionais: Tempo,
Espaço e Pessoas
No contexto de uma publicação, como
esta, que reúne uma pequena série de
artigos sobre o passado e o presente de
Condeixa, temos como pertinente uma
breve referência aos tempos da
fundação da Casa de Saúde Rainha
Santa Isabel, que mais não seja, como
preito de homenagem devida no seu
recente Cinquentenário.
Na década de cinquenta do século
passado foi Bispo da Diocese de
Coimbra, o Senhor D. Ernesto Sena de
Oliveira150. D. Ernesto, na linha dos
cuidados vividos pelos prelados que o
antecederam, interessou-se por todas as
instituições de solidariedade da sua
diocese, porém, manifestou particular
atenção pelo Refúgio Rainha Santa,
atento à faixa de população a que a sua
acção se destinava: jovens mulheres em
risco de marginalização.
Desde a sua fundação, em meados dos
anos trinta, esta Obra Social vinha
sendo patrocinado pelos Prelados
Coninbrigenses. Nesta linha não
escapou ao Senhor D. Ernesto a grande
questão do Refúgio Rainha Santa, que
era o rumo a dar às utentes que, por
doença, eram incapazes de se integrar
quer no mundo do trabalho quer na
família, escopo primeiro da Instituição.
De início, o número destas seria
pequeno, mas, com o decorrer dos anos,
este número começou a aumentar e as
soluções esporadicamente encontradas
deixaram de ser viáveis.
Foi neste contexto que o Senhor Bispo
e os seus colaboradores consideraram a
possibilidade do recurso às Irmãs
Hospitaleiras do Sagrado Coração de
Jesus, institucionalizando a ajuda
esporádica que, ao longo dos vários
anos, prestaram ao Refúgio Rainha
Santa, aceitando nos seus centros de
Lisboa ou Braga algumas doentes desta
Instituição.
Era, então, Superiora Provincial das
Irmãs Hospitaleiras a Madre Eloísa de
Jesus Pires. Foi com esta Responsável
que a Diocese estabeleceu contactos
que culminaram com a compra da
Quinta dos Silvais e a instalação da
Comunidade Hospitaleira hoje existente.
A Condeixa, interessará conhecer
também algumas das razões ou acasos
da sua escolha para acolher a
Hospitaleira Instituição:
Nas suas vindas a Coimbra, sempre
que não utilizava o comboio, a Provincial
Hospitaleira passava obrigatoriamente
pelo centro de Condeixa. Não escapava
à sua atenção observadora a vetustez e
beleza dos seus palácios, o traçado das
suas ruas a enquadrar várias casas
solarengas, a lhaneza das suas gentes.
Mas, o que mais sensibilizou a sua
índole prática e decisora, foi o verde dos
muitos pomares, os pequenos rios e
ribeiros cujas águas fertilizavam as
hortas que, por todo o lado,
despontavam.
Importante ainda reconhecer a sua
inserção no espaço geográfico local e
regional: Condeixa, secular
encruzilhada de caminhos. De Norte
para Sul, das Beiras para o Litoral ou
nos sentidos opostos, quem quisesse
cruzar o coração de Portugal, tinha que
passar por lá.
Teve a Superiora Hospitaleira
conhecimento do interesse, manifestado
pelo mais recente proprietário da
Quinta dos Silvais, na sua venda. Não
perdeu tempo o espírito prático da
responsável. Visitou o espaço, sem aviso
prévio, apenas na companhia da sua
secretária. Diríamos, «em missão
secreta», utilizando a expressão de
quem nos deu esta informação. Badalou
a campainha do portão...esperou que lho
abrissem...apresentou-se vagamente
curiosa e entrou empurrando, sem
esperar mesmo a autorização de quem,
desconfiadamente, lho abriu.
... ... ...Raio de vida... Agora entram-
me por aqui adentro duas freiras...
Parece qu’isto já nem tem dono!...
Resmungava, para si, o Ti Manel
Russo151, no pleno dos seus trinta
quarenta anos. Mas, a Irmã olhou
atentamente...Inteirou-se de alguns
pormenores e despediu-se num, até
breve, que entristeceu o Caseiro...Afinal
trabalhava ali desde os dez anos!...Fazia
parte daquilo tudo!...Mudara de patrão
algumas vezes, mas nunca de emprego!
– Agora...Se me caiem aqui estas!...
Apontada a causa próxima da
fundação da CSRSI e acompanhada a
dinâmica das vontades que o
possibilitaram, é tempo agora de
caracterizarmos o espaço onde a mesma
foi implantada: uma velha e pouco
funcional residência numa quintinha,
onde predominavam um laranjal, uma
horta e um pequeno e tradicional lagar
de azeite.
A quinta tinha, até então, apenas uma
vocação agrícola, a que, até hoje, deram
continuidade as Irmãs residentes.
Contudo, a capacidade agrícola inicial
tem sido, pouco a pouco, reduzida para
dar lugar às sucessivas construções que,
antes, referenciámos.
Também Condeixenses notáveis foram
alguns dos anteriores proprie-tário da
Quinta dos Silvais. Por isso, num escrito
que aos Condeixenses se destina, nos
parece caber uma breve referência a
alguns deles:
Os Silvais eram, à data da sua
aquisição pelas Irmãs Hospitaleiras,
propriedade do Senhor Manuel Luís
Silva, comerciante residente em
Coimbra, mas natural de Bruscos, lugar
da freguesia de Vila-Seca.152
Outro proprietário dos Silvais,
normalmente o mais identificado como
tal, foi o Dr. Sebastião Marques de
Almeida, figura carismática da antiga
Condeixa, conhecido por «Dr. Sebastião
das Barbas». Coube-lhe a Quinta com
outros bens no COncelho de Condeixa,
na legítima da esposa. O Dr. Sebastião,
numa tradição familiar, exerceu alguns
cargos nas instituições de benemerência
local, nomeadamente o de Provedor da
Misericórdia153.
Fixada pela voz das mais antigas
Irmãs residentes, de alguns
colaboradores doutros tempos, e de
todos os que tiveram qualquer contacto
com os Silvais, nos tempos em que ainda
pertenciam ao Dr. Sebastião, repete-se a
lenda que pelos Silvais passaram, em
recreio, personalidades da vida
intelectual e política de tempos
anteriores à sua venda. Não custa muito
a acreditar nesta tradição, tendo em
vista que Condeixa e os seus arredores
foram percurso de desenfado de várias
gerações de académicos da
Universidade Coimbrã. Isso mesmo nos
atesta o Poeta António Nobre ao
convidar o seu Amigo Manuel a visitar
Condeixa, entre outros arredores, «que
vistos uma vez, ah! Não se esquecem
mais»154
A estrada que permitia o deslize fácil
de uma «charrete», o encanto das
paisagens, a simpatia das gentes, a
beleza das raparigas, tudo concorreria
para que tal pudesse acontecer.
Recuando um pouco mais no tempo,
algumas referências apontam para a
vinda do poeta António Feliciano de
Castilho (1800-1875), aos Silvais. Poeta
Romântico, Pedagogo e Homem de
Letras, embora cego, não deixou de
fruir, enquanto estudante ou mesmo
depois, de alguns dos momentos de
lazer ou de «estudantil estúrdia»,
própria do seu tempo e condição.
Estudiosos da sua obra tendem a
identificar nela algumas referências que
apontam para a sua passagem pelos
Silvais. A sua presença, a ter-se como
certa, arrastaria a de condiscípulos e
seguidores e não é difícil imaginar, na
sombra dos antigos laranjais, o eco de
muitos dos seus melhores poemas. De
notar que, Condeixa era extensão
natural do percurso que o levou muitas
vezes à Quinta das Canas (Lapa dos
Esteios), onde, aí sim provadamente,
reunia muitas vezes a tertúlia que o
Poeta liderava.
Mas, a presença que a tradição mais
invoca não é a de um poeta, mas a de
um político. Todas as pessoas que ainda
conheceram o Dr. Sebastião das Barbas
recordam a «vaidade» com que referia a
sua condição de condiscípulo, amigo e
hospedeiro do Doutor Salazar. Por via
dessa relação, sussurrava-se que o todo-
poderoso Presidente do Conselho
visitava com frequência os Silvais.
Não sei como acreditar!... Homem
pouco dado a bucolismos, Sua
Excelência, se alguma vez sujou as
célebres botas na terra, foi na sua
Quinta do Vimeiro. Em Condeixa, só de
passagem. Nos Silvais, talvez e somente
enquanto estudante; mesmo assim,
sempre com a sebenta debaixo do braço
e pouco atento aos versos que lhe
cantavam.
Mais provável é que tudo não passe
de uma lenda que se fixou a partir do
facto, não provado, de ambos terem sido
condiscípulas e o Dr. Sebastião disso
fazer gala junto dos seus conterrâneos.
Bibliografia e outras fontes
Manuscritos
Crónicas dos anos 1960 a 1986155
Meios de comunicação social
(Imprensa, TV, Rádio):
Gazeta de Coimbra: 1964, 02, 08/ 1972,
09 28.
Diário de Coimbra, 1983, 01, 22/ 1983,
03, 30/ 1984, 04,18/ 1984, 05, 11/
1984, 10, 24/ 1984, 10, 29/ 1985, 06,
20/ 2006, 06, 04/ 2008, 10, 11/ 2010,
01, 24.
Diário das Beiras: 2009, 04, 24.
Correio de Coimbra: 2006, 06, 01/
2006,06, 08/ 2006, 06, 22/ 2010, 04,
15.
RTP (País, País), 1983, 07, 28.
Rádio Comercial (Programa transmitido
a partir da CMC).
Publicações
Brochado, Costa, S. João de Deus,
Portugália Editora, Lisboa 1950.
Cárcel Orti, Vicente, História de La
Congregación de Hermanas
Hospitalarias Del Sagrado Corazón de
Jesus. Volume I, El Beato Benito
Menni y Las
Hospitalarias, Cidade do Vaticano, 1988.
Cardoso, António Brito, Figuras da
Igreja na Diocese de Coimbra – D.
Ernesto Sena de Oliveira.
Conceição, Santos e Gaspar, José Maria,
Monografia de Condeixa, 2ª. Edição.
Montonati, Ângelo, O Preço da
Coragem, São Bento Menni, Tradução
de Benjamim Ferreira, Edições
Âncora 1999.
Moura, Evaristo Cerveira de,
Nascimento, Vida e Morte do Hospital
D. Ana Laboreiro D’Eça – Condeixa.
Iglésias S.J., Manuel, São Bento Menni,
Profeta da Hospitalidade.
Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração
de Jesus, Identidade e Missão.
Soroldini, Mário, Santidade a Toda a
Prova, Vida de Bento Menni,
Fundador das Irmãs Hospitaleiras do
Sagrado Coração de Jesus, Tradução
de Moreira de Andrade, Livraria
Apostolado da Imprensa, Porto, 1984.E Continua a Amar, Vida de Maria Josefa Récio, Tradução de Delfim Janela, Livraria Apostolado da Imprensa, Braga, 1987.