UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E LITERATURA GREGA
Conhecimento e memria no Teeteto de Plato
Luciano Ferreira de Souza
So Paulo
2016
LUCIANO FERREIRA DE SOUZA
Conhecimento e memria no Teeteto de Plato
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade de So Paulo como requisito para a obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas. rea de concentrao: Lngua e Literatura Grega Orientador: Prof. Dr. Jos Antnio Alves Torrano
So Paulo 2016
memria de minha me
Agradecimentos
Eis o momento de recordar-me de todos aqueles que fizeram parte desta
interminvel jornada. Citarei em primeiro lugar meu orientador, Jos Antonio Alves
Torrano, por ter aceitado me orientar nesta pesquisa de doutorado, dando
continuidade ao que desenvolvemos durante o mestrado, apesar da aparente
excentricidade do tema abordado. Agradeo pelo incentivo em presena e
distncia , pela leitura acurada deste trabalho, pelas crticas e sugestes. Agradeo
pela amizade demonstrada nos momentos difceis e tambm pela alegria
compartilhada pela concluso deste trabalho.
professora Cristina Viano, chef de recherche no Centre Lon Robin, que
to bem me acolheu na Universit Paris-Sorbonne Paris IV durante meu estgio
doutoral. Alm das conversas produtivas sobre o Teeteto, meus sinceros
agradecimentos por me ensinar como suportar o frio e os parisienses e, sobretudo,
por tentar entender o verdadeiro significado da palavra saudade.
Agradeo tambm aos outros membros do Lon, especialmente Jean-
Baptiste Gourinat, diretor do centro de pesquisa.
Aos pesquisadores e funcionrios da ENS (cole Normale Suprieure de
Paris) e aos outros professores e doutorandos, agradeo pela acolhida, pelos
seminrios realizados e pela oportunidade nica de convvio com renomados
pesquisadores, amantes da Antiguidade Clssica.
Aos professores Adriano Machado Ribeiro e Roberto Bolzani Filho, membros
da banca de qualificao, pelas crticas, pelas sugestes e pelo incentivo num
momento conturbado da pesquisa.
Aos colegas parisienses, italianos, gregos, brasileiros e de outras
nacionalidades, companheiros da Fondation Hellnique, da Cit Universitaire e de
outros cantos de Paris, que acompanharam os sete meses passados longe de casa.
A todos, mon immense merci pela curiosidade sobre a pesquisa e pela
demonstrao de apreo pelo meu pas.
Aos amigos brasileiros, uspianos e de longa data que c ficaram na
expectativa de que a concluso desta tese atingisse o seu objetivo, Camila Zanon,
Tiago Atorre, Lvia Oushiro, Uiran Gebara e Flvia Coimbra.
Aos amigos Leslie Neis, Drcio Ricca, Renata Albuquerque, Fernanda
Fernandes e Toms Menk, pelos momentos de descontrao em Paris. Foi muito
gratificante t-los encontrado por l.
Ao Cristian Reichert e ao Lo, pela convivncia diria.
minha famlia.
E finalmente agradeo a CAPES, pela bolsa de doutorado oferecida durante
os quatro anos de pesquisa desenvolvida na Universidade de So Paulo e pela
bolsa do Programa de Doutorado Sanduche no Exterior (PDSE).
(...) havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo,
de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase
intolervel de to rico e to ntido, e tambm as memrias mais antigas e mais triviais.
Pouco depois averiguou que estava paraltico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que
a imobilidade era um preo mnimo. Agora a sua percepo e sua memria eram infalveis..
Jorge Luis Borges, Funes, o memorioso.
Resumo
Esta tese tem como objetivo oferecer uma interpretao da questo da memria no
dilogo Teeteto de Plato. O enfoque especfico, todavia, no trata da discusso da
reminiscncia, tema esperado quando se aborda o problema da memria na filosofia
platnica. Minha proposta de leitura de parte de dois conceitos novos, um de carter
literrio a memria dramtica e outro de carter filosfico a memria filosfica.
O primeiro tem como objetivo analisar o jogo entre a lembrana e esquecimento
apresentado como recurso literrio na construo do dilogo. O segundo, por sua
vez, examina a memria como argumento explcito para a definio do tema
principal do dilogo, o conhecimento. Por fim, apresento a traduo integral do
dilogo Teeteto como complemento ao trabalho.
Palavras-chave: Plato; Teeteto; Conhecimento; Memria; Traduo.
Abstract
This thesis aims to offer an interpretation of the issue of memory in the Theaetetus
Plato's dialogue. The specific focus, however, is not about the discussion of
reminiscence, expected issue when addressing the problem of memory in Platonic
philosophy. My proposal for reading parts of two new concepts, one of a literary
nature - the dramatic memory - and another philosophical nature - the philosophical
memory. The first aims to analyze the interplay between remembering and forgetting
presented as literary resource in the construction of the dialogue. The second, in
turn, examines the memory as an explicit argument for the main theme of the
definition of dialogue, the knowledge. Finally, I present the full translation of the
dialogue Theaetetus as a complement to work.
Key-words: Plato, Theaetetus, Knowledge, Memory; Translation
Sumrio Resumo ................................................................................................................................. 7
Abstract ................................................................................................................................. 8
INTRODUO ..................................................................................................................... 10
O Teeteto sob a luz da memria dramtica ......................................................................... 10
Parte I: NARRATIVA E MEMRIA ....................................................................................... 14
O prlogo do Teeteto e a construo de um dilogo memorvel ......................................... 15
PARTE II: ASTHESIS: CONHECIMENTO, SENSAO E MEMRIA. .............................. 23
As memrias de Scrates e Teodoro ................................................................................... 24
As primeiras assimilaes de por Teeteto ............................................................. 26
O conhecimento uma tcnica? .......................................................................................... 29
A memria de Teeteto: um exemplo matemtico ................................................................. 31
A maiutica socrtica ........................................................................................................... 33
CONHECIMENTO SENSAO? ..................................................................................... 39
Sensao e Protgoras ....................................................................................................... 39
Sensao e Herclito ........................................................................................................... 43
Anfidromia ........................................................................................................................... 46
A apario de Protgoras .................................................................................................... 48
Sensao e memria ........................................................................................................... 49
A presena do ausente: a defesa de Protgoras ................................................................. 51
Interldio: a digresso filosfica ........................................................................................... 54
Retorno a Protgoras ........................................................................................................... 58
Retorno a Herclito .............................................................................................................. 58
Parte III: DXA: CONHECIMENTO, OPINIO E MEMRIA ............................................... 62
Opinio e memria dramtica .............................................................................................. 63
Conhecimento opinio verdadeira? ................................................................................... 65
O saber e o no saber na opinio ........................................................................................ 66
O ser e o no ser na opinio ................................................................................................ 67
Allodoxia, ou outra opinio ................................................................................................ 67
O bloco de cera e a memria ............................................................................................... 70
Opinio falsa e memria ...................................................................................................... 73
O Avirio e a memria ......................................................................................................... 78
Conhecimento no opinio verdadeira .............................................................................. 85
Parte IV: LGOS: CONHECIMENTO, EXPLICAO E MEMRIA. ................................... 86
Conhecimento opinio verdadeira acompanhada de ? ............................................ 87
O sonho de Scrates e a memria dramtica ...................................................................... 87
Os sentidos de e a memria dramtica...................................................................... 92
O como discurso. ....................................................................................................... 93
O como enumerao das partes ................................................................................ 95
O como sinal distintivo e a memria .......................................................................... 99
Conhecimento no opinio verdadeira acompanhada de . .................................... 102
Concluso.......................................................................................................................... 103
Parte V: TRADUO: TEETETO....................................................................................... 105
Bibliografia ......................................................................................................................... 193
10
INTRODUO
O Teeteto sob a luz da memria dramtica
O Teeteto no trata da memria. Esta afirmao, embora contradiga o ttulo
deste trabalho, tem algum fundamento. Quando se aborda a questo da memria
em Plato se constata, por um lado, que h um nmero relativamente restrito de
obras consagradas questo e, por outro lado, que h uma gama muito grande de
perspectivas nas quais ela abordada. No entanto, parece que existem alguns
fatores que tornam o estudo da memria em Plato uma tarefa particularmente difcil
e que determina esta diversidade de abordagens. O estudo da memria na filosofia
platnica tradicionalmente considerado como profundamente ligado teoria da
anamnese, ou ascese deste conceito num plano inteligvel. Alm desta teoria,
existem tentativas de dar conta de outro estatuto que pode ser atribudo memria
em particular, num plano sensvel. Por este vis, entre o inteligvel e o sensvel, os
textos platnicos que abordam a memria colocam a questo de um modo diferente,
por serem necessariamente heterogneos em seu sujeito (a descoberta da virtude
no Mnon, a natureza da alma Fedro, o destino da alma no Fdon, a investigao
sobre o prazer no Filebo e a tentativa de definir conhecimento no Teeteto).
Ademais, no existe em Plato um dilogo consagrado em sua totalidade
memria, no existe uma discusso acerca de sua essncia, no se procura
responder questo o que a memria? Como foi dito, se tal questo colocada
por Plato, ela se insere apenas em passagens inscritas em contextos que abordam
uma questo tica, poltica ou metafsica precisa. Em face desta diversidade de
textos e contextos, parece ser extremamente difcil propor uma base interpretativa
global. No se estranha, no entanto, que os poucos pesquisadores que estudam a
memria nos dilogos platnicos cheguem muitas vezes concluso de que se
trata, na realidade, de um ornamento literrio ou uma metfora, isto , de recursos
usados na argumentao de um problema maior. Por no preencher as condies
objetivas tidas como centrais, o estatuto da memria muitas vezes simplificado em
11
funo de outros argumentos explcitos e tematizados nos dilogos, como se a
memria estivesse aparentemente fora do campo de interesse de Plato.
Certamente, as tentativas de elucidao da noo problemtica da memria
nos conduzem mais a novas perguntas do que a respostas. Por isso, a
compreenso de sua funo e seu estatuto nos textos de Plato parece, a meu ver,
merecer um estudo detalhado, sobretudo o modo como a memria abordada,
explicita e implicitamente, em um dilogo como o Teeteto.
Todavia, como no se pode deixar de lado a abordagem do tema maior em
detrimento do que aparentemente ornamental, deve-se ao menos esforar-se para
expor o elo existente entre o principal e o perifrico, e isto prefigura o objetivo deste
trabalho. Abordar tal elo , neste sentido, expor as relaes existentes entre
conhecimento e memria no dilogo Teeteto de Plato. No h aqui um esquema a
ser seguido, seno a leitura do texto platnico. A bibliografia acerca da memria no
Teeteto no conta com mais do que alguns poucos ttulos, e estes, por sua vez, no
resolvem e nem to pouco esclarecem muito a questo. Resta-nos, ento, apenas o
dilogo.
Se a pretenso aqui abordar o dilogo sob a luz da memria dramtica,
conveniente, de antemo, que alguns esclarecimentos sobre o conceito sejam
colocados. Memria dramtica ope-se aqui ao que chamarei de memria filosfica.
Por memria filosfica, compreendem-se as passagens onde a memria tratada
explicitamente no dilogo, quer atravs de recursos argumentativos, quer atravs de
recursos estilsticos, como smiles ou metforas. Tais recursos, argumentativos e
estilsticos, dizem respeito incluso da memria na compreenso da definio do
conhecimento, isto , onde o termo e seus cognatos so citados por Plato. Se
considerarmos a diviso tradicional do dilogo Teeteto em trs partes, cada uma
delas correspondendo s trs definies propostas de conhecimento, podemos
constatar que a memria, neste sentido filosfico, ocorre praticamente em todas
elas, gerando ora longas discusses, ora menes mais curtas, e todas elas, no
momento devido, sero analisadas dentro do contexto da investigao.
Alm desta memria filosfica, surge a memria dramtica. Tal conceito est
nas entrelinhas do dilogo. O Teeteto, por ser um dilogo cuja riqueza temtica
abundante, deixa muitas vezes as suas sutilezas passarem despercebidas. Uma
12
destas sutilezas o modo como seu autor cria e desenvolve as memrias dos seus
participantes, articulando-as com determinadas passagens do dilogo, e a isto
chamo memria dramtica. Dramtica tambm no sentido de conflito. Tal conflito,
estabelecido por Plato no dilogo, se d, a meu ver, no jogo elaborado entre a
recordao e o esquecimento de seus interlocutores. Por mais acessria ou
ornamental que seja esta abordagem da memria, ela d, muitas vezes, certa leveza
ao dilogo. Por ser abordada implicitamente, ela permite ao leitor uma espcie de
pausa na argumentao criada por seus personagens, como se de alguma maneira
o convidasse a fazer parte tambm do jogo que lida com a lembrana e o
esquecimento, com essa memria dramtica.
Se preservar a memria de seus participantes um dos objetivos de Plato
no Teeteto, a linha que sigo para comentar o dilogo mostra-se pertinente.
Pertinente no apenas porque considero o dilogo como um memorial dedicado a
Scrates, mas tambm porque a memria, enquanto recurso estilstico e, em outros
casos, recurso dialtico, configura-se tambm como recurso mediador de suas
partes. Isto se d no apenas na elaborao do prlogo, onde aparentemente isto
posto de maneira mais explcita, mas tambm em pontos especficos do dilogo,
sobretudo nos passos onde uma argumentao deixada de lado para que outra
seja discutida em seu lugar, isto , quer sua construo dramtica, quer em sua
discusso filosfica. Assim, ao aceitar a pertinncia do termo memria para esta
interpretao, faz-se necessrio, no somente aqui, mas no decorrer da anlise do
dilogo, que tal termo seja qualificado de acordo com a exegese pretendida.
Quanto estrutura da tese, ela se divide em quatro partes. Embora estas
partes correspondam a uma diviso tradicional do dilogo, correspondentes ao
prlogo e s definies de conhecimento propostas por Teeteto, a leitura que
apresento linear, isto , este comentrio tenta abordar o texto de Plato em sua
totalidade, ora analisando profundamente certas passagens, ora apenas indicando
outras que mereceriam uma anlise tambm profunda, mas que, infelizmente,
escapam do escopo deste trabalho.
Na primeira parte, Memria e narrativa, analiso o prlogo que introduz o
dilogo principal. Nesta anlise, proponho que a construo do dilogo, tal como
Plato o apresenta, tem como base a memria dos participantes, tanto daqueles que
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figuram apenas no prlogo, quanto daqueles que figuram no dilogo principal. Alm
das memrias dos participantes, compreendidas como um jogo de lembrana e
esquecimento, a questo da escrita tambm abordada, pois no prlogo do Teeteto
se diz expressamente que se trata de um dilogo escrito. Assim, a relao entre
escrita e memria tambm , en passant, abordada nesta primeira parte do
comentrio ao dilogo.
Na segunda parte, cujo ttulo Asthesis: Conhecimento, sensao e
memria, discute-se a relao entre os trs termos indicados, isto , a relao que
se d entre conhecimento, tema central do dilogo, e sensao, resposta dada por
Teeteto ao ser questionado pela essncia do primeiro termo. Evidentemente, a
memria, termo escolhido para interpretar algumas sutilezas do dilogo, tambm
ser analisado, quer ele ocorra em passagens ditas dramticas, como o encontro de
Scrates, Teodoro e Teeteto, quer em passagens argumentativas, como a refutao
da tese do homem medida de Protgoras.
Na terceira e quarta partes, os ttulos seguem, a exemplo da parte anterior,
as definies dadas por Teeteto. Assim, na terceira, intitulada Dxa: Conhecimento,
opinio e memria, analiso a discusso entre Scrates e Teeteto, aps este ltimo
afirmar que conhecimento opinio verdadeira. Alm de alguns elementos sutis de
memria dramtica, implcitos na passagem, analiso de forma mais aprofundada as
duas passagens onde Plato aborda explicitamente a questo da memria, a saber,
na descrio do bloco de cera e no smile do avirio, entendida aqui como memria
filosfica.
Enfim, na quarta parte, Lgos: conhecimento, explicao e memria,
abordo a ltima definio de conhecimento apresentada por Teeteto, que o descreve
como opinio verdadeira acompanhada de explicao. Alm da refutao de
Scrates, analiso novamente alguns aspectos da chamada memria dramtica nesta
ltima parte do dilogo, especificamente na apresentao do chamado sonho de
Scrates e nas definies de . Por fim, apresento a traduo integral do
dilogo1. Assim estruturada a tese, caber ento a esta anlise do dilogo mostrar
se a abordagem que trago agora luz frutfera ou no passa de vento.
1 Todas as tradues deste trabalho so minhas, salvo quando indicado em nota.
14
Parte I
NARRATIVA E MEMRIA
15
O prlogo do Teeteto e a construo de um dilogo memorvel
Teeteto est ferido e est sendo transportado do campo de batalha para
Atenas. Assim Euclides nos apresenta o personagem que d nome ao dilogo e tal
apresentao tem ares picos. Homero tambm ps em cena o retorno de seus
heris ptria aps a batalha, e seus poemas eram instrumentos para que a honra
desses heris no fosse esquecida. Tal como para um guerreiro homrico, os feitos
de Teeteto tambm no deveriam ser esquecidos. Mas as suas aes militares em
Corinto no sero o contedo destas recordaes. A batalha a ser lembrada, talvez
at mais dura que a guerra, a conversa que ele teve ainda jovem com Scrates.
Ao lado de Homero, Plato. Ao invs do poema, o dilogo.
Assim como as palavras do poeta do fama imortal ao heri, as palavras do
filsofo preservam, via dilogo, a memria de seus dois interlocutores principais.
Teeteto no o nico que pode encontrar a morte eminente devido as suas aes.
Scrates tambm, e o final do dilogo nos diz isto, deve se dirigir ao Prtico dos
Reis para tomar cincia da acusao que lhe perpetrada. Do resultado desta
acusao, a morte de Scrates. O seu destino, portanto, conhecido. Quanto ao de
Teeteto, apenas se sabe o que Scrates profeticamente havia contado a Euclides,
quando afirmava que Teeteto se tornaria notvel ao atingir a idade adulta.
impossvel saber se tal profecia se concretizou, pois nada sabemos de seus feitos
em idade adulta. De Teeteto adulto, temos apenas a imagem de seu corpo
transladado, vtima de um mal que assolou o campo de batalha. Plato, ao justapor
estas duas mortes no dilogo, parece lhe dar ares de epitfio. Neste sentido, a
dramaticidade do Teeteto traz consigo, implicitamente, a inteno de preservar estas
duas memrias.
A cena pica descrita acima precede o dilogo propriamente dito. O prlogo,
como ela chamada, possui suas especificidades. A primeira delas diz respeito a
seus trs participantes: Euclides, Trpsion e um rapaz escravo. Do primeiro, sabe-se
que de Megara e l teria fundado uma escola filosfica. Por muito tempo,
confundiu-se este Euclides com outro Euclides, o matemtico de Alexandria, autor
dOs Elementos. Atualmente, consenso entre os comentadores de que no se trata
16
da mesma pessoa; do segundo, Trpsion, nada se sabe alm do que nos
mostrado no prlogo; de ambos, todavia, Plato nos diz no Fdon2 que estavam
presentes no momento da morte de Scrates; do rapaz escravo, apenas a meno
de que ele ser o leitor do dilogo. Estes trs personagens, embora figurem na
introduo do dilogo, no participam efetivamente da discusso principal.
Voltemos ento curta narrativa do prlogo. Euclides nos diz que, enquanto
acompanhava Teeteto, lembrou-se () do encontro de Scrates com o
jovem e da maneira proftica como ele falou a respeito de Teeteto. Euclides no
estava presente na discusso e a teria ouvido diretamente de Scrates. O primeiro
aspecto digno de apreo nesta passagem a ocorrncia do verbo lembrar-se
(). A partir dela, a questo que se coloca faz referncia imagem de
Teeteto. Seu corpo transladado pode ser considerado como o estopim para a
lembrana de Euclides?
Talvez encontremos a resposta em um episdio da vida de outro autor
grego, o poeta lrico Smnides de Ceos, considerado o pai da arte da memria.
Conta-se dele que, durante um banquete, ele teria sido chamando para fora do salo
onde se encontravam os convivas, mas ao sair, no encontrou ningum. Neste
momento, o salo teria desabado e todos os convidados teriam morrido e ficado
desfigurados. Simnides, ento, teria conseguido lembrar-se do lugar onde todos os
convidados estavam e, assim, identific-los.
Deste episdio, pode-se chegar concluso de que a memria consiste em
tambm em lugares e imagens3. Tais elementos, creio, esto presentes na cena que
descreve a primeira apario de Teeteto no dilogo. O cenrio utilizado por Plato
o campo de batalha de Corinto ( ) do qual Teeteto
trazido. A lembrana original de Euclides necessita, portanto, de um lugar que lhe
ateste alguma veracidade narrao que ele est prestes a iniciar, no bastando
2 Fdon, 59c:
: ; :, . Equcrates: E havia estrangeiros presentes? Fdon: Sim. Smias, o Tebano, Cebes e Fedondes; e tambm Euclides e Trpsion de Megara. 3 Yates. F.A. A arte da memria. UNICAMP, So Paulo, 2007.
17
apenas a sua recordao de Teeteto, mas tambm um acontecimento que a
justifique. As imagens, por sua vez, seriam o fato de Teeteto estar acometido de
algumas feridas ( ) e de uma doena surgida no exrcito (
). Neste sentido, no basta apenas recordao de
Euclides, mas necessrio ainda algo que marque, de alguma maneira, tal
recordao.
Trpsion pede ento que Euclides narre estas conversas. Entretanto, a
conversa entre Teeteto e Scrates no pode ser reproduzida em sua totalidade por
Euclides de modo improvisado (originalmente , pela boca). No
entanto, Euclides diz ter feito algumas anotaes () de tais conversas.
Estes hypomnmata constituem, ento, o elemento mediador entre a memria de
Scrates e a memria de Euclides, alm de ser o elemento necessrio para a
preservao da memria de ambos, preservao que se d atravs da escrita.
Alm disso, Euclides expe todo o procedimento que garante o sucesso da
preservao e transmisso do dilogo. O mtodo cclico, indo do oral ao escrito e
vice-versa. Euclides ouve de Scrates as conversas dele com Teeteto e as toma por
escrito. No exerccio de transcrev-las, ele pensa essas recordaes. Entretanto, a
memria lacunar de Euclides no lhe permite que o processo de escrita seja
acabado. Diz ele:
, , , , .
Mas logo ao chegar em casa, escrevi as anotaes, e depois, em momento de cio, escrevia medida de que me lembrava, e todas as vezes que ia Atenas, interrogava Scrates do que no me recordava e, retornando para c, as corrigia; de modo que a conversa est escrita quase em sua totalidade. [143a]
Mas a que podemos atribuir essa incapacidade de Euclides de reproduzir
tais conversas tanto de improviso quanto no momento da escrita? Ora, Euclides no
um aedo inspirado pelas Musas, capaz de narrar os feitos de Teeteto. Se ele no o
, Scrates, em contrapartida, parece s-lo. Se Euclides, por sua memria
18
deficiente, retorna a Scrates a fim de que ele preencha essas lacunas, graas
memria de Scrates esta sim fazendo lembrar um rapsodo homrico que se
pode ter acesso aos detalhes da conversa que ele tivera com Teeteto. Assim, a
memria de Scrates a fonte qual Euclides deve recorrer para corrigir seus
escritos.
Sabemos que o Teeteto o nico dilogo platnico onde se diz
expressamente que foi escrito. Se o intuito aqui relacionar o conceito de memria
com o documento escrito, deve-se, primeiramente, examinar o papel atribudo
memria no prlogo. Podemos dispor essas memrias no plural, pois agora
contamos com a memria de Scrates e Euclides da seguinte maneira:
primeiramente, na conversa entre Euclides e Trpsion, temos a memria de Euclides
em relao a Scrates e Teeteto, j que ele se lembrara das conversas entre os
dois. Em seguida, no processo de reviso dos escritos de Euclides, temos a
memria de Scrates preenchendo as lacunas devido falta de memria de
Euclides, ou seja, a memria de Scrates em relao a Teeteto. Por fim, sabemos
que o verdadeiro autor do dilogo Plato, e no Euclides. Assim, temos a memria
de Plato em relao a Scrates.
Ademais, necessrio observar a disposio destas memrias no prlogo,
pois ela se d tanto no mbito oral quanto no escrito. O que discutido no dilogo
principal ocorreu, em algum momento, numa conversa entre Scrates, Teeteto e
Teodoro, ou seja, o seu carter fundamental a oralidade. Embora Euclides no
estivesse presente durante esta conversa, ele a teria ouvido de Scrates durante as
suas idas Atenas, portanto, mais uma marca de oralidade.
Num segundo momento, quando Euclides retorna a sua casa e faz as suas
anotaes, fica estabelecida a relao entre a memria e a escrita, isto , a relao
entre aquilo de que ele se lembra e os seus hypomnemata. Entretanto, como ele
nem sempre era capaz de se recordar de tudo o que ouvira, ele pedia novamente a
Scrates que lhe contasse aquilo que no lhe vinha mente, estabelecendo ento
uma relao entre memria e oralidade. Mas o ciclo no para a. Novamente em
casa, Euclides corrigia suas anotaes baseando-se naquilo que Scrates lhe
contara. Nesta fase, a relao que se estabelece entre a escrita e a memria de
Euclides tendo como base a oralidade de Scrates. A consequncia direta de toda
19
essa elaborao cclica do dilogo o fato de que agora Euclides tem por escrito
toda a conversa entre Scrates, Teeteto e Teodoro sob a forma de um livro ()
que pode finalmente ser reproduzido para Trpsion. Mas o livro no ser lido por seu
suposto autor, Euclides, tarefa que cabe ao escravo, caracterizando assim a ltima
marca da oralidade no prlogo.
Do ponto de vista da composio do dilogo, alguns aspectos da memria
dramtica j podem ser observados. No trecho citado acima, a memria pode ser
caracterizada primeiramente pelo seu aspecto oral, ou seja, o lembrar-se de algo
que foi dito, representado nas formas dos verbos e ; em
segundo lugar, esta caracterizao passa ao aspecto escrito, representado pelo
substantivo , a anotao escrita. Alm disso, observa-se tambm o uso de
duas formas do verbo ( e ); o primeiro est associado
ao termo , ou seja, escrever para no esquecer; o segundo, o perfeito
, confirma que a ao foi terminada, ou seja, o dilogo j est escrito.
Mas o dilogo assim apresentado a verso de Euclides para o que
Scrates lhe narrara, uma vez que no temos condies de saber quais eram as
partes de que ele no se lembrava, e nem quais as partes revisadas por Scrates.
Apesar deste limbo, sabe-se que o texto contou com a reviso de Scrates. Deve-
se, por isso, atentar a esse processo de reviso e, a partir desta passagem, justificar
uma das funes do prlogo mencionada no incio, a saber, descrever os eventos
dramticos que antecedem a narrao. No final do dilogo, sabemos que Scrates
est prestes a se dirigir ao Prtico dos Reis, onde ter conhecimento de sua
sentena. J sabemos tambm que, atravs da fala anterior de Euclides, a conversa
se deu um pouco antes da morte de Scrates. Em que momento ento, se deu
esses encontros entre os dois, para que a reviso das conversas fosse feita?
Plato nos diz no Fdon [58c] que entre a sentena proferida contra
Scrates e a sua execuo h um perodo de cerca um ms entre elas. Por esta
passagem, pode-se supor que Euclides teria visitado Scrates na priso durante
este intervalo, e feito a reviso de suas anotaes na cela onde ele se encontrava
preso.
Mas diante deste documente escrito, podemos ainda nos perguntar se
Plato teria mudado a sua posio em relao escrita, j que ele mesmo, atravs
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de um mito narrado por Scrates no Fedro, indica quais seriam, dado o
aparecimento da escrita, os seus reveses para a memria. No seria estranho este
reforo do uso da escrita no Teeteto, uma vez que o prprio Plato o critica no
Fedro? Para responder questo, necessrio observar a passagem onde o mito
descrito e suas possveis relaes com nosso dilogo.
Neste mito, Plato narra a lenda do deus egpcio Theuth, que alm de
inventor dos nmeros, do clculo, da geometria e da astronomia, tambm havia
descoberto a escrita. Distribuindo elogios e censuras a cada uma dessas artes ao
apresentar a escrita, o deus diz ao rei que tal arte tornar os egpcios mais sbios e
tero boa memria; assim, descobri um phrmakon para a memria e a sabedoria
(
.), ao que lhe teria replicado o rei:
(...) , , .
(...) isto engendrar esquecimento nas almas daqueles que aprendem, pois no cultivaro a memria, porque confiando no que est escrito, se lembraro no a partir do seu prprio interior, mas do exterior, atravs de sinais estranhos. Certamente no encontraste um remdio para a memria, mas apenas para a recordao. [274e]
Mas qual a sua implicao em nosso dilogo, tendo em vista a memria
dramtica? Vemos que alguns dos elementos presentes nesta passagem
assemelham-se aos encontrados no prlogo. No Fedro, a palavra escrita ()
est ligada recordao (), da mesma maneira que no Teeteto o
termo escrevia () est ligado a anotaes (). Existe,
evidente, uma forte relao semntica entre o escrever e o lembrar, entre escrita e
memria. De acordo com a passagem, recordar ter acesso quilo que de alguma
forma foi registrado e est preservado.
Apesar de ser notria a crtica que Plato faz escrita no Fedro, podemos
nos perguntar se, no contexto do Teeteto, ela pode ser considerada realmente como
uma crtica. No Fedro, a escrita um phrmakon e so duas as leituras possveis,
21
pois este termo grego designa tanto o veneno quanto o remdio. Se considerarmos
o seu carter txico, a escrita representa um vis negativo, ou seja, tal como citado
na passagem acima, ela leva ao esquecimento. Em contrapartida, a escrita tem
tambm a sua via positiva. Enquanto remdio, ela cura ou salva os homens do
esquecimento. a este segundo entendimento do termo, o salvamento, que eu
atribuo o papel da escrita no Teeteto. Esta atribuio diz respeito tanto ao papel
desempenhado por Euclides quanto quele desempenhado por Plato. Euclides, no
prlogo, pode ser considerado o duplo ficcional de Plato, j que ele supostamente
escreveu o dilogo. O que isto quer dizer? Se hoje ns temos acesso ao
pensamento de Scrates, devemos isto graas ao registro escrito que Plato fez,
atravs do dilogo, das conversas de Scrates. No questo aqui discutir se se
trata de fico ou no, pois o que est em jogo no o contedo, mas a forma. Ora,
se diz respeito forma, o papel de Euclides em relao a Scrates exatamente o
mesmo de Plato, j que ele, no prlogo do Teeteto, diz ter registrado as conversas
de Scrates. Se o Teeteto um dilogo onde se diz que foi escrito, ele se d,
portanto, como a representao do pensamento do personagem Scrates e se faz
representao toda vez que lembrado ou lido. Neste sentido, o phrmakon
reproduzido em nosso dilogo essencialmente positivo.
Mas resta ainda uma rpida observao a respeito da composio do
dilogo. Ao apresentar o texto a Trpsion, Euclides diz que o dilogo no est
escrito da maneira que Scrates havia narrado, mas da maneira que Scrates havia
conversado com Teeteto e Teodoro. Para tal composio, Euclides teria retirado, no
que diz respeito s falas dos interlocutores, as expresses que caracterizavam os
intervalos da conversa, como por exemplo, eu disse ou eu afirmei (
) ou expresses como concordou e no concordou (
). Embora no seja possvel afirmar que tais omisses interlocutrias
eram um recurso estilstico recorrente na Antiguidade para a construo de uma
narrativa, temos dele outro exemplo semelhante. Ccero, ao escrever o seu Sobre a
Amizade, parecia ter em mente (ou ter lido) o Teeteto de Plato. Diz ele:
22
Retive os pensamentos em minha memria, e os expus neste tratado a meu modo. Fiz calar os personagens mesmos, para no entrecortar o discurso com estas palavras: eu disse e ele disse e para que se possa crer na presena dos interlocutores.4
Assim, podemos concluir a anlise do prlogo tendo em mente que sua
interpretao pelo vis da memria dramtica mostrou que a memria, do ponto de
vista de sua relao com o oral e o escrito, torna-se fundamental para a leitura
proposta. Desta maneira, podemos passar para a anlise do dilogo principal e
verificar qual papel esta memria dramtica assim como a memria filosfica,
desempenha no resto do dilogo.
4 Ccero, Sobre a amizade.
23
PARTE II
ASTHESIS:
CONHECIMENTO, SENSAO E MEMRIA.
24
As memrias de Scrates e Teodoro
As primeiras palavras lidas pelo escravo pem em cena Scrates e Teodoro.
O primeiro a falar Scrates. Sua procura inicial por um jovem que se distinga dos
demais, principalmente daqueles de Cirene, jovens que se ocupem da geometria e
de outros ramos do saber. curiosa esta preocupao de Scrates no incio do
dilogo. Ele, que sabemos nunca ter ido alm dos muros de Atenas, questiona um
estrangeiro de Cirene sobre a possibilidade de encontrar algum que se encontra
justamente em Atenas.
Teodoro, no entanto, conhece este jovem, embora estranhamente no o
nomeie. Ao contrrio, ele prefere descrev-lo. Ele afirma que o jovem no bonito
( ), pois se assemelha a Scrates pela forma achatada do nariz e
pelos olhos salientes ( ).
Dada a semelhana entre ambos, pode-se considerar que o jovem um duplo de
Scrates. interessante notar aqui a importncia dada por Plato a esta descrio
fsica de Teeteto, pois tal descrio parece antever alguns pontos que sero
discutidos ao longo do dilogo.
A resposta de Teodoro, no entanto, no descreve de imediato o modelo de
jovem procurado por Scrates, mas se atm primeiramente a sua aparncia olhos
e nariz ou seja, aos rgos de Teeteto que dizem respeito sensao. Alm disso,
se Teodoro inicia assim a apresentao do jovem, ele a justifica no porque ele
tenha algum tipo de desejo por ele ( ), mas simplesmente por ser
este o modo como o seu conhecimento de Teeteto lhe parece primeiramente, isto ,
atravs de sua percepo imediata atravs dos sentidos.
Apenas num segundo momento Teodoro deixa de lado a aparncia de
Teeteto e passa a descrev-lo como o modelo procurado por Scrates. As virtudes
do jovem o qualificam como tendo uma natureza espantosa (
). Destas virtudes, Teodoro destaca a sua facilidade em aprender
(), sua gentileza e coragem (), alm de possuir uma boa memria
(). Estas caractersticas atribudas a Teeteto ecoam nas passagens onde
25
Scrates enumera, no livro IV da Repblica5, as qualidades exigidas ao filsofo,
candidato ao posto de guardio da cidade.
Ansioso por saber quem o jovem, Scrates pergunta a Teodoro de quem
se trata, pois, embora ele j tenha ouvido o nome, no se lembra. Reconheo-o. o
filho de Eufrnio de Snio (. ), diz Scrates
ao avistar o jovem. curioso que Plato, ao fazer tal referncia ao nome do pai de
Teeteto, parea propositadamente esquecer-se da formulao dos patronmicos
gregos. Em grego, o modo corrente utilizado ao referir-se a algum que vai ser
apresentado justamente a frmula que contm o nome da pessoa acompanhado
do nome do pai no caso genitivo. Embora no a utilize por completo aqui, ela que
faz com que Teodoro imediatamente se lembre do nome do jovem, afirmando tratar-
se de Teeteto.
No que diz respeito memria dramtica, esta cena introdutria j levanta
uma primeira questo literria no dilogo: possvel confiar na memria de seus
participantes? Observemos como se do os dois esquecimentos citados acima.
Quanto ao primeiro, o de Teodoro, com j foi dito, trata-se de uma relao imediata
com os sentidos, relao onde o mais significativo para ele foi retido, neste caso, a
aparncia de Teeteto. Quanto a Scrates, irnico o seu esquecimento. Se
Scrates o duplo de Teeteto, isto , se existe uma semelhana entre ambos, no
seria plausvel que ele, assim como o jovem, tivesse boa memria?
Scrates diz que reconhece Teeteto. Se tal reconhecimento ocorre assim
que traduzo o verbo na passagem, por reconhecer e no por conhecer
em razo de Scrates ver em Teeteto o seu duplo, algum que se assemelha
fisicamente a ele, cuja imagem faz com que ele se recorde.
Ademais, sabemos que notria a memria de Scrates e para justificar
tal afirmao suficiente lembrar-se de que ele narrou todo do dilogo a Euclides.
Como ento justificar o seu esquecimento nesta passagem? Por ora, tomemos como
um simples esquecimento, uma falha de sua memria. A resposta definitiva vir,
mas apenas nos movimentos finais do dilogo. Mas voltemos a este encontro.
5 Repblica, 503c
26
O cenrio a sada do ginsio. Nota-se, nesta passagem, que Teodoro no
faz parte do mesmo grupo de jovens que se dedicam ginstica. Plato parece
aqui, novamente, antecipar outro ponto importante da discusso do dilogo.
Podemos ver Teodoro como representante do repouso e da falta da atividade fsica,
isto , um digno representante da estabilidade. Mas no avancemos na
argumentao. Aps uma breve apresentao entre Scrates e Teeteto, onde
Scrates reconhece a semelhana entre ambos e, aparentemente critica a posio
de Teodoro, to atrelada s aparncias, podemos passar questo principal do
dilogo.
As primeiras assimilaes de por Teeteto
Antes de nos ocuparmos com a refutao de Scrates primeira definio
dada por Teeteto, convm examinarmos o modo como o seu termo principal
pode ser traduzido e/ou entendido no dilogo. As tradues possveis
so trs: saber, cincia ou conhecimento e, a meu ver, nenhuma delas incorreta,
embora as duas primeiras levem a algumas imprecises. A hiptese que levanto
para compreender tais imprecises a seguinte: existe um entendimento por parte
de Teeteto de que possa ser saber ou cincia e, neste sentido, a
sequncia do dilogo mostra que tal entendimento pertinente. Mas como isto
ocorre? Primeiramente, observemos onde seria equivalente a saber:
. (...) ; . ; . . . . . ; . ; . . ; . ; . ; . . Scrates: (...) Ora, diz-me: aprender no tornar-se mais sbio
acerca daquilo que se aprende?
27
Teeteto: Como no? Scrates: E pela sabedoria, eu penso, que os sbios so sbios. Teeteto: Sim. Scrates: E isto difere em algo do conhecimento? Teeteto: Isto o qu? Scrates: A sabedoria. Ou ser que os que conhecem tais coisas no so sbios. Teeteto: Como no? Scrates: Ento so o mesmo, o conhecimento e a sabedoria? Teeteto: Sim. [145d-e]
Nesta passagem, o pano de fundo da argumentao a aprendizagem, e
natural que tal aspecto seja abordado aqui. Scrates tem diante de si um aluno,
Teeteto, e um mestre, Teodoro, com o qual o jovem j havia afirmado que aprendera
muitas coisas. Se, segundo Scrates, a consequncia de aprender tornar-se sbio
naquilo que se aprende, Teeteto pode ser considerado, por seu aprendizado com
Teodoro, sbio em relao s coisas que aprendeu, isto , a geometria. Mas
Scrates sugere ainda, com a aquiescncia de Teeteto, a equivalncia entre
conhecimento e sabedoria e, por consequncia, a concluso de que aqueles que
conhecem () so sbios (). Entretanto, justamente isso que
deixa Scrates em aporia, pois ele no compreende o que ,
conhecimento.
Se pensarmos que o mesmo () que , a definio
buscada para o primeiro termo j est dada e, por consequncia, o dilogo no teria
razo de existir. Por isso, paradoxal traduzir por saber, e o paradoxo
reside na confuso criada ao traduzirmos, por exemplo, , por aqueles
que sabem, j que aqueles que sabem so, de fato, , sbios pela sabedoria
().
No entanto, se por causar este tipo de confuso, a traduo de por
saber no possvel, o entendimento dela, no contexto desta passagem o .
Teeteto concorda que o mesmo que porque ele foi induzido por
Scrates a responder assim. A equidade dos termos, lembremos, foi sugerida por
Scrates num contexto de aprendizagem, onde se impe a relao mestre/discpulo.
Se Teeteto discordasse de Scrates, que afirma que aprender torna mais sbio
quem aprende, ele concordaria, indiretamente, que os ensinamentos de Teodoro
no tornam ningum sbio, nem o prprio Teodoro. Assim, quando Teeteto
28
concorda com a equivalncia dos dois termos, seu objetivo livrar-se do embarao
pessoal de acusar seu prprio mestre, Teodoro, de no ser sbio, o que justifica,
portanto, o entendimento que ele tem de que o mesmo .
Desta maneira, se retornarmos ao termo , e se desejarmos tambm
manter uma linha coerente para a sua traduo (e a coerncia aqui diz respeito
apenas traduo, no ao seu entendimento), deve-se procurar outro sentido para
ele, de modo que os termos que lhe so cognatos, como , tambm no
se contradigam no decorrer do dilogo, tal como mostrado acima.
A mesma hiptese pode ser defendida se tomarmos como
cincia. Cincia, no sentido moderno do termo e devemos falar em seu sentido
moderno, supondo o entendimento do termo por um leitor moderno no oferece o
mesmo escopo que os demais termos empregados, ao contrrio, ele o restringe. Se,
por exemplo, mantermos o mesmo raciocnio aplicado acima a , como
se poderia traduzir o termo? Pode-se, evidente, supor que so
aqueles que tm cincia. Todavia, conhecer algum ou alguma coisa no quer
dizer que eu tenho uma cincia desta pessoa ou desta coisa. Pode-se, por exemplo,
dizer que se conhece Scrates, mas isso no quer dizer que eu tenha uma cincia
de Scrates ou, em um sentido moderno, afirmar que exista uma socratologia6.
Neste sentido, se difere de cincia.
No entanto, no se deve esquecer de que Teeteto um jovem matemtico e
os assuntos aos quais ele se dedica a geometria e o clculo podem ser
realmente considerados como um conjunto de disciplinas que formam uma cincia, a
matemtica. Por consequncia, nada impede que de Teeteto surja o entendimento
de que exista uma equivalncia entre e cincia, e isto fica claro na
passagem onde ele faz uso de um argumento matemtico para demonstrar a sua
explicao acerca das potncias e dos nmeros irracionais. Mas o argumento de
Teeteto uma demonstrao, no uma definio e, por isso, a aquiescncia de
Scrates ao dizer que Teeteto deve seguir este mesmo caminho para chegar
definio de .
6 O termo empregado aqui, socratologia, uma adaptao de outro termo cunhado por Valter Cavini
durante sua apresentao na Journe dtude - La troisime partie du Thtte de Platon, em Nantes, Frana, 2015.
29
Tendo passado em vista os possveis significados para o termo, creio que a
traduo de por conhecimento parece ser, portanto, a mais adequada.
Quanto ao seu entendimento, podemos deix-lo tanto para Scrates, que se
encontra em aporia, quanto para Teeteto, que tem a misso de encontrar uma
definio para o termo, ou ainda ao leitor do dilogo, a quem cabe interpretar o que
Plato diz em seu escrito.
O conhecimento uma tcnica?
Antes de entrar na questo principal do dilogo, Scrates coloca, em uma
sentena, qual o objeto da investigao. A discusso inicial parte do saber se
aprender no tornar-se mais sbio naquilo que se aprende Mas este
questionamento de Scrates o conduz a uma aporia, pois justamente a
equiparao entre saber/conhecimento e sabedoria que o deixa em dificuldades.
necessrio ento reformular questo. O desejo de Scrates verificar a
possibilidade de se definir claramente o que vem a ser o conhecimento.
Teodoro, dado a sua idade avanada e falta de hbito em tais assuntos, se
diz incapaz de prosseguir com Scrates na discusso. Scrates torna ento a
questo a Teeteto e pede que ele lhe responda o que parece ser o conhecimento.
A resposta de Teeteto, no entanto, no vai de encontro ao que Scrates lhe
pedira. Tal no condiz com a essncia do conhecimento, mas simplesmente com a
identificao entre os dois termos que foi incitada por Scrates. Em vez de expor
uma definio de conhecimento, o jovem interlocutor descreve o conhecimento pelas
cincias que Teodoro lhe ensinava, que so as mesmas que Plato apresenta como
necessrias formao do filsofo na Repblica, como o clculo e a aritmtica
( ) e a geometria (). Alm disso, a resposta de
Teeteto possui um vis tecnicista, pois junto a estas cincias, ele acrescenta
tambm as artes dos sapateiros e de outros artesos (
) como se todas elas fossem conhecimentos.
Ora, de onde surge este vis tecnicista mencionado acima, que leva Teeteto
a considerar tambm estas artes como conhecimento? A resposta parece estar no
modo como Teeteto apreende primeiramente o conhecimento, pois ele parece ligar-
30
se a uma concepo mais arcaica de sabedoria. Esta pr-platnica se define
como a capacidade para realizar alguma coisa, ou seja, totalmente voltada para o
campo da habilidade prtica. Dessa maneira, as respostas de Teeteto configuram-se
em um tecnicismo oposto ao conhecimento, ou seja, remetem a uma oposio
clssica grega entre saber manual e saber intelectual. Teeteto no ainda um
filsofo e, por isso, a sua maneira de raciocinar se mantm presa aos raciocnios
demonstrativos da geometria. Ele deve ento abrir mo deste conhecimento prtico
para ascender a este conhecimento filosfico, ou seja, deve abstrair que o
conhecimento conhecimento de alguma coisa () e ir em direo ao
conhecimento ().
Se o conhecimento prescinde deste , a resposta que Scrates espera
deve ser simples, como se ao se perguntar o que o barro, pura e simplesmente
( ) se responda que terra misturada com lquido. Ora,
irnico este pedido de Scrates, pois a investigao acerca do conhecimento
mostrar que no h nada de simples nela. Se as respostas de Teeteto conduziam a
um caminho infinito ( ), o caminho para atingir a essncia do
conhecimento ser o longo dilogo que temos pela frente.
A descrio daquilo que pode ser construdo com o barro, nesta passagem,
para a descrio do que seria o barro em si, retoma o modelo de discusso dos
dilogos da primeira fase de Plato, caracterizado pela transio do geral para o
particular ou, melhor dizendo, parte da busca do que meramente sensvel por
definio para alcanar a definio inteligvel. Isto ocorre no Mnon, por exemplo,
onde a discusso sobre as virtudes demandava a transio dos diversos tipos de
virtude para a virtude em si. Esta transio, tal como tambm ocorre no incio do
Teeteto, pode levar crena de que ele se encaixa em tal modelo de dilogo. Mas,
ao contrrio, vejo o Teeteto como um divisor de guas nos dilogos de Plato.
Neste sentido, o Teeteto , a meu ver, um dilogo de transio. No apenas
por abandonar este modelo de discusso, mas principalmente no que diz respeito
figura de Scrates. Quanto a isso, cabe uma crtica. Convencionou-se que a
tetralogia na qual se insere nosso dilogo deve ser lida como uma sequncia, em
razo de sua afinidade temtica. Logo, o Teeteto, o Sofista e o Poltico formam uma
trilogia escrita, seguida de outro dilogo, o Filsofo, nunca escrito por Plato. A
31
transio entre o Teeteto e o Sofista se d pela ltima fala de Scrates no primeiro
dilogo, onde ele diz que amanh de manh cedo, regressaremos aqui de novo. A
sequncia inicia-se ento no Sofista, onde Teodoro afirma: Fiis, Scrates, ao
compromisso de ontem, aqui estamos (...).. Creio que esta sequncia proposta
mais didtica do que filosfica ou, melhor dizendo, mais didtica do que dramtica.
Qual seria ento a sequncia que explicaria esta dramaticidade?
A resposta encontra-se no na ltima frase de Scrates no Teeteto, mas sim
na penltima, onde ele diz que deve retirar-se para tomar conhecimento do processo
que movido contra ele. Se levarmos em conta mais esta frase do que a ltima, a
sequncia de leitura aps o Teeteto seria: primeiramente o utifron, onde Scrates
toma conhecimento da acusao, seguido da Apologia, corolrio de sua defesa; logo
aps o Crton, que relata os seus dias na priso e, por fim, o Fdon, onde narrada
a sua morte. Se forem lidos desta maneira, ao voltarmos ao Sofista, possvel
compreender por que Scrates no mais o interlocutor principal. A voz do mestre
lentamente apagada por Plato, pois Scrates est definitivamente morto. Dessa
maneira, o Teeteto seria o ltimo dilogo onde os pensamentos de Scrates foram
realmente discutidos em sua maior complexidade. por este ponto de vista que
considero o Teeteto como dilogo memorvel. Memorvel aqui, pelas duas
acepes do termo. O Teeteto , por um lado, o dilogo de Scrates que deve ser
conservado na memria, e esta tambm a razo de figurar em seu prlogo o modo
como ele foi construdo. Por outro lado, memorvel no sentido da preservao,
no apenas desta discusso de Scrates, mas tambm da sua notoriedade como
mestre de Plato.
A memria de Teeteto: um exemplo matemtico
Antes de dar, com Teeteto, a definio de conhecimento, parece-me
primeiramente necessrio analisar o que tradicionalmente se convencionou chamar
de a parte matemtica do Teeteto. Contrariamente s afirmaes e especulaes
feitas pelos comentadores do dilogo, tentarei mostrar aqui no os desdobramentos
e as consequncias da demonstrao proposta pelo jovem interlocutor de Scrates,
32
pois a minha proposta nada tem a ver com ela. Minha interpretao da passagem
apoia-se mais na maneira que podemos caracterizar Teeteto como o interlocutor
ideal de Scrates do que tentar afirmar ou especular algo sobre a demonstrao
apresentada por ele. Assim, a alternativa que proponho partir de uma pequena
sutileza textual empregada por Plato na passagem, mas que me parece passar
despercebida aos olhares dos comentadores.
Mas, antes da anlise de tal sutileza, vejamos o que pode ser dito a respeito
da memria dramtica nesta passagem. Seguindo o testemunho textual, podemos
primeiramente verificar que a demonstrao proposta por Teeteto est ligada sua
memria recente. Para compreender o que isto quer dizer, necessrio atentar
possibilidade levantada por Scrates, pois ele nos diz que a resposta que melhor
definiria o conhecimento poderia ser elaborada de maneira simples. Tal simplicidade
reside, como sugere Scrates, na resposta dada questo o que o barro?, pois
possvel simplesmente responder que ele terra misturada gua. Este exemplo
faz surgir em Teeteto a lembrana de algo que Teodoro h lhe pouco ensinava
acerca das potncias:
. , , , . Teeteto: Agora, Scrates, parece fcil dessa maneira; ento,
perguntas provavelmente o que h pouco nos veio mente, quando conversvamos eu e este teu homnimo Scrates. [147d]
Ora, este vir mente no outra coisa seno uma recordao de Teeteto. A
origem desta recordao a lio que lhe ensinava Teodoro antes do encontro com
Scrates. A descoberta de Teeteto diz respeito a tentar reunir sob um nico nome,
pelo qual pudssemos nomear todas as potncias ( ,
) todos os nmeros irracionais
por um nico termo ( ). Mas a, a meu ver, que reside o erro de Teeteto.
O que Teeteto fez nesta demonstrao foi reunir diversas potncias, das
quais ele diz que so de nmero infinito, sob um nico nome. Este procedimento o
mesmo que ele fizera anteriormente, quando tentou reunir sob o nome
33
conhecimento, todas as disciplinas ensinadas por Teodoro e tambm as demais
artes, como a do sapateiro. Mas o pedido de Scrates , a meu ver, oposto ao
demonstrado por Teeteto. Scrates pede a Teeteto que defina o conhecimento. Ora,
aquilo que deve ser definido j est nomeado, no ocorrendo o mesmo que na
demonstrao de Teeteto, onde a partir das potncias foi encontrado um nome para
elas. Alm disso, no Crtilo7, Scrates deixa claro que os nomes como guias no
devem ser tomados como guias para alcanar a essncia de algo, e esta sugesto
, a meu ver, retomada aqui.
Aps concluir sua demonstrao, Teeteto ouve de Scrates que ele deve
imitar o caminho seguido na resposta sobre as potncias para definir o
conhecimento. Entretanto, a definio deve ser dada reunindo todos os
conhecimentos ( ) em uma nica forma ( ), em uma nica
definio ( ). Ora, sabemos que Teeteto no dar apenas uma definio para
o conhecimento, mas trs. Alm disso, esta nica forma mencionada por Scrates
parece ecoar na imagem da linha da Repblica, pois, se Teeteto consegue dominar
a parte dos objetos matemticos, ele no est, portanto, na seo anterior, que d
conta apenas dos objetos sensveis. Isto faz dele o interlocutor ideal para a
discusso sobre o conhecimento, se pensarmos que esta nica forma qual
Scrates se refere o conhecimento verdadeiro correspondente sua parte
inteligvel da imagem da linha.
A maiutica socrtica
O mtodo maiutico ou a arte maiutica consiste numa metfora
platnica para a descoberta do saber. Por definio, a maiutica a arte de fazer
dar luz as almas e o seu propsito levar o interlocutor a dar luz algo que ele
tem dentro de si. Neste sentido, o mtodo consiste em colocar o interlocutor em uma
posio desconfortvel face ao que gerado.
que sentes as dores do parto, caro Teeteto, por no estar vazio, mas
fecundo ( , , ) o
7 Crtilo, 439b.
34
que, de maneira abrupta e um tanto quanto estranha, diz Scrates ao refutar a
primeira tentativa frustrada de Teeteto em responder questo acerca do que seria
o conhecimento. At aqui, neste princpio de discusso, Teeteto estava sendo
encorajado por Scrates a dar-lhe uma resposta que definisse o conhecimento de
modo mais universal. Se Scrates busca uma resposta, Teeteto, por outro lado, tem
muitas. Reduzi-las a uma nica o pedido de Scrates, e o caminho a ser seguido
pelo seu jovem interlocutor deve ser o mesmo que aquele empregado anteriormente
para a descoberta das potncias. Embora Teeteto esteja familiarizado com as
habituais questes de Scrates, ele no deixa de preocupar-se com a questo, e
sua resposta que ele tem tentado convencer-se daquilo que ele prprio diz. Em
face do embarao do jovem matemtico, Scrates sentencia, diagnosticando os
seus sintomas, que Teeteto est grvido e sente as dores do parto.
Mas seria possvel, a princpio, levar a srio esta sentena de Scrates,
admitindo a gravidez de um jovem? Aparentemente, no para Teeteto. Se
pensarmos na dramaticidade da cena, somos capazes de ouvir o riso de Teeteto nas
entrelinhas. No ao acaso, Scrates o repreende: , diz ele, que ao p da
letra pode ser traduzido por algo ridculo aos olhos do outro, ou que provoca riso;
ao que Scrates complementa para dar autoridade sua sentena no ouviste
que eu sou filho de uma grande, nobre e imponente parteira, Fenarete? (
, ;).
Agora, dada a seriedade imposta por Scrates questo, deve-se
compreender a passagem tendo em mente o princpio que assemelha a maiutica
arte de partejar propriamente dita. Na realidade, toda a apresentao deste mtodo
encontra sua sustentao ao apontar tanto as semelhanas como as diferenas
existentes entre uma e outra arte. Scrates afirma praticar a mesma arte de sua
me, Fenarete, cujo nome, recorrendo etimologia, significa algo prximo de
aquela que mostra a virtude. Sendo filho de uma parteira e praticando a mesma
arte, ele pode fazer com que Teeteto traga luz o que tem dentro de si. este o
princpio da maiutica: fazer com que o interlocutor mostre o saber que est em seu
interior. Mas este no um processo fcil, e pode-se dizer at que h algo de
violento nele, pois Teeteto sente dores. No entanto, em auxlio a este desconforto
que Scrates emprega a sua arte.
35
Para compreender o que sua arte realmente , Teeteto precisa compreender
o ofcio das parteiras. Nenhuma delas pode oferecer ajuda no parto enquanto ela
prpria puder engravidar ou dar luz, mas somente exerceria tal funo aps o
perodo em que no podem mais ter filhos. Para justificar tal posio, Scrates
recorre a uma divindade, rtemis, dizendo que coube a ela, por no poder gerar
filhos, a proteo aos nascimentos. Outra caracterstica da deusa foi no ter dado a
funo de partejar quelas mulheres que so estreis, uma vez que no poderiam
adquirir uma arte em que no possuam experincia. Logo, a deusa teria atribudo
esta arte quelas mulheres que partilham com ela estas caractersticas. Alm disso,
as parteiras esto autorizadas a medicar e a proferir encantamentos, provocando as
dores do parto, fazendo com que as parturientes se acalmem por utiliz-los,
levando-as a darem luz ou, pelo contrrio, fazendo com que elas abortem.
Mas as parteiras tambm, segundo Scrates, acumulam outra funo, a de
serem as mais hbeis casamenteiras, pois so elas que sabem qual mulher cabe a
qual homem, a fim de que possam gerar os mais excelentes filhos a partir desta
relao. Teeteto parece ignorar esta exposio de Scrates, sobretudo este
processo de eugenia; mas Scrates vai alm e remenda que as parteiras so mais
orgulhosas desta atividade a de casamenteiras do que a de cortar um cordo
umbilical. Continuando a comparao, Scrates afirma que a arte de cultivar a terra
e colher dela seus frutos a mesma que aquela de quem tem o conhecimento de
qual a melhor terra para determinado vegetal e de qual a semente que se deve
rejeitar.
Scrates tambm justificar o papel das parteiras ao compar-las ao ato de
alcovitar, ou seja, a arte de presidir os encontros amorosos entre um homem e uma
mulher. Dessa forma, dada a honestidade das parteiras, elas evitariam ser
casamenteiras, com receio de que fossem confundidas, ou seja, que uma arte fosse
tomada por outra.
A partir desta descrio do ofcio das parteiras, Scrates confronta seus
diversos aspectos com os da sua arte. Embora haja semelhanas entre elas, so as
diferenas que preservam o seu carter de mtodo filosfico. o seu produto que o
define como o maior e mais belo trabalho, isto , distinguir o verdadeiro do falso.
No se pode esperar que o produto da arte das parteiras pudesse ser caracterizado
36
como verdadeiro ou falso, simplesmente por ele ser nico, ou seja, quanto s
parteiras, o fruto sempre uma criana que gerada. Quanto ao resultado da
maiutica socrtica, caracteriz-lo como verdadeiro ou falso possvel. O lgos
extrado de seu interlocutor passvel de ser verdadeiro ou falso, real ou irreal, e
esta a distino fundamental da maiutica.
A segunda diferena diz respeito a quem se deve ajudar no trabalho de
parto. Scrates parteja homens e no mulheres. Terceira diferena: Scrates parteja
almas e no corpos e, alm disso, cabe a ele verificar se o pensamento produzido
uma fantasia e uma mentira, ou se uma verdade, o que torna a sua arte superior
das parteiras.
Mas desta comparao surge uma consequncia que contradiz a exposio
de Scrates. No incio da analogia, ele justifica que, por vontade da deusa rtemis,
as mulheres estreis no podem exercer a funo de parteiras, e que s podem s-
las aquelas que j tiveram uma experincia pessoal de gestao. Entretanto,
Scrates, apesar de fazer vir luz o lgos de seu interlocutor, declara ele mesmo
ser estril em sabedoria, e de ser incapaz de produzir por si mesmo um nico
raciocnio, o que o faz ser alvo de crticas, por somente questionar e no prestar
declaraes sobre nada. Ora, esta esterilidade, que Scrates afirma partilhar com as
parteiras, entra em contradio direta com o passado fecundo das parteiras. Como
se resolve tal contradio?
Uma primeira hiptese a aproximao que Scrates faz de si mesmo com
a deusa rtemis. Ora, esta deusa no podia ter filhos e, por isso, lhe foi dada a arte
de presidir os nascimentos. Mas ela no podia dar este dom aos humanos, ou seja,
no podia fazer com que as mulheres se tornassem parteiras sem antes terem dado
luz, pois a natureza humana seria muito fraca para adquirir uma arte da qual ela
no teria uma experincia prvia. Mas, se a deusa no podia atribuir uma arte
quelas que nunca procriaram, pois ela a divindade que por si mesma no procria,
ela poderia transmitir a arte quelas que no pudessem mais dar luz, embora elas
j o tivessem feito em algum momento. a divindade, portanto, a causa divina que
guia Scrates na arte de partejar as almas dos homens.
Existe, entretanto, um duplo movimento de aproximao e afastamento na
analogia. A esterilidade que afasta Scrates das parteiras o aproxima da divindade,
37
rtemis. A causa a deusa. Comparado s parteiras, Scrates no precisa de uma
experincia pessoal prvia, pois a natureza humana, como ele mesmo diz, fraca.
a divindade ento, que por presidir as gestaes, faz com que ele no prescinda da
experincia pessoal requerida s parteiras mortais. Ao contrrio dos nascimentos
comuns, a divindade intervm pessoalmente para guiar Scrates no emprego da
maiutica. Scrates, assim, sugere que a sua atividade possui uma dimenso divina
ao atribuir a si mesmo as mesmas qualidades que os deuses. Os paralelismos
estabelecidos entre a sua prpria atitude e a atitude divina assinala uma
proximidade com os deuses, conferindo-lhe um estatuto quase que divino.
Por extenso, a divindade a causa que possibilita o parto aos homens e
tambm determina se o produto das dores um raciocnio vlido ou se apresenta
defeitos e deve ser rejeitado. No se deve esquecer de que a maiutica perdura
durante todo o dilogo e Scrates, alm de ajudar no parto, tambm precisa
averiguar se o fruto da gestao verdadeiro ou no passa simplesmente de vento.
Mas, quanto esterilidade, existe uma hiptese que pode resolver a
contradio. Scrates j fez nascerem frutos antes. E o que podemos dizer destes
frutos que ele j fez nascer? Eles so frutos que no vingaram. Scrates no possui
sabedoria, logo, ele nunca fez nascer nada que fosse verdadeiro. Se a maiutica
requer ter feito isso previamente, como ocorrem com as parteiras, e Scrates s fez
nascerem frutos semelhantes ao vento, vazios, ele no poderia ser parteiro de
homens que deram luz algo verdadeiro, pois ele nunca fez isso antes. Entretanto,
ele pode ser parteiro de homens que deram luz a um fruto semelhante ao vento,
pois ele j fez isto antes.
Entretanto, a hiptese que pretendo sustentar rene um pouco das duas que
foram mencionadas. Creio que quem nos d a resposta para resolver esta questo
o prprio Scrates. Entretanto, a anlise deve ser feita pela via contrria sua fala,
quando ele declara no prestar declaraes a respeito de nada por no ter nada de
sbio. Imaginemos que Scrates decida emitir suas opinies e se declare sbio. Dos
discpulos que convivessem com ele, ele no poderia retirar nada, mas apenas
preench-los com o seu pretenso saber. Ora, se colocar nesta posio faria de
Scrates um sofista, e seus discpulos estariam na posio de receptores, incapazes
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de produzir qualquer verdade. Se isto ocorresse, no existiria mais o partejar de
almas, e a maiutica no teria razo em existir.
Mas o prprio Scrates quem d a origem da sua incapacidade de produzir
saberes, e ela surge da proibio imposta pelo deus. A maiutica no uma
atividade divina, mas tambm no puramente humana. esta posio
intermediria que d a Scrates a singularidade enquanto partejador de almas. A
maiutica surge de um apelo divino. Se Scrates fosse dotado do poder de procriar,
ele seria como uma destas almas cujo fruto poderia ser partejado. Ora, seria
necessrio um Scrates para partej-lo, e depois outro Scrates, ad infinitum, pois
necessrio que um parteje os outros. Esta necessidade coloca Scrates na funo
de mediador. Mas mediador para os outros, pois impossvel que ele mediasse a si
mesmo. Neste sentido, Scrates goza de uma posio especial. A invocar o seu
daimon, ele invoca a permisso para a prtica da maiutica.
Alm disto, Scrates dispe tambm da arte de reunir interlocutores, assim
como as parteiras dispem da arte de reunir um homem e uma mulher. Entretanto,
estes interlocutores, muitas vezes, se mostram incapazes de aprender. Estes se
afastam de Scrates, ou por convico prpria, ou persuadidos por outros e, uma
vez que no seguem o princpio da maiutica, abortam as coisas que ainda restam
por causa das ms companhias, destruindo o que Scrates fizera nascer. No
entanto, existem outros, aqueles com quem Scrates pode associar-se, uma vez
que a divindade assim permite. Estes sofrem o mesmo que as mulheres que esto
em trabalho de parto, e esto cheios de dificuldades, e Scrates pode ajudar-lhes.
Mas aqueles que Scrates reconhece como no totalmente fecundos ele os envia
aos sofistas, com a ajuda da divindade. Como Teeteto encontra-se dentre os
primeiros, Scrates lhe pede ento que confie nele como filho hbil de uma parteira
e responda ao que lhe for perguntado.
Encorajado por Scrates, Teeteto vai ento propor trs definies de
conhecimento, primeiramente identificando-o com a sensao, depois com a opinio
verdadeira e, enfim, com a opinio verdadeira acompanhada de lgos.
39
CONHECIMENTO SENSAO? Sensao e Protgoras
Aps ter convencido Teeteto de que seus dons de parteiro podem ajud-lo a
se livrar do embarao no qual ele se encontra, Scrates pede que ele novamente
tente definir o conhecimento. Segundo Teeteto:
, , . Parece-me, ento, que aquele que conhece algo tem uma sensao disto, o qual conhece, e como agora mesmo parece, o conhecimento no outra coisa seno sensao. [151e]
Ao equiparar os dois termos principais na definio, conhecimento
() e sensao (), Teeteto nos diz que existe nos indivduos uma
capacidade ligada aos sentidos e, quando estes percebem ou tm a sensao de
algo, eles automaticamente o conhecem. Tal definio no se mostra insignificante
( ) para Scrates e, portanto, deve ser analisada. Sua anlise, no
entanto, consiste em aproximar a definio dada por Teeteto tese de Protgoras.
Tal aproximao se d porque tanto a proposta de Teeteto quanto a tese de
Protgoras dizem as mesmas coisas ( ), embora de outro modo. Assim,
a resposta mais adequada que associa conhecimento e sensao aquela que se
aproxima do dictum de Protgoras, citado de cor (ou de memria) por Scrates: o
homem a medida de todas as coisas, das que so, como so, e das que no so,
como no so. ( " , "
, .).
Esta citao de Protgoras aproxima no apenas a primeira definio de
conhecimento tese do sofista, mas tambm faz referncia prpria construo do
dilogo. Lembremos que, no prlogo, Euclides nos diz que o dilogo foi escrito. Aqui,
Plato recorre outra fonte escrita para dar continuidade argumentao, pois faz
Scrates perguntar a Teeteto se ele j lera a sentena em algum lugar. Ora, quando
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Teeteto alega j t-la lido muitas vezes (), isto faz crer que esta verso da
tese de Protgoras parecia ser corrente nos crculos que tratavam da educao dos
jovens. Alm disso, ela parece mostrar tambm que Plato no se mostrava to
avesso ao uso da escrita, ao menos para aqueles que no eram filsofos. Note-se
que Scrates cita a frase de memria, enquanto Teeteto j a lera em algum lugar.
A sentena de Protgoras explicada assim por Scrates: por um lado,
assim como a coisa aparece () para ele, tal ela () para ele; por outro
lado, tal como essa mesma coisa aparece para Teeteto, assim ela para Teeteto, e
tanto Scrates quanto Teeteto so homens. Assim, a medida de cada um, ou a
verdade da coisa para cada um, a maneira como a coisa se apresenta para cada
um, sendo o homem a medida. Entretanto, o que est em jogo aqui no apenas o
ponto de vista do indivduo, mas principalmente o ponto de vista de um indivduo, o
de Protgoras, sendo ele um "homem sbio" ( ). ele ento que deve
ser refutado.
Neste sentido, evidente que para Protgoras o ser s exista do ponto de
vista individual. Para exemplificar tal ponto de vista, Scrates d o exemplo do
vento: o que faz com que o vento, sendo nico, parea frio para alguns indivduos ao
mesmo tempo em que no parece frio para outros? Se cada indivduo pode sentir o
mesmo vento de maneiras diferentes, ou seja, se o vento parece frio a um e no frio
a outro, h de se admitir que o mesmo vento possui duas propriedades, o frio e o
no frio. Estabelece-se, ento, uma relao em dois nveis: primeiramente, entre o
vento e a sua propriedade o frio e, em seguida, entre o vento e aquele que o
sente.
Assumir a primeira relao cair em contradio, pois o mesmo que dizer
que o mesmo vento ao mesmo tempo frio e no frio. Em contrapartida, assumir a
segunda relao concordar com Protgoras, pois o vento parece () de uma
maneira para um indivduo, e de outra maneira para outro indivduo. Ora, se o que
parece () o mesmo que ser sentido (), ento a aparncia
() seria o mesmo () que a sensao (), quer em relao s
propriedades do vento, quer s quaisquer outras relaes.
Entretanto, esta explicao suscita uma dificuldade. A sensao, sempre
sendo do que , infalvel (), sendo ela conhecimento ( ).
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Mas, segundo a interpretao de Scrates para a tese de Protgoras, se a sensao
relativa a cada indivduo, como pode ela poderia ser infalvel, isto , estar livre do
erro? Quer isto dizer que cada aparncia pode ser sentida pelo indivduo de modo
diferente daquele sentido por todos os outros indivduos, uma vez que a verdade de
cada sensao como ela lhes aparece? para livrar-se de tal dificuldade que
Scrates expe a tese secreta de Protgoras.
A tese secreta de Protgoras consiste em algo que ele teria revelado
somente a alguns de seus discpulos, mas, para a multido, falava de modo obscuro
(). Ora, o verbo utilizado por Plato aqui , que quer dizer falar
obscuramente ou por enigmas. Logo, a referncia clara. Herclito que Scrates
tem em mente, cuja tradio o denominava como obscuro.
Scrates enuncia ento esta doutrina: nada nico em si e por si (
), e ela traz consigo algumas consequncias. Por ela,
impossvel nomear ou qualificar alguma coisa com correo, pois, se no h
unidade, objeto ou qualidade, pode-se, a partir do ponto de vista do indivduo,
nomear grande ao que pequeno ou pesado ao que leve, e assim por diante. Ora,
se nada nico, mas admite variaes quanto ao tamanho, peso ou qualidade,
impossvel afirmar que algo (); isto se deve ao fato de que tudo parte do
movimento (), da deslocao () e da mistura (), fazendo com
que as coisas no mais sejam, mas se tornem () algo diferente daquilo que
era antes.
Mas Herclito no o nico defensor de tais opinies, j que Scrates
aproxima da tese de Protgoras aquela de outros sbios antigos. Fazem parte deste
squito o filsofo pr-socrtico Empdocles, o poeta cmico Epicarmo e Homero,
que canta a beleza das aparncias efmeras. A citao de Homero aqui no
gratuita. Scrates precisa da autoridade do maior educador da Grcia para refutar o
jovem Teeteto. Assim como fizera anteriormente ao citar o fragmento de Protgoras,
Scrates agora recorre a um verso da Ilada8, Oceano, origem dos deuses, e a me
Ttis, para assegurar que todas as coisas tm sua origem no fluxo. natural, no
entanto, que Scrates exclua Parmnides desta lista, pois ele o nico defensor do
ser nico e do repouso. Ademais, sabemos que esta excluso apenas temporria,
8 Homero. Ilada, XIV, v.201, 302.
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j que sua doutrina ser discutida e refutada na clebre cena do parricdio no
Sofista.
Mas para dar conta de sua explicao sobre o movimento, necessrio que
Scrates fale tambm de seu oposto, o repouso. Ambos possuem implicaes quer
no corpo, quer na alma. No corpo, pelo repouso e pelo descanso que a condio
dos corpos se deteriora e, em contrapartida, pelo movimento e pelos exerccios
que ele se preserva. Quanto alma, pela aprendizagem que a sua condio
preservada, ao adquirir conhecimentos, o que a torna melhor9. Em contrapartida,
pelo repouso, entendido como ignorncia, que ela se deteriora, pois nada aprende e
se esquece.
Scrates descreve ento como se d a gerao a partir do movimento, quer
no corpo, quer na alma. Uma diz respeito ao ser, produzida pelo movimento; a outra
diz respeito ao seu contrrio, o no ser, produzida pelo repouso. Os exemplos dados
so o calor e o fogo, engendrados pelo movimento de frico e translao. Mas no
apenas ele, mas tambm o bom e o mau estado do corpo, um gerado pelo
movimento e outro pelo repouso [153c].
Para aproximar a teoria da sensao ao mobilismo de Herclito, Scrates a
exemplificar atravs da cor. A cor no nem o que encontra (objeto) e nem o que
encontrado (sensao), mas algo intermedirio, prprio a cada indivduo, isto , um
movimento gerado entre a sensao e o objeto. Toda sensao seria ento prpria a
cada indivduo. Ora, afirmar isso gera uma objeo, pois seria preciso admitir que
todo ser que sente perceberia a mesma sensao, ou seja, tal como uma cor
pareceria para ele, ela pareceria tambm para um co ou qualquer animal, e isto
impossvel. Como o indivduo est em constante mutao, ele no jamais
semelhante () ao que ele era, e, por isso, suas sensaes individuais tambm
mudam.
9 O tema do aprendizado e do esquecimento, ou seja, a sua relao com a memria, ser retomado
por Scrates na apresentao do modelo do bloco de cera e do avirio.
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Sensao e Herclito
Os desdobramentos da teoria do fluxo de Herclito deixam Teeteto em
estado de admirao. A este estado de admirao (), Scrates finalmente
reconhece em Teeteto a figura do filsofo, pois a filosofia, para Plato, tem origem
neste maravilhamento:
, . do filsofo este sentimento, admirar-se, e no existe outro ponto de partida da filosofia do que este. [155d]
Scrates comea ento a expor o que existe de mais secreto da tese de
Protgoras, e a busca se dar em torno da verdade secreta (
) deste homem. O aviso a Teeteto claro: ele deve observar a
exposio ao mesmo tempo em que se mantm atento para que eles no sejam
ouvidos por alguns dos no iniciados (). Ora, estes no favorecidos pelas
Musas so aqueles que acham que no existe outra coisa alm do que podem
agarrar com as mos e no admitem que aes, geraes e todo o invisvel
participem da existncia [155e]. Teeteto toma estes homens como teimosos e
obstinados ( ), diferentes daqueles que
Scrates tem em mente, j que o autor, ou os autores da doutrina secreta seriam,
em contrapartida, mais refinados ( ).
Scrates descreve ento tal doutrina. Os movimentos so de dois tipos, um,
descrito como potncia de agir () e o outro, como potncia de sofrer uma ao
(). A partir do encontro e da frico destes ( ),
so gerados descendentes infinitos, que se formam aos pares. Destes pares, um o
objeto da sensao ( ) e o outro a sensao (). As sensaes,
por sua vez, tambm se dividem em duas e so nomeveis, correspondendo aos
sentidos nos homens, alm das sensaes de calor e frio, os prazeres, as dores, os
desejos e o medo.
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O gnero sensvel ( ), por outro lado, tem a mesma origem
que cada uma destas sensaes. Todas as espcies de cores, por exemplo, so
geradas respectivamente a todas as espcies de vises; do mesmo modo, todos os
sons a todas as espcies de audies, e para outras as outras sensaes, outros
que so sentidos. Isto quer dizer que para cada viso existe um tipo de cor
correspondente quela viso, do mesmo modo que, para cada audio existe um
tipo de som correspondente quela audio e assim, para todas as outras
existe um que lhe corresponde. assim, associando uma determinada
sensao a um objeto da sensao que termina o mito descrito por Scrates,
embora Teeteto no o tenha entendido completamente.
Teeteto no compreende muito bem tais desdobramentos e Scrates prope
ento termin-los. Estes movimentos, diz ele, variam em rapidez e lentido. Estas
duas caractersticas visam precisar a descrio do conhecimento segundo as
doutrinas de Protgoras e Herclito, isto , estabelecer quais resultados surgem da
relao entre elas. Scrates demonstra estas consequncia na relao
agente/paciente, exemplificando atravs das sensaes produzidas pelo olho que v
e o objeto que visto [156e]. Mas a distino entre agente e paciente no clara,
pois no pode haver agente antes do seu encontro com o paciente e nem pode
haver paciente antes que haja o encontro com a agente, pois somente na relao
com outra coisa que um agente e o outro paciente.
Scrates pergunta a Teeteto se, at ento, as coisas expostas lhe so
agradveis e, quando tu as saboreias, elas te satisfazem? ( , ,
, ;). irnica esta fala de
Scrates, pois ele faz uso de termos ligados s sensaes, como se dependesse
delas a aprovao de Teeteto. No entanto, Teeteto ainda tem dvidas se as
perguntas de Scrates esto a p-lo prova ou se Scrates as diz em razo de
simplesmente lhe parecerem assim. Diante desta dvida de Teeteto, necessrio
relembrar o que havia sido dito a respeito de sua arte maiutica. Scrates no sabe
nada e estril em relao a estas questes, fazendo apenas surgir, atravs de sua
tcnica, uma opinio de Teeteto acerca do que vem sendo exposto, comparada ao
fruto do nascimento, o qual Scrates pode examinar, quer se mostre vazio ou no.
Teeteto ento exortado a responder se lhe agrada o fato de algo no ser, mas
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devir sempre, como o bom, o belo e todas as coisas h pouco nos detnhamos
[157d].
Scrates retoma ento o que ainda falta ser dito do argumento. Falta dizer a
respeito dos sonhos, das doenas e de todas as outras loucuras, que so
associadas s imperfeies dos sentidos, como o ver e ouvir mal. Alm disso, disso
incorre tambm todas as sensaes ilusrias, de onde a possibilidade de existir
sensaes falsas em relao tese de Protgoras. O argumento do sonho e da
loucura introduzido na argumentao a fim de criar uma objeo a esta tese. Se
conhecimento o mesmo que sensao, ento qualquer ser capaz de sensao ,
por consequncia, capaz de conhecimento. Mas isto cria um problema, pois os
animais tambm so capazes de possuir sensaes.
Qual argumento ento necessrio para refutar a definio de
conhecimento de Teeteto, segundo a qual conhecimento seria sensao e a
associao que Scrates fizera desta resposta tese do homem-medida de
Protgoras, da qual gera sensaes falsas?
Teeteto hesita em responder, pois ele no pode ir contra o argumento de
que os loucos ou sonhadores no tm opinies falsas, quando pensam que so
deuses, ou como os que nos sonhos voam por acreditarem ter asas. A hesitao de
Teeteto levanta o argumento da divergncia existente entre e o sono e o estado de
viglia [158b]. Alm deste argumento, Scrates levantar outros para exemplificar o
papel do agente e do paciente em relao s sensaes, como o estado de
Scrates doente e Scrates saudvel, onde o sabor do vinho pode parecer doce ou
amargo para cada um deles. A anlise detalhada destes argumentos, entretanto,
escapa proposta de leitura do Teeteto, tal como ela foi definida para esta tese.
Vejamos resumidamente alguns destes argumentos e avancemos para a questo da
memria, tal como ela apresentada nesta primeira parte do dilogo.
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Anfidromia
, , , , . muito bom o que disseste, que o conhecimento no seno a sensao, e nisto concorrem tanto o que diz Homero, Herclito e todos de tal gnero: que tudo se move como fluxos, e, de acordo com sapientssimo Protgoras, que o homem a medida de todas as coisas, e, segundo Teeteto, que a sensao se torna saber, sendo assim a mesma coisa. [160e]
Nesta passagem Scrates retoma a primeira definio de Teeteto, que
equipara conhecimento e sensao, definio chancelada pela autoridade tanto de
Protgoras quanto de Homero e Herclito, que afirmam que tudo se move em fluxos.
Alm disso, Scrates incorpora verbalmente o devir definio de Teeteto, pois
agora a "sensao se torna saber" ( ). Este o primeiro
fruto de Teeteto, que Plato compara a um recm-nascido, aludindo chamada
Anfidromia, festa que se dava logo aps o nascimento onde a criana era carregada
em torno da lareira. Do mesmo modo que a criana era inserida na sociedade
atravs deste ritual, a definio de Teeteto, interpretada pelo vis mobilista, tambm
deve ser inserida na argumentao ( ).
Mas Teodoro intervm no dilogo para mais uma vez pr em evidncia o
carter de Teeteto. Seu humor fcil lhe permitir aguentar a exposio de seu filho,
primeiro fruto produzido pela arte maiutica de Scrates. O desejo de Teodoro
claro nesta passagem: ele quer ver refutada a resposta de Teeteto, de que
conhecimento no outra coisa seno sensao. Mas isto tambm revela o carter
de Teodoro. Teodoro um amante dos discursos