UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MSICA
CONSIDERAES SOBRE
HARMONIA MODAL
PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS
***
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MSICA
CONSIDERAES SOBRE
HARMONIA MODAL
PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS
Porto Alegre, dezembro de 2006
***
SUMRIO
I. CONSIDERAES PRELIMINARES SOBRE OS MODOS.................................1 II. ESTRUTURAO DA MSICA MODAL ................................................................5 III. MTODOS DE HARMONIZAO DE MELODIAS MODAIS .........................7
a) Harmonia esttica ..................................................................................................7 b) Repetio circular de acordes .........................................................................12 c) Sucesso de acordes ...........................................................................................15
IV. ORGANIZAO CONTRAPONTSTICA .............................................................21 a) Espcies de contraponto....................................................................................22 b) Ampliao das espcies de contraponto .....................................................51 b) Contraponto Livre ................................................................................................61 c) Contraponto imitativo .........................................................................................64 d) Contraponto Invertido ........................................................................................76
***
HARMONIZAO DE MELODIA MODAL
I. CONSIDERAES PRELIMINARES SOBRE OS MODOS
Modo a maneira como os intervalos de determinada escala se
relacionam entre si, isto , como se sucedem os intervalos com
relao nota inicial do modo ou com relao aos sons contguos.
Qualquer escala com combinao de diferentes intervalos pode
ser organizada em diferentes modos. Abaixo, esto os modos da
escala natural diatnica. A ordenao a seguir est organizada desde
o modo como maior quantidade de intervalos menores e/ou
diminutos at o modo com maior quantidade de intervalos maiores
e/ou aumentados com relao nota inicial de cada modo.
Modo Intervalo
Lcrio 2m 3m 4J 5d 6m 7m
Frgio 2m 3m 4J 5J 6m 7m
Elio 2M 3m 4J 5J 6m 7m
Menores
Drico 2M 3m 4J 5J 6M 7m
Mixoldio 2M 3M 4J 5J 6M 7m
Jnio 2M 3M 4J 5J 6M 7M
Maiores
Ldio 2M 3M 4A 5J 6M 7M
Quadro n 1: modos da escala diatnica natural
A classificao dos modos como sendo menores ou maiores diz
respeito tera maior ou menor com relao nota inicial do modo.
No apenas as escalas diatnicas podem ser organizadas em
modos, como qualquer outro tipo de escala com intervalos diferentes.
Visto que modo a distribuio dos intervalos no interior de
determinado conjunto sonoro, escalas constitudas apenas por um
tipo de intervalo, como a escala cromtica (formada somente por
segundas menores) e a escala de tons inteiros (que tem apenas
segundas maiores), no tm modos, mas transposies. Isso ocorre
2
porque as escalas citadas mantm sua constituio intervalar
(seqncia de segundas menores, na escala cromtica; seqncia de
segundas maiores, na escala de tons inteiros), mesmo quando se
toma qualquer uma de suas notas como som inicial. Essa uma das
razes pelas quais a escala hexatnica (tons inteiros) e a escala
dodecafnica (cromtica) so consideradas como sendo atonais. A
distribuio eqidistante dos intervalos desses conjuntos sonoros faz
com que haja equilbrio total entre os sons que os constituem; isso
significa que nenhuma nota especfica pode ser mais ou menos
atrativa dos que as outras. No h, portanto, centro tonal.
J a escala pentatnica, por exemplo, pode ser ordenada em
cinco modos diferentes, pois cada nota dessa escala pode ser tomada
como som inicial e ir produzir diferente distribuio dos intervalos.
Abaixo, esto os modos da escala Kin chinesa:
Exemplo n 1
Cada uma das escalas citadas no ex. 1, acima, apresenta uma
distribuio particular de intervalos, o que significa que se trata de
cinco modos diferentes. Atualmente, costuma-se denominar a escala
pentatnica que inicia em d como pentatnica maior, sendo a
pentatnica que inicia em l chamada de pentatnica menor. Essas
denominaes no so exatamente adequadas, pois so
terminologias derivadas da msica europia. De qualquer forma, so
freqentemente encontradas.
Abaixo, est a distribuio dos intervalos de cada um dos
modos da escala Kin, na ordem dos menores aos maiores intervalos
com relao nota inicial de cada modo:
3
Nota
Inicial
Intervalo
D 2 st. 4 st. 7 st. 9 st.
Sol 2 st. 5 st. 7 st. 9 st.
R 2 st. 5 st. 7 st. 10 st.
L 3 st. 5 st. 7 st. 10 st.
Mi 3 st. 5 st. 8 st. 10 st.
Quadro n 2: modos da escala Kin chinesa.
No quadro acima, os intervalos esto organizados de acordo
com o nmero de semitons que os compem, pois a denominao
tradicional (2M, 3m, etc.) no condiz com esse tipo de organizao
sonora em que h somente cinco graus escalares. Os intervalos entre
o I grau o II grau variam entre dois semitons (nas escalas de d, sol
e r) e trs semitons (nas escalas de l e mi). Isso significa que, na
escala Kin, 2st e 3st participam da mesma categoria intervalar,
aquela existente entre o I e o II graus; os intervalos de 4st e 5st
participam da categoria intervalar existente entre o I e o III graus; os
intervalos de 7st e 8st fazem parte da categoria intervalar existente
entre o I e o IV graus; os intervalos de 9st e 10st so aqueles
presentes na categoria que h entre o I e o V graus da escala. Isso
significa que as categorias intervalares da msica diatnica europia
(2m, 2M, 3m, 3M, etc.) no so adequadas ao entendimento da
escala chinesa.
Assim, pode-se perceber que a escala com intervalos de menor
distncia aquela iniciada em d, que seria, portanto, o menor de
todos os modos da escala Kin; sendo que a escala que tem os
intervalos com maior distncia aquela iniciada em mi, o modo maior
da escala chinesa. Naturalmente, o ouvinte acostumado s categorias
da msica tonal, percebe a escala de kin no modo d como sendo
maior porque o intervalo de 4 semitons equivale tera maior
ocidental, que define esse tipo de modo na msica ocidental. O
4
mesmo acontece com o modo de l, cujo primeiro intervalo equivale
tera menor ocidental e, por isso, comumente chamado de escala
pentatnica menor, quando um dos modos maiores da escala
pentatnica, isto , com as maiores distncias entre a nota inicial e
os outros graus.
Note-se que a ordem crescente de distribuio de intervalos dos
modos da escala pentatnica coincide com o crculo de quintas: d-
sol-r-l-mi. Outro fator importante a ser considerado o fato de que
a escala pentatnica plenamente estvel pelo fato de estar
embasada nesse crculo de quintas, o que faz com que haja bastante
equilbrio entre os sons que a compe. As notas do conjunto sonoro
formado pela escala Kin chinesa (d, r, mi, sol e l) que tm maior
capacidade para serem empregadas como centros tonais so o sol e o
l, pois essas notas tm o maior nmero de intervalos polares e o
menor nmero de intervalos apolares com relao s outras notas do
conjunto.
No quadro abaixo, esto representados todos os intervalos
existentes na escala Kin chinesa e suas relaes de polaridade
acstica1:
D R Mi Sol L
D P A N P N
R A P A P P
Mi N A P N P
Sol P P N P A
L N P P A P
Quadro n 3 relaes de polaridade, nos modos da escala Kin
1 Legenda: P: intervalo polar; A: intervalo apolar; N: intervalo neutro, do ponto de vista das relaes de atrao entre os sons (cf. COSTRE, 1962).
5
II. ESTRUTURAO DA MSICA MODAL
Do ponto de vista da estrutura meldico-harmnica, a msica
modal tem algumas caractersticas que a diferenciam de outras
formas de organizao sonora.
Em linhas gerais, podem-se distinguir trs grandes sistemas de
organizao das alturas: modal, tonal e serial. Os processos de
estruturao da msica atonal livre no so considerados aqui, pois
no se trata de um sistema, mas de processos de organizao
sonora.
O quadro abaixo demonstra algumas das principais diferenas
entre esses mtodos de estruturao sonora, na msica ocidental:
MODAL TONAL SERIAL Centro Tonal Presena de
centro tonal fixo Presena de centro tonal mvel
Ausncia de centro tonal
Elemento mais importante
Melodia Harmonia Srie
Mtodo de composio
Contraponto Harmonia Formas seriais: original, retrgrado, inverso, retrgrado da inverso
Carter harmnico
Esttico ou Sucessivo
Progressivo Multidirecional
Discurso Circular: os sons circulam em torno da finalis
Linear: os sons se propagam na direo da tnica
Esfrico: sem direcionalidade predeterminada
Escalas/Modos Diatonismo: 12 modos para 1 escala bsica
Diatonismo: 2 modos, 12 escalas para cada modo
Dodecafonismo: sem distribuio de modos
Quadro n 4: comparao entre sistemas de organizao das alturas.
O quadro n 4 apresenta algumas caractersticas que podem
ser levadas em considerao, na harmonizao de linhas meldicas
com carter modal.
Em primeiro lugar, as culturas musicais de base modal so
fortemente meldicas, sendo suas melodias elaboradas em torno de
6
um centro tonal fixo. Na msica europia tradicional, esse centro
tonal chamado de finalis2 do modo.
A melodia gregoriana abaixo, extrada do Kyrie da Missa n 22
do Liber Usualis, est no modo frgio. Note-se como essa melodia
circula em torno da nota mi, que a finalis do modo.
Exemplo n 2
Como o intervalo de 5J o mais estvel, do ponto de vista
acstico, bastante comum que as melodias modais se organizem
em torno desse intervalo, isto , iniciam na finalis do modo e se
movimentam em torno do quinto grau, como acontece na tocata de
abertura do Orfeu, de Monteverdi.
Exemplo n 3
Tambm na msica brasileira, as melodias modais podem ser
elaboradas em torno dos intervalos estveis, como nesta cantiga de
cego, coletada na Feira de Bonito, na Bahia. A melodia est no modo
ldio em sol, sendo que seus graus principais so as notas do acorde
de G.
2 Latim: nota final.
7
Exemplo n 4
Na melodia acima, os principais pontos de chegada so as notas
sol (c. 3-4 e 11) e a nota si (c. 6-7); alm disso, a nota sol, que o
centro tonal do modo, o ponto de partida de todos os grupos
meldicos (c. 1, 4 e 7), sendo que a nota r, que menos importante
nessa melodia do que o sol ou o si, o ponto de apoio nos trechos
em que h movimento ascendente (c. 5, 8 e 9); a nota r tambm
reforada pelo fato de que alcanada a partir de arpejos
ascendentes sobre o acorde de G (c. 5 e 8), momentos em que
ocorre a bordadura r-mi-r.
III. MTODOS DE HARMONIZAO DE MELODIAS MODAIS
a) Harmonia esttica
Por ser embasada em estruturas essencialmente meldicas, o
mtodo de composio que mais se destaca, em grande parte da
msica modal com diversas vozes, o contraponto. Isso ocorre
porque as tcnicas de contraponto tendem a evidenciar a
sobreposio de linhas meldicas independentes, isto , colocam a
melodia em evidncia, mesmo em peas escritas em vrias partes.
O mesmo exemplo da tocata de abertura do Orfeu de
Monteverdi, citado anteriormente, demonstra claramente esse
princpio. Neste exemplo, em modo R Jnio, em que est a tocata
completa, o mesmo acorde de D permanece durante 16 compassos, o
que produz uma harmonia completamente esttica. Assim, o que
gera movimento a distribuio das diversas melodias em
contraponto, com ritmos diferenciados, linhas independentes e
defasagens na distribuio frasal das partes.
8
Exemplo n 5
Esse mtodo empregado por Monteverdi um dos mais
comumente utilizados na msica moderna, sendo encontrado em
obras de Stravinsky, Milhaud, Bartk, Villa-Lobos e Ginastera, entre
outros.
Tambm na msica popular e no jazz so encontradas melodias
modais harmonizadas com base em estrutura harmnica esttica.
Isso pode ser realizado por meio de
9
Nota pedal ou intervalo fixo, que permanece esttico enquanto a melodia se movimenta no mbito de uma
escala que tem esses sons como notas atrativas;
Padro ostinato, que permanece ao longo de determinado perodo de tempo, enquanto a melodia ou o contraponto
se movimenta com base nesse padro;
Acorde fixo, que se mantm enquanto a melodia ou contraponto so elaborados com base neste acorde.
No exemplo abaixo, da cano De Banda (2004), de Vitor
Ramil, h trs notas que permanecem fixas, na parte de violo3 (r2,
r3 e f#3), enquanto a parte superior desse instrumento realiza
variaes cromticas sobre a quinta do acorde, o que faz alternar
entre os acordes de D e D(b5). A melodia contm forte efeito modal,
pois apresenta carter circular ao se manifestar como arabesco em
torno das mesmas notas que fazem parte do acorde de D
(respectivamente: l, f# e r).
Exemplo n 6
J em Lamentos do Morro, de Anbal Sardinha, conhecido como
Garoto, o pedal de r serve de base para a realizao de uma
3 Note-se que o violo soa oitava inferior do que est escrito.
10
seqncia harmnica variada, com acordes alterados e emprego de
dissonncias extremas (7M e 4A). Apesar de o pedal permanecer
esttico, esse processo configura direcionalidade ao segmento devido
sonoridade de dominante presente em grande parte dos acordes.
Alm disso, o ltimo acorde, que um G#, tem forte sentido
modulatrio. Por isso, diferentemente do efeito modal da cano de
Ramil, o trecho a seguir tem carter harmnico tonal.
Exemplo n 7
A cano That Old Black Magic, de John Mercer e Harold Arlen,
introduzida por dez compassos embasados em um ostinato sobre o
primeiro e o quinto graus de F Maior, conforme aparece no seguinte
arranjo de Oscar Peterson:
Exemplo n 8
11
A estaticidade da harmonia, que elaborada em torno das
mesmas notas fundamental, 3, 7M e 13, do acorde de F7M(13)
, e o baixo com padro ostinato configuram carter modal a essa
introduo. Um processo semelhante ocorre na introduo da Milonga
em R, de Astor Piazzolla:
Exemplo n 9
No exemplo acima, o ostinato realizado sobre o primeiro e o
quinto graus do modo elio em r (notas: r e l), enquanto a
melodia refora a tera desse modo (nota: f). Assim, o conjunto gira
em torno da trade de Dm.
A Milonga del Angel, tambm de Piazzolla, inicia com um acorde
fixo de Bm. Enquanto todas as outras vozes mantm as notas desse
acorde, ocorre um movimento cromtico descendente em uma das
partes intermedirias. O processo produz uma seqncia de
diferentes sonoridades com base na mesma harmonia: BmBm7
Bm6Bm(b6)4. Simultaneamente, a melodia consolida o efeito
4 Este acorde mais comumente cifrado como: G7M/B. A cifra empregada no texto tem a funo de demonstrar as variaes em torno da mesma harmonia.
12
esttico, com carter modal, ao se repetir em torno das mesmas
notas.
Exemplo n 10
Em The Continental, de Con Conrad, o acorde fixo de G aparece
de maneira intermitente, alternando com o movimento meldico. Este
outro processo bastante eficiente para a organizao da parte de
acompanhamento, visto que se produz um efeito semicontrapontstico
devido interao rtmica, na relao entre a linha meldica e o
acompanhamento.
Exemplo n 11
b) Repetio circular de acordes
Um mtodo bastante freqente, amplamente empregado pelos
msicos franceses da passagem do sculo XIX ao sculo XX, a
repetio de alguns poucos acordes durante longos perodos de
tempo.
Um dos compositores que se destacou pelo emprego desse
recurso foi Erik Satie (1866-1925). Entre suas sries mais
13
conhecidas, esto as Trois Gymnopdies (1888) e as Trois
Gnossiennes (1890), cujos ttulos so referentes a danas da Grcia
antiga. A primeira Gymnopdie organizada em torno da repetio
incessante do encadeamento de apenas dois acordes: G7MD7M.
Alguns pontos em que aparecem outros acordes tm apenas o
sentido de enfatizar a circularidade harmnica obtida pela repetio
desses dois acordes.
Abaixo, esto os primeiros compassos da primeira Gymnopdie,
de Satie:
Exemplo n 12
Note-se que, para criar um efeito modal, na pea de Satie, os
acordes tm a stima maior, pois se o encadeamento fosse entre os
acordes G-D7, por exemplo, se produziria um efeito tonal, devido ao
carter de dominante que possui o acorde maior com stima menor.
Isso indica que prefervel evitar acordes com sonoridade de
dominante, tais como acordes maiores com stima menor, acordes de
stima diminuta, acordes de quinta aumentada e todos os acordes
que possuem trtonos quando a inteno produzir circularidade
modal, na harmonia.
14
Uma estrutura harmnica com maior quantidade de acordes
tambm pode ser empregada para gerar um efeito modal, conforme
ocorre no exemplo abaixo, extrado de La Danza de la Moza Donosa,
de Alberto Ginastera.
Exemplo n 13
No exemplo 13, acima, h combinao de diferentes modos, em
torno da fundamental l. Os seguintes elementos conferem o carter
pan-modal estrutura harmnica da pea de Ginastera:
Acordes formados com base em intervalos de 5J Estrutura meldica que gira em torno de determinada
nota, como a nota mi, at o c. 9
15
Estrutura harmnica circular, gerada pela alternncia dos mesmos acordes em diferentes ordenaes
Alternncia equilibrada entre movimentos fracos e movimentos fortes entre fundamentais de acordes, o que
confere ausncia de direcionalidade
Alternncia meldica entre notas que caracterizam diferentes modos em torno de l: d natural: modo elio;
d#: modo mixoldio; f#: modo drico; sol#: modo
jnio; sib: modo frgio
interessante notar como os movimentos cromticos presentes
na voz intermediria, entre os compassos 13 e 19, no comprometem
o efeito modal, apesar de produzirem certa direcionalidade meldica.
c) Sucesso de acordes
Outra maneira de obter efeito modal, com diversidade
harmnica alcanada pelo emprego de vrios acordes distintos,
podendo inclusive aproveitar a totalidade dos acordes de determinado
modo ou escala, atravs de sucesses de acordes. Isso pode ser
realizado pelo domnio dos movimentos entre fundamentais de
acordes ou por meio da inverso do ciclo tonal.
Para discutir esse processo, ser necessrio discutir alguns
pontos determinantes do Sistema Tonal.
Conforme da definio de J.-P. Rameau, em seu Tratado de
Harmonia (1722), os movimentos entre fundamentais de acordes
so:
Movimentos Fortes: 5J descendente, 3M descendente ou 3m descendente;
Movimentos Fracos: 5J ascendente, 3M ascendente ou 3m ascendente
16
Os movimentos obtidos por segundas maiores ou
menores, ascendentes ou descendentes, podem ser
considerados neutros, pois dependem do contexto em que
ocorrem, isto , em progresses harmnicas tendem a ser
fortes; em sucesses harmnicas ou em seqncias regressivas
tendem a ser fracos5.
Tomando-se, como ponto de referncia, a escala diatnica
natural, com o centro tonal d, por exemplo, tem-se a
possibilidade de produzir tanto o modo de D Jnio quanto a
tonalidade de D Maior. O que os diferencia um modo de uma
tonalidade a forma como a estrutura meldico-harmnica se
manifesta.
Se houver uma tendncia predominantemente
progressiva, com direcionalidade fortemente conduzida at os
pontos cadenciais, tem-se a tonalidade de D Maior.
Se a estrutura se manifestar como uma sucesso de
acordes, sem direo determinada, em que a harmonia parece
flutuar livremente, sem conduzir a pontos estabelecidos, tem-se
o modo de D Jnio.
Assim, estas duas seqncias harmnicas tm carter
fortemente tonal:
5 Em seu tratado, Rameau definiu os movimentos entre fundamentais de acordes que ocorrem por segundas ascendentes ou descendentes como sendo fuper-fortes.
17
Exemplo n 14
A seqncia presente no ex. 14(a) construda como um
crculo de quintas, na tonalidade de D Maior, pois o movimento
existente entre todas as fundamentais de acordes de quinta justa
descendente. Esse o mais forte dentre os movimentos de
fundamentais.
A seqncia harmnica presente no ex. 14(b) tambm
fortemente tonal porque, alm de estar construda com base em
movimentos fortes entre fundamentais atravs de progresses
descendentes de 3m (d-l), 3M (l-f), 3m (f-r), 5J (r-sol) e
5J (sol-d) , segue estritamente o ciclo tonal TSDT. Na tonalidade de D Maior, os acordes tm as seguintes
funes:
Tnica: C [T], Am [Tr], Em [Ta], Cm [t], Eb [tR], Ab [tA] Subdominante: F [S], Dm [Sr], Am [Sa], Fm [s], Ab [sR],
Db [sA], D7 [DD 7] Ab7 [Al6], etc.
Dominante: G [D], Em [Dr], Bm [Da], B [D9], B [D9>], Db7[Sub-V], etc.
No quadro acima, esto incorporados os acordes alterados e
aqueles obtidos por emprstimo modal. Qualquer dos acordes citados
pode ser expandido por meio de acrscimo de 7, 9, 11 ou 13 ,
18
como tambm podem ser apresentados com sexta ou nona
adicionadas.
Assim, estes tambm so acordes com funo de tnica, em D
Maior: C7M, C7M(9), C6, etc.; tambm so subdominantes, os
acordes de F7M, F7M(9), F6, Dm7, Ab7(b5), etc.; tambm so
dominantes: G7, G7(13), G7(b13), Db7(#11), etc.
Note-se que os acordes de dominante da dominante D7 e
as sextas aumentadas sexta alem: Ab7; sexta francesa: Ab7(b5)
esto listados entre os acordes com funo de subdominante. Essa
classificao se deve ao fato de que esses acordes afastam da tnica
e conduzem dominante. Isso quer dizer que, em um nvel mais
profundo da estrutura harmnica, todos os acordes que conduzem
dominante tm a mesma funo harmnica que a subdominante.
Assim, a dominante da dominante uma espcie de subdominante
alterada.
Aps essas consideraes sobre o carter harmnico tonal,
pode-se esclarecer, por comparao, o efeito modal produzido
atravs de sucesses de acordes, o que resulta em uma harmonia
flutuante.
A maneira mais simples para se obter um efeito modal com o
emprego de vrios acordes que giram em torno de determinado
centro tonal (seja uma nota, um intervalo ou um acorde), atravs
do predomnio de movimentos fracos entre fundamentais de acordes.
Isso pode ser obtido com intervalos de quinta ascendente ou tera
ascendente entre as fundamentais.
A cano Lamour, la mort et la vie, de Clment Janequin, pode
ser tomada como um exemplo tpico dos processos modais da msica
renascentista. A pea inicia com uma seqncia de acordes
encadeados com base em movimento fraco entre suas fundamentais
[cf. ex. 15(a)]: F C Bb Bb/F F. O carter modal , ainda,
reforado pela harmonia esttica sobre o acorde de Bb, entre o incio
19
do c. 3 e o primeiro tempo do c. 5 [cf. ex. 15(b)]6. Entretanto, para
finalizar a primeira frase da msica, h uma seqncia de
movimentos fortes, para alcanar a semi-cadncia, com os acordes
[cf. ex. 15(c)]: F G C. Este outro procedimento tpico da
Renascena: emprego de curtos trechos com carter progressivo para
preparar as cadncias.
Exemplo n 15
No trecho a seguir, extrado da mesma cano de Janequin (c.
29-34), o efeito modal reforado pela cadncia plagal, produzida
pelo movimento fraco, de 5J descendente, entre as fundamentais.
Exemplo n 16
6 Note-se que o acorde de Bb/F o resultado do emprego de uma suspenso (sib-l), no soprano, e de uma nota de passagem acentuada (mi-r-d), no contralto.
20
No exemplo acima, esto anotados todos os encadeamentos
harmnicos com carter modal, seja devido ao tipo de movimento
entre fundamentais de acordes, obtido pelo predomnio de
movimentos fracos ou neutros, seja devido ao carter sucessivo
obtido pela reverso do ciclo tonal.
Os movimentos fracos entre fundamentais de acordes, no
trecho citado de Janequin [cf. ex. 16], esto assinalados pela
indicao dos intervalos de 5J ascendente, sendo que os
movimentos neutros aparecem por meio de intervalos 2M ou 2m
ascendentes. Note-se que, em um total de treze acordes encadeados,
somente dois movimentos so fortes, ambos realizados pela
progresso F Bb, isto , tnica-subdominante, presentes na
passagem do primeiro ao segundo compasso e no incio do penltimo
compasso.
Os movimentos modais obtidos pela reverso do ciclo tonal
esto indicados pelos colchetes dispostos abaixo das cifras das
funes, sendo que os movimentos tonais esto indicados por meio
de setas que indicam a progresso de uma funo outra. Note-se
que h equilbrio entre o nmero de progresses e sucesses, pois
cada uma delas ocorre seis vezes. Conforme j foi comentado quanto
pea de Ginastera, esse equilbrio confere sentido modal ao trecho.
Os pontos em que cada tipo de encadeamento ocorre tambm
definem o carter modal do segmento, isto , o predomnio de
sucesses modais presentes no incio e no final do trecho, inclusive
na cadncia, reforam o efeito flutuante. Alm disso, um dos
encadeamentos que segue o ciclo tonal, entre os acordes C Dm,
que perfaz um movimento dominante-tnica no c. 32, ocorre como
uma regresso harmnica devido ao fato de que o acorde de Dm
(tnica relativa) soaria, em um contexto progressivo, como um
movimento deceptivo, aps a escuta da dominante. Isso ocorre
porque a tendncia mais forte da dominante conduzir para a tnica
21
e o encadeamento para a relativa provoca um desvio com relao
quilo que esperado.
Percebe-se, assim, como possvel produzir um carter
flutuante com diversidade harmnica, atravs da forma como os
acordes so encadeados. Note-se que, no trecho citado da cano de
Janequin, so empregados todos os acordes do modo de F Jnio,
com exceo do acorde construdo sobre o stimo grau, e, mesmo
assim, produz-se um efeito modal atravs da sucesso harmnica.
IV. ORGANIZAO CONTRAPONTSTICA
Outra maneira de produzir um efeito modal atravs da
primazia do contraponto sobre a harmonia. Geralmente, os
musiclogos entendem que, na msica medieval e renascentista
europia, a harmonia obtida a partir da polifonia, isto , o
contraponto aparece em primeiro plano e a harmonia o resultado da
combinao de diversas vozes que formam a textura polifnica. Diz-
se, tambm, que, na msica modal ocorre uma harmonia de
intervalos, ou seja, o processo de composio leva em considerao
a combinao intervalar entre as partes para produzir a textura geral.
Os acordes, assim, resultam da combinao de intervalos entre vozes
individuais.
Na msica tonal, ao contrrio do processo descrito acima, a
harmonia planejada anteriormente elaborao das vozes
individuais, que so, portanto, o resultado de uma concepo
harmnica predeterminada.
Com essas consideraes em mente, podem-se elaborar
estruturas modais a partir da combinao intervalar entre as vozes,
sem preocupao prvia com o resultado harmnico. Geralmente, as
tcnicas mais comumente utilizadas para obter esse tipo de resultado
so as seguintes:
Contraponto por espcie
22
Contraponto livre Contraponto imitativo Contraponto invertido
Abaixo, esto algumas consideraes gerais sobre as tcnicas
contrapontsticas mais usuais.
Os princpios do contraponto desenvolvidos por J. J. Fux (1660-
1741) em sua obra Gradus ad Parnassum (1725) serviram de base
para o estudo do contraponto, desde ento at os dias de hoje. Com
base na anlise da polifonia vocal de compositores como Giovanni
Palestrina e Orlando di Lassus (1532-1604), Fux organizou o estudo
do contraponto em cinco espcies, visando desenvolver as
habilidades no controle dos diferentes tipos de dissonncia (nota de
passagem, bordadura, cambiata e suspenso). Esse sistema foi o
principal mtodo estudado pelos msicos dos sculos XVIII e XIX, na
aprendizagem das tcnicas de composio. No incio do sculo XX, o
musiclogo dinamarqus Knud Jeppesen (1892-1974) aprimorou o
sistema de Fux com base na anlise estilstica do sistema modal
eclesistico do sculo XVI.
Assim, o sistema didtico de Fux encontra seu correspondente
musicolgico nos princpios estilsticos de Jeppesen.
a) Espcies de contraponto
As cinco espcies de contraponto, conforme concebidas por Fux
e desenvolvidas por Jeppesen, so as seguintes:
Primeira Espcie contraponto de nota contra nota. Consiste em uma linha meldica na qual realizada uma nota
de contraponto para cada nota do cantus firmus. J que, no estudo
tradicional das espcies, o cantus firmus escrito em semibreves, a
voz de contraponto tambm se apresenta em semibreves.
23
No contraponto de primeira espcie, somente podem ocorrer
consonncias7.
Exemplo n 17 realizado por Jeppesen.
Na prtica musical, porm, as melodias utilizadas como canti
firmi, isto , a partir das quais so escritos arranjos ou novas
composies, podem aparecer com base em qualquer tipo de
ordenao rtmica. Desta forma, o que deve ser considerado para a
elaborao do contraponto, a estrutura rtmica da melodia original.
Esta melodia aparece na voz de soprano, no final da cano
Mon coeur se recommande vous, de Lassus:
Exemplo n 18
Se essa melodia for tomada como cantus firmus, para a
elaborao de uma textura a quatro vozes em contraponto de
primeira espcie (nota-contra-nota), obtm-se o seguinte resultado:
7 Todos os exemplos de contraponto renascentista apresentados a seguir foram retirados da obra Counterpoint the polyphonic style of the sixteenth Century, de Knud Jeppesen.
24
Exemplo n 19
O segmento musical citado acima a estrutura completa
presente na ltima estrofe da cano de Lassus, que est, portanto,
organizada com base em contraponto de primeira espcie. Mesmo
que apresente variedade rtmica, em todos os momentos do exemplo
19 h contraponto nota-contra-nota.
Esse exemplo esclarece que a primeira espcie de contraponto,
assim como qualquer outra espcie, pode ser elaborada a partir de
qualquer organizao rtmica. Essa compreenso bastante til para
a elaborao de arranjos de canes brasileiras, em que a
organizao mtrico-rtmica , geralmente, complexa.
Segunda Espcie contraponto de duas notas contra uma Para cada nota do cantus firmus, na segunda espcie,
combinam-se duas notas de contraponto. Assim, a voz do
contraponto consiste em uma linha meldica em mnimas contra as
semibreves do cantus firmus.
No mtodo formulado por Fux, nesta espcie, as dissonncias
podem ocorrer como notas de passagem.
Exemplo n 20 realizado por Jeppesen.
25
Uma forma de ampliao da estrutura rtmica que pode ser
obtida na elaborao da segunda espcie de contraponto, a
adaptao dessa espcie diviso ternria, ou seja, ao compasso
composto. Esse processo j era aplicado pelos compositores do
passado, sempre que escreviam peas em compasso ternrio ou em
compasso composto, como ocorre nas gigas barrocas, por exemplo.
A seguir, est o incio da giga da Sute Inglesa n 2, de J. S.
Bach:
Exemplo n 21
No exemplo acima, ocorre tratamento rigoroso das duas vozes
em contraponto de segunda espcie: os saltos meldicos somente
ocorrem com notas da harmonia e as dissonncias so tratadas como
notas de passagem, indicadas pelo smbolo [np]; os trtonos so
resolvidos como notas atrativas, isto , como sensveis (assinaladas
com linhas que interligam as notas).
Um fator interessante, ocorre na voz inferior, no ltimo
compasso do exemplo 21. A nota f# do quinto tempo atacada
simultaneamente ao mi da parte superior, o que poderia ser
entendido como uma burla das normas do contraponto, pois se
trataria de contraponto nota-contra-nota. Na verdade, o que ocorre
o seguinte: a nota mi tomada como uma nota longa, sendo que o
salto de oitava mi3-mi4, da voz superior, apenas uma mudana de
registro da mesma nota.
26
Por isso, o segmento deve ser entendido como o modelo que
aparece abaixo:
Exemplo n 22
Entendido dessa maneira, o f# uma nota de passagem, em
contraponto de segunda espcie.
Da mesma maneira que foi comentado com relao primeira
espcie, no contraponto de segunda espcie podem ser combinados
diferentes ritmos, desde que a relao entre as vozes esteja na
proporo de duas contra uma ou trs contra uma.
Assim, ampliam-se as possibilidades de distribuio rtmica
desta espcie, sendo possveis, entre outras, as seguintes
combinaes de duas ou trs notas contra uma:
Exemplo n 23
No I Ciclo Nordestino, de Marlos Nobre, ocorrem vrias formas
de organizar as duas vozes em contraponto que podem ser
entendidas com base na ampliao da segunda espcie de
contraponto.
27
Abaixo, est o trecho inicial do primeiro movimento, intitulado
Samba Matuto:
Exemplo n 24
Note-se que, no Samba Matuto, a primeira frase construda
com base em contraponto imitativo tratado como segunda espcie.
H, na relao entre as vozes, duas notas contra uma, nos
compassos 2 e 5, por exemplo. No primeiro tempo do compasso 3, a
segunda espcie elaborada com base na relao de trs notas
contra uma, atravs do ritmo sincopado; o mesmo ocorre no c. 4.
Naturalmente, como compositor da segunda metade do sculo XX,
Nobre no se atm s regras estritas do contraponto tradicional, no
que diz respeito ao controle das dissonncias.
Nessa mesma pea de Nobre, percebe-se tambm outra
possibilidade de ampliao das combinaes rtmicas atravs da
interao entre as vozes pela alternncia das inter-relaes: no c. 2
a voz inferior que est na relao 2x1; no c. 3, a relao se inverte e
a voz inferior que produz a relao 2x1; no c. 4, a reao 2x1 est
novamente na voz superior; esse processo alterna at o final do
exemplo 24.
No incio do segundo movimento do mesmo Ciclo Nordestino,
intitulado Cantiga, ocorre um processo mais sofisticado de elaborao
do contraponto de segunda espcie:
28
Exemplo n 25
J no primeiro compasso do exemplo acima, as vozes se
relacionam na proporo 2x1, porm com deslocamento rtmico
produzido pela introduo da figura pontuada que produz alternncia
rtmica na relao entre as vozes. No segundo compasso, o ponto
adicionado colcheia produz um efeito semelhante de deslocamento
e alternncia das vozes, porm em um nvel mais detalhado da
diviso rtmica. Se no primeiro compasso, a figura pontuada ocorre
no nvel do compasso (h = q . e), no segundo compasso, aparece no
nvel do tempo (q = e. x).
A seguir, est a demonstrao de como ocorre a alternncia de
vozes e o deslocamento rtmico.
Tendo-se a semnima como referncia, o contraponto de
segunda espcie (2x1) ocorre da seguinte forma:
q q
e e e e
A maneira mais simples de realizar a alternncia de vozes seria
invertendo a colocao das semnimas e colcheias em relao s
vozes, em um segundo compasso:
29
q q | e e e e
e e e e | q q
Esse processo ocorre em todos os compassos do ex. 24 e nos
dois ltimos compassos do ex. 25, devido ao processo imitativo que
ocorre nesses segmentos.
Pode-se, tambm, operar a alternncia das vozes no interior do
mesmo compasso:
q e e
e e q
Esse o primeiro procedimento para gerar o que acontece no
primeiro compasso do ex. 25. O prximo passo o deslocamento
rtmico, que tem sua origem no contraponto sincopado (quarta
espcie).
Na figura apresentada acima, h um ritmo complementar em
colcheias, isto , o resultado rtmico da interao entre as duas
partes a colcheia. O ritmo resultante permanece o mesmo se
apenas uma das vozes articular os pontos em que h ataques
concomitantes. Note-se que, na figura acima, a parte principal de
cada tempo atacada por ambas as vozes.
Para eliminar o ataque da voz superior no segundo tempo,
basta ligar a semnima do primeiro tempo colcheia que se encontra
na parte principal do segundo tempo, isto , torn-la uma semnima
pontuada:
q . e
e e q
30
Com isso, somente a voz inferior articula o segundo tempo. A
maneira mais direta de fazer com que o primeiro tempo seja
articulado somente pela primeira voz, substituir a primeira colcheia
da voz inferior por uma pausa:
q . e
e q
Se houvesse a inteno de repetir esse padro, a primeira
colcheia do segundo compasso poderia ser substituda tanto por
pausa quanto por ligadura, o que produziria uma sncope de um
compasso a outro:
q . e | q . e
e q | e e q
Com os procedimentos descritos acima, possvel realizar
diversas combinaes entre as partes a partir do contraponto de
segunda ou terceira espcie, atravs de alternncias entre as vozes e
por meio de deslocamentos rtmicos. isso que ocorre em vrios
trechos da pea de Marlos Nobre.
Na Cantiga, h, ainda, outros processos de distribuio rtmica
e interao entre as vozes: no c. 4, o contraponto de segunda
espcie elaborado na proporo 3x1, por meio do emprego de
tercinas. Nos compassos de nmero 5 e 6 ocorrem cruzamentos
rtmicos na proporo de duas notas contra trs (2x3), no segundo
tempo desses compassos.
Todos esses processos de organizao rtmica so oriundos da
msica popular brasileira, particularmente da msica nordestina,
repertrio do qual Marlos Nobre aproveitou o material temtico para a
elaborao da pea.
31
Terceira Espcie contraponto de quatro notas contra uma Na terceira espcie, so realizadas quatro notas de contraponto
para cada nota do cantus firmus, ou seja, o contraponto escrito em
semnimas contra as semibreves do c.f.
Alm de notas de passagem, podem ocorrer dissonncias como
bordadura e como cambiata.
Exemplo n 26 realizado por Jeppesen.
Nesta espcie, as relaes rtmicas entre as vozes tambm
podem ser ampliadas atravs da aplicao dos mesmos princpios
empregados para o contraponto de segunda espcie.
Inicialmente, pode-se fazer a mesma relao de organizao
rtmica, que na diviso binria ocorre como 4x1, atravs da aplicao
da diviso ternria, onde obtm-se a relao 6x1. Se for tomado o
compasso 6/8 como referncia, tem-se que para cada semnima
pontuada so elaboradas seis semicolcheias em contraponto.
Na fuga do Preldio e Fuga BWV 543, de J. S. Bach, para rgo,
em compasso binrio composto, exatamente esse tipo de relao
que ocorre no contraponto.
O trecho a seguir demonstra esse processo:
32
Exemplo n 27
No exemplo acima, uma das vozes intermedirias sempre se
encontra em semicolcheias contra semnimas pontuadas da voz
superior. A inteno de demonstrar esse tipo de contraponto atravs
da grafia chega ao ponto de escrever as notas r e d, presentes nos
dois ltimos compassos do exemplo 27, como semnimas pontuadas
ligadas, quando poderiam ser escritas como mnimas pontuadas. O
baixo do trecho citado, que executado na pedaleira do rgo, se
relaciona como segunda espcie contra as outras vozes: 3x1 na
relao entre baixo e soprano e 6x3 (ou 2x1) na relao entre baixo e
tenor.
O mesmo tipo de relao se encontra no trecho do terceiro
movimento da Sonata Op. 120 (1825), de F. Schubert citado no ex.
28(a). As vozes extremas se relacionam como contraponto de
terceira espcie, na proporo 6x1, ao passo que a voz intermediria
se relaciona como contraponto de segunda espcie com as outras
duas vozes: 2x1, na relao com a voz superior; 3x1, na relao com
o baixo.
No exemplo 28(b), extrado do final do terceiro movimento da
Sonata n 3 (1817), tambm de Schubert, as vozes inferiores
realizam encadeamento de acordes em contraponto de terceira
espcie (6x1) com relao parte superior. Note-se, neste exemplo,
que os acordes so executados em colcheias; isso, porm, no
modifica a relao entre as partes, pois em uma reduo harmnica
do trecho, os sons repetidos passam a ser entendidos como notas
longas.
33
Exemplo n 28
Naturalmente, este processo de elaborao de seis notas contra
uma pode ser realizado em qualquer tipo de mtrica ou diviso
ternria, como, por exemplo: em compasso ternrio simples, como
3/4, a relao do contraponto seria de seis colcheias contra uma
mnima pontuada; em compasso ternrio composto, como 9/8,
ocorreriam trs vezes seis semicolcheias contra cada semnima
pontuada; em compasso quaternrio composto, como 12/8,
ocorreriam quatro vezes seis semicolcheias contra cada semnima
pontuada.
Nos dois compassos do preldio da Sute Inglesa n 6, de J. S.
Bach, em compasso 9/8, citados no ex. 29, seis semicolcheias da voz
superior so contrapostas a cada semnima do baixo; isso ocorre trs
vezes em cada compasso, por se tratar de um compasso ternrio
composto.
34
Exemplo n 29
Aplicando-se o mesmo raciocnio que foi explicado
anteriormente para ampliar as possibilidades de diviso regular do
pulso, podem-se conceber vrias possibilidades de inter-relaes
rtmicas entre as vozes, na terceira espcie de contraponto. Podem
ser empregadas, por exemplo, quilteras de cinco, seis ou sete sons;
podem ser utilizados ritmos sincopados que englobem entre quatro e
oito notas contra cada nota da melodia utilizada como cantus firmus.
Esses processos de elaborao rtmica, apesar de terem sido
sistematicamente incorporados somente na msica moderna, j eram
praticados pelos msicos da Ars Antiqua, no sculo XIII. Nesta poca,
os msicos europeus estavam descobrindo o princpio praticado at
hoje da diviso proporcional dos valores rtmicos, o que os levou
elaborao de intrincados contrapontos com divises que iam de duas
a mais de dez notas contra uma.
O compositor Petrus de Cruce foi um dos msicos desse perodo
que mais se dedicou a pesquisar as possibilidades de diviso dos
valores rtmicos. No incio do moteto Aucun ont trouv (c. 1300), de
Cruce, o triplum (voz escrita no pentagrama superior) j inicia com
valores rtmicos que se contrapem ao cantus firmus (voz de tenor,
escrita no pentagrama inferior), na proporo de 8x1 e 9x1 [cf. ex.
30]. Para alcanar esse resultado, necessrio o emprego de
quilteras, sendo que so elaboradas inclusive quintinas, no segundo
compasso do exemplo abaixo.
35
Exemplo n 30
No primeiro compasso da introduo da cano Anoitece, Op.
34 n 2, de Alberto Nepomuceno, se contrapem cinco notas da parte
superior do piano contra cada nota do acompanhamento; no segundo
compasso so 6x1. Isso obtido atravs do emprego de sncopes na
segunda metade de cada compasso [cf. ex. 31].
Exemplo n 31
Nos primeiros compassos de Canto sem cho (1976), de Bruno
Kiefer, para dois violinos, obtido um impressionante efeito
contrapontstico entre os dois instrumentos, atravs do uso de
quilteras e contratempos na parte do segundo violino, ao mesmo
tempo em que o primeiro realiza notas longas [cf. ex. 32]. Este tipo
de estrutura fragmentria caracterstica do compositor.
36
Exemplo n 32
Em Terra Sofrida, tambm de Kiefer, para dois violes, ocorre
outro tipo de combinao contrapontstica, em uma textura a trs
vozes. A voz intermediria executa semnimas; ao mesmo tempo, a
voz superior realiza quintinas e a voz inferior semicolcheias. O
resultado um cruzamento rtmico contnuo (5x1x4), com carter
inquieto e violento.
Exemplo n 33
37
Nas peas de Kiefer, que tm forte carter atonal, o emprego
dos intervalos meldicos e harmnicos no segue qualquer critrio
preestabelecido tradicionalmente, mas so combinados de acordo
com o resultado sonoro pretendido.
Em Terra Sofrida, a combinao intervalar se desataca pelo
emprego de dissonncias extremas: as notas do primeiro compasso
so f, sol, d e f#, o que produz intervalos de 2M (f-sol), 9m
(f/f#), 7M (sol/f#) e trtono (d/f#) na relao entre as partes.
O restante do trecho citado organizado como diferentes
transposies desse primeiro compasso.
Outra caracterstica notvel, que ocorre nos primeiros
compassos do ex. 33, o fato de que cada uma das partes se
movimenta no mbito de uma escala diferente de tons inteiros
violo I: d-r-mi-f#-sol#-l#; violo II: f-sol-l-si-d#-[r#]8.
Isso produz um efeito peculiar, na relao entre as partes, pois ao
ocorrer o movimento simultneo das duas escalas de tons inteiros, o
resultado total da interao entre as partes uma escala cromtica
completa. Note-se que essas so as duas escalas atonais, por serem
construdas com base na justaposio do mesmo intervalo.
Com esses procedimentos adotados por Kiefer, obtm-se aquilo
a que Schoenberg denominava como emancipao das
dissonncias, que passam a ser empregadas com a mesma
regularidade e eficcia que as consonncias.
Com o que foi discutido acima, percebe-se que so possveis
todas as combinaes rtmicas e intervalares entre as partes, desde
que haja uma estrutura de fundo que justifique as diferentes
combinaes contrapontsticas.
8 O r# (escrito como mib) aparece somente aps a interrupo do movimento de tons inteiros, por um semitom (d#-d natural), no c. 4, do ex. 33.
38
Quarta Espcie contraponto sincopado na quarta espcie que se estuda o controle mais rigoroso das
dissonncias. A voz que se contrape ao cantus firmus, desenrola-se
como uma seqncia de sncopes resolvidas como suspenses.
Assim, cada uma das notas do contraponto atacada no tempo
secundrio como consonncia, transformando-se em dissonncia no
tempo principal seguinte, por meio do movimento da voz que conduz
o cantus firmus. A dissonncia gerada deve ser resolvida por grau
conjunto descendente em uma consonncia imperfeita no tempo
secundrio seguinte.
Quando ocorre consonncia no tempo principal, esta pode ser
movimentada livremente. No tempo secundrio, somente pode haver
consonncias.
Exemplo n 34 realizado por Jeppesen.
Conforme j foi discutido com relao s espcies anteriores,
tambm na quarta espcie possvel ampliar os princpios do
contraponto sincopado para qualquer tipo de organizao rtmica ou
diviso mtrica. Nesta espcie, o que importa que as notas de cada
uma das partes sejam atacadas separadamente, isto , como
sncopes ou contratempos.
Abaixo, esto algumas possibilidades de combinaes rtmicas
entre duas vozes elaboradas como contraponto sincopado:
Em compassos simples:
39
Em compassos compostos:
Em compassos mistos:
Exemplo n 35
Naturalmente, todas as combinaes rtmicas so possveis
para a formao de contraponto de quarta espcie, com emprego de
contratempos, sncopes e, inclusive, quilteras.
Um dos exemplos mais conhecidos de emprego de contraponto
sincopado em seqncia, conhecido como cadeia de suspenses9,
ocorre ao longo da Inveno n 6, de Bach.
9 Considera-se que ocorre uma cadeia de suspenses quando h vrias suspenses em srie. O tipo mais comum aquele em que se emprega um nico tipo de suspenso em cadeia, com as vozes se movimentando na mesma direo, como, por exemplo, 43 43 43 43 ; ou 76 76 76 76.
40
Exemplo n 36
No exemplo 36, acima, as duas vozes esto elaboradas como
contraponto sincopado em movimento contrrio. Note-se que,
diferentemente dos exemplos encontrados nos tratados de
contraponto, essa pea est escrita em compasso ternrio simples.
A figura colocada abaixo da msica indica o perfil meldico
individual de cada uma das vozes e esclarece como estas se
relacionam por movimento contrrio, isto , uma linha elaborada
como espelho horizontal da outra.
A anlise dos intervalos existentes entre as vozes tambm
revela a maneira como o contraponto foi construdo. Inicialmente,
comea com intervalo de 8J, o que tpico no estudo de
contraponto. Em seguida, ocorre uma suspenso de stima que
resolve por grau conjunto descendente em uma sexta (suspenso do
tipo: 76), o que tambm est dentro das normas do contraponto.
Entretanto, no terceiro tempo do primeiro compasso, um intervalo de
5J conduz para uma 5d, o que incomum, pois este um intervalo
dissonante em tempo secundrio. Outros dois movimentos so
inusuais, segundo as normas do contraponto: na metade do segundo
compasso, um intervalo de 9M resolve em uma oitava, o que
significa que a dissonncia resolve em uma consonncia perfeita, o
que imprprio segundo as regras ortodoxas do contraponto; no
incio do terceiro compasso, um intervalo de trtono (5d) conduz
41
para uma 4J, o que significa que uma dissonncia resolve em outra
dissonncia. Esta 4J finalmente resolve em uma 3M (suspenso do
tipo: 43), concluindo adequadamente a cadeia de suspenses.
Por que razo teria Bach conduzido duas dissonncias seguidas
(5d4J), na passagem do primeiro ao segundo compasso e no incio
do terceiro compasso? A resposta bastante simples: porque o que
est em jogo aqui a criao de um contraponto sincopado em
seqncia, sendo que uma ou outra inobservncia das normas do
contraponto efetuada com o intuito de realizar a idia que deu
origem pea: a cadeia de suspenses por movimento contrrio.
O contraponto sincopado tambm pode se manifestar como
contratempo, isto , em vez de haver sincopao por meio de
alongamento das notas (ligaduras), ocorre atravs de notas curtas
(pausas).
Um dos casos mais interessantes, nesse sentido, o hoqueto
da polifonia medieval. O termo hoquetus significa soluo, em latim,
e indica que os ouvintes da poca percebiam as vozes cantadas em
contratempo como algo semelhante ao soluo. A tcnica do hoqueto
foi to empregada, nos sculos XIII e XIV que se chegou a criar um
gnero musical denominado Hoqueto, que era composto base dessa
tcnica.
Abaixo, tem-se o exemplo de um hoqueto (tambm
denominado moteto instrumental), de compositor annimo do sculo
XIII, em que o tenor (voz que carrega o cantus firmus) est escrito
no pentagrama inferior. Os contratempos que caracterizam o hoqueto
esto indicados por linhas que interligam as duas vozes superiores.
42
Exemplo n 37
Mesmo os compositores do Perodo Clssico, que em geral
davam preferncia a estruturas rtmicas simtricas e regulares, se
interessaram pela organizao rtmica com base em contratempos.
Um dos exemplos mais caractersticos, nesse sentido, o tema do
movimento final da Sonata n 19 (1767), de Joseph Haydn. Este
tema construdo com base em uma textura transparente, obtida
pela alternncia de duas vozes em contratempo [cf. ex. 38].
Exemplo n 38
Um efeito rtmico impressionante obtido na parte de
acompanhamento, nos compassos 125-133 do Improviso n 1, de
Franz Schubert. O simples deslocamento do baixo em contratempo
produz um resultado quase heterofnico, na relao entre as trs
partes que constituem a textura deste trecho.
43
Exemplo n 39
Os musiclogos atuais costumam denominar essa tcnica dos
msicos romnticos como acompanhamento heterofnico. Tem-se,
assim, uma combinao de duas texturas bastante diferentes, quase
antagnicas: a heterofonia e a melodia acompanhada.
Os processos de organizao rtmica com base em
contratempos tm sido amplamente empregados pelos compositores
do ltimo sculo, sendo usado em larga escala na msica popular
com ascendncia africana.
No jazz, por exemplo, h vrios tipos de contratempo que
servem de fundamento para a organizao de estruturas harmnico-
meldicas extremamente sofisticadas. Um efeito similar ao hoqueto
medieval, porm com maior colorido harmnico e variedade rtmica,
alcanado em Ninth, do guitarrista norte-americano Joe Pass.
44
Exemplo n 40
A combinao de apenas duas partes, um baixo cantante e o
acompanhamento harmnico, presente na parte superior, produz um
efeito rtmico extremamente variado devido maneira como esta
parte est composta.
A parte superior no apenas organizada em contratempo com
relao ao baixo, como tambm tem seu ritmo distribudo de forma
irregular, sem ocorrer repetio do mesmo padro rtmico em
nenhum dos dez compassos citados no ex. 40. Isso, por si s,
conferiria excelncia musical ao trecho.
Como se isso no bastasse, a harmonia se move por
encadeamentos de acordes de stima, acordes de nona e acordes de
dcima terceira. Alm disso, a parte superior conduzida por
movimentos paralelos de 4J, entre o segundo e o quinto compasso
do exemplo acima. Em contraponto a isso, o baixo se movimenta de
forma mais regular, porm realiza sncopes ou quilteras quando a
parte superior atacada em parte principal. Com isso se mantm
uma estrutura rtmica irregular ao longo de todo o segmento citado
no ex. 40.
Na cano Sometime Ago, de Chick Corea, ocorrem alternncias
entre contratempos, existentes entre o baixo e a parte intermediria
do acompanhamento, e sncopes que projetam a linha vocal como
dobramento de uma das partes da textura geral. Sobre essa cano,
escreveu o autor, na partitura: I had a dream of this melody. I kept
45
singing it for days. Im sure its from a long time ago (Eu tive um
sonho com esta melodia. Fiquei cantando ela por dias. Tenho certeza
de que de muito tempo atrs).
Exemplo n 41
J em Round Midnight, de Thelonious Monk, o trecho da
introduo que antecede a primeira estrofe construdo por meio de
um contraponto rtmico em que a parte superior, que realiza os
acordes, aparece em contratempos, enquanto o baixo, em quintas,
est em sncopes. Em outras palavras: nesta pea de Monk, h
contraponto entre sncopes e contratempos.
46
Exemplo n 42
Outro caso interessante de contraponto em que h conjuno
de processos simultneos, ocorre no Preldio n 7 (1959), de Cludio
Santoro [cf. ex. 43]. No incio da pea, o baixo realizado por meio
de sncopes internas, isto , as sncopes ocorrem dentro da unidade
de tempo (semnima). No segundo compasso ocorre uma sncope de
compasso, ou seja, que se d no interior da unidade de compasso,
em 2/4 (mnima). O resultado a produo de uma sncope dentro
da outra, em um acorde de Bm7.
Em outras palavras: nesta pea de Santoro, h contraponto
entre uma sncope de tempo (q = x e x) e uma sncope de compasso
(h = e q e).
Exemplo n 43
Outros fatores que chamam a ateno, no preldio de Santoro,
so: o emprego da sncope como padro de acompanhamento, o que
47
derivado da assimilao da clave10 africana na msica popular
brasileira; o movimento cromtico descendente, no baixo; o uso de
acordes estendidos em todos os segmentos da msica; a confluncia
entre harmonia e contraponto pelo uso de uma linha construda com
base em arpejos, na parte inferior. Com isto, possvel pensar que a
textura geral construda por duas vozes em contraponto, porm a
seqncia de arpejos explicita o encadeamento harmnico e
acrescenta a percepo de uma melodia acompanhada.
10 O termo clave, neste sentido, significa um padro rtmico que serve de base para a sobreposio de vrias camadas com ritmos variados. Geralmente, a clave um padro fixo tocado isoladamente, antes de iniciar a msica propriamente dita, podendo permanecer ou no durante toda a pea. Equivale, aproximadamente, ao pulso da msica europia, no sentido de orientar os msicos com relao s entradas e sadas, ao andamento e conjuno das diversas partes da textura.
48
Quinta Espcie contraponto florido O contraponto florido a combinao das outras espcies.
Contrape-se ao cantus firmus uma linha meldica livremente
construda com diversos valores rtmicos, conforme os princpios de
cada espcie.
Exemplo n 44 realizado por Jeppesen.
No exemplo acima, em cada uma das espcies de contraponto
empregada, so rigorosamente observados os princpios de
construo dessa espcie.
Os trs compassos iniciais so tratados como quarta espcie,
devido s sncopes existentes entre o cantus firmus e a voz em
contraponto. Note-se que nos tempos secundrios (segundo tempo
de cada um desses compassos), ocorrem somente consonncias.
Quando a nota atacada no tempo principal (primeiro tempo do
compasso) consonante, movimenta-se livremente, por salto ou
grau conjunto, para uma consonncia esse o caso do r atacado
no incio do compasso 2, que salta oitava superior. Entretanto, no
compasso 3, a nota r dissonante com relao ao mi da voz
superior. Por essa razo, deve ser resolvida por grau conjunto
descendente em uma consonncia imperfeita: o r se movimenta por
grau conjunto descendente, para o d, que uma consonncia
imperfeita com relao ao mi do c.f.
Nos compassos 4 e 5, a relao entre as vozes de duas notas
do cantus firmus contra uma do contraponto (segunda espcie). Por
isso, as dissonncias somente podem aparecer no tempo secundrio
49
e devem ser resolvidas por grau conjunto ascendente ou
descendente, como notas de passagem. Como no h dissonncias
nesses dois compassos, as notas podem ser movimentadas
livremente; mesmo assim, h predomnio de graus conjuntos na
realizao do contraponto.
O sexto compasso do exemplo n 44 apresenta uma
combinao rtmica prpria da quinta espcie e que no costuma ser
abordada nas espcies anteriores, nos tratados de contraponto.
Trata-se do ritmo pontuado, que j foi discutido anteriormente, na
abordagem sobre as ampliaes da segunda espcie de contraponto
[cf. ex. 23]. Assim, esta figurao rtmica deve ser tratada com base
nos mesmos princpios do contraponto de duas notas contra uma, isto
, a nota que se encontra no tempo secundrio (a semnima do ex.
n 44) deve ser tratada como nota de passagem, sendo isto que
ocorre no referido exemplo: a nota sol uma dissonncia com
relao ao f da voz superior e tratada como nota de passagem
descendente.
Nos compassos 6 e 7, ocorre contraponto de terceira espcie, o
que significa que as dissonncias da voz inferior podem ser
conduzidas como notas de passagem, bordaduras ou cambiatas.
Neste caso, todas as dissonncias so resolvidas como notas de
passagem (notas: sol, si e r). interessante notar a combinao da
terceira com a quarta espcie, na passagem do compasso 8 ao
compasso 9. Na primeira metade do compasso 8, o contraponto
tratado com os princpios da terceira espcie, porm quando chega
na metade do compasso, a voz do contraponto estaciona em uma
consonncia (nota: mi), que permanece ligada ao compasso seguinte,
gerando uma sncope, isto , produz-se a quarta espcie de
contraponto.
Ao movimentar o cantus firmus para a nota f, no incio do
compasso 9, tem-se uma dissonncia de 2m que resolve por grau
conjunto descendente em uma 3m (suspenso do tipo: 2-3). Note-
50
se que a nota r semnima, que aparece na segunda metade do
primeiro tempo do compasso 9, apenas uma antecipao da nota
de resoluo da suspenso. Com essa antecipao, obtm-se maior
movimentao rtmica.
No compasso 10 tem-se nova suspenso, que prepara a
cadncia final com um movimento meldico tpico da msica
renascentista, atravs da bordadura inferior sobre a sensvel do
modo. O ltimo compasso tratado como contraponto de primeira
espcie por ser realizado pela combinao nota-contra-nota.
Alm das tcnicas convencionais, todas as ampliaes
abordadas anteriormente para cada espcie podem ser incorporadas
ao contraponto florido.
No trecho a seguir, extrado de um arranjo de Osvaldo Leite,
para coro misto a quatro vozes, da cano Samba em Preldio, de
Baden Powell e Vincius de Moraes, a melodia original est colocada
no soprano, como cantus firmus, enquanto as outras trs vozes so
elaboradas como contraponto florido, com emprego de sncopes em
vrios nveis da estrutura mtrica: sncope de compasso [cf. ex.
45(a)], sncope de tempo [cf. ex. 45(b)] e sncope interna [cf. ex.
45(c)]. Alm disso, cada uma das vozes elaborada individualmente,
sendo que a voz inferior mantm um tpico padro de baixo da
msica brasileira, com a dupla funo de servir de base para a
harmonia e organizar a seo rtmica da pea.
A liberdade de tratamento rtmico e meldico entre as partes
possvel porque a combinao das vozes est embasada em uma
seqncia harmnica ampliada (com acordes formados por expanso
tridica e adio de notas s trades), que serve de apoio ao
contraponto. Alm disso, na voz de tenor est colocada a melodia da
segunda parte da cano como contraponto melodia da primeira
parte. Esse processo de estruturao em que a primeira parte
composta por uma linha meldica, a segunda parte apresenta outra
51
melodia e a terceira formada pela sobreposio de ambas, em
contraponto, j est presente na forma original da cano, sendo
uma de suas caractersticas mais impressionantes, visto que esta
uma tcnica raramente empregada na elaborao de canes. Como
pode ser observado no exemplo a seguir, o contraponto florido pode
resultar em uma textura bastante rica e variada, com grande
diversidade rtmica e independncia total entre as vozes.
Exemplo n 45
b) Ampliao das espcies de contraponto
Outro fator que deve ser considerado, a partir deste ponto, o
fato de que os conceitos tradicionais de consonncia e dissonncia
no so necessariamente adequados para todo e qualquer tipo de
composio ou arranjo. Como foi visto em alguns dos exemplos
anteriores, mesmo na msica de Bach ou Schubert os critrios
adotados por Fux para o estudo do contraponto foram ignorados
quando sua observncia poderia significar limitao das possibilidades
tcnicas ou expressivas para a elaborao das idias musicais.
52
Com isso, deduz-se que a observncia dos critrios empregados
para o estudo das espcies de contraponto so teis no sentido de
prover o estudante de domnio tcnico sobre os materiais sonoros
com os quais ir trabalhar, porm em um nvel mais avanado da
elaborao musical, esses critrios podem inclusive dificultar a
criao de novas msicas.
Outro princpio do contraponto por espcies que pode ser
dispensado, quando j se tem domnio sobre seus efeitos, quanto
ao tipo de dissonncia que pode ser empregado em cada espcie do
contraponto. Fux elaborou seu mtodo com o sentido de orientar o
estudante para a aquisio de controle sobre cada tipo de
dissonncia. Para isso, adotou os seguintes critrios:
Primeira espcie (1x1): somente consonncias, ou seja, no podem ser empregadas dissonncias;
Segunda espcie (2x1): dissonncias so praticadas como notas de passagem;
Terceira espcie (4x1): as dissonncias so exercitadas como notas de passagem, bordaduras e cambiatas;
Quarta espcie (sincopado): as dissonncias so tratadas como suspenses ou retardos.
Com as ampliaes rtmicas que foram propostas aqui, pode-se
tambm liberar o emprego dos diferentes tipos de dissonncia para
todas as espcies. Isto significa que podem ser empregadas notas de
passagem, bordaduras, cambiatas, escapadas, antecipaes,
apojaturas, suspenses ou retardos em qualquer espcie de
contraponto. Cada caso depende da inteno que se tem em produzir
efeitos de tenso ou repouso ou do propsito de gerar trechos
musicais estveis ou instveis, independentemente de critrios
tcnicos preestabelecidos.
Em um sentido mais amplo, tambm no mais conveniente o
emprego de terminologias como consonncia e dissonncia, termos
53
j carregados de valores, conceitos e preconceitos. Podem-se
empregar expresses como notas de acorde e notas ornamentais.
Em um acorde de C7M(9), por exemplo, as notas si e r
(dissonantes com relao ao d, na conceituao convencional) so
notas de acorde e, portanto, podem ser tratadas como as
consonncias da msica tradicional. Assim, podem ser elaboradas
livremente, tanto na melodia principal quanto nas vozes secundrias
e no contraponto entre as partes.
Se a inteno caracterizar a sonoridade desse acorde de
C7M(9), a nota l, que uma consonncia com relao
fundamental do acorde (nota: d), deve ser tratada como as
dissonncias da msica tradicional, isto , como nota de passagem,
bordadura, suspenso, etc. Assim, a nota l, que no pertence ao
acorde, deve ser elaborada como nota ornamental, pois se for
enfatizada, ser percebida como nota de acorde, o que produziria um
erro na conduo de vozes e na definio da harmonia, pois, em vez
de caracterizar um acorde de C7M(9), estar-se-ia definindo o acorde
de C7M(193).
Por essa razo, quando a inteno definir determinado tipo de
harmonia, necessrio ater-se s suas notas como pontos de apoio
meldico ou como pontos de referncia, na conduo de vozes. Isso
pode ser obtido pelos seguintes procedimentos:
estabelecer a posio mtrica das notas de acorde em tempo forte ou em parte forte de tempo;
definir sua durao mais longa do que as notas ornamentais;
enfatiz-las por sua repetio insistente, como foi visto em vrios exemplos acima;
alcanar as notas de acorde por saltos meldicos, ao passo que as notas ornamentais seriam conduzidas por
graus conjuntos;
54
utiliz-las como pontos de impulso e de chegada, em incios e finais de frase.
No trecho abaixo, extrado da cano Luiza, de Antnio Carlos
Jobim, as notas da melodia so elaboradas como ressonncia da
progresso harmnica, que segue um ciclo tonal de quintas
descendentes entre as fundamentais.
Exemplo n 46
A anlise do ex. 46 revela o que foi dito acima. No primeiro
compasso, a tera do acorde (nota: sol) a nota mais longa, atacada
no tempo forte e na parte principal do terceiro tempo; as notas
ornamentais (notas: f# e lb) aparecem como bordaduras
cromticas. A primeira nota do segundo compasso uma quarta
suspensa, ou seja, resulta do contraponto sincopado do tipo 43
notas: sol-f, no acorde de Dm7(b5); o ltimo som do mesmo
compasso uma nota de passagem cromtica (notas: f-mi-mib),
sendo que todas as outras so notas de acorde. No terceiro
compasso, a primeira nota uma apojatura (notas: mib-r), ao passo
que todas as outras so notas do acorde. No quarto compasso, em
que est presente o acorde de C7M(9), a nona do acorde (nota: r)
est posicionada no tempo forte e a nota mais longa, sendo que
todas as notas deste compasso pertencem ao acorde.
Na cano Reza, de Edu Lobo e Ruy Guerra, h um processo
diferenciado, na relao entre harmonia e melodia. A harmonia se
movimenta de forma autnoma com relao melodia, isto ,
55
enquanto o mesmo padro motvico repetido vrias vezes, com as
mesmas notas, na parte vocal, a harmonia se movimenta livremente.
Assim, as notas da harmonia nem sempre servem de ressonncia
parte meldica.
No ex. 47, abaixo, est um trecho desta cano. No primeiro
compasso deste exemplo, todas as notas da melodia so apoiadas
pelo acorde de Gm7. No segundo compasso, no entanto, a melodia
realiza um arpejo sobre o acorde de Dm enquanto se escuta o acorde
de C7(9). Isso produz um poliacorde, ou seja, o resultado da
interao entre as partes a combinao simultnea de dois acordes
distintos Dm e C7(9) , em que a nota r aparece como nota
comum, que funciona como eixo de ligao entre ambos:
fundamental de Dm e nona de C7(9). No terceiro compasso, a nota
mais longa o sol, que atacado no tempo forte; a nfase sobre
essa nota, que a nona de F, faz com que o resultado da interao
entre a melodia e a harmonia seja um acorde de F96.
Estes so processos de ampliao das relaes entre melodia e
harmonia. Alm de servir apenas de apoio ressonncia meldica, a
harmonia pode ser enriquecida pela melodia, como acontece no
terceiro compasso do ex. 47. Tambm possvel que haja relao de
oposio ou contraste entre melodia e harmonia, como ocorre no
segundo compasso do mesmo exemplo.
Exemplo n 47
56
Esses procedimentos, entre outros, podem auxiliar em
harmonizaes, arranjos ou composies nas quais se busca o
emprego de estruturas harmnicas ampliadas com relao msica
tradicional europia. Com isso, possvel construir estruturas
harmnicas ou meldicas embasadas em diversos tipos de escalas ou
acordes e, mesmo assim, ter domnio sobre os resultados
pretendidos. Em outras palavras: a intuio musical passa a ser
apoiada por slido embasamento acstico, sobre o qual se pode criar
livremente.
Essas liberdades, que tm sido tomadas pelos msicos com
relao s tcnicas apreendidas da tradio, no so apenas o fruto
de especulaes dos msicos atuais. No exemplo n 27, o primeiro
ataque simultneo das quatro vozes, na fuga de J. S. Bach, j
apresenta uma combinao que seria entendida como incorreta, na
tcnica rigorosa do contraponto. A nota f do contralto se relaciona
como dissonncia com todas as outras vozes: nona menor, com o
baixo (notas: mi/f); trtono com o tenor (notas: si/f); segunda
aumentada com o soprano (notas: f/sol#).
Note-se o extremo grau de tenso e instabilidade do seguinte
trecho da Paixo Segundo So Joo [cf. ex. 48], ainda de Bach, em
que o uso de dissonncias em grande quantidade est diretamente
relacionado representao musical do texto.
O arioso citado no ex. n 48 corresponde ao momento da morte
de Cristo na cruz, em que o tenor canta:
Meu corao e toda a criao, com o sofrimento de Jesus tambm padecem: o sol de luto se veste, o vu se rasga, a rocha se fende, a terra treme, sepulcros se abrem vendo o Criador falecer. O que queres tu fazer, por tua parte?.
A cifra do baixo contnuo (escrita abaixo da parte mais grave,
na partitura de Bach), indica que o rgo deve tocar a seguinte
57
seqncia de acordes, que por si s, escapa a qualquer princpio das
tcnicas de contraponto da poca. Esta a seqncia harmnica do
arioso completo, cuja armadura indica que est escrito na tonalidade
de Sol Maior:
|| GG7(b9)Cm/GD/GG7A/GC#A7/CC#DmB/DC ||
Note-se que, com exceo do primeiro e ltimo acordes, todas
as cifras do contnuo indicam intervalos dissonantes com relao ao
baixo: 2m, 2M, 7d, 7m, 4J, 4A e 9m. Segundo as regras do
contraponto tradicional, o intervalo de 4J considerado dissonante
quando ocorre em relao ao baixo.
58
Exemplo n 48
Desde sempre, os msicos se desobrigaram de seguir os
critrios preestabelecidos quando isso poderia ter maior significado
artstico do que a observncia rgida de princpios ou normas.
Na sua Fantasia X para vihuela11 [cf. ex. 49], Alonso Mudarra
(1510-1580) chegou a escrever o seguinte texto, em um trecho da
msica repleto de falsas relaes: desde aqu fasta acerca del final
hay algunas falsas, teindose bien no parecen mal (daqui at
prximo ao final h algumas falsas, tocando-se bem no parecem
mal).
O compositor parece anotar esse aviso por duas razes:
primeiro, para esclarecer aos seus colegas que tinha plena
conscincia do que estava fazendo, isto , conhecia as rigorosas
tcnicas de contraponto da poca, mas resolveu no segui-las;
segundo, colocou a soluo do problema nas mos do intrprete e
seria este o responsvel se a msica no soasse bem. O que vale, no
entanto, que essa fantasia , ainda hoje, uma das peas mais
tocadas do repertrio renascentista para instrumento solo devido ao
seu alto nvel de elaborao tcnica e expressiva.
No exemplo 49, abaixo, as falsas relaes esto assinaladas por
setas.
11 A vihuela um instrumento de cordas dedilhadas tpico da msica quinhentista ibrica, sendo bastante semelhante ao violo.
59
Exemplo n 49
Tambm W. A. Mozart realizou experincias em que as regras
do contraponto, severamente estudadas com o padre Martini, foram
desconsideradas. A introduo do Quarteto K 465, dedicado a Haydn,
um dos exemplos mais impressionantes de toda a literatura
musical, nesse sentido.
Exemplo n 50
O quarteto est na tonalidade de D Maior. O violoncelo inicia
realizando um pedal de d, porm a primeira nota da viola, sobre
esse pedal, um lb, seguido pelo mib do segundo violino. Com isso,
se estabelece um acorde de Ab/C para iniciar uma pea em D Maior.
Como se isso no bastasse, o primeiro violino comea com um l
natural, que produz forte dissonncia com relao ao mib (trtono) do
segundo violino e falsa relao com o lb da viola.
60
No terceiro tempo do segundo compasso, aparece um acorde
de D/C, com a funo de dominante da dominante. Este acorde
resolve corretamente o trtono, nos instrumentos graves. Entretanto,
os violinos produzem novas dissonncias: o primeiro violino mantm
o l como suspenso, resolvida de acordo com as normas do
contraponto (por grau conjunto descendente, em consonncia
imperfeita com relao ao baixo); o segundo violino, que teria o caso
mais simples de conduo de vozes, pois executa a nota comum
entre os acordes de D e G (nota: r) e bastaria mant-la ligada, toca
um d# que forma trtono com relao fundamental do acorde.
Esse tipo de tratamento incomum, na conduo de vozes, permanece
ao longo de toda a introduo.
H outras caractersticas notveis no incio do quarteto de
Mozart: o baixo se desloca por movimento cromtico descendente
(notas: d-si-sib-l, etc.); o emprego de acordes extremamente
distantes da tonalidade do D Maior, como, por exemplo, o acorde
formado sobre o quinto compasso, que um Gb (que seria,
posteriormente, chamado por Schumann de antitnica); o uso de
extenses de acordes incomuns para a poca, como o acorde de Cm6
que aparece no segundo tempo do segundo compasso; o emprego de
inmeras sensveis inferiores e superiores, que dominam o trecho
citado (quase todas as notas resolvem como sensveis, inclusive a
tnica, na passagem do c. 2 ao c. 3); todo o processo realizado nos
quatro primeiros compassos retomado no compasso 5 e transposto
segunda maior inferior, o que no produz qualquer tipo de
interao tonal entre os dois segmentos, pois a relao entre D
Maior e Sib Maior de tonalidades afastadas; o mesmo processo se
repete a partir do compasso 9, em Lb Maior. No c. 12, chega-se
finalmente a D Menor, tom relativamente prximo da tonalidade
principal, pois o homnimo de D Maior.
Naturalmente, todos os acordes que se podem deduzir da
introduo do Quarteto K 465, de Mozart, resultam da combinao
61
contrapontstica entre as vozes e no de uma estrutura harmnica
predeterminada. O que pode ter sido pr-definido, antes de iniciar a
composio das vozes individuais, o baixo cromtico; porm,
mesmo a maneira de resolver o cromatismo bastante peculiar.
b) Contraponto Livre
O contraponto livre a combinao de linhas meldicas
compostas livremente, ou seja, sem a utilizao de cantus firmus. As
diretrizes de cada espcie devem ser seguidas na relao entre as
vozes, da mesma maneira como ocorre no contraponto florido. Assim,
semibreves devem ser conduzidas somente como consonncias;
mnimas podem ser tratadas como notas de passagem; semnimas
podem ser tratadas como notas de passagem, cambiatas ou
bordaduras; e sncopes dissonantes devem ser resolvidas como
suspenses12.
Exemplo n 51 realizado por Jeppesen.
Todas as ampliaes rtmicas, meldicas e harmnicas
abordadas com relao s espcies de contraponto tambm podem
ser utilizadas para a construo de contraponto livre.
Do ponto de vista das tcnicas de construo musical, o
contraponto livre se diferencia das espcies pela criao simultnea
das diversas partes da polifonia. No contraponto por espcies, a
criao do cantus firmus deve ser anterior elaborao do 12 Em alguns exemplos que seguem, o compasso 2/2 est realizado como se fosse 2/1, pois essa era uma prtica comum na msica renascentista. Ainda hoje, muitos editores publicam a msica desse perodo dessa forma.
62
contraponto, sendo o c.f. geralmente tomado de uma linha meldica
preexistente, seja um cantocho ou uma melodia de cano popular.
No contraponto livre, que prescinde de cantus firmus, as vozes vo
sendo construdas conjuntamente atravs da interao rtmica e
meldica entre as partes. Nos arranjos de canes populares, esta
a tcnica de construo das sees de introduo, transio entre
estrofes e concluso instrumental, pois a que a melodia da cano
no est necessariamente presente.
Devido ao fato de que as vozes so construdas conjuntamente,
como contraponto livre, grande parte dessas sees mencionadas
acima possuem textura homofnica, com predomnio de contraponto
nota-contra-nota. O exemplo abaixo, retirado da introduo da Sute
dos Pescadores, de Dorival Caymmi, com arranjo de Damiano
Cozzella, demonstra essa caracterstica.
Exemplo n 52
Naturalmente, o contraponto livre pode ser construdo com
base em qualquer processo de estruturao rtmica, meldica ou
harmnica, sendo comumente empregado um tratamento
independente para a elaborao das diferentes partes. No seguinte
trecho do segundo dos Trs Cnticos de Amor (1978), de Almeida
Prado, para coro misto a cappella, cada uma das vozes elaborada
individualmente, sendo que o uso de quilteras e sncopes produz um
efeito polirrtmico de carter fantstico.
63
Exemplo n 53
No incio do exemplo n 53, acima, as duas vozes superiores
(soprano e contralto) esto finalizando a seo anterior [processo
indicado pelas linhas pontilhadas], ao mesmo tempo em que as duas
vozes masculinas (tenor e baixo) do incio prxima seo. Esta
tcnica de entrelaamento entre as sees, em que algumas vozes
iniciam um novo segmento, enquanto outras vozes ainda esto
finalizando o trecho anterior, um mtodo bastante comum de
transio entre as sees na msica polifnica em geral, sendo uma
das caractersticas mais importantes da msica vocal renascentista.
Na pea de Almeida Prado, esta tradicional tcnica europia de
entrelaamento entre as sees combinada polirritmia e aos
cruzamentos rtmicos tpicos da msica brasileira contempornea,
para produzir uma textura heterofnica embasada nos princpios do
contraponto livre.
64
c) Contraponto imitativo
O contraponto imitativo consiste em reproduzir, em uma voz,
trechos meldicos apresentados em outras vozes. Na imitao,
necessrio respeitar as diretrizes de cada espcie nas relaes entre
as partes.
Os procedimentos para realizar um trecho em contraponto
imitativo so os seguintes:
1. Compor a proposta (sujeito) em uma das vozes
2. Imitar a proposta em outra voz (resposta)
3. Compor um trecho em contraponto resposta (continuao
da proposta)
O tipo mais comum de continuao aps a imitao seguir
com contraponto livre at o final da seo. Essa a forma tpica na
msica renascentista, em que, aps um incio de seo com imitao
localizada, cada voz segue realizando contraponto livre at a
cadncia.
Exemplo n 54 realizado por Jeppesen.
Outra maneira de dar continuidade seguir com contraponto
imitativo at o final da seo. Se a pea inteira composta com esse
mtodo, tem-se um cnone.
Os procedimentos para a composio de um cnone so os
seguintes:
1. Compor a proposta (sujeito) em uma das vozes
2. Imitar a proposta em outra voz (resposta)
65
3. Compor um trecho em contraponto resposta (continuao
da proposta)
4. Imitar a continuao da proposta (segmento realizado no
item 3)
Os procedimentos n. 3 e n. 4 devem seguir at o final ou at
a preparao da cadncia. Geralmente, as cadncias so preparadas
com um pequeno trecho em contraponto livre, para que todas as
vozes terminem ao mesmo tempo.
Exemplo n 55 realizado por Jeppesen.
A imitao pode ser realizada com base em qualquer intervalo,
a partir da primeira nota da proposta original. Nas Variaes
Goldberg, de J. S. Bach, por exemplo, h uma seqncia de cnones,
em que o intervalo de entrada da parte imitativa vai crescendo,
conforme a obra avana. Assim, o primeiro cnone, que ocorre na
variao n 3, tem sua imitao ao unssono, sendo que a cada trs
variaes h um novo cnone com um intervalo maior que o anterior
da seguinte forma:
Variao n 3: cnone ao unssono; Variao n 6: cnone segunda; Variao n 9: cnone tera; Variao n 12: cnone quarta; Variao n 15: cnone invertido quinta; Variao n 18: cnone sexta; Variao n 21: cnone stima; Variao n 24: cnone oitava;
66
Variao n 27: cnone nona;
Nos prximos exemplos, esto citados os compassos iniciais de
algumas dessas variaes, com a indicao da imitao e o intervalo
sobre o qual ocorre o processo imitativo.
Exemplo n 56
No exemplo n 56, acima, as duas vozes superiores esto
compostas com base em imitao cannica, enquanto o baixo se
movimenta livremente, com arpejos que indicam a harmonia sobre a
qual o cnone est organizado. Note-se que a voz superior apresenta
a proposta, no primeiro compasso, ao passo que a voz intermediria
imita ao unssono, a partir do segundo compasso; a primeira nota da
resposta configura um cruzamento de vozes, pois a nota si da
segunda voz mais aguda do que o sol da primeira voz. No
compasso 3, tambm h vrios cruzamentos de vozes, o que
bastante comum em cnones ao unssono. A anlise das partes revela
que a linha meldica presente em cada compasso da segunda voz
exatamente a mesma que aquela encontrada no compasso anterior,
na primeira voz.
67
Na variao n 15, citada no exemplo 57, abaixo, o cnone
tambm realizado nas duas vozes superiores, enquanto o baixo se
movimenta livremente com base na harmonia do tema da srie das
Variaes Goldberg. Entre as diferenas com relao terceira
variao (primeiro cnone, citado no ex. 56), est o fato de que,
agora, a segunda voz que apresenta o material que ser imitado
pela primeira voz. Neste caso, a melodia imitada transposta
quinta justa superior e realizada em inverso; da o subttulo Canone
alla quinta (in moto contrario). Note-se que a imitao, que inicia no
segundo compasso, principia na nota r, que a quinta susta
superior da nota sol que inicia a proposta, no primeiro compasso
desta variao. Alm disso, a melodia presente no primeiro compasso
da voz intermediria composta por um movimento de graus
conjuntos descendentes, perfazendo os seguintes intervalos: 2M
2M2m. A voz superior imita este movimento intervalar, porm em
sentido as