Copyright©2009LesleyLivingstonCopyright©2012HaperTeen,umselodaHaperCollinsPublishers.Copyright©2014EditoraGutenbergTítulooriginal:WondrousStrangeTodososdireitosreservadospelaEditoraGutenberg.Nenhumapartedestapublicaçãopoderáserreproduzida,sejapormeiosmecânicos,eletrônicos,sejacópiaxerográfica,semautorizaçãopréviadaEditora.GERENTEEDITORIALAlessandraJ.GelmanRuizEDITORASSISTENTEDenisArakiASSISTENTESEDITORIAISCarolChristoFelipeCastilhoPRODUÇÃOEDITORIALAbAeternoProduçãoEditorialPREPARAÇÃOKarinaDanzaREVISÃOAnaPaulaSantosCamileMendrotMalvinaTomázCAPAMarinaÁvilaDIAGRAMAÇÃOSGuerraDesignPRODUÇÃODOE-BOOKSchafferEditorial
DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)CâmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil
Livingston,LesleyNovenoiteseumsonhodeoutono/LesleyLivingston;traduçãoAngelaCristinaTesheinereCláudiaSantanaMartins.–1.ed.–BeloHorizonte:GutenbergEditora,2014.Títulooriginal:WondrousStrange.ISBN978-85-8235-023-21.Ficçãobrasileira2.AmizadeI.Título.14-01148 CDD-813.5
Índicesparacatálogosistemático:1.Ficção:Literaturanorte-americana813.5
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EDITORAGUTENBERGLTDA.SãoPauloAv.Paulista,2.073,ConjuntoNacional,HorsaI,23ºandar,Conj.2.301CerqueiraCésar.01311-940SãoPaulo.SPTel.:(5511)30344468BeloHorizonteRuaAimorés,981,8ºandarFuncionários.30140-071BeloHorizonte.MGTel.:(5531)32145700Televendas:08002831322www.editoragutenberg.com.br
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Parameupai
Agradecimentos
Devo sinceros agradecimentos e afeição a um monte de gente. A Jessica Regel e LauraArnold – minha agente e minha editora de textos, duas das mulheres mais incríveis que jáconheci.Elasconspiraramengenhosamenteparamefazerescreverestelivroeforammuitoalémdoquemandaodeverparacuidardemimenquantoeuoescrevia!ObrigadaaJeanNaggareaopessoal da JVNLA por me acolherem no grupo, e à maravilhosa equipe da HarperCollins: àdiretora editorial, Barbara Lalicki, por sua aguda percepção e apoio; aMaggie Herold, minhagenialeditoradeprodução,porme fazerparecermuitomais inteligentedoquesou;eaSashaIllingworth, minha espetacular designer, por fazer tudo parecer tão lindo! Obrigada a LynneMissen, editora de texto, e a todos naHarperCollinsCanada pela calorosa acolhida.Obrigada,Mark e Danielle, por sua amizade e hospitalidade nova-iorquina, e por todas as longascaminhadaspeloCentralPark–principalmenteaquelasànoite!Obrigada,Adrienne,portodooapoio. Obrigada, Cec-monster, pela ajuda durante todos esses anos. Muito amor e gratidão àminha família – especialmente àminhamãe – por, de algum jeito, entender que eu acabariachegandoaqui,mesmoqueeunemsempreajudasse.E,acimadetudo…obrigadaaJohn–pormuitasrazões,entreasquaisofatodeque,semvocê,eujamaisteriapassadodo“Ese…?”.
Sumário
Samhain31deoutubroIIIIIIIVVVIVIIVIIIIXXXIXIIXIIIXIVXVXVIXVIIXVIIIXIXXXXXIXXIIXXIIIXXIVXXVXXVIXXVIIXXVIIIXXIXXXXXXXI
XXXIIXXXIIIXXXIVXXXVXXXVINoitedeestreia1ºdenovembro
SAMHAIN31deoutubro
Sobeedesce,sobeedesce,Vouguiá-los,sobeedesce…Seentroemcena,omedocresce!Vai,duende,sobeedesce…
AspalavrastorturadasdePuckressoavamnosouvidosdeKelleyquandoelaergueuacabeça,lutando contra a escuridãoque ameaçavadescer sobre ela.Ela viu, comhorror, o carrossel doCentral Park tremer sob o luar fragmentado pelas nuvens. Embora ninguém estivesse lá paraoperar a máquina, a plataforma se pôs em movimento e os cavalos pintados começaram abalançar para cima e para baixo. Os enfeites dourados e as joias nas selas e nos cabrestoscintilavam,piscandoparaKelleycomocentenasdeolhossinistrosemaléficos.
Nocéuacimadocarrossel,entrenuvensmanchadasderoxoenegroporventosfortíssimos,surgiuumafigura–pairandonoar,montadaemumfogosoCavaloRuão.KelleysentiulágrimasquenteslhearderemnasfacesaoolharparacimaeverosolhosdoCavaleiro.Eleafitou–frio,impiedoso,semnenhumsinaldereconhecimentonobelorostoatormentado.
Enlouquecido pela presença do Cavaleiro na garupa, o Cavalo Ruão relinchava, emresistência.Pinoteandoeerguendo-senaspatastraseiras,debatia-secomoscascosdechamas.
Ocarrosselcomeçouagirar.Aolonge,Kelleyouviuosomdecãesdecaça.OCavaleirosacouaespada,alâminaseincendiandocomoumtição.ArespiraçãodeKelley
ficou-lhepresanagargantaquandoocarrosselpassouagirarcadavezmaisdepressa.Figuras esfumaçadas e cintilantes se materializaram do nada para cavalgar as montarias
pintadas.Sanguináriosedeolhos vermelhos,brandindoespadasdechamas, a alegriadeleseraalgo terrível de observar. Sob eles, os cavalos de madeira se transformaram, resfolegandofuriosamenteebatendooscascosnaplataformagiratóriadocarrossel.
Então,elesseprecipitaramparaafrente.Movendoaspernascomviolência,elesgaloparamloucamente noite adentro, subindo uma trilha invisível rumo ao coração da tempestade emturbilhão.
Depois de séculos aprisionada, acorrentada por um sono encantado e inquieto, aCaçadaSelvagemhaviadespertado.
Era Samhain. Naquela noite, cavalgariam. Naquela noite, matariam. Nada no mundodeteriaoesquadrãodeseresmágicos–nãocomoCavaleiroeoCavaloRuãonaliderança…
Seentroemcena,omedocresce!Vai,duende,sobeedesce…
I
“Comoassim,promovida?”KelleyWinslowsentiuapulsaçãoacelerar.Eraaquintasemanadeensaiosparaaprodução
deSonhodeumanoitedeverão,deShakespeare,noAvalonGrande.NãoimportavaqueosAvalonPlayers – uma companhia de repertório de terceira categoria, tão distante dos padrões daBroadwayquepoderiamuitobemestaremoutroestado–houvessemcontratadoKelleyapenascomo atriz substituta, o que, na prática, era um título chique para ajudante de palco. Era seuprimeiroempregodeverdadecomoatrizapósumapassagemdesastrosapelaescoladeteatroe,com apenas dezessete anos, Kelley ficara grata pela oportunidade de incrementar o currículo.Entretanto,naqueledia,assimquechegaraaoteatro,Mindi,adiretoradecena,surpreendeu-a.
Kelleycarregavaumacaixadeobjetoscenográficosqueforabuscarnofurgãodacompanhia,estacionadodoladodefora,etinhaumpardeasasdefadaamarradoaosombros–eraoúnicojeitodecarregá-lassemesmagaraestruturadearame.
“Mindi,oquevocêquerdizer?”,elaperguntoudenovo.“Quero dizer que você não precisa tirar as asas,menina.”Mindi pegou a caixa de objetos
cenográficos dasmãos dela. “Nossa querida diva, deWinter, quebrou a perna. Ela está fora dapeça, e isso significa que você, pequena substituta, assumirá o papel principal comoTitânia, arainhadasfadas,portodaatemporada.”
Kelley ficou sem fala. Sonhara com aquilo – mas, por mais vezes que houvesse assistidoBarbara deWinter repassar suas cenas nos ensaios, com canastrice demais e charme demenos,nuncatinhadesejadoquealgoderuimlheacontecesse.Kelleyfoitomadaporumsentimentodeeuforiatingidodeculpa.Consegui.Estaéminhagrandeoportunidade!
“Ei!”Mindideu-lheumempurrão,debrincadeira.“Chegadesonharacordada.Estreamosemdezdias, eQuentin está…Bem,pranão ser grosseira, nosso estimadodiretor está pirandoagora.Porisso,sugiroquevocêvistaumasaiadeensaioesubalánopalco,praqueoPoderosoQpossapassarassuascenascomvocê.Boasorte.”
#
Minhascenas.Minhascenas…Comospensamentosemredemoinho,KelleyquaseatropelouoatorqueinterpretavaPuck,
quandoestepulougraciosamentedoandaimequeerapartedocenáriocantandoAm I blue?…
Engraçado, já que ele, na verdade, era verde – um tom pálido iridescente da cabeça aos pés,cabelo,pele,olhos,atéa túnica feitade folhas.UmdosoutrosatoreshaviaditoaKelleyqueonomedeleeraBob,masqueeste levavaaoextremoométodode interpretaçãoemqueoatorbuscadesenvolveremsiospensamentoseossentimentosdeseupersonagem,eporissoexigiaque todos se referissem a ele somente como Puck enquanto estivesse fantasiado e maquiado,ameaçandoabandonaraproduçãocasonãofosseatendido.
Atoreslunáticos.Pensandoneleenodiretorigualmenteexigenteemuitobritânico,QuentinSt.JohnSmyth,
KelleycomeçavaaacharquehaviasejuntadoaumverdadeirohospícionoAvalonGrande.Elaabriuasportasdodepósitode figurinoe remexeunoscabidescomas saiasdeensaio,vestindoumadelasporcimadosjeanseabotoando-aomelhorquepodia,comosdedostrêmulos.
“Fadas,partamos…”,murmurouela,emvozalta.“Não…Estáerrado…”Ai,meuDeus,pensouKelley,frenética.Qualéaminhaprimeirafala?“Issosãosóinvençõesdociúme…Ah,droga!”Tinhadadobranco.“Essaneméafalacerta!”Ocoraçãomartelava-lhenopeito,eelaapoiouacabeçanobatentedaporta.Vocêsonhoucomissotodaasuavida,disseasimesma,comseveridade.Todosaquelesanos
declamandomonólogos para os bichos de estimação, e todos aquelesmeses implorando à tiaEmmaqueadeixassesemudarparaManhattanetentarasorte.Éissoaí.Váparaopalcoemostreaelesdoqueécapaz!
Sentindo-se levementemais confiante, Kelley inspirou fundo e seguiu rapidamente pelocorredor,atravessandoosbastidores–noexatomomentoemque“Puck”lançavaumpunhadodepurpurinanoar.Elaseassustouquandoanuvemdecentelhaslhecaiusobreocabelo,orostoeosombros.
“Ai…Valeumesmo,Bob…”, resmungouKelley, removendoopócintilante comasmãos,enquanto o ator excêntrico dava uma risadamaldosa e corria em direção à coxia esquerda dopalco.
Nãohavianadaafazer–elaestavacobertadepurpurina.“Fantástico.Pareçoumaboladediscoteca.”Pelomenos combinava com a purpurina da camiseta antiga com a estampa de uma das
princesasde“MeuPequenoPônei”queestavavestindo.“ElavaiapareceraindaHOJE?”KelleyouviuotomfuriosodeQuentinecoarpeloteatro,eonervosismovoltouquandoela
ergueuasaiaecorreuemdireçãoaopalco.Umavezlá,Kelleydescobriuque,sobasluzes,opódefadaseratãobrilhantequechegavaa
cegar. Distraída, viu-se tropeçando tanto na barra da saia quanto em suas falas. O coraçãocomeçouapalpitar-lhenopeitoaoouvirosgrunhidosexageradoseossuspirosdefrustraçãoquevinhamdasfileirasescurasdeassentos,deondeodiretoraobservavaatrapalhando-setoda,comoumaidiota.
Depois de quarenta e cincominutos, haviamprogredido apenas poucomais do que umapágina desde a primeira aparição de Titânia. Kelley já tinha conseguido errarmetade de suas
falas, tropeçaremumbancoepisarnopédeOberon.Quandoelaquasecaiudopalcoparaofossodaorquestra,Quentintevemisericórdiaeinterrompeuoensaio.
“Kelley.Você se chamaKelley,não é isso?”Elenão esperouque ela confirmasse. “Certo.Muitobem.Diga-me…Esseúltimotrecho…eradoInfernodeDante?”
“Ahn…não”,balbuciouKelley,sentindoasfacesquentes.“Nãomesmo?”Estouencrencada.“Tem certeza?”, continuou ele. “Porque certamente não era desta peça. E parecia mesmo
infernal…”“Eu…”“Sabe, pormais…Bem, sejamos francos, está bem?Pormaisabsolutamente incompetente
queanossaex-divasemostrassenessepapel…”Quentinsubiulentamentenopalco,ondeficoucircundando Kelley como um tubarão. “… ainda assim, tinha umaminúscula vantagem sobrevocê,amoreco.”
“Ela…elatinha?”“Éclaroquetinha.Elasabiaadrogadasfalasdela!”Todooelencorecuouumpasso,afimdeevitaroraiodealcancedaexplosãodeQuentin.“Alémdisso,emboraeuobviamenteaprecietodooseuesforçoemsefazercintilante…”Kelley lançou um olhar rápido a Bob, que achara algo especialmente fascinante para
examinarsobumadesuasunhas.Provavelmente,purpurina.“QuetipodeSUBS-TI-TU-TAdemerdanãosabeadrogadasFALAS?”,esbravejouQuentin.“Mas eu sei as falas!”, ela protestou. “Quer dizer… eu sabia. Um segundo atrás. Nos
bastidores…”OolhardeescárniodoPoderosoQseintensificou.“Ora,masissoémaravilhoso.Quemsabe,devíamosconvidaropúblicoparaoseucamarim,
emgruposdedoisoutrês,paraquevocêpossaatuardelá.”“Eu…”Ai,meuDeus,refletiuKelley, issoécomovoltaràescoladeteatro.Osanguelatejavaemseus
ouvidos e, por ummomento, ela pensou que fosse desmaiar.Ou vomitar, talvez. Bem ali, nafrentedetodooelenco.Asfacesardiamdeembaraço.
“Presumindoquesuaadorávelantecessoranãosecuremilagrosamente,entãovocêtemmenosde duas semanas paraaprender o papel.Menos deduas semanas. Esta produção estreia no diaprimeirodenovembro,mesmosobvendavaisoutempestades.Aestaaltura,euestouapostandonosdois.”
Elegirousubitamentenoscalcanhareseacenoucomamão,dispensando-os.“Certo.Paramos aquipara almoçar, lacaios.Não vejo sentidoemcontinuarmartelandoas
mesmas coisas. Estejam de volta às duas, para ensaiarmos as cenas de conjunto. Você”, disseQuentin,olhandofixamenteparaKelley,“leiaoseumalditoroteiro.”
Oteatroseesvaziourapidamente.Depoisdaquilo,pareciaqueninguémqueriaficarmuitotempoporali,oupertodela.Kelleycambaleouàscegasedeixou-secairsentadanosdegraus.
“Kelley?”
Ela se virou ao som do nome dela, dito pelo “Cavalheiro” Jack Savage, o ator queinterpretavaOberon,oreidasfadas,napeça.Eleeraumveteranodospalcos–comcinquentaepoucos anos, uma sólida presença e uma voz capaz de derreter gelo ou descascar a pintura,dependendodamaneiracomodecidisseutilizá-la.
“Oi,Jack”,elarespondeu,secandoosolhos,envergonhada.“Pardês,minhaquerida”,elearepreendeu,comgentileza.“SeiqueoPoderosoQuivacomo
umabanshee,mas,falandosério…Vocênãopodesedeixarabalarporaquelevelhochato.”Elesesentouaoladodelanosdegrausedesatarraxouatampadasuagarrafatérmicavelhae
amassada, servindo-sedeumaxícaradecafé.Oaromadosgrãoscolombianosbemtorradoserareconfortante.
Kelleydeu-lheumsorrisochoroso.“Jack…Você sabequeaspessoas…amaioriadelas…nãocostumammaisusar aexpressão
“pardês”emconversascotidianas,nãosabe?”“Estounumacruzadadeumhomemsóparacolocá-ladenovoemvoga.Juntocomhomessa,
bofée,nãopodemosesquecer,uxte.”EletomouumgoledecaféedeuumtapinhanojoelhodeKelley, com afeição paternal. “Todos precisam de um propósito na vida,minha cara. Esse é omeu,pormaisquixotescoqueseja.”
“E se eu não tiver?” Kelley fitou os próprios tênis intensamente, forçando-se a conter aslágrimas que lhe ardiam sob as pálpebras. Sentia… Sabia… que tinha arruinado sua grandeoportunidade.“Seeunãotiverumpropósito,querodizer.Umdestino.”
“Impossível.”Elaolhouparaele,ansiosaporsuaopiniãohonesta.“Porquedizisso?”Jackarqueouumaelegantesobrancelhagrisalha.“SouosoberanodoReinoEncantado,minhacara”,replicouele,comumapiscadela.“Todo
aquelepómágicomedeupoderesextremamentefortesdeobservação.”“Nãoestoubrincando,Jack.”“Nemeu.”Jackfitou-a,comorostosério.“Kelley…vocêtemdezesseteanos.Estámorando
sozinha em Nova York. E está em busca de um sonho que a maioria das pessoas sensatasconsidera inatingívelouumaabsolutaperdadetempo.Acrediteemmim,eusei.Tudo issomedizquevocêédestemidaousóumpouquinhotola.Imaginoquesejaasduascoisas.Etambémimagino que você é uma das raras e preciosas pessoas com talento natural suficiente para tersucesso.”
Kelleydeuumarisadinhacética.“Vocêviuoqueacabeidefazerládentro,nãoviu?”“E ouvi, sim”, riu Jack. “Você estropiou umpoucomais de cinquenta por cento das suas
falas.NãomeinteressaoqueQuentindiz;paraumanovata,nãoestátãoruim.Bem…metadeestavaruim;maséissooqueestoutentandodizer.Aoutrametadeestavaboa.”
“Você…achamesmo?”,perguntouKelley,tentandoavaliarseJackestavasendosincero.Jackdeudeombroseterminoudebeberseucafé.
“Acho sim. Você tem boa voz. Tem presença. E, o que é mais importante, tem coração,paixãoeaincrívelteimosiadeumamula,eessasqualidadespodemmuitobemlevá-laalugaresqueamaioriadenósmalseatreveaimaginar.”Elefechouatampadagarrafatérmica.“Agora,sequiserchamarissodedestino…oudepropósito…Oquequerqueseja,minhacara,vocêtemdesobra.”
Kelleynãoestavadetodoconvencida,massorriu,gratapelabondadedele.“Alguémjálhedissequevocêtemodomdafala,Jack?”“Váriaspessoas.Infelizmente,nenhumcrítico.”“Obrigada.”“Nãohádeque,minhacara.”Levantando-se,Jacktirouumchapéuimaginárioparaelaevoltouparadentrodoteatro.
#
Asegundametadedoensaiotambémterminoucedo,porém,destavez,nãofoiporculpadeKelley– seriadifícilerraras falas,considerandoque lhehaviamordenadoqueensaiassecomoroteironasmãos.Emborafossehumilhanteparaelaaindaprecisarlersuasfalasapoucosdiasdaestreia,acompanhiapassouascenasdeconjuntoemtal ritmoecomtalcompetênciaqueatémesmoQuentinsópôderesmungaralgumasreclamaçõespoucosinceras.
Depoisdeumasduashoras,eleliberouamaiorpartedoelenco,retendoasduasgarotasqueinterpretavamHérmiaeHelenaparatrabalharemseusmonólogos.
“Afinal”, comentouele sugestivamenteede formaqueKelley escutasse, “elas já sabemasfalasdelas.”
Sorte delas, pensou Kelley, vestindo de novo as roupas normais. Juntou suas coisas e saiurapidamentedali,antesqueoPoderosoQmudassedeideia.
Do ladode fora, odia estavamagnífico, comocéudeoutubrodeumazulprofundoe atemperatura amena. O sol brilhava intensamente e lembrava Kelley dos dias de outono nasmontanhasCatskill.Elafoitomadaporumaondasúbitadesaudade.
Porqueestoufazendoisso?NosseismesesquepassaraemNovaYork,nemumavezKelleyquestionaraasescolhasque
fizeranavida:formar-secedonoensinomédio,abandonaraescoladeteatroparasemudarparaacidadegrande,deixarpara trásospoucos amigosque tinha,paranão falarda tia–quea criarasozinhadesdeamortedospais,dozeanosantes.KelleyeratudoparaEmma,eelasseadoravam,mas,emvezdecontinuarosestudosemumauniversidadepróxima,visitandoEmmanosfinsdesemana,aliestavaela,vivendonacidademaisárduadosEstadosUnidos,perseguindoumsonhoegoísta,paraoqual–Vamosencararosfatos,ordenouelaasimesma,desolada–elaparecianãoternenhumtalento,adespeitodoqueJackdissera.
ElaarrastouospésaovagarpelaOitavaAvenida,relutandoemseguiremdireçãoaocentro,paraoapartamentonoquartoandardeumprédiosemelevador,olugarqueelachamavadelar.
Noentanto,lareraoutracoisa.Eraocéu,agrama,asárvoresdobosquedoladodeforadesuavelhajanela,eapaz.
Kelley parou na esquina da rua 55. O Central Park ficava a apenas algumas quadras dedistância.Haveriaárvoresegrama,ebancosnosquaiselapoderiasesentarcomtranquilidadeeestudarsuasfalas,longedamultidãodacidade.Virandoàdireita,elaseguiurumoaoLeste,emumalevecorrida.
II
Sonny Flannery abriu as portas duplas envidraçadas e saiu no terraço de pedra de seuapartamentodecobertura.Comaagilidadedeumfelino,pulouparaseencarapitarnogranitolisoeamplodoparapeito.Semmedodeumaquedadedezenoveandaresatéochãoláembaixo,ele se agachou como uma gárgula – os ombros descansando nos joelhos e as longas mãosdelgadas pendendo à sua frente –, observando, enquanto as sombras vespertinas dos inúmerosarranha-céusdeNovaYorkcomeçavamasealongarporsobreoCentralPark.
Eracedodemaisparaeleestartãoagitado–oPortalsóseabririadaliaváriashoras.Aindaassim…sódepensarnoqueaconteceria,aadrenalinapulsavanasveiasdeSonnycomoacançãodeumasereia.Eleescutaraacançãodeumasereiacertavez,enão foranadabonito.Sedutor,sim. Bonito… não. Por baixo da superfície excruciantemente encantadora das melodias dassereias,tudooqueeleouvirahaviamsidonotasdissonantesdefomeeraiva.Carência.Loucuraepesadelos.Compulsão.
Omesmotipodecompulsãoqueolevaraaoparquetodasasnoitesdurantequaseumano,em preparação para o que aconteceria quando o Portal de Samhain se abrisse e tudo o querestasseentreoOutroMundoeoreinomortalfossemtrezeGuardiõesJanos.IncluindoSonnyFlannery,omaisnovomembrodaquelegrupodeelite.
AqueleeraoseuprimeiroanodeserviçocomoumJano,eseriaaprimeiraveztambémqueeleguardariaoPortal.Malpodiaesperar.
A brisa de outubro era fria naquelas alturas,mas,mesmo sem camisa e de pés descalços,vestindo apenas uma calça jeans, o frio não exercia nenhum efeito sobre Sonny. Ainda assim,quandoa temperaturadespencoudentrodoapartamentoàssuascostas,elenãopôdedeixardenotar.
“Meurei”,saudouSonny,semsevirarparaolhar.“Bem-vindo.”Arespostachegouatéele,ressoandonosares.“Sonny.”Doparapeitoemqueestavaencarapitado,SonnysevirouparaverAuberon,reidaCortedo
Inverno dos seres mágicos, recostado na ombreira da porta. Uma cabeleira cinza-escuraentremeadadefiosgrisalhosderramava-sepelassuascostas,eummantocosturadocompelesdeloboscinzentoscaía-lhedosombros,emvívidascamadasprateadas.
“A sua porta”, a voz de Auberon era grave e melodiosa, com tons semelhantes ao lentoestalareribombardeumlagocongeladoquebrando-seemumanoitedeplenoinverno,“estavadestrancada.”
“Eu sei. Amaioria dos visitantes indesejados nunca passa da recepção do prédio. Ou sãobarrados lá embaixo ou não são do tipo que subiria de elevador, então, em geral, eu nãomepreocupo.”
Sonny sabiamuito bem que Auberon não fora lá para falar de portas.O rei daCorte doInvernonãoprecisavadecoisastãotriviaisquantoportas.Eleestavaapenassendobem-educado–emseujeitopeculiar.
Oslábiospálidosdoreidasfadassecrisparam.“Visitantesindesejados?”“Nãoosenhor,meurei,éclaro.”Sonnysorriuepulouparaochãodeladrilhos.Ospésdescalçosnãofizeramnenhumruído
aoatravessaroterraço.“Éclaroquenão.”“Eusóquisdizerquelogotereiportasobastanteparamepreocuparemmanterfechadas.”OsolhosfriosdeAuberoncintilaram.“Terámesmo.”“E, de qualquer forma, este é o seu apartamento.” Sonny fez um gesto, englobando a
extensãodepisosenceradosemobíliaelegante.“Euapenasmoroaqui.”Era verdade. Os decretos de Auberon haviam proibido os seres mágicos de ter quaisquer
interações com o reino mortal, e seus encantos as tornaram praticamente impossíveis.Entretanto, sendo o rei do Inverno, a mais poderosa das Quatro Cortes dos Seres Mágicos,Auberonpodia ir e vir quandodesejasse.Ele vinha fazendo isso ao longodos anos e, em suasrelações com os humanos, Auberon havia – entre outras coisas – reunido uma coleçãoimpressionantedeimóveisvaliosos,incluindoacoberturadeSonnyemumaesquinadaavenidaCentral Park West. Para a maioria das pessoas, “luxuosas” seria pouco para descrever asacomodaçõesdojovemJano–osnova-iorquinosvenderiampartesdeseuscorposparaconseguirum lugar como aquele. Contudo, Sonny crescera no inimaginável esplendor dos palácios deAuberon.
Sonny nascera no reino mortal, mas, ainda criança, fora raptado por seres divinos, queraramente geravam filhospróprios.Levandoum séculooumais emvezde anospara chegar àidadeadulta (poiso temponoOutroMundo secomportavademododiferenteem relaçãoaoreino mortal), os mortais raptados serviam como descendentes substitutos dos seres mágicos,entrando nos saguões brilhantes de palácios reluzentes, descansando e banqueteando-se emcaramanchões com tetos abobadados. Mortais transformados em quase imortais, eles viviamnaquelelocalatemporal,onírico,adoradosouignoradosporseuscaprichosossenhores,àsvezesestimados,outrasvezestorturados.
Noentanto,sempresobodomíniodosseresmágicos.AvozdoreiacordouSonnydodevaneio.“Consideraestasacomodaçõesadequadas,espero?”“Nãoéomeular,seéoqueestáperguntando.”“Nãofoioqueperguntei.”
“Claro,meu rei.” Sonny inclinou a cabeça, lembrando-se de quem era. E de com quemfalava.“Oapartamentoéexcelente.Obrigado.”
“Quesorteoseuantecessorterdesocupadoolocalantesdevocêassumiroposto.”“Opescoçodelefoicortadoporumaglaistig1noanopassado.”“Foi.”Oslábiosdoreisereviraramemumsorrisosemalegria.“Masomomentoemqueisso
aconteceufoiafortunado.”Sonnyprocurouumjeitodemudardeassunto.“Gostariadebeberalgumacoisa?”“Aocasiãomerecequeeufaçaaoferta.”Auberonsemoveumaisparadentrodasala,umfrio
crescentepercorreuoarà suapassagem.Eleergueuumagarrafanegra fechadaporuma rolhaprateada, eSonny ficou comáguanabocade imediato.Vinho encantado.As libaçõesmortaisnãoeramnemmesmoumasombradaperfeiçãoquehaviadentrodaquelagarrafa.Oreipareciase divertir com a expressãono rosto deSonny. “Precisamos celebrar o seu primeiro ano comoGuardiãoJano.”
“Émuitagentilezadesuaparte,meusenhor.Contudo,euaindanãodemonstreiasminhascapacidades.”
“Se eu tivesse qualquer dúvida sobre as suas capacidades, rapaz, eu não estaria aqui. E,obviamente…nemvocê.”
Sonnynãoestavacertoseoreidasfadasdisseraaquilocomoumaameaçaounão.ObservouAuberonentrandonacozinhaeretirandodoiscálicesdevinhodosuportesuspensoparacopos.Comumgirohábil,eleremoveuarolhaprateadaeserviudosesgenerosasdolíquido.
“Não tenho dúvidas.” Auberon deu de ombros com elegância, estendendo uma taça paraSonny. “Você é omelhor Jano que eu já escolhi.Melhor até do queMaddox, ou que oLoboFenris.”
Sonny lutou contra o impulso de defender o amigo Maddox, sabendo que não seriaprudentediscordardoelogiodorei.
“Muitasfelicidadesparavocê”,brindouorei.“Eboacaça.”Sonny ergueu a própria taça em retribuição e tomou um gole, contendo um gemido de
prazer diante do sabor. O vinho encantado cintilava tanto que parecia feito de minúsculasestrelas.
“Titâniamandalembranças…”OprazerqueSonnyextraíadovinhoseevaporou,eeleestremeceu involuntariamenteao
pensar na rainha da Corte do Verão. Titânia. Todo o encanto e a beleza elementar de umatempestadedeverão…etãoperigosaquantoela.
“Elalhedesejasorte.”Apostoqueelanãoespecificouseseria“boa”ou“má”sorte,pensouSonny,tendoocuidadode
manteropensamentoparasimesmo.“IssosignificaqueosenhorearainhadoVerãoestãoembonstermos,então,meurei?”“Nomomento.”Éclaroque,noOutroMundo–noReinoEncantado–,otemponãotinhasignificado.E,
portanto, aquele “momento” poderia durar anos… ou se esvair em um instante. Pelomenos,
ponderouSonny, seAuberoneTitâniaestavamsedandobem, isso significavaquenãohaveriainterferênciadapartedeladuranteaspróximasNoveNoites,e issoeraumalívio–oVerãoeoInvernodificilmenteentravamemacordo.Sonnypensou,poruminstante,nasoutrasduascortes–aschamadas“cortesdassombras”–,comseusmonarcasimprevisíveis;arainhaMab,caprichosagovernantedamalévolaCortedoOutono,eGwynapNudd,oestranhoemisteriososoberanodaPrimavera.Asaliançasentreosmonarcaseramtraiçoeiras,mudavamconstantemente,eSonnysemaravilhavacomahabilidadedeseureidenavegarnaquelesmarestempestuosos.
Auberonmoveu-se pelo apartamento, fazendo um gesto para que Sonny o seguisse até oterraço. Por um longo instante, eles permaneceram em silêncio, inclinados no parapeito. Láembaixo,bucólicosetranquilos,estendiam-seosgramadosverdesdoCentralPark.
“Vocênãopodefalhar,Sonny.”“Nãofalharei,meusenhor.Nesteano,entretodososanos…eunãodevofalhar.”Umsilênciopesadopairouentreeles,eSonnylançouumolhardeesguelhaparaAuberon.
Apeleclaraeperfeitaaoredordosolhosdoreidasfadaspareciatensa,suasfeiçõescontraídas.“Osenhorparece…cansado,meurei.Algopareceperturbá-lo…”Auberon se virou, murmurando consigo mesmo, como se o jovem Jano houvesse
desaparecidoderepenteeeletivesseficadoasós.“MeussúditospuxamcomviolênciaascorrentesdiantedoPortaldeSamhain,usandounhas
edentes.Golpeiamasportas…portasqueeu fechei…commalhoseespadas.Elesarrancariamum a um os membros uns dos outros e morreriam uivando, mesmo que só para arriscar apossibilidadedeabrircaminhoàforçaporaquelainfernalfendaentreosmundos.Paraescapardeláparacá.Paraestereino…doentioe…corrompido.Como,então,eudeveriamesentir,quandoháaquelesquefugiriamdomeureino…apenasparafazerestripuliascomosmortais?”,indagouoreidoInverno,aúltimapalavrasaiudeseuslábioscomoseacuspisse.
“Eu...soumortal,meusenhor”,replicouSonny,emvozbaixa.“VocêéumJano.Euofiz.Amortalidadenãotemnadaavercomvocê.”Auberonjogoua
cabeça para trás e engoliu o restante do vinho em um só gole. “A não ser, é claro, que vocêmorra.”
Oreidas fadas saltouparaoparapeito.Estendendoomanto,elepisounonada,oar sutilturvou-seaoseuredor,comofumaça.
Emseulugar,umfalcãodeasascordecarvãoalçouvoosobreoparque,gritandocomfúria.
#
Menos de meia hora depois, Sonny espreitava como um felino na caça os caminhosserpenteantesdaáreadoCentralParkconhecidacomoRamble,vasculhandocomamentetodososquatrocantosdoPortaldeSamhain.
Elecostumavaseperguntaroqueosnova-iorquinospensariamsealgumdiadescobrissemaverdade sobre o seuqueridoCentralPark: queos quase três quilômetros quadrados emeiodosantuário verde ondulante nomeio da cidade não eram nadamais do que um disfarce, uma
fachada cuidadosamente construída para ocultar um Portal entre o mundomortal e o ReinoEncantado.
Apenasum século emeio atrás,haviaquatrodessesportais –Samhain,Beltane, Imbolc eLúnasa –, espalhados pelo Velho Mundo (passagens pelas quais o Bom Povo podia ir e vir,interagindocomoreinomortal).Contudo,umavezqueosseresmágicoscomeçaramasemudarpara o Novo Mundo, seguindo a imigração em grande escala dos seres humanos, queatravessavam o oceano, as Cortes do Reino Encantado decidiram transferir um dos quatroGrandesPortais para estanova terra, onde tantosmortais – do tipoque ainda acreditavamnosseresmágicos–haviamseestabelecido.
ÀmedidaqueoCentralParkeraconstruído,nofinaldoséculoXIX,oPortaldeSamhainseformou dentro de suas fronteiras. Escondido do povo da cidade, ele se fundia orgânica einvisivelmentecomooásisurbanoemcrescimento,fornecendoumperfeitoparquederecreaçãopara aqueles que atravessavam o Portal, um local de preservação da natureza e, portanto, umhabitatnaturalparaosseresmágicos,bemnomeiodeumaáreadetantaagitaçãohumana.
OPortaldeSamhainhaviaproporcionado infindáveldiversãoparaoshabitantesdoReinoEncantado,masnãodurariamuitotempo.
Poucas décadas após a finalização do parque, por volta da virada do século XX, Auberondecidiufechartodososquatroportais.Enfurecidopelatransgressãodeummortal,oreilançaraumencantoqueosselariaparasempre,demodoqueoReinoEncantadoeomundodosmortaispermanecessemseparados.
Todavia,oencantodeAuberontinhaumdefeito.Umabrechacontinuouabertaemumdosportais.OPortal que ficavano centro da fervilhantemetrópole doNovoMundo se abria durante
umanoite todos os anos, dopôr do sol dodia 31deoutubro até onascer do sol dodia 1º denovembro. Mais do que isso: a cada nove anos, o Portal escancarava-se durante nove noitesinteiras,sendooSamhainoúltimodeles.
Assim, Auberon havia decidido que, como não conseguiria manter o Portal fechado, elereuniriaosmaispromissoresdetodososmortaisquehaviamsidoraptadosnoberçoecriadosnoReinoEncantado.Selecionando trezedeles,Auberon treinou-osedotou-osdehabilidadesquelhespermitiriamguardaroPortalparaele.
Aironianãopassavadespercebidaaosrecém-nomeadosGuardiõesJanos–maseleseramumgrupobastantepragmáticoeentendiamarealidadedasituação:ouserviamaoreidas fadas,oumorriam.Assim,todosdecidiamservir.
Elesserviamtãobem,naverdade,queamaioriadelesnuncapodiavoltarparacasa–jamaisretornavamàsuavidanoOutroMundo.AGuardadeJanosdeAuberonganharaumareputaçãotão temível que eles não eram bem-vindos; eram insultados e repelidos como assassinos,chamadosdemonstrospelosmesmosseresmágicosqueantesoshaviamtratadocomobichinhosdeestimaçãoebrinquedos.Eraumamissãosolitária.
Sonny afastou aquele pensamento e concen trou-se no Portal. Sendo um Jano, não eraapenas o parque que Sonny podia sentir. Ele sentia cada uma das almas vivasno parque. Elasbruxuleavamemsuamentecomochamasdevelas;umfogoamarelo-claro,pálido–casofossem
humanos.Haviamenosdelesdoquedecostume.Osmortais,peloquelheinformaram,tendiamaevitarinstintivamenteoCentralParkporvoltadahoraemqueoPortalseabria.
Espalhadasaquiealipor todooperímetrodoparque,elepercebiaoutraschamas,azuiseverdes, além de umas poucas vermelhas. Eram Seres Mágicos Perdidos, aqueles que tinhamconseguido escapar dos Guardiões em anos anteriores e, depois de atravessar o Portal, viviamagora em segredo no reinomortal. Eles não lhe diziam respeito, e logo iriam embora – bemantesdopôrdosol,afimdeevitardardecaracomosJanos.
Noentanto,haviaalgomais.Algo–alguém–diferentehaviaentradonoparque.Concentrando-se, Sonny perscrutou com a mente até tocar em uma presença… Uma
presençanitidamentediferentedetodasasoutraschamasdevelasnamentedeSonny.Estanãoqueimavacomumbrilhoestável.
Faiscavademodoerrático,comoaquelesfogosdeartifíciochamadosde“estrelinhas”.ComassensibilidadesdeJanoalertaseacuriosidadedesperta,Sonnydecidiuinvestigar.A
anomalia semovia devagar, deslocando-se em um padrão serpenteante que Sonny reconheciacomoodequemsegueumdoscaminhosdapartedoCentralParkconhecidacomoJardimdeShakespeare.Olhouparaocéu.Faltava sóumpoucomaisdeumahoraparaocrepúsculoeaaberturadoPortal,mas,fascinadopelaperspectivadeumpoucodemistérioantesdoespetáculo,elesaiucorrendo,seguindoacentelha.
Quando chegou ao bosque em que a sua “estrelinha” parara, Sonny desacelerou eaproximou-secomcautela.EmpregandoamagiaqueAuberon lhedera, invocouumvéusutil,para seproteger caso suapresa tivesse ahabilidadede senti-lo.Ele aindanão sabia comoquelidava.
Esgueirou-seatéestarpertoobastanteparaterumvislumbredacriatura,mas,aindaassim,nãoconseguiusabercomcerteza.Eraumagarota.Issoelepodiaver.Mesmodaqueladistância,davaparaverqueelaerabemjovem–dezesseteanos,talvez.Amesmaidadequeele,emtermosdeidademortal.Nomáximo,dezoito…
Ele também pôde ver que ela era bonita. Os cabelos tinham o brilho do cobre antigo,lustroso,eosolhosbemseparadoseramverdes.
Intrigado, Sonny semoveu, sem fazer barulho, sobre as folhas secas, para se agachar nasdensas sombras de um teixo. Através dos galhos de seu esconderijo, ele observou a garota semovendo,agitada,andandodeumladoparaooutronapequenaclareiragramada,batendocomumaunhanosdentesdafrente.
Então,elacomeçouamurmurarconsigomesma–eagesticularnosares.Ah,Sonnysuspirou,apenasmaisumdosloucosdoCentralPark…Osmortaisdesajustados–aquelescomumparafusoamenos–àsvezesapareciamdemodo
diferenteno“radar”deSonny.Deviatersidoissooquehaviaacontecidocomaquelagarota,elepensou.Entretanto…elesesentiusurpreendentementedesapontadoaosevirarparairembora.
Avozdagarotaressoou,derepente.“Querersairdobosqueéumplanovão!”
Sobressaltado, Sonny voltou-se novamente e viu-a apontando em sua direção. Ficouparalisado,comarespiraçãopresanagarganta.Nãohavianenhumjeitodeagarotasaberqueeleseachavaali.Eleestavamuitobemoculto–tantopelafolhagemquantopelovéuqueinvocara.
“Nobosqueficarás,queirasounão”,disseelaclaramente,emtomimperativo.Olhandoparaela,Sonnynotouqueelareluzia.Cabelos,pele,aquelaslongasmãosgraciosas
–cadacentímetrodelapareciafaiscar.“Umespírito eu sou,muito invulgar”, continuou a garota reluzente, os cantos da boca se
erguendoemumsorrisobrincalhão,delicadamentesuperior.Espírito?,perguntou-seSonny,subitamentealarmado.“Overãoaindaimperanomeular”,elaprosseguiu,dandoumpassonadireçãodele,com
umaexpressãosonhadora,olhosdesfocados.Overão… Sonny sentiuopânico subindo-lhedevagar à garganta.Por favor…Nãouma das
criaturasdeTitânia…Eleseergueu,prontoparasaircorrendo.“Eeuteamomuito…”Oquê?“Vemcomigo,então...”Semperceberoqueestava fazendo,Sonnyhaviacomeçadoaestenderamãoporentreos
galhosdoteixoemrespostaaochamado.Recuouamãoabruptamente.Comoque,exatamente,ele tinha se deparado?De repente, ele notou que, por baixo da jaqueta aberta, ela usavaumacamiseta com um pônei e um arco-íris cintilantes… e a palavra “princesa”… Sonny sentiu ocoraçãobatendomaisdepressadoquedevia.
“Dar-te-eisilfos;servosteusserão…”,avozdela,docecomomel,tentava-ocomsuamúsica,mantendo-o cativo em um momento de enlevo, “que te trarão do mar joias preciosas… eembalarãoteusonosobrerosas…”
Foiarimaque,finalmente,oalertou.Aspalavrasdelahaviamcomeçadoasoarterrivelmentefamiliares,eacompreensãoatingiu-o
comoumgolpedemartelo.Ah,pelosSeteInfernos!,praguejouele,cerrandoosdentes.SeuamigoMaddoxmorreriaderir
seSonnylhecontasseaquilo.Oque,éclaro,elenãofaria.Fuzilouagarotacomosolhos,mesmosabendoqueelanãopodiavê-lo.
Comaquelesorrisoencantador,elaanunciou:“Darudezamortalvoutelivrar,tornando-teumespíritodoar!”Emseguida,elasevirou,olhandoparatráscomumarsedutor,parecendochamá-locomos
olhos.Entretanto,nãoera realmenteaele queela estavachamando.Sonny sentiuumaestranha
pontadadetristeza.Então, de modo bastante abrupto, a garota estancou, e todo o seu estado de espírito se
alterou.Cerrandoospunhos, rodopiouemumapequenadançade frustração.Sonnyobservouemsilêncio,enquantoelaapanhavaummaçodepapéisquehaviadepositadosobreobanco,aoladodabolsa.Agarotabateunaspalavrassobreafolha,praguejando.
“Droga,droga,droga!Estávendo?Estávendo?Vocêsabeasfalas,idiota!Porquediabosvocênãoconseguefazerissonumensaio?Porquê?Maldição!”
Eladeuumpontapé,furiosa,atingindoumarochacobertademusgocomodedãodopé.“Ai!”Sonnysoltouarespiraçãodevagar,divertindo-secomaironiadasituação.Umroteiro.Umaatriz.O fatodeque essa garotaum tanto ridícula ohouvesse feitopensarque talvez ela fosse...
Sonnyparou,nãoquerendonemmesmoseaventuraraprosseguirnaquelalinhadepensamento.EleeraumJano.Ele,maisdoqueninguém,deviasercapazdeperceberadiferença.Preparando-se para ir embora, ele se virou por um último segundo para observar a garota. Ela andoumancando atéumbancoe sentou-sepesadamente.De súbito, dobrou-separa a frente, o rostoenterradonasmãos.
Osombrosdelasacudiam,comsoluçossilenciosos.Sonnysentiuoqueixocair.Ele devia ir. Devia deixar aquela criatura patética curtindo sua dor em privacidade. Sem
dúvidanenhuma,eledeviair…Em vez disso, Sonny olhou em torno, procurando por alguma coisa que servisse naquele
jardimcastigadopeloclima.Avistouumaroseiracomumaúltimaflormurcha.Aspétalasaderiamaoreceptáculoemumblocoressecado,easfolhasnahasteestavamquebradiçasquaseapontodevirarpó.
Serviriabem,pensouele,colhendoaflor.Aotocarnarosaaberta,elaestremeceuereluziuentre os seus dedos, recuperando a cor lentamente; as pétalas se abriram em um tom cor depêssego vívido e cremoso, e as folhas adquiriram novamente um verde cheio de vida. Sonnyrespiroufundoeentrounaclareira.
“Comlicença…senhorita?”Acabeçadagarotaseergueudesúbito,eumapequenanuvemdepurpurinairrompeu-lhe
doscabelos.Amãocorreunadireçãodaenormebolsa,obraçodesaparecendoatéocotoveloládentro.
Boba, refletiu Sonny consigo mesmo – embora tivesse tido o cuidado de impedir que opensamento se estampasse em seu rosto. Se eu quisesse machucá-la, eu já poderia ter feito issofacilmentea estaaltura...Haviaum traçodemedonos olhosdela,mas apenasum traço. Isso odeixouimpressionado.
“Desculpe-me,eunãoquis assustar você.”Eleolhoupara abolsadela. “Por favor.Seestápensandoempegarospraydegásdepimenta,nãoprecisa.Eu…Eusóquerialhedaristo.”Eleestendeu-lhearosa.“Acheiqueistopoderiaalegrá-la.”
Aexpressãodagarotapassoudepreocupadaamaravilhada.“Uau!”,elaexclamou,baixinho.Elaestendeuamãoparaaflor,hesitante,erguendoosolhosparafitá-lo.Eledeumaisum
passocautelosoàfrenteedepositouarosagentilmentenamãodela.“É linda…”, ela murmurou, olhando para a rosa perfeita em sua palma. O estonteante
perfumedaflorencheuapequenaclareira,eagarotainalouprofundamente,orostosuavizando-
seemumsorriso.“Obrigada.”Quandoelaergueunovamenteoolhar,elejáhaviaidoembora.
1Espéciedevampirodamitologiaescocesaqueaparecesobaformadeumabelamulherdecabeloslongos,cujametadeinferior(ocultaporumvestidoverde)temaformadecabra.(N.T.)
III
Kelley olhoupara a clareira ao redor, atônita,maso rapazmisterioso– e atraente–haviadesaparecido sem fazer nenhum ruído. Ela se sentou no banco por mais algum tempo,segurandoarosaeescutando.
Nada.Finalmente,juntandosuascoisas,elaseguiuporumadastrilhasquealevariaparaforado
jardimeemdireçãoaoTerraçodeBethesda.Erahoradeirparacasa.Talvezeleaindaestejaporaqui,emalgumlugar,elapensou,caminhandoapassostranquilos.
Eudevia, pelomenos, tentar encontrá-lo.Agradecer direitopor tentarmealegrar… Kelley ponderousobreatentadoraideia,brincandocomopingentedeâmbarverdenacorrentedeprataquetrazianopescoço.ForaumpresentedatiaEmma–umtrevo-de-quatro-folhasparadarsorte.
Infelizmente, emboramantivesse os olhos atentos, parecia que ela estava sem sorte, pelomenosnoquediziarespeitoaoBeloEstranho.
Elasuspirou,lembrando-sedomodocomoeleaolhara,comaquelesextraordináriosolhoscinza-prateados.Orostodeleeramajestoso.Maçãsdafaceelevadas.Bocaretaefirme.Nãosorria,masnãoerasevero–emboraKelleytivesseaimpressãodequeaexpressãodelepoderiamudarfacilmentenesseaspecto…
“Ah,qualé?”,repreendeu-seKelley,emvozalta.“Deixedeserridícula!Vocêviuocarapordozesegundos,nomáximo!”
CaminhandorumoaoSul,eladeuavoltanoRambleatéchegaràmargemnortedolago,dooutroladodoafloramentorochosodeHernshead.
Dealguma forma, anoitecera.Kelley sempre se sentira seguranoCentralPark–mas, poroutrolado,nuncaperambularaporeledepoisdopôrdosol.Nervosa,estreitouosolhosparaumcéuquepassaradoazulmaisescuroparaoíndigocomumarapidezsurpreendente.Percebeuquetudoestavaestranhamenteimóvelnoparque.Emsilêncioabsoluto.Umfinovéudenévoabaixaredemoinhou,atravessandoatrilhaàsuafrente.Kelleyacelerouospassos,quasecorrendo.
Asuperfíciedolagoàsuadireitaeracomoumavastapoçanegradeóleo,etãoimóvelquerefletiatudocomoumperfeitoespelho.ElaplanejavadaravoltanamargematéchegaraoladoLeste,pertodeondepoderiaatravessaroparquee sair juntoà rua72.Apartirdali,era sóumacaminhadadedezminutosatéoapartamento.
Elanãotinhaidolongequandosonsdegritosrasgaramoardanoite.Oruídobrutoestilhaçouosilêncio,horrívelearrepiante.Kelleycongelou,ouvindoosgritos
agudos.Soavamcomoseviessemdomeiodolago.
“Ei!”,gritouKelley,assustada.“Ei!Precisadeajuda?”Uma cacofonia de ruídos frenéticos na água alcan çou-lhe os ouvidos em resposta. Ela
começouacorreremdireçãoàorigemdosom.Misturadoaoshorríveisberrosque lhehaviamchamadoaatençãoaprincípio,escutouumprofundoarquejar,pontuadopelasbatidasfrenéticasnaágua–comosealguémestivessesedebatendoempânico.Afogando-se.
Oumelhor,nãoalguém,masalgo.Kelleyparouàbeiradolago,percebendo,surpresa,quehaviaalgoclaramentenãohumanonaqueleruído.Elaestreitouosolhosemalconseguiuavistaropontonomeiodolago,ondeaáguaespumava,branca.Derepente,algoselevantoudocentrodo turbilhão, pinoteando e erguendo-se violentamente nas patas traseiras. Com o coraçãodisparado,elaviuacabeçadeumcavalodebatendo-senoescuro.
Oscascosdafrentedoanimalagitavam-senaágua,comosetentassemescalaroar.Então,ele afundoumais. A água se fechoumais uma vez sobre a cabeça da criatura que se afogava,sufocandoossonsderelinchosaterrorizados.Kelleyolhouaoredor,empânico.
“Socorro!”,berrouela,masavozsooufracananoite.Nãohavianinguémporpertoparaouvi-la.Ela se viroudenovoparao lago,desesperada, e viuo cavalo romper a superfícieda água
maisumavez,comdificuldade,perdendoasforças.AideiadeumanimalseafogandoenquantoelaficavaaliassistindoeraalgoqueKelleynão
suportava.Elalargouabolsa, tirouajaquetaeossapatos.Emseguida,mergulhounolago,emumarcoraso.
Ofriodoardeoutubronãoeranada,secomparadoàtemperaturadolago.Aoatingiraágua,Kelleypensouporumbreveehorrívelmomentoqueseucoraçãoparariadebatercomochoque.Quandovoltouàsuperfície,segundosmaistarde,elainspiroucomdificuldadeehesitou.
O cavalo relinchou de novo, desta vez parecendo muito mais fraco. Kelley afastou dospensamentosofriocortanteepassouanadarcombraçadasfortesedeterminadas.Parouamenosdedoismetrosdacriaturaaterrorizada,boiandoempé,tomandocuidadocomoscascos,agitadoseletaiscomomartelos.
“Ôa…ôa…”Kelleytentouimpedirosdentesdebater,enquantoacalmavaoanimalcomsuavoz.“Bomcavalinho…belocavalo…calmaaí,amigo…”
O animal balançou a cabeça loucamente, os olhos negros se arregalando e as narinas sedilatando.
“Estátudobem.Estátudobem…”,elaestendeuamãoaoseaproximar,boiandoemáguatãofriaquequaseparecianevederretida.Senãoconseguisseajudarapobrecriaturaasairdolagorapidamente,sabiaqueteriadedesistir.Osdedosdospésjáestavamdormentes.“Vocêestábem.Estouaqui.Vouajudar…”
Elaestendeuaindamais amão, aspontasdosdedos tocandode leveapeleaveludadadofocinhodocavalo.
Porfavor,nãomemorda,elapensou,emdesespero.Em vez disso, porém, o animal pressionou o focinho contra a mão dela, batendo-lhe
gentilmentenosdedosesoprandoarquente.
“Certo.Bomcavalinho.Muitobem…”Kelleynadoumaisparaperto,aindacomocuidadodeevitarasagitadaspatasdianteirasdocavalo.“Vamostirarvocêdaqui…”
Ela passou as mãos ao longo do flanco do animal sob a superfície da água, para ver sedescobriaoqueestavaerrado.Ocavalonãopareciaestar ferido,pelopoucoquedavaparaver,masseusfortesquadrisnãosemoviamdamaneiracomodeviamparamanteracriaturaboiando.Elaesticoumaisobraçosobaágua,emdireçãoaotraseirodocavalo,eporumsegundopensoutersentidoalgofrioeáspero…quaseviscoso–comoescamasdepeixe…
Kelleyrecolheuamão.Vocênãoéumcavalo!Aquiloeraridículo,claro.Ofrioestáafetandooseucérebro,idiota.Vocêestáimaginandocoisas.Elaesticouobraçodenovoe,tateandocomasmãos,percebeuqueumaredeemaranhada
dealgasescorregadiasseenrolaranaparte traseiradoanimal–provavelmente, fora issoqueelaconfundiracomescamadepeixe.
Kelley puxouos fios da vegetação encordoada,mas omaterial fibroso era forte, e elanãoconseguiuumbomapoio.Ficavaescorregandodeseusdedos,quejáestavamendurecidospelofrio.Grunhindo de frustração, ela ergueu denovo o olhar e viu que o cavalo não estavamaislutando. Apenas observava-a, com olhos lamentosos. As narinas dilatadas mal se mantinhamacimadasuperfíciedaágua.
Eleseafogaria.AdeterminaçãotomoucontadeKelley.Elaseafastouumpoucodoflancodocavalopara
juntartodasasforçasquetinha.Tomoufôlegotrêsvezes,enchendoospulmõesaomáximocomocortanteargelado,eentãomergulhounaágua.
Nadandoomaisfundoquepodia,agarrouosfioscompactosdevegetaçãonopontoemqueestaseenraizaranolodonofundodolago.Kelleygirouaspernassobocorpo,plantouospésnusnolodoeenrolouosfiosemtornodasmãos.Emseguida,puxou-oscomtodasassuasforças.
Asalgasviscosasficaramrígidas,porémserecusaramaquebrarouasesoltardochão.Maisumavez.Puxe…Comospulmõesardendo,elatentoudenovo.Puxe,droga…Puxe!Quando suas forças começaram a se esvair, Kelley deu um último puxão fraco nas algas.
Estrelascomeçaramaexplodirdiantedeseusolhos,àmedidaqueocérebroficavasemoxigênio.Elasacudiuacabeça.Umanuvemdebolhasescapou-lhedabocaedonariz–oquelherestavadear.Ouviuumamúsica,suaveedistante,eimaginouverumaestranhaluzfulgurantedançarsobrea água, girandoe sematerializandoao redordela.Sentiu-se aquecida.Umaúltimadébiltentativa…eKelley sentiuaplanta viscosa se soltar sóumpouquinho.De repente,umpuxãoviolentonasalgasjogou-aparaafrente,torcendo-lhedolorosamenteosbraçoseosombros.
E,então,tudoaoredorficoucompletamenteescuro.
IV
“Sonny!”ElesevirouaosomdeseunomeeviuumcolegaJanosaindoporentreasárvores.“Maddox.”Eleestendeuamão,eelesapertaramosantebraçosumdooutro,sorrindo.“Como está indo o seu dia, Sonn?”, perguntouMaddox, com uma entonação levemente
afetuosanavoz.Sonnydeudeombros.“Vocêjácaptoualgumacoisadiferentehoje?”Maddoxsacudiuacabeça.“Que nada. Parece igual a todos os outros anos. Calmo, sereno, pacífico…mas logo isso
mudará.Emmenosdeumahora,asfendascomeçarãoaaparecernoPortal.Eacadanoitedepoisdesta, durante as próximas oito noites, haverá mais fendas. Cada vez maiores. Até a noite deSamhain, quando todos os demônios estarão à solta.Conforme-se, Sonn…”Maddox baixou avoz, embora não houvesse ninguém ali que pudesse ouvi-los. “Nove noites com o Portal seabrindo cada vez mais e só um punhado de Janos para guardá-lo. Há muitos seres mágicos,principalmenteosmaismalignos,dispostosacorrerorisco.”
Sonnyfezumacareta.Elenãoentendiaporquequalquerumdosseresmágicos iaquererviver naquelemundo.Ele, comcerteza, não queria. Só o barulho já era quase o bastante paraenlouquecê-lo.
“Você se acostumou,Maddox?”, indagouSonny, comcertahesitação. “Aeste lugar,querodizer.”
“Souapessoaerradapravocêperguntar”, resmungouMaddox. “Antesdemaisnada,achoquenãoestouaquihátemposuficiente.Osimplesconceitodeeletricidadeaindamedácalafrios.”
“Depoisdetrêsanos?”,perguntouSonny,surpreso.“Bom…Éverdadequenósdoisfomos,sabecomoé…levados…quandoailuminaçãoagás
aindaestavaemuso,Sonn,maseutinhaidadeobastantequandofui…quandoaconteceu…pramelembrardaquelemundo.Daquelaépoca.Eusótentonãopensarnissoagora.”
Sonnypensousobreaquestãoporuminstante.Eleerabebêquandofoilevado.Aúnicavidaque conhecera havia sido a que o Bom Povo lhe dera. Devia ser difícil para aqueles comoMaddox…Aquelesquesabiam,desdeoinício,queaquelepovobrilhante,magníficoqueostinhaeducadonãoeraoseu.Queelesjamaispertenceriamrealmenteàquelepovo.E,pior:saberqueoseu próprio mundo não era mais seu – e nunca mais poderia ser… Sonny se sentiu
desconfortável.Nãoeraumassuntosobreoqualeletivesse,algumavez,tidovontadederefletirprofundamente,emboranãosoubesseexplicarporquê.
PararamjuntoàBowBridge,aponteemarcoqueatravessavao lagodoparqueaoestedoTerraço de Bethesda, que liga o mundo relativamente selvagem do Ramble aos jardins maisartificiais e bem cuidados de Cherry Hill. A ponte era uma boa metáfora para o próprio Portal,pensouSonny.Elesfitaramaságuasemsilêncio,porumlongoinstante.
“E, afinal de contas”, Maddox deu de ombros, como se quisesse livrar-se do climasubitamentesombrio,eapontouparaabelezadiantedeles,“estelugartemos seusencantos…”EledeuumtapinhanascostasdeSonny.“Vamoslá.Nãoqueremoschegaratrasadosàabertura.”
#
AoredordeSonnyeMaddox,oarvibravaemtensaexpectativa,quandoeleschegaramaopico daGreatHill e foram recebidos no círculo de seus colegas Janos. Eles eram treze, todosmortaiscriadosnoReinoEncantado.
Lá estava o Lobo Fenris, célebre por suas raivas sanguinárias e temperamento mal-humorado.SegundoMaddox,oberçodeondeFenhaviasidoroubado,porvoltadoséculoIX,pertencia a um príncipe viking. As habilidades guerreiras estavam em seu sangue – ou, pelomenos,eraissoqueelesemprediziaaSonny.
CaminaeBellamyeramgêmeos, irmãe irmão.Esguios, elegantes equietos, eles tinhamsidoGuardiõesJanosquasedesdeoinício,eeramnotoriamenteeficientes.
Godwyneragenial,bonitãoe…impiedoso.BryaneBeni–umda luz,outrodas trevas.Diferentescomoanoiteeodia, insanamente
competitivos e profundamente inseparáveis, “os rapazes” geralmente podiam ser encontradosentretidos em algum tipo de competição, fosse o arremesso de dardos, um jogo de sinuca ouapenasumatrocadesocosparaverquemresistiamaistempo.
LáestavatambémoFantasma.Delgadoesilencioso,comolhosnegrosemumrostopálido– mais atormentado do que atormentador, Sonny sempre achara. Não sabia o nome real doFantasma,oumesmodequepartedomundoeleforaraptado.Umjovemestranho,mas,afinaldecontas…eleforalevadopelaRainhaMab.
AoladodoFantasma,postava-seAaneel–omaisvelho,quehámuitotempodeixaraseularnaÍndiaeeraumdospouquíssimosmortais raptadosqueviveraosuficientenoOutroMundopara ter chegado à idade adulta. Seus cabelos negros tinham começado a ficar grisalhos nastêmporas,contrastandocomapeledeumfortetomacobreado.
JuntoaAaneelestavaPerry–Percival–,omaisjovem,anãoserporSonny.Perryhaviasidoroubado em1719deumminúsculo vilarejononorte daFrançaque vinha sofrendo commáscolheitasanoapósano.EmtrocadePerry,Titâniagarantiraaolugarclimaamenoesolofértile,assim,umavilaqueestavaquasemortasobrevivera.
Finalmente,Selene,pálidaebonita,comcabeloscastanho-avermelhadoseumpunhadodesardas–alémdeumapontariaabsolutamenteletalcomoarcolongo;eCait–apesardehábilem
maisestilosdecombatecorpoacorpodoquequalqueroutrodogrupo,elapreferialançarfeitiçosdeataqueeencantosdedefesa.
Juntos,elesobservavamenquantoosol,enfim,afundavacompletamentesobohorizonteeo parque mergulhava na escuridão. A primeira das Nove Noites começara. Com um únicopropósito,osJanossemoveram,espalhando-separacobrirosquatrocantosdoCentralPark.
Distanciando-se dos outros para seguir para o Sul, Sonny correu pelo traiçoeiro terrenorochosodovaleconhecidocomoRavine,buscandonofundodamente,sondandopormeiodasdelicadas e ofuscantes névoas do encanto defeituoso de Auberon, até os locais em que asmuralhasentreosmundoseramtãofinasquesetornavamportas.Procurousentirqualdaquelasportaspoderiaseabrirnaquelanoite…
Lá.Cercadeumquilômetro– talvezumpoucomais–aLeste.Sonnysubiua trilhaeparou,
membrosflexíveisepreparados,osangueaquecidopelacorridaepelaexpectativadalutaqueseseguiria. Alguns dos seresmágicos que tentassem atravessar voltariampara oOutroMundo aoprimeirovislumbredeumJanonasvizinhanças.Contudo,osmaismedrososentreosmembrosdoBomPovodificilmentetentariamatravessar.
Sonnyenfiouamãonabolsadecouroquelevavaatiracoloeretiroutrêsgravetoscurtoseretos,amarradosemummaçocomumcordãodecourovermelho:umramodecarvalho,outrodefreixoemaisoutrodeespinheiro.Sonnymurmurouumantigoencantosecretoeumaespadacomlâminadeprataapareceuemsuamãonolugardeles.Eleamanteveaoseulado,prontaparaserusada.
Derepente,amuralhadegranitodiantedeSonnycomeçouaoscilarcomoumamiragem,eentão se rachou. Uma luz espectral, iridescente, penetrou pela fissura aberta na pedra. Sob ofulgor, Sonny vislumbrou os vultos de seres minúsculos. Um rosto pequeno e enrugadoespreitou-o.AoveroJanoalipostado,acriaturanãosevirounemcorreudevoltaparaoReinoEncantado.Emvezdisso,deuumarisadinhaagudaeirritante.
Umapixie.Sonny tentounão revirarosolhos,enquantoenfiavaamãonabolsanovamentee retirava
um punhado de sal-gema. Atirou o sal no rosto malicioso da pixie. A criatura deu um gritoestridenteedesapareceudooutroladodafenda.
Essa foi fácil demais, pensou ele, arreganhando os dentes. Talvez nem tivesse de usar aespada,nofimdascontas.
Essareflexãofoiinterrompidaporumzumbidofurioso.EracomoseSonnytivesseacabadode jogar uma pedra em um vespeiro. Arranhando umas às outras e às bordas da fenda, umenxame de minúsculas pixies sedentas de sangue lançaram-se sobre ele, os corpos esguios epálidosbrilhandocomofacasnaescuridão.
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Sonnylevouquaseumahora,eacarnificina,mesmoemumaescaladiminutacomoadaspixies,foiconsiderável.
Enquanto limpavaosangueverdee reluzentedaspixiesda lâminadaespadaeguardava-aoutra vez, elenão sentiu remorso.Aspixies que o atacaramhaviam recebido o quemereciam.Nemtodasaspixieserammalévolas–algumas,lánoReinoEncantado,atécostumavamserúteis–,emboraassuastravessurasmalvadasfossemirritantescomoodiabo.
Noentanto,aquelastinhamsecomportadocomoverdadeirasassassinas,eemumnúmeromuitomaiordoqueodescritoemqualquerdosalertasqueSonnyrecebera.
Maddoxo atormentariapor causado tempoqueSonny levaraparaderrotar seresmágicostãoinsignificantes.SonnyseperguntoucomoMaddoxestariasesaindo.Etodososoutros,aliás.Como existiam apenas treze Janos, dificilmente seus caminhos se cruzariammuito durante asnovenoitesseguintes.Elestinhamoparqueinteiroparacobrir.
OchãoaospésdeSonnyestavarepletodecristaisdesal-gemaeachatadopelaspegadasdesuasbotas, emumcírculo irregularque seestendiaao seu redorporumpoucomenosde trêsmetrosdediâmetro.Naquelaloucura,elenãoperceberaquãograndeeraoenxame.Andoupelodiâmetro do círculo. Grande mesmo. Principalmente para criaturas com apenas uns quinzecentímetrosdealtura.
Sonnyobservouaterrapisoteadaefranziuocenho.Aquilonãofaziamuitosentido.Pixiesnãoeramos seresmágicosmaisespertos,mas,emgeral,elaserambemastutas.Ele
esperaria que elas tivessem se espalhado. Que caíssem sobre ele em ondas alternadas. Queencontrassemmaisdoqueapenasumabrecha.Noentanto,pareciaqueelashaviamlançadoumataqueemmassanaquelepontoparamantê-loocupadoepresoali…
Sonnypraguejoucomviolênciaegirouemcírculo,sondandocomsuapercepçãodeJano,queestivera tãoocupadaatéaquelemomento.Umasúbitaeofuscanteluzescarlateatravessou-lhe amente.Suas entranhas gelaram.Havia algo terrivelmente erradoemalgum lugar aoSul.Eleseesforçouparaseconcentrar–paraidentificaraluzofuscantenomapadesuamente…
Láestava.Oumelhor,estivera.Sonnysaiuemdisparada.Massabia,emseucoração,quejáeratardedemais.
#
Agachando-sejuntoàmargemdolago,Sonnyencostouafacenochãofrioeinspecionouasuperfíciedas águas, aindagirandoemum turbilhão iridescente–evidênciadeumapassagemrecentedoOutroMundoparaestereinopeloPortaldeSamhain.
Algomais,alémdaspixies,passarapeloPortal,bemrecentemente.Talvezcercademeiahoraantes.Sonnysedeitoucomafaceencostadanochão,paraterumavisãomelhor,efitou,aoníveldosolhos,asuperfícievítreadolago.
Ali.
Haviaumrastrofracamentebrilhantequelevavaparaforadaágua.Sonnyselevantoudeumpuloecorreuparainvestigar.
A terramaciadamargemdo lago tinha sido revirada e transformada em lama.Parecia teracontecidoalgumtipodeluta,oucomosealguémhouvessesidoarrastadoparaforadaáguaatéatrilha.Aquieali,Sonnyviuasmarcascircularesalongadasdoquesópodiamsercascos.
Agachou-senatrilha,paraobservarmaisdeperto.Ali era o Central Park, afinal de contas. Cavalos puxavam carruagens e cavaleiros ricos
conduziam suasmontarias pelos percursos equestres. No entanto, aquelas pegadas vinham decascos sem ferraduras.Eaáguaque seacumulavadentrodelasestavacobertaporumacamadairidescentemuitoreveladora.
Umkelpie?Sonnyrefletiusobreaspistasemsuamente.Emumadas pegadas, Sonny encontrou grossos pelos vermelhos de crinade cavalo e três
contasdeônixnegroreluzentes,esculpidasnaformademinúsculascabeçasdeveado.Guardounobolsoospeloseascontase ficouempé,olhandoaoredor.Comocantodo
olho,Sonnyviualgobrancoocultonagrama.Recolheuoobjetoeesfregou-ocomamão,afimderetiraravegetaçãoúmidadasuperfície.Eraumroteiro;asfolhaspresascomoemumfichário,com ferragens de latão. A capa havia se perdido, mas a página com a lista de personagenspermanecia quase intacta, apesar de manchada com uma pegada de casco, cujos contornospareciamlevementechamuscados.Notasmanuscritasestavamrabiscadasnasmargensenotopodapágina;umanotaescritaàcanetadizia“RoteirodaKelley”.Sonnyfranziuocenho,folheandoapeça,atéqueumtrechodediálogolhechamouaatenção.
“Querersairdobosqueéumplanovão!”,começavaafala,eSonny,surpreso,quaselargouasfolhas.
Eleescutaraaquelasmesmaspalavrasnãofaziamuitotempo.Sonnyvasculhouasmargensdolagoumaúltimavezeajoelhou-sejuntoàtrilha.Enterradosquasecompletamentenalama,jaziamosrestospisoteadosdeumaúnicarosacor
de pêssego. Sonny pegou uma pétala machucada e segurou-a diante dos olhos. O roteiro. AgarotadoJardimdeShakespeare.
Asuaestrelinha.Kelley…
V
Exausta,enlameadaeencharcadaatéosossos,Kelleydeuumchuteparafecharaportaatrásdesiegritouparachamaracolegaquedividaoapartamentocomela.Nãohouveresposta–Tyffdevetersaído,pensou.Melhorassim.Elaagoranãoestavamesmocomvontadederecapitularasuaestranhaaventuranoparque.Ofriodolagoaindalhegelavaosossos,emboraelahouvessecorrido os últimos poucos quarteirões até chegar à casa.O frio tornava seus processosmentaislentosepreguiçosos.
Tiritandoapontodebaterosdentes,Kelleyfoilargandoasroupasemumapilhanochão,arrancouamantadoencostodosofáeenrolou-aaoredordocorpo,enquantocambaleavaatéobanheiro e abria as torneiras do chuveiro, ajustando a temperatura para o nível mais quentepossível.Sabiaqueaúnicacoisaqueafastariaahipotermiaiminenteseriaomaislongoequentebanhoquejátomara,seguidoporumagrandecanecadechocolateaindamaisquente.
O banho foi maravilhoso – ela não imaginaria nada mais paradisíaco. O vapor subia emnuvensaoseuredore,comotempo,obaterdosdentesparoueosmúsculosrelaxaramobastanteparapermitirqueelaficasseereta.Quandoocalorrestaurouassuasfaculdadesmentaisemumgrau suficiente, Kelley se permitiu refletir a respeito dos bizarros acontecimentos daqueleentardecer.
Ao recobrar os sentidos, vira-se deitada com o rosto para baixo na trilha junto ao lago,cuspindo água turva, com o cavalo esfregando o focinho em seu ombro. Quando conseguirarecuperarosensodeorientaçãoelevantar-se,acriaturadesapareceranaescuridão,eKelleyhaviasidodeixadacomapenasalgunslongospelosavermelhadosencerradosemseupunhofechado.Encharcadaetremendo,elapegaraossapatos,ocasacoetudooquecaíradesuabolsaevoltaraparacasa.
Issoeraoqueelaselembrava.Contudo…AmentedeKelleyestavaumtantoconfusa.Elaselembrava–nosmomentosantesdeter
perdidoossentidos–deumamontoadodeimagens.Fugazesimpressõesdeluzesesons–umaestranhaebelamúsica…
Ou,parausarotermotécnico,privaçãodeoxigênio.Kelley apoiou a cabeça na parede ladrilhada. Pelo menos, ela não havia se afogado
realmente.Como era mesmo aquele velho provérbio? A sorte ajuda os loucos. Cavalo imbecil. Ela
esperavaqueeletivesseencontradoocaminhoparacasa.Comaáguacomeçandoaficarmorna,
Kelley,comrelutância,fechouastorneirasepuxouacortinaparaolado.Egritou.O “cavalo imbecil” estava bem diante dela, ocupando quase todo o espaço disponível no
minúsculobanheirocomo seugrandecorpoesguio.Aspatas traseirasdocavalo–na verdade,todaasuametadetraseira–aindaestavamdoladodefora.Metadedeleseachavanobanheiro,ea outra metade, no patamar da escada de emergência. Kelley via o vapor subindo do cavalo,dissipando-senoarfriodanoite.Elerelinchoubaixinhoeempurrou-lheoombrocomofocinhoaveludado.
Kelleyprocurouàspressasalgoparasecobriretentounãoentrarempânico.Quandodesejaraqueocavalo tivesseencontradoocaminhoparacasa,Kelleynãoquisera
dizeracasadela!Enrolou-seemumatoalhaecontornouoanimal,saindodopequenobanheiro.Assimqueconseguiu,fechouaportaentreelescomumestrondoecomprimiu-secontraela,ocoraçãobatendodisparado.
Istoéimpossível,elaajuizou.Istonãoestáacontecendo.Ela estava imaginando coisas. Sua cabeçahavia sido afetada pelo frio.Muito afetada.Não
comoquando se tomauma raspadinhamuito depressa e se temumador de cabeça.Não.Eracomoquandosepulaemumlagonofimdeoutubroesecomeçaateralucinaçõesdeverdade.
Ocavalogemeudeleve.“Pare com isso!” Kelley tapou os ouvidos com as mãos. “Você não é real! Eu não estou
escutandovocê,porquevocênãoéreal!”Ouviuoutroborbulharequinoatrásdaporta,seguidodesonsdecoisasarrastadasebatidas.
Depois,maisnada.Kelleydeslizouatésesentarnochão,comascostasapoiadasnaporta.Aquilonãoestavaacontecendorealmente.Porque,seestivesse,Kelleyteriaummontedeproblemas.
Suacolegadeapartamentoiriamatá-la.Ouexpulsá-ladoapartamento.SantoDeus,seTyffamandasseembora,talvezelativessedevoltarparacasa!Nãoqueatia
Emmahouvesse gostadoda ideiadeKelley semudarparaNovaYork, para iníciode conversa.ApenasofatodeKelleyterencontradoumlugartãobomparaficaréqueafizeraconcordar.TyffMeyerseramodelo–comosnervosàflordapele–,eKelleyselembravaclaramentedaspalavrasdoanúnciodelanalistadeclassificadosnainternet:
Quartoparaalugar:absurdamentecaro,ridiculamentepequeno,semvista,edifícioemUpperEastSide,c/cozinha/banheiro/saladeestarcompartilhados.Sóp/mulheressolteiras.Proibidofumar,beberou
incomodar.Nadadechegartarde,amigosbarulhentos,festasouqualqueresquisitice.Precisaserasseadaecivilizada,enãomexernasminhascoisas–principalmentealimentoseprodutosdehigiene.
Entrevistaobrigatória,comquestionárioarespeitodasqualificações.Casoestejaseriamenteinteressada,contate:[email protected].
NADADEMALUQUICES.NADADEANIMAISDEESTIMAÇÃO.
***
Umcavalonobanheiroviolavatantoacláusulade“NADADEMALUQUICES”comoade“NADA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO”, pensou Kelley, ainda tentando, desesperadamente,nãoentrarempânico.
Ficou agachada junto à porta por um longo tempo, a mente correndo como um tremdescontrolado.Aquilonãopodiaestaracontecendo.Depoisdeunspoucoselongosminutosdesilêncio,elaousouesperarqueoseuataquedealucinaçãohouvesseseencerrado.
Então,escutouosomdeáguacorrendo.Ajoelhando-se,aproximouoolhodoburacodafechadurae,estupefata,notouqueocavalo
havia passado inteiramente – impossivelmente – pela pequena janela e estava agora empénabanheira.
Pareciatambémestarpreparandoumbanho.
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“Não, senhora, não estou bêbada”, afirmou Kelley, pela terceira vez. Isso depois de terpassadoumahora e vinte e cincominutos tentando falar comumapessoade carne e ossonoDepartamentodeControledeAnimaisdacidadedeNovaYork.“Comofalei,eledevetersubidopelaescadadeemergência.”
Escutouumcliquenofone.“Alô?Alô?”Quaseindoàslágrimasdeexasperação,Kelleycolocouofonenoganchoecomeçouaandar
deum ladoparaooutro.Talvez amulherdoDepartamentodeControledeAnimais estivessecerta.Talvezelaestivessebêbada.Tudobem–elanãobeberanada,mas isso fazia tantosentidoquantoumcavaloadultosegui-laatésuacasadesdeoCentralParkcomoumcãozinhoperdido,subirpelaescadadeemergênciaeespremer-seporumajanelinhaminúsculaparaentraremseubanheiro. Ou não? Parou de andar de um lado para o outro e foi verificar a situação. Aindatorcendo, contra todas as probabilidades que ela estivesse, de fato, tendo uma alucinação,entreabriuaporta.Ocavalorevirouumgrandeolhocastanhoparaela,comexpressãointrigada.
Kelley suspirou de frustração e cansaço, e decidiu tentar retirar ela mesma o animal dabanheira. Tentou empurrar por trás, puxar pela frente, cutucar, espetar, ten tá-lo com umacenouramurchaqueencontraranofundodagavetadeverdurasdageladeira…
Ocavalopermaneceuamigávelotempotodo–alémdeteimosocomoumamula.O animal – um macho, ela notou – farejou-lhe afetuosamente o ombro, esfregou-lhe o
focinhonosdedosecontinuounãodemonstrandoabsolutamentenenhumaintençãodesairdabanheira, que estava cheia até ametade.Kelley se apoiounabeira da pia e enterrou a cabeçaentreasmãos,aindanãoacreditandoqueaquiloestivesserealmenteacontecendo.
Então, ela sentiu um aroma de lavanda, ergueu a cabeça e viu uma espuma brancabrilhandoaoredordaspatasdocavalo.
FoisóaíqueoestadodechoquedeKelleysedissipou,eopânicoseestabeleceudeverdade.
Ofatodehaverumcavaloemsuabanheiranãoeranada.AúnicacoisaqueimportavaparaKelley naquele exato momento era que o cavalo tinha virado uma garrafa do óleo de banhoabsurdamentecarodesuacolegadeapartamento,esvaziandooconteúdoroxocintilantenaágua.Agarrafa,comseueleganterótulodeletrasdouradas,flutuavanasuperfície.
Tyffiamesmomatá-la.
***
Porvoltadasquatrohorasdamadrugada,Kelleyseresignouaodestinoesaiuparaasaladeestar,afimdeesperarqueTyffvoltassedoencontrocomonamorado.Pelomenos,elapoderiatentardecoraralgumasfalasdoroteiro.Entretanto,alémdetodooocorrido,elanãoconseguiaencontraromalditoroteiro.
Aúnica coisa quepassavanaTVàquelahora damadrugada eram infomerciais; assim, elaacabouadormecendonosofáduranteumapromoçãodevendasdos“Hit-explosions:oshitsmaisexplosivosdosanos1980!”.Nofundodeseucérebrosonolento,osrefrõespegajososdoWham!seretorciamerodavamemtonsmenores,mesclando-seperfeitamentecomamúsicamisteriosaesedutoraqueKelleyescutaraquandoomundohaviadesaparecidoaoseuredorsobaságuasdolagodoCentralPark.Amúsicaacativara,conduzindo-aaumasequênciadepaisagensoníricasfantásticaseestranhas.
Contudo,aoacordartardenamanhãseguinte,nãopôdeselembrardamelodia.
VI
Querersairdobosqueéumplanovão…Eeuteamomuito…Olhos verdes brilhavampara ele das sombras sob os galhos de uma floresta de pesadelos.
Risadas ressoavam-lhe nos ouvidos. O martelar dos cascos dava-lhe a impressão de que o seucoraçãoexplodiria.
Euteamo…Longasmãosbrancasestenderam-sedaescuridão,chamando-o,eeledesejavasegui-lascom
todaasuaalma.Amo…Sonnydespertousobressaltadoquandoosgalhosdaárvore,pingandoveneno,esticaram-se
nadireçãodele.Sentou-senacama,noquartoescuro,e levouasmãosaopeitodolorido.Acabeça latejou
quandoeleselevantoueabriuaspesadascortinasdajaneladoquarto,fazendoumacaretaantealuz do fimdamanhã.Fazia umdia bonito lá fora.Comumgrunhido, ele fechou as cortinasnovamente,mergulhandooquartomaisumaveznaabençoadaescuridão.
Umabatidanaportaoassustou.SonnysentiuqueeraMaddox.“Entre”,gritouele,evestiuumpardejeanseumacamisetademangascompridas.“Boa tarde, Sonn”, Maddox o cumprimentou ao passar pelo batente da porta, o sorriso
amigáveldecostumeiluminavaoaposento.“Estátãoescuroaqui.Acaboudeacordar?”“É.”“PenseiemircomvocêatéoRamblehojeànoite.Algumaobjeção?”“Não.Ébomtercompanhia.”Sonny passou as mãos pelo cabelo negro e puxou-o para trás, em um rabo de cavalo,
prendendo-ocomumatiradecouro.“Ótimo.OPortalpertodocentrodoparquefoiumabsolutotédionanoitepassada.”“Nãopassounada?”,perguntouSonny, tentandoafugentaropesadeloque tivera epensar
emummododecontaraMaddoxsobresuadescoberta.“Não,achoquenão.Umenxameinteirodenixesirritadosnosdeuumpoucodediversãona
primeirahora,mas,depoisdisso,tudoficoucalmocomoumtúmulo.”Sonnyfranziuocenho,pensandonoencontrosimilarquetiveracomaspixies.Enofatode
que aquela distração o impedira de chegar a tempo de apanhar o que quer que houvesse
atravessadopelolago.Perguntou-sese todososoutrosJanoshaviamficadoocupadosdamesmaformanaquelaprimeirahora.
“OndeestavaoLobo?”,indagouele.“Ah,Fenrisnãogostademultidões…Vocêsabedisso.Eleassumiuaáreasuperiordoparque
como se pertencesse a ele. Vai ver até urinou em todos os arbustos por lá. Ele luta contraqualquer coisa… atémesmo outro Jano… que semeter no caminho dele.”Maddox lançou aSonnyumolharexaminador.“Falandonisso…Comofoiasuanoite?”
“Foi…interessante.”OsolhosdeMaddoxbrilharamdecuriosidade.“Algumacoisaasquerosa?”Sonnyfoiatéumarmárioeapanhouumpardebotaseumajaqueta.“Talvez.Escute,estoufaminto.Vamoscomeralgumacoisaeaíeucontooqueaconteceu.”
#
Sentadosàmesadofundodeumalanchonete,osdoisJanosestavamdistantesosuficientedos outros fregueses paranãoprecisar falar baixo,mas o assunto exigia queo fizessemmesmoassim.ComoSonnyhaviapredito,Maddoxachoumuitagraçanorelatodabrigacomaspixies.
“Não fique chateado, Sonn”, pediu ele, entre garfadas de uma omelete gigantesca compresunto,pimentãoecebola.“Pelomenos,nãoeramhinky-punks!”
“Nodiaemqueumhinky-punkmederrotar,eupenduroisto”,grunhiuSonny,dandoumtapinha no medalhão de ferro que pendia de uma corda trançada de couro, a qual trazia nopescoço.Oseu“distintivo”deJano.“Comomeupescoçojunto.”
“Especialmente considerando que eles só têm uma perna pra chutar!” Maddox riu e,empurrando o prato que tinha sido “limpo” até a últimamigalha, suspirou satisfeito. “Muitobem.Deixandodeladoosnixeseaspixiese todasessasninharias,porquenãomecontaoquedeixouvocêtãoencafifado?”
“Oquevocêquerdizercomisso?”“Quero dizer, velho Sonn, que alguma coisa que aconteceu ontem à noite deixou uma
nuvemdetempestadeemcimadasuacabeça,enãofoiumataquedepixiequefezisso.Vocêtemsensodehumorobastantepranãodeixaralgoassimaborrecervocê.”
Sonnypegouumacolherdecaféebrincoucomelaporummomento.Então,recostou-senoassentoecontouaMaddoxoqueaconteceraduranteotempoemqueestiverasedefendendodo ataque das pixies. Ou, pelo menos, o que achava que tinha acontecido – a teoria dele sebaseava,afinal,emprovascircunstanciais.
Maddoxficouemsilênciodurantetodoorelato,mordendoolábioinferior,pensativo.“Umkelpie,é?”,elequestionou,então.“Achoquesim”,respondeuSonny.“Pelodecavaloemarcasdecascosindicariamisso.”“Sabe…eununcavium.”
“Vium,umavez…demuitolonge…enquantoacompanhavaAuberonnumavisitaàsTerrasFronteiriçasdarainhaMab…Emgeral,elesficamjuntoaospântanos.Bichoshorríveis.”
NostemposemquetodososPortaisestavamabertos,sabia-sequeoskelpiesapareciamjuntoafontesdeágua.Tomavamaformadebeloscavalos,afimdeatrairmortaisdescuidados.Quandoalguémomontava,okelpiemergulhavanolagoourio,arrastandoainfelizvítimaparaoOutroMundo,ouparaamorteporafogamento.Algunskelpieschegavamadevorarsuasvítimas.
“Quandoeuerapequeno,vocêsabe,antesdeeuserlevado,ouvimuitashistórias”,contouMaddox. “Asvelhasdaaldeiaberravamcomo loucas sequalquerumdenós,crianças,chegassepertodemaisdasmargensdorio.Diziamqueokelpievirianosbuscarenoslevariaemborapranosafogar.”
“Bem,essejáhaviaidoemboraquandochegueilá,enãodeixoumuitaspistas.”“Emoutraspalavras,nadadesangueoupartesdecorposespalhadaspratudoquantoélado.”“Certo.Nadadisso.Sóarbustospisoteadoseistoaqui.”Sonnytirouascontasdepedrasnegrasdesuabolsaecolocou-assobreamesa.Aindahavia
algunsfiosdecrinadecavalo,reluzentescomofilamentosdecobre,amarradosàscontas.Maddoxapanhouumaeexaminou-aminuciosamente.“Hum.Estranho.Oqueéisso?”“Nãosei.”EledevolveuacontaaSonny.“É claro que a ausência de partes de corpos espalhadas pra tudo quanto é lado não quer
dizer,necessariamente,quenãotenhahavidoumrapto…”Sonny assentiu com a cabeça, sem dizer nada. Pensou, com preocupação, no roteiro
pisoteadoque encontrara enapossibilidadedeque algo terrível pudesse ter acontecido comagarota que se habituara a chamar de “Estrelinha” em sua cabeça. Após ummomento, decidiupediraajudadeMaddoxparaumpequenotrabalhodedetetive.
“Haviaalgomaisnoparqueontem,Madd.Oumelhor,alguémmais.”Maddoxserecostou,cruzandoosbraçossobreotórax,eesperou.Sonnytirouacópiarasgadadoroteirodabolsaecolocou-asobreamesa.ContouaMaddox
sobrea“anomalia”quesentiranoJardimdeShakespeare–agarota–esobrecomoencontraraoroteiromais tarde namargem do lago.Como Janos, nenhum dos dois eramuito inclinado aacreditaremcoincidências,eMaddoxestavaintrigado.
“Vocêteveumdiabemcheioontem”,elecomentou.“Nadamauparaonovatodo grupo,não é?Escute…Temosbastante tempoaté opôrdo
sol…Quervircomigoebisbilhotarumpouco?Verseconseguimosencontraraminhacriaturadesgarrada?”
“Qualdelas?Okelpie?Ouagarota?”“Euvejoascoisasassim:encontramosum…etalvezagenteacabeencontrandoooutro.”“Ecomopropõequefaçamosisso?”Sonnyapontouparaanotarabiscadanoroteiro:Ensaios:AvalonGrande,rua52.“Começamos visitando esse lugar.” Sonny apontou de novo para as letras, indicando que
aqueleerao“RoteirodaKelley”.“Efazendoalgumasperguntaspraessagarota.”
VII
“Nãoentreaí!”,gritouTyffparaKelley,enquantoestasearrastava,meiozonza,nadireçãodobanheiro.
Comamãonotrincodaporta,Kelleysevirouparafitar,comolhosenevoados,asuacolegade apartamento, que se achava postada no cantomais distante da sala de estar – tão longe dobanheiroquantopossíveldentrodoapartamento.
“Fiquelongedessaporta,Kelley!”,insistiuTyff,comolhosarregalados.Kelley fez o que ela mandava, tentando, ao mesmo tempo, fazer o cérebro começar a
funcionardenovo.Tyff devia ter chegado bem tarde – ou bem cedo –, e Kelley não a escutara entrar, pois,
exausta,caíraemumsonoprofundonosofá.Restosdesonhosconfusospercorriam-lheocérebro– umamúsica estranha da qual ela não se lembrava bem e luzes dançantes, o rosto pálido eperfeito de umamulher de olhos dourados e cabelos que flutuavam atrás dela como algas nacorrenteza.Ealgomais.Algoarespeitodeum…
“Cavalo!Temumcavalonabanheira!”Ah,claro.Umcavalo.Kelleyfechouosolhoscomforça.Nãotinhasidoumpesadelo,afinal.“Ahn…Tyff…”“Nabanheira!”, repetiuTyff,apontandocomumdedoimpecavelmentecuidado,os traços
demodelotensosporcausadainquietação.“Sobreisso…”Kelleyesfregouanuca.“Euialhecontar.Achoquecaínosono…”Kelley fitou com cautela a colega de apartamento que, por sua vez, fitava a porta do
banheiro.“Tyff,acrediteemmim…Seeusoubessequeelesairiadoparqueemeseguiriaatéaqui,eu
nãooteriasalvado.Istoé,não,euprovavelmenteoteriasalvadodequalquerjeito,masoqueeuquerodizeréque…”
“Espereumminuto.”AcabeçadeTyffgirounadireçãodeKelley.“Vocêestádizendoqueistoéculpasua?”
“Acho que é. Eu não tive a intenção,mas…”Kelley se interrompeu, confusa. “De quemmaispoderiaseraculpa?”
“Deixe isso pra lá.Continue a história”, ordenouTyff, fazendoum gesto para queKelleycontinuasse,osolhosaindafixosnaportadobanheiro.
KelleyafundounosofáecontoutodaahistóriaàTyff.
Quandoterminou,Tyffpareciaterseacalmado–umpouco.“Vocêpoderia,pelomenos,tirá-lodabanheira?”,elaperguntou.“Esseéoproblema.Elenãoquersemexer.Eutentei,nanoitepassada.Talvez…”Kelleyhesitouantesdesugerir,eacaboufalando:“Talvezagentedevessechamarapolícia.”“Não!Vocêestálouca?Seoproprietáriodoapartamentoficasabendodisso,nósduasvamos
paraoolhodarua!”“Eusei,eusei…Tambémpenseinisso.”Deumjeitoquenãolheerahabitual,Tyffmordiscoucomosdentesocantodeumaunha
pintada.Elaeraumamodelode“partesdocorpo”;recebiaumafortunaparaquesuasmãos,suaspernas e seus pés fossem fotografados para anúncios de revistas de luxo. Roer uma unha,portanto,era–paraTyff–umsinaldeenormetensão.
“Quediabosnós…oumelhor,quediabosvocêvaifazercomele?”“Eunãosei!”,gemeuKelley.Kelley se levantoucomocorpo rígidoemancouatéoquartoparaprocurar algumacoisa
paravestir.Nãotinhaamenorideiadequehoraseram,mas,ajulgarpelaluzquepenetravapelajanela,erabemmaistardedoqueeladesejaria.
Vestindoumacalçajeanseumagasalhocomcapuz,elafalou:“Escute,eutelefoneiparaoDepartamentodeControledeAnimaisdacidade,maselesnão
quiseramacreditaremmim.”Kelleyfoiatéaportadobanheiroeaabriu.Ocavalocontinuavalá,as patas mergulhadas na água perfumada, mascando placidamente o canto de uma toalha debanho.“Achoqueamulherqueatendeupensouqueeutinhafumadoalgumacoisa.”
Tyfffuzilou-acomosolhos.“Seissoéverdade,considerandoascircunstâncias,émelhorvocêmedarumpouco.”Elase
aproximouparaespiar,nervosa,porsobreoombrodeKelley.“Porqueele temessascontasnopelo?”
“Oquê?”Kelleynãonotaraaquilo.“Onde?”“Ali.” Tyff apontou. “E ali.Continhas pretas, brilhantes. Elas estão espalhadas por todo o
pelodele.Pelacrina.”Kelleyavançoumaisparadentrodopequenobanheiro, a fimdevermelhor.As luzesdas
lâmpadasserefletiamnasdezenasdecontasdeônix.“Não tenho amenor ideia…”Kelley estava perplexa. “Elas estão presas em toda a cauda
dele, também.Ei…Talvez sejaumcavalodecirco! Issoexplicariacomoeleconseguiu subiraescadadeemergência.”
Kelleyestendeuamãoparaacariciaroflancovermelholuzidiodocavalo,eelerelinchoudeprazer.
“Sabe,senósduasempurrarmos,talvezagenteconsigafazereleirparaasaladeestar…”Tyffergueuumasobrancelha,emcensurasilenciosaàquelaideia.OalarmedotelefonecelulardeKelleydisparou.Elafoiatéacozinha,ergueu-odobalcãoe
olhou para o relógio. Ela só teria ensaio à tarde, então provavelmente não havia problema…porém,ocelularjámarcava12h35.
“Ah,não!”Kelleynãoconseguiaacreditarquehaviadormidotanto.“Voumeatrasarparaoensaio!Precisosaircorrendo!”
AvozdeTyffassumiuumtomameaçador,aopassoqueKelleyseaproximavadaporta.“Kelley…”“Escute,Tyff…Temumsacodeaveiaem flocosentreos seusmantimentos,no fundodo
armáriodacozinha…”“Winslow…”Kelleyestremeceu.Tyffsóachamavapelosobrenomequandoestavarealmentezangada.“Será que você podia dar um pouco pra ele? Talvez você consiga atraí-lo para fora da
banheira!”“Vocêéumacompanheiradequartoexecrável.”“Voltareiassimqueoensaioterminar…”“Execrável.”“Ficareieternamentegrata,Tyff…Prometoquevoltoomaisdepressapossível!”“Nãodigaisso.Eunãoescuteiisso.Lá-lá-lá…”Tyffenfiouosdedosnosouvidosecontinuoucantando“lá-lá-lá”,enquantoKelleydeslizava
pela porta da frente e saía para o corredor tão depressa quanto seus pés dentro dos tênis lhepermitiam.AúltimacoisaqueelaescutouaochegaràrelativasegurançadopoçodaescadafoiogritoindignadodeTyff:
“Istoaquiéaminhaespumadebanhofrancesa?!”
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Quando Kelley chegou ao teatro, não sabia o que a fazia sentir-se pior – a culpa por terdeixadoTyffnumaenrascadaouosonoirrequietoquetiverananoiteanterior.Enquantoasfadasbailarinasseaqueciamnopalco,elaficousentadaemseucamarimcomacabeçaentreasmãos,lutandocontraumadordecabeçamonumental.
“Ei,menina…”KelleyergueuosolhoseviuMindiempénaentrada,comocorpetedotrajedeTitânianas
mãos. Tivera de ser reduzido drasticamente, e a maioria dos ilhoses dos laços havia sidosubstituída.
“Mandei o pessoal do figurino fazer o trabalho na noite passada, porque você precisa seacostumarcomelenocorpo.Estávendoaqui?Elesacrescentaramumarrematecomrendapraesconderascosturasqueprecisaramfazer.Oqueacha?”
Kelleypassouumdedopeloarremate,apreciandootrabalho.“Puxa,Mindi…É lindo! Parece novinho em folha.”Olhou para o rosto damulhermais
velha,sentindo-sesubitamenteculpada.“AchoqueissosignificaqueBarbaranãovaimesmovir,né?”
“Francamente, querida, acho melhor assim. Você está fazendo um trabalho muito bom.Bem,pelomenos…vaifazer.Sabecomoé,aquilodeontem…foioseuprimeiroensaio,nãoé?”
Mindideudeombros.“Eessepapelprecisavade sanguenovo, sequer saberaminhaopinião.Agora,deixe-meverseestábemajustado…”
MindivirouorostodeKelleyparaoespelhoeenvolveu-lheapartesuperiordocorpocomotrajerígidoecintilante,segurandoasduasextremidadesjuntasàscostas.
“Perfeito.”Kelley sorriu pela primeira vez naquele dia. Vestir o traje sempre era uma das melhores
partesdetodooprocessoparaela.Mirouseureflexonoespelhoequasepôdeverumarainhadasfadasespreitandoalidentro,emalgumlugar.Aluzserefletiunosfalsosdiamantes,ressaltandoabainhasuperioreafrentebordadadocorpete.
“Ei,Mindi?”Kelleytocouemseucolar,quetambémbrilhavanoreflexodoespelho.“Vocêachaqueeupossoficarcomestepingenteduranteoespetáculo?”
“O que é isso?”Mindi observou pelos óculos demeia armação equilibrados na ponta donariz.“Umtrevo-de-quatro-folhasoucoisaparecida?”
“Issomesmo…Apedraéâmbarverde.Minhatiamedeuquandoeuerabebê.Éumtipodeamuletodasorte”,confessouKelley,revirandoosolhosdeleve.
“Claro, querida”, respondeuMindi. “É bonito. O verde combina com o seu traje. E, naminhaopinião,estaproduçãoprecisadetodaasortequepudermendigar,emprestarouroubar!”
“Obrigada,Mindi.”“Denada.Agora, saiadaqui.Vocêprecisaentrarnopalcoparaacenadocaramanchãoem
cincominutos.”Tirandoasasasdoganchonaporta,Kelleyatravessouocorredoràspressas,deixandopara
trás,nocamarim,ocansaçoquepesarasobreeladurantetodaamanhã.
VIII
OAvalonGrandeera,naverdade,umavelhaigrejatransformadaemteatro,ereservavamaisde uma surpresa para Sonny eMaddox. Além do fato de que era desconcertante assistir a umbandodemortaisqueandavamdeumladoparaooutrofingindosernobresdasCortesdosSeresMágicos, era ainda mais desconcertante descobrir que nem todos os atores eram realmentemortais.FoiMaddoxquemnotou.
“Vejasó”,murmurouele,emumtomdevozquefezcomqueSonnysevoltasseparafitá-lo.“Alitemosalgomuitointeressante.”
SonnyesticouopescoçoparaveroqueMaddoxhaviavisto.“Oquê?Onde?”“Ali.”“Maddox, se você está apontando para alguma coisa, eu não estou vendo. Nós estamos
invisíveis”,sussurrouSonny.Eles tinhamseescondidoemumaalcovaescuranosbastidorese invocadopoderososvéus
paraseproteger.“Aqueleali,vestidocomatúnicaverde.AquelequefazopapeldePuck.”“Oquetemele?”“Vamosdizerqueelenãoestáexatamente‘representando’opapel.”OsolhosdeSonnysearregalaram.“Eleéumbucca?”“Silêncio!”Osvéuspoderiamescondê-losdavistadesereshumanos–atémesmodeoutroJano–ede
todososseresmágicos,excetoosmaispoderosos,masnãoocultavamossonsdesuasvozes,eaacústicadoprédioerasurpreendentementeboa.
“Desculpe.”Sonnyobservouoatordeverde,quefaziaacrobaciaspelopalco.“Estáfalandosério,Madd?”
“Seriíssimo.”OtomdeMaddoxtingia-sedepreocupação.Osbuccaseramumaespéciemágicarara,quase
tão poderosos quanto a mais alta realeza dos seres mágicos. Tipicamente misteriosos enotoriamente inconstantes em seuhumor e em suas alianças, eles costumavam servir às váriascortesdeseresmágicos,porém,emgeral,preferiamservirasimesmos.Ondequerqueexistisseumbucca,ashistóriasdetravessurasetumultosproliferavam.Eleseramumgrupoanimado,mastambémtinhamfamadeperigososquandoprovocados.
Sonny estava em dúvida: a figura que dava cambalhotas como um palhaço pelo palco,pendurando-sedecabeçaparabaixopelosjoelhosemumandaimeenquantodiziasuasfalas,nãopareciamuitoameaçadora.
“Por todos os deuses! Não admira que tenha vindo parar num teatro. Os buccas são unspalhaços,elesesuasmalditaspantomimas.”
“Poisé,mas…eunãoochamariade‘palhaço’nafrentedele,sefossevocê.”“Ai, estoumorrendo demedo”, zombouSonny,mas direcionou os seus sentidos de Jano
paraobuccaparaverseentendiaoquetinhaneleparadeixarMaddoxtãoimpressionado.Depoisdeuminstante,elefranziuocenho.“Nãoestoucaptandonadavindodele.”
“Nãoestámesmo,nemvaicaptar.”HaviaprofundorespeitonavozdeMaddox.“Esseaínãoé umbucca qualquer. Amagia dele é antiga. Poderosa. Um bucca como esse consegue passardespercebidopeloseuradardeJanosemprecisarsequerseesforçarmuito.”
“Comovocêtemtantacerteza?”“Eu o conheço. Eu costumava vê-lo entrando e saindo daCorte do Inverno nos tempos
antesdeAuberonfecharosPortais.Antesdoseutempo,Sonn.”Sonnypestanejou.“VocênãoestáquerendodizerqueeleéoPuckoriginal,está?”“Nãosei…”Maddoxficoupensativo.“OuvifalarqueoverdadeiroPuckestápresonoreino
mortalhácercadecemanos.Fechadonumpotedemel,enterrado sobuma rochaemalgumlugardaIrlanda.Desdequeelefezumacoisaquedeixouumleprechaunzangadopravaler.”
“Uau.”Sonnyassobioubaixinho.“Gostariadesaberoqueelefezpramerecerisso…”“Quem sabe? Considere isso uma história de alerta.” Maddox deu uma risada. “Os
leprechaunstambémtêmumaboadosedemagiaantiga,enenhumsensodehumordiscernível.”De um assento na plateia, um dos mortais – o diretor, ao que tudo indicava – havia
interrompido a cena do bucca, aparentemente satisfeito com o desempenho dele (ou talveztivesse apenas se cansado de dizer a “Puck” que “parasse de ficar pulando por todo omalditopalco”).Dequalquerforma,elespassaramaumacenaemqueagarotaqueSonnyencontraranoparqueparticipava.
“Vamoslá…Vamoschegarmaisperto”,sussurrouSonnyparaMaddox,enquantoadentravaascoxias,aproximando-sedopalcopropriamentedito.
“Porquê?”“Talvezagenteconsigadescobriralgumacoisasobreela.Sabecomoé…Umapista.”“Façacomoquiser.Eunãovouchegarnemumcentímetromaispertodoqueonecessário
daquelebucca.”“Tudo bem. Então vá dar uma olhada lá fora. Veja se encontra um kelpie amarrado em
algumlugar.”“Nãoentendonemmesmoporquevocêachaqueexistealgumaligação.Essagarotapoderia
terperdidooroteiromuitotempoantes”,resmungouMaddox,viran do-separasair.“Elepodeterficadolájogadodurantedias.Semanas.”
Sonnypensaranessapossibilidade,maseletambémhaviavistoagarota–“Kelley”–comomesmoroteiroapenasumaouduashorasantesdetê-loencontradojuntoaolago.Eleencontrara
a rosadespedaçada.Eradela, semdúvida.Ele sabia.Agora,ele sóprecisavadescobriroqueelaestiverafazendolá.Eoqueelasabia,seéquesabiadealgumacoisa,sobreumperigosocavalomágico.
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“Eia!Aorondóeaumacançãodefadas…”Agarota fezasuaentradapeloarconocentrodopalco,erguendoabarradasaia, subindo
graciosamente um lance de escadas até a plataforma flutuante suspensa por cabos querepresentavaocaramanchãodeTitânia.Grinaldasdefloresdesedapendiamdoaltodospostes,comramosdeheraentrelaçados,ecortinasdegazeeorganzacaíamempainéistransparentesnaslateraisenosfundos.Ocenáriotodoerailuminadoemtonsdeverde,douradoeazul,paraimitarumaflorestasombreada.
Atéqueébonito,pensouSonny,masnãosepareciaemnadacomnenhumdoslugaresqueTitâniaesuaCortedoVerãocostumavamfrequentar.
Asasdegazebrotaramdosombrosdagarota,presascomtirasdeelástico.Dealgummodo,apesardosridículosartifícios,“Titânia”transmitiaumtipodeelegânciamágicaàsfalas,enquantodistribuíaastarefasentreseusajudantesmágicos.
“Outros de vós espantai a coruja que pia a noite toda enquanto observa nosso estranhobando.” A garota terminou de dar ordens, reclinando-se entre almofadas. “Cantai agora entãoparaqueeudurma,depoisparaotrabalhoretirai-vos.”
Algumasdasfadasbailarinassaíramvoandoparaosbastidores,afimdecumprirasordensdarainha, enquanto as demais se agrupavam, ajoelhando-se ou empoleirando-se nas traves docenário.Elascomeçaramacantar:
Serpentesdeduaslínguas,pontilhadas,Afastai-vos.Ouriçosespinhosos,Salamandras,licrançosasquerosos,Nãoperturbeisarainhadasfadas.AestranhaletradacançãodeShakespearecortouosares.Filomela,vemcantarAcantigadeninarLá,lará,lará,lará.Acançãoeracomoumfeitiço.Asluzesdopalcop