1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CORPOS INATINGÍVEIS: UMA ANÁLISE DO DISCURSO DA MÍDIA RELIGIOSA
SOBRE OS CORPOS NÃO-HETEROSSEXUAIS
Wellton da Silva de Fatima1
Orientadora: Prof. Dra. Bethania Mariani2
RESUMO: Inscrita no quadro teórico-metodológico da Análise de Discurso de linha francesa, mais especificamente
aquela filiada aos domínios do conhecimento trabalhados por Michel Pêcheux na França e Eni Orlandi no Brasil, esta
pesquisa se dedica a apresentar reflexões iniciais do projeto de dissertação de mestrado a ser defendido no Programa de
Pós-graduação em Estudos da Linguagem da UFF e visa algumas reflexões sobre os corpos como objetos simbólicos.
Partindo da ideia de que a diferença entre os gêneros é construída discursivamente atuando como “efeito de um
processo de interpelação complexo e contraditório” (ZOPPI-FONTANA, 2013), propomos investigar a produção dos
sentidos no âmbito do discurso religioso neopentecostal sobre as sexualidades ditas desviantes. Sendo o discurso
religioso uma modalidade de discurso autoritário (ORLANDI, 1987), compreendemos que o estatuto de interpretação
diante de diferentes objetos simbólicos, tais como o corpo, se dá de maneira específica no que se refere à produção dos
sentidos. A partir deste trabalho, cujos enunciados foram recortados da materialidade linguística do Jornal Folha
Universal da Igreja Universal do Reino de Deus, foi possível construir algumas reflexões sobre a forma como o corpo
não-heterossexual é significado e situado no lugar da diferença.
Palavras-chave: Análise de Discurso; discurso religioso; sexualidade; corpos; objetos simbólicos.
I. Introdução
Gostaríamos de iniciar a introdução deste recorte de nossa pesquisa propondo uma breve
retificação. Em nosso trabalho de dissertação, está sendo possível investigar de forma mais ampla
os processos discursivos produzidos no interior do Jornal Folha Universal acerca do que temos
chamado de corpos desviados3. Todavia, neste trabalho, pela limitação de caracteres e também pela
necessidade de assumir um enfoque, não é exatamente diante da “não-heterossexualidade” que nos
colocaremos, mas também sobre uma suposta “não-cisgenereidade” possível no imaginário de nossa
formação social, que, por sua vez, significa gênero e sexualidade como se fossem categorias
1 Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem na UFF; integra o LAS
(Laboratório Arquivos do Sujeito); é financiado pela CAPES.
2 Professora titular do Departamento de Ciências das Linguagem e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagem da UFF; coordenadora do LAS (Laboratório Arquivos do Sujeito); pesquisadora 1C do CNPq.
3 Comentaremos sobre essa noção nas reflexões acerca do objeto.
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mesmas. Trataremos, portanto, dos corpos desviados 4 e não somente dos corpos “não-
heterossexuais”.
Objetivamos, pois, nesse recorte, analisar uma matéria da coluna “Antes e depois” do jornal
Folha Universal, na qual comparecem sentidos sobre o gênero e a sexualidade
A Igreja Universal do Reino de Deus – detentora do Folha Universal -, doravante IURD, é
uma igreja de corrente neopentecostal. Isso significa que, além de se identificar com o avivamento
divino fundado a partir da narrativa do dia de pentecostes5, mantém uma relação de proximidade
com o que se prega na Teologia da Prosperidade. Prega-se, portanto, a abundância6 compreendida
como sucesso financeiro.
Procedemos, portanto, neste trabalho, a uma investigação de como o corpo7 – como objeto
simbólico – é significado nos dizeres da instituição. Consideramos a forma como a Teologia da
Prosperidade atualiza o funcionamento do discurso religioso, possibilitando a materialização de
formas específicas pelas quais os sujeitos se relacionam com o objeto simbólico. Para isso, nossa
reflexão se dará a partir de uma das edições jornal da igreja, nas condições de produção que
situaremos adiante.
II. A teoria que nos ancora
A Análise de Discurso, inaugurada a partir dos estudos de Michel Pêcheux (2014 [1969]) e
desenvolvida no Brasil por diversos pesquisadores, sobretudo por Eni Orlandi, que introduz os
estudos discursivos no Brasil, na UNICAMP, na década de 80, constitui-se como uma disciplina de
entremeio.
A noção de entremeio é retomada por Mariani (1997), afirmando que “por refletir no
entremeio das ciências humanas e sociais, a AD provoca uma permanente reterritorialização de
4 Referimo-nos ao nosso artigo publicado na revista Letras Escreve - (FATIMA, no prelo)
5 Essa narrativa bíblica se encontra no livro de Atos dos Apóstolos (Capítulo 2, versículos 1 – 47). Nela
há menções da manifestação do Espírito Santo através do fogo divino; há também a manifestações das chamadas
línguas repartidas, também em função da intervenção do Espírito Santo, e que, apesar de todos falarem língua diferentes
(repartidas), todos se ouviam e se compreendiam; dentre outras menções que há na narrativa, destacamos uma última:
os dizeres sobre a venda de propriedades que ocorreu para divisão entre todos, presentes no versículo 45.
6 Essas menções encontram-se no livro de João (Capítulo 10, versículo 10)
7 Tratamos, aqui, do corpo em sua forma física enquanto um objeto simbólico e constitutivo da maneira
de se significar os sujeitos
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conceitos ligados às teorias da linguagem e da ideologia.” (MARIANI, 1997, p.34). E a autora
prossegue:
Entendemos por reterritorializar, aqui, o gesto que Pêcheux, no intuito de promover uma
ruptura no campo dessas ciências, provoca ao deslocar criticamente as seguintes noções: 1)
linguagem vista como instrumento de comunicação de informações; 2) sujeito como
indivíduo (do modo como a sociologia e/ou a psicologia descrevem); 3) ideologia como
ocultação ou máscara (que seria responsável pela perpetuação da dominação de uma classe
sobre a outra, de acordo com uma certa leitura de Althusser); e 4) sentido ligado às
condições de verdade (conforme a semântica lógica sempre prescreveu.” (MARIANI, 1997,
p.34)
Esse gesto de reterritorialização nos é caro, pois na esteira de algumas pesquisas mais
recentes em Análise de Discurso, refletimos sobre a noção de objeto simbólico para além da língua.
Desse modo, atentos às diferentes imbricações de materialidades significantes que se apresentam na
questão que temos discutido, procedemos em total consonância com essa teoria que “[...] visa a
compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de
significância para e por sujeitos.” (ORLANDI, 2013, p.26)
No que se refere ao seu objeto, é necessário dizer que
A AD se propõe a discutir e a definir a linguagem e a natureza da relação que se estabelece
com a exterioridade, tendo em vista seu objetivo principal de compreender os modos de
determinação histórica dos processos de produção dos sentidos na perspectiva de uma
semântica de cunho materialista. (MARIANI, 1996, p.21)
A Análise de Discurso, então, mobiliza conhecimentos da linguística, do marxismo e da
psicanálise, reterritorializando-os em seu campo para pensar a linguagem, a história e o sujeito em
suas relações na produção dos sentidos.
A partir dos conceitos advindos dessas três regiões do saber, o que se apresenta é uma
articulação de noções que nos conduzem a compreender que na Análise de Discurso
a) a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da
Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem); b) a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); c) o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também pelo
real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em
dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.” (ORLANDI,
2013, p.20)
Sendo assim, o sujeito descentrado, inscrevendo-se na discursividade a partir da língua, é
afetado – interpelado – pela história e a partir desse processo que se torna possível a produção dos
sentidos. De acordo com a teoria
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais 'todo mundo sabe' o que é um soldado,
um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc.. evidências que fazem com que uma
palavra ou enunciado 'queiram dizer o que realmente dizem' e que mascaram, assim, sob a
'transparência da linguagem' aquele que chamaremos o caráter material do sentido das
palavras e dos enunciados. (PÊCHEUX, 1995 [1975], p.160).
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Desse modo, a evidência do sentido recobre a opacidade do dizer, direcionando o sentido
sem deixar perceber que ele pode ser outro.
Aliás, é também a partir da ideologia e de seu funcionamento que se pode saber o que é um
homem ou uma mulher. E, até mesmo, compreender (ou não) o que se desvia dessas categorias de
gênero (o masculino e o feminino) que se inscreveram como sentidos hegemônicos no decorrer da
história.
É a partir dessa disciplina de entremeio que nos lançamos a investigar a produção dos
sentidos em nosso objeto, atentos, sobretudo, à forma como se dão a inserção do sujeito, da história
e da língua nos temas que mobilizamos.
III. Reflexões acerca do objeto – Dizeres sobre o gênero e sobre a sexualidade: uma
abordagem discursiva
Para nós, o que importa, em termos de investigação analítica, é perceber como esse “dizer
sobre”, pelo qual a IURD enuncia as questões vivenciadas pelos sujeitos, – no que se refere ao
gênero e à sexualidade – funciona discursivamente.
Ao enunciar sobre tais questões no âmbito do jornal – portanto a partir de uma ordem social
desambiguizada atuando na constituição da ilusão dos consensos e dos dissensos (MARIANI, 1996,
p.44) – a IURD as coloca como objeto – um processo de referenciação. Estamos atentos ao efeito de
verdade que pode se constituir a partir da ideia de imparcialidade que deriva da forma jornalística,
sendo o discurso jornalístico um discurso autoritário8 no qual fala a voz do especialista, tendendo,
portanto, à monossemia, ao mesmo.
Mariani (1996), ao refletir acerca do funcionamento da imprensa, diz que
Um efeito imediato do falar sobre é tornar objeto aquilo sobre o que se fala. Por esse viés, o
sujeito enunciador produz um efeito de distanciamento […] e marca uma diferença com
relação ao que é falado, podendo, desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões etc.
justamente porque não se 'envolveu' com a questão. (MARIANI, 1996, p.62)
Vale a pena, para nós, recuperar que essa produção de juízos de valores discutido pela autora
no âmbito político, ocorre também no âmbito da mídia religiosa. Diferentemente do jornalismo
político, não há condições para que a mídia impressa religiosa dissimule esse seu caráter primeiro,
8 Tipologia de discurso descrita no livro “A linguagem e seu funcionamento” (ORLANDI, 1987)
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pois é a partir desse lugar – o religioso – que, inclusive, ela se constitui e se apresenta ao
sujeito/fiel.
O fato de haver essa impossibilidade de dissimulação de sua posição não interfere, todavia,
na forma como os citados juízos de valores são enunciados como evidência. É necessário lembrar
que a formação discursiva em que essa posição está inserida, determinando o que pode ser dito (e
lido, diga-se), é constituída em relação ao cristianismo e, mais especificamente, ao protestantismo
neopentecostal. Dito de outro modo, os sujeitos/fieis inscritos nessa discursividade já se orientam
sobre o que é certo e sobre o que é errado a partir de uma memória do dizer. Essa memória, por sua
vez, fornece elementos para que determinados objetos simbólicos sejam significados de um modo e
não de outro.
Ao falar sobre o gênero e a sexualidade em suas matérias, o jornal coloca essa temática
como (seu) objeto, e o faz de maneira específica. Tanto a identidade de gênero quanto a orientação
sexual de quem se fala são situadas em um certo lugar a partir desses mecanismos discursivos que
nos pusemos a descrever.
Esses mecanismos perpassam pela constituição histórica da religiosidade cristã e as
interdições do dizer que funcionam na discursividade dessa religião. A sexualidade, então,
apresenta-se como um grande tabu: a doutrina prescreve que o objetivo do sexo é a procriação da
espécie. Isso (se) constitui também, por exemplo, (n)a narrativa do dilúvio protagonizada por Noé9
e sua família, que, de acordo com o que se conta, precisaram repovoar o mundo.
O lugar da homossexualidade, por exemplo, nessa narrativa, é um não-lugar. As
sexualidades desviantes não fazem sentido nessa discursividade, pois através delas não há
procriação. Souza (1998), ao analisar a enunciação da sexualidade, através de cartas escritas por
pessoas homossexuais, demonstra que a sexualidade vivenciada por esses sujeitos era significada no
âmbito do privado (contraposto ao público), e que isso se deu, em grande parte, pelo funcionamento
de uma memória que intervem a partir da lógica religiosa.
Retornando à relação que se estabelece entre o Jornal da IURD e às questões de sexualidade,
é possível afirmar que há, no modo de funcionar da imprensa, uma relação estabelecida que se
reproduz tal e como o modo de funcionar da/na lógica religiosa.
9 Essa narrativa é encontrada na bíblia, mais especificamente no livro de Gênesis (Capítulo 9, versículos
1 - 29)
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Mariani (1996), refletindo sobre o jornalismo político, propõe como uma das propriedades
do discurso jornalístico “a sua submissão ao jogo das relações de poder vigentes” e também “a sua
adequação ao imaginário ocidental de liberdade e bons costumes”. (MARIANI, 1996, p.67). É,
sobretudo, através dessa noção de bons costumes – advinda em grande parte da religiosidade cristã
– que o sentido hegemônico possibilita uma censura na forma com que se atribui significação a
determinados objetos simbólicos.
Esses objetos simbólicos cuja significação é censurada, aparecem como não sentido em
primeira instância, mas impregnam-se de significância pelo fazer jornalístico, cuja tarefa é dar
sentido aos objetos para o seu leitor (MARIANI, 1996).
Ao surgir no jornal como tema, esses corpos estranhos – ao que ali costuma se apresentar
como semanticamente estável – são significados de uma certa forma. O sujeito/leitor envolvido
historicamente não percebe a forma como esses sentidos sutilmente se inscrevem e se naturalizam.
Nessa relação em que o jornal da IURD se coloca a dizer sobre questões de sexualidade –
nas quais também comparecem sentidos sobre o gênero – o que se apresenta para nós é uma questão
de leitura. Como são lidos os corpos desviantes materialmente ditos nesse jornal? Essa é uma
pergunta à qual estamos atentos ao analisar a matéria/objeto deste artigo.
IV. Os corpos desviados no discurso do jornal da IURD
Conforme temos definido em nossos trabalhos, os corpos desviados são aqueles cujos gestos
e performances estão desviados do padrão – com relação ao gênero, à sexualidade e suas formas de
expressão – que se estabeleceu historicamente por e para os sujeitos. Dito de outro modo, esses
corpos, ao ocupar um não-lugar no que tange à constituição dos sentidos, são significados a partir
da lógica binária de gênero10, tendendo a serem domesticados pelo sentido hegemônico sobre o
modo de se estar no gênero. Esses sentidos, por sua vez, funcionam a partir de um imaginário
determinado.
Em nosso gesto analítico, estamos compreendendo que esse corpo permite significar algo
que é simbolizável, mas que não é apreensível. O corpo, como objeto simbólico, insere-se
discursivamente no processo de significação à medida que, estando diante dele, o sujeito é
interpelado à interpretação. Reveste-se, desse modo, esse objeto simbólico de significações, e é a
10 De acordo com essa lógica, homem e mulher são as posições possíveis de se expressar no gênero. São
duas categorias estanques que não dialogam entre si.
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partir daí que se constitui um imaginário específico. Trata-se, portanto, de considerar que “o corpo é
um lugar de opacidade que ganha sentido pelo olhar”. (AZEVEDO, 2014, p.323).
O gesto analítico que estamos cunhando se dá na esteira do que escreve Azevedo (2014), ao
refletir sobre o corpo como forma material. A autora visa “compreender o corpo como discurso,
considerando o modo como a corporalidade é formulada em diferentes materialidades
significantes.”(AZEVEDO, 2014, p.322), em nosso caso, as materialidades são a língua e a
fotografia.
O simbólico é, aqui, concebido na demonstração de que os objetos, a priori sem
significância, terão seu valor atribuído a partir de um sistema de oposições. Esse corpo “estranho”,
constituindo-se a partir de gestos e vestimentas diferentes daquilo que se espera, é significado em
oposição àquilo que já está posto. O seu valor será atribuído a partir desse processo de individuação
que se dá mediante oposições de sentidos que foram domesticados pela forma como o feminino e o
masculino se constituíram ao longo da história.
Ao abrir a edição 1150 do jornal na página 7, logo após a reportagem da capa, que está na
página 6, o leitor do jornal da IURD se vê diante da coluna “Antes e depois”, contando a história de
jovem Juliana. Sobressaem aos olhos do leitor, no esquema gráfico e imagético pelo qual a página é
diagramada, as imagens no que seria o “antes” - fotos de Juliana vestindo roupas que se pode
atribuir ao masculino – e também imagens do “depois” – fotos de Juliana vestindo roupas não
somente atribuídas ao feminino, mas que materializam também uma certa maneira de se estar no
feminino.
O gesto analítico que empreendemos também se dá no sentido de perceber como essa
articulação entre as materialidades verbais e imagéticas se entrelaçam no processo de significação
do corpo que está em questão.
Para isso, confrontaremos os dizeres da matéria, não somente com as imagens, mas também
com os dizeres do título da matéria, – que trazem um dizer da própria pessoa Juliana – escritos em
fontes sobressalentes no que se refere ao tamanho das outras palavras da matéria, conforme, aliás,
espera-se de um título.
Há, então, os primeiros dizeres: “Eu agia como homem para me sentir segura” (Folha
Universal, edição 1150, p.7). Essa formulação presentifica uma memória que se constitui no bojo
das relações de gênero – no que se refere às diferenças – em nossa formação social. Os sujeitos
plenamente identificados com o imaginário do que é um homem, exercendo sua virilidade,
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supostamente desfrutam de maior segurança. Isso se dá, inclusive, pelo fato de que empiricamente a
maioria das violências sofridas por mulheres são cometidas por homens.
Para além disso, a forma de dizer sobre si, pela qual a pessoa se apresenta, demonstra a sua
inscrição na ilusão referencial de controle de si. Dito de outro modo, qualquer possibilidade outra
que possa justificar a forma como seu corpo performa no interior dessa noção de gênero, fica, de
início, descartada na ilusão desse controle. Há, já no título da matéria, a constituição do gênero
como algo manipulável pelo sujeito, e não inerente a ele.
A representação de Juliana nas imagens também atua, de forma importante, no processo de
significação pelo corpo. São quatro imagens, e em três delas apresenta-se o que o jornal situa
discursivamente como o “antes” de Juliana.
O “antes” consiste na utilização, por parte de Juliana, de roupas tipicamente consideradas
como masculinas: na primeira imagem, uma espécie de terno, utilizando gravata, com tons escuros
e remetendo a uma formalidade; na segunda imagem, roupas mais despojadas, características do dia
a dia, com a utilização de boné e óculos escuros. O cenário é uma praia; na terceira imagem do
“antes”, a pessoa aparece também com roupas despojadas tal como na imagem anterior, mas dessa
vez posando ao lado de um rapaz, que usa o mesmo tipo de vestimenta.
O “antes”, todavia, não se constitui somente a partir da vestimenta. Há, na inserção do corpo
de Juliana, através de seus gestos, maneiras de se estar no gênero que se constituem a partir de uma
memória do que é ser homem ou mulher – nesse caso, do que não é ser uma mulher. Esses gestos,
compreendidos aqui como maneiras pelas quais o corpo se coloca, são significados juntamente à
vestimenta – anteriormente descrita – e são reiterados pelos dizeres que seguem na matéria.
Para a Análise de Discurso, nós, sujeitos, somos convocados a interpretar diante de um
objeto simbólico. Não há como não interpretar a maneira como o corpo de Juliana é inserido na
matéria e, mais do que isso, não há como evitar o trabalho histórico que intervem por uma rede de
memória que se constitui sobre os gestos pelos quais esse corpo performa. Aqui, atua fortemente o
que concebe Orlandi (2004) sobre a migração dos gestos em relação à identidade: a autora cita a vã
tentativa de enquadrar o corpo em seus limites no processo de significação.
Reproduzindo palavras que Juliana teria ouvido de sua sobrinha, o jornal grafa o seguinte
enunciado: “Eu te odeio porque você se transformou em um monstro” (Folha Universal, edição
1150, p.7). Chamamos atenção para a forma como determinadas materialidades funcionam nesses
dizeres, principalmente quando colocadas em tensão com as imagens e com o título da matéria.
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Estamos atentos ao fato de que é pelo interdiscurso que a memória ganha corpo, materializa-
se e se atualiza. Orlandi (2013), define a memória do dizer como “o saber discursivo que torna
possível todo o dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada de palavras” (ORLANDI, 2013, p.31).
Atuam, intervindo pela memória, nesse enunciado, sentidos sobre a transformação que
funcionam de outro modo. À medida em que o corpo de Juliana se inscreve discursivamente no que
se pode compreender como gestos e performances masculinas, materializam-se sentidos sobre a
transexualidade.
“Transformar” atua fortemente nos processos, por exemplo, de adequação de gênero e
também no processo de transgenitalização. Todavia, os sentidos sobre a transformação na
formulação em questão, dá-se pela negativização em decorrência da determinação que se segue:
“transformou em um monstro”. A negativização, refletida por Mariani (1996, p. 177), dá-se
principalmente pelas denominações e pela forma como um imaginário efetivo vai se instaurando.
Para nós, de forma semelhante, esse processo de negativar se sustenta por uma certa noção de
moral, característica de modos mais conservadores de se pensar as liberdades individuais.
A retomada desses sentidos sobre a transformação pelos quais passam pessoas em processo
de adequação de gênero é atualizada nos dizeres do jornal. Essa atualização se inscreve em uma
determinada direção que, como vimos, tende ao sentido hegemônico, aquele no qual essa outra
possibilidade de se estar no gênero não faz sentido.
Soma-se a isso, os dizeres que aparecem sobre um “querer mudar de vida”, pelo qual se
reforça a ilusão de controle do sujeito sobre si diante daquilo que o determina: uma existência
material e o funcionamento de uma instância outra – da qual não se sabe - que irrompe
independentemente do querer.
O jornal, na narrativa que se constitui, diz que Juliana “vivia de aparência e aos 10 anos
começou a sentir desejo de ser homem e passou a se vestir como tal, pois assim se sentia segura e
protegida.” (Folha Universal, edição 1150, p.7). Os sentidos sobre o corpo desviado – portanto
passível de retornar aos eixos – são retomados pela delineação de um gênero mutável, externo ao
sujeito.
“Viver de aparência”, soma-se ao “passar a se vestir”, reforçando o intradiscurso
(PÊCHEUX, 1995 [1975]) que coloca essa possibilidade outra de expressão do gênero e da
sexualidade como uma fase, algo pelo que se passa e, consequentemente, de um lugar do qual se
retorna depois.
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Esse processo de significação do que é o gênero, que se dá pela inserção do corpo de Juliana
como objeto a ser interpretado no interior no jornal, ganha espessura pela justificativa da condição
de Juliana formulada na narrativa.
Observemos o enunciado que segue: “Toda essa necessidade de se 'passar' por homem
escondia o fato de que ela era uma garota carente, sem referencial de pai, e com uma mãe bastante
envolvida com o trabalho, o que fez com que Juliana convivesse apenas com o seu irmão e amigos
dele” (Folha Universal, edição 1150, p.7). Chamamos atenção aqui, para a divisão de sentidos
passível de se inscrever nesses dizeres. Ao mesmo tempo em que o “passar por homem” de que fala
o jornal sugere um “agir como tal”, há também a possibilidade da insurgência de um “passar por”
como travessia, como algo passageiro, ou seja, uma fase a se superar.
O “depois” de Juliana materializado nos dizeres e em uma das imagens do jornal,
presentifica o fechamento dessa narrativa como conclusão sobre isso que se toma por objeto: o
corpo de Juliana e suas formas de expressão.
Nesse “depois”, o que se materializa na imagem é um vestido escuro com estampa, cuja
parte inferior está à altura do joelho, uma jaqueta de tom claro, cabelos penteados, maquiagem e
brincos. Como gesto, é possível ver Juliana com a mão na cintura e com um sorriso no rosto,
convocando outra rede de memória, se contrapomos às outras imagens.
Os dizeres que se conjugam a esse “depois” dizem respeito ao contato de Juliana com a
Igreja Universal. O jornal enuncia, quase no fechamento da matéria, os seguintes dizeres: “E ao
aprender o que é certo foi se livrando dos sentimentos de ódio, mágoa, tristeza, angústia, vício e do
desejo que tinha de tirar a vida das pessoas” (Folha Universal, edição 1150, p.7).
O “depois”, como se espera, significa-se em contraposição ao “antes”. O que é certo,
portanto, está no lugar inverso ao do ódio, da mágoa, de outros sentidos e do desejo de homicídio.
Chamamos atenção para o fato de que, no processo de referenciação que se constitui na narrativa do
jornal, o “antes” também é o lugar da expressão outra de gênero e de sexualidade. O que ocorre é a
negativização dessa outra possibilidade de expressão pela tensão que se inscreve no jogo entre antes
e depois.
É dessa forma que compreendemos que, mais do que contar a história de tal pessoa, a
matéria enunciada pelo jornal tematiza uma questão, direcionando a sua interpretação. Esses
discursos “representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de
conhecimento, já que o falar sobre transita na co-relação entre o narrar/descrever um acontecimento
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singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor”
(MARIANI, 1996, p.64)
É desse modo que Juliana é, ainda, caracterizada como “virtuosa” e diz que “não tem mais
dúvida da opção sexual” (Folha Universal, edição 1150, p.7). Com efeito, esses dizeres também
corroboram o sentido do gênero e da sexualidade manipulável pelo sujeito. Dito de outro modo, não
é por acaso que o “optar” se presentifica. Nessa materialidade retorna toda uma memória, do âmbito
do religioso – mas também de um certo domínio da medicina – da sexualidade dita desviante como
algo possível de se libertar, curar.
V. Considerações finais
Em vias de conclusão da análise deste artigo, gostaríamos de registrar que, tal como a teoria
que nos ancora, nosso objetivo não se coloca à prescrição. Dito de outro modo, não nos colocamos
em posição de dizer o que é correto no que se refere ao exercício do gênero e da sexualidade na
história que foi contada pelo jornal.
Por outro lado, o esforço que empreendemos, deu-se no sentido de buscar nas materialidades
inscritas pelos dizeres do jornal, vestígios da presença de determinadas posições históricas que
falam pelas páginas da mídia impressa da IURD.
Com efeito, é possível afirmar que a forma jornalística se expressa no jornal, pela tentativa
de tornar o caso de Juliana compreensível para o leitor/fiel; a forma religiosa, por sua vez, consiste
na tentativa de fazer com que essa compreensão se dê sem, no entanto, permitir com que esse leitor
se desloque da posição de leitor/fiel.
Nas palavras de Orlandi, “O que se pode dizer é que o que funciona na religião é a
onipotência do silêncio divino. Mais particularmente, isto quer dizer que, na ordem do discurso
religioso, Deus é o lugar da onipotência do silêncio. […] E o homem precisa desse lugar, desse
silêncio, para colocar uma sua fala específica: a de sua espiritualidade” (ORLANDI, 2007, p.28,
grifos da autora).
Esse atributo do silêncio divino se manifesta, em nosso caso, por essa capacidade de
possibilitar que os fieis/leitores, em sua ilusão de reversibilidade, tenham o controle – o estar ciente
– daquilo que fará chegar até Deus. No imaginário que se constitui na matéria analisada, o que se
tem é essa possibilidade outra de expressão do gênero e da sexualidade sendo significada como um
obstáculo na busca por Deus.
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Por fim, os corpos de que falamos – cujo exemplo se encontra na matéria da coluna “Antes e
depois”- são inatingíveis, pois ao serem pretensamente pensados através da noção de identidade –
também a de gênero – que se constitui sob a ilusão da homogeneidade, estão, também,
intrinsecamente ligados e significados na movência dos sentidos através da história, estando sempre
em relação com essa busca incessante do sujeito movido pelo seu desejo.
Referências
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subjetivação na diferença. Artigo em revista. Porto Alegre, UFRGS, (p. 246-282), 2013
As menções à bíblia estão disponíveis em >>https://www.bibliaonline.com.br<< Acesso em
23/03/2017 às 20:53
INTROUVABLES BODIES: AN ANALYSIS OF RELIGIOUS DISCOURSE ABOUT NON-
HETEROSEXUAL BODIES
ABSTRACT: Inscribed in the theoretical-methodological framework of French Discourse
Analysis, more specifically that affiliated to the knowledge domains worked by Michel Pêcheux in
France and Eni Orlandi in Brazil, this research is dedicated to present initial reflections of the
project of master's thesis to be Defended in Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem
da UFF and aims at some reflections on the bodies as symbolic objects. Starting from the idea that
the difference between the genders is constructed discursively acting as "efeito de um processo de
interpelação complexo e contraditório" (ZOPPI-FONTANA, 2013), we propose to investigate the
production of the senses in the scope of the neopentecostal religious discourse on the so-called
sexualities differente. Since religious discourse is a mode of authoritarian discourse (ORLANDI,
1987), we understand that the status of interpretation before different symbolic objects, such as the
body, occurs in a specific way with regard to the production of the senses. Through this work whose
statements were cut from the linguistic materiality of the Jornal Folha Universal of the Igreja
Universal do Reino de Deus, it was possible to construct some reflections on how the non-
heterosexual body is signified and placed in the place of difference.
Key-words: Discurse Analysis; Church; Sexuality; Body.