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Criação / Dança

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EMARCAR um território com um processo autoral talvez constituaum indispensável mecanismo de sobrevivência que se aprende coma natureza. Quem atentar para a história do Grupo Corpo vai en-

contrar nela esta sabedoria. Parece que estes mineiros descobriram cedoque seria preciso se separar do igual para conquistar a chance de ser reco-nhecido. Afinal, como já aprendemos com Lacan, é o outro quem valida anossa existência quando nos devolve o seu olhar. Num mundo onde as in-formações circulam rapidinho e tendem a pasteurizar os seus habitantes, aidentidade se torna moeda forte.

Tudo o que é posto no mundo deseja nele permanecer e durar, mas ascondições que cercam quem vive no Brasil e faz dança são adversas. Elasobrigam seus artistas a praticarem a criatividade não somente no palco, masprincipalmente fora dele. Aqui, quem faz da dança a sua profissão precisainventar sempre. Também por causa disso, a conquista de uma identidadeconta muito.

Quando Paulo Pederneiras pediu a seus pais (e ganhou) a espaçosacasa onde a família morava para fazer, junto com seus irmãos também envol-vidos com a dança, uma escola e depois uma companhia, ninguém poderiaprever que os Pederneiras começariam lá, na rua Barão de Lucena 66, naBelo Horizonte de 1971, uma trilha de inaugurações. Os irmãos Rodrigo(que se tornaria coreógrafo), Pedro (que se transformaria no diretor técni-co) e Mirinha (ex-bailarina e atual ensaiadora e assistente de Rodrigo), emais um grupo de amigos, entre os quais Carmen Purri (a Macau, ex-baila-rina e hoje também ensaiadora e assistente de Rodrigo), levariam adianteum projeto único. Esse núcleo, ao qual o pintor, escultor e arquiteto FernandoVelloso e a arquiteta, designer e paisagista Freusa Zechmeister se juntariammais tarde, viria a produzir não uma companhia profissional de dança, masuma griffe em termos de qualidade na área. O hoje empresário e produtorEmilio Kalil, que abandonou o jornalismo e sua cidade depois de assistir àcompanhia em Porto Alegre, em 1978, ajudou a consolidar essa marca, poisintegrou-se ao Corpo, que passou a co-dirigir, ao lado de Paulo Pederneiras,até 1989.

Os primeiros 25 anosdeste CorpoHELENA KATZ

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Esse ano (1989) demarca a passagem para uma nova estrutura, queKalil ajudou a erguer. Foi quando se iniciou a parceria com a Shell, que seconstituiria como um marco inaugural no marketing brasileiro. RobertBroughton, então presidente da empresa, que morava há três anos no Riode Janeiro e, no Carnaval, desfilava pela Mangueira, decidiu patrocinar ogrupo. Eles surpreenderam o mercado com um inédito contrato para trêsanos – forma encontrada para garantir uma certa estabilidade para o patroci-nado. O relacionamento Corpo-Shell tornou-se um verdadeiro case de muitosucesso, que duraria exatos 10 anos.

A partir daí, o grupo pôde, por exemplo, passar a encomendar e lan-çar todas as trilhas dos seus espetáculos e produzir seus vídeos. Mas o que adata mais marca é o início de uma trajetória de maior segurança e comcontinuidade. Nessa época, começaria também a definição dos papéis doquarteto central que se tornaria o responsável pelo produto que o país pas-saria a reconhecer com orgulho e viria a cativar as suas platéias.

Fernando Velloso começou como iluminador da primeira coreografiade Rodrigo Pederneiras, Cantares, em 1978, e estrearia como cenógrafoem Missa do Orfanato, em 1989. Em O Corpo, que estreou em agosto, pelaprimeira vez assinou os figurinos junto com Freusa Zechmeister, há quase20 anos a responsável pelo que os bailarinos usam em cena (roupas, sapatose cabelos). Freusa aderiu depois de assistir a um ensaio de Interânea, em1981.

Quem acompanha o grupo desde sempre, consegue identificar algu-mas fases da companhia. A primeira agrupa Maria, Maria (1976) e O Últi-mo Trem (1980), e nelas Rodrigo Pederneiras atuava somente como bailari-no. Para coreografar ambas, o convidado foi Oscar Araiz, a figurinha carim-bada da época e, para a trilha sonora, nada menos do que encomendas decomposições inéditas para Milton Nascimento/Fernando Brandt. Emboraapontando para um tipo de entendimento de dança que a companhia viria aabandonar, já sinalizava para uma busca de acabamento e rigor e para umcompromisso com a música especialmente composta para a dança.

Ainda dentro da estética vinculada a Oscar Araiz, mas já sem a suapresença, pode-se lembrar de uma outra fase, que se refere à gestação dofuturo coreógrafo Rodrigo Pederneiras. Ela começa ainda entre Maria,Maria e O Último Trem, com uma obra chamada Cantares (1978). Háainda mais cinco coreografias nesse eixo, produzidas depois de O ÚltimoTrem, que ninguém mais lembra de associar a ele, a saber: Tríptico e Interânea(1981), Noturno e Reflexos (1982), e Sonata (1984).

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Prelúdios (1985) muda tudo.Rodrigo começa a ser consideradoum coreógrafo profissional de pri-meira linha e o país inteiro passa acelebrá-lo como um artista em quemapostar. Daí até 21 (1992), são 13criações nas quais rascunha um do-mínio cada vez maior de estruturas eespaços e leva a técnica do balé clás-sico a se tornar apta a receber conta-minações transformadoras.

Prelúdios traz a matriz dos flu-xos que irão distinguir o modo comoPederneiras iria passar a tratar o pal-co. As terminações das frases e suasarticulações surgem lá como logo-tipias do seu pensamento coreográ-fico. Daí para a frente, são muitas assituações em que vai exercitar umtalento voltado para as ações do cor-po que dança. Vão surgindo peçascada vez mais especializadas na tare-fa de propor modos de deslocar con-juntos e de juntar bailarinos.Bachiana, Carlos Gomes Sonata(1986), Canções, Duo, Pas-du-Pont(1987), e Schumann Ballet, Rapsó-dia, Uakti (1988) vão deixando cadavez mais claro que dois tipos de es-trutura estão convivendo: aquelaonde Rodrigo explora invenções emescala menor (seus instigantes e cadavez mais intrigantes pas-de-deux) eoutra, onde trabalha as linhas no es-paço, especialmente os “entra-e-saide cena” da companhia.

A certa altura, acontece Mulhe-res (1988). Convidada por EmilioKalil, Susanne Linke passa um tempoem Beagá e monta esta sua coreogra-

“O interesse pela dança foidespertado em mim por eles”DEPOIMENTO DE JOSÉ MIGUEL WISNIK

OMPOSITOR, músico e professor de Litera-tura da USP, José Miguel Wisnik compôs

a música do espetáculo Nazareth, estreado peloGrupo Corpo em 1993. Em seu depoimento àESTUDOS AVANÇADOS, ele fala de sua experiênciapessoal de trabalhar com a Companhia.

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ESTUDOS AVANÇADOS – Como o senhor vê atrajetória do corpo de balé Grupo Corpo den-tro das atividades da dança no Brasil?

José Miguel Wisnik – Eu não sou um conhece-dor de dança, mas venho acompanhando bemde perto o Grupo Corpo, há oito anos, desdeque os conheci e fui convidado para fazer amúsica do espetáculo Nazareth, que teve suaestreia em 1993 e foi produzido em 1992. Ouseja, mesmo não sendo um conhecedor da dan-ça – até então, eu não tinha na verdade grandeaproximação com a dança, eu via poucos espe-táculos – a partir de então, o interesse pela dan-ça foi despertado em mim por eles e eu passei aacompanhar de perto o seu trabalho e a acom-panhar um pouco mais as coisas que aconte-cem em dança no Brasil. Do que eu posso di-zer sobre eles nesse cenário, antes de mais nada,é registrar o quanto é surpreendente a quali-dade e a consistência dos espetáculos deles, quenos fazem pensar sobre como isso chega a serpossível no Brasil. Realizar-se um trabalhocomo esse, que envolve um esforço continua-do de um grupo muito grande de pessoas: umcorpo de baile com 18 dançarinos, coreógrafo,equipe de cenógrafo, iluminador, direção ar-tística e tudo o que cerca um trabalho cotidia-no que torna possível a um grupo desses exis-tir, consolidar-se, ter uma presença forte noBrasil, fora do Brasil. Todas essas conquistas

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fia para o Grupo Corpo. Pronto. Era o momento certo para a virada queirromperia depois. A informação trazida por ela, do gesto mais dramatizadoem que a expressividade se acomoda, resultaria em Missa do Orfanato, no anoseguinte. Ou seja, seria preciso um vírus externo ao ambiente que a compa-nhia respirava para colocá-la para percorrer outros trilhos. Em Missa do Orfa-nato, também a cultura pop (o Thriller, de Michael Jackson) se faz presente.

A Criação (1990), Variações Enigma e Três Concertos (1991) parecemesgotar um percurso povoado de obras de exercício de um tipo de maestriaque hoje pode ser entendido como um mapeamento de combinações ne-cessário para amadurecer o domínio da herança do balé clássico.

Com 21, outra época se instaura e se espraia até hoje. Apenas com aprodução mais recente, O Corpo, com música de Arnaldo Antunes, brotaum outro algo desse mesmo caldo larvar. Com 21 começa a ficar mais claraa obsessão de Rodrigo Pederneiras por decifrar essa técnica que o alimen-tou a vida toda e que se torna capaz de adentrar numa conversação maisdireta com as danças que não sobem aos palcos dos teatros. Como cabe aum coreógrafo que se entende sendo, primeiro, todo ouvidos, ele nos faziapensar que sua tarefa consistia em dar visualidade à sua audição. Hoje, omovimento ao qual dá nascimento vem claramente salpicado pelo conjuntodos cinco sentidos, e não somente pelo ouvir. A carnalidade cada vez maisclara, a sensualidade cada vez mais expandida, as tribos brasileiras urbanas esuburbanas cada vez mais abrigadas. Sua antena tateia pelas formas, visualizao movimento que estava contido em outro e faz com que ganhe a luz,cheira o que ainda não existiu e passa para nós, seu público, o paladar deuma mistura que agora já tem nome: é do Corpo.

Tudo isso clama por doses generosas de energia, por corpos cada vezmais bem preparados. Os elencos que durante estes 25 anos tornaram pos-sível o nascimento da dança de Rodrigo Pederneiras podem ser considera-dos co-responsáveis pelo sucesso desse empreendimento. Mas hoje, semdúvida, tornam-se cada vez mais co-autores de uma arte que, à medida queo tempo passa, vai ficando cada vez mais jovem, falando com públicos maisamplos e dando abrigo a mais tipos de comportamentos. Se era o brejeiroem Nazareth (1993, com uma partitura de José Miguel Wisnik que é umalição de tradução intersemiótica entre Ernesto Nazareth, Machado de Assise música), e o afro-brasileiro em Benguelê (1998, com uma inspiradora com-posição de João Bosco), agora é a contaminação mais desenfreada que vivedo seu entorno. Basta assistir a O Corpo (2000, com uma trilha na qualArnaldo Antunes trata suas sonoridades como organismo resultante de umpensamento de arquiteto de pulsares e sonares).

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Isso que todos identificamcomo Grupo Corpo resulta da somados fazeres do seu núcleo básico comseus elencos sempre refinados. O re-lacionamento entre Paulo e RodrigoPederneiras, Freusa Zechmeister eFernando Velloso, e mais Macau,Pedro e Mirinha Pederneinas é a di-ferença que faz a diferença. Eles pro-duzem um tipo de informação capazde levantar platéias mundo afora. Evão promovendo primeiras vezestambém no exterior. Por exemplo,em toda a história do mais antigo dosfestivais norte-americanos, o respei-tado e hoje histórico Jacob’s Pillow,nunca uma companhia foi convida-da por dois anos seguidos. Mas oCorpo rompeu a regra. Foi tambéma primeira das companhias brasilei-ras a conquistar uma residência in-ternacional quando Guy Darmet, di-retor da Maison de la Danse, emLyon, convidou-os para lá realizaremas suas estréias européias.

O Grupo Corpo vai desenhan-do um mapa onde a dança e o corpoque dança não recitam normas umpara o outro. Os dois vão abrindo es-paço neles mesmos e, nesse movimen-to, conseguem ser a rajada que soprabeleza e prazer por onde passa.

Helena Katz, crítica de arte, é coorde-nadora do Programa de Pós-Graduaçãoem Comunicação e Semiótica da Ponti-fícia Universidade Católica de São Pau-lo (PUC-SP).

do Grupo Corpo nos fazem pensar não só noresultado final que eles apresentam, mas pen-sar que processo possibilitou uma consolida-ção desse tipo. No Brasil, em geral, é muitodifícil sustentar o trabalho de grupos continua-dos e dar a eles consistência e qualidade por-que muitas vezes esbarra-se nas condições daprodução que impedem que um trabalho des-se tipo tenha a consistência que o Grupo Corpotem, graças a uma continuidade. Entretanto,há muitos anos eles o vêm fazendo, e vejo queisso só foi possível porque é um grupo extraor-dinário de pessoas que expandiu um núcleofamiliar. Acho que por trás disso tem algo domistério da família mineira, porque na verdadeforam irmãos que se interessaram pela dança econstituíram uma célula inicial de pessoas quepassaram a estudar dança, trabalhar com a dançae fizeram um espetáculo que tinha irmãos eirmãs atuando como dançarinos. Um deles tor-nou-se coreógrafo, que é o Rodrigo Pedernei-ras. Outro se tornou diretor artístico do gru-po. Tudo isso talvez pedisse algo do tipo odesejo de fazer um trabalho com dança, mastambém essa agregação de tipo familiar que emMinas é possível, não só por ser a família Pe-derneiras, mas também porque ela acaba con-gregando outras pessoas que também passama viver de uma forma de muita sociabilidade,de sensibilidade familiar. Tudo isso é muito mi-neiro. Lá em Minas têm um prédio que elesconstruíram. Quanto se chega lá, se é recebidonão em uma sala inicialmente, nem na sala dadiretoria. Há uma pequena cozinha onde se érecebido de maneira muito afetiva, calorosa,pessoal. Acho que quem acompanha o GrupoCorpo de perto, percebe o quanto eles conse-guiram criar relações de muito rigor, de muitacompetência e, ao mesmo tempo, de muita pro-ximidade afetiva e contagiante. Eles imprimemisso ao trabalho do grupo e acredito ser funda-mental para conseguirem as coisas que eles vêmconseguindo.

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O trabalho deles partiu de uma aproximação à experiência mineira. Os pri-meiros trabalhos estão ligados à música mineira, ao Milton Nascimento. O es-petáculo Maria, Maria, temas ligados à vida de Minas, à cultura mineira, à mú-sica mineira, foram a motivação inicial do trabalho deles. Fizeram alguns espetá-culos com os quais já se tornaram extremamente conhecidos, mas que estavamfortemente ligados ao testemunho dessa experiência local do mundo de Minas.

Traduzindo esse tipo de relação pessoal para uma poética e para uma trajetó-ria estética do grupo, acho que inicialmente eles tiveram uma fase bem mineira.Depois, pelo que vejo, percebo, eles procu-raram até se desvincular dessa raiz mineira ebuscaram tomar para si as técnicas do baléclássico, o fundamento do balé clássico, paraconstituir um princípio de dança contem-porânea, mas passaram a fazer coreografiasbaseadas no repertório da música clássica européia. Fizeram A missa do orfana-to, os Noturnos, os Prelúdios de Chopin, as Variações Enigma de Helger. Elesestavam trabalhando e acho que esse foi o momento em que buscaram consti-tuir um repertório forte de técnicas ligadas à linguagem clássica e contemporâ-nea, mas de todo modo internacional da dança. Acho que através desses espetá-culos, o Rodrigo Pederneiras formou-se como coreógrafo. E começa uma ter-ceira fase, quando eles voltam a fazer espetáculos baseados em música contem-porânea brasileira, encomendada por eles, que fazem com que tudo o que acu-mularam de experiência com essas peças clássicas seja usado para a criação deuma linguagem de dança contemporânea brasileira. Isso aconteceu especial-mente quando fizeram um espetáculo chamado 21, com música do músico MarcoAntônio Guimarães e tocada pelo grupo UAKTI, em 1992. Trabalharam comuma música feita com aqueles instrumentos artesanais, com a criação de timbresinstrumentais originais e com aquela linguagem, com aquele pensamento musi-cal muito singular do Marco Antônio Guimarães, que fez uma peça toda basea-da em variações rítmicas sobre o número 21. Essas variações eram ao mesmotempo, eu diria, uma construção neopitagórica, porque fazia a música se basearnesses números, nas relações entre o número 3 e o número 7, portanto, ímpa-res, ritmos regulares e quebrados, mas isso tudo profundamente associado auma tradição da música popular mineira, que também aparecia muito forte-mente nesse espetáculo. Então, acho que isso levou o Grupo Corpo de volta aMinas por um lado, mas num outro plano de construção porque a música nãoera mais como as canções do Milton Nascimento que foram feitas para eles,como Ponta de Areia e Maria, Maria, e depois viraram canções importantes emuito conhecidas no Brasil. Eles passaram a fazer essa dança sobre música bra-sileira contemporânea, mas fortemente instrumental, e isso deixou uma marcaque foi um momento de virada ocorrido nesse espetáculo 21, que iniciou oprocesso pelo qual eles voltaram a ter um novo tipo de reconhecimento interna-

acho que inicialmenteeles tiveram

uma fase bem mineira . . .

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cional muito grande, não só como um balé de interesse local ou com saborregional, como o Maria, Maria, mas também como um balé com uma lingua-gem coreográfica forte e com uma competência muito grande para realizá-la.Foi nesse momento que eles estavam querendo fazer uma seqüência de traba-lhos apontando para essa direção.

ESTUDOS AVANÇADOS – Aí então é que entra a sua participação, a participação dasua música no Grupo Corpo?

José Miguel Wisnik – Quando eles estavam se voltando para esse tipo de preocu-pação, convidaram-me para fazer música, uma composição original, mas queseria baseada na tradição da música popular brasileira. Eles tinham pensado emalguma coisa como Pixinguinha, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazareth. Gosteidessa proposta e achei que nos deveríamos concentrar em Ernesto Nazareth,por ser um compositor de música instrumental escrita, em suma, que tem jápartituras escritas e sobre as quais se poderia construir variações. Foi nessa oca-

sião que os conheci. Eu vi o espetáculo 21 etambém o vídeo com as Variações Enigma deHelger. Vendo esses dois espetáculos, percebique eles se encontravam em uma encruzilha-da: o espetáculo Variações Enigma era um es-petáculo contemporâneo, mas baseado na lin-

guagem do balé clássico, no comentário do balé clássico, baseado, em suma,sobre música européia, enquanto o 21 era música contemporânea brasileira,apontando para a música e a dança popular brasileira. Então, me pareceu queeles estavam em uma passagem interessante entre o clássico e o popular e justa-mente estavam querendo criar alguma coisa que pusesse em contato e diálogoessas duas vertentes. Achei que era justamente esse o assunto da música deNazareth. Isso porque Ernesto Nazareth era um compositor popular que faziamaxixe chamados tangos brasileiros, mas, ao mesmo tempo, entrou para o re-pertório clássico e se tornou um compositor que faz parte da memória coletiva,com músicas como Brejeiro, Odeon, Apanhei-te cavaquinho, que todo mundoconhece. Ao mesmo tempo, Nazareth é um compositor tocado por grandespianistas: por Nelson Freire, por Arnaldo Cohen, por Roberto Zidon, por ArturMoreira Lima. É um compositor que entrou para o repertório do concerto eestá, portanto, nesse curioso cruzamento, muito sintomático da música brasilei-ra, que sempre se forma nesse contato e, às vezes, na exposição das fronteirasentre o popular e o erudito e, às vezes, na dissolução dessas fronteiras.

Lembrei-me então de um conto de Machado de Assis chamado o HomemCélebre, que fala justamente sobre um compositor de polcas muito famoso emuito bem-sucedido enquanto compositor popular e que, no entanto, quercompor música clássica. Esse conto me deu uma espécie de subtexto para traba-lhar a música de Nazareth, que me parecia contemporânea ao personagem de

achei que nosdeveríamos concentrar

em Ernesto Nazareth . . .

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Machado. Nós nos encontrávamos nessa mesma tensão entre o popular e oerudito e havia muitos motivos que dariam matéria para esse tipo de variação.Então, a música que eu compus para Nazareth, pode-se dizer que se constituide uma série de variações sobre o erudito e o popular vistas a partir da música deNazareth, com subtexto machadiano e colocada, portanto, para o grupo a questãoda dança clássica e da dança popular brasileira.

Uma vez feito este trabalho, porque o Grupo Corpo trabalha sempre com amúsica já pronta, eles não têm coreografias prévias, anteriores à música: a coreo-grafia nasce sempre, todo o espetáculo nasce da música. A música é para eles agrande motivação de tudo. Então, com base nisso, eles construíram o espetácu-lo em todos os aspectos da coreografia, do cenário, da iluminação, do figurino.Trabalharam sobre essas mesmas variações, não de uma maneira narrativa, por-que não havia o menor interesse em colocar na cena da dança, por exemplo, opersonagem machadiano, nada que supusesse que o balé estaria contando umaestória. Na verdade, podemos dizer que esse subtexto, esses motivos machadianosque estão colocados ali, geraram de fato elementos interessantes na dança,

machadianos, como o duplo, o es-pelho, o trio em lá menor, o pas dedeux, de trois... esses elementos fo-ram incorporados. Pode-se dizer,são elementos que vêm tanto dohomem célebre de Machado, quan-

to do romance Esaú e Jacó, de um conto como o Trio em lá menor, o Espelho, oTema de Flora, cujas notas Machado de Assis dá no romance Esaú e Jacó, todosesses são elementos que me motivaram na construção da música e que, como euaprendi a ver, foram sempre captados por eles, de maneira muito sutil e surpreen-dente. Porque aquilo depois é devolvido como resolução, resolução visual edançante de uma maneira extraordinária. Então, esse espetáculo resultou dessediálogo todo de níveis, digamos, musicais, verbais e não-verbais, e acho que foide uma grande felicidade fazer essa combinação, digamos, entre Minas Gerais,São Paulo, porque um paulista fazendo uma interpretação da música carioca,oferecida aos mineiros. Acho que de fato o espetáculo resulta dessa espécie detriangulação.

Depois disso, eles fizeram um espetáculo novamente com Marco AntônioGuimarães, que instrumentou uma peça de Philipe Glass feita para eles, comsete ou oito peças para balé. Posteriormente tem o espetáculo Bar, tambémcom música de Marco Antônio Guimarães. Depois eu voltei a fazer, com o TomZé, a música do espetáculo Parabelo. Trabalhamos com células de músicas queestão ligadas ao mundo do sertão baiano, do sertão nordestino, que vieram porintermédio de Tom Zé, sobre as quais construímos também uma série de varia-ções que resultaram num espetáculo que tem esse aspecto inteiramente voltadopara uma dessas regiões do Brasil. Não só região geográfica, mas região do

um paulista fazendouma interpretação da música

carioca, oferecida aos mineiros . . .

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imaginário brasileiro, região da vida cultura, uma espécie de indagação sobre osertão, que se traduziu em sonoridade: o modo como escolhemos a sonoridade,o uso dos instrumentos, as vozes, o pilão, o serrote usado como instrumento.Instrumentos de trabalho que ao mesmo tempo produzem não só ritmos, mastambém timbres e melodia. Incluímos também vozes e letras, no caso voltandoao mesmo tempo ao caráter de música instrumental e de música cancional tam-bém. Isso voltou no Parabelo e, novamente, sempre que um trabalho é entre-gue ao Grupo Corpo, percebe-se o quanto a resposta depois é profundamentesurpreendente pela capacidade de nos fazer ver a música de uma maneira tãoclarificadora. Por exemplo... é difícil dar exemplos aqui porque não se tem ima-gem para representar isso. Há uma passagem no Parabelo, uma cantiga dessasde roda, nordestina, que diz:

Eu vi o cego lendo a corda da violaCego com cego no duelo do sertãoEu vi o cego dando nó cego na cobra

Eu vi cego preso na gaiola da visãoPássaro preto voando pra muito longeO cabra cego enxergando a escuridãoEu vi o pai, eu vi a mãe eu vi a filha

Vi a novilha que é filha da novilháEu vi a réplica da réplica da BíbliaNa invenção de um cantador de ciençáVi o Cordeiro de Deus num ovo vazioFiquei com frio, pedi pra me esquentá

Parecia-me extremamente difícil imaginar como essa música poderia serdançada. No entanto, Rodrigo Pederneiras criou uma coreografia ao mesmotempo intrin- cada e singela, baseada num jogo, como brincadeira de criançasde roda, mas com um movimento de braços entrelaçados, que criavam essavisão de entrelaçar do pai, da mãe, da filha, da novilha que é filha da novilhá,quase como se fosse assim, do có-digo genético transformado numabrincadeira que se faz pelo jogo debraços e pés. Tudo isso o RodrigoPederneiras faz de maneira inteira-mente intuitiva, que ele não temnecessidade alguma de verbalizar. Acho que justamente esse tipo de sensibilida-de profunda para a captação desses núcleos ao mesmo tempo rítmicos, sintáticose semânticos que estão contidos na música, ele é capaz de encontrar soluções eque, ao mesmo tempo, respondem àquilo que a música propõe e afirmam uma

parecia-me extremamentedifícil imaginar como essa música

poderia ser dançada . . .

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linguagem dele, totalmente original e muito singular. Não adiantaria que issotudo existisse se não houvesse uma capacidade de pensar figurinos, luz, esseconjunto, coisa que acontece no caso de haver um diretor artístico como PauloPederneiras, capaz de pensar o processo todo, capaz de pensar a transformaçãodessa linguagem em realização mesma no palco. Então, estou me estendendoaqui na medida em que sou convidado a fazê-lo, não só fazendo observações eum pouco tentando comentar os processos de linguagem, as questões com asquais eles se deparam, mas ao mesmo tempo estou externando o meu entusias-mo pelo fato de ter sido possível uma conjugação tão feliz e tão rara de talentoe sensibilidade que consegue fazer com que uma dança aconteça.

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© 2000 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM O CORPO

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© 1993 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM NAZARETH

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© 1998 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM BENGUELÊ

© 1986 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM BACH

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© 1997 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM PARALELO

© 1994 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM SETE OU OITO PEÇAS PARA UM BALLET

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© 1993 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM NAZARETH

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© 1997 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM PARALELO

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© 1992 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM 21

© 1993 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM NAZARETH

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© 1993 José Luiz Pederneiras - GRUPO CORPO EM ACIAÇÃO


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