Download pdf - Crime Loucura

Transcript
  • Crime e Loucura

    O aparecimento do manicmio judicirio

    na passagem do sculo

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Reitor Antnio Celso Alves PereiraVice-reitora Nilca Freire

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Conselho Editorial

    Elon Lages LimaGerd BornheimIvo Barbieri (Presidente)Jorge Zahar ( in memoriam)Leandro KonderPedro Luiz Pereira de Souza

    Reitor Jacques Marcovitch Vice-reitor Adolpho Jos Melfi

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Presidente Sergio Miceli Pessa de Barros Diretor Editorial Plinio Martins Filho Editores-assistentes Heitor Ferraz

    Rodrigo Lacerda

    Comisso Editorial Sergio Miceli Pessa de Barros (Presidente)David Arrigucci Jr.Hugo Aguirre ArmelinOswaldo Paulo ForattiniTup Gomes Corra

    C313 Carrara, SrgioCrime e loucura : o aparecimento do manicmio judicirio

    na passagem do sculo / Srgio Carrara. Rio de Janeiro :EdUERJ ; So Paulo : EdUSP, 1998.

    228 p. (Coleo Sade & Sociedade)

    Originalmente apresentada como dissertao de mestrado.ISBN 85-85881-54-2

    1. Insanos, delinqentes e perigosos. 2. Psiquiatria forense.3. Crime e criminosos. 4. Insanidade. 5. Antropologia socialI. Ttulo. II. Srie.

    CDU 616.89-008.444

    CATALOGAO NA FONTEUERJ/SISBI/SERPROT

  • Crime e Loucura

    O aparecimento do manicmio judicirio

    na passagem do sculo

    Srgio Carrara

    Rio de Janeiro1998

  • Copyright 1998 by EdUERJTodos os direitos desta edio reservados Editora da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sobquaisquer meios, sem a autorizao expressa da Editora.

    INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

    Diretor

    Ricardo Antonio Wanderley Tavares

    Vice-diretor

    Mario Roberto Dal Poz

    Coordenao

    Joel BirmanMario Roberto Dal Poz

    Produo Executiva

    Sonia Faerstein

    Copidesque e Reviso

    Ana Silvia Gesteira

    Conselho Editorial

    Csar Victora (DMS/UFPEL/RS), ClaudineHerzlich (CERMES/PARIS), Cristina Possas(ENSP/FIOCRUZ), Eli Diniz (IUPERJ), ElzaBerqu (CEBRAP e UNICAMP), Gilles Dussault(Universidade de Montreal), GuilhermeRodrigues da Silva (FM/USP), Hsio Cordeiro(IMS/UERJ), Janine Pierret (CERMES/PARIS),Jurandir Freire Costa (IMS/UERJ), Lus ClaudioFigueiredo (PUC/SP e USP), Luiz AlfredoGarcia Roza (Instituto de Psicologia/UFRJ), LuizFelipe Alencastro (CEBRAP e UNICAMP), LuizFernando Duarte (Museu Nacional/UFRJ),Maurcio Barreto (UFBA), Moyses Szklo (JohnsHopkins University/USA), Patrick Pinel(INSERN/PARIS), Reinaldo Nery Guimares(SR-2/UERJ), Rita Barradas Barata (FCM/SantaCasa/SP), Roberto Machado (IFCS/UFRJ),Ronnei Panerai (University of Leicester/UK),Sulamis Dain (IMS/UERJ), Vilmar Faria(CEBRAP).

    EdUERJEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua So Francisco Xavier 524 - MaracanCEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJTel./Fax: (021) 587-7788 Tel. (021) 587-7789 / 587-7854 / 587-7855e-mail: [email protected]

    Coordenao de Publicao Renato CasimiroCoordenao de Produo Rosania RolinsProjeto Grfico e Capa Heloisa FortesDiagramao Ronaldo Pereira ReisReviso Jeaneth MedeirosApoio Administrativo Maria Ftima de Mattos

    COLEO SADE & SOCIEDADE

  • A Maria Cleusa de Castro Leite,agora na lembrana...

  • H alguns anos, quando este livro era uma dissertao de mestrado,

    agradecia o apoio de vrias pessoas e instituies*. Passado todo esse

    tempo, posso reconhecer muito mais claramente a importncia que tive-

    ram. Peter Fry, a quem agradecia ento como amigo e orientador, foi mais

    que isso. De fato, como escrevi em algum momento da minha narrativa,

    eu fui seu aprendiz, mas s hoje percebo que o fui no sentido mais lato

    da expresso. Tive o privilgio de aprender com ele em campo, na prtica

    da pesquisa, e ele me ensinou muito mais do que simplesmente fazer

    antropologia social. Tambm agradecia especialmente a dois professores

    do Museu Nacional, Lygia M. Sigaud e Luiz Fernando D. Duarte. De

    fato, ambos tiveram grande peso na minha formao intelectual. Luiz

    Fernando, que posteriormente orientaria minha pesquisa de doutorado,

    exerceu e continua exercendo sobre mim um enorme fascnio por sua

    generosidade, seriedade e extrema erudio. Tive e continuo tendo um

    enorme respeito intelectual por Lygia M. Sigaud. Admiro sobretudo a

    coerncia com que sempre articulou seus interesses intelectuais e suas

    posies polticas, produzindo um conhecimento relevante no apenas

    para o avano da cincia, mas para a transformao ativa do mundo sobre

    o qual nossas cincias se constroem. professora Mariza Correa, da

    Unicamp, agradecia por ter discutido minhas idias e ter me cedido docu-

    Agradecimentos

    _____________

    * Alm da dissertao, parte deste trabalho apareceu na forma de um artigo (CARRARA, 1991).

  • 8

    mentos importantes. De fato, foi a Mariza quem me ganhou para a

    antropologia ainda nos bancos da faculdade, e este meu trabalho no teria

    sido possvel sem suas prvias incurses pela histria da implantao da

    disciplina no Brasil.

    Agradecia aos amigos de dentro e fora da academia, por terem

    discutido meu trabalho e, sobretudo, pelo afeto e generosidade com que

    me presentearam. Fico feliz em reler a lista e perceber que os ltimos dez

    anos no me separaram deles: Ana Luiza Martins-Costa, Ana Maria Daou,

    Antnio Carlos de Souza Lima, Brbara Musumeci Soares, Flix Vieira,

    Jaime Aranha, Maria Fernanda Bicalho, Maria Josefina SantAnna, Maria

    Lcia Penna, Ndia Farage, Paulo Santilli, Paulo Vaccari Ccavo, Santuza

    Cambraia Naves e Tania Salem. Dos colegas do Instituto de Medicina

    Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que poca contri-

    buram para o meu trabalho, eu destacava Andra Loyola, Aspsia Camargo,

    Jurandir Freire Costa, Renato Veras e Snia Correa. Dentre eles, reconhe-

    o agora, muito especialmente, a contribuio do professor Jurandir, que

    certo dia me presenteou com o livro de Genil-Perrin, que seria to impor-

    tante para que eu entendesse melhor o conceito de degenerao. Ao longo

    da coleta de dados, pude contar com o auxlio precioso de Marcos Otvio

    Bezerra e Cludio de Lorenci, com uma dotao Ford/Anpocs e com o

    trabalho consciencioso de bibliotecrias e arquivistas cariocas.

    Agradeo muito especialmente ao professor Antnio Carlos de

    Souza Lima, que tomou a iniciativa de enviar o manuscrito para a EdUSP.

    Sem sua interveno este livro no existiria. Depois disso, o trabalho ficou

    nas cuidadosas mos da EdUERJ, que, como Editora principal, aceitou os

    encargos mais pesados e decisivos na sua publicao. Agradeo as excelen-

    tes sugestes do annimo parecerista da EdUSP, e ainda o trabalho edito-

    rial impecvel de Sonia Faerstein e a reviso cuidadosa de Ana Silvia

    Gesteira.

    A reviso final do texto para a atual publicao e a redao do

    Posfcio foram feitas em Chicago, onde, com o apoio do CNPq, desen-

    volvo atualmente meu ps-doutorado vinculado ao Morris Fishbein Center

    for the History of Science and Medicine (Universidade de Chicago). Fazer

  • 9

    esses ltimos acertos em Chicago teria sido sem dvida muito menos

    agradvel sem o apoio, o carinho e o bom humor de Patrick Larvie.

    Finalmente, tenho a felicidade de poder repetir o que escrevi h

    dez anos: Agradeo a todos, e ainda Mariinha e ao Romeu, que de to

    longe permaneceram enviando energias positivas; se eles aparecem no final

    destes agradecimentos, porque, de qualquer modo, estiveram sempre no

    comeo de tudo.

  • Querelle sorria. Deixava desenvolver em si mesmo aquela

    emoo que conhecia to bem, que daqui a pouco, no lugar

    certo, l onde as rvores so mais cerradas e a nvoa densa,

    tomaria posse dele por completo, afugentaria toda

    conscincia, todo esprito crtico, e ordenaria a seu corpo

    os gestos perfeitos, apertados e seguros do criminoso.

    J. Genet (1986:46)

  • Sumrio

    Apresentao Peter Fry ................................................................................... 15

    CAPTULO I

    O Objeto da Investigao e sua Construo .............................................. 23

    Um aprendiz de antroplogo em apuros ............................................... 23

    O que eu podia ver era um tanto contraditrio ................................ 27

    Mdicos versus juzes: problemas legais .................................................. 29

    Terapeutas versus guardas: questes institucionais .............................. 33

    Doidinhos e pepezes ........................................................................... 38

    A proposta de pesquisa ................................................................................ 43

    Apreenses metodolgicas ........................................................................... 50

    CAPTULO II

    Loucos & Criminosos ......................................................................................... 61

    A questo do crime na passagem do sculo ......................................... 62

    Crime e doena: o criminoso enquanto objeto da patologia ......... 68

    Crime como episdio da loucura: os monomanacos ....................... 69

    Os degenerados: o crime como mais uma face da alienao

    mental ................................................................................................................. 81

    Os brbaros esto entre ns: os criminosos natos ............................. 99

    O criminoso nato ........................................................................................... 104

    Criminosos natos e degenerados: uma ciranda sinistra ..................... 116

  • 14

    CAPTULO III

    Hrcules e o Comendador, o Caso de um certo Custdio .................. 127

    Quem era Custdio Alves Serro ............................................................. 127

    A vtima ............................................................................................................. 129

    O crime .............................................................................................................. 130

    Custdio versus os mdicos-legistas da polcia ..................................... 134

    Um ms depois, Custdio foge do Hospcio Nacional .................... 141

    A fuga de Custdio coloca o Pinel crioulo em maus lenis ........ 143

    O que fazer dos loucos-criminosos? ........................................................ 148

    A caminho do hospcio: algum ainda duvida da loucura de

    Custdio? ........................................................................................................... 159

    De volta s malhas da lei: Custdio deixa de ser louco para ser

    um simples degenerado ou criminoso nato ....................................... 161

    Um julgamento sui generis .......................................................................... 168

    Uma histria sem fim: Teixeira Brando versus

    Nina Rodrigues ............................................................................................... 173

    Os degenerados e o surgimento do primeiro manicmio

    judicirio brasileiro......................................................................................... 187

    Concluses .............................................................................................................. 195

    Posfcio .................................................................................................................... 201

    Referncias Bibliogrficas ................................................................................... 223

  • sempre uma honra ser convidado a escrever uma Apresentao,

    sobretudo quando se trata do livro de um amigo e ex-aluno. Este caso,

    porm, mais especial ainda, como o leitor depreender das primeiras

    pginas de Crime e Loucura: O Aparecimento do Manicmio Judicirio na

    Passagem do Sculo, onde o autor, descrevendo a si prprio como um

    aprendiz em apuros, conta como eu o abandonei, em 1985, logo no

    incio de uma difcil pesquisa de campo no Manicmio Judicirio do Rio

    de Janeiro. De fato, este abandono, mais fsico que moral, espero eu,

    durou algo em torno de sete anos, durante os quais trabalhei na frica,

    temporariamente fora do mundo acadmico. Nesse perodo Srgio Carrara

    persistiu com sua pesquisa no Manicmio Judicirio, para lev-la a uma

    bela dissertao de mestrado, da qual este livro uma verso atualizada,

    com um importante Posfcio que resenha a mais recente literatura sobre

    o tema. Nesse mesmo perodo, tambm, partiu para sua tese de doutora-

    mento sobre outro tema que explora o encontro da moralidade, da medi-

    cina e da lei: a luta contra a sfilis no Brasil1. Nada mais justo, portanto,

    que eu retornasse agora para fazer homenagem ao primeiro trabalho do

    aprendiz, agora mestre, e cujos apuros iniciais podem ser interpretados,

    benevolentemente, como o sofrimento que constitutivo do rito de pas-

    sagem de tornar-se antroplogo de verdade. O mundo social do Manic-

    Apresentao

    _____________

    1 Tributo a Vnus: A Luta contra a Sfilis no Brasil da Passagem do Sculo aos Anos 40. Rio deJaneiro: Fiocruz, 1996.

  • 16

    mio, como bem mostra Srgio Carrara neste livro, representa um desafio

    analtico e emocional no menos severo que quaisquer aldeias nos confins

    do mundo ps-colonial.

    O caminho que nos levou ao Manicmio Judicirio comeou com

    um estudo sobre o caso de Febrnio ndio do Brasil. Este jovem mulato

    foi preso em 1927, acusado de ter matado jovens rapazes nos arrabaldes

    do Rio de Janeiro, aps atra-los com pequenos presentes e mirabolantes

    profecias, publicadas num livro chamado As Revelaes do Prncipe do

    Fogo2, tatuar os seus corpos com hierglifos msticos e seduzi-los sexual-

    mente. Os advogados de Febrnio argumentaram, com o apoio de diver-

    sos laudos psiquitricos, que ele era um louco moral e, portanto, no

    responsvel por seus atos. Como resultado, Febrnio foi internado no

    recm-construdo Manicmio Judicirio sob uma medida de segurana

    que, apesar de muitos apelos, nunca foi revogada. Em 1981 escrevi um

    pequeno texto sobre o caso para abordar o crescente poder dos mdicos

    brasileiros na definio da loucura e da responsabilidade criminal, bem

    como a constituio de uma srie de saberes sobre a homossexualidade e

    a miscigenao; dois fatores importantes na definio da loucura moral de

    Febrnio.

    Nesse ensaio eu tratara Febrnio como personagem de um passa-

    do remoto. Mas, em conversa com o meu amigo Alexandre Eullio, que

    se interessara pela histria de Febrnio atravs dos seus estudos sobre

    Blaise Cendrars, autor de um ensaio instigante sobre o caso quando este

    ocorreu, apreendi que Febrnio vivia ainda no Manicmio. Incrdulo,

    procurei um amigo psiquiatra no Rio de Janeiro, Pedro Bocayuva Cunha,

    que no s confirmou que Febrnio estava vivo, mas que era seu paciente!

    Ato contnuo, o Dr. Bocayuva Cunha me levou ao Manicmio para um

    encontro com Febrnio. A visita me marcou profundamente. Febrnio,

    muito envelhecido, ainda lembrava o rapaz garboso das fotografias tiradas

    _____________

    2 O livro foi queimado pela polcia e sumiu. Procuramos por ele em vo. No ano passado, CarlosAugusto Calil conseguiu localiz-lo na Biblioteca Nacional, e vai public-lo junto com outrosdocumentos sobre o caso Febrnio, ainda este ano.

    PETER FRY

  • 17

    na ocasio de sua priso. As tatuagens misteriosas que cercavam seu trax,

    e que ele teria gravado tambm sobre os corpos de suas vtimas, conti-

    nuavam visveis, embora desbotadas pelo tempo. Bastante retrado e descon-

    fiado, porm altivo, Febrnio demonstrou orgulho pelo seu status de pri-

    meiro interno no Manicmio (na sua ficha constava o nmero 0001), e de

    ter construdo um mnimo de dignidade e um mdico poder na instituio

    na qual teria vivido por quase 60 anos; o dobro do tempo que um preso

    comum pode ficar legalmente internado. E mais: insistia ainda na sua

    inocncia.

    Mas o que me impressionou tambm foi o prprio Manicmio,

    que se encontra no final de um sombrio e longo beco margeando o

    presdio da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Como hospital, possui

    mdicos e enfermeiros encarregados de tratar os pacientes at a sua

    recuperao. Para conter os internos mais violentos, aplicam medica-

    mentos psicotrpicos. Como priso, o Manicmio possui guardas peniten-

    cirios que aplicam mtodos mais convencionais para manter a ordem

    dentro da instituio. Constantemente presentes, lidam com o cotidiano

    dos internos. A ambivalncia entre hospital e priso se estende aos pr-

    prios habitantes, que so definidos e se autodefinem ao mesmo tempo

    como doentes e presos. Parte hospital e parte priso, parecia um lugar-

    chave para aprofundar minha pesquisa sobre a responsabilidade penal e os

    embates entre a medicina e o direito.

    Em 1983 migrei de Campinas para o Rio de Janeiro, como pro-

    fessor visitante no Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    do Museu Nacional, onde Srgio Carrara, que se formara na Universi-

    dade de Campinas e seguira a mesma rota migratria, ingressara como

    aluno de mestrado. Fascinado, como eu, pela histria da construo social

    de personagens como loucos, criminosos e homossexuais no Brasil,

    e inspirado pelos trabalhos de Michel Foucault, logo concordou em

    embarcar comigo num estudo sobre o Manicmio. Quando comeamos

    nossa pesquisa de campo, em 1984, defrontamo-nos com mais uma

    ambivalncia no Manicmio. Nesse hospital-priso, os jovens mdicos,

    inspirados pela restaurao da democracia no Brasil (Leonel Brizola tinha

    APRESENTAO

  • 18

    sido recentemente eleito governador) e pela antipsiquiatria, lutavam para

    introduzir elementos de autogesto entre os internos que, mesmo assim,

    permaneciam legal e medicamente subordinados aos guardas e equipe

    mdica. Tentava-se reconciliar os princpios democrticos de igualdade

    social com a mais profunda desigualdade que caracteriza a instituio,

    sobretudo aquela entre a liberdade dos funcionrios e a situao tutelada

    dos presos-doentes.

    Com a minha retirada de cena, Srgio Carrara aprofundou suas

    observaes sobre o cotidiano do Manicmio, detalhando mais claramente

    a essencial ambivalncia da instituio, nela identificando a superposio

    de dois modelos de interveno social: o modelo jurdico-punitivo e o

    modelo psiquitrico-teraputico. O primeiro v o indivduo como sujei-

    to de direitos e deveres, capaz de adaptar livremente seu comportamento

    s leis e normas sociais [...] capaz, enfim, de ser moral e penalmente

    responsabilizado por suas aes. O segundo define o indivduo no

    enquanto sujeito, mas enquanto objeto dos seus impulsos, pulses, fobias,

    paixes e desejos, no sendo, assim, moralmente responsabilizado nem,

    portanto, passvel de punio. A partir desta observao, Carrara se ques-

    tionou sobre o processo histrico que teria levado ao surgimento do louco-

    criminoso e subseqente necessidade de uma instituio especfica

    destinada ao seu tratamento e conteno. A partir de que relaes signi-

    ficativas entre representaes e prticas que se ocupam da transgresso s

    normas e valores sociais foi possvel a figura do louco-criminoso e a ins-

    tituio que dele se ocupa?. Para responder a esta questo, o autor mer-

    gulhou no mais na aldeia do Manicmio contemporneo, mas numa

    outra aldeia; aquela dos arquivos que contm livros, laudos, documentos

    e processos criminais que revelam as representaes e aes dos persona-

    gens que no final do sculo XIX e incio do sculo XX discutiram: a

    questo do crime, da transgresso e da responsabilidade.

    Com maestria, Srgio Carrara utiliza os documentos da sua al-

    deia-arquivo para entender e revelar os argumentos dos protagonistas

    brasileiros no debate em torno do crime e da doena, em particular Afrnio

    Peixoto, Nina Rodrigues e Teixeira Brando. O debate era nada pa-

    PETER FRY

  • 19

    roquial. Cada um, sua maneira, invocava os grandes nomes da

    criminologia e da psiquiatria da poca, para avanar e legitimar opinies

    divergentes sobre a natureza da loucura e os limites da responsabilidade

    criminal. Carrara dedica uma ateno especial genealogia do psicopata

    (ou pepezo, na gria do Manicmio Judicirio dos nossos dias), traan-

    do-a com mincia desde o monomanaco dos alienistas franceses; passando

    pelos degenerados de Morel, pelos criminosos natos da trade italiana

    de Lombroso, Ferri e Garofalo e pelos loucos morais de Maudsley.

    Demonstra como, aos poucos, foi-se configurando a personagem que no

    sofre de delrios, mais do que so nas faculdades intelectuais, mas que

    no responsvel por seus atos anti-sociais. Inicialmente, as pessoas rotu-

    ladas de loucos morais eram internadas na Seo Lombroso do Hospcio

    Nacional de Alienados, onde sempre representaram um problema grave

    de ordem para os mdicos e enfermeiros, por causa do seu comporta-

    mento anti-social e por sua resistncia cura. Foi para este personagem

    que, a exemplo dos pases europeus, se construiu o Manicmio Judicirio

    no Rio de Janeiro, sendo inaugurado em 1921.

    Mas Srgio Carrara no se restringe apenas ao debate terico-

    ideolgico contido nos livros e artigos da sua aldeia-arquivo. Atravs de

    casos concretos, em particular o caso extraordinrio, mas tambm exemplar,

    do jovem Custdio Serro, ele capaz de analisar as representaes

    dos mdicos e juristas na sua prtica social. Foi a polmica em torno dos

    crimes mais chocantes que marcou as posies polticas dos protagonistas

    perante a opinio pblica, naquela poca, como agora, vida por escnda-

    los e por detalhes sobre o sofrimento alheio. Desta forma, Carrara mostra

    a relao entre as idias dos especialistas e a vida cotidiana dos cidados.

    Os casos criminais de grande repercusso foram palco para a dramatizao

    das idias em circulao e para a consolidao da supremacia da corrente

    que favorecia a construo do Manicmio. Alm disso, estes casos revelam

    claramente as conseqncias, muitas vezes nefastas, para os cidados que

    caram nas malhas da lei e da medicina forense. Em 1897 Serro matou o

    tutor de sua irm a sangue frio, porque pensou que este estava tramando

    sua internao no hospcio. Rendeu-se polcia, mas foi imediatamente

    APRESENTAO

  • 20

    classificado como louco e, logo aps, internado no Hospcio Nacional de

    Alienados que tanto temia. Da em diante, todos os atos de Custdio para

    provar a sua sanidade mental e se sujeitar ao julgamento dos seus atos, mas

    no da sua pessoa, inclusive a sua fuga do hospcio, tiveram o efeito

    apenas de aumentar as evidncias da sua loucura. Na anlise deste caso

    pungente, encontramos os juristas e psiquiatras da poca se digladiando

    sobre a definio do estado mental de Custdio no contexto de intensa

    disputa sobre a configurao institucional jurdica. Foi atravs deste caso,

    entre outros, que os protagonistas da construo de uma instituio espe-

    cfica para loucos-criminosos ganharam a disputa contra aqueles outros

    mdicos e juristas, que insistiam que o criminoso ou era responsvel ou,

    se doente, irresponsvel pelos seus atos. O meio termo de doente-crimi-

    noso, argumentaram, era simplesmente uma aberrao lgica.

    A importncia deste livro no se restringe contribuio que faz

    histria social da psicopatia no Brasil. Dialogando com Michel Foucault,

    Robert Castel, Roberto Machado, Marisa Correa e Thomas Szasz, entre

    outros, Carrara fala das grandes questes da modernidade, sobretudo da

    questo do livre arbtrio e da responsabilidade criminal, epicentro da dis-

    cusso sobre a natureza da pessoa humana e as formas de controle social

    no perodo. Por um lado posicionavam-se aqueles socilogos, psiquiatras

    e juristas, defensores do direito positivo, que queriam retirar a responsa-

    bilidade de todos os criminosos, classificando o livre arbtrio como mera

    metafsica. Por outro lado, juntaram-se os defensores do direito clssi-

    co e do liberalismo, pautados na responsabilidade e na integridade do

    indivduo. O Manicmio Judicirio, ambivalente, ambguo e contradit-

    rio, parece uma maneira de agradar a gregos e troianos, mas, como bem

    mostra Carrara, ainda o sistema jurdico que fica com a ltima palavra.

    Enquanto os mdicos psiquiatras produzem os laudos, so os juzes que

    decidem sobre o destino dos acusados. So eles que emitem e revogam (ou

    no) as medidas de segurana. O totalitarismo inerente ao direito positivo

    foi, e continua sendo, pelo menos em princpio, controlado pelo sistema

    jurdico. Talvez seja por esta razo que o Manicmio Judicirio foi

    construdo to prximo penitenciria da rua Frei Caneca.

    PETER FRY

  • 21

    Alm disso, creio que o livro tem enorme importncia para a

    nossa atualidade, ajudando-nos a relativizar as posies do debate contem-

    porneo sobre criminalidade. Na discusso erudita sobre as causas da

    criminalidade, a oposio entre os positivistas e os clssicos continua,

    s que o biodeterminismo dos velhos criminalistas cedeu lugar a um

    sociodeterminismo que atribui o crime desigualdade social. a pobreza

    que diminui a responsabilidade dos infratores pobres, que se tornam

    menos sujeitos e mais objetos de uma sociedade cruel e injusta. Enquanto

    isso, grandes parcelas da populao no guardam as mesmas dvidas sobre

    a responsabilidade dos pequenos e grandes infratores. Crentes que a justi-

    a leniente demais para com os criminosos, preferem lanar mo da lex

    talionis com suas prprias mos, linchando supostos infratores, geralmen-

    te jovens e de cor mais escura, com requintes de crueldade. Outros, uma

    minoria, penso eu, fazem o que podem para fazer valer o Estado de

    Direito, cientes, como os seus precursores clssicos, de que este um

    sine qua non para a construo de uma sociedade democrtica na prtica

    e no apenas como figura de retrica. Ao ler o esplndido livro de Srgio

    Carrara no pude deixar de lembrar do imenso abismo que separa as

    eruditas palavras dos juristas, mdicos e psiquiatras da vida como ela fora

    dos gabinetes forenses. A aldeia-arquivo na qual Srgio Carrara condu-

    ziu sua pesquisa parece s vezes uma outra instituio total, e os inte-

    lectuais ali internados so levados a propor cdigos e legislao sem

    precisarem se defrontar com os outros cdigos, eles tambm muito pode-

    rosos, que regem o comportamento dos agentes da polcia, dos mdicos,

    dos juzes, dos advogados e da populao como um todo na sua prtica

    cotidiana. Atualmente, no Ministrio da Justia, uma comisso se debrua

    sobre a reforma do Cdigo Penal. Mais uma aldeia?

    Peter Fry.

    Rio de Janeiro, maro de 1998.

    APRESENTAO

  • captulo 1

    O Objeto da Investigao e sua Construo

    me aproximarei de vocs, beterrabas cortadas e cogumelos

    em lata. Sei que querem que eu fale de vocs. Todo mundo

    quer. Mas estou quase chegando coisa... a um ponto de refe-

    rncia, quero dizer. Se as leis do raciocnio so as mesmas leis das

    coisas, ento tambm a moral relativa... e os costumes e o pecado

    tambm so relativos, num universo relativo. Tem de ser. No se

    pode fugir disso. Ponto de referncia...

    J. Steinbeck (1966:85)

    J

    UM APRENDIZ DE ANTROPLOGO EM APUROS

    O incio do estudo que informa as idias expostas neste livro se

    prende a uma conversa em um pequeno restaurante de Campinas, j h

    alguns anos. L, durante um almoo, o professor Peter Fry me convidou

    para fazer com ele uma pesquisa sobre o Manicmio Judicirio do Rio de

    Janeiro1. Alm de um trabalho de campo nos moldes clssicos da antro-

    pologia social (observao participante, etc.), interessava ainda contemplar

    a histria da instituio na tentativa de compreender seu significado a

    partir do processo social do qual se originara.

    _____________

    1 Trata-se do atual Manicmio Judicirio Heitor Carrilho, que, daqui em diante, ser mencionadono texto apenas como MJ.

  • 24 SRGIO CARRARA

    Eu nunca vira uma penitenciria, muito menos um manicmio

    judicirio, mas a idia da pesquisa me agradava. Ainda me encontrava sob

    o impacto das brilhantes anlises de Michel Foucault e, alm disso, parecia

    haver particularmente na antropologia social do incio dos anos 80 (ao

    menos como eu a vivia) um grande interesse na constituio de um olhar

    mais amplo que desse conta de processos de mudana social, que estivesse

    mais atento aos deslocamentos de significado, irrupo do novo e

    questo do poder. A perspectiva de trabalhar com Peter Fry sobre essas

    questes me atraa pessoalmente. Embarquei...

    Em agosto de 1983, eu percorria pela primeira vez o sombrio e

    longo beco que, margeando os muros do presdio da rua Frei Caneca, vai

    dar nos feios portes do MJ. Acompanhava Peter Fry. Atravs do seu

    trabalho sobre o caso mdico-legal envolvendo Febrnio ndio do Brasil

    (FRY, 1982), ele mantivera previamente os contatos com a administrao

    do estabelecimento e nossa entrada estava aparentemente livre. Alm de

    auxili-lo em uma pesquisa mais ampla, eu esperava tirar daquela expe-

    rincia subsdios para a confeco de minha prpria dissertao de mes-

    trado.

    Tnhamos uma estratgia para um primeiro reconhecimento do

    universo a ser pesquisado e para um mapeamento preliminar de questes.

    Inicialmente, trabalharamos na valiosa e abandonada biblioteca que en-

    contramos no interior do MJ. Nela, o que mais nos interessava eram os

    Archivos do Manicmio do Rio de Janeiro, publicao que, a partir da d-

    cada de 1930, tornou-se a voz oficial da instituio2. Os Archivos, cuja

    publicao se encontra interrompida h muitos anos, eram inicialmente

    uma revista cientfica semestral, sendo que o primeiro nmero data do

    primeiro semestre de 1930. Sua publicao se fazia ento sob os auspcios

    do Diretor Geral da Assistncia a Psicopatas do Distrito Federal, Juliano

    Moreira, e era dirigida por um de seus discpulos, o dr. Heitor Carrilho,

    que se manteve tambm na direo do MJ desde a sua fundao, em 1921,

    at 1954, quando morreu. A revista continha artigos originais dedicados

    _____________

    2 Para maiores informaes sobre Carrilho e sobre a revista que dirigia, ver FRY, 1985.

  • 25O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    ao tema da loucura e do crime, alm de documentos (laudos, pareceres,

    sentenas...) de mdicos peritos, juzes e do Conselho Penitencirio do

    Rio de Janeiro. Alm disso, nossos olhos deveriam ir dos documentos ao

    entorno para que pudessem participar daquilo que (com ironia) podera-

    mos chamar a vida do lugar. A identificao dos pesquisadores com os

    empoeirados livros de uma biblioteca j bastante depredada facilitava nossa

    penetrao em um meio social onde a presena de intrusos e curiosos

    logo identificada e nem sempre bem aceita. Por outro lado, conforme

    pude constatar mais tarde, especializada na questo da relao entre crime

    e loucura, a biblioteca era motivo de orgulho principalmente para os

    mdicos e outros terapeutas. Ela era uma espcie de testemunho dos

    ureos tempos em que a instituio, alm de tratar certos indivduos,

    produzia um conhecimento cientfico cujo valor chegou mesmo a ser

    reconhecido por intelectuais brasileiros e estrangeiros. Assim, valorizar a

    biblioteca era, de certo modo, valorizar o que havia de mais caro e leg-

    timo no trabalho ali desenvolvido: sua fundamentao cientfica.

    No incio, nossa estratgia se mostrou produtiva. Alm da coleta

    de dados junto aos Archivos, participvamos das reunies da equipe tera-

    putica que, por uma feliz coincidncia, realizavam-se semanalmente na

    prpria biblioteca. Tais reunies eram abertas a todos os profissionais que

    mantinham contato direto com os internos. Geralmente, apareciam mdi-

    cos psiquiatras, psiclogos, assistentes sociais e enfermeiros. Raramente

    aparecia um dos dois advogados que trabalhavam na instituio, e mais

    raramente ainda algum representante do grupo dos guardas do MJ3. Alm

    disso, tivemos a oportunidade de conversar com alguns internos e assistir

    a algumas de suas atividades: jogos de futebol, assemblias, etc.

    Por ser um primeiro reconhecimento de terreno, a pesquisa no

    era intensiva: entre agosto de 1983 e maio de 1984, fiz umas trinta visitas

    _____________

    3 Salvo os mdicos psiquiatras e os advogados, a grande maioria dos profissionais que assistiam sreunies da equipe teraputica era composta de mulheres com formao profissional nas reas depsicologia, servio social e enfermagem. O nmero de participantes nessas reunies variava muito,e os assuntos giravam em torno de problemas no trato com os internos, de suas reivindicaes edas inovaes democratizantes que a equipe teraputica queria introduzir na dinmica institucional.

  • 26 SRGIO CARRARA

    ao MJ. Penso agora que o momento no poderia ter sido mais propcio

    para um trabalho de campo. A ento recente mudana do governo esta-

    dual, contextualizada por um processo de abertura poltica de mbito

    nacional, provocava o realinhamento dos grupos de poder no interior do

    sistema penitencirio carioca, do qual o MJ faz parte. A crtica priso

    e as tentativas de instaurao de uma nova poltica penitenciria marca-

    vam os governos de oposio que poca ascendiam ao poder. O objetivo

    mais amplo era o de preservar os direitos bsicos do preso e humanizar

    as prises consideradas elemento fundamental na reproduo e incremen-

    to da criminalidade no Brasil (FRY & CARRARA, 1986). Essas mudanas

    mais amplas tambm se faziam sentir no MJ, que se abria a um perodo

    de discusses e tentativas de reformas.

    Como se v, embora realizado em momento propcio, o perodo

    de observao direta foi bastante curto... Depois de algum tempo, Peter

    Fry encerrou seu trabalho, e ento seu aprendiz ficou sozinho, assustado

    e atordoado frente a uma realidade social que tem como caracterstica

    distintiva combinar de forma crtica srios problemas de ordem material

    e existencial. Tornou-se muito difcil empreender, na profundidade exigida

    pela abordagem antropolgica, a pesquisa em um campo que consegue

    articular, de um lado, duas das realidades mais deprimentes das sociedades

    modernas o asilo de alienados e a priso e, de outro, dois dos fantas-

    mas mais trgicos que nos perseguem a todos o criminoso e o louco.

    Foram de ordem emocional as razes que me fizeram debruar prefe-

    rencialmente sobre dados histricos e no etnogrficos. Entre mim

    mesmo e meu objeto emprico imediato, tive que fazer intervir a espes-

    sura tranqilizadora da palavra reificada, do registro histrico, mergu-

    lhando num mar de textos, leis, processos, ofcios, moes e pareceres.

    Porm, essa incurso histrica, cujos contornos desenharei adiante, cons-

    tituiu-se a partir de problemas levantados nesse perodo de observao

    direta. Assim, necessrio apresentar, antes de mais nada, alguns dos

    aspectos caractersticos que, a meus olhos, singularizam o MJ. Depois

    disso, poderei discutir a questo que me coloquei e a maneira escolhida

    para abord-la.

  • 27O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    O QUE EU PODIA VER ERA UM TANTO CONTRADITRIO

    Desde a primeira visita que fiz ao MJ, tive a impresso (dessas to

    caras antropologia) de estar entrando em uma instituio hbrida e con-

    traditria, de difcil definio. Alm disso, o MJ me pareceu totalmente

    incapaz de atingir os objetivos teraputicos a que se prope. certo que

    uma bibliografia j clssica nas cincias sociais vinha revelando que, sob

    a fachada mdica das instituies psiquitricas, desenrola-se, na verdade,

    uma prtica secular de conteno, moralizao e disciplinarizao de indi-

    vduos socialmente desviantes. De certo modo, denunciava-se a priso que

    existiria atrs de cada hospital. O trabalho instaurador de Erving Goffman

    (1974) chegou a mostrar que uma nica estrutura de relaes sociais po-

    deria ser encontrada tanto em presdios quanto em manicmios, ambos

    podendo ser bem compreendidos atravs de um nico conceito: o de

    instituio total. No entanto, se o manicmio e a priso so verdadeira-

    mente espcies de um mesmo gnero, como o demonstrou Goffman,

    o MJ chama a ateno justamente para a diferena que existe entre as duas

    espcies; e isso por sobrep-las em um mesmo espao social. O MJ se

    caracteriza fundamentalmente por ser ao mesmo tempo um espao prisional

    e asilar, penitencirio e hospitalar.

    Prenhe de conseqncias prticas, a diferena entre o asilo e a

    priso, visvel atravs do MJ, est amplamente ancorada nas definies

    opostas que mantemos a respeito do estatuto jurdico-moral dos habitantes

    de cada uma das instituies. Para a priso enviamos culpados; o hospital

    ou hospcio recebe inocentes. Sem dvida, a moderna percepo da loucu-

    ra e do crime fruto de um processo que, embora tortuoso, j dura bem

    dois sculos. Atravs desse processo, em que se empenharam mdicos,

    juristas e outros profissionais, generalizou-se a idia de que existe uma

    diferena de essncia entre as transgresses realizadas por sujeitos consi-

    derados alienados que no teriam controle nem conscincia de suas

    aes e aquelas provenientes de indivduos considerados normais que

    teriam controle sobre suas aes e plena conscincia de seu carter delin-

    qente ou desviante. No nvel do senso comum, bastante arraigada a

  • 28 SRGIO CARRARA

    idia de que o crime se ope loucura como a culpa inocncia. Do

    mesmo modo, a idia de pena e a idia de tratamento ainda se excluem,

    pois, apesar de todas as oscilaes por que j passou, a reao penal

    nunca deixou de significar explicitamente castigo ou expiao de uma

    culpa.

    Ora, se certo que vivemos em sociedades nas quais o comporta-

    mento individual (especialmente o considerado desviante) cada vez mais

    freqentemente compreendido nos termos de uma determinao psicol-

    gica, no menos certo que, apesar de tais determinaes, fazemos ainda

    uma clara e imediata avaliao moral de transgresses realizadas por indi-

    vduos julgados mentalmente sadios e isentamos desse tipo de avaliao as

    transgresses perpetradas por indivduos considerados alienados ou doentes

    mentais. Embora possamos alocar inmeras determinaes psicolgicas

    ou sociolgicas como causas da delinqncia, nenhuma delas, alm da

    prpria doena mental, tem o poder de irresponsabilizar moral e penal-

    mente os delinqentes.

    Assim, a despeito de infinitas nuanas, continuamos a distinguir

    claramente os atos desviantes que seriam frutos da loucura dos atos

    desviantes que seriam fruto da delinqncia e os apreendemos atravs de

    conjuntos de representaes que se opem em relao ao estatuto de sujeito

    responsvel que atribuem ou no aos transgressores. Frente a tais repre-

    sentaes, o MJ, instituio destinada a loucos-criminosos, no deixa de

    parecer fundado sobre uma contradio. De fato, atravs de minha expe-

    rincia em campo, foi possvel perceber que a instituio apresenta a

    ambivalncia como marca distintiva e a ambigidade como espcie (se os

    psiquiatras me permitem o uso da expresso) de defeito constitucional.

    Atravs da legislao e do tratamento dispensado aos loucos-criminosos,

    foi possvel ainda perceber que essa ambivalncia poderia ser detectada em

    vrios nveis. Uma linha, a um s tempo lgica e sociolgica, parece

    atravessar toda a instituio, marcando desde a legislao que a suporta at

    a identidade auto-atribuda dos internos e das equipes de profissionais

    encarregadas do estabelecimento. Quando comecei minha pesquisa, no

    sabia que essa linha um longo e caudaloso rio cujas nascentes histricas

  • 29O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    se localizam na segunda metade do sculo XIX. Para demonstrar a impor-

    tncia da linha que torna a instituio contraditria e inconsistente, bem

    como as implicaes prticas da distino que instaura, repassarei agora

    alguns pontos que podem esclarec-la. bom ressaltar que a discusso que

    se segue no pretende ser uma anlise acabada e final; visa apenas a dese-

    nhar o perfil de um problema.

    MDICOS VERSUS JUZES: PROBLEMAS LEGAIS

    Como se realizam legal e formalmente as entradas e sadas num

    manicmio judicirio brasileiro? A legislao vigente poca da observa-

    o4 previa basicamente duas situaes: uma referente ao condenado

    preso e outra ao acusado no decorrer do processo penal.

    1) Caso a suspeita de doena mental surja durante o cumprimento da

    pena, estando o condenado preso, o diretor do presdio o transferir para

    o MJ, onde os peritos o examinaro. O juiz deve ser informado dos

    procedimentos e dos resultados dos exames. Se alguma doena mental for

    diagnosticada, o internamento imediato. Caso tal doena perdure por

    todo o tempo de interdio previsto pela pena que o sentenciado vinha

    cumprindo, diz laconicamente o Cdigo de Processo Penal que, finda a

    pena, o indivduo ter o destino aconselhado por sua enfermidade...

    (CPP, art. 682).

    2) Se, durante o processo-crime, for levantada a hiptese de ser o acusado

    um doente mental ou ter desenvolvimento mental incompleto ou

    retardado (CP, art. 22), ele dever ser internado no MJ pelo tempo que

    os peritos julgarem necessrio para fazerem um diagnstico. Caso se

    conclua que o acusado no podia compreender o carter criminoso do_____________

    4 Tratarei aqui da legislao vigente no momento da observao, ou seja, dos Cdigos Penal (CP)e de Processo Penal (CPP) que vigoraram no pas desde o incio dos anos 40 at janeiro de 1985.Nesse ano, um novo Cdigo Penal apareceu alterando alguns pontos referentes internao emmanicmio judicirio. Apesar das alteraes, o perfil geral desse tipo de internao continua omesmo. Sobre as novidades introduzidas, ver FRY e CARRARA, 1986.

  • 30 SRGIO CARRARA

    seu ato por ser um alienado, ficando provado o crime ou sua capacidade

    de comet-lo sua periculosidade ele poder ser internado sem julga-

    mento no MJ, mediante uma medida-de-segurana5. Neste caso, ele

    considerado penalmente irresponsvel, devendo entretanto ser segregado

    para um tratamento obrigatrio. A durao mnima da medida-de-segu-

    rana para tratamento estipulada por lei (CP, art. 91), sendo menor mas

    proporcional durao da pena que seria prevista para o mesmo crime

    caso seu autor fosse considerado responsvel, ou seja, mentalmente sadio

    e desenvolvido. Ao trmino do prazo estipulado para a medida-de-segu-

    rana, novo laudo mdico psiquitrico deve ser produzido para a avali-

    ao do estado mental do acusado e/ou de sua periculosidade. Caso o

    juiz constate, mediante o laudo, que o interno continua doente e/ou

    perigoso, seu internamento deve prosseguir. Alm disso, nessa legislao,

    muito importante o fato de o juiz ter o direito de recusar os laudos

    psiquitricos no todo ou em parte, qualquer que seja o resultado de tais

    laudos.

    Frente legislao acima resumida, o primeiro ponto a ser discu-

    tido o que se refere prpria posio do perito psiquiatra e relao

    entre seu papel e o que desempenhado pelo juiz. Neste sentido, inte-

    ressante notar que, por no ser psiquiatra, o juiz tem obrigao de pedir

    uma percia mdico-psiquitrica nos casos em que se duvida da sanidade

    mental de um acusado, mas, por ser juiz, ele pode recusar os resultados

    dessa percia no todo ou em parte. No se pode deixar de perceber o

    conflito de competncia que subjaz superfcie ordenada das disposies_____________

    5 O Cdigo Penal de 1940 se caracterizava pelo chamado sistema do duplo binrio. Fruto daslongas discusses que precederam o aparecimento do Cdigo, tal sistema se caracterizava porcomportar dois tipos de reao penal. De um lado, a pena, de carter expiatrio, medida segundoo grau de culpabilidade do sujeito e a gravidade de seu ato, e, de outro, a medida-de-segurana,fundada na avaliao do grau de periculosidade do acusado. A medida-de-segurana deveria atingiros loucos-criminosos e algumas outras classes de delinqentes no-alienados. Sua particularidadefrente pena foi bem sintetizada por Fragoso: A pena sano e se aplica por fato certo, o crimepraticado, ao passo que a medida-de-segurana no sano e se aplica por fato provvel, a repetiode novos crimes. A pena medida aflitiva, ao passo que a medida-de-segurana tratamento, tendonatureza assistencial, medicinal ou pedaggica. O carter aflitivo que esta ltima apresenta no fimpretendido, mas meio indispensvel para sua execuo finalstica (FRAGOSO, 1981:7).

  • 31O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    legais e como, atravs delas, a autoridade judiciria se protege (ao arre-

    pio da lgica), impondo limites ao poder de interveno dos psiquiatras

    em matria penal. Assim, por exemplo, durante o perodo de observao

    direta, foi internada no MJ uma jovem psicloga envolvida com drogas.

    Pelas informaes que obtive ento, o laudo produzido pelos peritos do

    MJ atestava dependncia psquica e aconselhava o internamento. O juiz,

    no entanto, no aceitou o resultado do laudo, e a jovem acabou sendo

    transferida para presdio comum, acusada de trfico de maconha.

    Uma outra face do mesmo problema parece estar presente no que

    diz respeito durao do perodo de internao. Ora, h um descompasso

    evidente entre a idia de uma medida-de-segurana com durao mnima

    estabelecida pelos tribunais, e proporcional pena atribuvel ao mesmo

    crime caso tivesse sido cometido por pessoa sadia, e as concepes

    individualizantes da medicina relativas ao processo de doena e de cura.

    Parece que no se pode exigir de uma doena que respeite os prazos legais,

    embora seja exatamente isso que faz o Cdigo Penal. Essa nova inconsis-

    tncia lgica aponta ainda para o fato de haver uma hesitao visvel, na

    legislao e nos preceitos que institui, quanto a aceitar o fato de que,

    tendo sido transformado em paciente, o delinqente deveria logicamente

    ser retirado das malhas da lei para ser integralmente abandonado nas

    mos dos psiquiatras. A formulao de um internamento mdico com

    prazo mnimo determinado por lei um timo exemplo da complexidade

    da interpenetrao de um modelo de interveno mdica e de um modelo

    de interveno jurdica. Tal interpenetrao problemtica aponta, desde

    logo, para a ambigidade do estatuto mdico-legal dos chamados loucos-

    criminosos, habitantes de uma regio estranha onde culpa e inocncia

    parecem se defrontar com igualdade de foras.

    Para que se compreenda bem as reservas apontadas na legislao

    quanto atuao dos mdicos psiquiatras nas questes penais, deve-se ter

    em conta as prprias caractersticas da percia psiquitrica e seu poder de

    interveno. Somente o perito psiquiatra, atravs de sua avaliao, pode

    reivindicar o poder de interromper um processo, pronunciar-se sobre a

    responsabilidade penal de um acusado e, o que mais importante, selar o

  • 32 SRGIO CARRARA

    seu destino. Assim, de alguma forma, os papis desempenhados por juzes

    e peritos psiquiatras se confundem e se colocam em uma clara relao de

    concorrncia. Analisando legislaes penais americanas, cujas disposies

    sobre o assunto em muito se assemelham s nossas, Thomas Szasz aponta

    para a mesma indefinio entre os papis do perito psiquiatra e dos juzes,

    bem como para a especificidade desse tipo de percia. Segundo o autor,

    ...de fato, a Justia reconhece um argumento psiquitrico e uma con-

    denao psiquitrica. O acusado tem o direito de pleitear que no

    culpado, devido loucura. O jri tem o direito de dar o veredicto

    no culpado por motivo de loucura e, finalmente, o juiz tem o direi-

    to de condenar um acusado ao internamento em hospital psiquitrico.

    Ao contrrio, o testemunho de outros peritos no pode evitar que um

    acusado seja julgado, ou ajud-lo a se dizer no culpado, nem justi-

    ficar um mtodo especial de cumprimento da pena; e, por fim, os

    peritos no-psiquiatras no podem dotar a sociedade de um sistema de

    penitencirias paralegais nas quais os indivduos socialmente desviantes

    sero confinados, para sempre se preciso for... 6 (SZASZ, 1977:146).

    Em seu livro sobre as relaes entre a psiquiatria e a lei nos Esta-

    dos Unidos, Szasz no deixa claro quais so os limites impostos pela lei

    interveno dos psiquiatras7. certo que se no houvesse limite algum

    sua interveno, o perito psiquiatra se converteria em juiz muito mais

    _____________

    6 ...en fait, la justice reconnat une requte psychiatrique et une condemnation psychiatrique. Laccusa le droit de plaider non coupable pour raison de folie. Le jury a le droit de rendre le veredict noncoupable pour raison de folie et, enfin, le juge a le droit de condamner un accus linternament enhpital psychiatrique. Au contraire, le tmoignage des autres experts ne peut viter un accus dtrejug, ou laider plaider non-coupable, ni justifier une mthode spciale dacquittement; et enfin, lesexperts non-psychiatres ne peuvent doter la socit dun systme de pnitenciers para-lgaux dans lesquelesles individus socialment dviants seront enferms, prptuet si besoin est...

    7 Como nos Estados Unidos os cdigos penais variam de estado para estado, o panorama fica umtanto mais complicado. Comparando o internamento em hospcio comum e o internamento emhospcio criminal no Distrito de Colmbia, diz Szasz que, enquanto o primeiro controladoexclusivamente pelos psiquiatras, o segundo controlado basicamente pelos tribunais (SZASZ,1977:180-181). A se crer em sua descrio, ao menos a situao do Distrito de Colmbia no difereessencialmente da que estamos descrevendo para o Brasil.

  • 33O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    poderoso. De um lado, sua sentena no poderia ser referida e contro-

    lada por qualquer corpo de formulao dogmtica, pois a cincia, por mais

    positivistas que sejamos, est longe de ter tal perfil. De outro lado, no

    haveria nenhuma instncia superior qual se pudesse recorrer em caso de

    discordncia.

    Essas peculiaridades legais no deixavam de confirmar uma outra

    primeira impresso que tive ao visitar o MJ a de que seus muros no

    haviam sido construdos apenas para conter os movimentos indesejveis

    dos internos; em seus limites, estavam tambm contidas as possibilidades

    de interveno dos psiquiatras nas questes criminais. As ambigidades

    presentes no Cdigo Penal em relao ao perfil mdico-legal dessa popu-

    lao de pacientes-delinqentes (que, como j se pode observar, tambm

    a outra face da complexa relao entre juzes e peritos psiquiatras) no

    deixavam de se reproduzir intramuros. o que passarei a considerar.

    TERAPEUTAS VERSUS GUARDAS: QUESTES INSTITUCIONAIS

    Se todo hospital psiquitrico no deixa de ter semelhanas estru-

    turais com a priso, o MJ tem suas particularidades. Concebido enquanto

    priso/hospital ou hospital/priso, o estabelecimento conta basicamente

    com a atuao de duas equipes de profissionais: os guardas, de um lado,

    e os terapeutas, de outro. Como j disse, visitei a instituio durante um

    perodo de transformaes e de crises. Provavelmente por essa razo, o

    cenrio de atuao dessas duas equipes estava em parte destrudo, e os

    bastidores amplamente expostos. Por detrs do palco, as relaes que se

    viam no eram l muito amistosas...

    Os terapeutas (equipe com a qual tive efetivamente contato) per-

    cebiam os guardas como uma espcie de inimigo interno nmero um,

    acusando-os principalmente de no compreenderem o carter mdico da

    instituio e de tratarem os internos como presos comuns. Como vimos,

    os guardas raramente apareciam nas reunies da equipe teraputica, o que

    significava que tinham bastante autonomia para no se engajarem no projeto

    de medicalizao proposto pelos outros profissionais. Essa autonomia

  • 34 SRGIO CARRARA

    relativa dos guardas em relao aos terapeutas e prpria direo da

    instituio, ocupada tradicionalmente por um mdico psiquiatra, pode

    bem ser explicada por dois fatores. De um lado, o fato de o MJ fazer parte

    do sistema penitencirio e estar prximo de um importante complexo

    penitencirio o fazia mais parecido com uma priso do que com um

    hospital. O fato de pertencer ao sistema penitencirio carioca fazia ainda

    com que suas equipes profissionais se vinculassem diretamente a chefias

    superiores que no estavam imediatamente subordinadas autoridade do

    mdico diretor. De outro lado, pareceu-me que, em termos de alianas

    com os internos, os guardas levavam vantagem sobre os terapeutas, pois

    alm de exercerem o poder repressivo mais imediato, tinham um contato

    mais constante com os internos. Parecia mesmo ser trabalhoso conseguir

    que a presena dos terapeutas no interior da instituio fosse regular e, de

    qualquer maneira, aps as 18 horas ela ficava inteiramente sob controle

    dos guardas8.

    Quaisquer que fossem as razes da autonomia dos guardas, ela era

    encarada como um problema srio nas reunies da equipe teraputica.

    Eram constantes as reclamaes a respeito de abuso de poder por parte

    dos policiais: espancamentos, punies disciplinares consideradas injustas,

    proteo a certos internos, etc. Em uma dessas reunies, um dos psi-

    quiatras chegou inclusive a afirmar que, mesmo aos olhos psicticos dos

    internos, era bvio quem detinha o poder no interior da instituio, pois

    eles chamavam o chefe da guarda de vice-diretor. Assim, a figura mtica

    do mdico-diretor no reinava soberana no interior do MJ. E isso, aos

    olhos dos terapeutas, desvirtuava o carter hospitalar de que a instituio

    deveria se revestir. O esprito democratizante e inovador pedia que tal

    situao fosse revertida.

    _____________

    8 Segundo revelaes da prpria equipe teraputica, o MJ era visto por muitos profissionais comoum bico ou um trampolim para alcanar posies em lugares mais agradveis. Quando fizminhas observaes, havia uma carncia de mdicos na equipe teraputica o nmero de mdicosera de cinco para cerca de cento e cinqenta internos. Mesmo assim, durante o perodo de obser-vao, dois deles foram deslocados para atividades no setor de percias. A opinio mais ou menosconsensual da equipe era a de que trabalhar diretamente com os internos era acumular frustraese quem podia sair dessa atividade no titubeava.

  • 35O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    A luta por uma medicalizao mais completa do espao institucional

    no encontrava, no entanto, resistncia apenas nos guardas e em seu chefe,

    detentor de uma posio tradicional de mando. Havia tambm resistncia

    de parte dos internos (ao menos de alguns), e um pequeno episdio pode

    atestar o fato. Eu andava certa vez no interior do MJ com uma das

    psiclogas da equipe. Ela me contava que, no dia anterior, um paciente

    viera lhe mostrar a marca de um chute que levara de um dos guardas. O

    paciente se escondia ento atrs dela, apontando para o guarda que o

    agredira. Segundo me dizia a psicloga, a ordem do diretor era que tais

    fatos fossem imediatamente denunciados e era o que ela faria. Exatamente

    no meio da conversa, fomos interpelados por um outro interno que,

    voltando-se ameaadoramente para a psicloga, disse: a senhora pode

    denunciar, mas se denunciar os meus PMs, a senhora que leva coronhada.

    A relao entre terapeutas e guardas era sem dvida bastante

    complicada e espelhava no nvel da instituio a tenso presente, na le-

    gislao e nos tribunais, entre juzes e peritos mdicos-psiquiatras. Mas,

    pelo que pude entender, a proposta da equipe teraputica no era simples-

    mente eliminar os guardas, mas, sim, control-los, submetendo-os sua

    autoridade. Realmente, os guardas eram imprescindveis e tinham consci-

    ncia disso. s vezes, durante uma reunio, algum relatava ameaas do

    chefe dos guardas. Ele dizia, ironicamente, que iria deixar o MJ nas mos

    dos terapeutas s para ver o que acontecia.... A equipe teraputica

    reconhecia a necessidade da presena dos guardas e, em alguns momentos,

    tentava mesmo explicar a sua atuao violenta por falhas do controle

    propriamente mdico. Como disse em certa reunio uma outra psicloga:

    ...sem medicao pode-se acender o farol vermelho dentro do mani-

    cmio. Os pacientes no esto sendo medicados. Os guardas interpretam

    seus comportamentos como insubordinao e intervm: tranca, violn-

    cias, etc.

    Pode-se perceber que, para os internos, as opes no eram l

    muito boas: ou suas aes eram interpretadas como rebeldia, sendo puni-

    das, ou como agudizao do quadro mrbido, devendo ser contidas qui-

    micamente. No entanto, a declarao acima transcrita aponta ainda para

  • 36 SRGIO CARRARA

    o que julgo ser o centro dos problemas que opunham terapeutas e guardas,

    qual seja, a avaliao diferencial que construam em torno da identidade

    dos internos. Eles pareciam ser mais pacientes para uns e mais delin-

    qentes para outros. Mas a ambigidade da posio dos internos no se

    revelava apenas no tratamento especfico que guardas e terapeutas lhes

    dispensavam. Ela minava de contradies a atuao da prpria equipe

    teraputica, que se via muitas vezes presa numa camisa-de-fora que

    impedia de levar adiante seus projetos humanitrios e medicalizantes.

    Vejamos algumas evidncias desse fato.

    Como j disse, visitei o MJ durante um perodo em que a nfase

    global da poltica penitenciria dos governos de oposio era a

    humanizao dos presdios e a defesa dos direitos dos presos, proposta

    que se estendia tambm aos hospcios e outras instituies asilares. En-

    quanto parte do sistema penitencirio, o MJ acompanhava tal movimen-

    to. Uma das maiores inovaes nesse sentido foi, segundo me parece, a

    criao de uma assemblia geral dos internos. Atravs das reunies

    semanais, deveriam escoar as reivindicaes e propostas dos internos. No

    entanto, alm da assemblia ser sempre presidida por um dos membros

    da equipe teraputica, esta parecia consider-la muito mais parte do tra-

    tamento psiquitrico do que uma atividade poltica. Era assim que as

    reivindicaes e propostas de resoluo de problemas imediatos e coti-

    dianos provenientes da assemblia passavam por discusses dos terapeutas

    em reunies exclusivas, antes de atingirem seu destino ou de serem

    implementadas. A reinterpretao psicologizante (e conseqente

    desqualificao poltica) de reivindicaes bem concretas no era rara. De

    qualquer forma, os terapeutas constituam uma espcie de filtro que se-

    lecionava e avaliava cada proposta dos internos, fazendo a mediao entre

    eles e a direo da instituio. Ao que parece, enquanto presos, os in-

    ternos tinham o direito de se reunir e encaminhar propostas de mudan-

    as, mas, enquanto alienados ou doentes, necessitavam de uma mediao

    que avaliasse a lucidez de cada reivindicao. Em um mesmo movimen-

    to, reconhecia-se a existncia de direitos dos internos e sua incapacidade

    de exerc-los plenamente.

  • 37O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    Mas vejamos como a posio de delinqente-paciente afetava o

    debate e o encaminhamento de alguns desses direitos. A caixa de correio

    e o telefone pblico eram considerados pela equipe teraputica reivindi-

    caes legtimas, porm seu atendimento passava por uma reflexo sobre

    a possibilidade do uso irracional que os internos poderiam fazer desses

    instrumentos de comunicao com o mundo extramuros. O mesmo

    impasse se fazia sentir quando os terapeutas pensavam no possvel con-

    tato entre internos e internas no interior do MJ. Para isso, fora institudo

    um forr teraputico, baile semanal onde se encontravam internos de

    ambos os sexos. Porm, embora incentivado, o contato deveria ser bem

    controlado. E se surgissem casos de gravidez? Mesmo se houvesse uma

    creche no interior do MJ (como acontece em alguns presdios), os in-

    ternos, por serem alienados, no poderiam se responsabilizar por seus

    filhos.

    Uma outra reivindicao problemtica era o parlatrio, ampla-

    mente reconhecido como um direito de preso. Um dos internos com

    quem conversei dizia que um dos maiores problemas do MJ era a ausncia

    de mulher, ou melhor, a impossibilidade de relacionamentos sexuais com

    mulheres. Relaes homossexuais entre os internos, embora toleradas, eram

    vistas pela prpria equipe teraputica como problemticas. Para alguns

    terapeutas, as relaes homossexuais, alm de serem ocasio para conflitos

    (rivalidades, cimes, etc.) eram vistas ainda como manifestao mrbida

    da personalidade. Um parlatrio onde os internos pudessem receber seus

    parceiros(as) sexuais, alm de ser um direito, aparecia como forma de

    resolver tais questes. No entanto, os terapeutas hesitavam em implement-

    lo. Alguns temiam que os internos cometessem violncia dentro do

    parlatrio. Caso isso acontecesse, de quem seria a responsabilidade? Nova-

    mente aqui aparece a atitude paradoxal de reconhecimento dos direitos

    dos internos e de sua incapacidade de exerc-los. O fato de serem delin-

    qentes colocava empecilhos a propostas que procurassem trat-los plena-

    mente enquanto pacientes; o fato de serem pacientes (alienados) impedia,

    por sua vez, que eles fossem humanitariamente tratados enquanto

    simples presos ou delinqentes.

  • 38 SRGIO CARRARA

    DOIDINHOS E PEPEZES

    Abordarei agora um ltimo nvel sobre o qual a identidade de

    paciente-delinqente projetava, a meus olhos, sua imagem inconsistente.

    Conversando com alguns internos pude vislumbrar de forma precria,

    verdade a maneira como tal identidade era vivida por eles. Absoluta-

    mente notvel, primeira vista, era o fato de os internos quase sempre se

    dizerem presos, e no doentes, ou de se referirem sua estada no MJ

    quase sempre como uma pena, e nunca como um tratamento. Aparen-

    temente, preferiam a identidade de delinqente de paciente. Mas tambm

    a havia ambigidades e possibilidade de manipulaes. Tomemos um

    exemplo.

    D. Maria j estava h seis anos no MJ por ter estrangulado, segun-

    do me contou, duas outras mulheres dentro de um hospcio pblico ca-

    rioca, para onde fora levada durante uma crise. Quando a conheci, ela

    trabalhava como contnuo no prdio da administrao, atividade que

    considerava um preparo e um teste para a sua sada, prxima, pois o prazo

    mnimo de sua medida-de-segurana se esgotava. Tinha muitas crticas ao

    estabelecimento, que comparava constantemente ao Talavera Bruce (pre-

    sdio feminino do Rio de Janeiro), onde estivera inicialmente presa. Apesar

    de reconhecer ser o Talavera Bruce mais violento que o MJ, apon-

    tava para o fato de l existirem atividades remuneradas e maior espao

    fsico para as presas. Reclamava da ausncia de peclio no MJ, das insta-

    laes dos cubculos e da comida (reclamao, alis, generalizada; alguns

    internos se referiam comida como lavagem). Para d. Maria, o MJ s

    era fcil para os mdicos e para os guardas que viviam s custas dos

    presos que no lhes davam muito trabalho por estarem constantemente

    drogados. Assim, segundo me disse, a nica bagagem que levava do MJ

    era o fato de j estar aviciada nos remdios, sem os quais no conseguia

    mais dormir. Bem, nas vrias conversas que tivemos, d. Maria sempre me

    falou de sua pena e sempre se referiu ao MJ como uma priso ou

    cadeia. Porm, por uma vez, matizou sua identidade de presa. Falva-

    mos do caso do internamento para exames da j citada psicloga de classe

  • 39O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    mdia, acusada de envolvimento no trfico de drogas. Segundo d. Maria,

    as outras internas se sentiam menosprezadas pelo comportamento da psi-

    cloga: ...ela nem bebe a gua que todos bebem..., contava d. Maria.

    Dentro desse contexto, ela dizia que a psicloga no era como todos, ou

    seja, que ela no era doente, nem artigo vinte e dois.9 Segundo d.

    Maria, o que a psicloga tinha era dinheiro e um bom advogado que

    tentava livr-la de uma merecida cadeia. Neste sentido, d. Maria se

    inocentava, pois, enquanto doente, no merecia ser punida.

    Assim, parece, no so somente os terapeutas os atingidos pela

    ambigidade da posio institucional dos internos. Estes se mostram igual-

    mente confusos quanto sua posio. exatamente o que tambm notou

    Szasz em relao aos hospcios-prises americanos. Referindo-se aos in-

    ternos, diz Szasz:

    Os doentes mentais so os mais confusos, pois no sabem se so pacientes ou

    criminosos. Se desejssemos deliberadamente fazer mal aos doentes mentais,

    cujo maior problema sua total incompreenso de qual seja seu papel na

    vida, no poderamos criar um sistema patognico mais eficaz que a atual

    definio jurdico-social de seu estatuto. Os psiquiatras, por seu lado, no

    esto menos confusos. Por fim, mas no menos importante, os juristas e

    legisladores perderam completamente de vista o que distingue a doena mental

    da criminalidade.10 (SZASZ, 1977:181).

    Ainda do ponto de vista dos internos com quem pude conversar,

    importante salientar a maneira como se classificavam a si prprios en-

    quanto populao internada. Para d. Maria, por exemplo, alm dos

    _____________

    9 Refere-se aqui ao nmero do artigo que, no Cdigo Penal vigente at 1985, isentava de respon-sabilidade penal os doentes mentais e congneres.

    10 Quant aux malades mentaux, ce sont eux les plus confus, car ils ne savent pas sils sont des patientsou des criminels. Si nous voulions dlibrment faire du mal aux malades mentaux, dont les problmesmajeurs rsident dans leurs total incomprhension de ce quest leur role dans la vie, nous ne pourrionspas inventer de systme pathogne plus efficace que lactuelle dfinition juridico-sociale de leur statut.Les psychiatres, pour leur compte, ne sont pas moins confus. Enfin, et non des moindres, les juristeset les legislateurs ont compltement perdu de vue ce qui distingue la maladie mentale de lacr iminal i t .

  • 40 SRGIO CARRARA

    doidinhos, o MJ agregava ainda os bons e/ou colaboradores e/ou

    pepezes. Embora estas ltimas categorias se remetam a nveis distintos

    de avaliao, elas poderiam incidir sobre um mesmo indivduo, tornando-

    se praticamente sinnimas. sumamente importante que eu faa desde j

    uma referncia a esses no-doidinhos, geralmente classificados de

    pepezes, pois, como veremos a partir dos dados histricos, eles esto

    visceralmente implicados com os manicmios judicirios, alm de represen-

    tarem uma nova face da identidade paciente-delinqente. Quem seriam

    eles?

    Vale a pena contar a histria de uma das figuras com quem tive

    contato mais direto na prpria biblioteca do MJ. Enquanto trabalhava nos

    Archivos, ele se ocupava, por vrias horas, com delicados tranados que

    fazia com linhas de mltiplas cores revestindo canetas Bic ou confeccio-

    nando pulseiras. Valtair trabalhava como faxina no prdio da admi-

    nistrao, tinha ento cerca de trinta e cinco anos e j estava h quatro no

    MJ. Desde as minhas primeiras visitas ele me chamou a ateno por seu

    ar um tanto altivo e desdenhoso. Aos poucos foi me contando sua his-

    tria.

    Valtair fora preso pela primeira vez ainda adolescente por

    envolvimento com trfico de drogas e por um assassinato. Depois de

    atingir a maioridade, foi libertado, mas, segundo contou, continuou no

    crime. Aos vinte e quatro anos, foi preso novamente: outro assassinato

    envolvendo quadrilhas de traficantes. Nessa poca, segundo ele, era con-

    siderado fera e me considerava fera. A partir da, no interior do presdio,

    Valtair iniciou sua carreira como um dos chefes da Falange do Jacar,

    organizao que controlava o trfico de drogas e o jogo no interior do

    sistema penitencirio carioca. J empreendera vrias fugas e conhecia todos

    os presdios do Rio. Alm dos processos penais ainda em andamento,

    se somadas, suas sentenas j lhe prescreviam cinqenta e oito anos de

    recluso. Por uma grande sorte, Valtair sobreviveu derrocada da Falange

    do Jacar e ascenso da Falange Vermelha. Saiu do conflito com ferimentos

    de dezenas de facadas e ficou hospitalizado durante quatro meses. Depois

    disso, entretanto, Valtair no tinha mais para onde ir. Em qualquer pre-

  • 41O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    sdio carioca seria morto pelos membros da Falange Vermelha. Assim,

    atravs de uma advogada, teria conseguido se internar no MJ. Dizia que

    somente no MJ poderia estar seguro, uma vez que l no havia falangistas,

    por serem os internos, em sua maioria, maluquinhos. Distinguindo-se

    destes, Valtair se dizia apenas um colaborador11, pois no era artigo

    vinte e dois, estando no MJ por uma espcie de seguro de vida. Porm,

    alguns terapeutas o apontavam como um perigoso pepezo.

    Os pepezes podiam preencher as funes de colaboradores

    porque eram considerados bons, ou seja, no apresentavam qualquer

    comportamento que pudesse ser percebido enquanto distrbio da inteli-

    gncia ou conscincia, embora fossem considerados perversos, ruins e

    naturalmente indisciplinados. Os terapeutas identificavam nos colabora-

    dores e pepezes a causa de vrios problemas da instituio, pois eles eram

    os aliados naturais dos guardas, manipuladores dos internos, responsveis

    pelos desvios de comida, etc.

    Alm disso, os pepezes podiam se transformar em lderes dos

    internos. Em uma das reunies exclusivas da equipe teraputica, quando

    se comentava o esvaziamento da assemblia geral dos internos, um dos

    terapeutas comentou: Daqui a pouco s vo aparecer os pepezes. Du-

    rante uma das assemblias gerais, pude presenciar a atuao de um interno

    considerado pepezo pela equipe teraputica, o Comprido. Presidindo a

    assemblia, um psiquiatra colocou em discusso o primeiro ponto da pauta:

    a festa de Natal do MJ. Interrompendo a fala do psiquiatra, Comprido

    levantou-se e disse, em tom de irritao, que os internos no precisavam

    de festa de Natal. Contrariado, dizia que o importante era resolverem a

    sujeira e a falta de botes nas roupas dos presos, a qualidade da comida,

    a ausncia de talheres, etc. Afirmava ainda que quem mandava naquela

    cadeia eram os colaboradores e que havia panelinhas de faxinas de

    bons monopolizando algumas atividades, como o jogo de futebol. Disse

    tudo isso e saiu indignado, enquanto uma terapeuta me informava que se

    tratava de outro perigoso pepezo._____________

    11 Em tese, o colaborador o detento deslocado de outras unidades do sistema penal para traba-lhar no MJ, no sendo, portanto, um louco-criminoso.

  • 42 SRGIO CARRARA

    Pepezo o sinnimo vulgar de personalidade-psicoptica.

    poca de minhas observaes, pude conseguir uma definio sumria da

    categoria atravs de um texto traduzido do Handbook for psychiatric aides

    e que era utilizado ento no treinamento de enfermeiros e dos guardas

    locais. Assim explicava o manual:

    Este ltimo grupo [das personalidades-psicopticas] integrado por pessoas

    com distrbios de conduta, que por vezes necessitam de tratamento hospita-

    lar. As personalidades psicopticas constituem grave problema para o

    hospital, dadas suas perverses, irregularidade, falta de senso tico-

    moral, tendncia mentira e mltiplas desordens de condutas. So

    pacientes indisciplinados, agressivos e insaciveis. Em geral no apresen-

    tam distrbio da conscincia e da inteligncia, preciso muito tato, bom

    senso e pacincia no trato com eles. Como esses pacientes necessitam de tra-

    tamento muito individualizado, no poderemos sugerir cuidados especiais

    (Handbook for Psychiatric Aides, 1977:26, grifos meus).

    Como se v pelo trecho acima, no se d uma definio clara da

    natureza do mal que afligiria as personalidades-psicopticas, no se indi-

    ca qualquer tratamento, nem tampouco afirma-se explicitamente que seu

    destino deva ser o hospcio (por vezes necessitam de tratamento hospi-

    talar...). Atravs de outro pequeno texto, a que tive acesso na poca e que

    tambm tratava dos pepezes, fiquei sabendo que a psiquiatria moderna

    (inspirada por Kurt Schneider) os considerava psiquicamente anormais

    sem, entretanto, coloc-los nos quadros dos fenmenos mrbidos. Deles,

    diz a autora:

    Anormal, porm no doente; merecedor de um rtulo dado como

    irrecupervel, a personalidade psicoptica assim definida de maneira con-

    traditria (PEREIRA, 1979:47, grifos meus).

    Para a autora desse trabalho, a psiquiatria utilizaria tal rtulo para

    desqualificar politicamente a resistncia demonstrada por alguns indivduos

  • 43O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    asilados frente ao poder mdico. Seriam os indisciplinados que os asilos

    tenderiam atualmente a no aceitar e a enviar s prises, no caso de serem

    criminosos. Esta era, alis, a posio da equipe teraputica do MJ, que

    advogava a retirada dos colaboradores e pepezes do estabelecimento. No

    MJ, deveriam apenas permanecer os doentes, os doidinhos ou maluquinhos,

    como diziam.

    Desde logo possvel perceber uma espcie de adequao formal

    entre a estrutura institucional que descrevo, eivada de contradies, e a

    tambm contraditria e ambgua figura do pepezo. Porm, s mais tarde

    iria perceber o fato de as personalidades-psicopticas estarem ligadas

    problemtica dos manicmios judicirios por inmeros laos, e ser mais

    tarde, neste trabalho, que voltarei a elas. Por ora, desejo enfatizar apenas

    que os internos, alm de poderem individualmente manipular sua identi-

    dade institucional dentro do eixo que ope delinqncia loucura, esto,

    eles mesmos, classificados em dois grupos. O primeiro seria composto por

    indivduos percebidos enquanto doentes, ou mais doentes (os

    doidinhos), e o segundo, por indivduos percebidos como mais delin-

    qentes. Membros deste ltimo grupo, os pepezes, apesar de anormais

    psquicos, deveriam ir preferencialmente para a priso, sendo qualificados

    atravs de avaliaes eminentemente morais: calculistas, frios, traioeiros,

    malvados, mentirosos, perigosos, etc.

    Alm da oposio entre doidinhos e pepezes, havia ainda, como

    vimos, a recusa dos internos a qualificarem o MJ como hospital ou

    hospcio ou se autodenominarem doentes. Assim, a maioria dos in-

    ternos com quem pude conversar se considerava boa, cumprindo pena

    em uma cadeia e reivindicando certos direitos bsicos: caixa de correio,

    telefone pblico, roupas limpas, parlatrio, comida razovel, trabalho

    remunerado.

    A PROPOSTA DE PESQUISA

    Neste momento, espero que a linha a que me referi pargrafos

    acima e que torna o MJ uma instituio ambgua j esteja ao menos

  • 44 SRGIO CARRARA

    esboada, bem como apontados alguns dos problemas que instaura. Ao

    que parece, essa linha constitui-se a partir da existncia de duas definies

    diferentes e, em certo nvel, contraditrias, a respeito de um mesmo espa-

    o social, o hospcio-priso. Conforme tentei demonstrar, a existncia

    dessas duas definies e de sua articulao problemtica se revela ao menos

    em dois planos: no plano legal e no institucional.

    importante ressaltar ainda que essa fronteira que perpassa todo

    o MJ em si mesma inglria. No distingue o sagrado do profano, o

    positivo do negativo, o que seria melhor do que seria pior. Os in-

    ternos se vem ento colocados frente a uma estranha encruzilhada: ino-

    centes mas tutelados e sem direitos de um lado; culpados mas sujeitos

    de certos direitos e deveres de outro. Um perodo de interdio menor

    mas que pode se estender por toda a vida, de um lado, um perodo de

    interdio legal maior mas com sada certa, de outro. Em seu livro j

    citado, Szasz no deixa de apontar para a mesma iniqidade:

    um jogo perverso. O tribunal joga segundo a regra coroa eu ganho, cara

    voc perde. Se culpado, o acusado vai para a priso; se no culpado mas

    louco, enviado a um hospital para loucos-criminosos. Por que acho este

    jogo perverso? Porque, se a inteno do tribunal ou da sociedade fosse real-

    mente oferecer tratamento psiquitrico a certos delinqentes, isso poderia

    muito bem ser feito na priso. O fato de que dispomos assim dos delinqen-

    tes, abandonando-os psiquiatria, me parece uma fraude monumental. Para

    o paciente delinqente no existe nem absolvio para sua culpa, nem

    tratamento. Isso no mais que um mtodo cmodo para se livrar dos

    indivduos que apresentam comportamentos anti-sociais12 (SZASZ, 1977:148,

    grifo meu)._____________

    12 Cest un jeu mchant. Le tribunal joue selon les rgles: pile-je-gagne, face-tu-perds. Sil est coupable,laccus ira en prison; sil nest pas coupable mais fou, on lenvoie dans un hpital rserv aux fouscriminels. Pourquoi est-ce que je pense quun tel jeu est mchant? Parce que, si lintention de la courou de la socit tait vraiment de faire soigner psychiatriquement certains dlinquants, on pourraitfort bien le faire en prison. Le fait quon dispose ainsi des dlinquants en les abandonnant lapsychiatrie, me semble une escroquerie monumentale. Pour le patient-dlinquant, il ny a ni absolutionpour sa culpabilit, ni traitement. Ce nest rien dautre quune mthode commode pour se dbarasserdes individus qui trahissent certains comportaments asociaux.

  • 45O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    Embora Szasz veja o problema e possa mesmo me ajudar a

    apresent-lo, no creio que o compreenda em toda a sua amplitude.

    claro que estamos frente a uma iniqidade e a um atentado a alguns dos

    direitos bsicos do cidado (como o direito de ser julgado), porm, quer

    seja dos tribunais ou da abstrata psiquiatria, a maldade no pode dar

    conta do jogo que o prprio autor aponta e cujo perfil acabei de descre-

    ver. certo que em outro momento de seu trabalho13 Szasz lanar uma

    outra hiptese para explicar a presena dos peritos psiquiatras nos tribu-

    nais e a existncia de manicmios criminais. Segundo o autor, esses fatos

    se explicariam atravs do sentimento de culpa que assolaria os juzes

    quando eles se vem frente a casos duvidosos nos quais a desconfiana

    quanto sanidade mental do acusado no tem o poder de impedir que

    alguma forma de punio lhe seja endereada. Embora no duvide que

    uma das funes da presena da psiquiatria nos tribunais seja essa, no

    posso deixar de observar que essa razo psicossociolgica no explica

    nem a existncia dos manicmios judicirios nem tampouco a forma es-

    pecfica atravs da qual se d a interferncia dos psiquiatras nas questes

    legais. Por que a justia no faz internar os indivduos delinqentes con-

    siderados loucos em sees especiais dos hospcios comuns ou os faz tratar

    nos prprios presdios, como prope Szasz? De uma das duas maneiras,

    estaria resolvido o sentimento de culpa dos juzes... Por outro lado,

    claro que estamos frente excluso de comportamentos associais, mas o

    que interessa justamente explicar a modalidade especfica dessa excluso.

    Assim, o que importa perguntar : por que tal jogo maldoso da

    maneira que , e no de uma outra maneira qualquer?

    Pelo que pude compreender, o problema bsico da abordagem de

    Szasz reside no fato de enfatizar sobretudo os nveis em que o papel e a

    atuao do psiquiatra se mostram complementares ou funcionalmente ade-

    quados aos do juiz. Por exemplo, no absolutamente correto dizer (como

    faz Szasz no trecho acima) que a justia abandona nas mos dos psi-

    _____________

    13 SZASZ, 1977, especialmente cap. 9.

  • 46 SRGIO CARRARA

    quiatras certos delinqentes, e isso tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos

    (ao menos o que se percebe atravs dos dados apresentados pelo prprio

    Szasz). Na verdade, a maldade desse jogo, sua face singular, reside jus-

    tamente no fato de a justia no o fazer plenamente14. Atravs dos dados

    que j apresentei at agora, espero ter ficado claro que o que se encontra,

    tanto na legislao referente aos loucos-criminosos quanto no destino social

    que lhes reservado, justamente a superposio complexa de dois mo-

    delos de interveno social: o modelo jurdico-punitivo e o modelo psi-

    quitrico-teraputico. Superposio e no justaposio, pois, como vi-

    mos, o modelo jurdico-punitivo parece englobar o modelo psiquitrico-

    teraputico, impondo limites mais ou menos precisos ao poder de inter-

    veno dos psiquiatras. Desta maneira, mais justo seria pensar o manic-

    mio judicirio como soluo final de um conflito histrico de com-

    petncias, de projetos e de representaes sociais mais abrangentes e no,

    simplesmente, como um acordo entre funes sociais complementares.

    Genericamente, o que transforma o MJ em um espao social paradoxal

    justamente o fato de combinar dois conjuntos de representaes e de

    prticas sociais que se fundam em concepes distintas e opostas sobre a

    pessoa humana sem que nenhum deles prevalea plenamente. De um lado,

    h a verso que poderia ser chamada jurdico-racionalista e que v o

    indivduo como sujeito de direitos e de deveres, capaz de adaptar livre-

    mente seu comportamento s leis e normas sociais, capaz de escolher

    transgredi-las ou respeit-las, capaz, enfim, de ser moral e penalmente

    responsabilizado por suas aes. De outro lado, h a verso que poderia

    ser denominada psicolgico-determinista, que v o indivduo (principal-

    mente o indivduo alienado) no enquanto sujeito, mas enquanto objeto

    de seus impulsos, pulses, fobias, paixes e desejos. Nessa ltima verso,

    as estruturas determinantes do comportamento, estando aqum da cons-

    _____________

    14 Evidentemente, no quero dizer com isso que a justia deveria faz-lo, apenas sublinho o fato dea combinao dos modelos de interveno mdico e legal acarretar conseqncias mais nefastas doque aquelas a que j so submetidos os indivduos atingidos por uma das duas espcies de inter-veno tomadas isoladamente.

  • 47O OBJETO DA INVESTIGAO E SUA CONSTRUO

    cincia e da vontade, no permitem que o indivduo seja moralmente

    responsabilizado no sentido do modelo anterior, no sendo, portanto,

    passvel de punio.

    Por coloc-los muito prximos, combinando-os de maneira con-

    traditria, o MJ no deixa de chamar a ateno para a existncia simult-

    nea, em nossa sociedade, desses dois cdigos incompatveis de compreen-

    so das aes humanas e da responsabilidade individual. Ainda sob outras

    formas, tais cdigos esto presentes em nossas avaliaes mais cotidianas

    e so atualizados segundo situaes muito concretas. Vivemos em socieda-

    des que conseguiram (e seria muito importante saber como concretamente

    o fizeram) articular duas concepes conflitantes da pessoa humana: uma

    moral e axiomtica; a outra objetiva e objetivante, cientfica. Apren-

    demos a lidar com estes dois cdigos distintos e, a partir deles, qualquer

    comportamento pode ser apreendido tanto em termos morais (culpado

    versus no-culpado; responsvel versus irresponsvel) quanto em termos

    mdico-psicolgicos, ou seja, como resultante de doenas, desequilbrios

    nervosos, traumas e socializao problemtica. Como bem notou Evans-

    Pritchard em seu clssico estudo sobre bruxaria africana, no so apenas

    os primitivos que no do grande importncia contradio existente

    entre os diferentes cdigos simblicos que acionam para tornar compre-

    ensveis os infortnios que atingem os homens. Tambm ns, diz ele,

    ...aceitamos explicaes cientficas das causas das doenas e mesmo da lou-

    cura, mas negamos essas explicaes nos casos de crime e de pecado, porque

    aqui elas entram em contradio com a lei e a moral que so axiomticas

    (EVANS-PRITCHARD, 1978:66).

    A partir de minha experincia no MJ e da percepo da instituio

    que obtive atravs dela, a questo que me coloquei inicialmente foi a de

    saber como tal estrutura institucional teria emergido historicamente. Tal

    questo poderia ainda ser formulada de outro modo: como, historicamen-

    te, surgiu a figura do louco-criminoso implicando o aparecimento de

    uma estrutura institucional especialmente voltada a seu tratamento

  • 48 SRGIO CARRARA

    ou conteno? Porm, se aceitarmos (como eu mesmo aceito) que a lou-

    cura foi (e continua sendo) em grande medida uma linguagem ampla-

    mente utilizada em nossa sociedade para controlar, gerir e, em alguma

    medida, neutralizar comportamentos que transgridem suas normas, valo-

    res e regras, a questo acima colocada merece ainda um enunciado diferen-

    te, mais largo e abrangente. O problema poderia ser colocado ento da

    seguinte forma: a partir de que relaes significativas entre representa-

    es e prticas que se ocupam da transgresso s normas e valores

    sociais foi possvel surgir a figura do louco-criminoso e a instituio

    que dele se ocupa?15. Tal enunciado mais satisfatrio porque coloca em

    foco o que julgo ser fundamental para a compreenso do surgimento do

    manicmio judicirio, ou seja, a maneira como se constitui o significado

    social do crime ou da transgresso a partir dos diversos discursos e prticas

    que os tomaram enquanto objetos de reflexo e de interveno, particu-

    larmente do discurso e prtica da medicina mental.

    Assim, pensei (e julgo, com acerto) que somente poderia entender

    a figura do louco-criminoso e a problemtica dos manicmios judicirios

    se os recolocassem, ainda que limitadamente, no contexto da ampla dis-

    cusso que, em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, se articulou em

    torno do crime e da transgresso. Esse momento histrico no somente

    assistiu ao ap