II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
DA AÇÃO PENAL 470 AO MORALISMO DAS ELITES: A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL NO TRATO DA POBREZA EM SÃO PAULO
OLIVEIRA SOBRINHO, Afonso Soares de.
Doutorando em Direito – FADISP
Endereço: Pça da Sé, 399, Cj. 201, CEP 01001-000, São Paulo – SP. [email protected]
RESUMO
No discurso da grande mídia, em sintonia com as elites paulistanas, a corrupção do país acontece em Brasília. São Paulo é um território ordeiro e do progresso, traduzido em boas condições de vida para todos. A ação penal 470 cai ―como uma luva‖ no resgate moralista das elites locais. É preciso resgatar o poder de mando local da locomotiva do país (centro financeiro). No entanto, se ignora as contradições sociais da cidade, em especial pela violência institucional no trato da pobreza.
Palavras-chave: Ação Penal 470. Elite Moralista. Violência Institucional. Pobreza.
Introdução
É recorrente, na grande mídia, o discurso do resgate ético do Brasil. Em especial, a
partir do julgamento da Ação Penal 470 (denominada mensalão1) pelo Supremo Tribunal
Federal, com a aplicação da Teoria do Domínio do Fato2 (exalta-se o papel de vanguarda da
Suprema Corte pelo célebre ativismo judicial), as elites imbuídas do ―nobre sentimento
nacional‖ seriam o ―último bastião‖ na luta contra a corrupção. Defende-se, dessa forma, o
moralismo burguês. Haja vista mais que palavras éticas, a realidade social dos pobres é de
violência e não efetividade dos direitos sociais, assim como acontece em São Paulo, onde
os governos locais tratam a questão da pobreza como caso de polícia (tradição repressiva
em sufocar os movimentos sociais, sob o pretexto de combater a desordem).
Mais recentemente, identifica-se a tentativa de criminalização do movimento
estudantil, denominado ―Passe Livre‖, por meio do qual se protesta contra o aumento da
tarifa nos transportes públicos3. Trata-se de um movimento legítimo se consideramos o
direito de participação política de todo cidadão para além da ida às urnas a cada quatro
anos, assim como a precarização nas condições de vida e trabalho na cidade síntese do
capitalismo nacional.
Embora apontem que as mazelas do país se situam no plano federal, as elites
conservadoras, sob o pretexto de combate à corrupção do governo central, ignoram a
pobreza na cidade.
Para além de discursos moralistas, portanto, a ética, como práxis, envolve o
reconhecimento da alteridade na constituição da cidade, assegurando-lhe dignidade,
mediante políticas públicas, com educação de qualidade, saúde, moradia, emprego e não
1 ―[...] O Supremo Tribunal Federal concluiu que o mensalão foi um esquema ilegal de financiamento político,
organizado pelo PT, para corromper parlamentares e garantir apoio ao governo Lula, no Congresso em 2003 e 2004, logo após a chegada do partido ao poder‖ (Folha de S. Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/ojulgamentodomensalao/ojulgamento/o_esquema.shtml>. Acesso em 17/05/2013). 2 ―[...] A teoria do domínio do fato reconhece a figura do autor mediato, desde que a realização da figura típica,
apresente-se como obra de sua vontade reitora, que é reconhecido como o ‗homem de trás‘, e controlador do executor. A teoria do domínio do fato tem as seguintes consequências: 1ª) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo que fundamenta sempre a autoria; 2ª) é autor quem executa o fato utilizando a outrem como instrumento (autoria mediata); 3ª) é autor o coautor que realiza uma parte necessária do plano global (‗domínio funcional do fato‘) [...]‖ (BITENCOURT, 2012). 3 ―Detenções marcam terceiro protesto do Movimento Passe Livre em uma semana: Dos 20 detidos na
manifestação de terça-feira 11, dez foram presos sem direito a fiança; grupo reivindica diminuição dos preços das passagens de ônibus, trens e metrô. Protesto é puxado pelo MPL, mas reúne também militantes de partidos como PSTU, Psol e PCO. [...] O terceiro protesto contra o aumento das tarifas do transporte público em São Paulo foi marcado por confrontos entre policiais militares e manifestantes que reivindicam a diminuição dos preços das passagens de ônibus, trens e metrô. Do total dos 20 detidos na noite de terça-feira 11, dez não têm direito a fiança. De acordo com a Polícia Civil, eles foram presos por danos ao patrimônio e formação de quadrilha. O protesto é puxado pelo Movimento Passe Livre (MPL), mas reúne também militantes de partidos de esquerda, como PSTU, Psol e PCO, representantes de outros movimentos sociais, punks e anarquistas [...]‖ (Matéria extraída do site da Revista Carta Capital. Disponível em< http://www.cartacapital.com.br/sociedade/detencoes-marcam-terceiro-protesto-do-mpl-em-uma-semana-2229.html >. Acesso em: 12.06.2013).
3
pelo uso da violência institucional contra os mais vulneráveis. Compreende-se, portanto, que
ética não se configura pela efetividade de direitos e privilégio para poucos, enquanto a
maioria esmagadora de trabalhadores sobrevive ―à própria míngua‖, como mera cumpridora
de deveres, devendo, assim, aceitar sua condição de pobreza. Tal observação se constitui
num engodo e as manifestações nas ruas são reflexos dessa realidade de exclusão do
centro à periferia, no que tange aos direitos sociais mínimos.
1. A Ação Penal 470 e o discurso moralista diante da realidade de violência
institucional do centro às periferias em São Paulo
Observa-se a utilização da fala ―ética‖ por parte da grande mídia em São Paulo para
o afloramento de ideias retrógradas, em especial, capitaneado pelas elites conservadoras.
Tenta-se passar à opinião pública a partir da Ação Penal 470 uma tradição discursiva de
pensar o Brasil de cima para baixo (concepção elitista de poder de mando). De acordo com
essa visão, o país só se consolidaria no combate à corrupção quando instituições
conduzidas por seres iluminados intelectualmente fossem capazes de ―resgatar‖ a
―identidade nacional‖. Vislumbra-se, assim, o retorno a valores morais autoritários de uma
tradição, família e propriedade privada dos meios de produção. Tais ideologias fazem refletir
acerca do passado recente e sombrio da história do país, no caso paulistano da famosa
marcha da família com Deus pela liberdade, que se antecedeu ao golpe militar de 1964
(impulsionado pela burguesia local).
Esse discurso ―ético‖ cai por terra quando se muda o olhar do planalto central para o
poder local, em especial na São Paulo atual, onde se verifica na condução das políticas
públicas nos últimos anos ares não tão democráticos assim. Um olhar mais atento nos leva
à nítida preocupação das elites em criar clima favorável ao controle do poder nas eleições
nacionais. Pela ameaça de perda da hegemonia política, econômica e social da ―locomotiva
do país‖ na condução nos ―novos velhos‖ rumos ideológicos das massas no século XXI.
Em São Paulo, a observação minuciosa do discurso midiático, governamental e
elitista do presente conduz à percepção de cooptação dos novos estratos sociais, em
sintonia com as mutações do mundo global-local na condução das políticas públicas, e o
choque, representado de um lado pelo marketing consumista (inclusive da violência
simbólica), e, de outro, pelos contrastes do cotidiano.
A realidade vivenciada pelos mais vulneráveis à repressão institucional esvazia
qualquer discurso, como no caso do massacre do Carandiru, que resultou na morte de 111
presos. Apenas após 20 anos desse episódio, saiu a sentença de condenação de 156 anos
de prisão de 23 policiais4. Dráuzio Varella (2013) entende que o culpado nunca será
identificado5.
Trata-se, a nosso ver, de um exemplo de impunidade no país, haja vista a demora
em julgar e condenar apenas parte dos envolvidos, o que resulta num sentimento de
injustiça, já que os detentos, ―quase todos pobres‖, foram duplamente condenados, pelo
Estado, à prisão e à pena de morte, quando caberia assegurar-lhes o direito à vida e
reinserção social. Isso revela o fracasso de governos que apostam na repressão policial e
no encarceramento de pobres em presídios (criando um sistema prisional falido), ao invés
de investir em políticas públicas que deem dignidade à pessoa humana.
As desigualdades do presente, em nível local, ficam mais evidentes quando se
estabelecem ações governamentais repressivas associadas à pobreza e se cria, na
sociedade, um ambiente propício à defesa da redução da maioridade penal6 (quando nossas
prisões já estão abarrotadas de pobres), ao invés de investir em medidas preventivas como
educação de qualidade do centro às periferias.
Há um status crescente na onda de violência e na cobertura sensacionalista de
programas policialescos em busca de audiência a qualquer custo, alimentando, no ―cidadão
de bem‖ (acima de qualquer suspeita), a sensação de uma insegurança inaceitável. Aponta-
se, mais uma vez, na direção das periferias o locus das ações policiais no combate aos
―criminosos‖.
Contudo, não se pode esquecer que o poder público é responsável pelo
planejamento urbano e, portanto, deve considerar a pluralidade social e cultural do conjunto
da população e suas nuanças - necessidades, anseios, carências - e desenvolver ações que
atendam a todos, inclusive os mais pobres, vítimas da desigualdade social criada pelo
capitalismo periférico e mantida pelas elites.
Tem-se, aliás, uma herança histórica, desde o início da República, em tratar a
pobreza com violência institucional e, já na constituição da cidade paulistana, aposta-se na
4 [...] ―SÃO PAULO — O Tribunal do Júri condenou 23 dos 26 policiais militares acusados de matar 13 dos 111
detentos durante o massacre do Carandiru. Com pena de 12 anos de reclusão para cada homicídio, eles foram condenados a 156 anos de prisão, mas poderão recorrer da sentença em liberdade, de acordo com o juiz José Augusto Marzagão. Inicialmente, os réus responderiam por 15 mortes, mas duas foram descartadas do processo a pedido do Ministério Público. Uma das vítimas foi morta com armas brancas, o que afastou a suspeita de ação policial, e a outra em outro local do presídio. A Promotoria pediu também a absolvição de três policiais, que comprovaram estar em outros pontos do Carandiru no momento do massacre. Outros 53 policiais também serão julgados este ano pelo massacre, pois o julgamento foi dividido de acordo com o setor do presídio onde ocorreram as mortes. O último dia do julgamento durou mais de 16 horas e foi encerrado por volta de 01h20 deste domingo, com a leitura da sentença pelo do juiz. Para chegar à sentença, os jurados tiveram de responder a mais de 200 páginas de questionários, devido ao número de réus e vítimas‖ (<http://oglobo.globo.com/pais/juri-condena-23-pms-156-anos-de-prisao-por-mortes-no-carandiru-8175803>. Acesso em 07/06/2013). 5 Extraído de entrevista sobre o massacre do Carandiru com Dráuzio Varella. Disponível em:
<http://mais.uol.com.br/view/1575mnadmj5c/para-drauzio-culpado-pelo-massacre-nunca-sera-identificado-04020E983764E4994326?types=A&>. Acesso em 25/05/2013. 6 Conforme pesquisa realizada pelo DataFolha, 93% dos paulistanos são a favor da redução da maioridade
penal. (Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/04/1263937-93-dos-paulistanos-querem-reducao-da-maioridade-penal.shtml>. Acesso em 20/05/2013).
5
demolição dos cortiços localizados nas áreas centrais, em nome do combate às doenças e
epidemias.
Conforme Chalhoub (2006):
As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contágio. Por um lado, o próprio perigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário político brasileiro de fins do século XIX através da metáfora da doença contagiosa: as classes perigosas continuaram a se reproduzir enquanto as crianças pobres permanecessem expostas aos vícios de seus pais. Assim, na própria discussão sobre a repressão à ociosidade, que temos citado, a estratégia de combate ao problema é geralmente apresentada como consistindo em duas etapas: mais imediatamente, cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho dos adultos; a mais longo prazo, era necessário cuidar da educação dos menores (CHALHOUB, 2006, p. 29)
No presente, o que se vê é que as políticas governamentais priorizam o processo de
―limpeza social‖ no centro de São Paulo, a fim de legitimar uma nova ordem social calcada
no moralismo elitista conservador.
A questão da limpeza social se dá pela disciplina e controle social da pobreza sobre
a informalidade, como o comércio informal, os dependentes químicos, moradores em
situação de rua, ou seja, sujeitos em maior vulnerabilidade social, que precisam estar
―circulando‖. Estabelece-se a vigilância por câmeras e policiais sobre seus movimentos,
passando a ser retirados dos seus territórios de vida, ao mesmo tempo em que se estimula
a ocupação dessas áreas centrais por segmentos com poder socioeconômico compatível
com o perfil desejado aos padrões burgueses. O exemplo típico desse processo é a
especulação imobiliária por corporações carentes de novas áreas, e o centro possui uma
infraestrutura de bens e serviços altamente atrativos aos novos segmentos sociais
endinheirados com metrô, hospitais, escolas, shoppings, etc.
Vera da Silva Telles (2010, p.151-160), no primoroso estudo ―Tramas da Cidade:
fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito‖, em seu livro ―A cidade nas fronteiras do legal e
ilegal‖, faz menção à questão social dos mais pobres no contexto global e local, como
consequência do marco de 11 de Setembro de 2001, e o papel local das ―comunidades‖ na
vigilância e controle social, especialmente dos mais vulneráveis.
Entre os mecanismos de controle, Vera da Silva Telles (2010, p.151-160) identifica
os ―dispositivos gestionários‖ a partir da administração das ―populações de risco‖; os
mecanismos de controle social a partir dos chamados dispositivos de exceção; e a
configuração de ações que ferem a liberdade individual e exercem controle sobre o corpo. A
autora apresenta-os como mecanismos antidemocráticos e acima da lei e do Direito.
No caso paulistano, identificamos a violência institucional como um mal que aflige a
sociedade do centro à periferia da cidade. Em especial, nas ações policiais7, denominado
por Vera da Silva Teles (2010, p.151-159) de ―dispositivos de exceção‖ traduzidos nos
―autos de resistência seguida de morte‖.
Verifica-se um conjunto de medidas que tratam a questão social como caso de
polícia e revelam a face autoritária nas instituições paulistanas. Nem mesmo o discurso ético
do governo local contra a corrupção e o marketing dos grandes meios de comunicação
convence a população de melhorias sociais, diante da violência institucionalizada que assola
especialmente os territórios da periferia da mancha urbana neste século XXI.
Em São Paulo, a atual falta de efetividade da democracia e da justiça distributiva e
social não deixa a desejar em regiões tradicionalmente conhecidas por sua indústria da
seca, haja vista que tais regiões possuem como herança comum a cultura coronelista,
reflexo da arraigada e velha República do café-com-leite, traduzida no orgulho paulistano
das elites locais como condutor dos rumos do país a partir do seu mundo de privilégios.
2. O atual quadro das políticas públicas em São Paulo: a questão social dos
pobres como caso de polícia
7 ―[...] Uma resolução da Secretaria da Segurança Pública (SSP) publicada nesta terça-feira, 8, no Diário Oficial
do Estado (DOE) prevê que somente os serviços médicos de emergência, como o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), irão socorrer vítimas de crimes ou pessoas envolvidas em confrontos com a polícia [...]. A medida, assinada pelo secretário Fernando Grella Vieira, visa, segundo a pasta, ‗salvaguardar a saúde das vítimas‘, como já ocorre nos acidentes de trânsito, e ‗garantir a preservação dos locais de crime para a realização de perícia e investigação‘. De acordo a secretaria, o SAMU possui um protocolo de atendimento de ocorrências com indícios de crime para preservar evidências periciais. Outra mudança prevista pela resolução diz que os envolvidos nesses casos deverão ser apresentados de imediato na delegacia de polícia para as investigações. Resistência. Além das mudanças no atendimento, a resolução publicada nesta terça-feira altera o registro de ocorrências nas quais há confronto com a polícia. A partir de agora, os boletins de ocorrência não terão mais os termos ‗resistência seguida de morte‘ ou ‗auto de resistência‘. Seguindo recomendação da resolução nº 8 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, as ocorrências passarão a ser registradas como ‗morte decorrente de intervenção policial‘ ou ‗lesão corporal decorrente de intervenção policial‘[...]‖. (O Estado de S. Paulo, 08/01/2013. Disponível em<http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,sp-proibe-policia-de-socorrer-vitimas-de-crimes-ou-suspeitos-em-confrontos,981801,0.htm>. Acesso: 20 maio 2013). Recentemente foi publicada outra resolução da Secretaria de Segurança Pública esclarecendo o procedimento adotado para o socorro das vítimas de crimes ou pessoas envolvidas em confrontos com a polícia: ―Os policiais militares do Estado de São Paulo estão novamente autorizados a socorrer vítimas graves, desde que o resgate especializado não esteja disponível ou o tempo de resposta previsto pelos bombeiros ou SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Emergência) não for adequado à situação. A decisão da SSP (Secretaria de Segurança Pública) foi publicada nesta terça-feira (21), no Diário Oficial do Estado, e regulamenta uma resolução de janeiro. A SSP disse que essas orientações (conhecidas como passo a passo) já haviam sido informadas para a tropa, e que os PMs nunca estiveram proibidos de prestar socorro‖ (UOL. Disponível em:< http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/05/21/resolucao-diz-que-pm-pode-socorrer-vitimas-graves-se-resgate-demorar.htm>. Acesso: 21 maio 2013).
7
A questão social em São Paulo vem sendo tratada pelo governo estadual como caso
de polícia no trato da pobreza por uma série de ações desastrosas. Caso emblemático diz
respeito à ação governamental denominada ―Operação Centro Legal‖ em janeiro de 2012,
pela intervenção de ―dor e sofrimento‖, com perseguição policial aos dependentes químicos
da área conhecida como Cracolândia e tiros de bala de borracha na dispersão de pessoas
indefesas ―jogadas à própria sorte‖, gerando a ―Procissão do Crack‖ (dependentes químicos
dando voltas nos quarteirões do centro sob os holofotes da polícia dia e noite).
Cracolândia resiste após 1 ano de operação
[...] A Operação Centro Legal completa nesta quinta-feira, 3, um ano e, segundo o governo estadual, foram realizadas 1.363 internações de dependentes químicos na cracolândia, após 152.995 abordagens durante o período. As ruas da região central de São Paulo permanecem, porém, repletas de usuários, sem nenhum indicativo de que o controverso método de impor ―dor e sofrimento‖ implementado no início de 2012 para afastar as pessoas do crack tenha surtido efeito. [...] A operação terminou também em ação na Justiça, com o Ministério Público Estadual pedindo ao governo paulista R$ 40 milhões de indenização por danos morais coletivos. Segundo a ação, os usuários foram alvo de bombas, pancadas, cachorros e das caminhadas forçadas (CARDOSO, 03/01/2013. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,cracolandia-resiste-apos-1-ano-de-operacao,980136,0.htm>. Acesso 03 jan. 2013).
A precariedade nas políticas públicas locais se verifica pelo aumento do número de
moradores em situação de rua. Conforme dados obtidos a partir do Censo da população em
situação de rua da FIPE (SCHOR; VIEIRA, 2009) e da caracterização socioeconômica da
população em situação de rua, na municipalidade de São Paulo, em 2009, identificou-se um
total de 13.666 pessoas. Posteriormente, em 2011, esse número saltou para 14.478
recenseados na condição social, conforme Núcleo de Pesquisas em Ciências Sociais da
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP (2012), em parceria com
a Prefeitura de São Paulo.
A pesquisa do censo da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo recenseou, no ano de 2011, um total de 14.478 (quatorze mil quatrocentos e setenta e oito) indivíduos, sendo 6.765 (seis mil setecentos e sessenta e cinco) em situação de rua e 7.713 (sete mil setecentos e treze) em centros de acolhida da capital (FESPSP; PMSP, 2012, p. 11).
O que chama atenção na pesquisa são os impactos na vida dos entrevistados
(moradores em situação de rua) quanto às ações do poder público local em parceria com a
polícia, por meio da ―Operação Centro Legal‖, na região da Cracolândia.
Impacto da recente ―Operação Cracolândia‖
Em janeiro deste ano foi iniciada a ―operação cracolândia‖ no centro da cidade de São Paulo (principalmente na Rua Helvetia), onde até o mês de março de 2012 (momento em que este relatório é composto) a polícia está restringindo a circulação de usuários e traficantes de drogas naquela região. Dos indivíduos em situação de rua entrevistados, 83,2% ficaram sabendo ou assistiram a operação, 16,0% não e 0,8% não lembravam. Para os 83,2% que responderam afirmativamente, 40,9% circulavam ou pernoitavam próximo à região da Cracolândia (57,4% não e 1,7% se recusaram a responder). Para estes a vida dos indivíduos em situação de rua foi afetada por essa operação de forma positiva (para 10,5%), de forma negativa para 17,2% e os restantes 72,3% acham que não interferiu na sua vida - foi, portanto, indiferente [...] (FESPSP; PMSP, 2012, p. 80).
Dos dados apresentados, pode se observar que a população de rua é a mais
exposta à violência policial, embora não esteja associada ao tráfico de drogas. Apesar disso,
o discurso moralista o faz nas matérias veiculadas diariamente pela mídia, prática que
reforça estereótipos e a criminalização da pobreza.
O sujeito que contribui econômica e socialmente, por sua vez, tem sua percepção da
cidade baseada no pertencimento dos territórios em que vivem os moradores em situação
de rua, haja vista o poder público não lhes dar visibilidade - exceto para estigmatizá-los ora
como ―cidadãos invisíveis‖, ora como ―suspeitos‖ com a aplicação dos ―rigores da lei‖
(repressão policial), quando causam algum desconforto pelo fato de terem sido percebidos.
Tal dinâmica revela o despreparo do poder público para lidar com a questão social dos mais
vulneráveis. E a grande mídia, em sintonia com o governo, procura formar a opinião pública
no sentido de que as ações policiais são benéficas, por manter os mais pobres distantes dos
olhares dos mais abastados. Isso reforça o escamoteamento da realidade social daqueles
para justificar que algo está sendo feito em seu benefício, quando sua realidade permanece
cruel.
A cidade mais rica do país não se vale de seus recursos para solucionar de maneira
justa e eficaz seus problemas sociais. Em vez disso, adota ações policialescas com grande
apelo midiático para ―limpar‖ o centro da cidade, expulsando os pobres para áreas do
entorno, na tentativa de empurrar a questão para debaixo do tapete. Promove-se o
saneamento e disciplina da informalidade, numa tentativa frustrada de agir na proximidade
da Copa do Mundo de 2014, adotando decisões de cima para baixo, como o polêmico
―Projeto Nova Luz‖, sem ao menos ouvir os moradores dos territórios afetados. Faz-se tudo
na ânsia da especulação imobiliária dos endinheirados para transformar a região da Luz
num bairro europeu ―civilizado‖.
Trabalha-se com técnicas de disciplinar e elitizar o centro, enquanto mecanismo de
controle social sobre a pobreza, associando-a à marginalidade, em especial na
―Cracolândia‖.
[...] o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os
9
inconvenientes do poder que, justamente para torná-las úteis, deve regê-las. Uma multiplicidade, seja uma oficina ou uma nação, um exército ou uma escola, atinge o limiar da disciplina quando a relação de uma para com a outra torna-se favorável [...] (FOUCAULT, 2008, p. 181).
O aumento da repressão e limpeza social do centro constitui-se em instrumento de
controle das massas. Em especial sobre os mais vulneráveis, vigiados em suas ações, suas
vidas, ―suas almas, seu corpo‖, sem que haja perspectivas de acolhimento. São, assim,
sujeitos literalmente segregados dos espaços para áreas distantes dos olhares da
população ou mesmo que somem sem que se saiba qual foi o destino. Na ideologia do
progresso para poucos e de importação mal feita de hábitos estrangeiros, como herança
positivista do início do século passado, as transformações nos espaços foram se impondo
de cima para baixo.
A afirmação orgulhosa dos governos locais de que somos uma democracia de fato e
de direito não encontra consistência diante da negação da cidadania, pela inexistência de
políticas públicas que tratem com dignidade os mais vulneráveis mediante a sua visibilidade
como cidadão, e não apenas como consumidores. Os discursos não colocam comida na
mesa de quem não a tem, e não oferecem segurança àqueles que todos os dias têm que se
submeter ao ―toque de recolher‖ nas periferias.
Quando se fala de democracia e dignidade humana, lembra-se apenas do direito ao
voto e se esquece, a princípio, das causas da violência. Entre elas, o descaso com a
educação da população periférica, maior vítima de um governo que prioriza a repressão
policial em detrimento do oferecimento de uma educação de base qualificada. Em São
Paulo, conforme os últimos dados do PISA8 (Programa Internacional de Avaliação de
Alunos) há sérios contrastes entre o discurso ético oficial e a realidade educacional.
São Paulo fica em 7º, atrás de ES e Região Sul
Resultado está longe de refletir o poder econômico do Estado mais rico do País; Minas Gerais apresenta melhora em pontuação. Os resultados da avaliação por Estados feita pelo Ministério da Educação com base nos dados do Pisa 2009 mostram que São Paulo subiu do 11.º para o 7.º lugar entre as 27 unidades da federação (PARAGUASSÚ; MANDELLI, 2010).
A situação da violência em São Paulo é endêmica. Recentemente, assistiu-se,
atônitos ao denominado ―caso Pinheirinho‖, na região de São José dos Campos, no qual o
governo estadual tratou como caso de polícia esta questão que é social: o direito à moradia
digna. É relevante mencionar esse caso porque as decisões centrais tiveram participação
8 ―O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (em inglês: Programme for International Student
Assessment - PISA) é uma rede mundial de avaliação de desempenho escolar, realizado pela primeira vez em 2000 e repetido a cada três anos. É coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com vista a melhorar as políticas e resultados educacionais‖ (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Programa_Internacional_de_Avalia%C3%A7%C3%A3o_de_Alunos>. Acesso em: 20/05/2013).
dos poderes (executivo e judiciário) situados na capital que agiram num sinergia legalista.
Em 2012, cerca de oito mil pessoas socialmente vulneráveis foram retiradas à força numa
reintegração de posse, o que acarretou denúncia às instâncias de direitos humanos da
ONU. E, decorrido um ano, ninguém tem casa (CARDOSO, 20/01/2013. Disponível em: <
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,pinheirinho-apos-1-ano-ninguem-ainda-tem-
casa-,986416,0.htm>. Acesso 20 Jul. 2013).
Assim, na falta do braço social do Estado, a repressão policial vai se fortalecendo
como disciplinadora da pobreza pelo uso da violência institucional.
Não são poupadas nem mesmo as reivindicações de segmentos estudantis da
Universidade de São Paulo (USP), o que resultou na prisão de alunos e gerou
manifestações pela cidade.
Protesto de alunos da USP reúne mil pessoas e fecha Av. Paulista
[...] Com gritos como ‗Rodas a culpa é sua, hoje a aula é rua‘, ‗USP, sim; polícia, não‘ e ‗Pula, sai do chão, quem é contra a repressão‘, os estudantes protestam contra a presença da Polícia Militar no campus da universidade, por um projeto alternativo de segurança e pela saída do reitor [...] (Folha de S. Paulo, 24/11/2011. Disponível em:< http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1011497-protesto-de-alunos-da-usp-reune-mil-pessoas-e-fecha-av-paulista.shtml>. Acesso 10 jan. 2013)
Surgem as ―comunidades‖ como gestoras da violência, em articulação com a polícia
para reprimir as pessoas ―indesejadas‖ em determinados bairros, em geral em áreas
enobrecidas por novos estratos sociais, como o entorno do centro. A cidade passa a ser
gerida por dispositivos locais que utilizam a mídia como fomentadora de um Big Brother, no
qual as intervenções policiais são divulgadas por via aérea ou terrestre. Estimula-se o
consumo de uma violência com a polícia como autora. Esse discurso se repete praticamente
todos os dias em programas como ―Polícia 24 horas‖, ―Operação de risco‖, ―Brasil Urgente‖,
―Cidade Alerta‖, entre outros, reproduzindo a sensação de insegurança, e, além disso,
fomentando a institucionalização do medo.
As elites locais, por meio da mídia e do governo, procuram concentrar suas atenções
na legitimação dos casos de violência policial contra os pobres do centro. E, dessa forma,
desvia-se o olhar da população dos problemas sociais para a simples garantia da segurança
dos ―homens de bem‖. Vende-se, ao povo, a ideia de luta contra a corrupção pelos
defensores da ―ética‖, sujeitos acima do bem e do mal. Esquece-se, intencionalmente, de
aprofundar a questão social local, como se o problema da corrupção existisse apenas em
Brasília. Não se visualiza, dessa forma, que a corrupção na política se estabelece a partir de
relações de clientela pela apropriação do espaço público por particulares.
11
O governo central atual é figura exógena aos berços ―civilizados‖ da tradicional elite
paulistana e rompe com a tradição administrativa de um Estado que é considerado a
―locomotiva do país‖.
O discurso moralista da grande mídia na Ação Penal 470 (mensalão) atende aos
interesses de setores dominantes que anseiam o poder como algo natural da constituição da
grandeza de São Paulo, locus ordeiro e do progresso nacional para poucos. Nessa
concepção elitista, acredita-se que os privilegiados (civilizados) nasceram para governar e a
questão social é algo pontual e de desordeiros que cabe à polícia resolver por meio da
violência institucional. Portanto, ao invés de o governo local garantir a proteção à vida com
dignidade aos moradores do centro à periferia da cidade, usa-se da repressão aos pobres
enquanto prática autoritária das elites. Por sua vez, estas preferem apostar no discurso da
corrupção em Brasília e ignorar a negação à cidadania em nível local como cultura
autoritária e excludente.
Considerações finais
O poder de mando das elites, em São Paulo, revela-se como cultura autoritária do
―orgulho paulistano‖, característica do provincianismo (dos coronéis) arraigado às velhas
tradições discursivas da ―locomotiva do país‖. São utopias da civilidade forjadas pela união
entre tradição e modernidade, que apostam na imigração europeia como responsável pela
grandeza da cidade, ao mesmo tempo em que negam ao elemento nacional negro, indígena
e nordestino o reconhecimento de sua importância na construção da cidade.
Verifica-se que o ―resgate ético‖ (moralismo) capitaneado pela tradicional elite
paulistana, em sintonia com a grande mídia, forma e reforça padrões estético-culturais de
não visibilidade da pobreza. A questão social local é, então, tratada com violência, como
caso de polícia, ao mesmo tempo em que, incoerentemente, elite e mídia exigem
integridade institucional no âmbito federal, a exemplo do que se viu em relação à Ação
Penal 470, o histórico caso ―mensalão‖.
Pensar a ética do humano envolve o respeito à diversidade étnico-cultural e a
concepção de família para além dos laços tradicionais da ordem e progresso material para
poucos. A cidade deve tratar seus contrastes sociais agudos e a violência institucionalizada
com planejamento urbano, gestão social e mediante efetividade de direitos fundamentais,
como educação, moradia, emprego, renda, alimentação, saúde, segurança. Tudo isso,
entretanto, passa pela mudança na elaboração e aplicação das políticas públicas, que
devem ter o todo como objeto, e não apenas partes privilegiadas.
Destaca-se que ética só existe com dignidade humana para todos os cidadãos, com
a diversidade de sotaques e cultura, ultrapassando os discursos sectaristas. Somente uma
sociedade democrática pode ser justa. E, portanto, íntegra e eficaz no combate à corrupção,
que alcança as esferas local e nacional, para além da Ação Penal 470 e passa pela
efetividade dos direitos sociais para todos em São Paulo.
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