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Bruno Barretto Gomide
DA ESTEPE CAATINGA: O ROMANCE RUSSO NO BRASIL (1887-1936)
Tese apresentada ao Programa de Teoria eHistria Literria do Instituto de Estudos daLinguagem da Universidade Estadual de Campinascomo requisito parcial para obteno do ttulo deDoutor em Teoria e Histria Literria.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Foot Hardman
UNICAMPInstituto de Estudos da Linguagem
Maio de 2004
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FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA IEL -UNICAMP
G586dGomide, Bruno Barretto
Da estepe caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936) / BrunoBarretto Gomide. - - Campinas, SP: [s.n.], 2004.
Orientador: Prof Dr Francisco Foot HardmanTese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.
1. Literatura Russa. 2. Literatura comparada. 3. Critica literria - Brasil.4. Dostoievski, Fiodor, 1821-1881. 5. Tolstoi, Leo, graf., 1828-1910. I.Hardman, Francisco Foot. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.
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FOTO DA CAPA
Em visita ao Rio de Janeiro, Eleazar Kaminetzky, natural de Odessa, andarilho vegetariano,
anacoreta apstolo e duvidoso do progresso universal como Tolsti, faz trottoirna Avenida Rio Branco
diante dos olhares atentos dos passantes.
De acordo com a reportagem de Cludio da Gama, Correio para os estados, Seleta, 8 de julho de
1916 (Coleo Plnio Doyle, Fundao Casa de Rui Barbosa).
(Trata-se do mesmo autor de um livro de poemas editado em Portugal, apropriadamente intitulado
Alma errante, 1932, com prefcio de Fernando Pessoa)
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CURRCULO DO AUTOR
Nome: Bruno Barretto Gomide
Data de nascimento: 26/03/1972.Local de nascimento: Rio de Janeiro
Formao acadmica:
Bacharelado e licenciatura em Histria Universidade Federal Fluminense (1990-1994)
Especializao em Teoria Literria Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998)
Mestrado em Histria Social da Cultura PUC-Rio (1995-1997). Ttulo da dissertao: A cidade do sol de Isaac
Bbel
Doutorando em Teoria e Histria Literria no IEL/Unicamp (2000-2004)
Doutorado-sanduche na Universidade da Califrnia, Berkeley (2002-2003)
Cursos e estgios realizados no exterior:
Curso de lngua russa na Universidade Lingstica de Moscou (maio de 1997)
Curso de Histria na Universidade de Cambridge (julho de 1998 e julho de 1999)
Estgio de pesquisas no Russian research labda Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign (julho de 2000)
Curso de lngua russa na Universidade de Indiana, em Bloomington (junho/agosto de 2001)
Atividades profissionais:
Diversas pesquisas e trabalhos de consultoria para as empresasMemria Brasile Vereda(entre 1997 e 2001).
Organizao de seminrios e ciclos de palestras para o Centro Cultural Banco do Brasil: A propsito de Gilberto
Freyre(CCBB-RJ, 2000); Trilha e tempo de Sergio Buarque de Holanda(CCBB-RJ, 2002); Pensando 1964(CCBB-RJ e
CCBB-SP, 2004);Esa e Jac(CCBB-RJ, 2004).
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Para a Flavinha,Amor digno dos melhores romances russos
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RESUMO
A partir de fins da dcada de 1880, as obras de escritores russos comearam a ser discutidas
no Brasil. Isso ocorreu na esteira da onda de difuso internacional do romance russo deflagrada em
Frana, especialmente pelo ensaio-manifesto Le roman russe(1886) de Eugne-Melchior de Vog e
por um grande nmero de tradues. Esta tese apresenta os contornos desse debate, segue os
principais pontos do argumento crtico e detecta as fontes bibliogrficas mais importantes para os
intelectuais brasileiros no perodo de 1887 a 1936.
ABSTRACT
From the late 1880s onwards literary works of Russian writers began to be known in Brazil.
This process was a fraction of the widespread interest in the Russian novel, which was aroused in
France especially by Eugne-Melchior de Vogs essay-manifest Le roman russe(1886) and by a large
body of translations. This dissertation situates this discussion within the transnational patterns ofliterary criticism. It also identifies the main bibliographical sources for Brazilian intellectuals in the
1887-1936 period.
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SUMRIO
RESUMO 6AGRADECIMENTOS 9
INTRODUO 13
PARTE 1 23
CAPTULO 1 Niilismo, modo de usar 25
CAPTULO 2 Um naturalismo superior (primeira parte) 75
CAPTULO 3 Um naturalismo superior (segunda parte) 119
CAPTULO 4 Taxonomias do cinza 163
CAPTULO 5 Uma espcie de Isaas 197
CAPTULO 6 O profeta e o veto 231
CAPTULO 7 Romance russo e nosografia 257
EXCURSO Resistncias 273
IMAGENS Parte 1 285
PARTE 2 305
CAPTULO 8 A esterqueira do futuro 307
CAPTULO 9 Setembro de 1917, ou: paralelos Brasil-Rssia 325
CAPTULO 10 O terceiro elemento 363
CAPTULO 11 O romance russo em xeque 407
CONCLUSES 435IMAGENS Parte 2 441
BIBLIOGRAFIA 451
ANEXO 1 Fontes primrias 481
ANEXO 2 Antologia de textos 533
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todos os funcionrios das bibliotecas e arquivos visitados. Fica um obrigado especial para os
bibliotecrios da Fundao Casa de Rui Barbosa, local onde realizei boa parte da pesquisa. A
eficincia de Rose e dos funcionrios do IEL foi decisiva ao longo desses quatro anos.
Os amigos Stefan Freitas dos Santos, Marcelo Timtheo da Costa, Andr Augusto da
Fonseca, Isadora Travassos Telles, Diogo Meyer, Maria Macedo Soares e Tami Mott estiveram
sempre presentes para dilogos muito mais do que acadmicos. No IEL, devo indicaes de leitura
aos colegas Jean Faustino, Maria Rita e Sebastio Cardoso. Recebi apoio e afeto dos muito queridos
Domcio do Nascimento Jr., Martha Brito do Nascimento, Cristina Ayres Pereira, Marco Antonio
Gay e Fbio Teivelis.
O mais importante fica para o fim: uma mera pgina de agradecimentos no d conta do
significado, para minha vida, de Flvia e de meus pais Lilian e Carlos Henrique.
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Depois que a gente percebe porque, feitas as contas, Tschescov, Tolstoi eGogol ainda so mais lidos aqui do que Edgar Wallace e Bernard Shaw. Porqueno podemos entrar no prstito alegre e veloz da civilizao nrdica. Com oseslavos, pensamos tanto que nos esquecemos de agir. Ou antes, a ao fica sendo
desprezvel, como seria para um boxeuresmurrar uma criana. E afinal, quandoa ao se manifesta, ela sempre assim, brutal e descontrolada..._______
Foi Vog quem destravou o meu pavor afetuoso a esse ajustamento.Lendo-o, encontrei as razes que orientaram a intuio. Todas as caractersticas daalma russa, por ele anotadas, verificam-se tambm, a esta distncia do Cspio,numa relao maior do que a de simples parecena.
As causas, bem verdade, so de difcil pesquisa. A mesma vastidoterritorial? O mesmo emaranhamento de raas? Pouco provvel, pois em outrospases, idnticas causas tm produzido resultados inteiramente diversos.
Constatemos somente. Em primeiro lugar, a insatisfao messinica de
um melhor que vir, atravessa a histria dos dois povos. Em ambos, a escravidoresistiu tenazmente s apstrofes inflamadas do racionalismo do sculo 19. Depois,a msica , aqui como l, cheia de vaga tristeza, sincopada de gemidos queningum explica.
O campons russo das novelas irmo prximo do caipira. Os cones dasisbs se reproduzem aqui nos quadros e imagens de santos que ocultam a lama dasparedes das cabanas, do serto. Tambm o instinto migratrio do brasileiro acha oseu smile perfeito no Oriente da Europa. Como os mujiks do criador de Crime ecastigo, que viajam milhares de verstas para beijar a botina de um starets debarba intonse e milagres infinitos, o bronco Man Chique-Chique faz caminhadasde epopia. Sai da caatinga e vai para a terra-roxa, como ia para os seringais.
E que os marxistas no se apressem a colocar o dedo sobre a tecla,porque o caipira sai tambm dos seus pagos nos pampas para ir pregar uma
promessa ao Bom Jesus da Lapa, no vale do So Francisco, ou a So Gonalo doAmarante, no fim do Piau. bastante conhecida ainda a seduo do litoral, dasgrandes cidades sobre os habitantes do interior.
Kipling, de passagem pelo Rio, notou o prazer que os brasileirosexperimentavam em enternecer at os estranhos com a narrao lamuriosa dasprprias doenas. Pois Vog nos assinala esse vocao para martrio,emoldurando a vida de todos os russos.
Tudo apresenta um ar de famlia, no Vstula ou no Amazonas. amesma vaza viscosa de esquisidias, de inconsistncias, de sentimentalismo, demorbidez, de misticismo, numa identidade que essas linhas rpidas apenasesboam.
_______
Terminemos, lembrando que a roupagem do patriotismo nos dois povos a mesma. A Santa Rssia aqui se transforma no Brasil das grandespossibilidades, de cuja altssima misso histrica ningum ousa duvidar. Etodos ns vemos, inquietos e sebastianistas, o Brasil marchar para o futuro comoGogol viu a Rssia, a jeito de uma trica a correr desabaladamente, a todogalope dos cavalos, pela estepe sem fim...
Pinheiro de Lemos, Das estepes s caatingas. Boletim de Ariel, 1934.
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INTRODUO
O romance russo pde ser veiculado facilmente entre ns. Todo omundo sabe por qu.Tasso da Silveira, Tendncias do pensamento contemporneo.
A presena de alguns escritores russos na literatura e na vida literria brasileira volta e meia
evocada por pesquisadores de tempos e propsitos vrios. Sabe-se que houve, na dcada de 30, certa
bruma dostoievskiana impregnando intelectuais. Ou que literatura russa e problemtica social sempre
foram companheiras de viagem. A circulao de Dostoivski e Tolsti seria, ento, reflexo de 1905
ou 1917, marcos naturais desse caminhar. E Lima Barreto o escritor filo-eslavo por excelncia. So
fenmenos reais e importantes. Em geral, mais pressentidos e esboados do que efetivamentedestrinchados.
Alguns passos foram dados nesse sentido. O pequeno livro de Leonid Shur privilegia as
primeiras dcadas do sculo dezenove, momento anterior ao da difuso efetiva da literatura russa no
Ocidente.1Boris Schnaiderman, nosso principal especialista na seara russa, escreveu artigos pioneiros
sobre as relaes literrias entre Rssia e Brasil.2Apesar de indicarem sugestivas direes de pesquisa,
tal campo de estudos no foi prioridade dentro da sua extensa produo.3 O ano vermelho, de Moniz
Bandeira, Clovis Melo e T. A. Bandeira, traz um pouco da literatura russa a reboque da profunda
impresso gerada pela revoluo russa.4 Na mesma linha existem estudos sobre a relao de
intelectuais brasileiros com as diretrizes do realismo socialista.5 No mbito acadmico, elementos
comparativos Brasil-Rssia foram incorporados a ensaios recentes de histria cultural.6
1SHUR, Leonid, Relaes literrias e culturais entre Rssia e Brasil, 1986. Esta obra retoma pesquisas realizadas na dcada de1960. Uma delas foi publicada em peridico brasileiro: Origem das relaes literrias russo-brasileiras. Leitura, mar.1963.2Reunidos em boa parte no volume Projees: Brasil, Rssia, Itlia, 1977, e no suplemento literrio doEstado de So Paulo, nadcada de 1960.3Tampouco o foi na Universidade de So Paulo, nica instituio brasileira em que um departamento de eslavstica (emnvel de ps-graduao) vingou. Destaco o artigo de Jasna Paravich Sarhan e Sophia Angelides sobre as relaes do cubo-futurismo russo com o modernismo brasileiro, Modernismo brasileiro e cubo-futurismo russo, Lngua e literatura, 1978.4BANDEIRA, Moniz; MELO, Clvis; ANDRADE, A. T. O ano vermelho. A Revoluo Russa e seus reflexos no Brasil.SoPaulo, Brasiliense, 1980. 2a ed. A parte inicial do livro contempla alguns contatos literrios anteriores a 1917. Em todocaso, o enfoque na questo poltica, no na literatura.5MORAES, Dnis de, O imaginrio vigiado. A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953), 1994.6 Cf. HARDMAN, Francisco Foot, Trem fantasma: a modernidade na selva; 1991; SEVCENKO, Nicolau, Literatura comomisso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica, 1995. ARAJO, Ricardo Benzaqun de, Guerra e paz:Casa-Grande& Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 , 1994. Francisco Foot Hardman apresenta a resposta dada por Ggol eDostoivski, sob a forma de figuraes do diablico e da runa, modernidade petersburguesa, similar, em muitosaspectos, ao processo de modernizao brasileira. Em Sevcenko, Tolsti, Dostoivski e Kroptkin so paradigmas para otipo de intelectual personificado por Lima Barreto e Euclides da Cunha.. O ensaio de Ricardo Benzaquen apresenta, de
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A insero russa mais conhecida na historiografia literria brasileira, talvez devido justa
reputao de pesquisador minucioso de seu desbravador, forneceu-a captulo de Brito Broca sobre as
vogas literrias de incios do novecentos. Tolsti um dos cinco escritores contemplados. Sua
recepo mostrada na conexo exclusiva com pensadores anarquistas e socialistas brasileiros.
Atrelada, de forma mais geral, a uma inspirao utpica e humanitria to grandiosa quanto vaga.7A
conexo com o anarquismo foi devidamente ampliada em trabalhos monogrficos publicados a partir
das dcadas de 70 e 80. Estes desdobraram aspectos literrios do romance tolstoiano de Fabio Luz e
Curvelo de Mendona e a circulao de Tolsti e de Grki, em prosa, verso, teatro e panfleto, nos
meios libertrios. Confluente a esse ramo a investigao sobre a literatura militante de Lima
Barreto.8
Proponho a entrada no campo de estudos da recepo da literatura russa no Brasil por meio
de um panorama articulado em dois eixos: pesquisa documentalda recepo crtica do romance russo e
estudo da vasta bibliografia comparatistaque lida com outros casos de recepo da literatura russa noOcidente; ambos mediados pelas discusses especficas fornecidas pela crtica literria e pela
historiografia da cultura brasileira. A reconstituio da lgica especfica do discurso crtico, tarefa a
que me proponho nas pginas seguintes, complementar, espero, as pesquisas j existentes. Talvez
esse percurso abra caminho para que as paixes do mundo da poltica possam ser reconduzidas para
a literatura russa de maneira mais nuanada.
A chegada do romance russo ao Brasil foi pequena parcela de processo internacional
deflagrado em Frana. Outros pases deram sua cota de contribuio, mas a influncia francesa foi
determinante, especialmente no quinho que nos cabe. No se pode, pois, conhecer a crtica literria
feita no Brasil sobre Tolsti e Dostoivski sem remeter a esse cenrio transnacional. O romance
russo era a grande sensao europia em meados da dcada de 1880. Na verdade, foi inventado
para consumo internacional nesse perodo, quando surgem tradues em escala industrial e livros de
crtica que, de forma pioneira, deram o tom (e estabeleceram os limites) do que seria dito depois. As
questes e balizas aportadas por essa bibliografia, em especial pelo ensaio O romance russo, de Eugne-
modo mais ou menos explcito, ramificaes tolstoianas na obra de Gilberto Freyre. Anlises literrias comparativas entreescritores russos e brasileiros so relativamente comuns na pesquisa universitria, embora, a meu conhecimento, aindano tenham gerado mais do que artigos ou passagens de ensaios. Um exemplo recente ARAS, Vilma, Tolsti eGuimares Rosa: anotaes, 2001. Trabalhos de timo nvel sobre a cultura russa tm aparecido constantemente. Veja-se GUINSBURG, J, Stanislvski, Meierhold & Cia. So Paulo, Perspectiva, 2001, e ANDRADE, Homero Freitas de, Odiabo solto em Moscou, 2002. A recente leva de tradues de escritores russos a ponta de lana desse movimento, comdestaque para as tradues dos romances de Dostoivski feitas por Paulo Bezerra (editora 34). Talvez este seja o primeiromomento de apreciao dos escritores russos sem um referencial externo poltico a motiv-la.7BROCA, Brito,A vida literria no Brasil1900, 1975.8 Para um panorama atualizado da vertente de pesquisas sobre a cultura anarquista, indico a edio recente deHARDMAN, Francisco Foot,Nem ptria, nem patro! Memria operria, cultura e literatura no Brasil, 2002. 3aed; sobre LimaBarreto, PRADO, Antonio Arnoni, Lima Barreto. O crtico e a crise, 1989.
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Melchior de Vog (1886), tornaram-se logo paradigmticas. A maioria dos crticos, ensastas e
intelectuais recorria a ela para lastrear seus comentrios. Lima Barreto buscou no prefcio de
Recordaes da casa dos mortos, escrito por Vog, pistas para falar de Dostoivski. Esta mediao ter
agido de forma quase to decisiva na viso que o autor carioca tinha dos literatos russos quanto o
dilogo com as tendncias libertrias e com o maximalismo.
A descoberta do romance russo pela crtica fora da Rssia foi essencialmente literria.
Embora a poltica tenha logo se tornado aspecto indissocivel da circulao social da literatura russa,
e a imagem do escritor-oprimido-pela-autocracia tenha servido de m poderoso, o entusiasmo pelos
escritores recm-descobertos se devia forma inovadora como eles encaminhavam os mui discutidos
problemas do realismo e do naturalismo. A seu modo, um ensaio como O romance russo era engajado e
combativo. Mas suas ressonncias missionrias era preciso, no entender de seu autor, salvar a
cultura francesa radicavam-se nas reflexes acerca do romance e da esttica. Quando Clvis
Bevilacqua defrontou-se com Dostoivski em 1888-89 e produziu ensaio intitulado Naturalismorusso Dostoievsky, certamente tinha em mente as agitaes niilistas, conhecidas j de duas
dcadas, e, do lado de c, a campanha abolicionista, na qual atuou. Isso perceptvel nas entrelinhas
do ensaio. Mas sua abordagem do escritor russo indica interlocuo com Vog e, como o prprio
ttulo d a entender, com o problema de um gnero literrio especfico. A partir da, Bevilacqua
seguia para os entrecruzamentos de literatura e vida nacional, e, implicitamente, ponderava a posio
social do artista e sua misso. Pretendo, nesta tese, reduzir o foco nesse ltimo aspecto. Em
contrapartida, trarei tona os argumentos contidos no ncleo crtico e acompanharei algumas de
suas apropriaes no espao e no tempo.
Da as delimitaes no escopo da pesquisa. Por qu estudar a recepo do romance russo,
e no de Dostoivski ou de Tolsti isoladamente? Embora a fortuna crtica de cada um dos
romancistas tenha apresentado peculiaridades, algumas delas examinadas ao longo da tese, no
perodo aqui delimitado a unidade semntica romance russo lhes abarcou. A tendncia era tratar
aqueles escritores em bloco e canaliz-los no romance, logo classificado como ponta de lana da
mensagem russa. A reduo tpica da recepo de literaturas desprovidas de tradio de estudos
fora de seus locais de origem. As diferenas subsumem-se num modelo interpretativo que confereinteligibilidade e legitimidade a cada um dos casos individuais. Em outras palavras: para que a
literatura russa fosse transformada em moeda de troca no mercado internacional de bens simblicos
do fim do oitocentos, teve que ser condensada em uma nica categoria. com esse modelo que os
intelectuais e crticos brasileiros estavam dialogando. Sem que tivessem, todavia, deixado de perceber
diferenas entre autores particulares, ou estivessem alheios a outras manifestaes da cultura russa
poesia, teatro, dana, msica, e a prpria alma russa, estetizada e transformada em objeto de
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consumo. Assim, parece-me que o caminho mais apropriado para uma tese panormica como a que
proponho seguir o que sugere o ttulo do estudo clssico sobre a difuso dos russos na Frana
The Russian novel in France.9
Em 1895, o personagem Vanka, de conto de Pedro Licnio, exibia aos amigos uma listagem
do seu cabedal de leituras: Conheo alguma coisa da Alemanha, tenho lido romancistas russos,
recito poetas ingleses, tenho lido obras italianas, tenho os discursos de Castellar, as Recordaes da
Itlia, e um amigo emprestou-me a Vidade Lord Byron, pelo mesmo, j vi no Catilina, os livros de
Horcio e conheci um poeta que encimou seus versos com este de Virglio: O Meliboe, Deus nobis hoec
otia fecit. (...)10A novidade enfatizada pelo emprego do verbo no tempo composto: tenho lido. O
verso clssico, a inspirao potica vem do romantismo ingls, a Itlia produz obras, mas o
romance russo.As duas palavras se imbricam.
A simbiose entre literatura russa e romance virou at motivo de blague. Em uma das
geografias do Hermes que o paulistano O pirralhopublicava satirizando Hermes da Fonseca, alvopredileto do peridico eis como se define o item fauna do pas Rssia: Fauna l tem muitos
romancistas, mas em compensao no tem estrada de ferro funicular.11
Fica claro, portanto, o porqu da primeira data sugerida na delimitao cronolgica. Vm
dessa poca a segunda metade da dcada de 1880 os primeiros textos que utilizavam os
romancistas russos como contraponto a questes literrias candentes, em movimento similar ao que
se fazia em outros pases das Amricas, da sia e da Europa, mesmo nos pases eslavos. A data final
(1936) representa momento em que os contornos da discusso gerada no fim de sculo j no so
mais visveis ou relevantes para a tarefa da crtica. Esse momento poderia ser colhido em qualquer
ponto da dcada de trinta, pois que a busca de novos referenciais na lide com a literatura russa era
uma tendncia geral. A data em questo foi escolhida por localizar-se imediatamente antes da entrada
em cena das novas relaes poltico-culturais do Estado Novo, que trouxeram alteraes
quantitativas (aumenta o volume de textos publicados sobre literatura russa) e qualitativas
9HEMMINGS, F. W. J., The Russian novel in France, 1950. Diversos analistas observaram essa reduo da literatura russaao romance, no transcurso de sua recepo ocidental. Cf. ROHL, Magnus, Le roman russe de Eugene-Melchior de Vog, 1976;DAVIE, Donald, Mr. Tolstoy, I presume? The Russian novel through Victorian spectacles, 1990, p. 275;ALEKSIEV, Mikhail, La littrature russe et sa porte europenne, 1967. Muitos anos depois, um historiador daliteratura proclamava: a literatura russa moderna pertence toda ao romance. REBELLO, A. Velloso, Literaturasestrangeiras, 1936, p. 411.10 LICNIO, Pedro. Vanka, Sirius, 5 set. 1895. Vanka, alis, o ttulo de um conto de Tchkhov anunciado naBiblioteca socialA inovadora do jornal libertrioA Plebe, jul. 1922.11Geografia do Hermes captulo IX Rssia, 6 set. 1913. E no mesmo artigo: Cidades principais Moscou, cidadeque pegou fogo, porque quando Napoleo cercou ela, disse pra nenhum soldado pegar fogo na igreja, mas um soldado,que estava na gua, pegou fogo. Inclusive morreu queimado o dito soldado, mas em compensao Napoleo no morreu.Isso aconteceu na guerra russo-japonesa. Porto Arthur no mais da Rssia. Tolstoi, cidade literria que deu nome aoconde do mesmo nome; Sebastopol, em portugus So Sebastio do Paraso, cidade que ganhou muitas batalhas naguerra contra o Japo./ Exrcito acabou depois da guerra, mas dizem que vai comear outra vez.
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(aparecimento de novos ensastas e projetos editoriais mais encorpados, como a edio de
Dostoivski da Jos Olympio, a partir do incio da dcada de 1940).
Nesse intervalo de tempo, surge um universo multifacetado, em que um sem-nmero de
escritores, artistas e intelectuais defronta-se com a literatura russa. Psiquiatras, literatos partidrios e
opositores do naturalismo, pensadores catlicos, anarquistas e nefelibatas formam um quadro
complexo e, ao mesmo tempo, bastante restrito. Complexo porque muito mais gente conhecia o
romance russo do que se supe; restrito porque a crtica literria, pelo menos at a dcada de 1910,
movia-se cerradamente em torno de uma seleo diminuta de passagens e obras, gerando uma
seqncia interminvel de glosas, parfrases e adaptaes. Em contraste provavelmente, pois isso
somente anlises intertextuais, a histria social da leitura do romance russo e pesquisas sobre o
mercado editorial podero mostrar com a variedade de apropriaes possveis fora da linguagem e
dos propsitos do discurso crtico.
O objetivo da primeira parte, A sociologia sentimental, concentrada no perodo que vai ato incio dos anos vinte, apresentar os principais pontos do paradigma crtico finissecular. O
primeiro captulo, Niilismo, modo de usar, mostra que havia conhecimento da literatura russa fora
de suas fronteiras, inclusive no Brasil, antes da dcada de 1880. Pchkin e Ggol estavam traduzidos,
e o sucesso de Turguniev nos cenculos ocidentais fato notrio (Tolsti e Dostoivski, por outro
lado, eram ilustres desconhecidos). Estes contatos, contudo, davam-se em escala diminuta. A idia de
literatura russa era considerada contradio em termos nos crculos bem-pensantes. Mesmo os
poucos interessados no assunto no ousariam dizer que algum daqueles escritores seria capaz de
fornecer direes para a fico francesa ou inglesa. Exceo feita a Prosper Mrime, nenhum
intelectual do establishmentde meados do sculo se manifestou em prol da literatura russa. Flaubert foi
apresentado a Tolsti e a Pchkin por Turguniev, e, se certo que identificou elementos de
Shakespeare no primeiro, deixou claro que considerava tudo aquilo um tanto vulgar. anacrnico,
portanto, conferir aos romancistas russos, naquela altura, a mesma validade simblica de que
passariam a dispor do fim de sculo em diante.
Um naturalismo superior (primeira parte) trata da divulgao macia dos romancistas
russos a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883-1886. Este um dos fenmenosmais bem documentados da histria literria. Apresento exemplos do aumento vertiginoso do
nmero de tradues e do entusiasmo generalizado nos meios intelectuais. Em seguida, resumo os
argumentos existentes nos principais textos crticos. Fatores extraliterrios contriburam para o boom
do romance russo: a momentosa aliana franco-russa foi decisiva nesse sentido. Mas o que o tornou
influente no plano da literatura foi a noo, depois firmada como toposda crtica, de que o tipo de
prosa ficcional apresentada pelos russos regenerava o realismo e o naturalismo. Como tal, podia ser
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contraposta a Zola (ou a Flaubert). O captulo seguinte, segunda parte de Um naturalismo
superior, mostra como esse debate foi recebido e reconstrudo por crticos e intelectuais brasileiros.
Taxonomias do cinza recupera algumas inseres do romance russo na belle poque, com
destaque para a sedutora imagem da alma russa e para o pathos que lhe era atribudo.O captulo
tambm faz um balano das tradues de literatura russa disponveis em livro e em peridicos no
mesmo perodo.
Os dois captulos subseqentes, Uma espcie de Isaas e O profeta e o veto, delineiam as
repercusses particulares de, respectivamente, Tolsti e Dostoivski. No primeiro caso, a imagem
fortssima do conde e sua veia de polemista se sobrepuseram atividade de romancista. Ao contrrio
de Tolsti, que foi das figuras pblicas mais importantes do fim de sculo e da belle poque, vivo e
(bastante) ativo at 1910, Dostoivski ficou circunscrito s pginas da crtica. Por isso, sua recepo,
inteiramente pstuma, esteve acentuadamente marcada pelas diretrizes da crtica francesa.
O stimo captulo, Romance russo e nosografia fala da apropriao extremamenteimportante, no contexto brasileiro mdico-jurdica da fico russa. Em muitos aspectos, este
captulo prolonga o anterior. A psicopatologia encontrou afinidade eletiva em Dostoivski e os dois
legitimaram-se mutuamente.
O excurso Resistncias encerra a primeira parte mostrando juzos contrrios ao romance
russo. A contracorrente era bem mais branda do que o fluxo das aprovaes, mas houve vozes que
reprovaram aspectos da narrativa russa (a lentido de Dostoivski, por exemplo) e exploraram
farta as contradies entre teoria e prtica tolstoianas.
A segunda parte, Anjos e espectros, estuda as dcadas de vinte e trinta; nelas, o
questionamento e abandono das interpretaes e dos modelos crticos finisseculares. O captulo A
esterqueira do futuro traceja a importncia da Revoluo Russa, o surgimento de novos
interlocutores na crtica, em especial Andr Gide, e a relao dos diversos modernismos com a
literatura russa. J o nono captulo, Setembro de 1917, ou: paralelos Brasil-Rssia, matiza o
significado desses fenmenos e reafirma o andamento relativamente particular do discurso crtico. A
revoluo bolchevique, de impacto inegvel, no foi o marco zero da recepo dos escritores russos
no Brasil. Os ensaios alentados de Vicente Licnio Cardoso e Fbio Luz mostram que no haviainstrumental crtico disponvel para se discutir as questes geradas pela revoluo fora do estoque de
temas que, em meados da dcada de vinte, j datava de quarenta anos.
O terceiro elemento traz a participao dos intelectuais catlicos, leitores constantes de
Dostoivski, Grki e Tolsti. Esta ser, suponho, a associao mais surpreendente desta tese, visto
que a literatura russa habitualmente tida como uma espcie de patrimnio da esquerda. Conquanto
mostre limites das interpretaes daqueles intelectuais (Alceu Amoroso Lima, Tasso da Silveira,
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Jackson de Figueiredo, entre outros), limites impostos pela imposio dos temas da ordem e da
reao literatura, o objetivo do captulo destacar a relevncia dos problemas especficos da
tradio crist para o estudo dos romancistas russos. O controle que os intelectuais catlicos tinham
dessa tradio facultava-lhes o acesso a zonas da literatura russa pouco exploradas pela crtica
brasileira, em especial tradio da crtica filosfica e simbolista.
O ltimo captulo, O romance russo em xeque, apresenta, alm de um breve panorama do
mercado editorial dos anos 30, textos que desconfiam abertamente das interpretaes geradas no fim
de sculo, e tentam cercar os romancistas russos por outros ngulos.
Esse roteiro no se encerra com a celebrao da falncia do olhar crtico de fim de sculo e
sua substituio por uma visada mais, digamos, profissional: Melchior de Vog e Clvis Bevilacqua,
entre outros, detectaram aspectos cruciais da fico russa, alguns dos quais coincidiam com as
preocupaes mais profundas de Dostoivski e Tolsti em relao aos seus prprios procedimentos
artsticos. Muitos desses aspectos continuaram relevantes para os crticos das dcadas de trinta emdiante. No se trata, portanto, de ratificar velhos preconceitos modernistas sobre a impossibilidade
de se descobrir a verdadeira literatura dostoievskiana antes da ao das vanguardas. No entanto, as
descobertas dos crticos de fim de sculo foram efetuadas por meio de esquemas deterministas e de
concepes orgnicas e romnticas de literatura, as quais identificavam a efetiva ruptura no quadro
realista/naturalista suscitada por um Dostoivski, mas no conseguiam formul-la sem recorrer
evocao de uma moral superior e alevantada de matriz beletrista. Sem substitu-lo de todo, desse
quadro que os intrpretes da dcada de 1930 passam a duvidar.
Alguma metodologia: as fontes desta tese foram extradas de arquivos particulares de
escritores e de uma extensa pesquisa em peridicos e livros publicados entre 1887 e 1936, com
antecipaes e prolongamentos necessrios para a confeco do argumento. Se muito do que segue
indito ou pouqussimo conhecido, no foi minha inteno fazer uma empreitada somente
arqueolgica. Tentei equilibrar os artefatos sujos de mofo dos arquivos com textos mais
conhecidos os Apontamentos literrios (1887-1888) de Jos Carlos Jnior, por exemplo, com Amisso da Rssia (1905), de Euclides da Cunha. Com perfil-los conjuntamente, espero evidenciar
os traos em comum e as diferenas entre eles.
Diga-se logo que no so muitos os textos monogrficos dedicados exclusivamente ao tema
da literatura russa, especialmente antes da dcada de trinta. H grande nmero de referncias dentro
de artigos, captulos de livros e ensaios que no lhe so diretamente dedicados. Mas, no que se refere
a textos inteiramente consagrados a Tolsti ou a Dostoivski, senti-me um pouco como os
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pesquisadores do mundo antigo, que tm de extrair o mximo de um pedao de pergaminho ou de
um fragmento de pedra. Faz falta, na recepo brasileira, obra mais substancial vinda da lavra de
algum crtico de primeira linha. Mario de Andrade, Augusto Meyer e Araripe Jnior s escreveram
apontamentos ou artigos. Alceu Amoroso Lima estava plenamente capacitado para escrever, na
dcada de 1920, o que seria um volume excelente sobre Dostoivski. No o fez, e a tarefa coube a
Hamilton Nogueira.
Isso no deve fazer fenecer a idia de que a leitura do romance russo foi uma corrente
subterrnea importante da vida literria brasileira, pois que, parte franceses e portugueses, o espao
dedicado na crtica literria s literaturas estrangeiras no mesmo perodo tambm era relativamente
exguo, localizava-se em nichos e surgia em espasmos. Clvis Bevilacqua publicou apenas um artigo
sobre literatura russa, verdade. Mas esse artigo era o nico de seupocas e individualidadessobre um
escritor estrangeiro. Jos Verssimo bem poderia ter se expandido mais sobre a literatura russa;
contudo, Tolsti foi dos poucos a merecer trs ensaios de sua srie Homens e coisas estrangeiras. EmAraripe Jnior e Artur Orlando, os literatos russos figuram em meio a outras consideraes; s que a
brevidade da apario est em proporo inversa dimenso intelectual que aqueles ensastas lhes
conferiam. Vicente Licnio Cardoso e Tasso da Silveira publicaram um punhado de ensaios sobre o
assunto. Em surdina, acalentavam projetos de escrever livros inteiros sobre o romance russo. E se
Alceu Amoroso Lima no escreveu a obra supracitada, nem por isso a literatura russa deixou de ser
um elemento fundamental de sua correspondncia com Jackson de Figueiredo.
Isso quanto s fontes primrias. A bibliografia de apoio, por sua vez, se constitui da mais
extensa relao que fui capaz de montar das obras comparativas pertinentes, em livro e em artigos
especializados. Dada a inexistncia dessa bibliografia no Brasil, vali-me de bibliotecas norte-
americanas, especialmente das existentes na Universidade da Califrnia, em Berkeley, durante
temporada de um ano de pesquisas. A nfase nas pesquisas em lngua inglesa, francesa e espanhola
(esta, existente em volume menor). So ttulos como La literatura rusa em Espaa, Dostoevsky in England,
Tolstoy in England and America, Tolstoi en France, Russian literature in the Hispanic world, Gogols first century,
Lopinion franaise face a linconnu russe, The Russian theme in English literature, East-West passage.12Vali-me
tambm de alguns livros e artigos em russo. Procurei no apresentar uma quantidade macia deartigos no idioma de Ggol para no afastar os eventuais interessados em dar prosseguimento
12Observo que, da mesma forma que h uma alentada bibliografia sobre a recepo da literatura russa em outros pases,existe tambm, na mesma medida, uma outra que ilumina a recepo de obras estrangeiras na Rssia. Como exemplos,cito ALIEKSIEV, M. P. Russkaia kultura i romanskii mir, 1985; BARTA, Peter I. (org). The european foundations of russianmodernism, 1991; GUKOVSKIJ, Grgoire. Racine en Russie au XVIIIe sicle: la critique et les traducteurs, 1927;POLONSKY, Rachel. English literature and the russian aesthetic renaissance, 1998; SIMMONS, Ernest J. English literature andculture in Russia (1553-1840, 1964; TURKEVICH, Ludmilla B. Cervantes in Russia, 1950; WANNER, Adrian. Baudelaire inRussia, 1996; e os seguintes livros publicados pela Academia de Cincias da URSS: Rossiia i zapad: iz istorii litieraturnikhotnochenii, 1982; Rossiia, zapad, vostok: vstrietchnie tietcheniia k 100-lietiu so dnia rojdieniia akadiemika M. P. Aliekseieva, 1996.
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pesquisa. Ademais, as obras em outros idiomas reproduzem e sintetizam as concluses dos escritos
em russo. A ausncia maior, pelo meu desconhecimento do idioma, a da bibliografia em alemo,
que dispe de forte tradio de eslavstica comparada. Novamente, aplico a ressalva: no pretendo
atribuir completude listagem, muito embora seja provavelmente das mais detalhadas disponveis.
Como seria de se esperar, a grande maioria dessas pesquisas explora as relaes entre Rssia e
pases centrais. Incurses horizontais, visando a recepo da periferia pela periferia (ainda que quase
sempre mediadas por Paris, Londres ou Berlim) so mais raras.13Veremos que o aparecimento do
romance russo no Brasil, fenmeno sui generisno contexto das dcadas de 1880 e 1890, por se tratar
de uma literatura provinda de uma terra considerada sem-literatura, atiou o interesse dos literatos
brasileiros, que imediatamente comearam a traar paralelos entre o bem-sucedido caso russo e o
brasileiro, ainda por se cumprir (assim o entendiam). A meta panormica desta tese fez com que o
lado descritivo sobressasse, mas vejo como extremamente fecunda a possibilidade de que os
resultados aqui apresentados se desdobrem em inquiries acerca dos fluxos literrios entre cenrios margem do centro.
Ficar faltando, por impraticvel nesse momento, um comentrio sobre a recepo do
romance russo em Portugal. No posso deixar de mencionar sua importncia aqui, devido no
somente s conexes editoriais e intelectuais entre Brasil e Portugal quando dos primeiros momentos
da recepo, como tambm da forma intensa com que Tolsti e Dostoivski foram lidos pelos
intelectuais portugueses. Boris Schnaderman e o eslavista norte-americano William Edgerton j
apontaram esse fato.14 Limito-me aqui a observar que, j em 1892, Jaime de Magalhes Lima
publicava em Portugal um estudo sobre as doutrinas de Tolsti. Bastante precoce, se pensarmos que
do mesmo ano a primeira sntese do tolstosmo em Frana.15
13 Digo quase sempre porque penso no cenrio latino-americano. Haveria que saber como o mesmo ocorre, porexemplo, na Turquia, no Ir e em pases da frica.14 SCHNAIDERMAN, Boris, Leo Tolstoi: antiarte e rebeldia, 1983, pp. 92-93; EDGERTON, William, Tolstoy andMagalhes Lima, 1976. Este autor desdobrou a pesquisa em outro ensaio, no qual faz assertiva enftica: (...) It is clearthat a number of important writers in both countries have been attracted to Dostoevskij as a literary psychologist. In thisrespect, however, they are not very distinctive from writers all over the rest of Europe. What is distinctive, I believe,among the Spanish and Portuguese, is their remarkable affinity with Dostoevskij in metaphysical outlook, in theirpreoccupation with the same great questions of faith and doubt, spirit and flesh, good and evil, that were the lifelongconcern of the great Russian master. It would be hard to think of any other Western culture in which this aspect ofDostoevskijs work has found such resonance. EDGERTON, William, Spanish and Portuguese responses toDostoievskij, 1981, p. 438. Talvez um pouco de exagero didtico do pesquisador, para tentar convencer o que deve serum pblico reticente.15Tolstoy et la philosophie de lamour, de George Dumas. Cf. HEMMINGS, F. W. J., The russian novel in France, 1950, p. 184.A obra de Magalhes Lima intitula-seAs doutrinas do Conde Leo Tolstoi.
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A bibliografia da tese contm obras literrias russas, estudos de cultura e literatura brasileira,
investigaes na rea da teoria e da crtica literria. A maior parte da bibliografia composta de
monografias sobre a Rssia. Separei-as em dois grupos: o item Estudos comparativos; recepo
crtica o mais extenso. Como j foi mencionado, concentrei esforos na montagem dessa listagem,
pois trata-se de uma rea de pesquisas virtualmente desconhecida na universidade brasileira. No item
Histria, literatura e cultura russa dei preferncia a obras mais recentes. Dois anexos vm em
seguida. O primeiro (Fontes primrias) traz a listagem completa dos peridicos pesquisados e dos
manuscritos, artigos, ensaios e captulos de livros. O segundo anexo reproduz algumas fontes
significativas. Privilegiei textos de difcil acesso. Por essa razo, no esto disponveis ensaios como
os de Jos Verssimo, recentemente publicados.
Uma nota sobre a grafia dos nomes prprios, eterna dor de cabea de quem quer que seaventure pela seara russa: nas citaes a ortografia vai atualizada, porm os nomes dos escritores
russos permanecem tal qual na passagem original. enorme a variao deles; freqentemente, no
mesmo texto. Dostoivski foi o campeo nesse quesito: chega a ter trs grafias (Dastoievshy,
Dastoievsky, Dastoieosky) num nico artigo, todas inadequadas. Era o pesadelo dos escritores,
revisores e tipgrafos. Tal truncamento indica a dificuldade material no tratamento do assunto.
Parece-me que corrigir os textos implica perder significados e possibilidades extras de anlise. Por
trs de um Puchkine ou de um Dostojewski, por exemplo, podemos ver a procedncia francesa
ou alem. O mesmo vale para os ttulos de obras. Atravs deles fcil deduzir a provenincia da
fonte critica. A presena do artigo definido emA Guerra e a pazou em O crime e o castigomostra que o
resenhista tinha em mos um La guerre et la paixou um Le crime et le chatiment. Peo, pois, desculpas
pstumas pela deselegncia de expor as dvidas e embatucamentos de crticos quando de sua
aproximao a um tpico reconhecidamente complicado.
At porque as minhas dvidas no existiro em menor grau.
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presos num lusco-fusco cultural. Presumia-se que havia entre a situao russa e a dos pases centrais
uma diferena essencial, um hiato temporal (a Rssia como verso mais atrasada do Ocidente) ou
qualitativo (Rssia e Ocidente compostos de materiais eternamente diferentes).3 Esse imaginrio
criado sobre os moscovitas se tornou um lugar-comum das letras, do discurso historiogrfico e da
diplomacia j a partir do sculo XVI, quando os prncipes de Moscou ento encabeavam, no
perodo posterior dominao mongol (1240-1480), o turbulento processo de unificao de regies e
principalidades relativamente autnomas.
A Rssia foi definida como representante de tudo aquilo que o Ocidente o conceito
construdo de forma correlata no se queria: anomia, ao invs de estabilidade e tradio; estagnao
cultural, ao invs de arte e letras em florescimento; a ascendente reta da razo contra a tortuosa curva
do paradoxo; e, sobretudo, tirania no lugar de respeito a liberdades individuais. Estabelecida imagem
to negativa, pode-se perceber as razes porque artistas, intelectuais e polticos de todos os cantos,
desejosos de modernidade, progresso e luzes, viram na ptria do knut motivo mais de repulsa doque de atrao.4
extraordinria a persistncia dessa lgica opositiva. Em momentos-chave da geopoltica
europia a noo de uma diferena essencial entre a semi-periferia russa e o centro Paris-Londres foi
intensificada a servio de grupos e indivduos influentes e interessados em propagandear as taras
moscovitas. Houve tambm momentos de ruptura parcial e quase completa com ela, assim como a
construo paralela de outras longas duraes. A impressionante difuso do romance russo em fins
do sculo XIX foi um desses momentos.
No transcurso do oitocentos, sculo de russofobia,5a clivagem entre opinio pblica da Europa
Ocidental e as coisas da Rssia era quase absoluta.6
Posteriormente, quando da reunio e alterao dos ensaios da Revuepara o volume Le roman russe, Voge transferiu oenunciado para Dostoivski, cujo coneficiente de barbrie precisava ser ressaltado. O termo cita foi retomado peloscubo-futuristas russos na dcada de 1910.3 Para um estudo filosfico de inspirao heiddegeriana sobre essa diferena, cf. DENNES, Maryse. Russie-Occident:
philosophie dune difference, 1991. Segundo Martin Malia, mesmo nos momentos de pior relacionamento diplomtico entre aspotncias, e mesmo com a esmagadora presso dos esteretipos e preconceitos nutridos pelo ocidente europeu emrelao Rssia, esta jamais deixou de ser considerada um elemento que girava em torno daquela rbita, diferentementede um estado como o turco. O grau de estranheza no era total percebia-se a familiaridade em mais de um aspecto,ainda que estivesse supostamente eivada de disfunes estranhas e de desvios da norma. Cf. MALIA, Martin, Russiaundern western eyes: from the Bronze Horseman to the Lenin Mausoleum, 1999. A combinao de proximidade e distnciaestampava-se tambm na descrio de eventos polticos. Quando da coroao do Tzar Alexandre III, em 1881, o enviadodo peridico lisboeta O Ocidente, assim se manfestou: Este fato porm que nos pases verdadeiramente ocidentais daEuropa determina uns festejos mais ou menos brilhantes, no se passa na Rssia de maneira to simples.. R. M. Acoroao do Czar. O Ocidente, n. 161, 11 jun. 1883.4POE, Marshall T. A people born to slavery: Russia in early modern European ethnography, 1476-1748, 2000. cf. tambm ointeressante estudo de MERVAUD, Michel e ROBERTI, Jean-Claude. Une infinie brutalit: limage de la Russie dans la Francedes XVIe et XVIIe sicles, 1991; e, para a imagem da Rssia em perodo ainda anterior, ver LOZINSKIJ, Grgoire. LaRussie dans la littrature franaise du moyen age: le pays, 1929.5 A expresso est em CORBET, Charles. Lopinion franaise face linconnue russe (1799-1894), 1967, p. 89. O termorussofobia foi objeto de estudo clssico de John Howes Gleason, The genesis of russophobia in Great Britain. Nova, 1972.
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observao requerido para a construo de pontos de vista narrativos impessoais, ou no podiam t-
lo jamais por impossibilidade constitutiva. Em todo caso, era um dficit, e jamais ocorreria a algum
afirmar, mesmo tomado de simpatia, que a literatura russa era algo alm de, no mximo, uma boa
variante da literatura francesa ou da alem. Alguns dos elementos depois prezados no romance russo
so variaes, com sinal positivo, daquilo que se julgava anteriormente marcas do atraso: nos
compndios acadmicos e relatos de viajantes produzidos dos sculos XVI at meados do XIX, o
povo russo aparece constantemente classificado como o mais religioso da Europa. Com a luta pela
legitimidade da razo iluminista, e em tempos de glorificao do maquinrio do progresso, tal
caracterstica teria inevitavelmente que parecer entrave consolidao da sociedade russa em moldes
liberais. Nas ltimas dcadas do sculo XIX, contudo, por uma srie de fissuras em tal viso de
mundo (das quais tratarei no prximo captulo), a suposta religiosidade russa se transforma de
entrave em apangio, capaz de por contra a parede o prestgio internacional da literatura francesa e
de tudo o que ela representava culturalmente.Por outro lado, as incurses pr-boompela literatura russa apontam, em muitos aspectos, para
direes outras, que ficaram soterradas pelo autntico rolo compressor que foi o livro de Melchior de
Vog. As tradues de Ggol e Pchkin realizadas em Frana nas dcadas de 1840, por exemplo,
com todos os seus equvocos, no so muito piores do que aquelas que foram consumidas por um
pblico de massa cinqenta anos depois, e que foram o suporte da canonizao dos romancistas
russos. Antes da onda russa deflagrada a partir de Paris, a Alemanha j contava com boas tradues,
praticamente simultneas aos lanamentos na Rssia, e parcela restrita de seu pblico leitor j
conhecia e discutia Dostoivski e Tolsti. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, Turguniev foi, na
dcada de 1870, objeto de culto para um crculo seleto de romancistas. Essas apropriaes no foram
de forma alguma ligeiras, muito pelo contrrio, elas indicam vrias possibilidades de desenvolvimento
relativamente desviante da homogeneidade do discurso vencedor.
Quando me refiro ao espao pouco relevante que a literatura russa ocupava antes que o
romance russo ganhasse coraes e mentes de leitores fora da Rssia, penso em uma diferena
quantitativa (o nmero de intelectuais que se interessavam pelo assunto era muito menor do que o de
fim de sculo, quando desconhecimento dos romancistas russos passa a ser falha imperdovel naeducao literria) e qualitativa (no se acreditava que a literatura russa tivesse mais relevncia, no
plano mundial, do que a mexicana ou a persa).
Dito isso, preciso observar que os ritmos de assimilao da literatura russa variaram muito
dependendo de local e poca. Um perodo de intenso entusiasmo pelas coisas russas, chegando s
Paris) de ambos. Cf. WEGNER, Michael. The russian novel: essence and influence of a literary tradition. Em:EVANS, John X.Adjoining cultures as reflected in literature and language. Arizona State University, 1983, p. 99.
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raias do modismo, entre determinadas camadas da sociedade na Inglaterra podia coincidir com um
perodo de russofobia na Frana, e vice-versa. De fato, o mais comum era a alternncia de interesse
entre os principais pases, dependendo da posio que a Rssia ocupava nas respectivas polticas
externas. Mesmo acompanhando, atravs dos peridicos, os movimentos da cultura parisiense, podia
haver na Espanha ou na Itlia um interesse prprio e particular pelas coisas russas, motivado por
algum contato diplomtico ou pela atividade de um viajante regressante daquele pas. A Alemanha
manteve uma slida tradio de estudos eslavos, com um circuito de tradues que de certa forma
corria paralelo s diretrizes francesas. Todos esses processos sofriam por vezes momentos de
sincronia, e, mesmo com esse repertrio de boas tradues, vrios intelectuais alemes se valeram
ocasionalmente das tradues e ensaios franceses.
O tema russo nas letras, e a ateno ao estado das artes na Rssia, eram preocupaesrazoavelmente presentes na vida cultural europia. Tratados renascentistas sobre a Moscvia traziam
informaes, em geral desanimadoras, sobre a atividade dos artistas e letrados russos. Tais
comentrios vinham no bojo de discusses diplomticas, polticas e militares. O reino da cultura era,
com rarssimas excees, tratado como apndice puramente imitativo do equivalente francs, alemo
ou ingls. Um punhado de sbios fazia s vezes tentativas esparsas de convencer o pblico, fosse este
humanista, cartesiano, elisabetano ou ilustrado, da corte ou da cidade, de que havia promessa de
redeno para aquele rinco distante, a comear pelo prprio idioma Sir Jerome Horsey, viajante
quinhentista a servio da coroa inglesa, declarou que a lngua russa era a mais copiosa e elegante
lngua do mundo.9
Alis, a valorizao do idioma russo pelos intermedirios interessados em elogiar o pas foi
uma constante. Alguns sculos depois do comentrio de Horsey, Prosper Merime tambm diria que
a lngua russa possua a clareza e conciso dos idiomas clssicos. Nessa linhagem de elogios, que
oferecia um referencial honroso, pode-se ver que o objetivo era combater a idia generalizada de que
na Rssia tudo era desmedida e excesso, frutos da simultnea ausncia de um slido passado greco-
romano e da presena de um dissonante cristianismo bizantino.Intelectuais e artistas importantes do perodo produziram textos sobre a Rssia. So bem
conhecidas as imagens da Rssia em Shakespeare (Loves labours lost).10 Em 1682 John Milton
9Citado em STONE, Gerald. The history of slavonic studies in Great Britain. In: Beitrge zur Geschichte der Slawistik inNichtslawischen Lndern., 1985, p. 366.10BREWSTER, Dorothy.East-West passage: a study in literary relationships, 1954.
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escreveu uma Breve histria da Moscviana qual lamentava-se a ausncia completa de instruo entre os
russos.11
Aps a expanso imperial de Pedro I e Catarina II, com retumbantes vitrias militares sobre a
eficincia administrativa e militar de vizinhos poderosos, acompanhadas, no plano interno, de um
processo civilizatrio que desenhou novas bases para todos os estratos da sociedade, a Rssia entrou
de forma mais contundente no concerto das naes e na lgica de equilbrio entre as potncias tpica
dos sculos XVIII e XIX. Aps as duas momentosas passagens (em 1697-98 e em 1717) de Pedro, o
Grande pelos pases ocidentais, surge nestes uma grande corrente de publicaes sobre a Rssia,
destacando aspectos geogrficos, culturais e polticos, assim como uma srie inesgotvel de operetas,
peas e narrativas de temtica russa. Alguns grandes personagens da histria russa adquirem foros de
protagonistas em livros produzidos em Londres e Paris, e viram alvo de caricatura ou exaltao. A
vida dos cortesos-literatos passa tambm a ser acompanhada de perto. O reverendo William Coxe
compilou material para um balano da literatura russa durante viagem a So Petersburgo em 1778.Seu livro de viagens trata de autores antigos e modernos, tais como Nikon, Lomonssov e
Sumarkov.12Sbios franceses aproveitaram o aceno do saber iluminsta e viajaram para o Imprio
Russo, tido como campo virgem para experimentaes cientficas.13Eram astrnomos, gegrafos,
botnicos e gelogos viajando sob os auspcios das respectivas academias de cincias. Contingente
considervel dos filsofos e artistas ocidentais farejou na figura de Pedro, o Grande, um timo
patrocinador em potencial, e, como tal, enviaram-lhe projetos. Leibniz foi um deles, com um estudo
(no implementado) visando incrementar as relaes culturais e comerciais entre o Imprio
nascedouro e as naes ocidentais.14
Ainda nesse perodo, o caso de aproximao mais impactante foi o interesse de Voltaire e
Diderot pela Rssia de Catharina II. O evento representava, nada mais nada menos, do que poro
substancial do que havia de mais influente na intelectualidade europia tentando adquirir mais
conhecimentos sobre o estado das coisas na Rssia, e utilizando as concluses para abastecer a linha
de frente das polmicas em Frana. Voltaire escreveu em 1759 um estudo sobre Pedro, o Grande,
fixando decisivamente a imagem do imperador como desbravador que extrara a golpes de razo a
nova Rssia dos pntanos do Golfo da Finlndia. Seguiu-se a isso vigorosa correspondncia comCatarina II, na qual se discutem os limites e alcances das Luzes em solo russo. Mas quando Voltaire
enalteceu os avanos empreendidos pela Imperatriz na renitente sociedade russa, ele j trazia consigo
11 CROSS, Anthony. British Awareness of Russian culture (1698-1801), em Anglo-Russica: aspects of cultural relationsbetween Great Britain and Russia in the Eighteenth and early Nineteenth centuries, 1993, p. 1.12Idem, p. 16..13CHABIN, Marie-Anne. La curiosit des savants franais pour la Russie dans la premire moiti du XVIIIe sicle,1985, pp. 565-575.
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um pesado esquema retrico e interpretativo herdado das vises anteriores sobre a Moscvia. 15Alm
do que, ao mesmo tempo em que entusiasmava-se com as maravilhas do despotismo esclarecido,
outros escritores franceses pintavam um quadro bem mais inquietante da Rssia. O marqus de Sade
fazia dos seus personagens moscovitas artfices do tormento. A miragem16 russa no valia para
todos os intelectuais e escritores. Voltaire e Diderot elogiavam os empreendimentos imperiais.
Rousseau e Mirabeu no estavam nem um pouco convencidos.
Os acontecimentos de 1789 fizeram com que Catarina sepultasse as faces mais liberais do seu
reinado, imergindo a Rssia em tudo aquilo que era combatido pela opinio esclarecida ocidental.
Para esta, a Rssia ento adquire os contornos reacionrios e msticos que, no curso do sculo XIX,
seriam tidas como suas marcas registradas. O colosso russo, em sua esfera governamental, passa a ser
associado, decisivamente, com a contra-revoluo.17
No perodo das guerras napolenicas, o Imprio russo, fiel da balana do conflito, exibia uma
suntuosa vida de corte, acompanhada de todo o aparato da alta cultura europia, e possuaestudantes, engenheiros e cientistas espalhados estrategicamente pelos principais governos e
universidades da Europa. Multiplicam-se os esforos de sistematizao e sntese da sua vida cultural
feitos por viajantes que tentavam convencer seus compatriotas da existncia das letras naquele
mundo margem. Em 1800 aparecem na Frana um Choix des meilleurs morceaux de la litterature russee
uma gramtica russa.18
A luta contra Napoleo gerou sentimentos ambguos. Misturou o empenho libertador do
exrcito russo com as impressionantes cenas dos soldados estacionados em Paris, tendo a frente o
monarca Alexandre I. Grassou na Europa uma onda de Alexandrofilia, da qual literatos como
Chateubriand tomaram parte.
A conjuno favorvel foi solapada pela represso aos dezembristas e pelo advento do
reinado frreo de Nicolau I. Numa Europa cada vez mais s voltas com a diversificao da esfera
pblica, tornava-se impossvel tolerar a congelante orientao oficial de Autocracia, Ortodoxia e
Nacionalidade, formulada pelo Ministro da Instruo Uvarov. Os liberais e os grupos esquerda
viam no Imprio Russo ausncia de produo literria devido represso feroz que impedia o seu
florescimento. Os conservadores consideravam a Rssia localidade atavicamente adversa aos
14KOSTKA, Edmund. Glimpses of Germanic-Slavic relations from Pushkin to Heinrich Mann, 1975, p. 2.15WOLFF, Larry. op. cit., p. 90.16O termo de Albert Lortholary, em Le mirage russe en France au XVIIIe sicle, 1951.17 o que demonstra Guerra Junqueiro, nesses versos a respeito do urso russo: Ele descomunal, titnico,felpudo;/Anda sinistramente a farejar na treva,/E causa-nos horror como um gigante mudo/Vive na escurido fantsticado Neva,/E j ouvi dizer que essa alimria informe/ tambm como ns filho d'Ado e Eva. Os versos forampublicados tambm na revista carioca Os anais, no contexto da revoluo russa de 1905. Sobre a mudez da Rssia, cf.adiante a opinio de Carlyle. E, na mesma linha Junqueireana, cf. adiante, seo niilismo e literatura russa, os versos deLucio de Mendona.
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caminhos do esprito, diagnstico corroborado pelos diagnsticos sombrios de visitantes.19
Decorrncia disso que todas as orientaes, ainda que antitticas, convergiam para uma descrio
da Rssia como terra arrasada, ou, na melhor das hipteses, situada em um dos graus mais baixos da
escala de valores europias. Tal juzo autoritrio repercutia na vida intelectual luso-brasileira.
Extraindo a quintessncia do que julgava ser a natureza poltica do estado russo, foi que Jos
Bonifcio de Andrada e Silva pronunciou, de forma lapidar, seu diagnstico sobre a formao
histrico-social russa:
Rssia um estado amealhado de pedaos que saiu j armado como Palas da cabea de Jpiter. Mas esse mapaheterogneo no tem ponto central de desenvolvimento externo. Suas feies primordiais e principais so aindaasiticas20
Jos Bonifcio, homem do iluminismo, talvez descobrisse afinidades com Lomonssov.
Infelizmente, no pde escapar do discurso condescendente para com a Rssia. Territrio virgem,deserto aberto s experimentaes do intelectual, preferencialmente o ilustrado, nico capaz de
domar os contrastes excessivos e a ausncia de centro. Ausncia de eixo na vida russa, colagem
artificial de povos: a narrativa de Jos Bonifcio pode muito bem ter sido copiada de inmeros livros,
ou simplesmente veio-lhe pronta e acabada cabea, pois que era senso comum. Sua crtica tambm
, maneira do objeto que ela comenta, um amlgama de outras crticas, um conjunto de pedaos de
argumentos pertencentes a pocas e locais dspares. Muito parecida com a de Napoleo Bonaparte,
para quem a Rssia era semi-brbara, nem europia, nem asitica.21Trata-se de diagnstico iluminista
de uma Rssia ambiguamente petrina. A Rssia j sai armada ou seja, h algum grau de completude(ele sem dvida pensa nas reformas de Pedro, numa entrada a frceps, sbita, no palco das naes),
significativamente exemplificado atravs da evocao de imagem clssica o parto de Palas-Atena
mas ainda catica, como se a reforma tivesse sido incompleta. A tarefa do construtor de naes,
portanto, no se cumpriu, entravando-se e entrevando-se nas espessuras asiticas.
Esse tipo de comentrio, desmontado e remontado, ser retomado infinitas vezes, pois
condensa sculos de opinies, observaes, palestras supostamente eruditas e comentrios jocosos
sobre os traos definidores da Rssia: lugar da no-definio, da carncia de histria, estado bicfalo
18CORBET, Charles, op. cit, p. 51.19A este respeito, o livro mais influente do sculo na formao de uma imagem negativa da Rssia (e o volume maisconsultado at o aparecimento de O romance russo, de Melchior de Vog) foi a Rssia em 1839, do Marqus de Custine.Sobre as relaes culturais entre Frana e Rssia nas dcadas aps Custine, cf. CADOT, Michel, La Russie dans la vieintellectuelle franaise (1839-1856), 1967.20ANDRADA E SILVA, Jos Bonifcio de. Manuscrito s/d. (Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro)21CORBET, Charles, op. cit., p. 65.
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e povo multiforme, cuja disperso s no d de vez lugar desintegrao porque retida por meios
artificiais.22
Paralelamente aos trabalhos bem intencionados, mas marcados quase sempre pelo
desconhecimento do idioma (mesmo no caso de homens e mulheres residentes na Rssia por longo
tempo), comeou a discreta formao de um campo autnomo de eslavstica nas principais
universidades europias. O Collge de France criou uma cadeira de estudos eslavos em 1840 e
Oxford seguiu pelo mesmo caminho a partir de 1844.23 Na dcada de 1870, tais inseres
universitrias ainda enfrentavam descrdito: Louis Leger, estudioso que produziria importantes obras
de eslavstica naquele perodo, recorda-se de que na Paris dos anos 1860 havia mais procura por
cursos de lngua tibetana ou japonesa do que russa.24
No contexto das primeiras investigaes acadmicas na rea eslava, a posio dos russosera relativamente subsidiria. Nos estudos de folclore, to importantes para a consolidao da viso
de mundo romntica, a Rssia era apenas uma pea do imenso painel que inclua croatas, srvios,
blgaros e tchecos. J havia, portanto, uma silenciosa mas influente tradio de estudos eslavos,
conduzida em diversos pases europeus. No caso dos pases eslavos, as investigaes estavam
fortemente associadas definio de identidades nacionais e fuga da influncia germnica. O
impulso inicial, contudo, veio de pensadores alemes. Herder, ainda no sculo XVIII, buscava
formar uma imagem unitria, idealizada e solidria dos povos eslavos 25e Jacob Grimm empreendeu
pesquisas detalhadas sobre os eslavos do sul.26O poema pico russo O Canto de Igorfoi traduzido em
1811 pelo alemo Joseph Muller, e repercutiu consideravelmente entre fillogos e lingistas, j
bastante entusiasmados pela recente descoberta de Ossian. Aos olhos dos primeiros artfices da
idia eslava, o Canto de Igor parecia confirmar o carter potico, popular e coletivo daqueles
povos.27
A Rssia, pria da opinio pblica internacional, no era o alvo principal das investigaes da
incipiente eslavstica. O pas eslavo que mais atraa as atenes era a Polnia martirizada, objeto de
tantos lamentos, em prosa e verso, aps o esmagamento de suas insurreies. Alm da competncia
22Em outro momento, Jose Bonifcio cita Nikolai Karamzn, produtor de gigantesca Histriada Rssia. Cf. ANDRADAE SILVA, Jos Bonifcio de. Projetos para o Brasil, 1998.23STONE, Gerald, op. cit. Mas as lnguas eslavas s passaram a fazer parte do currculo geral da mesma universidade apartir de 1887. Cf. BREWSTER, Dorothy, op. cit., p. 79.24HEMMINGS, F. W. J. The Russian novel in France, p. 5.25CADOT, Michel. Naissance et dveloppement dum mythe ou loccident em qute de lame slave, 1973, pp. 91-92;KOSTKA, E., op. cit., p. 5.26TONNELAT, Ernest. Jacob Grimm et les slaves du sud, 1935.27Idem, p. 195.
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The Westminster Review, The Foreign Quarterly Review e The Athenaeum, traziam com freqncia artigos
sobre poltica, histria e literatura na Rssia.32Traziam tambm tradues de Kantemr, Derjvin e
Krilv, geralmente acompanhada de incentivos a que o progresso nas letras russas continuasse a se
fazer sentir. Na Alemanha de meados do sculo, Pchkin j era encontrado em Obras reunidas e
em colees especializadas, como a Biblioteca russa para alemes.33Em ingls e francs o grande poeta
no estava representado por tantas nem to boas tradues quanto no vizinho germnico: a Filha do
capito estava disponvel desde 1859, mas Ievguni Oniguin somente chegou aos leitores ingleses em
1881. Henri Dupont, professor de literatura em So Petersburgo, preparou para o pblico francs
um volume de Oeuvres choisies de A. S. Pouchkine, pote national de la Russie, em 1847. Uma traduo deA
filha do capito, feita por Louis Viardot e Ivan Turguniev chegou 10a edio.34Desde a primeira
meno ao poeta na Frana, feita em 1821, grande parte de suas obras chegava a Paris quase ao
mesmo tempo em que era publicada na Rssia.35 Sob esse aspecto, havia at mais atualizao na
recepo da literatura russa da primeira metade do oitocentos, do que aps o boomdos anos 1880,quando leitores sofregamente liam obras de autores Turguniev, Ggol, Dostoivski j mortos.36
Escritores ainda hoje comparativamente pouco conhecidos fora da Rssia (tendo-se em vista
o sucesso muito maior de Dostoivski, Tolsti e outros romancistas), mas que so essenciais na
tradio literria russa, eram publicados e tinham alguma circulao: Grie ot um, comdia de
Griboidov, estava traduzida para o ingls em 1857. Vrias edies em francs de Krilv foram
preparadas, na Rssia e na Frana, em 1822, 1825 (esta tambm em italiano) e 1828. A embaixada
russa e os sales literrios russos existentes em Paris na primeira metade do sculo XIX contriburam
para a difuso da literatura russa. Escritores e crticos franceses importantes ali travavam contato
com autores russos, e tradues eram planejadas.37
32 PHELPS, Gilbert. The early phases of british interest in russian literature. 1960, pp. 415-416. O autor aponta,entretanto, que o tom de muitos dos artigos era condescendente, e com freqncia desdenhoso, com acusaesconstantes de que a literatura russa era rudimentar e derivativa em especial de Sterne, Richardson, Byron e Scott.33Na Alemanha, Pchkin dispunha de admiradores que o estudavam com afinco. T. H. Pickett e Richard Porter estudamo exemplo do diplomata K. A. Varnhagen von Ense (1785-1858), que aprendeu russo e publicou importante artigocrtico, no qual desafiava a idia geral de que Pchkin [era] apenas outro imitador de Byron. Op. cit., p. 73. Porter ePickett oferecem tambm alguns exemplos de livros panormicos sobre histria da literatura russa publicados naAlemanha nas primeiras dcadas do sculo XIX, mostrando como era variada a oferta deste tipo de trabalho. Para umdetalhado resumo da circulao de obras de Puchkin, cf. BIERKOV, P., Puchkin v perevodakh na zapadnoevropieiskieiaziki, 1973.34BIERKOV, P., op. cit., p. 226. A Alemanha teve o maior nmero de tradues. Estas eram tambm mais consistentes.Em segundo lugar, nos dois quesitos (quantidade e qualidade), ficava a Frana. E a Inglaterra as tinha em menor nmeroe mais pobres. Op. cit., p. 227.35CORBET, Charles, op. cit., p. 146.36 A exceo evidentemente Tolsti, morto em 1910. Havia sincronia, aps o boom de 1885-1889, entre as suaspublicaes e o interesse do pblico leitor internacional, mas preciso lembrar que boa parte dos romances sobre osquais aqueles leitores despejavam o entusiasmo haviam sido produzidos (caso de Guerra e Paz e de Ana Karenina) emdcadas anteriores.37FISZMAN, Samuel, op. cit., p. 67. Podemos tambm considerar a atividade de Turguniev de divulgao da literaturarussa como parte dessa tradio de emigrantes e visitantes russos em crculos literrios franceses.
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As tradues variavam imenso de qualidade. Algumas eram misteriosas, sem indicao de
origem ou de autor. Lrmontov e Ggol foram vtimas de edies piratas. Heri do nosso tempovirou,
em 1853, sem referncia de autor, Esboos da vida no Cucaso. Almas Mortas, em 1854, foi rebatizada
Home life in Rssiae creditada no a Ggol, mas a um genrico nobre russo. Taras Bulbafoi bem
recebido pela imprensa inglesa em traduo de 1860,38certamente pelo colorido tpico, que calava
fundo na sensibilidade romntica e nacionalista. As tradues publicadas em meados da dcada de
1850, especialmente no mundo anglo-saxo e na Frana, tinham um evento externo a motiv-las. A
Guerra da Crimia estimulou, em meio a reaes xenfobas de todo tipo, uma mistura de russofobia
e curiosidade sobre o pas. A literatura russa converteu-se em fonte para estudo da vida local, meio
de se obter conhecimento sobre o inimigo nos campos de batalha. Veja-se os ttulos escolhidos
vida no Cucaso, vida domstica. Zapski okhtnika, de Turguniev, virou, numa verso inglesa
de 1855, Russian life in the interior.39s vsperas do boom, a primeira edio inglesa de Recordaes da casa
dos mortos recebeu o ttulo de Prision life in Sibria (1881). As crticas e resenhas de tais volumesoscilavam entre o registro folclrico, o documental, e a identificao de um realismo primitivo,
algumas dcadas defasado em relao aos modelos ocidentais. O dado folclrico, contudo, no
impediu que Ggol tivesse alguma reputao em crculos literrios, mesmo entre crticos
importantes. Sainte-Beuve interessou-se por um volume de contos e novelas (Nouvelles russes) lanado
em 184540por Louis Viardot, e escreveu uma resenha parcialmente elogiosa na Revue des Deux Mondes.
O ilustre crtico, alis, havia at encontrado Ggol pessoalmente, durante uma viagem de barco entre
a Itlia e Marselha. Sabe-se que eles conversaram a bordo, mas, infelizmente, no h registro do que
seria o teor dessa conversa.41
Turguniev merecer seo parte. Adianto que, descoberto na mesma leva de tradues
motivadas pela guerra de Crimia, sofreu, inicialmente, destino semelhante ao de Ggol. Foi tido
como autor de obras meramente ilustrativas da vida senhorial russa. Ao contrrio do autor do Capote,
que permaneceu (e, de certa forma, ainda permanece) o grande ponto de interrogao histrico-
narrativo da prosa russa, Turguniev logo foi granjeando reputao mais slida como escritor de
fico.
38Idem, p. 425. Carl Lefevre, especialista na recepo de Ggol no mundo anglo-saxo, refora o ponto de que o escritorera pouco conhecido antes da guerra, havendo apenas, em peridicos, uma crtica de suas obras (1841), uma menoerrnea a ele num panorama da literatura russa (1842) e a traduo de Vy (1847). LEFEVRE, Carl. Gogol and anglo-russian literary relations during the Crimean war, 1949.39O ttulo francs foiMemoirs dum seigneur russe(1854).40Observar, portanto, que a publicao da edio francesa de Ggol se deu durante o perodo de vida do autor, quefaleceu em 1852.Para um interessante balano de Ggol na Rssia e na Frana cf. GREVE, Claude de, Gogol en Russieet en France, 1984.41LAFFITTE, Sophie. Gogol et Sainte-Beuve, 1964, pp. 56-58.
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Fora do eixo Londres-Paris-Berlim, o relativo interesse pela literatura russa tambm se fez
sentir. Sophie Ollivier aponta algumas obras escritas sobre o assunto antes de 1887, quando a
romancista Emilia Pardo Bazan escreve um livro que verdadeira parfrase de O romance russo, de
Melchior de Vog.42No peridico Revista Europea, entre 1874 e 1880, aparecem algumas novelas de
Pchkin, alm do anncio de lanamento de La hija del capitan.43Segundo George O. Schanzer, a idia
de difuso inicial da literatura russa a partir da dcada de 1880 do sculo XIX um conceito
estereotipado. Numa comunicao a congresso de hispanoamericanistas, ele apresenta diversos
exemplos, alm dos citados acima, de publicaes de contos russos em peridicos espanhis: em
1847, no El Fenix, de Valencia, e nos madrilenhos Revista Hispanoamericana, de 1848. No Museo
Universal, de 1863, figura um conto de Pchkin intitulado El torbellino de nieve.44A mesma traduo
desse conto aparece numa revista chilena contempornea. Isso leva Schanzer a afirmar que a idia de
que toda a literatura russa chegava Amrica Latina diretamente da Frana um equvoco, j que
numerosos textos publicados na Argentina, Chile ou Mxico provinham de peridicos de Valncia,Barcelona e Madrid.45
certo que a grande onda de difuso de meados dos anos 1880 no foi umfiat luxeslavo, em
que subitamente, perante um pblico virgem, comearam a aparecer romances caudalosos e
surpreendentes. O argumento de Schanzer procura refutar uma certa tendncia, que predominou
durante muito tempo como senso comum, de que antes da empreitada do visconde Eugene-
Melchior de Vog o mundo no tinha tido o privilgio de ser apresentado literatura russa. Por
todos os exemplos que apresentei, evidente que Schanzer tem razo de matizar a primazia da
dcada de 1880. Por outro lado, a querela por origens cronolgicas tem algo de beco sem sada, pois,
se ela indica antecipaes, descobertas e projees fundamentais da crtica e da traduo de literatura
russa ao longo do oitocentos, perde aspectos essenciais e particulares da recepo posterior, que
fizeram com que a sensibilidade dos leitores finisseculares percebesse o romance russo como novidade
e ruptura. No captulo seguinte, veremos com mais detalhe o que o boom possui de diferente em
relao s diversas recepes prvias da literatura russa. Por enquanto, indico um ltimo exemplo de
divulgao da literatura russa em meados do sculo XIX, que nos interessar mais de perto.
Prova de que temas literrios no eram totalmente terra incgnita foi a publicao em 1868,no circuito Funchal-Lisboa, de um livro intituladoQuadros da literatura, das cincias e das artes na Rssia.
42OLLIVIER, Sophie.La rception du roman russe em Espagne (1887-1925), 1993.43BIEGHLER, Edward W. Early spanish translations of Pushkin, 1938.44SCHANZER, George O. Las primeras traducciones de literatura rusa en Espaa y en America, 1970.45Porm, como o prprio Schanzer observa, todas essas tradues espanholas, depois transmitidas a pases da AmricaLatina, tm como origem uma traduo francesa. Ele chega a identific-la: trata-se de Le tourbillon de neige. Nouvelle russe.Traduite de Pouschkin, em LIllustrationde maio de 1843. Bierkov tambm se refere origem francesa de quase todas asprimeiras tradues de Pchkin. Op. cit., p. 228.
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Como Portugal faz parte do Letes acadmico internacional, esse livro est ausente de todas as
menes que pude recolher sobre a difuso da literatura russa. Seu autor, Plato Lvovitch Vakcel,
nasceu perto de So Petersburgo em 1844 e foi Ilha da Madeira em 1861 para acompanhar a irm
tuberculosa. Publicou, na Gazeta da Madeira, artigos sobre msica e instrumentos musicais locais, e
aproveitou o espao para divulgar seus estudos sobre a Rssia, os quais formariam depois o volume.
Vakcel comea por afirmar que o objetivo da sua obra poder dar noes exatas, ainda que muito
resumidas, sobre a histria da vida intelectual na Rssia, a um pblico que at ao presente quase que
nem tem ouvido falar dela.46Faz a ressalva de que isso no ocorre em todos os lugares e nem um
problema incontornvel, j que h tradues de Derjvin, Krilv, e que os romances de Turghenev
traduzem-se em Paris. Elogia as tradues de Merime e Bowring, passa por Pchkin, Lrmontov,
toda a poesia russa das primeiras dcadas do sculo XIX, e chega prosa. Ggol um humorista
profundo, que debaixo de formas engraadas esmaga os vcios da sociedade entre a qual vive, e sua
escola:
(...) dedicou-se representao da vida social do povo, combatendo s vezes com demasiada energia, todos osvcios desta vida e mostrando-lhe novas vias de aperfeioamento. Uma obra, que no tenha no seu fundo um fim srio,ou que no seja uma pintura fiel dos costumes populares, no pode hoje de maneira nenhuma, pretender a ser reparadapela sociedade russa.
O primeiro homem de talento que seguiu os traos de Gogol foi Dosstoyevsky, que se estreou brilhantementepor um romance em forma de cartas e intitulado Pobre Gente(1846). O autor esfora-se em demonstrar as adversidadesque pesam sobre os empregados esclarecidos do governo. esta mesma tendncia que aparece nos romances quepublicou, depois de um silncio de dez anos - nos Humilhados e Ultrajados, nas Memrias da Casa morta, no Atentado e oCastigo, obras todas cheias de situaes ao mesmo tempo fortes e verdadeiras.47
O elogio a Dostoivski precoce, j que o russo era ilustre desconhecido nos panoramas de
literatura russa existentes antes de Melchior de Vog e dos crticos dos anos 1880.48Conhecendo o
meio intelectual russo, Vakcel certamente sabia do significado, para os debates literrios do pas, do
momento dialtico de alterao e continuidade na prosa russa representado pela dupla Ggol e
Dostoivski.49Vale indicar, de passagem, que o silncio de dez anos a que faz meno, para dar
46VAKCEL, Plato Lvovitch.Quadros da literatura, das cincias e das artes na Rssia, 1868.47Idem, p. 64.48A Dostoivski havia apenas referncias esparsas. Segundo Charles Corbet h trechos de Bidnie Lidiem um volumefrancs de 1855 intitulado Le Decameron russe. Op, cit., p. 304.49Vakcel menciona tambm Pssemski e Schdrin, alm de Bielnski, Dobrolibov, Pssariev e Tchernichevski. Trata emdetalhe de Joo Turghnev, o primeiro novelista contemporneo da Rssia, do importante ensaio sobre Hamlet e DomQuixote e dasMemrias de um caador(ttulo muito mais correto, alis, do que o escolhido para as verses inglesa e francesaacima referidas. O mesmo acontece com a Casa morta, de Dostoivski, que uma traduo mais exata. Traduzindodiretamente da lngua natal, e sem o peso dos ttulos franceses, cuja influncia seria depois avassaladora, Vakcel chega aresultados interessantes), que ajudaram a revelar a condio dos servos. Tolsti aparece com as novelas e contosiniciais: o conde Leo Tolsti estreou-se por cenas que ele observou durante o cerco de Sevastopol, no qual ele mesmotomou parte; mais tarde descreveu a sua prpria mocidade numa obra agradvel, intitulada Infncia e Adolescncia(1857).VAKCEL, Plato L. op. cit., 1868, p. 67. O conde, naquela altura, estava terminando Guerra e paz, da a lacuna nainformao de Vakcel. O dado mais curioso do seu panorama a incluso em apndice de uma tradio da Ode a Deus, de
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conta da interrupo da atividade artstica de Dostoivski, um tremendo eufemismo para o perodo
siberiano ditado pela autocracia e enfrentado pelo autor.
Tanto Varnhagen quanto Araripe Jnior fizeram referncias Vakcel. O mapa da difuso do
romance russo seguiu, por vezes, vias inesperadas.
A tinta crtica corria com parcimnia, as prensas produziam tradues aqui e ali, e a Rssia
recebia esporadicamente a visita de literatos ilustres. Thophile Gautier, Balzac, Alexandre Dumas,
Lewis Carrol e outros passaram temporadas curtas no pas. Intelectuais importantes na histria do
pensamento do sculo XIX, como Joseph de Maistre, viveram l durante algum tempo. Quase todos,
fossem os que passavam em misses rpidas, fossem os que iam a passeio, numa variante excntrica
do Grand Tour, ou ainda os que residiam longos anos, quase nunca buscavam aprender o russo. 50
Esse fluxo de visitantes no significava interesse pelo idioma ou pela literatura. Os sofisticadosvisitantes no estabeleciam nexos entre as prprias atividades de escritor e o cenrio literrio russo.
Ingressavam na sociedade de So Petersburgo e Moscou, certamente conheciam escritores, mas no
canalizavam esses contatos e experincias para nenhum tipo de comentrio produtivo sobre a
literatura russa no quadro mais geral do romance europeu.51Os grandes prceres do romantismo
Hugo, Vigny, Lamartine tinham amplo interesse pela Rssia poltica, mas nenhum pela Rssia
literria.52 Victor Hugo que seria tantas vezes comparado pelos crticos brasileiros a Tolsti e a
Dostoivski passou dcadas invectivando o regime tzarista, sem que isso implicasse qualquer
esforo de se aprofundar no panorama literrio russo. Nesse mesmo perodo, alguns anos aps a
estrondosa repercusso do sufocamento da insurreio polonesa de 1830, Carlyle afirmava que a
Derjvin, feita pelo jovem literato madeirense Joo de Nbrega Soares. George Schanzer observa que a mesma ode foium best-sellerpotico do oitocentos, traduzida em francs, em 1799, por Jukvski, e depois ao japons, alemo, ingls,espanhol e francs, tudo isso antes de 1855. S em francs foram mais de quinze tradues. A verso em castelhano foipublicada em 1838, no La Religin, de Barcelona, o que a o torna, segundo o autor, a primeira traduo de obraautenticamente russa naquele idioma (a ressalva da autenticidade se deve ao fato de que, antes de 1838, h em peridicoseuropeus alguns contos pseudo-russos feitos por autores franceses). Cf. SCHANZER, Georges, op. cit. muitoprovvel que a traduo da ode constante do livro de Vakcel seja tambm uma das primeiras em portugus. Classificandoa pesquisa sobre relaes literrias entre Rssia e Portugal como praticamente inexistente, William Edgerton mencionaem nota de rodap um texto de P. N. Berkov sobre a primeira histria da literatura russa escrita em Portugal, mas nomenciona qual o seu ttulo. Cf. EDGERTON, William. Spanish and portuguese responses to Dostoevskij, 1981.50Carrol foi exceo, dentre os visitantes. Assim que chegou a Petersburgo, em 1867, arrumou um dicionrio e arriscoutradues. Seu interesse, no entanto, era pelo russo coloquial, no pela literatura. Seu dirio de viagem Rssia contmvrias passagens em que demonstra interesse pela cultura do pas, mas no procura inteirar-se do que ali acontecia nocenrio literrio. Cf. BREWSTER, Dorothy, op. cit., pp. 41-43. Walter Scott foi um pouco mais longe e procurouconhecer melhor o assunto. Cf. CROSS, Anthony, op. cit, 1983, p. 6.51Embora no tratassem de literatura, muitos escreveram obras com temas russos, ou incluram personagens russos emseus livros. Um bom exemplo do primeiro caso o romanceMaitre darmes, de Dumas, com toda a Sibria e o knut a quese tinha direito. Essas personagens em geral eram criados com propsito semelhante ao dos moicanos de FenimoreCooper, ou dos miserveis dos submundos de Eugne Sue. Alexandre Dumas, pai, fez tradues diletantes de Pchkin.52A formulao de CORBET, Charles, op. cit., p. 186.
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temas russos atingindo vendagens gargantuescas compem o anedotrio desse perodo. Em paralelo,
vingaram frutos mais duradouros.57
Concomitante aos afagos governamentais, as mesmas dcadas testemunharam, na Frana, o
nascimento de srias obras historiogrficas sobre a Rssia. Louis Leger, com Le monde slave, e mais
Arthur Rambaud (La Russie pique), Anatole Leroy-Beaulieu (Le empire des tzars), e Louis Courrire
(Histoire de la littrature contemporaine em Russie), produziram pesquisas de alto nvel, muito acima da
mdia anterior. importante destacar esse ponto, pois muitas vezes costuma-se maldizer a influncia
da mediao francesa no tocante difuso da literatura russa por boa parte do mundo. Esta teria
sido, de acordo com esse ponto de vista estereotipado, responsvel pelo que houve de fragilidade no
contato com os russos. Ora, isso certamente vlido para muitas das tradues realizadas, mas
houve tambm, em igual medida, livros de eslavstica muito bem montados.
Os estudos de Leger, Rambaud, Leroy-Beaulieu e Courrire fazem parte do mesmo processo
de aproximao cultural da Frana com a Rssia na qual se insere O romance russo, de Melchior deVog, mas deste diferenciam-se por serem mais documentais e menos ensasticos. Tiveram, por
isso, repercusso significativa, porm mais discreta. O poder do visconde eslavista no residia na
erudio exaustiva, e sim na seleo de um conjunto de pontos polmicos a saber, o de que os
russos modificavam, para melhor, os pressupostos e o alcance do romance como gnero
contemporneo, e o faziam embasados no construto cultural da alma russa. Aqueles livros, embora
tivessem temas culturais a dirigi-los eram exemplos mais convictos do bom e velho mtodo crtico
de catalogao e sistematizao histrica e filolgica.58
Todo esse conjunto de dados, que somente frao mnima do que est registrado pela
bibliografia especializada, pode causar efeito cansativo no leitor. Mas ele importante para indicar
duas coisas: a grande onda de difuso da literatura russa a partir da dcada de 1880 no surgiu do
57Como a aproximao entre os dois pases foi se dando ao longo de duas dcadas, a fora do fator poltico na difusoda literatura no foi percebido em bloco da mesma maneira que ns, hoje, podemos perceber. N