DA PSIQUIATRIA AO COMUNISMO: A TRAJETÓRIA DA ALAGOANA NISE DA SILVEIRA NO RIO DE JANEIRO
Gracinéia Rodrigues Lima1 (autora)
Vanuza Souza Silva2 (orientadora)
INTRODUÇÃO
Nise da Silveira, médica alagoana, de forte personalidade, humanitária, rebelde e que
de forma revolucionária modificou os métodos psiquiátricos utilizados no Brasil durante o
século XX. Essas são algumas das referências utilizadas para se referir a essa grande mulher,
que ganhou renome internacional.
Explanar sobre a vida e trabalho de Nise da Silveira enquanto mulher, médica,
psiquiatra que se dedicou a terapia ocupacional é ao mesmo tempo fácil, por ser uma história
interessante, emocionante, revolucionária, humanitária e envolvente, como também, é difícil
analisar esse contexto tão diverso que vai da psiquiatria ao comunismo, e que traz para o
debate a situação de gênero da qual ela se inclui. Principalmente no que se refere ao início do
século XX, onde as mulheres eram preparadas para o matrimônio, para o lar e a maternidade.
O espaço do trabalho, da faculdade, das profissões e da política era totalmente voltado para o
universo masculino. Perceber a força de uma mulher em insistir em seus objetivos e não
desistir perante as dificuldades impostas é algo importante, principalmente quando é possível
trazer para dentro da história a participação e a contribuição feminina em diferentes contextos.
A história de Nise vai além da rebeldia, contempla a sensibilidade em se preocupar com o
próximo, esteja ele no ápice da loucura ou mesmo da lucidez. Nise revolucionou a psiquiatria,
modificando os métodos tradicionais utilizados nos tratamento aos portadores de transtornos
1 Graduando em História Licenciatura Plena - UFAL - Campus do Sertão; Bacharel em Serviço Social - UNOPAR;
Pós-Graduada em Gestão da Política de Assistência Social; Assistente Social na Secretaria de Trabalho, Habitação e Assistência Social no município de Água Branca – AL. 2 Docente na UFAL – Campus do Sertão. Doutora em História (UFPE), mestre em sociologia (UFCG), Licenciada
em História (UFCG) e bacharel em comunicação social (UEPB). Atua na área de História e gênero e história das mulheres, ensino de história, história, subjetividades e cultura
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mentais. Ela buscou interpretar as imagens do inconsciente dessas pessoas chamadas de
esquizofrênicas ou doentes mentais. Através da arte - enquanto terapia ocupacional - as
pessoas conseguiam transmitir um pouco das suas singularidades, do seu inconsciente. Estes
novos métodos iam de encontro com os métodos tradicionais, sendo alguns deles o choque
elétrico ou insulínico. Os novos métodos terapêuticos foram essenciais para se modificar a
visão tradicionalista de perceber o outro diante da considerada loucura.
Outro importante contexto em que Nise está incluída é o político, onde envolve as suas
ideias e pensamentos voltados para o comunismo. Essa sua ligação com esse sistema social
provocou a sua prisão, além do afastamento da profissão. O contato com diversas
personalidades como Laura Brandão, Otávio Brandão, Graciliano Ramos, entre outros,
envolve esse contexto, no auge da ditadura de 30, onde pessoas que tivessem algum tipo de
ligação com o comunismo eram exiladas, presas ou excluídas de determinados espaços. As
amizades feitas por ela a auxiliou na sua formação enquanto pessoa e profissional, já que
estava em volta de grandes pensadores da literatura, da política e da psiquiatria.
Pesquisar, conhecer e compreender a história de vida de Nise da Silveira é meu
objetivo enquanto aluna do último período de história – licenciatura da Universidade Federal
de Alagoas – Campus do Sertão. Esta pesquisa não só faz parte do meu Trabalho de
Conclusão do Curso, como também, do Projeto Ser/tão Alagoana do qual sou participante. No
nosso Estado – Alagoas – na maioria das vezes é dada prioridade aos estudos e pesquisas
sobre as grandes elites envolvidas com os engenhos de açúcar, com referências ao gênero
masculino. Embora Nise da Silveira tenha tido o merecido reconhecimento
internacionalmente, a sua história é pouco conhecida no seu próprio Estado, em especial no
sertão de Alagoas. Trazer a discussão sobre o contexto histórico dessa grande médica é
necessário e fundamental para que as pessoas conheçam não somente a força e contribuição
feminina, como também, a pessoa que saiu do Estado de Alagoas, que desafiou a sociedade, e
que com sua sensibilidade e humanismo conseguiu revolucionar os tratamentos psiquiátricos
no Brasil. No presente artigo será desenvolvida a trajetória dessa alagoana no Rio de Janeiro.
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DA PSIQUIATRIA AO COMUNISMO: A TRAJETÓRIA DA ALAGOANA NISE DA SILVEIRA NO RIO DE JANEIRO
Antes mesmo de adentrar na trajetória de Nise no Rio de Janeiro, se faz necessário e
importante conhecer um pouco sobre sua infância, adolescência e formação em medicina.
Nise da Silveira nasceu em Maceió – AL, em 15 de fevereiro de 1905. Filha de Maria
Lídia e Faustino Magalhães da Silveira. A mãe era pianista e o pai professor e jornalista.
Diante dos relatos feitos por Nise á Bernardo Horta em seus biografemas, ela considera que
sua formação enquanto pessoa se deu graças a seus pais. Filha única recebia além de carinho e
atenção, todos os cuidados e orientações por parte da sua família.
A família Magalhães da Silveira tinha grandes embates com grupos políticos de
Maceió, em destaque a família Malta. O pai e tio de Nise da Silveira fundaram um jornal em
Maceió, com o propósito de atingir seus opositores políticos através de matérias que
criticavam o governo Malta. O conflito existente entre as referidas famílias ocasionou
diversas mortes. Nise, mesmo pequena, conviveu em meio ás brigas políticas. Mas, ela teve
também contato com um ambiente construtivo, onde a arte foi grande influenciadora na sua
construção pessoal, ouvindo as melodias musicais tocadas por sua mãe no piano, e os poemas
de Castro Alves citados pelo seu avô, além do aprendizado que a mesma obteve com o seu
pai, jornalista e professor. A família de Nise tinha forte ligação com os principais grupos
intelectuais e políticos de Alagoas.
Bernardo Horta ao desenvolver os biografemas em “Nise arqueóloga dos mares”,
apresenta relatos da própria Nise, que descrevia momentos da sua vida, da sua família e da
sua formação pessoal. Ao fazer referência ao governo alagoano, a mesma lembra-se de
Euclídes Malta, um ditador que juntamente com a família impedia a realização de eleições em
Maceió, somente os Maltas governavam. Tal governo caiu com a ajuda da família Magalhães
da Silveira, onde Clodoaldo da Fonseca – pertencente à família de Deodoro da Fonseca que
foi Presidente da República – se torna governador do Estado.
Na infância Nise desenvolveu forte ligação e apreço pelos animais, como não tinha
com que brincar, realizava tais atividades com os bichos, pelos quais aprendeu a ter carinho e
cuidado. Mais tarde, essa ligação com os animais não se tornaria apenas uma forte relação de
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amizade, Nise desenvolveria o trabalho com os animais, tendo estes a função de co-
terapeutas.
Antes de ingressar no curso de medicina, Nise tentou aprender a tocar piano como a
sua mãe desejava. Mas, logo percebeu que não tinha o talento para a música, o que se tornou
uma de suas grandes frustrações. Esta jovem alagoana, que recebeu como apelido Caralâmpia,
o qual aparece até mesmo na obra de Graciliano Ramos, era determinada e não se deixava
abater pelas dificuldades, mas sentia grande tristeza quando não conseguia desenvolver uma
determinada atividade.
Nise prestou vestibular juntamente com seus primos, na Faculdade de Medicina da
Bahia, com apenas 15 anos de idade. Foi aprovada no curso de Medicina, algo que a deixou
muito feliz. Embora Nise não considerasse ter grande afinidade para com a profissão, a
mesma não desistiu do referido curso. Pela pouca idade que possuía para cursar medicina, foi
necessária a realização de outro documento alterando a data de nascimento, deixando Nise um
ano mais velha, já que a Faculdade exigia a idade mínima de 16 anos.
Ainda adolescente, ao frequentar a biblioteca do seu pai, Nise conheceu obras do
fisósofo Baruch Spinoza, e ao se encantar por tal fisólofo e suas obras, ela buscou entrar em
contato com o mesmo, onde mais tarde Nise escreveria um livro intitulado “Cartas a
Spinoza”.
Em março de 1921 Nise dá início ao curso de medicina na cidade de Salvador,
juntamente com seus primos. Um deles, Mário Magalhães se torna - no decorrer dos anos -
seu companheiro, em um casamento que durou cerca de 60 anos, até a morte de Mário. Na
Faculdade a jovem estudante enfrentou grandes dificuldades, o primeiro era o fato de ser a
única mulher a estudar medicina naquela instituição, como ela mesma descreve em uma
citação feita por Bernardo Horta:
“Como vocês sabem, eu era a única aluna mulher naquela faculdade onde só estudavam homens... Na foto da minha formatura, pode-se ver: 157 rapazes e uma moça – eu. Guardo ainda o retrato da turma, onde apareço sozinha no meio de todos eles. Ás vezes, me perguntam se os rapazes me incomodavam. Não... Na Faculdade de Medicina nunca fui assediada pelos alunos. Até porque eu era muito brava. Não exatamente brava... Era séria, sobretudo uma lutadora.” (HORTA, 2009, p.133)
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A partir deste depoimento da própria Nise, percebemos que ela não se deixava
intimidar por ser única mulher a estudar numa faculdade, cercada por rapazes. Embora, no
período o patriarcalismo era determinante na condução das famílias. As mulheres eram
geralmente preparadas para o lar, Nise rompeu com esse tradicionalismo, de início, se torna a
primeira mulher alagoana a se tornar médica. Além de ser a única estudante do curso de
medicina do sexo feminino, era também a única mulher a residir num pensionato. Fato este
que também não a deixava intimidada. Conforme depoimento de Nise: “O convívio com os
professores e colegas não me intimidava... O que mais incomodava era o fato de não haver
banheiro feminino na faculdade. Mas você sabe... Naquela época, mulher era tida como anjo -
não mijava... Tiveram de providenciar um banheiro pra mim.” (HORTA, 2009, p. 132).
Em certo momento Nise ainda tentou largar a faculdade, mas no decorrer de sua
insistência em avisar ao pai a sua decisão e o fato de não conseguir, fez com que a mesma
repensasse nessa escolha, voltando atrás na decisão e resolvendo por concluir o curso. Nise
antes mesmo de conhecer o trabalho de Carl Gustav Jung e a psicologia analítica, já se
orientava com base em sentimentos, sensações e principalmente nas suas intuições, foi essas
sensações que a fizeram não desistir do curso. No decorrer das leituras percebe-se que as
escolhas feitas por Nise ocorreram diante das circunstâncias, e não de um planejamento. As
coisas aconteciam de acordo com a sincronicidade. Nise se formou em 1926, na turma de 157
alunos, era a única mulher, defendeu a tese “Ensaio sobre a criminalidade da mulher no
Brasil”.
(Nise da Silveira na turma de 157 alunos da Faculdade de Medicina da Bahia)
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Logo após sua formatura Nise retorna para Maceió. Em 1927 sua vida é marcada por
algo que provocou grande trauma pra ela e Dona Lídia, a morte do seu pai, onde a causa foi
um provável infarto fulminante. Foi então nesse momento que Nise resolveu se mudar para o
Rio de Janeiro. Sem a presença do pai, e com dificuldade em conseguir trabalho, pelo fato de
se uma médica mulher, ela resolve então buscar oportunidades em outro Estado.
Ao chegar ao Rio de Janeiro Nise foi morar no bairro de Santa Tereza, Rua do
Curvelo, onde conheceu Manuel Bandeira. O poeta residia na casa em frente à pensão em que
Nise morou por uns tempos. Manuel Bandeira na época já se encontrava doente de
tuberculose, o mesmo vivia de forma discreta e reservada, embora ele fosse uma das
principais figuras do movimento modernista naquele período. Enquanto Nise, ainda
desconhecida, lutava para sobreviver na referida cidade. Nise, por influência de amigos feitos
na nova capital e também de conterrâneos, passou a frequentar círculos literários e reuniões
políticas. No período o Brasil passava por grandes transformações, depois que a Velha
República havia acabado, surgiu movimentos com ideários modernistas, que provocariam
transformações tanto para a arte, como para os intelectuais. Grandes personalidades se
destacavam a partir de 1929, como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Diante desse contexto, Nise conviveu com
escritores, intelectuais e artistas da época, como Di Cavalcante e Raquel de Queiroz. E é
nestes círculos de conversa que ela dá início as suas ideias marxistas.
Naquele bairro de Santa Tereza, entre as amizades feitas por Nise da Silveira, se
encontra um casal que ganhou a admiração e o carinho daquela jovem doutora. Ao saber que
naquele bairro morava uma família cuja origem era alagoana, Nise não se conteve e buscou
logo conhecer. Tratava-se do farmacêutico e pensador Otávio Brandão e sua esposa Laura,
além das três filhas do casal. A família residia em uma casa humilde e carente, o que mostrava
a simplicidade da família socialista e revolucionária. Dos encontros entre Nise e a família
Brandão surgia uma grande e bonita amizade. Otávio que havia se afiliado ao Partido
Comunista, apresentou algumas ideias de grandes pensadores, como Nietzsche e Tolstoi para
Nise, além de conversar sobre esses escritores, eram feitas discussões sobre o hinduísmo e
sobre Cristo. Nesse período em que o Brasil vivia entorno de sonhos de transformação, eram
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discutidas ideias para uma possível revolução no Brasil. Aumentavam-se as ações culturais e
políticas. E diante das discussões e ideias do Brasil se tornar socialista, é que Nise começa a
participar das Reuniões do Partido Comunista. No final da década de 20 Laura e Otávio foram
presos durante manifestações. Diante da atuação política que a família tinha, os mesmos
foram deportados pelo Governo de Getúlio Vargas para a Alemanha, mas logo se mudaram
para a União Soviética. Nise foi uma das poucas pessoas a ir se despedir dos Brandão no cais
do Rio de Janeiro.
O período de 1930 e 1940 foi marcado por tempos difíceis, com a perseguição contra
os revolucionários e adeptos das ideias comunistas, ocorreram muitas prisões, torturas e
mortes. Onde, até mesmo a jovem médica alagoana seria presa e logo forçada a viver em
situação de ostracismo.
No início de 1930, Nise da Silveira passou a frequentar a clínica de neurologia da
Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, realizando trabalho com o seu ex-professor
Antônio Austregésilo. De início, como estagiária não recebia nenhuma remuneração, tinha
como objetivo era aprender, com o então psiquiatra. Foi a partir deste trabalho que Nise teve
seus primeiros contatos com os loucos. A mesma pretendia realizar especialização em
neurologia, mas por indicação e apoio de Austregésilo que á inscreveu num concurso federal
para psiquiatras, e diante das circunstâncias e da necessidade de Nise em conseguir emprego,
a mesma realizou o concurso no qual foi aprovada.
Antes da realização do concurso Nise se mudou para o Hospício de Praia Vermelha,
com o objetivo de se preparar para a prova de psiquiatria. O Hospício ficava localizado no
Bairro da Urca. A mudança do Bairro de Santa Tereza, não influenciou para que Nise
esquecesse as amizades feitas ali. Continuou a frequentar o bairro e visitar os amigos.
Ao passar a conviver com aqueles que eram denominados loucos, Nise começou a
questionar as práticas e as próprias aulas de medicina e de psiquiatria. Percebia que a
realidade era bem diferente do que era estudado nos livros. Conforme o relato de Nise, “Eu
morei num hospício. Lá dentro... E a primeira experiência que eu tive, me levou a romper
completamente com a psiquiatria convencional.” (HORTA, 2009, p.153). Diante dos relatos
da Senhora das Imagens, os internados naquele hospício eram tratados e expostos de forma
fria, o que a deixava incomodada, além dos mesmos serem tratados como pessoas limitadas,
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incapazes de aprender ou de expressar os seus sentimentos e pensamentos inconscientes.
Como na maioria das vezes os esquizofrênicos eram tratados.
“Havia diferenças sensíveis entre os procedimentos dos psiquiatras que moravam no hospício e os dos que não moravam. Nos livros, lia-se que os esquizofrênicos não possuíam afetividade. Fiquei muito desconfiada... Morando no hospital, compreendi que não havia nada disso. Eu vi e senti que eles possuíam sensibilidades – o problema era como vir à tona.” (HORTA, 2009, p. 155)
O referido depoimento de Nise está relacionado a uma das internas, de nome Luiza. A
mesma foi se tornando amiga de Nise, ao ponto em que, passou a levar café da manhã pra ela
no quarto. Diante das opiniões dos médicos e psiquiatras que a consideravam ‘uma completa
idiota, imprestável’, a interna demonstrava afeto e carinho através das suas atitudes. Tanto é
que, a própria Nise relata que quando foi presa em março de 1936, por conta da denuncia feita
por uma enfermeira do Hospício, logo que Luiza soube do acontecido deu uma grande surra
na referida enfermeira. Percebe-se daí que, Nise diferentemente dos outros médicos e
psiquiatras demonstrava a sua sensibilidade em enxergar os internos para além da
classificação de esquizofrênico ou louco.
Como foi relatado, em 26 de março de 1936 Nise foi presa pela ditadura de Getúlio
Vargas, sendo acusada de subversão. A denúncia teria partido de uma enfermeira – já
mencionada anteriormente -, onde foram mostrados os livros que Nise possuía sobre o
Marxismo. A médica passou um ano e quatro meses presa na Sala quatro – que foi a primeira
prisão política feminina no Brasil – na Casa de Detenção Frei Caneca. Entre as presas que
estavam nesse espaço Nise se encontrava Olga Benário Prestes, a mesma estava grávida, e
logo mais seria enviada para Alemanha Nazista e morta em um campo de concentração. Foi
na prisão que ela também conheceu seu conterrâneo Graciliano Ramos, e viu pessoalmente as
marcas psicológicas e físicas que a amiga Elisa Berger adquiriu através das torturas. Quando
ficou em liberdade, o medo de ser presa novamente fez com que Nise se ausentasse do Rio de
Janeiro por uns tempos. Foi para o Norte e Nordeste, acompanhando seu marido Mário
Magalhães. De forma discreta, ela usou esse período de sete anos de ostracismo para se
aprofundar nas leituras e nos estudos, em especial aos trabalhos de Spinoza. Conforme citação
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abaixo, logo após esse período ela retorna a profissão, passando a trabalhar no Hospital Pedro
II:
“Em 17 de abril de 1944 foi reintegrada ao serviço público, sendo lotada no Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro. Nise sentia-se inapta para exercer a tarefa de psiquiatra, pois, era ferozmente contra os choques elétrico, cardiazólico e insulínico, as camisas de força, o isolamento, a psicocirurgia, e outros métodos da época que considerava extremamente brutais e recordavam-lhe as torturas do Estado Novo aplicada aos dissidentes políticos, e que ela conhecia tão bem.” (http://www.museudapsiquiatria.org.br/ , acessado em 20/04/2014)
Partindo da citação a cima, podemos analisar o retorno de Nise as atividades no
Hospital, e nessa volta ela se depara com as novidades nos métodos de tratamento usados na
psiquiatria, com os quais a médica não concordava:
Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Quando o outro paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse: - Aperte o botão. Eu respondi:- Não aperto! Aí começou a rebelde. (Gullar, apud Cruz Júnior, 2009, p.14)
Ao se recusar a realizar os métodos de tratamentos utilizados pelos médicos da época,
Nise da Silveira é indicada a trabalhar num setor considerado subalterno diante das áreas de
atuação da profissão. Mesmo assim ela aceitou o desafio de atuar na Terapia Ocupacional,
principalmente pelo fato de não concordar e nem aceitar métodos tão violentos de tratamentos
para com os internos. As oficinas propostas por Nise a serem realizadas, fariam com se
originassem a Seção de Terapia Ocupacional. Onde os indivíduos aprendiam e praticavam
diversas atividades, se expressavam e mostravam suas criatividades. O propósito de Nise não
era utilizar tais atividades como passatempo, mas sim como um método terapêutico que
auxiliaria no tratamento daquelas pessoas. Os ateliês de pintura e de modelagem ganharam o
principal destaque neste contexto da criatividade. O material confeccionado por cada
indivíduo se tornava uma fonte de estudo para compreender um pouco da mente e do
inconsciente de cada um. Essa prática trouxe um importante retorno para a psiquiatria da
época. Pois mostrava que determinados tratamentos tradicionais e violentos eram
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desnecessário, em vista das possibilidades tão simples que a pintura e a modelagem
proporcionavam, além dos bons resultados. Através das artes feitas pelos internos, Nise
começou a provar - com base em algumas teorias e nas práticas do dia-a-dia - que aqueles
indivíduos sentiam, pensavam, imaginavam e podiam se expressar e demonstrar um pouco do
que se passava em suas mentes. Com as diversas pinturas criadas pelos internos, Nise logo
teve a ideia de criar um espaço pra expor as obras e as pinturas, criando assim um espaço para
exposição dos objetos produzidos, onde a Drª Nise contou com a ajuda do jovem artista Almir
Mavignier. Os trabalhos realizados nos ateliês foram implantados numa pequena sala no
próprio Hospital, mas logo que se percebeu a quantidade e qualidade das obras criadas
ganhou um espaço maior, onde recebia um número maior de visitantes que se tornavam
grandes admiradores daquelas artes e dos artistas, que antes eram chamados de loucos e
incapazes. Estes acontecimentos logo atraíram a atenção de artistas e críticos relacionados
com o mundo das artes, entre eles estava Leon Degand, primeiro diretor do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, havia sido convidado por Mário Pedrosa para conhecer as Imagens
produzidas pelos Internos da Seção de Terapia Ocupacional. A visita dele ocasionou a
exposição das obras de nove artistas do Engenho de Dentro no Museu de Arte Moderna. Mais
tarde, várias obras confeccionadas nos ateliês da Seção de Terapia Ocupacional foram levadas
para exposição no I Congresso Internacional de Psiquiatria, realizado em París.
Em 1952 é fundado o Museu das Imagens do Inconsciente por Nise da Silveira, espaço
reservado para a exposição das obras e trabalhos dos artistas do Engenho de Dentro. Quatro
anos mais tarde Nise cria a Casa das Palmeiras, que foi a primeira clínica em regime de
externato no Brasil, contanto com a ajuda de outras pessoas que auxiliaram para que esse
novo espaço ganhasse visibilidade e reconhecimento como utilidade pública pela lei 176 de
16 de outubro de 1963. A Casa das Palmeiras funciona até os dias atuais, e foi com base nesta
Instituição que surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), existentes em todo o
país com o objetivo de substituir o modelo de asilo psiquiátrico ou manicômios.
Já no ano de 1955 Nise forma um grupo de estudos C. G. Jung, com o propósito de
estudar e discutir sobre a psicologia analítica que era defendida pelo referido psiquiatra, assim
como analisar as práticas na terapia ocupacional e na psiquiatria como forma de melhorar os
tratamentos e a forma de tratamento para com as pessoas que possuem esquizofrenia. Foi com
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base na psicologia analítica de Carl Gustav Jung que Nise se orientou na construção do seu
método de tratamento. Além de seguidora desse psiquiatra, Nise teve a oportunidade de
conhecê-lo pessoalmente, apresentar os trabalhos realizados pelos internos do Engenho de
Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro, como também se tornou amiga do referido suíço. Alguns
dos assuntos referidos nos estudos de Jung estão relacionados ao Arquétipo, mito, símbolo,
sombra, inconsciente coletivo, entre outros. Nise aprendeu com Jung, na oportunidade que
teve em estudar com ele, a desenvolver interpretações e compreensão a cerca da imagem
desenvolvida na psique humana e as suas relações externas, com base nos trabalhos realizados
por indivíduos portadores de esquizofrenia. Desse modo, a influência da psicologia analítica
de Jung foi de fundamental importância para o trabalho desenvolvido por Nise, em prol de um
tratamento mais humano para as pessoas.
A criação do Museu das Imagens do Inconsciente surgiu de forma espontânea:
As modestas origens do Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado numa pequena sala do hospício de Engenho de Dentro, em 20 de maio de 1952, não deixavam antever a trajetória de crescimento contínuo que ele passaria a ter desde então. Quatro anos mais tarde o Museu seria transferido para um espaço mais amplo, onde também foram reunidas várias oficinas da Terapêutica Ocupacional. A partir de então, Museu e oficinas não mais se separariam. (Cruz Júnio, 2009, p. 16)
Como já foi mencionado, e considerando a citação o Museu não somente deu certo,
como também foi ampliado para poder receber tanto as oficinas de Terapia Ocupacional,
como também os participantes dessas oficinas, e assim expor cada obra plástica. Sendo que o
objetivo do Museu não era apenas o de reunir coleções de obras de arte, mas também ser um
centro de estudos tanto para a Drª Nise, como também para seus colaboradores que tinham o
interesse de conhecer melhor e compreender o universo da mente de um esquizofrênico.
Pesquisas que após o encontro de Nise com Jung, teve um maior apoio do mesmo na busca
pelos estudos e compreensão da mente humana.
Buscando base e fundamento para a sua compreensão sobre a psiquiatria e sobre a
loucura, e o fato de Nise da Silveira estudar obras e pesquisas de Carl. G. Jung inspiro-me na
História da loucura de Michel Foucault para pensar a (dês)construção que faz nise sobre o
lugar do louco no século XX. Michel de Foucault em sua obra “História da Loucura na Idade
Clássica” contextualiza a forma como os indivíduos taxados pela sociedade como “loucos”
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são tratados. Ao refletir entorno da questão da loucura, Foucault possui uma visão diferente
da visão que as estruturas tradicionais mantinham. Considerando o estudo que o mesmo
realiza sobre as diferentes formas de compreensão sobre a loucura, com base no período que
parte do Renascimento até a modernidade. Analisa como se chegou a tal classificação de
loucura como doença mental. Para compreender melhor a questão da loucura e da construção
dos pensamentos Foucault tem como base os pensamentos de Friedrich Nietzsche. Foucault
enquanto pensador rompe com a razão filosófica que defende a verdade absoluta. Questiona a
subjetividade que se baseia na razão como característica fundamental na construção das
sociedades.
E é com base no discurso defendido por Foucault que, busco compreender como Nise
fundamenta o seu rompimento com a tradicional classificação de loucura. Defendendo os
indivíduos enquanto pessoas que possuem nas suas subjetividades um mundo próprio que
precisa ser compreendido, e não tratado com métodos violentos e desumanos.
Em 1975, Nise já tinha 70 anos de idade quando se deu a aposentadoria compulsória,
isso provocou grandes mudanças na sua vida. Primeiramente pelo fato de que Nise não queria
deixar o seu trabalho, no entanto era obrigada devido à aposentadoria. Em 1986 com o
falecimento do seu esposo Mário Magalhães, uma fratura na perna e a cadeira de rodas
modificaram a dinâmica das atividades realizadas pela doutora, impedindo a mesma de visitar
com maior frequência algumas das instituições fundadas pela mesma. No mesmo ano em que
foi aposentada contra sua própria vontade, foi realizado um evento em comemoração ao
Centenário de C. G. Jung no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, na ocasião foram
expostas algumas obras plásticas do Museu de Imagens do Inconsciente. Com as dificuldades
existentes Nise teve que modificar algumas das suas atividades, tempo esse em que ela se
dedicou as leituras e a escrita. Em 1987 dois importantes eventos divulgaram ainda mais o seu
trabalho, com a exposição de “Os inumeráveis estados do ser” e “Imagens do inconsciente”,
este último é uma trilogia cinematográfica feita por Leon Hirszman. Onde o reconhecimento
do seu trabalho crescia cada vez mais a nível internacional. Nise em seus relatos afirmava não
possuir domínio e nem interesse sobre as tecnologias do século XX, tinha acesso ao telefone,
mas outros maquinários como computador, fax, gravador, a mesma rejeitava, considerava
estes objetos como “um atentado contra a privacidade das pessoas” (Horta, 2009, p.52).
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Na década de 1970 Nise teve problemas na visão, o que quase lhe custou a cegueira.
Tal situação lhe causou grande sofrimento, pois isso poder impedir de realizar uma das coisas
que ela mais gostava de fazer, ler. A mesma precisou realizar uma cirurgia, se livrando assim
da cegueira. Foi nesse período difícil que Nise escreveu uma de suas maiores obras, o livro
“Imagens do Inconsciente”.
Pintura sem título, Emygdio de Barros 1968, Museu de Imagens do Inconsciente (http://oglobo.globo.com
acessado em 18/04/2014)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nise Faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 30 de outubro de 1999. Mas antes disso
acontecer, essa grande médica alagoana revolucionou o universo da psiquiatria buscando
novos métodos para o tratamento de pessoas com esquizofrenia. Utilizou a arte e os animais
enquanto co-terapeutas, e com seus conceitos de afeto catalisador e de emoção de lidar
conseguiu mudar a forma como as pessoas consideradas loucas, esquizofrênicas eram
tratadas.
Possuía como base de estudos a psicologia analítica de Carl Gustav Jung. Tinha como
características o humanismo e a sensibilidade para enxergar o outro para além dos rótulos de
loucura que eram dados. Enquanto mulher ela também revolucionou o espaço da
subjetividade feminina que vivia a sombra da atuação masculina. Primeira mulher alagoana a
se formar em medicina, única mulher na Faculdade de Medicina na Bahia. Rompeu com
questões políticas, criando laços e amizades com diversas personalidades durante período de
grandes conflitos no Brasil, em que a ditadura perseguia os ideários comunistas. Nise também
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rompeu com as tradições e alguns valores da época, ao morar com seu companheiro Mário
Magalhães não sendo casados formalmente, como eram realizados por muitas famílias no
período.
Este artigo de forma breve e resumida buscou apresentar e explanar sobre a história
dessa grande médica, revolucionária e humanitária Nise da Silveira. Embora, se faz necessário
abranger ainda mais o estudo e a pesquisa. Percebendo que a trajetória dela vai bem além do
que foi apresentado e compreendido.
Nise da Silveira (www.google.com.br acessado em 15/04/2014)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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da loucura aos desafios contemporâneos / Eurípedes Gomes da Cruz Junior, 2009. xiii,
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FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira
Coelho Netto. 1. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. 551 p. (Estudos, 61)
HORTA, Bernardo Carneiro. Nise: arqueóloga dos mares / Bernardo Carneiro Horta. –
2.ed., reimpr.. – Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. Il.
15
TORRE, Eduardo Henrique Guimarães. “Michel Foucault e a História da Loucura”: 50
anos transformando a história da psiquiatria. Eduardo Henrique Guimarães Torre, Paulo
Amarante. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, ISSN 1984-2147, Florianópolis, V.3, n.6,
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