DE UMA ORGANIZAÇÃO PATOLÓGICA À POSIÇÃO DEPRESSIVA: A Elaboração do Luto pelo Personagem Trevor no
filme “O Operário”
Alexandre Pereira de Mattos
P á g i n a | 1
1. Apresentação
Para Roger Money-Kyrle (1996), uma das maiores contribuições de Melanie
Klein para a Psicanálise, em termos de seus efeitos sobre teoria e prática, foi o
conceito de posição esquizoparanóide, seguida pela posição depressiva.
Por ser uma metáfora espacial, o conceito de posição nos permite entender
qual o papel das angústias e defesas nos processos psíquicos, que ora podem
caminhar para uma maior integração dos objetos (Posição Depressiva - PD), ora
regredir a estados persecutórios de maior desintegração (Posição
Esquizoparanóide - PEP).
Igualmente importante nesta conceituação é a ênfase dada ao seu caráter
dinâmico, que nos permite identificar, no sujeito, flutuações de uma posição à
outra, dependendo das angustias despertadas e das defesas por elas
empreendidas.
O desenvolvimento psíquico de um sujeito não se dá, portanto, por uma
cronologia linear, tampouco por uma superação de uma determinada posição. Um
sujeito, que pode ter alcançado uma maturidade psíquica e que consegue
estabelecer relações objetais totais, pode se desorganizar diante de uma angústia
persecutória intensa. De modo análogo, um sujeito, cujas relações objetais são
predominantemente cindidas, pode apresentar movimentos de integração
próprios da posição depressiva. Assim, nenhuma das posições prevalece em
qualquer grau de completude ou permanência (STEINER, 1991, p. 329).
No entanto, esta flutuação entre posições depende de uma flexibilidade
defensiva, cuja ausência pode tornar esta tarefa inviável. Por exemplo, se a
preocupação com a integração do ego for intensa (PEP) ou a preocupação com o
objeto for igualmente demasiada (PD), o sujeito poderá construir uma espécie de
organização defensiva (ou refúgio) como uma posição intermediária, que o
protegerá das angústias desencadeadas por ambas as posições. Trata-se, nos
P á g i n a | 2
termos de John Steiner (1991), de uma organização patológica que, quando
estabelecida, obstaculariza o caminho para uma maturidade psíquica.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que essa organização protege o
sujeito de angústias persecutórias ou depressivas, ao mesmo tempo o aprisiona
por produzir uma ilusão de equilíbrio por se sentir em uma zona de proteção.
Isto posto, este trabalho tem por objetivo demonstrar como esta
organização atua defensivamente para garantir este “equilíbrio” e como é possível
abandoná-la por meio do que John Steiner vai chamar de “reversão da identificação
projetiva”, condição sine qua non para a elaboração do luto.
Para atingir este objetivo, analisaremos a trajetória de Trevor, personagem
principal do filme “O Operário”. Nosso argumento é que esta zona intermediária,
com características de uma organização patológica, não se sustenta ao longo do
filme devido ao movimento de integração psíquica vivenciado pelo personagem.
Iniciaremos nossa exposição com as descrições das angústias e defesas das
posições esquizoparanóide e depressiva e a natureza da organização patológica
(quando e por que ela surge). Na segunda etapa, analisaremos o filme dividindo-o
em três partes como estratégia metodológica para atingir os objetivos propostos.
2. Posição Esquizoparanóide e Posição Depressiva
Nos três primeiros meses de vida, o bebê vive ansiedades de natureza
primitiva que ameaçam o ego imaturo e o levam à mobilização de defesas arcaicas.
Por não ter alcançado a maturidade necessária que garante a diferenciação entre
self e objeto, o bebê sente o mundo a partir das sensações físicas que o acometem.
Frio, fome e cólicas são percebidas pelo bebê como objetos maus que o atacam e o
ameaçam. Em contrapartida, calor, aconchego, alimentação e cuidados são
experienciados pelo bebê como objetos bons. Como a linha que divide mundo
externo e interno é incipiente, o bebê tende a conceber tais fenômenos dentro de
P á g i n a | 3
uma natureza eminentemente narcísica. Ou seja, o self é sempre o ponto de partida,
tanto como alvo de ataque como de amor.
Na medida em que o bebê sente que algo ruim lhe acontece (fome, frio, etc),
ele tende, na fantasia, a projetar aquilo que lhe faz mal para fora como forma de
salvaguardar o self de qualquer possibilidade de aniquilamento. Isto ocorre porque
o bebê é exposto ao impacto da realidade externa que tanto produz ansiedade,
quanto lhe dá a vida. Quando confrontado com o instinto de morte, ele o projeta
transformando-o em agressividade (SEGAL, 1975). Trata-se, portanto, de uma
dinâmica defensiva que põe em ação mecanismos como o splitting (divisão, cisão) e
projeção. Contudo, ao projetar para fora o que lhe é mau, este “fora” torna-se
perseguidor por conter tanto as características do objeto mau como partes do ego,
promovendo assim uma identificação com o objeto projetado (Identificação
projetiva1).
Os cuidados maternos são vividos pelo bebê como objetos bons, portanto,
introjetados para salvaguardar o mesmo ego que também é ameaçado. Podemos
perceber que os mecanismos de projeção e introjeção caminham juntos e tornam-
se possíveis por meio do processo de cisão. Ao cindir o objeto entre mau e bom, ele
dirige todo o seu amor para o objeto bom e todo o seu ódio contra o objeto mau.
Como conseqüência da projeção, a ansiedade predominante é paranóide e a
preocupação é com a sobrevivência do self. Desta forma, o pensar é concreto devido
à confusão entre self e objeto (STEINER, 1991, p. 330)
A posição depressiva representa um importante avanço no
desenvolvimento psíquico, na medida em que os objetos totais começam a ser
reconhecidos e impulsos ambivalentes direcionam-se para o objeto primário. Em
outras palavras, próximo ao sexto mês de vida, o bebê começa a perceber que o
objeto alvo de ataques fora o mesmo de amor. O amor e ódio direcionados ao
mesmo objeto mobilizam ansiedades e defesas próprias desta posição: culpa por
medo da perda do objeto e necessidade de reparação deste mesmo objeto.
1 Identificação projetiva constitui a visão mais tradicional da projeção, em que partes do
self é atribuída ao objeto (HINSHELWOOD, 1992). No entanto, a distinção entre projeção e identificação projetiva não é uma tarefa sem controvérsias. A distinção talvez mais comumente aceita é que na identificação projetiva partes do self são projetadas, e não somente os objetos (algo que ocorreria somente na projeção.
P á g i n a | 4
Experiências de luto podem ser mais plenamente vivenciadas e o pensar não
precisa ser mais concreto (há um desenvolvimento da função simbólica). O
deslocamento das equações simbólicas para a representação simbólica se dá na
posição depressiva e também por meio da conscientização crescente da diferença
existente entre os mundos interno e externo2. É um processo de abandonar os
objetos externos e, portanto, fazer o trabalho de luto deles (SEGAL, 1972/1998).
Em suma, a distinção entre as ansiedades que atuam em cada posição pode
ser útil na compreensão das defesas empreendidas. No entanto, como nos diz
Melanie Klein,
...a diferença entre duas formas principais de ansiedade de maneira alguma se pode considerar nítida3. Tendo em mente essa limitação, creio que uma diferenciação entre as duas formas de ansiedade é valiosa dos pontos-de-vista teórico e prático [....]
Neste aspecto, ela conclui seu argumento afirmando que
...A ansiedade persecutória se relaciona predominantemente com o aniquilamento do ego; a ansiedade depressiva está sobretudo relacionada com o dano causado aos objetos amados, internos e externos, pelos impulsos destrutivos do sujeito. A ansiedade depressiva tem múltiplos conteúdos, tais como: o bom objeto é danificado, está sofrendo, encontra-se num estado de deterioração; converte-se num mau objeto; é aniquilado, está perdido e nunca mais aparecerá. Concluí também que a ansiedade depressiva está intimamente vinculada à culpa e à tendência para fazer reparações (KLEIN, 1948/1982, p. 302)
Entretanto, a intensidade com que essas defesas podem atuar em ambas as
posições dá um colorido diferente a cada uma delas. Se na posição
esquizoparanóide, a angústia de aniquilamento for intensa e identificação projetiva
maciça, ocorre processos de despersonalização e de extrema ansiedade. Se na
posição depressiva a culpa for maior que a possibilidade de reparação, o bebê pode
fazer uso de negação maníaca como forma de se proteger da culpa persecutória de
ter destruído o objeto.
Estes aspectos mais patológicos dependem de como se deu o
desenvolvimento emocional do bebê no que tange à introjeção de objetos bons, da
qualidade da função materna e do quantun de pulsão destrutiva é constitutivo no
bebê.
2 Convém salientar que o ego apresenta, desde o nascimento, uma tendência à integração e
que os processos de simbolização podem se fazer presentes mesmo na Posição Esquizoparanóide. 3 O grifo é nosso.
P á g i n a | 5
Contudo, um dos aspectos de suma importância para entendermos o
funcionamento mental do sujeito é atentar para o fato de que ansiedades e defesas
próprias de uma determinada posição podem estar presentes em outra posição.
Embora no primeiro estágio predominem os impulsos destrutivos e a ansiedade persecutória, a ansiedade depressiva e a culpa já desempenham um certo papel nas primitivas relações objetais da criança, isto é, na sua relação inicial com o seio materno (KLEIN, 1948/1982, p. 302)
Podemos compreender que uma tendência à integração se faz presente nos
primórdios da vida mental do sujeito. Porém, a culpa, como característica
fundamental da posição depressiva, apresenta contornos próprios quando
presentes na posição esquizoparanóide. Vejamos:
De início, na posição esquizoparanóide, a culpa é uma perseguição retaliatória, de tipo não mitigado. Quando a posição depressiva entre em existência e os objetos se tornam “objetos totais”, a violência da perseguição é aliviada pela ajuda e pela preocupação provindas dos aspectos “bons” do objeto. Isto conduz ao medo pela sobrevivência do objeto “bom”, mas parte essencial dele é remorso e culpa. A princípio, esta culpa é persecutória e punitiva, tirando o seu colorido do estado paranóide precedente de perseguição. Entretanto, pela acumulação de experiências boas com o objeto total e sua tendência a sobreviver, a culpa vem a ser modificada pelo impulso a reparar o objeto bom e contribuir para a sua sobrevivência. Neste ponto, a culpa fica permeada por desejos reparadores e contribui para a força do esforço construtivo e criativo que daquela deriva (HINSHELWOOD, 1992, p. 283)
A constatação deste dinamismo entre posições trouxe outros desafios
teóricos: o que ocorre quando a oscilação entre posições é dificultada quando a
angústia predominante de cada posição for demasiada intensa? Quando a angustia
persecutória for de aniquilamento e a culpa persecutória for demasiadamente
intensa, qual a saída para este sujeito?
...É nas transições que ocorrem tanto no interior da posição esquizoparanóide como na posição depressiva que o indivíduo parece estar mais vulnerável à influência de uma organização patológica (STEINER, 1991, p. 331).
Podemos dizer que este “encurralamento” favorece a emergência de uma
organização defensiva como forma de dar conta desse impasse. Para John Steiner,
esta organização dita patológica funciona como uma defesa, não apenas contra a
fragmentação e a confusão, mas também contra a dor mental e a ansiedade da
posição depressiva (STEINER, 1991).
P á g i n a | 6
3. Organização patológica
Uma organização patológica nada mais é do que uma defesa, um refúgio,
uma proteção ilusória frente à impossibilidade de vivenciar angustias despertadas
tanto na posição esquizoparanóide quanto na posição depressiva.
Segundo Steiner, uma organização patológica é constituída por defesas de
natureza narcísica, cuja manifestação pode assumir contornos obsessivos,
maníacos, perversos ou psicóticos
A natureza das defesas que se organizam em uma organização patológica varia em diferentes pacientes e pode ser, por exemplo, predominantemente obsessiva, maníaca, perversa ou mesmo psicótica. A variedade de formas, entretanto, encobre elementos comuns que refletem a organização subjacente das defesas. (STEINER, 1991, p. 332).
Esses elementos em comum dizem respeito à estabilidade e resistência a
mudança. Isto ocorre porque esta organização é constituída, como já citado, de
defesas de natureza basicamente narcísica, pois:
1) Refletem a preponderância de identificação projetiva que cria objetos
que são controlados por parte dos selves e projetados dentro deles;
2) Os objetos cindidos são projetados para dentro de um grupo organizado
por meios complexos e perversos (por oferecer uma gratificação sadomasoquista)
(STEINER, 1991).
P á g i n a | 7
Uma das funções principais das organizações patológicas é a de conter e
neutralizar impulsos primitivos destrutivos e, para lidar com eles, o paciente
seleciona objetos destrutivos nos quais possa projetar as partes destrutivas do self.
Assim, estas organizações são tanto uma manifestação da destrutividade quanto
uma defesa contra ela.
Veremos como esta organização atua na vida de Trevor e os elementos que
contribuem para o seu enfraquecimento.
4. A trajetória de Trevor: de uma organização patológica à
elaboração na Posição Depressiva
Trevor, personagem central neste drama, é um homem solitário. Sua vida
resume-se em trabalhar, ir para casa, satisfazer suas necessidades sexuais com a
prostituta Stevie e tomar um café na lanchonete do aeroporto.
Sua casa e seu corpo apresentam contornos sombrios. O aspecto cadavérico
de seu corpo se assemelha à escuridão e ausência de vitalidade de sua residência,
caracterizada no filme pelo uso de tons acromáticos e pouca iluminação. Sua rotina
é tão enfadonha quanto suas aspirações.
Trevor se recolhe a um estado, como menciona John Steiner na análise de
um de seus casos clínicos, em que ele não é nem plenamente vivo e nem
completamente morto (STEINER, 1991, p. 340).
Seus interesses afetivos estão circunscritos ao relacionamento com Stevie e
com a garçonete do aeroporto chamada Maria. Esta ultima lhe desperta um
interesse peculiar: ser servido por esta mulher acolhedora e maternal. É a mulher
que o alimenta e o questiona sobre a falta de sentido em se deslocar para o
aeroporto quando ele poderia comer a mesma torta e tomar o mesmo café em
outro local mais próximo. No entanto, isto não é suficiente para dissuadi-lo de
deixar de visitá-la todas as noites.
P á g i n a | 8
No trabalho ele exerce a função de operário, mais precisamente torneiro
mecânico. Visto pelos colegas como estranho, ele se relaciona afetivamente com
eles de maneira econômica. Às vezes quieto e às vezes questionador, acaba
despertando antipatia por parte da chefia. Esta, por sua vez, o considera como
alguém que possa estar doente em razão do seu emagrecimento.
No que diz respeito à sua insônia, Trevor confidencia à Stevie que não
dormia há um ano.
Em casa, realiza rituais de limpeza com água sanitária sem motivo objetivo
aparente. Com memória prejudicada em razão de seu estado mental e físico,
recorre aos post-it´s amarelos para lembrá-lo de alguma tarefa a realizar (como
pagar as contas de casa, por exemplo).
Nesta primeira parte do filme, a vida de Trevor segue uma rotina
aparentemente normal, a despeito de suas idiossincrasias. No entanto, se
observarmos seu isolamento social e seus sintomas obsessivos, podemos
conjecturar que ele está vivenciando angustias do tipo paranóide e depressiva.
Paranóide pelo isolamento, pelo fato de sua insônia não o permitir integrar
elementos de um mundo psíquico perturbado. Depressiva, pelos sintomas
obsessivos cuja função é purgar uma culpa inconsciente. Seu corpo, como
representante do self, é identificado com um objeto atacado, o que explicaria uma
suposta autopunição contínua: o corpo cadavérico. Segundo Paula Heimann, os
estados paranóides apresentam aspectos característicos. Vejamos:
As associações do paciente concentram-se em suas experiências persecutórias e na pessoa (ou pessoas) a quem ele considera responsável. Descreve em grande pormenor como, em conseqüência das ações hostis dessa pessoa, ele é lançado num estado de ansiedade, sofrimento, incapacidade mental e física (HEIMANN, 1980, p. 256).
Nos estados paranóides [...] o delírio de perseguição é mantido por longo período e atuado repetidamente. O perseguidor é, repetida e frequentemente, introjetado; a introjeção é seguida pela divisão e pela projeção. Assim, são impedidas as funções associativa e integradora do ego e também sua capacidade para estabelecer relações de objeto de natureza realista e gratificante (HEIMANN, 1980, p. 276).
P á g i n a | 9
Certamente Trevor está imerso nesse estado de sofrimento mental e físico
tal qual descrito por Heimann. Mas não é possível observar, na primeira parte do
filme, características alucinatórias ou delirantes de cunho persecutório. Em outras
palavras, os perseguidores projetados ainda não afloraram à consciência (no
sentido fenomenológico do termo). Tampouco é possível ainda aferir que ele negue
seus impulsos cruéis pela projeção destes no objeto, cujo efeito seria considerar-se
vítima da perseguição por esse mesmo objeto (HEIMANN, 1980, p. 270).
Isto ocorre porque os mecanismos de cisão tendem a criar múltiplos objetos
que são então reunidos dentro de uma estrutura complexa e organizada. Estes
objetos são controlados por parte dos selves projetados para dentro deles e são
mantidos afastados como estratégia defensiva contra o aniquilamento ou a
angustia da perda do objeto. É justamente entre as posições esquizoparanóide e
depressiva que o sujeito torna-se mais vulnerável à emergência de uma
organização patológica. Uma vez instalada, esta organização pode se manter unida,
no caso de Trevor, por mecanismos obsessivos nos quais o controle é soberano
(STEINER, 1991, p. 332).
Portanto, cabe à organização a tarefa de manter a cisão preservada,
impedindo assim qualquer movimento de integração como forma de se proteger
de angústias depressivas. Segundo John Steiner, caso esse equilíbrio ameaçar
desfazer-se, o indivíduo pode tentar preservá-lo voltando-se para a proteção do
objeto bom, e das partes boas do self, contra o objeto mau e as partes más do self
(STEINER, 1997, p. 23). Com efeito, este “aparente” equilíbrio ocorre devido à
atuação desta organização patológica.
Porém, na segunda parte do filme, esta aparente estabilidade é ameaçada
pelo surgimento de três elementos-chave: uma série de post-it´s colocados em sua
geladeira, a aproximação com seu colega de trabalho chamado Ivan e o seu
relacionamento com a garçonete Maria.
P á g i n a | 10
Os post-it´s, Ivan e Maria
Certa noite, ao se dar conta de que seu alvejante estava acabando, Trevor
recorre ao post-it para lembrá-lo de comprá-lo no dia seguinte.
Ao se dirigir à geladeira onde fixaria o lembrete, notou que já
havia um lá, mostrando o “jogo da forca”.
Tanto Trevor quanto o expectador são lançados num jogo
enigmático. Quem teria colocado este post-it em sua geladeira? E por que o “jogo
da forca”?
Materializa-se assim, pela primeira vez, a presença de um perseguidor
externo. Trevor envereda-se numa busca para descobrir o verdadeiro autor do
lembrete ao mesmo tempo em que surge seu novo colega de trabalho: Ivan.
Em um dos seus intervalos no trabalho, Ivan, um homem de aparência
estranha, aborda Trevor para puxar conversa, alegando estar substituindo outro
colega que teria se afastado temporariamente. Seu tom evasivo e enigmático
desperta suspeitas à Trevor.
Num outro dia, ao ajudar seu colega a consertar uma máquina, Trevor se
distrai com Ivan, que naquele momento lhe fazia um sinal cujo significado era
“cortar seu pescoço”. Nesta distração, a máquina é acionada e seu colega tem
vários dedos decepados. Quando posteriormente é inquirido sobre o acidente,
Trevor menciona Ivan, levando todos a afirmarem que não existia ninguém na
fábrica com este nome e que seu suposto substituto nunca havia se afastado.
Após este acidente, Trevor passa a encontrar sucessivos post-it´s em sua
geladeira, parcialmente preenchidos, como se o jogo da forca já tivesse iniciado.
P á g i n a | 11
Trevor então começa a suspeitar de todos os colegas e principalmente da
vítima do acidente como possíveis autores dos post-it´s. O que Trevor e o
expectador ainda não percebem é que tanto Ivan como os post-it´s cumpriam a
função de denunciar a origem da culpa de Trevor.
Mas que evento traumático fora demasiadamente forte para desencadear a
emergência desta organização patológica? A resposta a esta pergunta começa a
tomar corpo na medida em que Trevor se permite viver as angústias persecutórias
neste momento em sua vida. E esta empreitada só é levada a cabo porque a cisão
ora mantida pela organização patológica começa a se desfacelar na medida em que
Trevor começa a vivenciar estas angústias em toda sua magnitude.
Maria desempenha um papel importante nesta trajetória de Trevor. Sua
aproximação com ela e com seu filho desencadeia uma série de Deja-vus. Numa
comemoração do dia das mães, Trevor vai com Maria e seu filho ao parque de
diversões. As imagens que passam diante dele se assemelham a elementos
manifestos dos sonhos. Resquícios de experiências que aparecem simbolizadas de
outra forma, recontextualizadas no momento presente. Os Deja-vus aparecem
quando Trevor tira uma foto de Maria com seu filho (cena que ele já havia visto
mas não sabia quando), os dizeres “Rota 666” na frente de um dos brinquedos e a
crise convulsiva do menino que ocorre quando Trevor e ele estão num brinquedo
de terror.
Os Deja-vus sinalizam também um movimento de maior integração psíquica.
Em termos teóricos, Trevor começa a perceber que aquilo não se tratava de uma
equação simbólica (concretude do objeto), mas sim uma simbolização, uma
representação de algo perdido no tempo e espaço. Para Hanna Segal (1972/1998;
1954/1991), a capacidade de simbolizar só é possível quando objetos cindidos
podem ser integrados, tarefa esta alcançada na posição depressiva . Trata-se de
mais uma desestabilização da organização patológica na medida em que a cisão
maciça não está mais sendo levada a cabo.
Quanto a Ivan, ele ainda continua sendo um enigma para Trevor. Este
decide investigá-lo (pois acredita na sua existência) por meio do número da placa
P á g i n a | 12
de seu carro. Para sua surpresa, Trevor descobre que o carro era de sua
propriedade!
Ao voltar para casa, ainda do lado de fora e transtornado, vê Ivan entrando
em seu apartamento com o filho de Maria. Sem entender a situação, busca
confrontação com Ivan que se encontra no banheiro. Ivan lhe diz que adora os
lembretes que ele mesmo, Trevor, coloca na geladeira. Trevor acaba assassinando
Ivan com um corte no pescoço.
Quando tenta se livrar do corpo, se dá conta de que não havia corpo
nenhum e que Ivan fora uma produção mental alucinatória e acusatória, tal qual
todas as outras produções como os post-it´s e até mesmo a simples presença de
Maria.
Ao chegar a casa, encontra o seguinte post-it: “quem é
você?”. Num momento de grande angústia, na
terceira parte do filme, ele mesmo responde
a esta pergunta terminando de preencher o
“jogo da forca”. A palavra que completaria o
jogo era Killer (assassino). Ele agora entende o que se passa
com ele e sabe agora quem ele é: um assassino.
Os elementos cindidos agora se integram restabelecendo a memória
traumática que desencadeou a formação da organização patológica (STEINER,
1997). Maria na verdade nunca fora uma garçonete, mas a mãe de um menino que
ele atropelara e fugira há um ano atrás. Na impossibilidade psíquica de elaborar a
culpa pela covardia de não socorrer o menino, Trevor não pôde se identificar com
o objeto maltratado, se afastando dele (movimento típido dos estados paranóides)
(HEIMANN, 1980).
Embora a organização patológica o mantivesse relativamente equilibrado
pelas defesas anteriormente descritas, seu corpo não fora poupado, o que nos
sugere que houve sim certa identificação com o objeto maltratado. Seu corpo
passara a ser atropelado diariamente pela impossibilidade de dormir e pela
constante perda de peso. Se seu mundo mental não conseguia integrar os objetos
P á g i n a | 13
cindidos, coube a organização patológica atuar defensivamente direcionando seus
ataques agressivos ao seu próprio corpo.
Quando ele integra esses elementos outrora cindidos, recupera a chance de
reparar a culpa pela morte do garoto. Entrega-se à polícia e quando é levado ao
encarceramento, não agüenta ficar em pé de tanto sono.
Agora Trevor pode dormir o sono dos justos.
5. Considerações finais
O processo de maturação psíquica de Trevor, ou em outros termos, o
abandono de uma organização patológica para a posição depressiva, se dá pela
elaboração do luto como conseqüência da reversão da identificação projetiva.
O processo de reconquistar as partes perdidas do self através da identificação projetiva envolve encarar a realidade do que pertence ao objeto e do que pertence ao self, o que se estabelece com maior clareza por meio da experiência de perda. É no processo de luto que partes do self são reconquistadas, e esta aquisição requer extensa elaboração. Assim, uma verdadeira internalização do objeto só pode ser obtida se se renunciar a ele reconhecendo-o como um objeto externo. Então, este pode ser internalizado como separado do self, e nesse estado pode ser identificado de forma flexível e reversível. O desenvolvimento da função simbólica ajuda nesse processo e permite ao indivíduo identificar-se mais com aspectos do objeto do que com sua totalidade concreta (STEINER, 1997, p. 24)
Neste processo, o objeto perdido é visto de forma mais realista, e as partes
anteriormente rejeitadas do self são gradualmente reconhecidas como
pertencentes a ele. Esta conquista psíquica só é possível por meio da constatação
do desastre interno gerado pelo seu sadismo e pela conscientização de que seu
amor e seus desejos reparatórios são insuficientes para preservar o objeto. Esses
processos implicam dor e conflito mental intenso, cuja resolução é parte da função do
luto (STEINER, 1997, p. 80).
No entanto, para alguns sujeitos, a organização patológica parece ser a única
saída na medida em que ela garante o controle e distância emocional necessários.
P á g i n a | 14
Levando-se em consideração os limites que esta análise impõe (por ser uma
leitura sobre uma obra ficcional e não um caso clínico), consideramos que as
articulações teóricas apresentadas nos permitem conjecturar que:
1. Embora a organização patológica ofereça uma zona de proteção
ilusória, é possível ainda assim abandoná-la quando o sujeito
encontra recursos psíquicos para suportar as angústias de ambas as
posições. Tais recursos podem ter sido fortalecidos pelos vínculos
com a figura feminina que ofereceram à Trevor momentos de
contenção e acolhimento, como foi o caso de Stevie e Maria (mesmo
em sua forma alucinatória).
2. Do mesmo modo que há uma fluidez no deslocamento entre as
posições esquizoparanóide e depressiva, a mesma fluidez pode estar
presente quando o sujeito recorre à organização patológica como
forma de alcançar uma trégua em estados de grande vulnerabilidade
psíquica.
P á g i n a | 15
2. Referências Bibliográficas
HEIMANN, P. (1980). Uma Combinação de Mecanismos de Defesa em
Estados Paranóides. In: ,. M. KLEIN, P. HEIMANN, & R. E. MONEY-KYRLE, Novas
Tendências na Psicanálise (pp. 253-282). Rio de Janeiro: Editora Guanabara
Koogan.
HINSHELWOOD, R. D. (1992). Dicionário do Pensamento Kleiniano. Porto
Alegre: Artes Médicas.
KLEIN, M. (1948/1982). Sobre a Teoria de Ansiedade e Culpa. In: M. KLEIN,
P. HEIMANN, S. ISAACS, & J. RIVIERE, Os Progressos da Psicanálise (pp. 290-312).
Rio de Janeiro: LTC.
FERNANDEZ, J. (Produtor), KOSAR, S. (Escritor), & ANDERSON, B. (Diretor).
(2004). THE MACHINIST (O OPERÁRIO) [Filme Cinematográfico]. USA.
MONEY-KYRLE, R. (1996). Obra Selecionada. São Paulo: Casa do Psicólogo.
SEGAL, H. (1975). Introdução à Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.
__________ (1991). Notas sobre a Formação de Símbolos. In: E. B. SPILLIUS
(Ed.), Melanie Klein Hoje: Desenvolvimentos da Teoria e da Técnica (Vol. 1, pp. 167-
184). Rio de Janeiro: Imago.
__________ (1972/1998). Psicanálise, Literatura e Guerra. Rio de Janeiro:
Imago.
STEINER, J. (1991). O interjogo entre Organizações Patológicas e as
Posições Esquizo-paranóide e Depressiva. In: E. B. SPILLIUS, Melanie Klein Hoje:
desenvolvimentos da teoria e da técnica (Vol. 1, pp. 329-348). Rio de Janeiro: Imago.
_____________ (1997). Refúgios Psíquicos: Organizações Patológicas em
Pacientes Psicóticos, Neuróticos e Fronteiriços. Rio de Janeiro: Imago.